A História do Pensamento Econômico e sua herança filosófica

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A História do Pensamento Econômico e sua herança filosófica
Arnaud Berthoud
A História do Pensamento
Econômico e sua herança filosófica
V. II N. 3 JUNHO pp. 63-74
Arnaud Berthoud*
Para que nos interessemos pela história do pensamento econômico, é preciso que acreditemos que as Ciências Econômicas estão
impregnadas por seu próprio passado de uma certa forma que explicitarei adiante e a qual chamo de herança. Esta herança faz de nós filósofos.
Tomo esta idéia a R. Heilbroner (1971), cuja obra sobre os Grandes
Economistas tem como título original The worldly philosophers, isto
é, os filósofos do mundo, do mundo aqui de baixo ou do mundo
material. Reconhecemos a herança desses filósofos do mundo enquanto
nós mesmos formos filósofos. Responderei também mais diretamente
à pergunta referente à herança que constitui a parte filosófica das Ciências Econômicas. Mostrarei que a herança que recebemos e transmitimos
como historiadores do pensamento econômico tem por essência uma
pergunta e não uma resposta. A pergunta é a seguinte: que lugar o
desejo do rico e a piedade do pobre ocupam na vida política de nossas
sociedades e em relação aos riscos de guerra civil ou de tirania?
Qualquer estudo sobre o desenvolvimento da Ciência Econômica me parece estar inscrito em quatro dimensões diferentes, muito
freqüentemente com um privilégio concedido a uma ou a outra: o
estudo dos textos, a história dos fatos, a análise, a doutrina. Eu as
apresento aqui nesta ordem, sem me interessar por suas relações mútuas. Esta apresentação tem por objetivo mostrar a parte filosófica das
Ciências Econômicas.
* Arnaud Berthoud é filósofo e professor no Doutorado de Economia da Universidade de Lille e no Doutorado de Economia da Universidade de Nanterre, Paris-X,
França. Esse texto, inédito, foi gentilmente cedido aos Editores para publicação na
revista Econômica. Tradução: Angela Ganem. Revisão técnica: Ricardo Tolipan.
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Estudo dos textos – Aqui, considero o trabalho que consiste
em exumar textos desconhecidos ou em apresentar numa ordem nova
uma série de textos conhecidos. Tradução, preparação de edição, reabilitação de um texto esquecido, composição de uma biografia intelectual,
simples “releitura” à luz de um conceito recente: o que dá um caráter
particular a esta dimensão depende do conceito de autor. Os textos
antigos são estudados como textos de autor para medir uma autoridade.
Por exemplo, a respeito de Ricardo: as discussões entre J.H. Hollander
(1910), Cannan (1917), Sraffa (1951) e H. Biaujeaud (1988). Os dois
primeiros afirmam uma evolução do pensamento de Ricardo – da teoria do valor-trabalho à teoria marshaliana dos custos de produção,
considerando as diferentes edições dos Princípios; os dois últimos afirmam, ao contrário, a permanência de uma idéia, quaisquer que sejam
os textos – teoria do valor-trabalho para Sraffa, uma teoria intermediária entre custos de produção e valor-trabalho para H. Biaujeaud.
História dos fatos – O historiador do pensamento econômico
pode assinalar que fato fundamental, em um tempo e um lugar determinados e numa escala mais ou menos grande, polariza a atenção de
um economista sob a forma de um problema prático para o qual é
preciso trazer urgentemente uma solução passível de argumentação
junto a um público esclarecido, justificando uma intervenção sobre
variáveis particulares. Mas o historiador do pensamento econômico
pode também descrever como tal conjunto de enunciados reflete as
condições particulares de uma sociedade, de uma classe ou de uma região – quer estas condições sejam políticas, morais, psicológicas ou
traduzam por si mesmas leis naturais demográficas, físicas, climáticas,
etc. Fica claro que esta alternativa rigorosa, na sua forma pura, entre o
enunciado ativo enquanto solução de um problema e o enunciado passivo enquanto expressão de uma vida social, não se encontra
provavelmente em nenhuma História do Pensamento Econômico. No
entanto, ela compartilha de modo visível as vertentes da abordagem
histórica. Um exemplo sobre o mercantilismo: de um lado Keynes
(1969, p. 349), considerando as propostas mercantilistas como soluções históricas para os problemas particulares em função de regras
precisas e com o objetivo de uma ação: “Num tempo em que as autoriEconômica, nº 3, pp. 63-74, junho 2000
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dades não podiam agir diretamente... as entradas dos metais preciosos
eram os únicos meios... [para] realizar investimentos...”; do outro lado
Marx, que vê no mercantilismo a refração de uma época e na “brutalidade inocente” ou na “barbárie” de suas propostas, a inovação decisiva
do modo de produção que se instala. “O mercantilismo divulga com
uma violência ingênua o segredo da produção burguesa” (1965, 1/420).
No primeiro caso, a história é marcada pelo acaso; Keynes pratica uma Arte de exceção; a Economia Política é tratada como um
conjunto acabado de argumentações ligadas umas às outras de maneira
bastante vaga; o historiador revela uma lição. No segundo caso, a história depende de leis; a argumentação reflete suas condições de exercício;
a Economia Política é tratada como uma ideologia; o historiador apresenta um exemplo. Nos dois casos, o que domina esta dimensão e lhe
proporciona unidade específica é o conceito de história.
Análise – O economista encontra nos textos antigos argumentações obscuras, complexas, confusas ou implícitas, cuja significação e
relações de coerência podem ser estimadas, restabelecendo-se explicitamente as condições desprezadas. Há quatro direções possíveis.
Primeira direção: os princípios são admitidos pelo historiador.
Eles asseguram uma dedução correta, mas os resultados só valem em
condições menos gerais do que as condições propostas ou supostas
implicitamente pelo autor. Um exemplo encontra-se nos apêndices I e
L dos Princípios, de A. Marshall, consagrados ao exame da teoria dos
preços de produção de Ricardo: “... nisso ele tem talvez razão”, diz
Marshall a propósito da hipótese dos rendimentos constantes que, a
seus olhos, legitima a confusão dos períodos do tempo em Ricardo, o
que traz como conseqüência a pouca importância da demanda na determinação do preço de equilíbrio; e conclui: “... mas ele comete o
erro de não declarar explicitamente o que faz...” (1966, p. 671).
Segunda direção. Os princípios são considerados confusos pelo
historiador. A dedução também. Mas podemos distinguir neles uma
parte que pode ser aperfeiçoada e uma parte que não pode. Exemplo: a
opinião de Sraffa (1952) sobre a teoria do padrão de medida de Ricardo
– esta pode ser aperfeiçoada em relação à questão “valor e repartição”,
mas em relação à questão “valor e crescimento”, não é possível.
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Terceira direção. Os princípios são incoerentes aos olhos do
historiador. A dedução também o é. Nada pode salvá-la. Exemplo:
Walras (1952) pensa que a teoria inglesa – ou ricardiana – da taxa de
juros é imperfeita, sem correções possíveis.
Quarta direção. Os princípios são falsos. A dedução é coerente.
Os resultados são falsos à medida que eles não são abordados
empiricamente. Exemplo: a apreciação feita por Keynes (1969) sobre
Ricardo e a ortodoxia ricardiana no fim do capítulo 3 da Teoria geral.
Acontece que a interpretação analítica do pensamento de um
autor mobiliza, por parte de seu historiador, várias direções ao mesmo tempo, sem que a distinção seja claramente marcada. Keynes
concebe Ricardo como um caso particular de uma teoria mais geral, o
que supõe um acordo sobre os princípios e um desacordo sobre as
condições de validade da dedução – primeira direção – e, por um outro
lado, ele considera Ricardo como um autor cujos princípios são falsos,
mesmo que eles possam, em certas condições particulares, assumir a
aparência da verdade – quarta direção. Então, segundo o próprio
Keynes, há uma tendência entre os historiadores a abordar primeiramente o seu pensamento de acordo com a segunda direção. Por um
lado, o bom Keynes aperfeiçoável e eventualmente integrável numa
teoria mais geral; por outro lado, o mau Keynes demasiadamente obscuro ou incoerente para ser salvo.
O caráter específico desta dimensão analítica, qualquer que seja
a direção tomada, é determinado pela noção de coerência lógica. Sua
aplicação – como qualquer outra aplicação de uma das quatro dimensões – mantém com a doutrina uma relação sobre a qual convém fazer-se
aqui uma observação. Não há análise alguma do pensamento de um
autor que não implique em uma certa intuição doutrinal por parte de
seu historiador. É esta intuição que une o historiador ao seu autor.
Ela se traduz pela aceitação ou pela rejeição dos princípios – definições, postulados ou axiomas. Aliás, a interpretação analítica se exprime
numa correlação dos princípios e dos resultados da dedução, mas não
decide sobre o valor dos princípios como tais. A adesão aos princípios
de Ricardo não é para Marshall ou Sraffa um efeito de sua análise. A
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reabilitação pós-keynesiana do mercantilismo não é a conseqüência
lógica das críticas analíticas da teoria ortodoxa do valor.
Doutrina. Nesta dimensão, o historiador faz confrontos entre
uma teoria econômica e outras formas de pensamento oriundas de
disciplinas afins ou da cultura que as cerca. Confronto sobre os princípios e as formas de raciocínio; comparação dos métodos de validação
dos resultados; pesquisa de influências; atualizações de estruturas comuns. Aqui o campo é vasto. Walras considera o pensamento
econômico antes dele em seu distanciamento de uma Economia política
pura tomada por “uma ramificação da matemática” ou por “uma ciência físico-matemática”. A Escola Histórica Alemã analisa o pensamento
econômico dos períodos passados por sua fidelidade ao método histórico. Os autores do século XIX são estudados em sua relação com o
positivismo antimetafísico – Schumpeter, Joan Robinson. A tradição
neowalrasiana e a teoria socialista seriam duas espécies de um mesmo
construtivismo – Hayek ...
Esta quarta dimensão é menos heteróclita do que parece. A
cada vez, a intenção é efetivamente a mesma. Mergulhando a teoria
econômica num meio cultural, científico ou doutrinal no sentido geral de idéias influentes, trata-se de fazer vir à tona as aderências a
conceitos não-econômicos da teoria estudada e de enunciar as condições que tornam inteligíveis a singularidade de sua aparição, de sua
construção e de sua recepção. O conceito que determina a particularidade desta dimensão é, neste sentido, uma categoria da modalidade,
possibilidade, necessidade.
Esta classificação requer várias observações. Os exemplos o
mostram; a maioria dos grandes autores mediu o alcance de suas teses e
princípios, argumentações e conclusões, em referência a um ou a vários autores anteriores e segundo uma dimensão privilegiada. Assim
sendo, o pensamento econômico do passado constitui para cada autor
o que se pode chamar de uma reserva de sentido. Hahn se pesquisa
através de Hicks. Hicks se vê através de Keynes e Walras. Keynes
através de Marshall, Malthus ou Montesquieu. Marshall através de
Stuart Mill e Ricardo. Ricardo através de A. Smith. Até mesmo Walras
se considera o herdeiro de uma tradição e situa a economia matemática
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numa filiação. Há aí algo estranho que rompe manifestamente com as
formas de “ciência sem assunto” ou de “discurso sem autor”, nas quais
se situam facilmente as disciplinas matemáticas ou experimentais.
É preciso compreender bem esta noção de herança. Fazendo-se
passar momentaneamente por um historiador, o economista não prepara o momento seguinte em que ele elabora sua tese. Uma herança
não é um meio de produção. As teorias econômicas do passado não
constituem um material útil. A história do pensamento econômico
não é um serviço entregue à disciplina. Trata-se de algo muito mais
profundo de que não daríamos conta, supondo-se a relação de
exterioridade que liga trabalhadores diferentes numa divisão do trabalho entre a prática da história do pensamento econômico e a elaboração
de uma teoria nova.
Como fazer então para perceber esse elo da ciência econômica
com o seu passado, essa idéia de filiação e de herança ou o testemunho
reiterado pelos maiores pensadores de que os textos do passado são
uma reserva de sentido? Ampliemos por um instante o campo de reflexão. A maioria das ciências experimentais associa às teorias passadas
a idéia de uma caducidade adquirida pelos efeitos da experimentação.
Daí vem a idéia segundo a qual a unidade e a divisão da disciplina são
marcadas por pequenas ou grandes rupturas e a idéia de uma afirmação
do progresso da disciplina pela rejeição do passado. A filosofia, ao
contrário, ignora o sentido de uma teoria ultrapassada; ela associa às
teorias do passado, de preferência, a idéia de uma perenidade que leva
cada leitor de autores antigos a refazer a espantosa experiência. Ainda
em outro patamar, encontra-se a matemática, sem ruptura técnica,
impedindo a ciência econômica de se envolver sempre mais numa espécie de eterno presente e sem relação interna e subjetiva de leitor e
autor, isto é, sem autoridade. Também em outro patamar, a História
é penetrada de temporalidade a ponto de faltar espaço a-temporal para
se estabelecer uma lógica ou montar um dispositivo experimental e
sair verdadeiramente de sua forma primitiva de narrativa. Onde ficam
os economistas? Eles são seguramente mais do que historiadores de
fatos, de problemas ou de soluções econômicas. Eles têm sua lógica
atemporal e sua análise objetiva com a estrutura rígida da formalização
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clássica e neoclássica. Eles podem também reivindicar formas rudimentares de experimentação imaginária por tratamento estatístico e
formas reais de experiência histórica, para se apoiar no modelo hipotético-dedutivo das ciências da matéria. Mas eles têm também seus grandes
autores, sempre citados, cujos textos alimentam leituras subjetivas através do tempo, à maneira da filosofia, das disciplinas culturais ou da
idiografia – e que os proíbem de entrar serenamente e de uma vez por
todas na idade positiva da ciência. A história do pensamento econômico
sob todas as suas perspectivas, inclusive a perspectiva analítica, faz da
ciência econômica, pelo menos por um lado, uma disciplina baseada
na tradição e uma teoria baseada na autoridade.
Este é o aspecto que constitui a parte filosófica da Ciência Econômica. Quando o economista se volta para um autor do passado,
como A. Smith faz longamente pela primeira vez no Livro IV da
Riqueza das nações, ele se torna filósofo – um “worldly philosopher”,
como diz Heilbronner, qualquer que seja a dimensão privilegiada de
sua intervenção. Mesmo Walras é filósofo na Economia política pura
quando ele se volta em seu texto para a Escola Inglesa ou para BöhmBawerk. Se a Economia política pura fosse efetivamente como ele
pretende, apenas uma ramificação das ciências exatas colocada sob a
única autoridade do Tratado do entendimento e sem relação de filiação
orgânica com o passado, compreenderíamos que, a seus olhos, Ricardo
ou Böhm-Bawerk estão errados; não compreenderíamos porque é importante para ele dizer que Ricardo ou Böhm-Bawerk estão errados.
Compreenderíamos a crítica. Não compreenderíamos porque a crítica
se faz. Isso é a filiação. Aceitar ou recusar a herança é declarar para a
geração seguinte, como para si mesmo, que a autoridade da Razão a
serviço da ciência se divide com uma outra autoridade – qualquer que
seja o nome que se lhe dê, a tradição, os Pais, os textos fundadores ... É
a isso também que devemos chamar de parte filosófica da Ciência Econômica.
Que herança é essa, então, que faz de nós, historiadores do pensamento econômico, filósofos do mundo? Eu gostaria agora de sugerir
que essa herança tem por essência uma pergunta que diz respeito ao
lugar do rico e do pobre nas sociedades políticas. Esta pergunta apareEconômica, nº 3, pp. 63-74, junho 2000
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ce de forma geral quando descrevemos o aspecto sob o qual se apresenta o debate entre Ciências Econômicas e filosofia política nos tempos
modernos. Para apresentar este debate, é preciso partir da seguinte
idéia. Hoje, não medimos a fragilidade das sociedades políticas apenas a
partir das duas ameaças opostas da guerra civil e da tirania, que anunciam uma e outra seu desaparecimento. Efetivamente, esta medida é
comum a toda filosofia política desde a Antigüidade grega. Mas, baseado nestas duas medidas, nós concebemos os efeitos do único fracasso
da mesma razão. Que razão? Isso depende dos autores: razão social e
jurídica ou razão instrumental e técnica, das quais as Ciências
Econômicas dão sucessivamente por privilégio o bom ou o mau exemplo. Assim sendo, podemos dizer que a característica do debate entre
ciências econômicas e filosofia política nos tempos modernos está precisamente ligada ao fato de que a filosofia política convoca as Ciências
Econômicas como um testemunho privilegiado do bom ou do mau
uso da razão.
Comecemos pelas acusações, tomando como exemplos os acusadores mais mordazes. Existem duas formas, correspondentes aos dois
pólos opostos da guerra civil e da tirania. Primeira acusação. Faço
meus os termos de A. Comte e de Durkheim. A Ciência Econômica é
uma teoria do elo mercantil que acentua exclusivamente o seu caráter
mecânico. Neste caso, a ciência econômica produz anomia. Ela é uma
escola de anarquia ou de dissolução política. A razão política é moral.
A Ciência Econômica introduz nas sociedades modelos tirados de outro lugar. Com isso, ela se torna metafísica. Aos olhos da razão social,
ela é a expressão de uma profunda confusão entre política e técnica.
Segunda acusação. Uso aqui os termos de Rousseau e de Tocqueville.
A Ciência Econômica é uma teoria da acumulação ou do enriquecimento, cujas lições se pretende que valham para todas as sociedades.
Neste caso, a ciência econômica apaga o acaso, a história e as particularidades dos povos. Ela situa a vida política sob o modelo de uma ordem
natural. Esta utopia alimenta a idéia de uma inutilidade do Direito.
Com isso, ela é tirânica. Efetivamente, a Razão política se exprime
num direito construído ou induzido e não no simples decalque de leis
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naturais. A Ciência Econômica introduz nas sociedades a idéia de uma
confusão entre governo dos homens e administração das coisas.
É verdade que A. Comte e Durkheim não são substituíveis
entre si e que eles não visam os mesmos economistas. Mas tanto um
quanto o outro identificam a parte negativa da Economia Política que
eles conhecem com uma teoria do valor e do mercado, e é em relação à
anarquia ou ao pólo da dissolução do corpo político pela guerra civil
que eles condenam a teoria do mercado. É verdade também que
Rousseau e Tocqueville se opõem em diversos pontos. Mas eles se
entendem quando denunciam a utopia tirânica, segundo eles representada pela fisiocracia.
Duas réplicas igualmente divididas entre os dois pólos da guerra civil e da tirania opõem-se a essas acusações. A teoria do mercado é
anárquica e insensata? Pelo contrário, ela é a tese do suave comércio –
Montesquieu; a escola do cálculo da maior felicidade para a maioria –
Bentham, J.S. Mill; a escola da racionalidade – J. Rawls. A seu modo,
ela dá continuidade à filosofia do contrato, à apologia da tecnologia
social e do Estado-artífice, para as quais o que provoca a desrazão e está
na origem das guerras civis são, ao contrário, todas as superstições
alimentadas pelas autoridades morais e religiosas– Hobbes, Spinoza.
A macroeconomia do circuito é autoritária ? Pelo contrário,
seu âmago é liberal. Ela recusa, em nome de uma regulação natural que
se impõe como norma mediante todos, a regulação do Estado que é
arbitrária, perdulária e sempre excessiva – A. Smith. Mais ainda, as
sociedades são livres por sua economia. A razão prática que se impõe a
toda política tem como forma a racionalidade econômica – Mises. A
reprodução da instituição que se encontra na base de nossas liberdades
é o efeito espontâneo de seu próprio funcionamento e da aplicação
por cada um de sua razão econômica – Hayek. A ciência econômica de
tradição smithiana e fisiocrática, livre de seus desvios walrasianos e
socialistas, é a melhor defesa para um Direito de espírito construtivista,
despótico e totalitário – ainda Hayek.
Desde já, podemos ouvir o economista ortodoxo bradar que
este combate de idéias não é o seu e que ele se encontra numa situação
de perfeita neutralidade em relação à filosofia e sua atenção com a fraEconômica, nº 3, pp. 63-74, junho 2000
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gilidade das sociedades políticas. O economista, dirá ele, se preocupa
com as necessidades básicas, a alimentação, o vestuário e a habitação.
Ele se ocupa com conseqüência e modéstia dos homens, considerados
segundo seu único desejo de melhorar a sua própria condição. Ele estuda as condições e as regras de realização desses desejos. Ele estabelece
assim uma arte e uma ciência das riquezas cujos efeitos não têm nada a
ver com as formas de anarquia ou de tirania.A filosofia engana-se no
objeto. Ela considera a Ciência Econômica sob o aspecto do uso ideológico de seu discurso. Ela não vê o economista em ação. Ela não o
compreende como ele mesmo se compreende, com seu terreno próprio semelhante ao jardim de Cândido, segundo a expressão de A.
Hirschman (1977, p. 104) ao se referir a A. Smith.
A Ciência Econômica não é, ou melhor, não é mais, uma ciência política ou “uma Economia Política”. Ela prepara somente as
condições de uma vida política, na qual, no sentido negativo, os graus
de opulência não decidem a melhor forma de governo e na qual, no
sentido positivo, a miséria corrói ou interdita as instituições e as
regulações sociais. Assim, se o economista ortodoxo precisar realmente se posicionar e responder às convocações da filosofia política, ele
definirá seu lugar pelas noções de estado de natureza ou de infra-estrutura ou de sociedade civil ou de sistema de subsistência. No fundo, a
compreensão de um Locke ou de um Hegel vale mais do que esse processo a quatro vozes que, de forma alternada, o denigre ou o exalta
excessivamente.
Por que o historiador do pensamento econômico é, sem dúvida alguma, entre os economistas, o mais renitente ao ouvir essa defesa
da Ciência Econômica ortodoxa? A resposta se dá em algumas palavras. Sabemos, através de nossas leituras como historiador, que o
simples desejo de melhorar nossa própria condição, “nascido conosco
e que nos abandona apenas no túmulo” (A. Smith, 1991, t. 1, p. 429),
alicerce antropológico sobre o qual se estabelece o estado de natureza
ou a sociedade de subsistência, é de fato uma ficção hábil criada para
esconder ou banalizar duas paixões reais muito menos inofensivas.
Por um lado, o desejo do rico de enriquecer cada vez mais, ao qual há
muito tempo se associam dois aspectos: desejo sem fim, que faz de
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todas as riquezas bens quantificáveis, já que somente quantidades são
por si próprias sem fim; desejo que provoca à sua volta rivalidade ou
violência, fomentador de vertigem ou de pânico, associado aos danos
dos deuses Dionísio ou Plutão. Por um outro lado, a piedade do pobre ou a compaixão que nos une a ele, de onde vêm as unidades
domésticas do consumo e da partilha do sentimento de pena e onde se
alimentam tanto os ódios quanto as invejas – pois “O homem que
sofre com a infelicidade do outro sofre também com a prosperidade
do outro” (Ciceron citado por H. Arendt, 1974, p. 24). Eis assim as
paixões reais que incubam sob a ficção do simples desejo de melhorar
sua própria condição e das quais a Ciência Econômica enfraquece a
ponta, conservando ao mesmo tempo a força ou o movimento que
elas imprimem em seus agentes.
Por que haveria, aliás, ciência de um enriquecimento sem fim,
se não houvesse na sombra do desejo de melhorar sua própria condição um desejo de quantidades crescentes de bens para o qual só o dinheiro
pode ser a solução? Por que haveria por outro lado participação de
todos na mesma unidade de sentimento de pena ou de subsistência, se
não mais houvesse, sob a superfície dos desejos individuais, essa figura
do pobre que é causa de nossa simpatia mútua?
Mas nós sabemos também o que o economista ortodoxo quis
conjurar, afastar, reprimir ou negar. Conjurar aqui a dissolução oriunda
das rivalidades e das ilusões do dinheiro desejado como fim. Conjurar
ali o dono da casa ou “o déspota” cuja compaixão tirânica impõe sua
norma nos lugares de vida, de sobrevivência ou de pena. Não é por
acaso que a ortodoxia só começa seu reino ao afastar sucessivamente o
dinheiro mercantilista e o déspota fisiocrático e, mais anteriormente,
a tradição de Aristóteles.
Assim, como historiadores, conhecemos ao mesmo tempo as
boas e as más razões do que é sub-repticiamente conservado e do que é
abertamente repelido. Em primeiro lugar, sabemos que a Ciência Econômica só pode querer cultivar seu jardim ao abrigo do tumulto das
paixões, porque ela perseguiu suas suspeitas políticas que, a seus olhos,
perturbavam a candura de sua própria imagem, antes das acusações e
dos louvores dos quais ela tornou-se alvo no fim do século XVIII; em
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seguida, sabemos que a teoria microeconômica do valor e a teoria macroeconômica do enriquecimento não teriam sua base se a ciência
econômica não tivesse conservado dessas mesmas suspeitas políticas o
infinito do desejo individual e a unidade na simpatia universal.
A história nos ensina, então, que a Ciência Econômica ortodoxa construiu sua unidade e seu objeto reprimindo seus materiais
originais. É por isso que a existência atual do debate entre a filosofia
política e a ciência econômica, do qual evocamos as quatro formas
extremas, não pode surpreender os historiadores que somos. Ele constitui, ao contrário, para nós, o eco do trabalho interior e velado do
economista sobre seu passado e o testemunho de que este trabalho não
realizou perfeitamente sua função. Em seu discurso sobre as riquezas,
a Ciência Econômica nos fala ainda do rico e do pobre, se trai como
filosofia do mundo e nos confia sua herança.
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Bibliografia
ARENDT, H. 1974. Vies politiques. Gallimard.
BIAUJEAUD, H. 1988. Essai sur la théorie ricardienne de la valeur.
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