Boccaccio e a poesia - Morus

Transcrição

Boccaccio e a poesia - Morus
Boccaccio e a poesia
Pedro Falleiros Heise
Universidade Federal de São Paulo
Resumo
Nos dois últimos livros da Genealogia deorum gentilium, assim como no Trattatello in laude di
Dante, Boccaccio, ao defender os poetas, aponta elementos que servirão para uma possível
reconstrução de suas ideias poéticas. Essenciais, neste sentido, alguns trechos do Decameron, como
as introduções ao primeiro e ao quarto dias e a conclusão da obra, em que o amante de Fiammetta
tem de se manifestar contra certos leitores que teriam condenado o livro das “cem novelas”. A partir
da leitura desses textos, pretendemos analisar um dos eixos de seu ideário crítico: a defesa da
autonomia da poesia numa sociedade corrompida pela ambição do vil metal e pelo
fundamentalismo cristão que censurava a leitura dos chamados poetas pagãos.
Palavras-chave
Boccaccio, defesa da poesia, autonomia da poesia, filosofia
Pedro Falleiros Heise é professor adjunto de Língua e Literatura Latina da Universidade Federal de
São Paulo – UNIFESP. Bacharel em Letras (Português-Italiano), possui mestrado em Letras pela
FFLCH-USP com dissertação sobre a introdução de Dante no Brasil (2007 – bolsista CNPq),
doutorado em Letras pela Università degli studi di Roma Tor Vergata com tese sobre a presença de
Dante no Brasil (2011 – bolsista do Ateneo) e pós-doutorado em Letras pela FFLCH-USP com
pesquisa sobre a poética de Boccaccio (2014 – bolsista FAPESP). Entre suas publicações de relevo
destacam-se: introdução e notas a uma tradução quinhentista dos Triunfos de Petrarca (São Paulo,
2004) e a tradução de Pinóquio de Collodi (São Paulo, 2010).
MORUS – Utopia e Renascimento, 8, 2013
Boccaccio and poetry
Pedro Falleiros Heise
Federal University of São Paulo
Abstract
In the last two books of the Genealogia deorum gentilium, as in the Trattatello in laude di Dante,
Boccaccio, defending poets, points out some elements that will serve to a possible reconstruction of
his poetic ideas. Essential, in this sense, some excerpts of the Decameron, as the introduction to the
first and the fourth days and the conclusion of the author, in which the lover of Fiammetta must
speak out against certain reads that would have condemned the book of “cento novelle”. From the
reading of this texts, we intend to analyze one of the axes of his critical ideas: the defense of the
autonomy of poetry in a society corrupted by greed of filthy lucre and by Christian fundamentalism
which censored reading the so-called pagan poets.
Keywords
Boccaccio, defense of poetry, autonomy of poetry, philosophy
Pedro Falleiros Heise is Adjunct Professor Latin and Latin Literature at Universidade Federal de
São Paulo – UNIFESP. He received his Bachelor’s degree in Letters (Portuguese-Italian) and his
Master’s degree in Letters from FFLCH-USP, with a dissertation about the introduction of Dante in
Brazil (2007 – with a scholarship from CNPq). He has a doctorate in Letters from Università degli
studi di Roma Tor Vergata, with a thesis about the presence of Dante in Brazil (2011 – with a
scholarship from the Ateneo), and a post-doctorate in Letters from FFLCH-USP, with a research on
the poetics of Boccaccio (2014 – with a scholarship from FAPESP). Among his main publications
are an introduction and notes to a sixteenth-century translation of Petrarch’s Triumphs (São Paulo,
2004), and the translation of Collodi’s Pinocchio (São Paulo, 2010).
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Boccaccio e a poesia
título deste texto se mostra bastante amplo, o que de fato me permite tratar de vários
aspectos da obra do “pai da narrativa moderna”. Pretendo apresentar um dos pontos fundamentais
da defesa que Boccaccio fez da poesia, a saber, a luta pela autonomia do fazer poesia em relação às
outras atividades de maior valor para a sociedade de sua época: a teologia e a filosofia, além da
pintura.
Quanto a esta última, encontramos na conclusão do autor no Decameron a intrigante
comparação entre o pintor e o poeta:
Sem dizer que à minha pena não deve ser menor a autoridade concedida do que
aquela que é dada ao pincel do pintor; este, sem sofrer qualquer repreensão, ou
pelo menos que seja justa, não pinta apenas são Miguel que fere a serpente com a
espada ou com a lança, ou são Jorge que fere o dragão onde lhe apraz, mas ele
pinta Cristo macho e Eva fêmea, e pinta Aquele mesmo que quis morrer na cruz
para a salvação do gênero humano preso nela ora com dois pregos, ora com um
(10, conclusão do autor, 6).1
Esta comparação mostra que Boccaccio reclama para o trabalho do poeta a mesma
autoridade de que já gozavam os pintores, os quais, aliás, não eram repreendidos pelo realismo
(exagerado) de suas obras.2
Em outros momentos que Boccaccio teve de defender a poesia, notamos que é constante a
intenção do autor em inserir o poeta no rol das profissões de sua época. No trecho da Genealogia
deorum gentilium que será citado a seguir, destaca-se também a necessidade da diversidade, outro
tema caro a Boccaccio:
Quando a mão de um bom citarista bate nas diferentes cordas, porque umas estão
mais esticadas, outras menos, saem sons graves ou agudos, e assim, de sons tão
descordantes nasce a mais suave das harmonias; a natureza funciona do mesmo
modo: ela produz bens perecíveis que são próprios a todos os tipos de trabalhos, e
da diversidade deles resulta a conservação do gênero humano [...]. E se fôssemos
1
Todos os trechos de Boccaccio foram traduzidos por mim. As citações do Decameron apresentam o número do dia,
número da novela e número do parágrafo, de acordo com a edição de V. Branca (cf. bibliografia).
2
Na Genealogia há mais uma comparação entre o trabalho do poeta e o do pintor: “Mas insisto em perguntar: se
Praxíteles ou Fídias, doutíssimos na escultura, esculpiram um Priapo impudico que vai de noite antes para Íole do que
para Diana, notável por honestidade, ou se Apeles pinta, ou o nosso Giotto, ao qual na sua época Apeles não foi
superior, antes Marte que se une a Vênus do que Júpiter promulgando leis de seu trono para os deuses, diremos que
estas artes devem ser condenadas? Concordar com isso seria estupidíssimo […]” (Genealogia 14, 6).
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todos iguais, não poderíamos, uma vez produzidos, de modo algum durar tanto
tempo [...]. Assim, por uma disposição secreta da natureza, entre os mortais uns são
carpinteiros, outros marinheiros, outros negociantes, sacerdotes, reis, juristas,
magistrados, poetas, filósofos, teólogos. A conservação da imensa multidão
humana é o resultado necessário desta diversidade de estudos. [...] Para o benefício
do corpo humano, a natureza reuniu membros cuja qualidade e função diferem:
esta diversidade o faz existir (Genealogia 15, 10).3
Boccaccio usa agora a imagem de um instrumento, da música, portanto, para comparar a
diversidade dos sons produzidos pela cítara (ou lira) com a variedade de profissões dos humanos. E
a este ponto de sua defesa já é possível inserir, mesmo que sutilmente, a poesia no rol das atividades
profissionais da sociedade de sua época, como se pode notar no elenco que faz dos diferentes
trabalhos. Será neste clima que o autor escreverá sobre sua vocação para a reflexão poética.
Quando tinha sete anos, o impulso da natureza despertou nele o desejo de criar ficções. Foi
nesta época que, embora o pai o tivesse inscrito em curso para se tornar mercador, Boccaccio
despendia seu tempo lendo os livros dos autores antigos com deleite. Com efeito, o prazer é um
elemento constante na atividade literária de Boccaccio. Em outro ponto da Genealogia recorda
novamente a alegria que lhe dava a leitura dos hábitos dos poetas e seus escritos (Gen. 15, 9).
É lícito perguntar, então, por que a leitura dos poetas antigos lhe dava prazer, e uma resposta
provém daquilo que Boccaccio afirma no início do primeiro capítulo do livro 15 da Genealogia,
partindo da seguinte demonstração, a que podemos chamar filosófica: muitos objetos não
necessários são preciosos, como esta obra que está escrevendo, pois, apesar de não ser necessária, é
útil tanto à vida pública como à privada. Certos objetos, prossegue Boccaccio, que não são
absolutamente necessários muitas vezes são bastante apreciados, seja que a arte dos homens os
tenha inventado, seja que a obra da natureza os tenha feito.
Entre as artes dos homens, o autor cita os templos, os capitólios, os palácios reais, as coroas,
as vestimentas de púrpura, os braceletes de ouro, como se vê, todos objetos não necessários mas
apreciados. Quanto às obras da natureza, Boccaccio menciona apenas os cabelos, que, segundo ele,
não são necessários, mas, e aqui nota-se mais uma vez sua veia de narrador, se Vênus tivesse
aparecido sem seus cabelos, mesmo que acompanhada das Graças, não teria agradado a Marte. A
conclusão do autor é que se o objeto não tem nenhum valor por si só, torna-se precioso quando
serve para adornar. Boccaccio está tratando, portanto, do belo e, mais precisamente, está atribuindo
este valor a sua própria obra.
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No caso das citações da Genealogia, o primeiro número se refere ao livro, e o segundo ao capítulo.
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Assim, logo em seguida acrescenta que se aquilo que serve para adornar se torna precioso,
“sem dúvida minha obra tem valor” (Gen. 15, 1). Por qual motivo? Poderiam perguntar seus
adversários. Sua resposta merece nossa atenção, sobretudo porque Boccaccio retoma o termo
fabula,4 de que falaremos adiante:
Há coisa mais bela do que numa conversação entre humanos misturar às vezes
algumas pequenas fábulas [fabellas] às suas ideias? Há coisa mais conveniente do
que aplicar nas mesmas conversações os frutíferos significados das fábulas
[fructuosos fabularum sensus]? [...] Esta obra, ao tirar o véu das ficções
[fictionibus], mostra que os poetas foram homens sábios, e faz com que as fábulas
[fabulas] sejam frutíferas e deleitáveis aos que as lerem. E assim os poetas, que
pareciam ter morrido segundo uma falsa opinião, são reconhecidos e como que
ressuscitados na vida pública, e na privada, sua utilidade, que era rejeitada porque a
desconheciam, se recorre a ela como algo evidente, e incita os engenhos dos
leitores a procurar significações mais profundas (Gen. 15, 1).
Na Genealogia, há principalmente dois usos do termo fabula: um que se liga às histórias que
Teodôncio ou Leôncio Pilatos (as duas principais fontes de Boccaccio) lhe contavam e outro que se
desdobra em quatro espécies de fabula. A primeira espécie é aquela em que, o córtex, a superfície,
carece de uma verdade, como por exemplo quando apresentamos animais brutos ou as coisas
insensíveis falando entre si. O maior autor “destas coisas”, diz Boccaccio, “foi Esopo, homem
grego venerável por sua antiguidade e por sua seriedade” (Gen. 14, 9).
A segunda espécie, continua Boccaccio, “mistura às vezes na superfície o fabuloso com a
verdade [veritati fabulosa conmiscet], tal como dizer que as filhas de Mínias, por terem desprezado
os sacrifícios de Baco, foram transformadas em morcegos” (Gen. 14, 9), conforme o exemplo das
Metamorfoses (4, 1-54 e 389-414) de Ovídio. Esta espécie de fabula foi usada desde os mais antigos
poetas, que “tiveram o cuidado de cobrir com ficções [figmentis] tanto as coisas divinas como as
humanas”, lembra Boccaccio (Gen. 14, 9). E acrescenta que houve poetas que aperfeiçoaram estas
fabulae, mas, apesar disso, houve também alguns poetas cômicos que as corromperam, mais
preocupados com o consenso do vulgo do que com a “honestidade” (Gen. 14, 9).5
A terceira espécie de fabula é mais parecida com a história [hystorie] do que com a fábula
[fabule]. Por mais que pareça que escrevem uma história, os poetas épicos, “como Virgílio quando
4
É necessário manter o termo no original, em latim, para não incorrer em confusão com o termo português “fábula”.
Recorde-se que o termo onestà é essencial no Decameron e aqui Boccaccio confirma sua importância mais uma
vez. Segundo Pier Giorgio Ricci, na raiz do desprezo pelos autores de comédias está a ideia de que eles procuravam
uma popularidade fácil, rebaixando-se ao gosto do povo, e, portanto, submetendo a poesia a um objetivo desprezível,
longe de qualquer contemplação de altas verdades (in Boccaccio, 1965, p. 959, n. 9).
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descreve a tempestade que atirava Eneias no mar ou Homero que descreve Ulisses preso ao mastro
do navio para não ser arrastado pelo canto das sereias, pensam algo diferente daquilo que mostram
sob o véu [sub velamine]”. Assim também os poetas cômicos Plauto e Terêncio, que “usaram desta
espécie de fazer fábulas pensando apenas no que a letra [lictera] significa, mas querendo descrever
com sua arte os costumes e as palavras dos diferentes homens, e ao mesmo tempo ensinar os
leitores e torná-los precavidos” (Gen. 14, 9).
Existe, por fim, a quarta espécie de fabula, na qual não há nada escondido que seja
verdadeiro, nem na superfície, pois é invenção “de velhinhas delirantes [delirantium vetularum]”.
Uma vez apresentadas as quatro espécies de fabula, Boccaccio passa a rebater as críticas dos
inimigos da poesia: se condenam a primeira espécie (a que não tem verdade na superfície), deverão
condenar igualmente as Sagradas Escrituras, nas quais se lê que as árvores de uma floresta falaram
entre si para eleger um rei; se reprovam a segunda (a que mistura na superfície “verdade” e fabula),
todo o sagrado volume do Antigo Testamento deverá ser censurado, pois “se vê que as coisas que
nele estão escritas caminham quase com o mesmo passo das coisas que os poetas produzem,
principalmente quanto ao modo de compor” (Gen. 14, 9). Esta afirmação, aliás, nos remete à
terceira redação do Trattatello in laude di Dante, em que Boccaccio esclarece que teologia e poesia
são semelhantes quanto ao “modo de esconder seus conceitos”, e não quanto ao conteúdo (Tratt. 3,
102).
Mas, na Genealogia, ele insere mais uma semelhança entre o Antigo Testamento e a poesia:
“Pois, onde falta a história [lembremos que a segunda espécie de fabula é a que mistura o fabuloso
com a verdade], nem um nem outro se preocupa com o que pode dizer a superfície, e o que os
poetas chamam de fábula [fabulam] ou ficção [fictionem], nossos teólogos chamam de figura
[figuram]” (Gen. 14, 9). O termo “figura”, com efeito, era usado para designar as alegorias das
Sagradas Escrituras, conforme explica o tradutor francês da Genealogia, Yves Delègue (2001, p.
89). E é de se notar que Boccaccio associa o poeta ao profeta, ao dizer que o modo de compor de
um e de outro é o mesmo. Os exemplos bíblicos retornam: se acaso quiserem censurar as visões de
Isaías, Ezequiel, Daniel, “consentirei à condenação dos poetas”, pondera Boccaccio (Gen. 14, 9).
Se os inimigos da poesia quiserem condenar a terceira espécie de fabula (a que é mais
parecida com a “história”), acabarão condenando também o modo de falar mais frequente de Jesus,
embora as Sagradas Escrituras não o chamem com o mesmo vocábulo que os poetas, mas chamem
de “parábola” (parabolam) ou “exemplo” (exemplum). Quanto à quarta espécie de fabula,
Boccaccio diz que não perderá tempo em defendê-la, pois realmente não estaria de acordo com as
fabulae dos poetas.
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Seguindo seu método de arguição, após apresentar os argumentos que comprovam a
presença das fabulae na Bíblia, Boccaccio lança uma pergunta retórica: “os inimigos da poesia
chamarão o Espírito Santo e Cristo Deus de fabulonem, visto que ambos falaram através de fábulas?
Por certo não, se são sábios” (Gen. 14, 9). O fato de Jesus e dos poetas usarem fabulae se deve ao
poder de persuasão, à retórica, pois já “as fabulae conseguiram acalmar os ânimos enlouquecidos,
ou revigorar as forças dos homens ilustres desanimados, para que se ocupassem de coisas sublimes”
(Gen. 14, 9).
Além disso, as fabulae conseguem confortar os ânimos aflitos. E, aqui, o exemplo trazido
por Boccaccio nos remete à quarta espécie de fabula, aquela das “velhinhas delirantes”. Trata-se de
uma história de Apuleio, segundo a qual Caritas, nobre donzela raptada, “com a graça da fábula
[fabule] de Psique por um pouco se sentiu consolada por uma velhinha [anicula]” (Gen. 14, 9).
Note-se a sutileza de Boccaccio: a quarta espécie de fabula é justamente aquela das histórias
contadas pelas vetularum delirantium; ora, neste caso, como conciliar o fato de Caritas receber
consolo de uma anicula, que, como se sabe, é sinônimo de vetula, com a crítica à espécie de fabula
das velhinhas? Deste modo, até mesmo a quarta espécie teria então uma utilidade.
No que tange à utilidade das fabulae, parece que todas as quatro espécies são úteis, inclusive
a última, como vimos, e a primeira, a que não tem verdade na superfície. O exemplo neste caso é do
próprio Boccaccio, que tinha ouvido (note-se a presença da oralidade, característica do narrador) de
Jacobo de São Severino sobre o rei Roberto de Nápoles, cuja corte o autor frequentou na juventude.
No tempo de criança, segundo a história, Roberto não progredia nos estudos, a ponto de seu
professor ter uma grande dificuldade em fazê-lo aprender o alfabeto. Mas um outro professor,
astuto, conseguiu lhe ensinar as fabulae de Esopo, de modo que desde então o futuro rei passou a se
dedicar aos estudos com afinco e em pouco tempo chegou a conhecer até os mistérios da “sagrada
filosofia”, e, note-se a veia narrativa de Boccaccio, se tornou um rei tão grande que, “depois de
Salomão, os mortais não conheceram nenhum rei mais sábio do que ele” (Gen. 14, 9).
Como se vê, inclusive as fabulae de Esopo eram úteis, conforme o próprio autor havia
afirmado na rubrica deste capítulo (“Compor fabulas se mostra coisa mais útil do que danosa”). E
este ensinamento das fabulae, como explica Boccaccio, era acompanhado de deleite, pois a leitura
de um livro é “ao mesmo tempo útil e agradável [proficiunt et delectant]”, reforçando o famoso
preceito da Ars poetica de Horácio.
A defesa da fabula, enquanto poesia, é central também no Decameron. No proêmio, por
exemplo, o autor diz que contará “cem novelas [novelle], ou fábulas [favole], ou parábolas
[parabole], ou histórias [istorie] que queiramos dizer” (Dec. proêmio, 13). Em primeiro lugar,
destaca-se que, exceto “novelle”, todos os outros termos estão presentes nas várias definições de
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fabula que acabamos de ver, o que nos faz pensar que o Decameron, deste modo, contemplava
todas as quatro espécies de fabula, pois são “favole o parabole o istorie”.
Mas o curioso é que Boccaccio emprega o termo favola também em outros sentidos, como
uma “mentira” ou uma “história bem contada”. Os exemplos são muitos no Decameron, mas um
chama a atenção por tratar da maneira de como se deve contar uma história a fim de alcançar um
objetivo, ou seja, a utilidade da poesia (neste caso privada, e não pública). Na quinta novela do
segundo dia, a fictícia irmã de Andreuccio lhe conta uma favola tão bem ordenada e tão bem
composta, que o ingênuo perusino acaba comprando a história, pela qual paga caro num primeiro
momento.
Aqui o termo se refere a uma invenção mentirosa, ao qual se unem duas palavras que
indicam o bom êxito da trapaça da siciliana. Como exímio contador de histórias, além de professor
do modo de contá-las, Boccaccio acrescenta que junto com a favola, a falsa irmã de Andreuccio, ao
contar a história, “não deixou faltar nenhuma palavra e em nenhum momento deixou a língua
balbuciar”: eis a boa maneira de se contar uma história para obter aquilo que se deseja, mesmo que
seja através de uma mentira. Deve-se somar, ainda, às palavras da falsa irmã, seus gestos: “as
lágrimas ternas, os abraços e os beijos castos”, o que levou Andreuccio a “tomar aquilo que ela
dizia como mais que verdade” (Dec. 2, 5). Note-se, então, que a favola pode ser tomada como uma
verdade, embora no exemplo visto seja uma grande mentira.
Merece atenção também o emprego de favola na introdução ao quarto dia do Decameron,
quando o narrador irrompe na “mia difesa” (Dec. 4, intr., 9), isto é, na defesa de sua obra, e ali
repete três vezes o vocábulo:
Mas o que diremos àqueles que tanta compaixão sentem pela minha fome que me
aconselham que eu vá ganhar meu pão? Na verdade não sei, a não ser que,
querendo pensar comigo mesmo qual seria a resposta deles se eu por necessidade
lhes pedisse um conselho, creio que diriam: “Vai procurar teu pão nas fábulas
[favole]”. Já muitos poetas o encontraram nas fábulas [favole], mais do que muitos
ricos em seus tesouros, pois indo atrás de suas fábulas [favole], viveram até idade
avançada, enquanto ao contrário muitos, ao procurar ter mais pão do que lhes era
preciso, morreram cedo (Dec. 4, intr., 37-38, grifos nossos).
Devemos recordar que a intenção de Boccaccio nesta introdução ao quarto dia é rebater as
supostas críticas que alguns leitores teriam feito ao Decameron, a saber: que o autor gostava das
mulheres e que se esforçava para fazer com que elas gostassem dele. Ora, diz Boccaccio, nada mais
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natural para um homem gostar das mulheres, e o exemplo será o próprio personagem da novela
contada excepcionalmente pelo autor nesta mesma introdução.6
Mas a crítica mais incisiva, a nosso ver, vem na resposta (irônica) que seus críticos lhe
dariam, segundo o autor, se este lhes pedisse um conselho de como “ganhar o pão” de outro modo:
“Vai procurá-lo nas fábulas”. A favola, neste contexto, representaria o próprio trabalho do poeta:
compor fábulas. Veja-se mais uma vez, então, a insistência de Boccaccio em dizer que escrever
poesia é um trabalho, e é, por isso mesmo, o ofício do poeta, assim como pensar na natureza é dever
dos filósofos, e refletir sobre Deus e as coisas celestes é profissão dos teólogos. Não por acaso, na
introdução ao quarto dia, logo antes de começar a contar a sua novela “não inteira”, Boccaccio diz:
“e aos meus agressores ‘favelando’ digo...”, e narra a história de Filippo Balducci e o filho. Note-se
sua sutileza mais uma vez: o verbo italiano favellare deriva do latim fabella, diminutivo de fabula;
ou seja, Boccaccio também afirmava-se como um dos fabulator, um compositor de fábulas, e assim
queria ser reconhecido e apreciado na sociedade em que vivia.
Sendo assim, Boccaccio teceu, tanto em língua vulgar como em latim, a defesa do
reconhecimento profissional de sua arte (sua facultas), mais um elemento de modernidade do
amante de Fiammetta. No mundo das especializações profissionais que surge a partir do
renascimento das cidades na península itálica, esta reivindicação de Boccaccio se mostra como a
primeira manifestação na direção do universo humanista que estava se abrindo. Se, por um lado, as
artes mechanicae (profissões “práticas”), aquelas que viabilizavam a vida cotidiana, já estavam
consolidadas, por outro, no âmbito das artes liberales (profissões “intelectuais”) apenas as artes
plásticas haviam alcançado o grande público de forma ampla, tanto que não eram nem contestadas
(o pintor não sofre nenhuma “repreensão”, como vimos na conclusão do autor no Decameron).
Agora, com as obras de Dante, Petrarca e Boccaccio, também a poesia voltava a ganhar uma
posição de destaque, seja entre os eruditos, seja entre o povo.
Referências
BOCCACCIO, Giovanni. Opere in versi, Corbaccio, Trattatello, prose latine. Ed. P. G. Ricci.
Milão:
Ricciardi, 1965.
___________. La Généalogie des Dieux païens. Livres XIV et XV. Org. e tradução de Y.
Delègue. Strasbourg: Presses Universitaires de Strasbourg, 2001.
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Trata-se da célebre “novella delle papere”, ou a novela das patas, em que um jovem que nunca tinha visto uma mulher,
pois vivia isolado com o pai no Monte Asinaio, assim que vê algumas delas na cidade, logo se sente atraído por elas. Ao
perguntar como se chamavam aquelas criaturas, o pai lhe responde que eram patas. Cfr. Dec. 4, introdução, 12-29.
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___________. The genealogy of the pagan gods (vol. 1, livros 1-5, tradução de Jon Solomon).
Londres, Harvard, 2011.
___________. Vite di Dante. Ed. P. G. Ricci. Milão: Mondadori, 2002.
___________. Genealogia deorum gentilium (ed. V. Romano). Bari-Roma: Laterza, 1951.
___________. Decameron (ed. V. Branca). Turim: Einaudi, 2004.
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