O sobrinho de Lacan
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O sobrinho de Lacan
Latusa digital – ano 2 – N° 20 – novembro de 2005 O sobrinho de Lacan* – um canular Inês Autran Dourado Barbosa** A tradução deste livro, a quatro mãos, tornou necessária uma divisão, em que predominou como critério a preferência de minha colega Elisa Monteiro por alguns textos com os quais ela já havia tido algum contato ou traduzido. Coube-me assim o restante, ou seja, a primeira parte “Lindenberg Daniel, famoso panfletário francês”, relato deliciosamente irônico e irreverente de todo o percurso do movimento político e intelectual na França dos anos 60, na trajetória da figura sempre discutível do panfletário Daniel Lindenberg, que me lembrou de certa forma nosso herói tupiniquim sem nenhum caráter, Macunaíma, com que Mário de Andrade tão bem representou o povo brasileiro. Ainda me coube “O sobrinho de Lacan”, paródia de “Le neveu de Rameau”, de Diderot, e alguns textos a partir de “O ditador dos cegos” até o final do livro. O entusiasmo com que parti na execução de minha tarefa arrefeceu rapidamente, logo se transformando em um certo pânico, ao perceber a dificuldade de entender e dominar o emaranhado de referências, nomes, datas e siglas, confusão proposital que acaba constituindo um recurso da narrativa, em que fatos históricos fartamente documentados se mesclam aos fictícios em um tom de absoluta e irônica seriedade. Resolvi não procurar entender muito a princípio e me deixar levar docilmente pela narrativa, pedindo eventualmente ajuda ao nosso org., Manoel Barros da Motta, assim como usando e abusando da paciência do escritor Silviano Santiago, cuja colaboração sempre generosa, calcada em sua experiência no ** MILLER, J.-A. O sobrinho de Lacan. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2005. Texto apresentado na Noite da Biblioteca de 21 de julho de 2005, no Lançamento da tradução de O sobrinho de Lacan, de Jacques-Alain Miller. ** Aderente da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). 1 meio intelectual e acadêmico francês, mais uma vez agradeço. Recorri finalmente à Internet, que me surpreendeu no deciframento de siglas, enriquecendo várias e esclarecedoras notas de rodapé. Não me considero tradutora, mas tenho grande prazer em traduzir. Ler o texto, capturar seu sentido, modelar cada frase, ajustar cada palavra testando sua força, sua textura, ouvindo sua música. E ver o texto crescendo, ganhando força, arredondando, perdendo a dureza que lhe fora imposta na passagem para a nova língua. Traduzir não é para mim uma boa forma de leitura. Custo a reconhecer os livros que traduzi. Tenho que lê-los depois com outros olhos. Por profissão, tenho mais oportunidades de traduzir textos de psicanálise, mas teria o mesmo prazer com um romance ou uma poesia. Acho que só recusaria mesmo bula de remédio. O livro inicia com uma biografia de Daniel Lindenberg, “famoso panfletário francês”, apresentada em um jargão rigorosamente formal e acadêmico por Clément Delassol-Lunaquet, sob os auspícios da Academia de ciências imorais e políticas, em sua sessão semiclandestina anual. Trata-se de uma versão clandestina da verdadeira Academia de Ciências Morais e Políticas, fundada pelo rei Louis-Philippe. Ambas têm a mesma estrutura e alguns de seus membros freqüentam as duas ao mesmo tempo. São como duas faces de uma mesma moeda e se assemelham da mesma forma que o traçado da rede de esgotos de Paris corresponde sub-repticiamente ao das ruas, na superfície. Miller joga com os personagens da intelectualidade da época, que em ambas ocupam cadeiras e desempenham papéis, ao mesmo tempo em que contracenam com personagens fictícios. A profusão de referências, autores e datas rigorosamente citados, bem ao gosto acadêmico, dá margem a um embaralhamento, a uma proposital mistura entre ficção e realidade. A tal ponto que temos dificuldade de distinguir, em alguns trechos, de qual delas se trata. Em termos latinos, poderiam ser consideradas “ejusdem farinae”, ou seja, farinha do mesmo saco. 2 O canular Como diz Miller, trata-se de um exercício espiritual, de Witz, no qual é de bom tom exibir uma cultura mirabolante com fins de divertimento. É a distração do sábio e do erudito, praticada com outros nomes, facécia ou sátira, desde a mais remota antiguidade. A palavra canular vem provavelmente do latim cannula, que deu origem ao termo médico cânula, designando um pequeno tubo usado para introduzir um líquido no corpo, geralmente pelo ânus. A palavra deu origem ao verbo “canular”, significando “aborrecer, importunar”, que aqui chamamos “sacanear, encarnar, zoar”. No final do século XIX os alunos da Escola Normal Superior da França criaram a partir desse verbo a palavra pseudo-latina cannularium, para designar uma gozação, uma farsa feita às custas de alguém. No início do século XX, a palavra ficou conhecida como canular. A cultura do canular é tradicional entre os alunos das grandes escolas francesas. Esse costume resistiu à derrota da França, em junho de 1940, quando os oficiais de reserva egressos dessas escolas, feitos prisioneiros, resolveram “sacanear” os alemães. Perturbando freqüentemente as equipes de que faziam parte, foram reagrupados segundo suas escolas de origem e enviados para o campo de Eylau, onde ficaram expostos a um inverno extremamente rigoroso. Mais recentemente, para animar o lançamento de um novo jogo eletrônico, “Dead or Alive”, a revista Xbox-Mag em uma anedota irônica, divulgou que jovens japonesas teriam suicidado engolindo próteses de silicone, referindo-se às formas generosas das heroínas do jogo. A informação foi levada a sério por um jornalista do Libération, que redigiu um artigo sobre o tema, especificando que 147 jovens japonesas teriam se suicidado em fevereiro de 2003, engolindo próteses de silicone. France 2 aproveitou e realizou para seu jornal televisado uma reportagem sobre o mal-estar da juventude nipônica, que estaria 3 suicidando engolindo as referidas próteses. Os dois jornais se desculparam pela avalanche de boatos que invadiu a Internet. Entre nós alguns canulares são bastante conhecidos, como por exemplo as brincadeiras do 1º de abril, o famoso Celacanto provoca maremoto, o famoso canular radiofônico de Orson Welles, que aterrorizou a população americana com um iminente ataque de extra-terrestres, o artigo divulgado na Internet provando que os hambúrgueres do Mac Donald’s eram feitos com carne de minhoca e o boato de que haviam encontrado o corpo já deteriorado de um funcionário dentro de um tambor da Coca-cola, até os falsos avisos de vírus e correntes na Internet. A sátira Neste livro JAM justifica sua intenção de fazer uma sátira, que tanto pode ser entendida no sentido de miscelânea, “salada de frutas”, como no sentido da sátira romana, crítica mordaz da moral e dos costumes: “Porque uma sátira apazigua. Porque meus fervores terminam naturalmente em alegria. Porque sempre se fica mais contente quando se pode rir do outro...” Esse era, aliás, o lema da Comedia del’Arte: “castigat ridendo mores” (rindo, corrigimos os costumes). O humor é arma que tanto serve para ferir quanto para aliviar tensões. Em um momento político como o nosso, convulsionado com os escândalos do mensalão e do cuecagate, a sátira política é uma via de expressão da indignação popular com os desmandos dos homens públicos. Resta-nos rir dos delúbios, dizlúbios e daslúbios, como propôs Veríssimo em sua coluna. A tradução deste livro não poderia vir a público em momento mais oportuno. Uma das principais características da sátira é a dissimulação. Na França, a commédie italienne, já aceita nos salões e teatros, assinou sua sentença de morte quando uma sátira mal dissimulada de uma dama da corte (La fausse prude – A falsa pudica) provocou o fechamento do teatro por Luís 4 XVI (1697) e a expulsão dos atores da França. Essa expulsão foi registrada por Watteau no quadro “A partida dos comediantes italianos”. Voltaram dezenove anos mais tarde, buscando seu lugar nas feiras, entre o povo. Não foi à toa que a Academia de ciências imorais se reservou o “direito de ocultação imediata”, e que seu decreto de fundação, feito por Kojève, não foi “transmitido, por medida de exceção, aos arquivos nacionais [...]”. Ao contrário das outras academias, que fazem questão de aparecer a todo custo e deploram o silêncio midiático, seus confrades, entre os quais Lacan, adotam um comportamento discreto e reservado, bem de acordo com o estado de clandestinidade de sua instituição. A vida política do panfletário Daniel, em meio à estudantada francesa politizada dos anos 60, se caracteriza por sucessivos movimentos de adesão e repulsa a várias doutrinas. Foi em seu trajeto “sucessivamente stalinista, antistalinista, comunista, anticomunista e finalmente progressista”, ou seja, essencialmente um bom oportunista, sempre fervorosamente aplicado à missão que se impôs de denunciar publicamente tudo o que lhe pudesse parecer reacionário. Em sua passagem por cada uma dessas doutrinas colaborou em várias revistas, sempre criticando violentamente seu engajamento anterior e denunciando os reacionários. Como elemento útil na formação de opiniões, o panfletário é conduzido à direção da Esprit, revista católico-desconfessionalizada de esquerda, editada pelo senhor Rosanvallon, e se tornou seu conselheiro, desta vez muito empenhado em denunciar os chamados “novos reacionários”, acusados de retardar o avanço do marxismo pela ênfase no “culto ao livro” e na “formação teórica”: precisamente, em 67, J.-A. Miller e Jean-Claude Milner. Disso resultou uma crise, a “Campanha do genro”, na qual Daniel, diante da recusa da revista Esprit, que se localizava politicamente em cima do muro, em se empenhar em sua defesa, acaba saindo. A partir daí, tem seus serviços recusados em várias revistas, que “duvidavam da perenidade dos seus 5 engajamentos”, chegando em última instância a se propor como colaborador até no Journal de/do Mickey, com cuja candura se identificava. O sobrinho de Lacan Na segunda parte do livro, intitulada O sobrinho de Lacan, J.-A. Miller parodia O sobrinho de Rameau, de Diderot. Jean-François Rameau, sobrinho de um grande compositor, revela disposição para a música e caráter indisciplinado. Educado pelos jesuítas, experimentou a carreira militar, depois a eclesiástica e por fim se dedicou à música (qualquer semelhança com o volúvel Daniel Lindenberg não é mera coincidência). Após perder a mulher e o filho entra em decadência, tornando-se boêmio e mendigo até a morte. Personagem ignóbil, cínico, preconizava a arte de viver sem preocupação moral. Apesar da sensibilidade artística, permanece irremediavelmente medíocre e disso se queixa amargamente, invejando o tio célebre. Diderot fez dele o símbolo dos inimigos dos filósofos que atacavam a sua Enciclopédia. No diálogo romanesco de Diderot nenhum dos dois interlocutores pode ser considerado claramente representante do autor: embora um se chame “eu” e o outro “ele”, ambos constituem duas faces do mesmo caráter, que se mantém indefinido. Em O sobrinho de Lacan, a epígrafe de Borges “Não sei qual dos dois escreve esta página” confirma essa mesma característica. O prólogo se assemelha à narrativa inicial do filósofo de Diderot, com algumas adaptações. Em vez de “abandono o espírito a toda libertinagem”, o autor evoca a regra da associação livre: “Provoco seu inconsciente a toda sua libertinagem lógica. Deixo-o livre para seguir a primeira idéia sensata ou louca que se apresente, como se vê sobre um divã”. E o irreverente “Meus 6 pensamentos são minhas rameiras”, de Diderot, aparece como “Seus pensamentos são suas putas”, em nossa tradução. O diálogo eu-ele de Diderot é mantido praticamente inalterado até a pergunta “O que fazes entre essa malta de mandriões? Será que também perdes teu tempo a empurrar pauzinhos?”, referindo-se aos jogos de xadrez ou de damas, em moda na época. A partir daí, o diálogo de Miller vai sofrendo modificações: “O que faz entre as minhas idéias que perambulam? Será que também perde seu tempo fazendo deduções?”. O autor aproveita essa forma de diálogo para esclarecer o que ocorria nos bastidores da vida política e intelectual dos anos 60, e revelar a trama que deu aos folhetos de um esquerdinha medíocre como Lindenberg tamanha repercussão na mídia. Seu talento denunciador e panfletário fora utilizado por Rosanvallon para desestabilizar a esquerda intelectual e acadêmica, manipulando a opinião pública através de “patrulhinhas ideológicas” – que tão bem conhecemos no período pós-revolução – destinadas a perseguir os “novos reacionários” acusados de escorregar para a direita. 7