Livro_eletronico_A mulher escrita_a escritamulher

Transcrição

Livro_eletronico_A mulher escrita_a escritamulher
Apresentação
A MULHER ESCRITA: A ESCRITA-MULHER?
Por Cristina Maria T. Stevens
É com prazer que apresentamos o material organizado para compor este
livro, o qual foi um resultado positivo de uma experiência bastante enriquecedora.
Nós nos reunimos pela primeira vez em 1998, a partir da iniciativa da professora
Hilda Lontra, a qual concebeu a criação do grupo de pesquisa DIÁLOGOS
POÉTICOS. O objetivo deste grupo era estimular o diálogo entre vários
pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Literatura, do Departamento de
Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília.
Um desdobramento natural deste fértil encontro foi a permanência, há mais
de 10 anos, de grupos de pesquisa reunidos sob o título geral LER o qual, entre
várias iniciativas de mérito, destaca-se a realização do Encontro de Professores de
Letras do Brasil Central – EnProL do Brasil Central (cuja ambigüidade do nome é
proposital), também organizado pela professora Hilda. O sucesso deste primeiro
evento, realizado em 2000, estimulou a sua continuidade; dessa forma, houve cinco
EnProL do Brasil Central entre os anos de 2001 a 2007.
Ao longo desta rica jornada, muitos desafios tiveram que ser enfrentados,
dada a diversidade das áreas de pesquisa que integravam o projeto original. Assim,
dois grupos de pesquisa foram gerados a partir do grupo original: LER: LEITURA,
ENSINO
E
RECEPÇÃO, e VOZES FEMININAS. Coordenado por mim, o VOZES FEMININAS
busca resgatar e visibilizar a autoria feminina, a partir da perspectiva dos estudos
feministas e de gênero. Decidimos então organizar este livro, o qual evidencia a
frutífera produção acadêmica deste grupo.
Porém antes de dar voz às/aos participantes desta coletânea, cabe
apresentar, também, uma retrospectiva dos estudos feministas no contexto mundial
e brasileiro, a fim de que os leitores melhor compreendam a semente integradora
dos trabalhos. Por volta do século XVIII, a mulher começou a entrar na cena literária.
Claro que ela já escrevia há bastante tempo[i], mas sua inegável visibilidade começa
2
a se expandir por volta desta época; uma mudança que, para a escritora inglesa
Virginia Woolf, foi mais importante do que as Cruzadas[ii].
O ingresso da mulher na cena literária foi considerado por muitos como um
verdadeiro “apocalipse literário”, pois provocou, entre outras consequências de
ordem sócio-econômica, política e cultural, uma mudança radical na relação entre
sexo e novas formas de produção literária.
As mulheres, grandes consumidoras de romances, passaram também a
produzi-los; esse processo de comercialização da literatura, intensificado a partir do
século XIX, foi visto por muitos como um processo de 'feminização' da literatura. O
conflito entre High Art e Low Art, foi caracterizado como uma “batalha entre os
sexos”, na qual as mulheres estavam associadas a uma retórica de parasitismo e
vampirismo, com relação à produção literária de autoria masculina, considerada por
todos como de maior valor estético. Desnecessário observar que esse “todos” a que
me refiro diz respeito, sobretudo, àqueles que tinham o poder de definir o belo, o
bom, segundo paradigmas patriarcais.
Em seu brilhante ensaio “Tradition and Female Talent”, as feministas
estadunidenses Sandra Gilbert e Susan Gubar, registram exemplos dessa reação,
provavelmente provocada por uma ansiedade face à competição inevitável dentro
desta 'reserva de mercado' sacralizada pela ideologia patriarcal. Oscar Wilde, e, bem
antes dele, nos Estados Unidos, Nathaniel Hawthorne, caracterizaram essas
escritoras como “scribbling women”[iii] .
Igualmente destruidor é o comentário do brilhante escritor estadunidense
Henry James, que definiu a obra dessas corajosas escritoras como o “triunfo do lixo”;
em The Bostonians, seu narrador não é menos cáustico, ao definir a época em que
tantas mulheres se organizavam para reivindicar seus direitos- inclusive o direito à
palavra literária - como ”a feminine, chattering, canting age”[iv]. Na Inglaterra, D.H.
Lawrence comentava com preocupação sobre “nossas mulheres”, as quais, segundo
ele, ao lutar por igualdade de oportunidades, estavam horrosamente “bursten into
self-assertion”[v]
Felizmente, as mulheres não se deixaram desencorajar. As diferenças,
entretanto, ainda são óbvias, uma vez que, ainda neste terceiro milênio em que
vivemos - apenas citando o exemplo brasileiro, a voz autoral ainda é
majoritariamente masculina[vi]. Neste quadro, justificamos a produção acadêmica de
VOZES FEMININAS, um pouco da qual se substancia neste livro. Não buscamos
3
identificar a diferença desta voz, mas principalmente ouvi-la. Neste sentido, inspiranos sobremaneira o termo gynesis, um termo criado pela teórica feminista Alice
Jardine, para tentar definir o processo de colocar em discurso, de valorizar o
feminino, a mulher, e sua dimensão histórica, como algo intrínseco para novos e
necessários modos de pensar, falar, e escrever.
Feminino é uma palavra com carga semântica patriarcal extremamente forte,
mas que não objetivamos encapsular em uma nova definição; qualquer esforço
neste sentido talvez levasse a um essencialismo que não nos interessa. Entretanto,
como lembra a teórica feminista estadunidense Elaine Showalter[vii], nossa
experiência e, consequentemente, nossa produção literária, ainda diferem das do
homem. Neste sentido, é iluminadora a observação da escritora canadense
Margareth Atwood:“Os escritores gostam de afirmar que somos andróginos quanto à
capacidade, o que sem dúvida é verdade, embora seja evidente que a maioria dos
que dizem isto são mulheres. Mas os escritores não são genericamente neutros em
seus interesses”[viii]
Não nos interessa 'sexualizar' o texto, ou buscar uma 'fala hermafrodita', ao
tentar compreender a narrativa de autoria feminina. Entretanto, como os textos do
presente livro nos mostram, percebemos uma espécie de “consciência dupla”, ou
talvez, de uma construção narrativa em forma de palimpsesto, na qual ainda
conseguimos identificar traços de uma estética patriarcal e, ao mesmo tempo, a
resistência e transformação criativa desta tradição; como se essas escritoras
tivessem dois cérebros, que não as transformam em monstros, mas que permitem
pensar e criar de forma mais rica.
NOTAS
[i] O primeiro autor de que se conhece o nome e a escrever em primeira pessoa é na verdade uma
mulher– Enheduana (2285-2250 AC), sacerdotisa da deusa Inanna, autora de vários hinos sumérios.
Escribas anteriores a Enheduanna escreviam sobre deus e o divino, mas nunca sobre eles mesmos;
os hinos que ela escreveu para a deusa Inanna, celebram sua relação individual com a deusa e são
considerados pelos historiadores os escritos mais antigos produzidos por uma consciência individual
sobre sua vida interior.
[ii] Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
[iii] “mulheres que fazem garranchos”. GILBERT, S. & GUBAR, S. “Tradition and Female Talent” in
MILLER, N. (ed.). The poetics of gender. New York: Columbia University Press,1986. pp.183-207
(p.196)
[iv] “uma época feminina, de tagarelices e fofocas guetoizadas”. Id,ibid, p. 190
[v] “explodindo em auto-afirmção”.Id.ibid. p. 197.
[vi] v. DALCASTAGNE, R. “A personagem do romance brasileiro contemporâneo” in Estudos de
Literatura Brasileira Contemporânea, no. 26 (jul/dez-2005), p.13-72.
[vii] SHOWALTER, E. A crítica feminista em território selvagem.
[viii] Negociando com os mortos. Trad. Ligia Wyler, Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 50.
4
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
A MULHER ESCRITA: A ESCRITA-MULHER?
POR CRISTINA MARIA TEIXEIRA STEVENS
I
POR ELIANE T. DO AMARAL CAMPELLO
5
POR MARLY JEAN DE A. P. VIEIRA
19
POR MARCOS DE JESUS OLIVEIRA
35
POR JANAINA GOMES FONTES
59
LITERATURA LESBIANA CONTEMPORÊNEA
POR MARIA DA GLÓRIA DE CASTRO AZEVEDO
80
A CRÍTICA LITERÁRIA DE SAIA JUSTA
A REPRESENTAÇÃO DA MATERNIDADE
DESEJO E HOMOEROTISMO
EDUCAÇÃO DA MULHER: RUPTURA E TRADIÇÃO
O CASTELO INTERIOR DE SANTA TERESA D´ÁVILA
POR W ILIAM ALVES BISERRA
89
POR CLARICE BRAATZ SCHMID NEUKIRCHEN
101
POR ANTONIO DONIZETI DA CRUZ
117
(RE)CONTRUÇÃO ÉTNICA NAS MULHERES
POR ALEXSANDRA MARIA FERREIRA DA SILVA
135
OS RITUAIS SIMBÓLICOS NA LÍRICA
RESGATE DE VOZES FEMININAS
“SOCIOLOGICAL POETICS”
POR CRISTINA MARIA TEIXEIRA STEVENS
147
BIBLIOGRAFIA
169
AUTORES
179
5
A CRÍTICA LITERÁRIA DE SAIA JUSTA
Eliane T. A. Campello (FURG)1
RESUMO
Um dos caminhos para se abordar os estudos de gênero na literatura envolve a produção de
ensaios críticos que proliferaram no Brasil, especialmente, a partir dos anos 60 do século XX.
Os questionamentos que a ensaística de cunho feminista propõe abalam a rigidez das
estruturas de poder tradicionais em campos variados, pois atingem o patriarcado, a
historiografia literária, as relações entre mulher e literatura, e chegam ao ensino de gênero nos
cursos de Letras. Nessa perspectiva, quem está de saia justa? A crítica literária tradicional ou a
crítica literária feminista?
PALAVRAS-CHAVE: ensaio crítico, crítica literária feminista, gênero
Pelo título dado a este trabalho – “A crítica literária de saia justa” – fica, de
início, evidente que algum constrangimento ou embaraço existe, quando se fala em
crítica literária. É isso mesmo. Há temas provocativos o suficiente para levar a
reflexões que, mesmo não sendo novos (pelo menos para o GT Mulher na Literatura
da ANPOLL), são bastante polêmicos e até contraditórios. Refiro-me a questões que
despontam no cenário acadêmico, a partir da constatação da existência de uma
enorme quantidade de publicações críticas que surgiram após os anos 60/70 do
século XX, quando a Crítica Literária Feminista começa a se estruturar formalmente
tanto nos Estados Unidos, na Europa, no Canadá quanto no Brasil.
Construída sobre dois eixos essenciais – o da recuperação (resgate de obras
esquecidas pela historiografia) e o da revisão (propostas de leituras com base na
categoria de gênero, que dá conta do sexo, classe e etnia) – a Crítica Literária
Feminista confere visibilidade a escritoras e suas obras, do passado e do presente.
Esta minha manifestação tem como hipótese central o embate que se
estabelece entre a crítica literária tradicional e a crítica literária feminista. Uma delas
está de saia justa. Por quê?
Parto do pressuposto de que esse material crítico aparece, principalmente,
em forma de ensaio. Portanto o meu foco recai sobre a ensaística de autoria
feminina no Brasil essencialmente. E, a minha preocupação diz respeito às
modificações que esses ensaios vêm causando à historiografia e à crítica literária,
embora na maioria das vezes, sejam, paradoxalmente, desconsiderados pelos
acadêmicos que insistem em permanecer fiéis ao cânone tradicional, ao qual a
maioria das escritoras jamais pertenceu.
1
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É
professora colaboradora da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), atuando no Programa de
Pós-Graduação em Letras – Mestrado em História da Literatura., na área de estudos de gênero.
Pertence ao grupo de pesquisa “Vozes femininas”. Publicou O Künstlerroman de autoria feminina: a
poética da artista em Atwood, Tyler, Piñon e Valenzuela (2003) e, em co-autoria com Núbia Hanciau
e Eloína Santos, organizou A voz da crítica canadense no feminino (2001), além de possuir diversos
ensaios críticos publicados em revistas especializadas.
6
Se a crítica e a história literária tradicionais não conferiram valor suficiente às
mulheres para nomeá-las ao lado de nossos escritores, essa situação está se
modificando. Hoje, contam-se escritoras em múltiplas centenas, conforme atestam
as re-edições de obras literárias, as antologias e os dicionários publicados
recentemente, no Brasil e no exterior.
A (re)descoberta e a (re)avaliação da produção literária de autoria feminina
vem fortemente calcada em novos paradigmas de análise, bem como em conceitos
alargados de sujeito, literatura e de história, fato que oportuniza a leitoras e leitores o
conhecimento tanto de textos atuais como daqueles que foram sufocados por
grossas camadas de poeira acumuladas pelo tempo. Longe de pretender esgotar o
assunto, questiono-o, em vez de chegar a conclusões definitivas. Para isso,
apresento primeiramente um panorama do estado da arte, lembrando que o ensaio
engloba um amplo espectro, embora aqui me restrinja a categorias específicas de
publicação: as histórias da literatura e obras de referência (catálogos, índices, guias
e dicionários), por um lado e, por outro, os ensaios crítico-teóricos publicados em
jornais, revistas, livros e antologias.
Assunto
superado, do
conhecimento
de
todos,
é
o fato de
que
tradicionalmente as histórias da literatura (brasileira e de outros países) contemplam
poucas mulheres escritoras (às vezes, nenhuma), apesar de elas terem, desde o
início, se manifestado literariamente por meio de romances, poesias, dramaturgia,
cartas, diários e ensaios críticos. Para comprovar esta afirmativa, poderia trazer uma
lista de obras de referência e de histórias da literatura, até a exaustão, que foram
escritas na esteira do modelo europeu. Esse parece ser o caso de História da
Literatura Brasileira, de Silvio Romero que, em 1888, cita 40 nomes de mulheres,
dos quais menos de 5 correspondem a escritoras2,
de História da Literatura
Brasileira (1916), de José Veríssimo, que não cita nenhuma escritora e de
Sacramento Blake, cujo Dicionário bibliográfico brasileiro, na edição de 1970,
referencia 83 mulheres. Ainda, na História concisa da Literatura Brasileira, de 1975,
Alfredo Bosi menciona somente 31 escritoras.
Heloísa Buarque de Hollanda chama a atenção que o ensaio, este “gênero
parapedagógico de historiografia” (1993, p. 13), pela mão das primeiras críticas
serviu [e ainda serve] para tirar as mulheres da “barbárie do esquecimento”,
2
Ver o trabalho de Raimunda Alvim Lopes Bessa, “Mulheres na história da literatura brasileira”,
apresentado no Encontro Regional da ABRALIC 2007, Literaturas, Artes, Saberes, realizado na USP
– São Paulo, Brasil, retirado do site http://www.abralic.org.br/enc2007/anais/40/702.pdf, consultado
em 30/06/2007, que fornece números precisos a respeito de referências a nomes de mulheres em
diversas obras de história da literatura brasileira, de que me valho para este trabalho.
7
expressão utilizada por Inês Sabino, em Mulheres ilustres do Brasil, nos idos de
1899 (p. 13). Com este mesmo propósito, Andradina de Oliveira publica em 1907, A
mulher riograndense, em que reúne as “miniaturas” de 13 escritoras mortas tendo
“em mira tornar conhecida a actividade feminina neste extremo sul de nossa pátria”,
pois “Em nosso paiz muito pouco se tem escripto sobre as mulheres que – e não são
poucas – têm sahido da linha vulgar” (1907, p.7)3.
Ainda, no primeiro volume de Perfis de musas, poetas e prosadores
brasileiros, publicado em 1956, por Alzira Freitas Tacques e dedicado às mulheres
escritoras, há 412 nomes referidos.
As organizadoras de dicionários e antologias reconhecem que o ensaio crítico
de autoria feminina acerca da produção literária de mulheres mostra-se não só um
meio promissor e consistente de interpretação das circunstâncias sociais,
esteticamente estruturadas, como também um terreno propício para a escritura de
experiências e de histórias de vida particulares. Além disso, segundo Hollanda, nas
obras pioneiras da prática da crítica feminina [ela está se referindo às obras
que eu citei, de Inês Sabino e de Andradina], o eixo central da preocupação
[é] com a lógica do “silenciamento” na construção da série literária,
marcando uma tendência, de claro acento político, em denunciar e tentar
romper com a estigmatização da presença feminina na literatura (1993, p.
15).
Eu acrescento que este mesmo propósito ainda move as ensaístas
contemporâneas, uma vez que aquelas não dão conta de todas as escritoras de sua
época.
Nos seus primórdios, assim como hoje, o ensaio desempenha um papel
preponderante na relação entre a mulher e as práticas sociais do patriarcado. Por
meio dele, eram realizadas (e ainda são) as reivindicações de igualdade política e
social entre homens e mulheres, na busca por direitos que eram radical e
injustamente surrupiados às mulheres, tais como o direito à educação, ao voto, às
profissões, ao aborto.
Basta ver o texto matriz de Mary Wollstonecraft (1759-1797)4, a avó de
Frankenstein, que, em 1792, escreve A vindication of the rights of woman,
reclamando a igualdade jurídica e política para as mulheres. Posiciona-se contrária à
desigualdade advinda da exclusão, fundamentada na ética, que gira em torno da
mudança dos princípios culturais sobre os quais se assenta a opressão feminina.
3
Outras obras: AZEVEDO, Josefina Álvares de. Galeria ilustre (mulheres célebres), 1897;
BITTENCOURT, Adalzira. Mulheres e livros, 1948 e Dicionário biobbligráfico de mulheres ilustres,
notáveis e intelectuais do Brasil, 1969; GUIMARÃES, Rute. Mulheres célebres, 1963; GALENO,
Henriqueta. Mulheres admiráveis, 1965.
4
Casou com o escritor William Godwin e morreu, em 1797, dez dias após dar à luz a Mary Shelley,
autora de Frankeinstein (1818).
8
Este exemplo tem repercussões no Brasil: Nísia Floresta Brasileira Augusta, em
1832, publica uma “tradução livre” do texto da crítica inglesa, adaptada às
circunstâncias da realidade brasileira, intitulada Direito das mulheres e injustiça dos
homens. No dizer de Constância Duarte, este deve “ser considerado o texto
fundante do feminismo brasileiro” (2003). O tópico argumentativo recai no fato de
que a mulher é mais capaz do que o homem para educar crianças, mas isso não
quer dizer que não possa também desempenhar outro cargo. Inclusive o de
ensaísta.
Em 1992, Heloísa Buarque de Hollanda (1993, p. 18-20) aponta a imprensa
dirigida e editada por mulheres, que prolifera dos meados do século XIX ao primeiro
decênio do século XX, como “um espaço decisivo para o desenvolvimento da
expressão feminina” (p. 18). Uma década depois, essa constatação é reforçada por
críticas como Nádia Gotlib, em “A literatura feita por mulheres no Brasil”, de 2002 e
Zahidé Muzart, em “Feminismo e literatura ou quando a mulher começou a falar”, de
2003. Entre tantos periódicos referidos5 por essas críticas, salientam-se o Jornal das
Senhoras, criado em 1852, por Joana Paula Manso de Noronha; O Belo Sexo, de
1862; Jornal das Famílias, de 1863 e A família (1889-1898), de Josefina Álvares de
Azevedo. Aproveito essa listagem para acrescentar que circulou na cidade de Rio
Grande (RS), por 60 anos, o jornal Corimbo (1884-1944), de propriedade de
Revocata Heloísa de Melo (1860?-1944) e Julieta de Melo Monteiro (1863-1928),
não referido por Gotlib, porém contemplado em Escritoras brasileiras do século XIX.
O Corimbo, no dizer de Rita Terezinha Schmidt “promovia, assim, uma consciência
feminina pautada na necessidade de união e luta pela emancipação”6. Da mesma
forma, vale citar o jornal Orvalho (1898-1904)7, dirigido pelas irmãs Alaíde e Matilde
de Almeida, que circulou no Rio Grande do Sul, em Santana do Livramento, cidade
fronteira com a Argentina. E, O Escrínio (1898-1910), de circulação em Bagé, Santa
Maria e Porto Alegre, de propriedade de Andradina de Oliveira (1864-1935).
5
Outros referências: O Espelho Diamantino, lançado em 1827; Correio das Modas (1839-1841); O
Sexo Feminino, 1873; O Domingo, de 1879; A mensageira, “revista literária” dirigida por Prisciliana
Duarte de Almeida, de 1897 a 1900.
6
Ver os capítulos “Revocata Heloísa de Melo” (MUZART, 1999, v. 1, p. 892-902) e “Julieta de Melo
Monteiro” (MUZART, 2004, v. 2, p. 306-319), de Rita Terezinha Schmidt.
7
Os exemplares, todos publicados em Santana do Livramento, encontrados são: Ano I, n. 2, 11 set.
1898; Ano I, n. 9, 30 out. 1898; Ano VI, n. 209, 28 mar. 1904 (localizados na Biblioteca RioGrandense, na cidade do Rio Grande); Ano III, n. 72, 15 jul. 1900 (localizado no Museu de
Comunicação Social Hipólito da Costa, em Porto Alegre), e a primeira página (danificada) do Ano VI,
n. 202, 7 fev. 1904, no acervo de Ivo Caggiani, em Santana do Livramento. Ver os capítulos “Matilde
Ulrich de Almeida” e “Alaíde Ulrich”, (MUZART, 2004, v. 2, p. 995-1021 e p. 1022-1030), de Eliane T.
A. Campello.
9
Sem dúvida, o legado das precursoras frutificou. Em contrapartida aos
mirrados números citados anteriormente, graças ao trabalho de resgate de obras de
autoria feminina ─ a “tendência arqueológica” da Crítica Literária Feminista de caça
ao tesouro ─, contamos hoje com uma bibliografia já numerosa e em expansão a
respeito de escritoras brasileiras. A título de exemplo, tornaram-se visíveis as 105
escritoras analisadas entre o 1° e o 2° volumes, das Escritoras brasileiras do século
XIX, publicados pela Editora Mulheres, sob a organização de Zahidé Muzart, os
3330 verbetes do Dicionário de mulheres (1999), bibliografadas por Hilda Flores, as
1401 escritoras bio-bibliografadas em Dicionário crítico de escritoras brasileiras
(2002) por Nelly Novaes Coelho8 e a centena de escritoras incluídas no Dicionário
Mulheres do Brasil (2000), organizado por Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil.
Tudo isso, sem perder de vista, especialmente porque se constitui no foco destes
comentários, as 629 ensaístas incluídas em Ensaístas brasileiras (1993), de Heloísa
Buarque de Hollanda e Lúcia Nascimento Araújo.
Não posso deixar de ilustrar aqui um contraste marcante entre a presença
dessas 629 ensaístas na historiografia brasileira e o discurso do acadêmico Eduardo
Portella9, em 2000, na conferência cujo tema é “O Ensaio”, no “Ciclo – Panorama da
Literatura Brasileira Contemporânea”. Após traçar o histórico deste gênero literário
desde o romantismo no Brasil, mencionar vários autores e enfatizar que o ensaio se
identifica pelo “vigor crítico” e pela “qualidade textual”, abre-se a oportunidade para a
platéia dirigir-lhe perguntas.
Neide Archanjo10 manifesta-se, interrogando-o a respeito da “ausência de um
nome feminino”, entre os ensaístas mencionados: “O que acontece com as
brasileiras? A mulher não tem a capacidade de crítica, a capacidade do ensaio?” A
que ele responde:
EDUARDO PORTELLA: Olhe, Oneide Archanjo, você fez muito bem em ter
promovido essa lembrança. [...] Agora, você tem razão, temos figuras
femininas no ensaio, como Nelly Novaes Coelho ─ como, quem foi, Nejar,
que você me soprou? ─ Como Cecília Meireles, que o Josué está me
lembrando, que também fez um bom ensaio. Tem razão, não são
deliberadamente ensaístas, mas chegaram ao ensaio em condições
bastante respeitáveis. Você tem razão e obrigado pela lembrança. Na
11
próxima vez vou convidá-la para você me soprar (2000) .
8
Ver também da autoria de Coelho, A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo:
Siciliano, 1993.
9 Membro da Academia Brasileira de Letras. De 1979 a 1980, foi ministro da Educação e Cultura no
Governo de João Figueiredo. Integra o Conselho de Pesquisa e Ensino para Graduados da UFRJ e o
Conselho Estadual de Cultura.
10
Poetisa brasileira. Nasceu em São Paulo, em 15 de setembro de 1940.
11
Retirado do site www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=4268&sid=531-48k-,
consultado em 9/11/2007. A passagem completa é a que segue: “PLATÉIA: Professor Portella: queria
cumprimentá-lo, em primeiro lugar, pela brilhante exposição, mas me chamou a atenção, nesse seu
trabalho realmente extraordinário, a ausência de um nome feminino. E fiquei a pensar: não haverá no
10
A evidência é concreta: ironias à parte, pela primeira vez o acadêmico pensa
na possibilidade de haver mulheres ensaístas no Brasil. E, estamos no ano de 2000,
no espocar do século XXI.
Se fosse possível neste espaço listar as centenas de revistas e obras, de
dissertações e de teses, de sites que enfocam a questão da mulher e sua relação
com a história da literatura na contemporaneidade, não sairíamos daqui hoje. Uma
breve consulta, via Internet, nos mostra que existem à venda 2.052 (dois mil e
cinqüenta e dois) títulos, na “Amazon.com”12, sob a chamada geral de “Literary
Feminist Criticism” e, na “Barnes & Nobles”13, encontram-se 7.429 (sete mil
quatrocentos e vinte e nove) resultados. No Brasil, embora a consulta seja mais
restrita, as livrarias, especialmente as universitárias, dispõem de obras neste
gênero. Isso significa dizer que, ao se falar em ensaio crítico (ou literário), estamos
circulando no âmbito acadêmico.
Se a pesquisa for feita pelo “Google”, os números, então, são mais
surpreendentes, conforme o demonstram os Anexos 1, 2 e 3 deste trabalho.
Juntamente com a análise de obras literárias, o ensaio incorpora outros
ingredientes, tais quais, valor e interesse. No caso da crítica literária feminista, é no
ensaio que se explicitam os critérios e o viés ideológico que subjazem à escritura da
mulher, assim como aqueles que inflamam o próprio texto ensaístico. Mais do que
isso, os ensaios críticos feministas apresentam um enfoque contestatório ao status
quo da crítica literária tradicional e dão a conhecer os novos paradigmas
interpretativos para a apreciação da obra literária.
Numa verificação ligeira de ensaios produzidos por pesquisadoras brasileiras,
encontro um total aproximado a 1400 publicados, prioritariamente, pelas
componentes do GT Mulher na Literatura, da ANPOLL. Em vista disso, impõe-se
uma constatação, não uma queixa.
Apesar desta quantidade imensa de material crítico, parece haver uma
disseminação apenas circular do mesmo; parece que dificilmente a ele recorrem
pesquisadores e pesquisadoras (fora do circuito da crítica feminista) para o estudo
Brasil uma Hannah Arendt, uma Simone Weil, uma Simone de Beauvoir? O que acontece com as
brasileiras? A mulher não tem a capacidade de crítica, a capacidade do ensaio? Acadêmico
EDUARDO PORTELLA: Olhe, Oneide Archanjo, você fez muito bem em ter promovido essa
lembrança. O Josué está me lembrando aqui que eu falei muito em Clarice. Aliás, sempre falo muito
em Clarice, não sei viver sem falar muito em Clarice. Agora, você tem razão, temos figuras femininas
no ensaio, como Nelly Novaes Coelho - como, quem foi, Nejar, que você me soprou? - Como Cecília
Meireles, que o Josué está me lembrando, que também fez um bom ensaio. Tem razão, não são
deliberadamente ensaístas, mas chegaram ao ensaio em condições bastante respeitáveis. Você tem
razão e obrigado pela lembrança. Na próxima vez, vou convidá-la para você me soprar”.
12
Retirado do site Amazon.com, consultado em 8/11/2007.
13
Retirado do site Barnesandnobles.com, consultado em 8/11/2007.
11
da literatura produzida pelas mulheres. Há manifestações de respeito e aceitação da
existência da crítica literária feminista, uma vez que não há como negá-la.
Entretanto, o valor dos textos literários de autoria feminina fica ainda restrito ao seu
enquadramento em parâmetros tradicionais, os quais não dão conta de
especificidades da escritura da mulher. São nuanças e sutilezas que se perdem,
permanecem invisíveis, obscurecidas. Em outras palavras, caso o texto não se
molde a tais parâmetros (e não vai se moldar a eles), não apresentará o valor
literário esperado. Em decorrência, a ampliação de limites e a flexibilidade
necessárias para traçar um novo perfil da historiografia literária, ficam prejudicadas.
Parece haver um constrangimento, uma manifestação “sorda” (para não falar em
preconceito) em incorporar as argumentações do contradictio, dos matizes de uma
experiência de vida diferenciada. A crítica feminista se caracteriza pelo empenho na
produção de conhecimento “que se quer como prática ideológica, no sentido de
resistência e intervenção, tanto na hegemonia do establishment crítico acadêmico
quanto na própria realidade social e material”, explica Rita Schmidt (1994, p. 23). Na
crítica literária feminista tanto o sujeito quanto o objeto do conhecimento se
relativizam. Estabelece-se uma inteiração explícita entre conhecimento e interesse
com vistas a imprimir ao processo hermenêutico o elemento emancipatório, que “é
inimigo de todo o processo colonizador” (SCHMIDT, 1994, p. 30).
Talvez um dos focos de infecção que assola a crítica feminista na academia,
impedindo que se difunda em outros pagos, esteja localizado nos cursos de Letras.
É aqui o lugar da formação de leitoras e leitores. De fato, pouco se tem avançado
em termos de configuração de currículos e programas no nível da graduação. Marisa
Lajolo e Regina Zilberman, em A formação da leitura no Brasil (1999), dedicam um
capítulo belíssimo (vou me permitir utilizar este adjetivo), além de consistente acerca
da representação da leitora na obra de escritores e escritoras brasileiras, de sua
fundação até Clarice: é “A leitora no banco dos réus”. No entanto, na conclusão não
podem deixar de reconhecer e explicitar sua preocupação acerca da fragilidade de
práticas culturais e projetos educacionais brasileiros “talvez sintomaticamente
representada pela constante e duradoura crise por que passam os cursos de Letras
– que desfavorece a existência de um espaço maior para as necessárias
pesquisas...” (1999, p. 311). Não obstante o cenário desconstrutivista em que
habitamos hoje, parece que ainda se coloca de um lado o que é “tradicionalmente
definido (...) de peso intelectual em oposição ao que é irrelevante”. Leia-se:
irrelevante é o ensaio crítico feminista, como já afirmava Rita Schmidt, em 1994 (p.
25). No espaço da academia, as inovações, quando existem, ocorrem nos
12
programas de pós-graduação. Nesse sentido, vale a pena registrar que o Mestrado
em História da Literatura, da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), onde
atuo, apresenta uma abertura incomum, ao ter eleito a “escrita de autoria feminina”
como uma de suas linhas de pesquisa.
Apesar da flagrante existência deste corpo crítico maciço, a crítica feminista
permanece (in)visível. Nesta trama reside o paradoxo. Daqui surge o embate. A
crítica feminista abala as estruturas implantadas pela tradição, provoca, causa
mudanças, mas..., seus argumentos não são incorporados nos ensaios críticos dos
acadêmicos e das acadêmicas (refiro os acadêmicos, porque é deste lugar que eu
falo, é na academia que eu transito), que se colocam fora do círculo feminista. Mais
do que isso: alguns e algumas (re)negam esta perspectiva.
As pesquisas na área da história da literatura atualmente são bastante
otimistas quando tratam dessa elasticidade do cânone, para abarcar as diferenças.
Para Eduardo Coutinho, por força das correntes do pensamento fundadas na
desconstrução, em estudos transculturais e pós-coloniais, “A perspectiva linear do
historicismo cedeu lugar a uma visão múltipla e móvel, capaz de dar conta das
diferenças específicas, das formas disjuntivas de representação” (1996, p. 69).
Nesse sentido, a distorção está no cânone tradicional (o europeu em relação ao
latino-americano, no âmbito internacional; a série literária oficial do continente ou do
país em relação às minorais marginalizadas por razões de raça, classe social e
sexo), o que leva a pensar na necessidade de re/elaboração da historiografia
literária. As escritoras, as poetisas, as dramaturgas produzem a literatura: as críticas,
a historicizam.
Atualmente, é o ensaio literário que dá conta também da historiografia, devido
ao olhar oblíquo do/a ensaísta, que é crítico, avaliativo e imprime um elevado valor
ao texto. É no ensaio que vamos encontrar as matrizes culturais, literárias e
ideológicas. O ensaio abarca o literário sem esquecer o social, o estético, o
psicológico e o moral. O ensaio carrega a polêmica. O ensaio crítico feminista altera
o modo de ver o texto literário. Mais do que isso, constitui-se no berço de onde brota
a possibilidade de transformação do fato literário. Com o abalo sofrido pelo cânone
tradicional, principalmente devido à produção da crítica com base na categoria de
gênero, os historiadores da literatura estão também de “saia justa”, pois não
conseguem decidir que história contar, uma vez que as mulheres e as minorias,
trazem à público outras versões da história oficial.
Problematiza-se a questão: Qual a eficácia de transferência de paradigmas
teórico/analíticos de um segmento para outro, isso é, do cânone tradicional para a
13
produção literária fundada na perspectiva de gênero? As noções de unidade e
homogeneidade podem ser aplicadas a textos literários propostos de locus
diferenciados, móveis e flexíveis? Os estudos críticos feministas levarão à
coexistência de cânones distintos e paralelos dentro de um mesmo contexto
literário?
Esse último questionamento, por exemplo, encontra respostas controversas:
enquanto algumas acadêmicas insistem em demarcar a diferença, a marginalização
da produção de autoria feminina, com seu locus próprio, outras buscam inseri-la no
cânone já existente, apenas preenchendo seus vazios. A manifestação de Zahidé
Muzart ilustra esses posicionamentos: “Ao mesmo tempo em que gostaríamos de
vê-las inseridas nas histórias da literatura, não nos agrada vê-las separadas num
espaço exclusivo, tal como se encontram na História da Literatura Brasileira, de
Luciana Stegagno-Picchio, [...], em que temos um capítulo intitulado “A escrita das
mulheres” e outro, “Poetas mulheres” (1999, p. 25, v. 1).
Uma da implicações de fundo, que tento inserir na expressão “saia justa”,
aponta para a relação “Mulher e História da Literatura” e diz respeito ao nosso
desempenho docente, em qualquer grau de ensino. As interrogações persistem: Que
literatura dispor aos nossos alunos e alunas? Que viés crítico? Como formar leitores
& leitoras? De que forma construir para depois desconstruir uma história da literatura
a fim de nela inserir a mulher, seja na posição de escritora, de leitora, de crítica? O
que fazer com o susto que ainda hoje o termo “feminista” provoca?
A prática da crítica literária feminista na academia suscita algumas reflexões.
Na percepção de Maria Elisa Cevasco, há
o risco de tornar a crítica feminista em item no mercado de teorias atual, em
mais um código opcional de leitura entre tantos outros equivalentes. Para
evitar isso, é preciso desenvolver um corpo crítico concentrado nas
manifestações localizadas em problemas de gênero no Brasil (1999, p. 178).
Parece haver concordância entre os pesquisadores e pesquisadoras dos
vários campos do saber para quem os pós-modernismos, os pós-estruturalismos e
as atitudes desconstrutivistas aliam-se para englobar a crítica do falogocentrismo, do
descentramento de teorias e de visões. Fala-se hoje em enfoques transpostos do
colonizador para o colonizado, do colonial para o pós-colonial, do branco para o
negro, do rico para o pobre, do homem para a mulher, com o objetivo de deslocar as
culturas hegemônicas e de dar visibilidade à diferença (se é que isto é possível num
Brasil do paradoxo, em que se vê tantas formas relacionadas, porém diferentes de
opressão). Bem, teoricamente, na academia isso é possível, sim. Mais, é possível
que um grupo dominado possa aprender com a luta de outro grupo dominado
14
(CEVASCO, p. 188), no caminho para a conscientização de uma mudança mais
fundamental em termos de relações sociais. Para Susana Funck, em “Da questão da
mulher à questão do gênero” (1994, p. 21), esta transfusão entre estudos sobre a
masculinidade e a homossexualidade e os estudos da mulher reforça o gênero como
categoria de análise. Nesse sentido, a crítica literária feminista de “saia justa e de
salto alto” pode ser considerada como um dos vários meios essenciais, inevitáveis e
necessários de mudança, se é que queremos sair de uma história da literatura dos
meninos e das meninas para construir outra história, utópica, talvez, em que o
Superman e a Barbie, libertos da “saia justa”, não sejam os únicos símbolos visíveis
a nos representarem.
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15
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Site: http://www.anpoll.ufal.br/, consultado em 9/11/2007.
Anexo 1 - Slide 1
(sites)
Crítica feminista
Crítica literária feminista
Web
1.070.000
289.000
em português
268.000
68.400
no Brasil
174.000
48.300
Feminist criticism
Literary feminist
criticism
Web
1.920.000
1.580.000
Antologias
de escritoras
Web
157.000
em português
24.900
Ensaios críticos
Female critical essays
de autoria feminina
Web
124.000
1.830.000
em português
121.000
797
no Brasil
83.500
981
[consultas realizadas em 2007]
Anexo 2 - Slide 2
Antologias de escritoras
1- Galeria ilustre: mulheres AZEVEDO, Josefina Álvares de (1897)
célebres.
2 - Mulheres ilustres do SABINO, Inês (1899)
Brasil.
3 - A mulher rio-grandense e OLIVEIRA, Andradina de (1907)
escritoras mortas.
16
4 - Antologia feminina: BRITO, Cândida de (1929)
escritoras
e
poetisas
contemporâneas.
5 - Mulheres e livros.
BITTENCOURT, Adalgisa (1948)
6 - Perfis de musas, poetas e
prosadores brasileiros.
7 - Mulheres célebres.
8 - Mulheres admiráveis.
9 - Mulheres do Brasil.
TACQUES, Alzira Freitas (1956-1958)
GUIMARÃES, Rute (1963)
GALEANO, Henriqueta (1965)
GALENO, Henriqueta (1971) Vol. I (publicação
em quatro volumes)
DUARTE, Constancia Lima e MACEDO, Diva
Cunha Pereira de (Natal: EDUFRN, 1999)
DUARTE, Constancia Lima e MACEDO, Diva
Cunha Pereira de (Belo Horizonte: Edições
Limiar, 1999)
ALVES, Lizir Arcanjo. 2. ed. (Salvador: Étera
Projetos Editoriais, 1999)
10 - Literatura do Rio Grande
do Norte — Antologia.
11 - Iniciação à Poesia do
Rio Grande do Norte Antologia
12 - Mulheres escritoras na
Bahia: as poetisas – 1822 –
1918.
13 - Escritoras brasileiras do MUZART, Zahidé L. (org.) 2 ed. (Florianópolis:
século XIX.
Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: Edunisc,
2000) v. 1
14 - Poesia Barroca – FERREIRA, Nadiá Paulo (Rio de Janeiro:
Antologia do século XVII
Editora Ágora da Ilha, 2000)
15 - Antologia de escritoras ALVES, Ívia (UFBA)
baianas
16 - Antologia das escritoras BRITTO, Carla dos Santos
afro-brasileiras
17 - Antologia de escritoras (Rede de Escritoras Brasileiras – REBRA)
brasileiras
18 - O amor que move o sol (REBRA - 42 escritoras brasileiras)
e outras estrelas
19 - Talento delas
(REBRA - 32 escritoras)
20 - À margem das Alagoas BRANDÃO, Izabel e ALVES, Ivia (orgs.)
e Bahia: Antologia de (Maceió: EDUFAL/CNPq, 2002)
escritoras (1900-1950).
21 - Antologia de contos de GUIDIN, Márcia Lígia e VIANA, Lúcia (orgs.)
escritoras brasileiras
(década de '80, 31 escritoras, Ed.Martins
Fontes, 2003)
22 - Escritoras brasileiras do MUZART, Zahidé (org.) (v. 2, 2004)
século XIX.
23 - Talento feminino em (Editora Scortecci, São Paulo, 2004)
prosa e verso I
24 - Talento feminino em (Editora Scortecci, São Paulo, 2005)
prosa e verso II
25 - Presente de Natal em (Ed. Scortecci, São Paulo, 2005)
Prosa e Verso
[consultas realizadas em 2007]
17
Anexo 3 - SLIDE 3
DICIONÁRIOS
1-Dicionário
BITTENCOURT, Adalgisa. 1969, Três volumes
biobibliográfico
de
mulheres
ilustres,
notáveis e intelectuais
do Brasil.
2 -Ensaístas brasileiras:
HOLLANDA, Heloísa Buarque de; ARAUJO, Lúcia
mulheres
que Nascimento. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
escreveram
sobre
literatura e artes de
1860 a 1991.
3 - Dicionário
teologia feminista.
de
4 - Dicionário
mulheres.
de FLORES, Hilda. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1999.
GOSSMANN, Elisabeth. Vozes, 1997.
5 - Dicionário Mulheres
SCHUMAHER, Schuma e BRAZIL, Érico Vital (orgs.). Rio
do Brasil de 1500 até a
de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
atualidade.
6 - Dicionário crítico de COELHO, Nelly Novaes. São Paulo: Escrituras, 2002.
escritoras
brasileiras:
1711-2001.
Copyright © Carlos Ceia, 2005
http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/C/critica_feminista.htm
8 - Dicionário da crítica
MACEDO, Ana Gabriela e AMARAL, Ana Luísa (orgs.).
feminista
Porto: Afrontamento, 2005.
18
19
EDUCAÇÃO DA MULHER: RUPTURA E TRADIÇÃO EM A
INTRUSA DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA*
Marly Jean de A. P. Vieira**
RESUMO:
Esta análise traz mais um exemplo de como a escritora Júlia Lopes de Almeida utilizou o
espaço narrativo para problematizar a condição feminina. O romance A intrusa destaca o conflito
entre o novo modelo de mulher burguesa e os papéis estabelecidos pela aristocracia. A autora
privilegia a relação entre o universo feminino e os preceitos sociais enfatizando a importância da
educação como instrumento que permitirá a ascensão feminina. É com perspicácia que Júlia Lopes
negocia com os valores conservadores sem deixar de sinalizar as mudanças necessárias e
inevitáveis aos novos tempos. Esta análise tem por base a Crítica Literária Feminista.
Palavras-chave: Júlia Lopes de Almeida. Educação. Mulheres
A carioca Júlia Lopes de Almeida nasceu em 1862 e foi uma das figuras
femininas mais expressivas do período entre a segunda metade do século XIX e as
primeiras décadas do século XX. Mãe, esposa, mas também escritora, iniciou sua
carreira aos dezenove anos escrevendo no jornal Gazeta de Campinas. A partir daí,
e por mais de trinta anos, ela produziria uma obra extensa e de reconhecida
qualidade literária que incluiria desde textos infantis a crônicas, ensaios, peças de
teatro, novelas, contos e romances.
Sua escrita – marcada pela criatividade e pelo espírito crítico - retratou a
condição feminina em meio à discussão de importantes temas sociais como a
abolição da escravidão, a agricultura como meio de desenvolvimento do país, o
difícil acesso da mulher à educação. A partir de meados do século XX a autora e sua
obra caíram em profundo esquecimento do qual começaram a sair graças ao esforço
de estudiosas ligadas à linha de resgate da Teoria/Crítica Literária Feminista que
vêm promovendo o estudo e a reedição de suas obras.
O fato de conviver num lar onde se valorizavam as artes e a cultura,
certamente facilitou-lhe o desenvolvimento do talento natural para a literatura. É no
espaço da escrita - habitualmente dominado pelo homem e onde ele estabelece as
suas verdades – que Júlia Lopes penetra e desenvolve os textos que quase sempre
problematizam a questão da educação da mulher.
*
Este artigo foi adaptado do capítulo ‘Mulheres imaginadas – mulheres reais’ da dissertação de
Mestrado: Do privado ao público – Júlia Lopes e a educação da mulher.
* *
Professora da Rede Pública de Ensino do Distrito Federal, com mestrado em Literatura Brasileira
(UnB, 2003). Pesquisadora das áreas de estudos feministas e de gênero e literatura de minorias.
Integrante do grupo de pesquisa Vozes Femininas Atualmente pesquisa o gênero narrativo conhecido
como romance de formação (Bildungsroman).
20
Sua origem burguesa não a impediu de perceber, juntamente com outras
mulheres de letras14, que a condição de subalternidade social, cultural e econômica
da mulher era provocada pelo seu limitado acesso ao ambiente educacional. O
exercício do jornalismo, provavelmente, contribuiu para aguçar a percepção que
tinha de si e dos outros. Atenta às mudanças que aconteciam, Júlia Lopes anteviu
que a mulher poderia exercer um papel mais ativo no contexto social contribuindo,
inclusive, com o desenvolvimento do país, bastava apenas que tivesse os meios
para desenvolver suas potencialidades.
A segunda metade do século XIX foi rica em importantes acontecimentos
histórico-sociais e Júlia Lopes os vivenciou. Eles vão desde a transição do regime
monárquico para o republicano, passando pela abolição da escravidão, a
reurbanização da cidade do Rio de Janeiro, a grave crise financeira conhecida com
“encilhamento”, o movimento sufragista, até a Primeira Guerra Mundial, no início do
século seguinte. Valendo-se de um grande senso de observação, ela consegue
explorar elementos indicadores de algumas dessas transformações sociais em sua
ficção, quando fala, por exemplo, sobre a família burguesa do Segundo Império e da
Primeira República. Assim, traz para a intimidade do ambiente familiar a discussão –
aguçadamente crítica - de temas que transcendem o espaço doméstico e que, ao
meu ver, fazem com que sua literatura não se encaixe, de forma genérica, no
conjunto de produções estereotipadas como “sorriso da sociedade”.
Ao se tomar conhecimento da sua trajetória pessoal e da aceitação que sua
obra obteve em seu tempo, torna-se mais fácil compreender o seu engajamento nas
mais diferentes questões sociais, sendo a principal delas a da educação da mulher
sobre a qual defendeu opiniões marcadamente feministas. Algumas de suas
personagens15 apresentarão e discutirão essas idéias, outras evidenciarão em suas
falas posições preconceituosas sobre a condição das mulheres. Isso tudo torna-se
importante, dentro da abordagem de gênero, para que se possa caracterizar Júlia
Lopes como uma mulher que está, em muitas questões, à frente de seu tempo,
pelas suas idéias e atitudes inovadoras.
A postura diferenciada dessa autora permitiu que ela não só se projetasse
como escritora talentosa no meio intelectual de seu tempo, mas também abrisse
para as brasileiras um espaço ao qual não haviam tido acesso até então. Júlia Lopes
14
Segundo Mª Thereza Bernardes, a expressão “mulheres de letras” refere-se àquelas que
escreveram e publicaram obras nos mais diversos gêneros literários ou as deixaram inéditas. In:
BERNARDES, Mª Thereza C. C. Mulheres de ontem? Rio de Janeiro – século XIX. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1989, p. 10.
15
O termo personagem refere-se tanto às personagens masculinas quanto às femininas.
21
realizou a proeza de tornar-se uma profissional das letras – terreno monopolizado
pelos homens. Conforme atesta Norma Teles, “talvez [ela] tenha sido a única
escritora do período a conseguir dinheiro com sua pena” (TELES: 1997, p. 441). E
acrescenta que a filha de Júlia Lopes, a declamadora Margarida Lopes de Almeida,
contava que a mãe, em certa ocasião, levara toda a família à Europa com ganhos da
sua produção. Optando pela produção em prosa, ela destaca-se de outras mulheres
que geralmente escreviam poesia e não mantinham o mesmo volume de produção e
nem a mesma constância de nossa biografada.
Havia
ainda
as
que
escreviam
ocasionalmente,
restringindo-se
ao
amadorismo e ao diletantismo. É claro que existiram também várias mulheres como
Narcísia Amália e Francisca Júlia que produziram obras de grande qualidade, mas
Júlia Lopes foi a que alcançou maior sucesso. Ela não se deixou marcar pelo
contexto histórico e social em que viveu; procurou, interagindo com este contexto,
modificá-lo dentro do que era possível para o quadro de sua época. O caminho
percorrido por Júlia Lopes não é só individual, mas parece sinalizar um novo
percurso a ser trilhado também por outras mulheres na busca de um lugar onde,
juntamente com os homens, poderão usufruir de uma verdadeira igualdade entre os
dois sexos.
O romance A intrusa, de Júlia Lopes de Almeida, é festejado como um dos
mais interessantes produzidos pela autora. Publicado, inicialmente, em folhetim no
Jornal do Comércio (Rio de Janeiro) em 1905, sua primeira edição é de 1908, pela
Editora Francisco Alves. O romance retrata o ambiente urbano e burguês do Rio de
Janeiro do início do século. Um narrador observador nos conta a história dessa
“intrusa”, que é a governanta Alice, contratada por um advogado viúvo para se tornar
preceptora da filha. Isso era necessário para que, segundo os estritos preceitos da
época, ele pudesse viver na mesma casa com sua filha, que estava entregue aos
cuidados da avó materna. Pouco a pouco, pela simpatia e por suas habilidades em
lidar com a menina, a governante se sobrepõe à influência dominadora da avó e à
própria memória persistente da falecida esposa do advogado.
Caracterizado por Wilson Martins como “mais um dos seus [de Júlia Lopes]
romances de sombrio realismo,” (MARTINS: 1996, p. 384). A intrusa desvela para o
leitor o momento de transição entre a antiga estrutura aristocrática e a nova ordem
social que se estabelece com a ascensão da burguesia. Essa dicotomia se
estabelece na figura da avó, Luíza - que representa os valores antigos e
22
conservadores - e na figura da governante, Alice - que representa os novos valores
e comportamentos que devem reger a família burguesa.
Segundo Peggy Sharpe, Júlia Lopes, assim como seus contemporâneos,
sempre esteve preocupada com duas instituições sociais proeminentes: a família e a
República. A educação adequada da mulher estaria, assim, “ligada ao bem-estar
social da família e, por extensão, à bem sucedida consolidação dos ideais
republicanos” (SHARPE apud ALMEIDA: 1999, p. 23-24).
Em A intrusa, projeta-se um perfil feminino afinado com os ideais burgueses
da época. Esse perfil destaca a figura feminina no papel de mãe e regeneradora da
sociedade. Assim, percebo nesse romance uma contribuição de Júlia Lopes para se
elevar o status da mulher. Mais uma vez reforço que em meio às ambigüidades, às
negociações com o mundo masculino, nossa autora conseguiu, a partir de uma
posição periférica, caminhar para o centro e chamar a atenção sobre a importância
da mulher na sociedade.
Focalizando o ambiente social da época, a autora traça um bem elaborado
panorama das classes que o formam, incluindo a nobreza decadente, o escravo
recém-libertado, o representante do poder econômico, o clero e a classe política. A
discussão central recai sobre o papel da mulher, especialmente aquele representado
pela figura de Alice.
Júlia Lopes constrói em sua narrativa um enredo envolvente, que cativa o
público da época, principalmente o feminino. A autora desenvolve uma narrativa que
leva a história a mergulhar num clima de mistério. Esse clima envolve a personagem
Alice, que não tem voz própria na história, e o padre Assunção, amigo de infância de
Argemiro. A ausência de voz da protagonista faz com que o leitor preste ainda mais
atenção em tudo que é dito sobre ela através dos outros personagens. Isso permite
que muitas expectativas sejam criadas em relação a ela. O mesmo ocorre com o
padre Assunção, que terá uma participação decisiva dentro do enredo.
O fato do romance ser narrado em terceira pessoa não impede que se
perceba uma falsa neutralidade do narrador revelando, em vários momentos, uma
opinião que se confunde com a visão da própria autora. Pelo que já foi verificado da
postura política e literária de Júlia Lopes, acredito que ela aproveite-se de vários
momentos dentro do romance para evidenciar sua visão crítica acerca dos
pensamentos retrógrados e preconceituosos sobre a mulher. Seu discurso destaca a
importância da educação e - concordando com os positivistas - a nobreza do
trabalho digno e honesto para a mulher. Para tanto, ela faz com que seus
23
personagens falem ironicamente sobre os preconceitos e hipocrisias da sociedade.
Em outros momentos, permite - com sua habilidade de narradora - que se
depreenda uma mensagem crítica na fala deles e na maneira como os representa. A
invisibilidade da protagonista funciona, como uma metáfora da invisibilidade da
própria mulher no espaço público, social e profissional.
A narrativa de A intrusa inicia-se com uma reunião de amigos na casa do
advogado viúvo Argemiro Cláudio de Menezes. Estão presentes neste momento o
padre Assunção, o deputado Armindo Teles e Adolfo Caldas, sem profissão definida.
Em meio à conversa, Argemiro revela que colocou no jornal um anúncio em busca
de uma governanta para sua residência, pois só assim poderá trazer a filha para
morar consigo. Nesse momento, são feitas inúmeras críticas a sua atitude, e
destacam-se as opiniões sexistas que são expressas por alguns de seus amigos.
Caldas, em tom de quem previne, assim se dirige a ele:
_Olha que essas madamas trazem anzóis nas saias... Quando menos
pensares... estás fisgado... E tu que és bom peixe! É uma raça abominável, a das
governantas... Verás amanhã que afluência de francesas velhas à tua porta! Feia ou
bonita, a mulher é sempre perigosa. Eu deixar-me-ia ficar sossegadinho nos braços
do Feliciano! [ o empregado da casa] (ALMEIDA: 1935, p. 18)
Essa opinião expressa a maneira como a sociedade enxergava a mulher:
como um perigo, pronto para provocar o mal; a pecadora que usava o corpo para
tentar o homem e levá-lo à perdição. Por isso, tantas doutrinas e teorias forjadas
com o interesse de aprisionar, domesticar, vigiar e punir a mulher.
Resistindo às críticas, Argemiro mantém-se firme no seu propósito,
justificando que não pode mais permanecer vítima dos desmandos e desmazelos do
ex-escravo Feliciano, aliado da baronesa, sua sogra. Ele está decidido a entregar
sua casa aos cuidados de uma governanta, pois “uma casa sem mulher, afirmava
ele, é um túmulo com janelas: toda a vida está lá fora...” (Ibidem, p. 6). Ele
tranqüiliza o padre, que também era padrinho da sua filha, deixando bem claro a sua
preocupação com os comentários maledicentes: “_ Preciso de uma mulher em casa,
que não seja boçal como uma criada, mas que não tenha pretensões a outra coisa.
Saberei indicar-lhe o seu lugar. Nem quero vê-la, mas sentir-lhe apenas a influência
na casa. É a minha primeira condição” (Ibid., p. 18). E complementa: “(...) Quero
uma mulher que tenha boa vista, bom olfato e bom gosto. São as qualidades que eu
exijo por essenciais, numa dona de casa. Quero uma moça educada” (Ibid., p. 19)
24
O conceito que Argemiro tem de moça educada fica ainda mais claro no
momento em que entrevista Alice - que respondeu ao anúncio - e lhe expõe o tipo de
pessoa que quer para o cargo:
(...) preciso, para governanta de minha casa, de uma senhora séria, uma
senhora honesta, a quem eu possa francamente confiar minha filha, que é uma
menina de onze anos. (...) quero uma governanta (...) que seja ao mesmo tempo uma
companheira para minha filha nos dias em que ela vier ver-me. Para isso é preciso
que seja sobretudo educada, não digo instruída, mas que enfim não seja analfabeta
e que tenha hábitos de asseio, de ordem e de economia. (...) Quero sentir na minha
casa a influência de uma pessoa moça, saudável e ordenada (Ibid., p. 23-25).
Vê-se a partir destas citações que o perfil de mulher educada, desejado pelo
advogado, está bem de acordo com os valores sociais e com os papéis que se
projetavam para a mulher naquela época. Além das exigências em relação ao
comportamento da governanta, Argemiro ainda lhe impõe a condição de jamais se
encontrar com ela. Pretende, com isso, evitar qualquer tipo de envolvimento com
Alice, calar as más línguas e permanecer fiel à memória da mulher a quem jurou, no
leito de morte, jamais voltar a se casar. Alice aceita as regras, comprometendo-se a
cuidar de tudo e a permanecer invisível. Apesar de seguirem rigorosamente as
regras combinadas, os comentários acontecem e partem não só dos personagens
masculinos, mas também dos femininos. Envolvido gradualmente pela eficiência de
Alice no desempenho das tarefas domésticas e por sua habilidade em lidar com a
filha, Argemiro acaba se apaixonando por ela e pedindo-a em casamento. No
entanto, até que aconteça esse desfecho feliz, ele será motivo de disputa pela
Pedrosa, que quer vê-lo casado com a filha, e pela baronesa, que cuida para que
não se quebre a promessa feita a sua filha.
O tema da educação da mulher será abordado dentro do romance através da
formação da menina, Maria, que vive com os avós maternos em uma chácara
afastada da cidade. A criança, criada livremente, sem contato com as restrições do
processo de “domesticação” feminina, passa das mãos pouco rigorosas da avó para
a orientação segura de Alice que promove a transformação da “selvagem” sem
instrução em uma menina prendada. Apesar de preocupar-se com a formação moral
e com o caráter de sua filha, Argemiro também interessa-se pela aquisição do saber
necessário ao bom convívio social. Veja-se a passagem abaixo que reproduz um
diálogo entre Argemiro e o padre Assunção:
_ A avó tem razão; minha filha já está muito crescida para aqueles modos de
rapaz... (...) É uma selvagem... esta é que é a verdade; mal sabe ler, rabisca umas
letras em péssima caligrafia... e toca sem compasso umas intoleráveis lições do
método! Já era tempo de saber muito mais. Não te parece? (Ibid., p. 28)
25
Representante do poder econômico, Argemiro (cujo nome vem de argentum –
prata metal, dinheiro) considera que a filha já está na idade de ser preparada para o
convívio social e precisa aprender as convenções que farão dela uma mulher. Esse
é um dos pré-requisitos para que mais tarde a menina possa fazer um bom
casamento.
O passo seguinte a essa tomada de atitude era convencer a baronesa de que
a contratação de uma governanta e a ida da neta para a cidade era o melhor para o
seu desenvolvimento. A baronesa gozava de grande prestígio na comunidade em
que morava e de grande influência sobre a neta. É Argemiro quem nos informa os
sentimentos da sogra para com Glória:
A neta reproduz para ela a filha morta. Glória foi para a casa da avó, muito
pequena; foi ela quem a criou, julga-se com todo direito a guardá-la para sempre... E
é para tê-la só para si, nos mesmos lugares em que cresceu minha mulher, que
teima em não sair do seu canto... (Ibid., p. 41)
Esses sentimentos farão com que a baronesa oponha-se ferrenhamente às
intenções de Argemiro, pois ela sabe que corre o risco de não exercer mais poder
sobre a neta e sobre seu genro. Segundo Elódia Xavier, a descrição que o narradorobservador faz da baronesa reflete a decadência de uma aristocracia que foi
substituída pela burguesia republicana e perdeu o seu poder: “A baronesa era uma
senhora gorda, alta, de lindos olhos negros e cabelos completamente brancos. Tinha
as faces flácidas, a carne do pescoço descaída, a boca larga, a testa curta e ainda
roubada pela espessura das sobrancelhas escuras” (ALMEIDA: 1935, p. 48). Para a
baronesa, a figura de Alice transforma-se na da usurpadora que vem lhe tirar os
seus bens mais preciosos.
Ao visitar a sogra com o amigo Adolfo Caldas, Argemiro cogita em colocar a
filha Glória em um colégio, ao que a baronesa responde: “_Se quiserem matá-la...”
O barão reage imediatamente protestando: “_ Isso nunca. Colégios, nem para
rapazes. São lugares de perdição. O que temos a fazer é interessá-la pelo estudo”
(Ibid., p. 49). Apesar de o romance A intrusa ter sido escrito no início do século XX,
reflete uma mentalidade ligada ao século XIX que enxergava o ambiente escolar
com muita desconfiança; por isso eram poucos os colégios que despertavam o
interesse das famílias. Os pais, em muitos casos, preferiam receber em suas
residências a visita de professoras particulares. Boa parte delas era de origem
estrangeira, e iniciavam as moças nos conhecimentos necessários, como francês,
piano, leitura.
26
A sogra de Argemiro parece satisfeita com o nível de instrução da neta: “(...)
ela lê... e escreve... e demonstra muito jeito para a música. Afinal, não se educa
para doutora nem para professora. No meu tempo não se exigia tanto...” (Ibid., p.
50). Desse comentário vê-se claramente quais eram os papéis destinados à mulher,
que, certamente, não incluíam a preocupação com o exercício de alguma profissão.
O conflito entre o antigo e o novo reflete-se na pouca importância dada à instrução
pela baronesa, ao que Argemiro responde: “_ Não é razão. A mulher hoje precisa
ser instruída, solidamente instruída (...) e eu quero, ou exijo que minha filha o seja”
(Ibid., p. 51). Mesmo que o maior interesse do pai de Glória seja com a
aprendizagem das habilidades necessárias para torná-la uma moça educada nos
padrões burgueses, sua fala parece servir para que a autora revele, através do uso
do espaço ficcional, a sua opinião sobre a condição feminina, posicionando-se
contra o que considerava limitador para a mulher. Ela não vai deixar, entretanto, de
estar negociando com os valores do mundo masculino. Já foi colocada, neste
trabalho, a importância da mulher para o estabelecimento do modo de vida burguês,
uma ordem social bem diferente daquela que a baronesa viveu em seus tempos de
mulher aristocrática, quando não se enfatizava a responsabilidade da mulher na
condução da família e da sociedade.
Para a baronesa, o estudo é um grande sacrifício que oferece poucas
compensações:
(...) Andar atrás de uma pobre criança o dia inteiro, fazendo-a conjugar
verbos e compor e recompor orações gramaticais, atirando-lhe para dentro da
cabeça nomes de terras e complicações matemáticas; curvar-lhe a espinha em cima
de mapas e linhas geométricas, cansar-lhe a vista antes de tempo roubando-lhe a
liberdade que dá saúde, alegria e ousadia, olhem que não me parece obra de amor
nem de caridade! Eu cá por mim, confesso: fujo da sala de estudo quando vejo meu
marido chamar a neta para a lição... (Idem)
O advogado Argemiro está convicto de que já passa da hora de oferecer à filha uma
formação mais ampla e sistemática. Ele argumenta com a sogra:
_ Precisamos prepará-la [Glória] para o futuro, que é sempre incerto. Imagine
que um dia, que infelizmente há de vir, faltem a nossa Glória os seus cuidados, os do
avozinho e os meus...que será dela se for uma ignorante, ela é tão impulsiva e... tão
geniosa; hein? (Idem)
Ao que a sogra rebate, promovendo o seguinte diálogo:
_ Quando isto acontecer, para longe o agouro, sua filha estará casada!
_ Estará ou não. E se for mal casada? Se o marido esbanjar toda a sua
fortuna e a atirar depois às ortigas?
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_Glória casará bem, com um homem que a ame e a respeite. Não faltava
mais nada. Minha neta mal casada! Pobre... desprezada... precisando trabalhar para
viver... que coisa horrível!
_O que é horrível (...) não é trabalhar; é não saber trabalhar! (Ibid., p. 52)
Todo este trecho revela por parte da baronesa uma postura extremamente
conservadora; afinal, cabe a ela, dentro do enredo do romance, o papel de
resguardar as velhas estruturas patriarcais, das novas concepções. Fica evidente a
sua certeza de que o casamento – única aspiração feminina e destino natural de
toda mulher – seria, por si só, garantia de segurança e estabilidade para a mulher.
Embora Argemiro não esteja disposto a ultrapassar os limites estabelecidos pela
sociedade, sua resposta denota uma consciência bastante crítica dessa sociedade e
afinada com a nova mentalidade que surge com a ascensão da burguesia. Sua fala
procura, ainda, enfatizar a necessidade de a mulher estar preparada para todo tipo
de adversidade, exercendo, inclusive, algum tipo de tarefa remunerada.
Esse discurso procura tirar do trabalho exercido por mulheres o estigma de
atividade vergonhosa. É sabido que essa maneira de pensar é um resquício do
sistema escravagista. Acredito que ao criar um personagem burguês que pensa de
forma coerente sobre a possibilidade de sua filha ter de trabalhar e, para isto, ter de
adquirir instrução, a autora está procurando, através da sua produção literária,
derrubar antigos preconceitos e mostrar que o acesso ao conhecimento e o trabalho
digno e honesto são importantes e só trarão benefícios para a mulher, seja ela
burguesa ou não. Ao tornar visível o problema da educação da mulher, o romance
contribui para corrigir uma visão atrasada sobre essa questão e bastante comum na
época, que se expressa na fala da baronesa Luíza.
A narrativa prossegue e, apesar da contrariedade da baronesa, Maria da
Glória passa a freqüentar a casa do pai durante os finais de semana. A partir desse
momento, Alice começa a vivenciar duas situações opostas que vão acrescentar ao
enredo um clima de expectativa e tensão. O conflito vai se estabelecer entre as
opiniões negativas da baronesa sobre a governanta - que inicialmente vão
influenciar o comportamento de Glória - e as opiniões positivas de Argemiro sobre
as habilidades domésticas de Alice. Enquanto a filha se comporta com rebeldia,
deixando transparecer uma forte antipatia por Alice, o pai já percebe claramente a
influência positiva da governanta na organização de sua casa.
O resultado dessa situação conflituosa é que, na mesma proporção em que
cresce o ódio da baronesa por Alice, também cresce a admiração de Argemiro e,
mais tarde, a de Glória por ela. Na mesma medida em que se amplia a influência de
Alice sobre pai e filha, diminui a influência da baronesa sobre eles, metaforizando a
28
decadência da ordem aristocrática que foi substituída pela ordem burguesa. O mais
interessante é que a falta de voz e a invisibilidade de Alice não impedem que sua
imagem seja evocada o tempo todo pelos outros personagens e que se torne
conhecida para o leitor. É em torno da sua figura e das conseqüências das suas
ações que toda a narrativa se desenrola. Esse é um dos pontos que revela a
habilidade narrativa de Júlia Lopes.
A baronesa Luíza tentará de todas as formas atingir negativamente a imagem
de Alice. Para impedir o crescente aumento do poder de sua rival, ela recorre a uma
cartomante e alia-se a Feliciano - empregado revoltado com a sua condição social para quem a presença de Alice passou a representar um grande prejuízo, pois antes
ele dispunha de liberdade e intimidade com a casa e com as coisas do patrão,
valendo-se indevidamente dessa situação. A chegada da governanta atrapalha os
planos de Feliciano, e Alice passa a ser vista por ele como uma ameaça a sua
irresponsabilidade.
Todas as iniciativas da baronesa para atingir a governanta só produzem um
resultado: aumentam a sua vulnerabilidade e anulam sua antiga dignidade com a
diminuição gradativa do seu poder. O desgaste físico e emocional da avó de Glória
é enorme e, ao final, sua imagem passa a suscitar no leitor um misto de pena e
repulsa:
(...), quando a avó de Glória apareceu na sala, notou toda gente que ela
estava pálida, com olheiras pisadas e um sorriso forçado que não conseguia
levantar-lhe os cantos da boca fatigada. A carne pálida e flácida do pescoço descaíalhe sobre as rendas da gravata (...). Os cabelos brancos (...) iluminavam de reflexos
de prata a sua fronte amargurada, em que o pensamento parecia perder-se no
labirinto das rugas (Ibid., p. 147-148).
Os únicos que estão ao lado da sogra de Argemiro, ao término da história,
são o marido e o padre Assunção. A aliança do padre com a baronesa é significativa
e representa, por extensão, a aliança da Igreja com a nobreza no plano do contexto
social; com o advento da República e da assimilação de valores liberais, estas duas
classes perderam muito de sua influência na sociedade.
O papel de Assunção é importante dentro do romance por ser ele a pessoa
que descobre o passado de Alice. A jovem era filha de advogado e neta de general.
Sozinha no mundo, é a única responsável por um casal de antigos empregados que
lhe são dependentes. Apesar de estar pobre, ela possui instrução acima do
esperado para uma mulher naquela época. É através desse conhecimento e da
habilidade em administrar um lar que ela se põe a trabalhar e, assim, ascende
socialmente, mudando a sua condição de governanta para a de dona da casa.
29
Mais uma vez, a autora utilizará o enredo de uma de suas obras para fazer a
apologia do trabalho digno e honesto. Enfatizo que a primeira década do século XX
ainda estava sob o impacto da Proclamação da República e das transformações
sociais dela decorrentes. Assim, o trabalho será estimulado como meio natural para
promover a ascensão das classes emergentes. No caso de Alice, pertencente à
média burguesia, esse trabalho ainda é mais justificado pelo fato de, por meio dele
ela poder manter-se e ainda auxiliar os antigos empregados. Outro ponto
interessante, observado por Elódia Xavier, é que o trabalho nesta narrativa de Júlia
Lopes - assim como em outras - tem função terapêutica, ou seja, através dele a
ordem familiar no lar do viúvo Argemiro é restabelecida.
A atuação pedagógica de Alice sobre Maria da Glória é bastante eficiente,
inserindo a menina no padrão de educação concebido na época: costura, bordado,
decoração do lar, música, francês, além de transmitir-lhe - através do diálogo e da
vivência de situações práticas - valores humanitários e atitudes de caridade para
com os menos afortunados, despertando-lhe sentimentos tidos como naturalmente
femininos:
Maria aproveitava sempre as segundas-feiras em passeios, uma vez ao
Jardim Botânico, outras aos asilos (...) trazendo sempre impressões bem definidas e
em que se percebia uma direção cuidadosa e inteligente. A pouco e pouco a criança
ia-se tornando mais observadora e mais piedosa. O padre Assunção (...) sentia (...)
que esses passeios através da cidade desenvolviam melhor o espírito e o coração de
Maria do que o mais volumoso livro de moral (ALMEIDA, op. cit., p.113).
Em A intrusa, uma figura se destaca no universo da representação feminina,
contrapondo-se ao modelo de mulher abnegada e resignada. Trata-se da Pedrosa
que, como o nome sugere, se comporta como uma espécie de “homem de saias”.
Essa imagem opõe-se ao perfil feminino consagrado na literatura do período, em
que se cultuam as mulheres dóceis e submissas. Pertencendo à classe dominante,
a personagem caracteriza-se pela determinação com que diz o que pensa e faz o
que pode para alcançar os seus objetivos. Graças a sua influência, ela consegue
fazer do marido deputado, senador e, depois, ministro.
A Pedrosa movimenta-se com desenvoltura entre os espaços público e
privado, entre o ambiente social e o político. Através da representação dessa
personagem, a autora constrói uma narrativa que revela grande maturidade
artística, mesclando à apresentação do comportamento social uma crítica bastante
lúcida a esse comportamento. Ao dizer, por exemplo, que “a esposa [Pedrosa]
instigava-o [ o marido] a ir ao encontro das posições aparatosas da alta política”
(Ibid., p. 35), Júlia Lopes divulga uma imagem desconhecida para a mulher daquela
30
época - a mulher estrategista e de iniciativa. Observe-se o comportamento da
Pedrosa: “Vingava-se [Pedrosa] do Destino a ter feito mulher, (...). Não era bonita,
mas a sua expressão de desafio que agradava aos homens e irritava as mulheres,
tornava-a talvez um tanto original. Gostava de impor a sua autoridade” (Idem, p. 35).
Está claro que a autora tem consciência de que o “destino de mulher” é bastante
cruel e de que não há muito o que fazer para mudá-lo. No entanto, promove – por
meio da voz dessa personagem – ,uma crítica à ordem patriarcal, ao mostrar o uso
de certos estratagemas como a única alternativa que a própria sociedade oferece à
mulher para que ela possa, de alguma forma, se afirmar e vingar-se desse destino.
Isso fica evidente nesta fala da Pedrosa com a filha:
_ Se não fosse a minha tática, pensas que teu pai teria alcançado as
posições que tem tido? (...) Só pelos merecimentos, sem um pouco de manha,
ninguém faz nada neste mundo!... (...) Faço tudo com muita diplomacia; sei disfarçar
a minha vontade, fazê-la triunfar sem que ninguém perceba. É um dom peculiar e
que eu desejo transmitir-te (Ibid., p. 123, adaptado).
A autora ainda revela, de forma um tanto romântica, as manobras usuais
para se garantir bons casamentos. Sinhá, a filha de Pedrosa, influenciada por
sentimentos românticos, sente-se envergonhada e constrangida com a exposição a
que a mãe a submete na esperança de vê-la casada com Argemiro: “Tinha pensado
muito desde aquele passeio ao Corcovado e começava a compreender o seu
papel... A mãe ofereci-a [sic] ao Argemiro... era por causa dele que lhe pusera nas
orelhas aquelas pérolas, que pareciam queimá-la...” (Ibid., p. 152). Após essa
constatação, ela nega-se a ser objeto de transação - forma como a mãe enxerga o
matrimônio - e acaba por encontrar um verdadeiro amor.
Um outro aspecto denunciado é o preconceito - de quase todas as figuras
masculinas do romance - em relação às mulheres. Essa atitude revela-se na fala
dos amigos de Argemiro, na fala do barão: “Mas és mulher, e vives mais do
sentimento que da razão...” (Ibid., p. 198); na fala do ex-escravo Feliciano que,
apesar de ser homem, está subordinado à Alice no comando da casa: “Quem se fia
em mulheres está bem servido!... pensava consigo o negro, desandando no seu
caminho” (ibid., p. 184); e do próprio Argemiro que assim se dirige à Alice quando
vai acertar-lhe as contas: “Os seus cadernos estão numa ordem admirável.
Realmente eu nunca imaginei que uma senhora entendesse tanto de contas... é um
guarda-livros!” (ibid., p. 298).
A surpresa de Argemiro em relação à capacidade intelectual de Alice decorre
do fato de que os homens são preparados para ser independentes e para gerir seus
31
negócios, enquanto as mulheres são educadas para depender deles na gerência de
suas próprias vidas. Além disso, no imaginário masculino, a mulher é identificada a
um anjo ou a uma santa que deve ser admirada e adorada. Era essa, inclusive, a
imagem que Argemiro tinha da própria mulher: “Ela perdurava no seu espírito como
o conjunto de todas as perfeições. A sua figura esguia e branca, que a cabeleira
aureolava de ouro pálido, plantara-se no seu coração” (Ibid., p. 84). Essa visão do
feminino, entretanto, não o impede de elogiar a formação de Alice, inclusive bem
mais completa que a da falecida esposa, pois, além de ser uma excelente
administradora do lar, possui amplo conhecimento cultural e conseguiu corrigir a sua
filha “de feios vícios da educação” (Ibid., p. 211). Será esse o perfil de mulher
educada que o ideário republicano consagrará e que a levará, dentro do contexto
burguês, a ter um pouco mais de destaque na sociedade.
Paralelamente à questão da condição feminina, Júlia Lopes expõe as
hipocrisias sociais e, sutilmente, critica o mecanismo do favor, do oportunismo entre os funcionários e políticos - e as relações baseadas apenas no interesse, que
imperavam na sociedade carioca. Não é de se espantar que essas relações
influenciassem o comportamento feminino; assim, o narrador, em vários momentos,
vai se posicionar, em relação à condição feminina, aceitando e, ao mesmo tempo,
recusando os valores vigentes. Essa acaba sendo uma estratégia para se
questionar o sistema patriarcal sem, no entanto, desautorizá-lo. É por isso que, ao
final do romance, o comportamento transgressor da Pedrosa é punido e o
comportamento adequado de Alice é premiado com o casamento.
Ao término do romance, a autora ainda surpreende o leitor, revelando a
paixão secreta do padre Assunção por Maria, a primeira mulher de Argemiro. Diante
da decisão do seu amigo de infância de casar-se com a mulher que ele amava,
Assunção acabou abraçando o sacerdócio e zelando por Glória como se ela fosse
sua filha. O fato de se ter na história um personagem que representa o clero
permitiu que algumas críticas fossem feitas à Igreja, como no seguinte fragmento
em que o personagem Caldas opina sobre o sacramento da confissão:
_ Bonitas coisas você deve ter ouvido padre! A mim o que espanta e revolta, é que
ainda haja pais e maridos que consintam nessa abominação do confessionário. A religião não
poderia ter inventado coisa mais vil nem mais repugnante. (...) A minha confissão é que tu não
ouves, padre! (Ibid., p. 186)
Vê-se aí o confronto entre o pensamento liberal e republicano com o
conservadorismo e tradicionalismo da Igreja, expresso em palavras carregadas de
32
indignação. Esse tipo de posicionamento da autora se repetirá em outro romance
seu, A Silveirinha.
Muita coisa poderia ainda ser dita a respeito de A intrusa – romance tão rico
e aberto a tantas leituras. No entanto, é preciso finalizar esta análise que procurou
privilegiar a relação da mulher – tema central de toda a trama - com a questão da
educação feminina. O trabalho feminino tornou-se um ponto importante dentro da
narrativa, pois é ele – conseqüência da formação de Alice - que possibilita a sua
ascensão social.
Convém ressaltar que, a partir da segunda metade do século XIX, o culto da
domesticidade será reforçado no meio literário em conseqüência da valorização dos
ideais burgueses. Essa tendência também se reproduzirá nos textos de Júlia Lopes.
A ascensão de Alice se dará através do trabalho dentro do espaço doméstico algo
natural na perspectiva do século XIX, mas que acaba sendo visto como redutor,
limitador para as mulheres empenhadas em expandir seus direitos. Entretanto, o
que considero interessante é que essa melhoria da sua condição social ocorre em
virtude da educação da personagem. Um dos aspectos que a autora mais enfatiza
nessa formação é o amplo conhecimento cultural da governanta. Alice não estava
preparada só para lidar com a casa. Lembremos a surpresa de Argemiro ao
descobrir que sua governanta lia em inglês. Essas qualidades permitirão que a sua
atuação se projete até o universo público, alcançando os círculos elegantes da
sociabilidade carioca, sobretudo os salões, que mediavam o encontro da esfera
privada e da pública, onde muitas questões relativas a esta última eram resolvidas.
Seduzido por todos esses predicados, Argemiro apaixona-se por Alice e a premia
com o casamento.
Acredito que a mensagem da autora pretende valorizar a educação feminina
e promover o abandono dos preconceitos lançados à mulher que trabalha.
Interessa-lhe divulgar uma imagem de mulher que está preparada para enfrentar os
obstáculos, não importando a sua classe social. Com isso, reduz-se o estereótipo da
mulher absolutamente dependente e sem nenhuma iniciativa, e projeta-se um novo
perfil feminino, mas adequado às mudanças sociais.
Entretanto, o que importa, no final, é a felicidade doméstica e familiar. E essa
é uma preocupação da autora em sua vida e em sua obra. Para Júlia Lopes, a
preservação da família está, indiscutivelmente, atrelada à educação da mulher. No
contexto da obra, essa noção é reforçada pelo trabalho de uma mulher educada,
que transforma uma casa em um lar: ao casar-se com Alice, Argemiro, recupera,
finalmente, sua filha e a sua família. Essa solução revela a estratégia do avanço e
33
do recuo através da qual a autora negocia com o mundo masculino, mesclando às
inovações posições ainda conservadoras.
A oposição que se estabelece entre Alice e a baronesa serve para evidenciar
opiniões retrógradas sobre o papel feminino e a incoerência delas no novo contexto
que se estabelece. Em razão do ambiente histórico-social, é inevitável que nossa
autora procure acomodar suas idéias aos valores da época reforçando, em certos
momentos, o discurso dominante. Mas a consciência da perversidade do “destino de
mulher” está latente nas entrelinhas, nas ironias, nas críticas diretas e ferinas.
Provavelmente ainda não havia chegado o momento certo para se questionar, de
forma contundente, o papel da mulher na sociedade, mas os primeiros sinais
estavam sendo dados...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Júlia Lopes de. A intrusa. 2ª ed. Porto: Livraria Simões Lopes, 1935.
BERNARDES, Maria Thereza C. C. Mulheres de ontem? Rio de Janeiro – século XIX. São Paulo: T.
A. Queiroz, 1989.
MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. 1897-1914. 2ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz,
1996. (v.5)
SHARPE, Peggy. Introdução à re-edição de A viúva Simões. In: ALMEIDA, Júlia Lopes de. A viúva
Simões. Florianópolis: Mulheres, 1999.
TELLES, Norma. “Escritoras, escritas, escrituras”. In: PRIORE, Mary Del. História das mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
VIEIRA, Marly Jean de A. P. Do privado ao público – Júlia Lopes e a educação da mulher.
Dissertação de mestrado defendida em junho de 2003, UnB-DF.
XAVIER, Elódia. Declínio do patriarcado – a família no imaginário feminino. Rio de Janeiro:
Record/Rosa do Tempos, 1998.
XAVIER, Elódia. Introdução à re-edição de A intrusa. In: ALMEIDA, Júlia Lopes de. A intrusa. Rio de
Janeiro: Departamento Nacional do Livro/ Biblioteca Nacional, 1994.
XAVIER, Elódia. “Júlia Lopes de Almeida: o discurso do outro”. In: Travessia nº 23, UFSC, 1992. P.
178-184.
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NÓS, POETAS DE NOSSAS VIDAS?: DESEJO E HOMOEROTISMO EM
BERKELEY EM BELLAGIO, DE JOÃO GILBERTO NOLL.
Marcos de Jesus Oliveira16
RESUMO: O presente trabalho se debruça sobre o modo pelo qual desejo e homoerotismo emergem
em Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll, evidenciando a centralidade dessas duas categorias
para a compreensão da proposta estética do autor. Como processos reorganizadores de formas
tradicionais de sociabilidade, de política e de identificação, o desejo e o homoerotismo conseguem
desvincular o “eu” dos discursos da biologia, da natureza e até mesmo dos padrões de normalidade,
rumo a novas formas de existência e subjetividade. Por isso, essas questões são articuladas à
estética da existência nos termos propostos por pensadores como Nietzsche e Foucault.
PALAVRAS-CHAVE: João Gilberto Noll; Berkeley em Bellagio; homoerotismo
Desde que o escritor gaúcho João Gilberto Noll despontou no cenário literário
brasileiro com o livro de contos O cego e a dançarina, em 1980, seus trabalhos têm
sido aclamados unanimemente por seus leitores e pela crítica. Essa última tem
abordado sua obra, principalmente, a partir das teorias do pós-moderno (DUSI,
2004, p. 17), motivada possivelmente pela idéia de que as narrativas nollianas
seriam marcadas por certa recusa aos valores culturais, estéticos e ideológicos, que
estão no centro do debate sobre a modernidade e a pós-modernidade
(MAGALHÃES, 1993). Dentre o amplo espectro de temas explorados pela crítica,
vale mencionar a questão do corpo, sobretudo, em sua relação com o erotismo e a
transgressão,17 e as noções de espaço18 e de tempo.
Ainda em relação aos críticos de João Gilberto Noll, é relevante destacar que
alguns deles afirmam que a obra do escritor reflete a falta de consciência e o
fracasso existencial do homem contemporâneo. Daí, em seus escritos, a recorrência
de personagens cujas identidades estão sempre à deriva; sujeitos supostamente
fragmentados e incapazes de estabelecer uma narrativa coerente do “eu” que
confira significado e sentido a sua própria existência.19 O fracasso existencial do
homem pós-moderno a que se refere a crítica – presentificada na obra do autor
gaúcho por meio
de personagens “inadequado[s] ao meio em que vive[m]”
16
Graduado em Letras pela Universidade de Brasília (2006). Mestre em Literatura pela Universidade
de Brasília (2008). Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília, desenvolvendo pesquisa
sobre os usos sociais da diferença sexual na contemporaneidade. Principais áreas de interesse:
gênero/sexualidade em interface com a psicanálise e o pensamento social contemporâneo.
17
Um dos estudos pioneiros nesse sentido é “Corpo e transgressão no romance pós-moderno”, de
Adriano Alcides Espíndola (1989). Vale ainda destacar “A transgressão erótica na obra de João
Gilberto Noll”, de Norberto Perkoski (1994) e, mais recentemente, “Body, corporeal perception and
aesthetic experience in the work of João Gilberto Noll”, de Aquiles Ratti Alencar Brayner (2006).
18
De modo geral, a discussão em torno do espaço nas obras de Noll aparece ligada à dimensão
temporal. Vários trabalhos sinalizam essa perspectiva: “Um passeio pelos espaços de O processo de
Franz Kafka e O quieto animal da esquina de João Gilberto Noll”, de Sandra Schnaider (2003);
“Canoas a Céu Aberto: experiência de espaço em Canoas e Marolas e A céu aberto de João Gilberto
Noll”, de Rosseana Mezzadri Dusi (2004).
36
(CARREIRA, 2007, p. 72) – seria sintoma de uma nova ordem global, que geraria a
perda da noção de história e, como conseqüência, geraria também a impossibilidade
de tornar o vivido um saber organizado e significativo. Diana Klinger, ao comentar as
obras de Noll em seu conjunto, expressa, de forma bastante eloqüente, essa
perspectiva, quando afirma, por exemplo, que as viagens dos personagens, na
verdade derivas e perambulações sem rumo, não estão dotadas de nenhuma função
libertadora, edificante ou pedagógica; não oferecem ao personagem nenhuma
formação, nenhuma Bildung, nenhum enriquecimento. (KLINGER, 2005, p. 60)
Não se trata, conforme veremos, de personagens que perderam a capacidade
de, a partir de suas próprias experiências, formar uma consciência individual. Tratase, ao contrário, de uma nova forma de consciência. Uma consciência mais
fenomenológica, ou seja, não mais ancorada no cogito cartesiano e que, portanto, se
constitui por um constante jogo de (re)criação de espaços sociais, cujo dinamismo é
posto em ação a partir de uma pluralidade de práticas e de desejos entre homens
same-sex oriented. Os encontros sexuais e afetivos entre homens – tais como
aparecem na narrativa – reorganizam ou, como queiram alguns, desorganizam as
formas tradicionais de sociabilidade, de política e de identidade. Por isso, esse
trabalho visa a discutir como os personagens de Berkeley em Bellagio, fortemente
marcados por um jogo de (des/re)territorialização de agenciamentos e de
intensidades psicossociais recusam criar para si uma narrativa coerente e orientada
por um senso de história, negando, assim, qualquer ontologia e/ou metafísica em
torno do sujeito.
Nessa recusa em encontrar ou em constituir para si uma identidade estável e
ancorada em representações sociais que instituem e impõem aos indivíduos
modelos de identidade hegemônicos e dominantes, muitos dos personagens das
obras de Noll e, em especial os de Berkeley em Bellagio, conseguem se
“desprender” das relações de poder, nas quais os padrões identitários, em geral,
estão imersos. Disso segue que os personagens parecem transformar suas vidas
em uma obra de arte, em um jogo incessante de criar-se e recriar-se a si mesmo,
dissolvendo os limites entre vida e arte, em que desejo e homoerotismo assumem
um papel importante. E é nesse sentido que, ao substituir a autoridade pela
experiência, se vê o desenho de uma estética da existência nos termos propostos
por pensadores como Nietzsche e Foucault.
19
Cf. AVELAR, 2003.
37
IDENTIDADE, TEMPO E ESPAÇOS FRAGMENTADOS: DESEJO E HOMOEROTISMO
O enredo de Berkeley em Bellagio é razoavelmente simples. João, narradorprotagonista é um escritor brasileiro que se aproxima dos sessenta anos e que,
como professor visitante da Universidade de Berkeley, na Califórnia, recebe um
convite de uma fundação americana para elaborar um romance numa residência de
escritores em Bellagio, na Itália. Não obstante, a aparente simplicidade oculta uma
narrativa recortada pela força do desejo, a partir do qual se ensaiam novas formas
de subjetividade e de possibilidades de encontro com o outro. Para entender como a
problemática do desejo emerge no comportamento e nas vivências dos
personagens, bem como a relação desse conceito com o de identidade e de
homoerotismo, é importante ressaltar que denomino desejo, seguindo a sugestão do
psicanalista francês Félix Guattari, “a todas as formas de vontade de viver, de
vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade,
outra percepção do mundo, outros sistemas de valores.” (GUATTARI, 2005, p.
261).O conceito de desejo proposto por Guattari se distancia não tão-somente
daqueles informados, direta ou indiretamente, pela tradição judaico-cristã,20 na qual
grande parte da cultura ocidental está mergulhada e que tem alimentado o
imaginário social, bem como da noção de desejo proposta pelo psicanalista francês
Jacques Lacan, cujo pensamento dá continuidade à concepção filosófica clássica –
Platão, Kant, Hegel – do desejo como falta.21 Se a perspectiva presente na tradição
judaico-cristã costuma atribuir ao desejo toda uma aura de vergonha e de
culpabilização, colocando-o na ordem do instinto animal, ou seja, como algo que
precisa, necessariamente, ser controlado e reprimido; a perspectiva lacaniana
apresenta problemas de outra ordem.22
Fugiria aos objetivos deste trabalho desenvolver a complexidade e a
riqueza do pensamento lacaniano; no entanto, cabe ressaltar que subjaz ao seu
modelo teórico uma concepção de desejo, na qual se definem domínios ontológicos
bastante estreitos. Para Lacan, o processo de simbolização decorre de certas linhas
20
Poderíamos resumir, usando as palavras de Marilena Chauí (1990, p. 36), que “o desejo [para a
tradição judaico-cristã] por ser cisão e perturbação da alma, é desmedido e ‘aquilo que é excessivo
não pode ser natural’, pois a Natureza, sempre sabia, é medida e proporção, concórdia consigo
mesma. Não sendo natural, o desejo é mera opinião, juízo fantasioso sobre o bem e o mal e por isso
mesmo não pode ser favorável à virtude, pois sendo falsa opinião e desmedido, é contrário à razão.”
21
Crítica feita por Gille Deleuze e Félix Guattari em O anti-Édipo, no qual afirmam que “ao desejo não
falta nada, não lhe falta o seu objecto. É antes o sujeito que falta ao desejo, ou o desejo que não tem
sujeito fixo; é sempre a repressão que cria o sujeito fixo.” (DELEUZE & GUATTARI, 1972, p. 31)
22
É correto afirmar que há certa continuidade entre a experiência ética da tradição judaico-cristã e da
psicanálise lacaniana. Tanto para tradição cristã, conforme pode ser visto em Confissões, de Santo
Agostinho (2003), bem como para a psicanálise lacaniana, conforme aponta Joel Birman (2000), a
questão da renúncia é um aspecto crucial.
38
de força – irredutíveis e a-históricas –, cujas estruturas organizam, previamente,
todo e qualquer campo possível da experiência humana. Em seus próprios termos:
Antes de qualquer experiência, antes de qualquer dedução individual, antes
de mesmo que se inscrevam as experiências coletivas que só são
relacionáveis com as necessidades sociais, algo organiza esse campo, nele
inscrevendo as linhas de força iniciais. (...) Antes ainda que se estabeleçam
relações que sejam propriamente humanas, certas relações já são
determinadas. Elas se prendem a tudo que a natureza possa oferecer como
suporte, suportes que se dispõem em temas de oposição. A natureza
fornece, para dizer o termo, significantes, e esses significantes organizam
de modo inaugural as relações humanas, lhes dão as estruturas, e as
modelam. (LACAN, 1995, pp. 25-26)
As linhas que organizam e estruturam as montagens e os limites da
subjetividade desejante estão, na psicanálise lacaniana, intimamente, relacionadas
aos complexos de Édipo e de castração. Isso porque, ao retomar a famosa tese de
Lévi-Strauss a respeito da lei de interdição do incesto como fundamento da cultura,
Lacan a descreve como o recalque originário, fundador do sujeito do inconsciente.
Assim, a experiência de perda induzida pelo interdito do incesto representa a
condição sine qua non de emergência do sujeito dito humanamente normal e de sua
inscrição no registro da linguagem e do desejo, visto que dela resulta o
recalcamento da relação primária com o corpo materno, na qual o objeto primitivo de
desejo, isto é, a Coisa materna (das Ding), passa a existir apenas como objeto para
sempre perdido; indefinidamente, buscado, mas nunca (re)encontrado. Por outras
palavras, a entrada na ordem simbólica se dá pela instauração de um vazio, uma
falta:
O que encontramos na lei do incesto situa-se como tal no nível da relação
inconsciente com das Ding, a Coisa. O desejo pela mãe não poderia ser
satisfeito pois ele é o fim, o término, a abolição do mundo inteiro da
demanda, que é o que estrutura mais profundamente o inconsciente do
homem. É na própria medida em que a função do princípio do prazer é fazer
com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas
que não poderá atingir, que nesse ponto reside o essencial, esse móvel,
essa relação que se chama a lei da interdição do incesto. (LACAN, 1988,
pp. 87-88)
A isso convém acrescer que a operação pela qual um significante,
denominado por Lacan de Nome-do-Pai, cuja significação é ignorada pelo sujeito,
mas sem o qual estaria fadado à psicose (LACAN, 1999, p. 149 e segs.), faz surgir o
falo, que tem por função mediatizar a relação da criança com a mãe,
desempenhando aí um papel fundamentalmente estruturante. Como “significante
destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de significado” (LACAN, 1990b,
39
pp. 697), o falo se encontra, indissoluvelmente, vinculado ao complexo de castração
inconsciente, que, segundo Lacan,
tem uma função de nó: [...] a instalação, no sujeito, de uma posição
inconsciente sem a qual não poderia identificar-se com o tipo ideal de seu
sexo, nem tampouco responder, sem alguns graves incidentes, às
necessidades de seu parceiro na relação sexual, ou até mesmo acolher
23
com justeza as da criança daí procriada.
Ora, entre os aspectos mais sobressalentes de Berkeley e Bellagio está o
constante jogo de (re)criação de espaços sociais, cujo dinamismo é posto em ação a
partir de uma pluralidade de práticas e de desejos entre homens same-sex oriented.
Em termos mais precisos, a narrativa expõe o caráter historicamente contingente
das relações sociais, evidenciando, por exemplo, que a família nuclear burguesa é
apenas uma configuração histórica, já em decadência na atualidade. Contra o
simbólico a-histórico dos psicanalistas e, em decorrência, contra o imaginário
familialista e a perspectiva do desejo como falta, a narrativa revela que quando, de
volta ao Brasil, João reencontra Léo, seu antigo namorado, e Sarita, filha de Leo,
passando a viver juntos. O desejo de relação com o outro que conduz os
personagens a experimentos relacionais para além do modelo triangular edípico
clássico não surge de um suposto vazio ou da suposta busca pela completude para
sempre perdida, mas do próprio desejo. Em outras palavras, o desejo é potência,
não é a finalidade ideal a que se quer aceder. São os desejos que afloram
sensibilidades e criam novos estilos de vida e, por isso, têm a satisfação como seu
ponto de partida:
(...) quando Sarita então choramingava pedindo a proteção do pai ou então
a minha, nunca se sabia o premiado da manhã, assim jantávamos, eu dizia,
mas às vezes com uma presença a mais, a sombra passageira insinuando
que todo aquele quadro poderia expirar a qualquer hora. Sarita estava ali
comigo, pois é, com o seu outro pai, nem primeiro nem segundo, mas esse
outro que deveria lhe passar a impressão de que tudo o que vinga na vida
vem em duplo! (NOLL, 2002, p. 98)
Assim o modelo burguês de família como índice dos limites e dos alcances
dos processos de subjetivação ditos normais é apenas uma construção ilusória, uma
tentativa de normalização social dos sujeitos. A crítica de Berkeley e Bellagio a esse
“imaginário familialista” – cuja tendência é ver o triângulo edípico como universal e
necessário – abre espaço a novas formas de sociabilidade, nas quais se negociam
ambiguamente os territórios da conjugalidade, da família e do amor. Por isso, é
23
LACAN, 1990b, p. 692.
40
importante destacar que não há nos personagens uma vontade de normalização,
isto é, de integração ao modelo dominante de família, mas uma disposição antinormalizadora de vivenciar a realidade, valendo-se das possibilidades abertas por
essa atitude:
Falo de um quadro em que estaríamos sem pensar, incluindo a
pequenininha, e assim continuaríamos não pedindo nada além do que o dia
nos apresentasse, pouco, muito pouco para muitos, até demais para nós,
que talvez precisássemos de muito, muito menos, apenas esse roçar de
dois corpos completos (...) Havia naquele apartamento três vidas para
preservar, pouco mais que isso, e para tanto éramos ali bons operários,
sem demonstrar nenhum fervor esparramado. (NOLL, 2002, pp. 92-93)
E, mais adiante, continua:
Eu e Léo porém começávamos a perceber que o desejo em
demasia enfraquece, paralisa, e que o melhor mesmo era a paciência,
preparar o dia seguinte sem pensar nele como um esposo que
necessariamente nos dará mais do que pedimos. O que é que pedíamos,
hein? Antes de me responder, se é que chegaria a tanto, Léo corria para
atender Sarita que chorava acordando da sesta (...) (NOLL, 2002, p. 93)
Estaríamos diante de uma tentativa “de emancipação das normas de
representação”24, com vistas à criação de modalidades de percepção que desfaçam
“a teia de aranha do papai-mamãe”?25 Ou, no caso da relação entre João e Léo, em
uma busca de novos modos de pensar os encontros amorosos, de experimentar as
fronteiras ambíguas e frágeis desse sentimento – “líquido”, no dizer de Bauman
(2004) –, cujas exigências de eternidade não passam de uma forma de imputar
violência ao outro? Diante de um jogo do fort/da, no qual se ergue o desejo, ao invés
de rebatê-lo, deslocando-o no tempo, desterritorializando-o, fazendo proliferar suas
conexões, fazendo-o passar para outras intensidades? Minha aposta é de que se
trata de uma reinvenção das formas tradicionais de comunidade, cujos
deslocamentos apontam para uma outra economia, uma outra gramática na qual o
dar não pressupõe o receber (DERRIDA, 1991) ou, ao menos, nem sempre o
pressupõe.
O desejo se revela aí em seu sentido produtivo, como o modo de construção
de algo, como ampliação das constelações referenciais, como multiplicidades,
polifonias e heterogeneidades (GUATTARI, 1992). Por isso, a proposta de Gille
Deuleze e de Félix Guattari me parece uma alternativa bastante profícua para se
pensar como as narrativas contemporâneas têm lidado com a problemática da
24
RANCIÈRE, 1996, p. 68.
25
DELEUZE & GUATTARI, 1972, p. 117.
41
suposta
fragilização
dos
vínculos
sociais
que,
segundo
algumas
visões
apocalípticas,26 teriam acarretado a exacerbação do individualismo, decorrente da
falência dos valores e verdades defendidas pelo Iluminismo. Conforme lembra Suely
Rolnik (2000, p. 458), em Deleuze e Guattari, encontramos a subjetividade não
como algo dado, mas como uma incansável produção que transborda o indivíduo
por todos os lados, resultando em um desfilar de figuras que se sucedem, geradas
nas miscigenações promovidas pelo nomadismo do desejo. Por isso, a questão do
desejo não deve ser colocada mais em termos de uma escolha entre o possível e o
impossível, e sim de uma viabilização do trânsito em mão dupla entre o plano virtual
das intensidades e o plano atual das formas.27
O desejo de encontro com o outro também está retratado na cena final, na
qual o narrador relata a comunicação entre ele e Sarita, levada a cabo pelo balbucio.
Aí se entrevê a invenção de novas formas de sociabilidade, relacionamento e
comunicação, para além das modalidades tradicionais. Na mesma cena, João ainda
relata o contato que Sarita faz com outra menina de uma nacionalidade diferente da
dela. Impossibilitadas de falar a mesma língua, no sentido estrito do termo, a
comunicação entre elas é feita quando Sarita lhe dá um botão que, provavelmente,
arrancara de sua própria blusa:
(...) Soltei a mão de Sarita, deixei-a que andasse a caminho da
outra. Sarita disse oh, assim mesmo, oh, como se ainda não soubesse falar,
virgem de semântica. (...) OH!, como se estalasse o primeiro sentido da
espécie, o espanto!, espanto diante do outro com o meu corpo, que podia
estar aqui onde eu estou, e eu naquele espaço preciso que ela ocupa
agora, oh!, é mais que espanto, ou menos, melhor, bem menos: designa a
calma tentação que faz Sarita tirar do bolso um botão perdido, talvez de sua
própria roupa, um grande botão vermelho (...) Sarita passava o botão
vermelho para a mão da outra menina que olhou pra mim não bem com um
sorriso, mas olhou parecendo suspirar pacificada... (NOLL, 2002, p. 103)
Essas cenas apontam que, embora a pós-modernidade nos tenha imposto,
dada certa proliferação e exaltação da diferença, uma constante sensação de que
somos estrangeiros em nosso próprio país ou em nossa própria língua, o desejo
de contato é uma das grandes forças capazes de fazer surgir novas formas de
comunicação e de relação com o outro, não mais fundadas em sistemas
identitários limitadores, mas em sistemas que valorizem a autonomia do processo
criador e que restaurem a realidade em toda a sua complexidade. Com essas
observações, podemos avançar na discussão da obra e dizer que Berkeley em
26
Refiro-me, por exemplo, à perspectiva de um Christopher Lasch (1991), discutida mais adiante.
27
ROLNIK, 2000, p. 458.
42
Bellagio se constitui por um recorrente devir de ruptura com segmentos sociais
e/ou limites históricos.
João, narrador-protagonista, ora narrando sua própria história em primeira
pessoa, ora em terceira, é um personagem cuja subjetividade está em constante
deriva. Trata-se de um personagem desterritorializado sexual, geográfica e
temporalmente. Sua desterritorialização temporal aparece, de forma bastante
evidente, ao regressar a Porto Alegre após passar algum tempo na Califórnia e
em Bellagio; embora a narrativa dê ao leitor a sensação de linearidade temporal e
de que ela está sendo escrita no momento em que os fatos estão ocorrendo:
Passou-se bem mais tempo do que eu contava. Eu já nem
lembrava. Fui para ficar um ano, sei lá, dois, o certo é que fiquei o tempo
necessário para que Léo se envolvesse com a norueguesa e com ela
procriasse: a menina hoje deve estar com quatro, cinco anos (...) (NOLL,
2002, p. 86)
Em relação ao espaço, a desterritorialização está bem descrita, sobretudo,
em sua condição de estrangeiro, dimensão que também recorta toda a obra:
Esse homem caminhava pelo campus da Universidade, sim, em
Berkeley, naquela Califórnia gelada muito embora ensolarada –, e, por um
segundo, como quem acorda, lhe ascendeu a dúvida se estava ali
chegando do Brasil, ou, ao contrário, se já estava voltando ao Sul do
planeta, pra aquela falta de trabalho ou de aceno de qualquer coisa que lhe
restituísse a prática do convívio seguro em volta de uma refeição, sob um
endereço seguro – “ah esse país, esse país, deixa pra lá, deixa pra lá que
agora eu vou mijar, ruminou na sua entonação secreta, aquela sim que
nunca soubera levar aos lábios por timidez ou covardia... (NOLL, 2002, p.
10)
A desterritorialização sexual, que, por sua vez, também perpassa a narrativa
desde o início, pode ser vista na recusa em estabelecer papéis sexuais bem
definidos ou uma identidade sexual fixa, coerente ou unitária. João, ao mencionar,
por exemplo, que era “Leo, o homem a quem costumava chamar de namorado mas
que lhe era bem mais, um parceiro de cuja ardência ainda lhe vinham certos laivos”
(NOLL, 2002, p. 9) e, mais adiante, que Maria foi “a moça brasileira que conhecera
logo que chegara à Califórnia” (NOLL, 2002, p. 14), parece refletir o debate iniciado
pelos teóricos de gênero/sexualidade, no qual se problematizam as noções de
masculino e feminino, bem como a idéia de uma identidade ancorada em uma
verdade universal sobre o sexo.
Por isso, é interessante notar que João, embora se relacione sexualmente
com pessoas do mesmo sexo que o seu, não se auto-referencia como homossexual,
ou mesmo como bissexual no caso de seu encontro sexual com Maria. João parece
43
consciente de que reivindicar para si o termo homossexualidade é uma forma de
legitimar a heterossexualidade, já que, como o vértice de um par binário, essa última
não pode existir sem a primeira.28 A ênfase recai sobre a experimentação corporal,
movida pelo desejo de extrapolar os limites das práticas sexuais convencionais e, a
partir disso, criar novas formas de comunicação e de encontro com o outro:
Ela o masturbava sem avidez. Ele enfiava o dedo primeiro com
suavidade pela vagina dela e encontrava lá no fundo um pênis em
miniatura; quando chegava ali, a coisa já o esperava, em riste, e nela ele
mexia como num pênis sem glande ou prepúcio, pura umidade que a
promessa de seus dedos tinham o dom de excitar. Naquele ponto ocluso se
banqueteavam, até que o seu próprio pau monstruosamente maior viesse a
toda e entornasse o leite pelas coxas dela. (...) Seria um quisto provedor de
benefícios sem conta, o pau feminino primevo, simétrico aos mamilos
masculinos que tanto prazer de carícias poderiam dar a alguns homens?
(NOLL, 2002, p. 15)
Valendo-se do mesmo raciocínio que Judith Butler (2002) utiliza, ao levantar a
hipótese de que uma mulher pode encontrar o remanescente fantasmático de seu
pai em outra mulher ou substituir seu desejo de sua mãe em um homem, para
questionar os limites das categorias homo/hetero/bi, poderíamos nos indagar em
qual dessas categorias o encontro sexual de João e Maria estaria inscrito. No
exemplo citado por Butler, a mulher que encontra o remanescente fantasmático de
seu pai em outra mulher é heterossexual, homossexual ou bissexual? De forma
semelhante, em virtude do modo como o encontro é descrito, que tipo de
gozo/prazer sexual é esse, no qual João encontra lá no fundo da vagina de Maria
um pênis em miniatura? A narrativa parece indicar que a anatomia não é um
referente estável, mas dependente de um esquema imaginário.29 Por isso, parecemme oportunas as palavras de Butler, sobretudo, quando a autora afirma que
Desde sempre um signo cultural, o corpo estabelece limites para os
significados imaginários que ocasiona, mas nunca está livre de uma
construção imaginária. O corpo fantasiado jamais poderá ser compreendido
em relação ao corpo real; ele só pode ser compreendido em relação a uma
outra fantasia culturalmente instituída, a qual postula o lugar do “literal” e do
“real”. Os limites do “real” são produzidos no campo da heterossexualização
28
“Para que o modelo da homossexualidade permaneça intacto como forma social distinta, ele exige
uma concepção inteligível da homossexualidade e também a proibição dessa concepção, tornando-a
culturalmente inteligível”. [É por isso que] “na psicanálise, a bissexualidade e a homossexualidade
são consideradas predisposições libidinais primárias, e a heterossexualidade é uma construção
laboriosa que se baseia no seu recalcamento gradual”. (BUTLER, 2003, p. 116)
29
Uso o termo imaginário na acepção dada por Lacan, quer dizer, sob tal categoria situo os
fenômenos ligados à preponderância da imagem, da “ilusão”, da fascinação (Cf. LACAN, 1990a). A
sexualidade é tributária desse registro, já que, conforme, aponta Laplanche & Pontalis (1992, p. 233),
o imaginário é um dos três registros (imaginário, real e simbólico) essenciais no campo da
psicanálise.
44
naturalizada dos corpos, em que os fatos físicos servem como causas e os
30
desejos refletem os efeitos inexoráveis dessa fisicalidade.
O inconsciente e o desejo têm suas próprias regras, ou seja, aquilo que, do
ponto de vista social, é considerado como feminino na cultura não é, do ponto de
vista do inconsciente ou do desejo, prerrogativa da anatomia feminina ou vice-versa,
estando, por isso, aberto a qualquer sujeito, independente de seu predicado físico. É
isso que se observa no trecho abaixo, quando a respeito de seu encontro com
Maria, o protagonista revela que
Ele [João] não queria lembrar, queria tão-só estar nos bosques de
Berkeley diante da brasileira que o fez pela primeira vez vibrar como uma
fêmea na cama eternamente redemoinhada de cobertores, travesseiros,
lençóis... Mais uma vez perguntava-se a si mesmo se voltando a seu país
teria teto, emprego, as famigeradas refeições ou aquela mulher para
acompanhá-lo na desdita. (NOLL, 2002, p. 19)
Em outras palavras, o inconsciente não conhece a diferença sexual (SOLER,
1998, p. 187-188), isto é, não conhece a anatomia, mas tão-somente pulsões
parciais. Por isso, não há complementaridade entre o desejo “masculino” e
“feminino”. Essa idéia contida em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905),
sobretudo, quando Freud acentua o caráter perverso-polimorfo da sexualidade, é
radicalizada, em 1915, época na qual o pai da psicanálise reitera que “o objeto de
uma pulsão é uma coisa em relação à qual ou através da qual a pulsão é capaz de
atingir sua finalidade. É o que há de mais variável numa pulsão e, originalmente, não
está ligada a ela” (FREUD, 1991, p. 143). Entretanto, a não-complementaridade
entre os sexos aparecerá de forma ainda mais radical no clássico aforismo
lacaniano31 de que não existe relação sexual (il n'y a pas de rapport sexuel),
reiterado várias vezes em seu seminário Mais, ainda.32 Então, “Se o macho não
basta para constituir o homem, nem a fêmea, a mulher, de que modo se instaura o
30
BUTLER, 2003, p. 108.
31
Devo reconhecer minha dívida para com o pensamento psicanalítico, inclusive o lacaniano; este
último, alvo de minha crítica no início do presente capítulo. Por isso, cabe esclarecer que minha
leitura busca a superação de certos obstáculos teóricos existentes no discurso psicanalítico para
pensar a pluralidade de práticas e desejos entre homens same-sex oriented. Em outras palavras, a
desconstrução de conceitos de falo, castração, Nome-do-Pai, etc, de modo a pôr em cena aquilo que
Derrida (2001) designa de “psicanálise sem-álibi”, isto é, uma psicanálise capaz de se opor ao
pensamento da metafísica do sujeito. Assim, minha leitura não reivindica um “retorno a Freud”, no
sentido lacaniano, isto é, a busca da verdade sobre o texto psicanalítico, seja freudiano, seja
lacaniano; é, antes, uma tentativa de ler a psicanálise, de forma a “salvá-la” da constelação histórica,
genérica e universal, nunca caracterizada socialmente, da qual seu edifício teórico é tributário. Dito de
outro modo, trata-se de desconstruir aquilo que, elevado a uma espécie de a priori transcendental
pelo discurso psicanalítico, é apenas resultado reificado de práticas performativas.
32
Lacan afirma também que “entre os sexos, no ser falante, a relação não se dá”. (LACAN, 1985, p.
90)
45
que aparece como norma heterossexual?” (SOLER, 2005, p. 16). A resposta não
pode, obviamente, ser encontrada na própria sexualidade, mas no processo de
materizalização dos corpos, isto é, na reiteração forçada das normas de gênero, cujo
objetivo é estabilizar através do tempo o desejo no âmbito de uma estrutura
heterossexual compulsória.
Parece existir uma recusa por parte de João em construir uma identidade
sexual, quer calcada na anatomia, quer em qualquer outro suposto referente estável;
o que nos permite entrever certa tendência pós-identitária no romance do autor.
Essa tendência está inscrita no recorrente questionamento de sua própria
identidade, no movimento incessante de indagar-se a si mesmo o que ou quem ele
é. Obviamente, não temos nisso uma busca de autoconhecimento, de descobrir
quem se é de fato, mas de tornar a identidade uma pergunta, uma pergunta para a
qual não se tem resposta. Em outras palavras, a identidade nunca se apresenta
como um fato, algo dado; nunca é totalmente explicável e, por isso, a questão
persiste como um fantasma que acompanha os pensamentos e experiências do
protagonista:
quem será esse homem aqui que já não se reconhece ao se
surpreender de um golpe num imenso espelho ornado em volta de dourados
arabescos, um senhor chegando à meia-idade? (NOLL, 2002, p. 15)
(...) e qual percepção eu poderia ter de mim mesmo naquele vão
noturno que quase me engole num repente? Quem me responde, e já, se o
fato de eu estar aqui andando pelo bosque em plena madrugada me confere
alguma garantia de que eu não seja um outro que de fato sou, um
estrangeiro de mim mesmo entre norte-americano (embora pisando em solo
italiano)? Sou alguém que se desloca para me manter fixo? (NOLL, 2002, p.
36)
A recusa de João em construir uma identidade sexual se contrapõe à
heterossexualidade compulsória, rompendo com a coerência sexo/gênero/desejo por
ela pressuposta. Por isso, a ênfase recai sobre o “uso dos prazeres”, para retomar a
expressão foucaultiana. Ou, para colocar em termos psicanalíticos, sendo o sujeito
“fundado na pulsão enquanto força, [esse sujeito] é marcado por exigências éticas e
estéticas” (BIRMAN, 1996, p. 34), questões abordados com mais detalhe adiante.
Por agora, basta dizer que a constituição de uma estilística da existência, isto é, de
“uma leitura fragmentar sobre as coisas e perda da crença nos enunciados
universais”,33 também parece estar presente no fato de que o romance diz respeito a
vidas de homens maduros que quase não falam de seus pais, mães, etc. Quando se
33
BIRMAN, 1996, p. 19.
46
referem à infância, fazem-no apenas para oferecer ao leitor algumas informações
que confiram certa cadência narrativa à história, e não para conferir racionalidade
teleológica à situação na qual se encontram.
Com respeito à descrição das práticas sexuais em detrimento de uma busca
identitária que confira coerência e unidade a tais práticas, importa dizer que a
apresentação dada por João de seus encontros sexuais ou mesmo da relação com
seu o próprio corpo ocorre por meio da valorização de códigos lingüísticos
usualmente excluídos de trabalhos literários, trazendo à tona o que poderíamos
chamar de “poética da transgressão” (CARREIRA, 2007). Poética que revela, por
exemplo, a capacidade do protagonista em inventar formas de linguagem capazes
de ir além da clássica referência ativo/passivo, a partir da qual a sociedade confere
inteligibilidade às práticas e aos comportamentos sexuais. Nessa poética
entrecruzam-se signos ambíguos e incoerentes; admite-se o trânsito, o entre-lugar, o
não-lugar, o fora-do-lugar.
Esse aspecto fica patente quando João, ao narrar um de seus encontros
furtivos com um garçom italiano em Bellagio, denominado por ele de ragazzo, o
descreve, de modo a evidenciar como os limites entre profano e sagrado são
demasiadamente tênues, ao mesmo tempo em que realiza uma crítica irônica ao
discurso religioso sobre a homossexualidade:
De imediato tocou na espádua arcaica do peninsular divino, mesmo que o
ragazzo não soubesse, não importa, era Deus que ele continha no seu peito
arfante, não o Deus que não saía das igrejas mas o Deus que pulsava atrás
da calça apertada do ragazzo, o Deus que se aplumava e se punha rígido,
colosso! –, o Deus que foi levado pelo escritor porto-alegrense para trás de
uma cortina malcheirosa pelo tempo, o Deus que ali se deixou ordenhar
como um bovino e que ali se deixou beber não bem em vinho mas em leite
que o nosso senhor gaúcho engoliu aos poucos, na carestia da idade,
lembrando-se da Primeira Comunhão, terço nas mãos, ar de bemaventurança – de joelhos olhou o ragazzo como se rezasse pelos mortos
seus amigos, por aqueles que não mais podiam aproveitar a vida desse
jeito, sentindo o gosto áspero que ele não experimentava havia tanto, gosto
desse nobre líquido que corre em seus microfilamentos – vários cavalos no
páreo até um ter a sorte ou a infelicidade já não sei de fecundar a vítima.
(NOLL, 2002, pp. 29-30)
A ironia e crítica ao discurso religioso e a outras formas discursivas que
censuram a homossexualidade também estão presentes em outros momentos da
obra e aparecem simultaneamente à desconstrução da hegemonia heterossexual,
privilegiando novos modos de pensar e de experienciar a realidade. Nisso reside a
valorização da autonomia e a da autopoiesis do processo criador como
enriquecimento processual que escape à prisão da significação estabelecida a priori.
O trecho abaixo em tom de crítica aos discursos religioso e científico em relação à
47
homossexualidade – via questionamento da dicotomia homossexual/heterossexual,
bem como a referência ativo/passivo – deixa claro esse aspecto:
Ao ser pego abraçado a um colega no banheiro, abocanhando a carne de
seus lábios, alisando seus cabelos ondulados, ele era o culpado – já o
colega, não, nem tanto; ele, sim, apontado como o que desviarão desejo de
outros jovens das “metas proliferantes da espécie”. Por que era ele esse
emissário de um mundo que os discursos dos padres condenavam ao
silêncio sepulcral? Quem era ele afinal, por que se roía a ponto de o
levaram para o Sanatório para ali se revolver impregnando-se de choques
insulínicos, como se só na convulsão pudesse remediar um erro que ainda
não tivera tempo de notar dentro de si? (NOLL, 2002, p. 22)
O desejo de saltar as “metas proliferantes da espécie” faz com que João
recrie espaços sociais, produzindo novos modos de subjetividade que “se
instaura[m] no cruzamento de múltiplos componentes relativamente autônomos uns
em relação aos outros e, se for o caso, francamente discordantes” (GUATTARI,
1999, p. 18). Essas discordâncias também estão representadas nas realidades
discrepantes com as quais João se depara em suas viagens pelos Estados Unidos e
pela Itália. É na deriva e na instabilidade do desejo como modo de ser e de estar no
mundo, ou seja, na precariedade de seus relacionamentos (sejam eles com
pessoas, seja com nações) que “surgirá [no protagonista] um desejo de fusão, de
comunhão e de comunidade que indicará novos campos da afetividade a serem
explorados” (VIDAL, 2007, sem paginação), tornando possível a reinvenção de
práticas de solidariedade e de encontro.
Os personagens se mostram, assim, contrários às representações do
homoerotismo como decorrência do “individualismo ou do narcisismo que alguns,
com muita pressa, crêem descobrir em nossas sociedades” (MAFFESOLI, 1997, p.
243). Christopher Lasch, sem dúvida, um dos autores que mais se destaca entre
aqueles que tendem a equacionar homoerotismo e narcisismo, afirma, em um
diagnóstico
absolutamente
pessimista
e
sombrio
a
respeito
das
novas
sociabilidades, que
as novas idéias sobre a liberalização sexual – a celebração do sexo orgia,
da masturbação e da homossexualidade – brotam do medo predominante
com relação à paixão heterossexual e até ao próprio intercurso sexual. O
repúdio à monogamia expressa uma compreensão acurada dos efeitos
destrutivos da extensão do individualismo possessivo no âmbito emocional.
No entanto, ele também expressa uma rejeição da intimidade e uma busca
do sexo sem emoção – a “foda sem paixão”, em que “ninguém está
querendo provar alguma coisa, sem querendo conquistar algo no outro”.
(LASCH, 1991, p. 159)
48
Outros autores, como Elisabeth Roudinesco (2003), também têm utilizado o
conceito psicanalítico de narcisismo para entender os novos modos as relações
homoeróticas, ainda que, nas análises da historiadora francesa, tal categoria não
tenha assumido um tom de “crítica cultural psicologizante e moralizante” (JAMESON,
1996, p. 53), a qual Fredric Jameson, por exemplo, atribui a Lasch. Tais
perspectivas são, seguramente, tributárias de uma moral das condutas sexuais
associadas à conjugalidade. Entretanto, vale dizer que nem sempre a gramática
moral dos comportamentos sexuais esteve vinculada ao ideal conjugal (COSTA,
1992; FOUCAULT, 1988a). Na Grécia clássica, as éticas sexuais estavam ligadas,
especialmente, aos amores entre homens e tomavam como padrão não a
conjugalidade, mas as relações homoeróticas. A reflexão moral dos gregos sobre o
comportamento sexual não procurou justificar interdições, mas estilizar uma
liberdade: aquela que o homem “livre” exerce em sua atividade, escreve Foucault
(1988b, p. 89).
Em Berkeley em Bellagio, o desejo de contato ocorre, em muitos momentos,
por meio de encontros furtivos, sutis e inesperados entre homens. Palavras não são
pronunciadas; contudo, olhares falam e criam novas formas de linguagem e de
comunicação. O trecho abaixo, oportunamente selecionado para evidenciar o
aspecto que acabo de assinalar, descreve o momento em que João, ao ouvir a
música tocada por um pianista italiano em um de seus passeios e referindo-se a si
mesmo em terceira pessoa, se põe a pensar:
O pianista (...) foi à janela pálido que estava, e deu de cara com o homem
que vinha da floresta tentando ouvir o Liszt que ele gerava acalorado.
Ficaram parados, sem falar, sem nenhum gesto, nenhum sinal em que
pudessem se comunicar, saber a identidade um do outro, suas intenções,
seus vícios, traumas... (...) Por que o pianista não voltava ao seu piano, o
escritor ao seu abrigo na Fundação americana, e nada carecesse de
maiores explicações regadas a gemido, risos, palpitações e alívios? (NOLL,
2002, p. 33)
Concordando com Jurandir F. Costa (1992, p. 96), podemos dizer que, nas
relações homoeróticas, sobretudo, nas descritas até então, domina o ideal da
“mínima fala” e da inflação de gestos, sinais e atos, de modo a indicar com a
máxima precisão onde está o desejo. Os encontros furtivos, sutis e inesperados
entre homens apontam para outra gramática que, certamente, não pode ser
apreendida, quer por um “olhar intimista”,34 quer por um olhar em cujas lentes esteja
o ideal de conjugalidade e/ou de família. Nesses encontros, entrevêem-se outras
34
Cf. SENNETT, 1988.
49
possibilidades de expressão do desejo no seio de uma sociedade em que toda
palavra sobre o homoerotismo carrega um tom preconceituoso e/ou de dominação.
Trata-se de uma tentativa de relação sexual sem palavras, isto é, sem discursos
sublimatórios. Assim, pode-se dizer que Berkeley em Bellagio privilegia descrições
sensoriais numa tentativa de expandir o “real” para além da palavra.
O ideal de amor romântico tende a condicionar o afeto e o sentimento à
noção de tempo e ao que, na relação sexual, excede ao contato físico. Para nossa
sociedade, a única linguagem do afeto e do amor é aquela calcada no ideal de amor
romântico, que, entretanto, se encontra “temperado pelo romantismo conformista, de
acordo com os interesses familialistas da sociedade burguesa em geral” (COSTA,
1998, p. 70). Vivemos, dessa forma, sob a tirania do logos em que só a palavra pode
revelar a verdadeira linguagem do amor e do afeto. O encontro do escritor com o
pianista italiano aponta para uma relação entre homens cujas línguas e
nacionalidades não coincidem, nem mesmo o status social ou seus conhecimentos
parecem partilhados. No entanto, a despeito das diferenças, conseguem inventar
formas de comunicação, nas quais se mesclam desejo e potencialidades de
relacionamento a ser descobertas:
(...) ali, parados feito estátuas, sem demonstrar o menor desejo de
participar da prosa apressada que o visitante noturno poderia estar na
iminência de gerar. Mas na verdade enquanto eu estivesse ali, parado,
olhando aqueles dois afantasmados, eu estava pronta a deter no tempo, a
economizar de forma radical minhas batidas cardíacas, ser apenas mais
um elemento na floresta, um corpo que não precisasse baralhar por mais
um dia (...) (NOLL, 2002, p. 35)
A sexualidade de João é deslocada rumo a novas experiências e a novos
enlaces sociais, fundando uma estética da existência e uma ética dos prazeres, e
não do sexo. Isso porque ali estão presentes intensidades afetivas marcadas por
relações mútuas, questões abordadas com mais detalhe a seguir. Por agora, é
suficiente dizer que o homoerotismo é, dessa perspectiva, a comprovação de que
existe uma história universal, que não é da necessidade, mas sim da contingência.
Em outras palavras, a narrativa instaura a relativização de qualquer modo de pensar
que queira dizer a verdade última a respeito do homoerotismo.
UMA ÉTICA E UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA?
Há, em toda a obra, conforme argumentei, uma recusa de se criar para si uma
narrativa coerente e orientada por um senso de história, negando, assim, qualquer
ontologia ou metafísica em torno do sujeito. Ao rejeitar a busca em construir para si
50
uma identidade estável ancorada nas representações sociais hegemônicas, João,
Leo e outros personagens de Berkeley em Bellagio conseguem se “desprender” das
relações de poder, aos quais os padrões identitários, em geral, estão subordinados.
Os personagens parecem dissolver os limites entre vida e arte, substituindo a
autoridade pela experiência. Por isso, gostaria de reconduzir parte da discussão
precedente, sobretudo, no que concerne aos experimentos relacionais, à luz da
noção estética da existência, nos termos propostos por pensadores como Nietzsche
e Foucault.
Em O nascimento da tragédia, de 1872, Nietzsche inicia sua crítica à
metafísica dos conceitos, cuja matriz ocidental se encontra no pensamento lógico e
dialético de Sócrates e Platão. É o próprio filósofo alemão que, dezesseis anos
depois em O crepúsculo dos ídolos, ao reportar-se aos escritos de 1872, esclarece
seu significado: “[...] reconheci em Sócrates e em Platão sintomas de decadência,
instrumentos da decomposição grega, pseudogregos, antigregos” (NIETZSCHE, s/d,
p. 23). As estratégias de Nietzsche para romper com a idéia de universalidade e de
unicidade da tradição filosófica moderna do cogito cartesiano e da tradição da
renúncia cristã se constituíram, sobretudo, por meio da valorização da arte. Para o
pensador alemão, a tragédia grega reunia o equilíbrio apolíneo e a embriaguez
dionisíaca e, com isso, conseguia tornar a arte a grande força criadora, o único valor
possível. Desse modo,
O nascimento da tragédia tem dois objetivos principais: a crítica da
racionalidade conceitual instaurada na filosofia por Sócrates e Platão; a
apresentação da arte trágica, expressão das pulsões artísticas dionisíaca e
apolínea, como alternativa à racionalidade. (MACHADO, 1999, p. 11)
A crítica de Nietzsche (2007) ao que, em uma linguagem mais
contemporânea, se convencionou chamar de logocentrismo evidencia que o
importante não é buscar a essência última das coisas, própria da atitude socrática,
ou encontrar a verdade mais profunda por trás das aparências, mas sim reinventar o
real, transfigurar a própria vida, transmutar todos os valores. O interesse de
Nietzsche pelas potencialidades oferecidas pela arte culmina em uma aproximação
teórica, cada vez maior, entre arte e vida, já que “como fenômeno estético a
existência ainda nós é suportável, e por meio da arte nos são dados os olhos e
mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal
fenômeno.” (NIETZSCHE, 2001, §107, grifos do autor). Ao que acrescenta a idéia de
que “necessitamos de toda arte exuberante, flutuante, zombeteira, infantil e
51
venturosa, para não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso
ideal exige de nós”.35
Assim, o pensador alemão destrói a lógica das essências, das
identidades, dos fundamentos e das verdades absolutas, tendo em vista que a arte
não tem um compromisso com a verdade ou, ao menos, não deveria ter. Sendo a
arte um conjunto de técnicas a partir das quais os artistas criam e constroem suas
obras, a “vontade de criação” se sobrepõe à “vontade de verdade”; essa última típica
dos metafísicos. Por isso, uma estética da existência, em termos nietzschianos,
resulta da aliança complementar que existia nas experiências antagônicas dos
deuses Apolo e Dionísio, tão bem representadas na tragédia grega antes de
Sócrates. A estética da existência em Nietzsche nos convida a adotar uma atitude
artística diante dos fenômenos humanos.
A estética da existência em Foucault se aproxima, em muitos aspectos, à
concepção do filósofo alemão quando, por exemplo, o pensador francês se interroga
sobre como o fenômeno artístico tem se dado nas sociedades ocidentais:
O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se
transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à
vida; que a arte seja algo especializado ou feito por especialistas que são
artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar em uma
obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de
arte, e não a nossa vida? (FOUCAULT, 1995, p. 261)
Entretanto, é importante ressaltar que a estética da existência foucaultiana
não se constitui apenas pela sua dimensão propriamente artística, mas também pelo
seu caráter de um programa ético-político (ORTEGA, 1999, p. 52). A estética da
existência, para o filósofo francês, está relacionada à possibilidade de constituição
de novos estilos de vida baseados em uma ética capaz de criar subjetividades mais
libertárias e, a partir delas, novas formas de sociabilidade. Ao evidenciar o caráter
ético-político de sua proposta, Foucault, para quem a ética é um modo de relação do
indivíduo consigo mesmo (FOUCAULT, 1988b, p. 219), revela que é somente nesse
sentido que os sujeitos podem se reinventar, de modo a não precisar recorrer às
identidades criadas pelo sistema de poder que institui a priori as possibilidades das
formas que as relações entre indivíduos podem assumir no âmbito da sociedade.
Trata-se de uma reinvenção do sujeito através de práticas de si, e não da
constituição de uma hermenêutica do desejo ou do “eu”, como quer a psicanálise,
35
NIETZSCHE, 2001, §107.
52
por exemplo. Em outras palavras, uma negação da injunção délfica de descoberta
da verdade de um sujeito.
A reinvenção de si pode estar presente na amizade, à qual Foucault relaciona
a homossexualidade: “a amizade tem, para Foucault, principalmente o sentido de
uma amizade homossexual”.36 O projeto foucaultiano de reabilitação da amizade tem
como intuito incorporar o componente eros nas relações de amizade, suprimido
desde a Antiguidade. As relações de amizade37 são, em geral, marcadas pela
espontaneidade, igualdade e pelo controle interativo, bem como pela reciprocidade
simétrica e pela não fixação num contexto determinado e, conseqüentemente, pela
pouca normalização e sanção exterior. A amizade permite que o indivíduo se torne o
arquiteto de sua rede de relações sociais, em um universo construído por ele
mesmo. A amizade constitui, dessa forma, uma alternativa às velhas formas de
relação institucionalizadas e, ao vinculá-la à questão da homossexualidade, Foucault
afirma que
Aquilo para o que se orientam os desenvolvimentos do problema da
homossexualidade é o problema da amizade. (...) Homens de idade
notavelmente diferentes, que código terão eles para se comunicarem entre
si? Eles estão um em face do outro sem armas, sem palavras
convencionais, sem nada que possa reassegurá-los sobre o sentido do
movimento que os leva um para o outro. Terão que inventar de A a Z uma
relação ainda sem forma e que é a amizade: quer dizer a soma de todas as
coisas pelas quais pode-se dar prazer um ao outro (FOUCAULT, 2008,
sem paginação)
O potencial crítico da amizade está no fato de que ela “é, no fundo, um
‘programa vazio’, outra denominação para uma forma de vida cuja importância
reside nas inúmeras formas que pode assumir, uma relação ainda por imaginar,
aberta, na qual cada indivíduo deve inventar sua própria ética da amizade.”
(ORTEGA, 2002, p. 96). É, portanto, nesse sentido que inscrevo a obra Berkeley em
Bellagio, ou seja, como uma que problematiza as formas tradicionais de
sociabilidade a partir da invenção e intensificação de redes de amizade, no sentido
proposto por Foucault, isto é, como “a soma de todas as coisas através das quais se
obtém prazer mútuo”.38 Trata-se de uma obra que representa a possibilidade de se
repensar e se reutilizar os espaços abertos pela perda de vínculos orgânicos
causados pela suposta fragmentação pós-moderna e pelas estruturas e instituições
burocráticas, que limitam consideravelmente o tecido relacional.
36
ORTEGA, 1999, p. 165.
37
Idem, ibidem, p. 165.
38
FOUCAULT, 2008, sem paginação.
53
Reabilitar a amizade como espaço de experimentação e negociação de
subjetividades requer uma crítica ao “imaginário familialista”, que, conforme vimos,
aparece na narrativa quando, de volta ao Brasil, João reencontra Léo, seu antigo
namorado, e Sarita, filha de Leo, passando a viver juntos. Aí vimos como esses
experimentos
relacionais
ressignificam
ambiguamente
os
territórios
da
conjugalidade, da família e do amor. Entretanto, a crítica ao imaginário familialista
também está presente nas descrições dos encontros furtivos entre homens, na
busca de novos núcleos a partir dos quais se possa estabelecer outras formas de
encontro e de contato com o outro. São relações que se desenvolvem fora dos
quadros normativos, de onde decorre a potencialidade para criação de entrelugares, de formas intersticiais de subjetivação nas quais se entrevêem atitudes
transgressoras:
Quem é esse ragazzo, hein?, e quem será esse homem aqui que já não se
reconhece ao se surpreender de um golpe num imenso espelho ornado em
volta de dourados arabescos, um senhor chegando à meia-idade? E se
ainda quisesse algum prazer da carne a hora era essa, o ragazzo o
esperava desde sempre, estava ali a postos, calça preta, colete listrado em
branco e preto, a repetir “prego”, “prego, mi signore”, sim, um bom signore,
geralmente sem ter onde cair morto em sua própria terra, mas hoje um
escritor famoso a receber convites do mercenato internacional. (NOLL,
2002, p. 15)
Para prosseguirmos com nossa análise, é importante destacar que a
ideologia familialista está tão enraizada no imaginário ocidental que nem mesmo
nossa concepção de amigo escapou dela e foi, por isso, subsumida à figura do
irmão. É inegável que a semântica familialista da amizade aponta para a igualdade e
para a ausência de hierarquias de poder entre os sujeitos, configurando-se, dessa
forma, uma relação horizontal, pois, conforme argumentou Kehl (2000), a fratria tem
a igualdade política entre os indivíduos como sua condição. Entretanto, Derrida
(1994) e Ortega (1999, 2002) já evidenciaram, de modo bastante convincente, que,
subjacente à noção do amigo como irmão, se esconde uma lógica perversa de
desumanização e de intolerância. O tom familialista presume intimidade e
homogeneidade entre os sujeitos e, conseqüentemente, a supressão da alteridade e
da diferença, uma vez que o amigo passa a ser um outro eu. Por isso, para Derrida,
A “boa amizade” supõe desproporção. Ela exige certa ruptura em
reciprocidade ou igualdade, bem como a interrupção de toda fusão ou
confusão entre você e mim. (...) A “boa amizade” nasce da desproporção:
quando você estima ou respeita o outro mais que a si mesmo. (...) A “boa
amizade”, seguramente, supõe certo ar, certo toque de intimidade, mas
“sem uma intimidade propriamente dita”. Ela nos pede que nos
abstenhamos “sensatamente”, “prudentemente” de toda confusão, de toda
54
permutação entre as singularidades de você e mim. (DERRIDA, 1994, p.
81, tradução minha)
Assim, pode-se dizer que os encontros de João com homens de língua e
nacionalidade diferentes, homens cujas intenções, vícios ou traumas sequer
conhecia, conforme descrevi, acenam para rupturas com as noções de reciprocidade
ou de igualdade como fundamento para o contato com o outro. Esses encontros se
dão entre indivíduos cujas línguas não coincidem; nem mesmo o status social ou
seus conhecimentos parecem partilhados, mas, a despeito dessas diferenças,
conseguem criar novas formas de comunicação, nas quais se mesclam intensidades
afetivas. As descrições de seus encontros sexuais escapam ao regime da
heterossexualidade compulsória que, como norma padrão para os relacionamentos
entre indivíduos, interrompe relações diferentes daquelas previamente estabelecida
por sua lógica. E, vale ainda lembrar, o relacionamento entre João e Léo é marcado
pelo cuidado mútuo, mesmo tendo situações de vida tão discrepantes:
Quanta exultação seria [João] capaz de suportar? Ele precisava mesmo
era correr atrás do que o manteria inteiro, ou então que não caísse
novamente à porta do banheiro vítima de uma aneurisma nada
comprovado, e sem ter Léo para ajudá-lo, levá-lo até o pronto-socorro e se
encarregar dele pelo resto de uma relação já a ponto de apagar. De fato,
aquela assistência de Léo ao seu corpo temporariamente combalido era
uma desdobrada despedida. (NOLL, 2002, pp. 12-13)
E, mais adiante, revela:
Certas noites Léo vinha para o meu sofá, fechava a porta do quarto para
não acordar a garota, e vinha ao meu encontro no sofá. Muitas vezes só
para um abraço, nada mais que isso –, a vida se mostrava agora tão
parcimoniosa que todos ali ficaram contentes se tivesses à sua espera não
aquele apartamento, mas a cela de um religioso medieval, bem algo assim,
uma vida que nos oferecesse apenas uma refeição diária, um copo d’água
sempre que necessitássemos, um banho, uma roupa lavada no fim do dia,
o sono nu, de manha novamente seca para que usássemos. (NOLL, 2002,
p. 92)
A busca pela experimentação de novas formas de relacionamento e de
prazer, recortadas pelo desejo e, conseqüentemente, pela intensificação das
relações sociais, passa pela descoberta de mundos improváveis, de mundos a
serem explorados. Por isso, vale dizer que a relação entre João e Léo não diz
respeito a uma amizade-amorosa ou de uma pretensão de conjugalidade e/ou de
família, no sentido tradicional que se costuma atribuir a esses termos. Trata-se antes
de descobertas que em alguns momentos causam medo e ambivalência e que, por
isso, revelam situações onde o amor entre rapazes é sempre um devir a ser
inventado de “A a Z”. Isso pode ser percebido quando, por exemplo, o narrador
descreve:
55
(...) ele voltaria para casa para se enamorar de um homem mais jovem,
nem tanto, gerente, de uma farmácia em Porto Alegre, (...) ele andava
agora com saudades do caso que tivera com esse rapaz e que acabara de
se extinguir (ou não?) – ah, sua memória depois da queda! – saudades do
caso, sim, e não exatamente do seu sentimento teimosamente preambular
que nutria por Léo (...), o cara que lhe emprestava um pouco da prática da
vida: em quem confiar ou não, como conseguir o que não atinava pedir por
algum orgulho, rarefação oral, medo de não ser aceito e não sei que mais.
(...) eles se sentiram impossibilitados de resistir à tirania da rotina os
apartamentos um do outro até o ponto em que voltar para casa tornava-se
um martírio, mesmo que na hora anterior ao desenlace (houve?) os dois
tenham ido para cama (...) apenas para selar com o jorro amarelado a
história deles dois, nada mais. (NOLL, 2002, pp. 20-21)
Estaríamos diante do “homossexual astucioso”?39 De “micropolíticas”, no
sentido guattariniano (GUATTARI, 2005)? De uma política que se faz pela
inventividade, pela experimentação, pela criação de mundos improváveis, pela
busca de espaços para a singularização dos laços afetivo-sexuais? Os encontros
eróticos entre homens que descrevi são repletos de trocas de conhecimento e de
aprendizagens nos quais os amigos se modificam, aguçam sonhos e exploram o
desconhecido. Trata-se de espaços para a experimentação, no qual o encontro com
o outro, em sua alteridade radical, irrompe o imprevisto, gerando fissuras e
questionamentos aos modelos dominantes:
(...) encabulado se alguém do meio cultural me visse, por estar gastando à
toa o meu tempo histórico, sim, estava na moda à época se falar em tempo
histórico, o tempo em progressão, usado sobretudo para melhorar os dias
de necessidade que corriam, até que se pudesse reviver a lenda de um
reino onde folgaríamos plenamente suprimidos, (...) uma humanidade
novamente coesa em harmonia pela selva, (...) um paraíso mais à frente,
quem sabe além daquele rio, logo após aquela árvore – venha! Eu e Léo,
porém, começávamos a compreender (...) que o melhor mesmo era a
paciência, preparar o dia seguinte sem pensar nele como um esposo que
necessariamente nos dará mais do que pedimos. O que é que pedíamos,
hein? Antes de me responder (...) Léo corria para atender Sarita, que
chorava acordando da sesta. (NOLL, 2002, p. 93)
Das descrições que apresentei de João, é factível dizer que sua erótica “nãodisciplinada” desencadeia uma economia sexual, cujos objetivos parecem se
orientar para a multiplicação dos centros de prazer corporal, de modo a escapar à
sexualidade presa ao prazer genital e aos padrões identitários que cristalizam papéis
e comportamentos sexuais. O corpo de João se transforma, assim, em um espaço
de experimentação de novas intensidades, um espaço para a produção de “prazeres
39
Quem o define é Silviano Santiago: “pergunto se o homossexual não pode e dever ser mais
astucioso? Se formas sutis de militância não são mais rentáveis do que as formas agressivas? Se a
subversão através do anonimato corajoso das subjetividades em jogo, processo mais lento de
conscientização, não condiciona melhor o futuro diálogo entre homossexuais e heterossexuais, do
que o afrontamento aberto por parte de um grupo que se auto-marginaliza, processo dado pela
cultura norte-americana como mais rápido e eficiente?” (SANTIAGO, 2004, p. 202)
56
perverso-polimorfos”. Isso porque a ética da amizade procura jogar dentro das
relações de poder com um mínimo de dominação e criar um tipo de relacionamento
intenso e móvel, cujas linhas de força se orientam no sentido de evitar que as
relações de poder se transformem em estados de dominação. Em busca de uma
multiplicidade libidinal e, como conseqüência disso, a configuração de uma nova
geografia do prazer, o corpo de João se torna um dos principais pontos de
resistência ao poder; sua sexualidade, uma possibilidade de que novas relações
possam ser “estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas”.40
Por isso, antes de ser um narcisismo ou um mero culto ao prazer, a estética
da existência é uma abertura à alteridade, na medida em que afirmar a diferença e o
singular possibilita que o sujeito se torne um outro para si mesmo. Por isso, convém
dizer que “a [atitude] estética relativiza (...) o ego que lhe gerou [de tal maneira que]
a exacerbação do sentimento individual transfigura-se numa cultura do sentimento
negando o que lhe serve de suporte” (MAFFESOLI, 1997, p. 261). Esse trabalho que
alguém faz em si mesmo para transformar-se só pode ser realizado em relação a um
outro: “sem a presença do outro não se pode produzir nenhum auto-relacionamento
satisfatório”.41 Em outras palavras, a estética da existência não é uma prática ex
nihilo, mas algo que só se dá a partir da relação com o outro, cujo resultado é
sempre da ordem do improvável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse jogo de suspensão das coordenadas ordinárias da experiência
sensorial – quer pela (re)(des)estruturação das redes de afinidades entre espaços e
tempos, sujeito e objeto, universal e singular –, a narrativa se torna locus para a
problematização de questões relacionadas à representação da alteridade e à
construção social da diferença. Com isso, fica patente que a dimensão política do
romance está nas fissuras causadas nos modelos dominantes de família e de outras
relações afetivo-sexuais institucionalizadas pela heterossexualidade compulsória; na
busca de João por “uma instância e (...) uma capacidade de enunciação que não
eram identificáveis num campo de experiência dado, cuja identificação portanto
caminha a par com a reconfiguração do campo da experiência”.42
40
FOUCAULT, 2008, sem paginação.
41
ORTEGA, 1999, p. 126.
42
RANCIÈRE, 1996, p. 42.
57
A estética se torna o lugar de emancipação das normas de representação e,
como conseqüência, das mutações das formas de percepção e de organização da
realidade. Ou, em termos mais precisos, observa-se uma contestação das
categorias, que, como estruturas estruturantes das formas cotidianas de percepção,
delimitam posições e lugares de privilégios aos heterossexuais. O romance rompe
com os lugares pré-estabelecidos, reconfigurando os espaços sociais e deslocando
práticas e desejos do lugar que lhes fora designado. Em outras palavras, “faz ver o
que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha barulho, faz ouvir
como discurso o que só era ouvido como barulho”.43
Assim, ao instaurar novas maneiras de pensar o desejo e as relações afetivosexuais entre homens, o romance imprime novos sentidos aos marcadores sociais
da diferença. Disso decorrem novos espaços morais, visto que no tocante às
questões afetivo-sexuais há sempre “uma íntima ligação entre a construção
identificatória do eu e alguma espécie de orientação de sentido moral: a dinâmica
dos gêneros (seja cultural ou subjetiva) se constitui em elemento mediador, difusor,
desses conteúdos ou descrições morais, na medida em que define parâmetros para
cada sujeito se orientar no espaço moral” (MATOS, 2002, p. 113). Berkeley em
Bellagio se torna uma obra política não apenas devido à mensagem que veicula com
relação à temática social, mas, sobretudo, na medida em que suspende as
coordenadas ordinárias da experiência sensorial, (re)estruturando nossas formas de
percepção.
43
RANCIÈRE, 1996, p. 42.
58
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59
A REPRESENTAÇÃO DA MATERNIDADE EM
MARY WOLLSTONECRAFT E MICHÈLE ROBERTS
Janaina Gomes Fontes*
RESUMO: Neste artigo, analiso a representação da maternidade nos romances Maria, or the Wrongs of
Woman e Mary, a Fiction, da escritora inglesa do século XVIII Mary Wollstonecraft, e no romance Fair
Exchange, da escritora inglesa contemporânea Michèle Roberts, com o auxílio de textos diversos que
exemplificam como o papel da mãe foi construído ao longo do tempo e dos estudos feministas, que
contribuem, cada vez mais, para a desconstrução dos mitos patriarcais sobre a maternidade.
PALAVRAS-CHAVE: maternidade, feminismo, literatura.
O nascimento do ser humano sempre foi permeado por sentimentos
complexos, muitas vezes opostos, como fascinação e medo. A maternidade,
experiência
que
abrange
várias
transformações
físicas,
psicológicas
e
comportamentais que ocorrem antes, durante e após o parto, vem sendo
considerada de formas diferentes ao longo do tempo, nas diversas sociedades,
atingindo os extremos do sagrado e do ameaçador/assustador.
O psicólogo jungiano e antropólogo alemão Erich Neumann trabalha com o
arquétipo do Grande Feminino, mais especificamente, o da “Grande Mãe”, por meio
da análise de um vasto material mitológico e estético de diferentes grupos culturais
em diferentes épocas, abordando tanto o caráter positivo desse arquétipo (“A Mãe
Bondosa”), como o negativo (“A Mãe Terrível”, “A Deusa Terrível” etc.). Ele explora
de forma rica e detalhada como se desenvolveu, nos povos primitivos, a
identificação das mulheres à natureza e os mistérios advindos dessa identificação.
Além disso, mostra como essa correlação passou a ser compreendida e modificada
ao longo dos séculos, chegando até hoje, infundida nos símbolos que permeiam a
vida da humanidade. Segundo Neumann e a feminista americana Adrienne Rich, há
fortes indícios de que nas primeiras sociedades era cultuada a “Grande Deusa”,
criadora de tudo o que existe, tendo o Deus masculino criador surgido muito tempo
depois.
Na década de 80 do século XX, ao publicar um estudo sobre o processo
histórico da maternidade do século XVI ao XX, a filósofa francesa Elisabeth Badinter
considera que a maternidade ainda é um tema sagrado, ao descrever as reações
apaixonadas que o seu livro Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno (1985)
provocou. Segundo ela, “continua difícil questionar o amor materno, e a mãe
permanece, em nosso inconsciente coletivo, identificada a Maria, símbolo do
indefectível amor oblativo”(BADINTER, 1985: 9).
Na década de 90 do século XX, a historiadora Mary Del Priori, na introdução
de seu livro Ao Sul do Corpo (1993), que constitui um estudo histórico sobre as
•
*
Mestre em literaturae doutoranda na mesma área pela Universidade de Brasília – UnB.
60
condições das mulheres e, sobretudo, sobre a maternidade no Brasil colonial,
também atenta para a presença marcante da importância da maternidade na
mentalidade histórica. A autora demonstra a força do conceito da “santa-mãezinha”,
ou seja, da mãe bondosa, dedicada e assexuada, construído na época colonial
brasileira e que se enraizou no imaginário social, atravessando os séculos e
chegando aos nossos dias:
Quatrocentos anos depois do início do projeto de normatização, as santasmãezinhas são personagens de novelas de televisão, são invocadas em
pára-choques de caminhão (“Mãe só tem uma”, “Mãe é mãe”), fecundam o
adagiário e as expressões cotidianas (“Nossa Mãe”, “Mãe do céu”); (...) A
maternidade extrapola, portanto, dados simplesmente biológicos; ela possui
um intenso conteúdo sociológico, antropológico e uma visível presença na
mentalidade histórica. (DEL PRIORE, 1993: 18)
Sentimentos tão variados e extremos de origem remota refletiram-se nos
discursos religiosos, científicos, literários, dentre outros, produzindo explicações,
representações e preceitos muitas vezes desfavoráveis, e não raro contraditórios, às
mulheres e à maternidade; isso se deu, principalmente, à medida em que o
patriarcado comparava de forma distorcida a capacidade reprodutiva das mulheres
às forças da natureza. Desde a Antigüidade, textos filosóficos afirmam a
inferioridade das mulheres e justificam a conseqüente necessidade de sua
submissão e controle. Para Aristóteles, a mulher é considerada personagem
secundária na concepção. Segundo Rosemary Agonito, que faz uma compilação das
ideias de pensadores importantes da humanidade sobre as mulheres em History of
Ideas on Womem (1977), Aristóteles argumenta que a mulher é um ser mutilado ou
um homem incompleto. Na reprodução, o homem contribui com a essência e a alma,
enquanto que a mulher só fornece a nutrição necessária para manter o embrião. Ou
seja, é o homem, e não a mulher, que cria a vida: “A mulher é um homem mutilado,
e a ‘catamenia’ é sêmen, apenas não pura; pois há apenas uma coisa que ela não
tem, o príncipio da alma (...) As mulheres, então, fornecem a matéria, os homens o
princípio do movimento.”44 (AGONITO, 1977:48) Essa “deficiência” torna a mulher
fisicamente mais fraca, menos capaz de pensamento racional e subordinada ao
homem. Dessa forma, para o filósofo, as mulheres são naturalmente inferiores aos
homens e, por isso, devem submeter-se à autoridade masculina: “os homens são
por natureza superiores, e as mulheres inferiores; e um governa e o outro é
governado.” (AGONITO, 1977:51)
44
Neste trabalho, todas as traduções de textos publicados em inglês são de minha responsabilidade.
61
A teologia cristã, por meio dos textos bíblicos, trouxe conseqüências danosas
para a imagem das mulheres ao retratar que a criação feminina foi feita a partir de
uma costela do homem, e ao descrever a desobediência de Eva, que recebeu como
castigo, além de outros, a dor do parto e a dominação pelo marido. Aliás, Mary Del
Priori e Adrienne Rich mostram que durante séculos essa ideia perdurou no discurso
médico, que via as dores do parto como um sofrimento necessário pelo qual as
mulheres deveriam passar como castigo pelo pecado original. Isso resultava no
desinteresse dos médicos em aliviar as dores do parto para as mulheres e numa
atitude apática diante da situação da parturiente.
A identificação das mulheres à natureza e a conseqüente naturalização dos
comportamentos relacionados à sexualidade feminina e à maternidade foram
distorcidos e perpetuados de uma forma negativa para as mulheres, de acordo com
os interesses do patriarcado. É o que ocorre, por exemplo, quando pensamos sobre
o conceito de instinto materno. Segundo Elisabeth Badinter, a partir do século XVIII,
além do discurso médico, o filosófico e o econômico passaram a defender de forma
enfática que a mãe assumisse a responsabilidade de cuidar dos filhos, agindo de
acordo com seu instinto, para diminuir a mortalidade infantil no interesse do Estado
francês. Em comparação com a situação brasileira, Del Priori enfatiza também o
desenvolvimento da medicina no Brasil na época colonial, que descobriu nos corpos
femininos uma “fisiologia moral que justificasse a maternidade e que suprisse as
demandas de um Estado que relacionava aumento de produção com aumento de
braços”. (DEL PRIORI, 1993: 334)
Segundo Del Priori, no Brasil colonial, os discursos moralistas e religiosos a
favor da mãe santa e dedicada, que educa seus filhos de forma cristã e cuida da
casa com zelo e amor, corroborados pelo discurso médico, segundo o qual a função
natural da mulher era a procriação, acabaram por normatizar o comportamento das
mulheres. Os primeiros séculos da colonização foram marcados por grandes
massas, sobretudo de homens, que desbravavam as terras brasileiras e cujas
condutas sexuais, bastante “promíscuas”, desagradavam os interesses do Estado
português. Para adequar as necessidades de povoamento aos valores morais e
religiosos e aos interesses econômicos da metrópole, era necessário que as
mulheres se casassem, constituíssem família e ficassem em casa, fazendo todo o
trabalho de base para o estabelecimento da vida familiar, o que consequentemente,
influenciaria os habitantes da Colônia para o trabalho organizado e produtivo e para
a aceitação e difusão do catolicismo. As santas mães, assim, integravam a família
ao processo de formação da sociedade capitalista na Idade Moderna.
62
Ainda segundo Badinter, a defesa do instinto materno pela ciência culminaria,
no século XX, com a psicanálise, quando Freud mostra que o desenvolvimento de
uma mulher normal leva-a a ser mãe. Em um ensaio sobre as mulheres (A
Feminidade), Freud atribui o desejo de ter um filho à inveja que a mulher teria do
órgão sexual masculino. Segundo Freud, o primeiro objeto amoroso do menino é a
mãe e continua a sê-lo durante toda a vida. O menino possui inicialmente um grande
amor pela mãe; sente ciúmes e rivalidade em relação ao pai, desenvolvendo, assim,
o complexo de Édipo. Ao descobrir que a mãe não possui o órgão sexual masculino,
o menino tem medo de vir a ser castrado como ela e abandona o complexo de
Édipo. Não podendo eliminar o pai para ficar com a mãe, o filho a abandona e se
junta ao pai, que representa o poder. No entanto, o menino volta a ter uma mulher
como objeto amoroso que, para Freud, estaria substituindo o seu amor pela mãe. O
primeiro objeto amoroso da menina também é a mãe. No entanto, ao perceber que a
mãe não possui o órgão sexual masculino, ao descobrir que como ela a mãe
também é castrada, a menina sente-se incompleta e repele seu amor à mãe. Assim,
explica-nos Freud, com essa descoberta “a mulher fica desvalorizada para a menina,
o mesmo que para o menino e talvez para o homem” (FREUD, 1976: 133); essa
inveja possui influências e conseqüências em toda a vida da mulher. Depois dessa
separação hostil contra a mãe, a menina volta-se para o pai, talvez com o objetivo
de conseguir um órgão sexual masculino. Porém, a situação feminina se estabelece
quando esse desejo é substituído pelo de ter um menino. Assim, a mulher “normal”
adviria de um “complexo de castração” e, obrigatoriamente, deveria ser mãe
(preferencialmente de um menino, o qual teria o pênis que lhe falta). Percebe-se,
dessa forma, que o argumento de Aristóteles sobre as mulheres como seres
incompletos possui claro eco na teoria freudiana, correlação que mostra como certas
ideias negativas sobre as mulheres podemperdurar por séculos e séculos.
Percebe-se, então, que a maternidade, assim como outros assuntos
relacionados às mulheres, ainda tem sido utilizada para defender os interesses do
patriarcado, muitas vezes reforçando um discurso androcêntrico e misógino. Dessa
forma, tem sido uma questão que carece de novos estudos, principalmente sob a
perspectiva das mulheres. Em várias áreas do conhecimento, podemos identificar
até mesmo um silenciamento dos aspectos relacionados à maternidade. É o que
pude observar nos estudos que fiz na área de literatura, encontrando lacunas, sinais
de censura moralista e de mitificação dos aspectos relacionados às mães e às
mulheres em geral. Para Badinter, “ao buscar nos documentos históricos e literários
a substância e a qualidade das relações entre a mãe e o filho, constatamos seja
63
indiferença, sejam recomendações de frieza, e um aparente desinteresse pelo bebê
que acaba de nascer”. (BADINTER, 1985: 85) Em seu estudo histórico sobre a
maternidade, a autora frequentemente expressa a dificuldade de se encontrar
registros precisos sobre os nascimentos, a mortalidade infantil, o uso de amas-deleite, entre outros fatores relacionados à experiência materna, na França, até
meados do século XVIII. Dessa forma, Badinter teve que recorrer, muitas vezes, a
estimativas e números aproximados, retirados de documentos esparsos.
Mary Del Priori, ao pesquisar sobre as vidas das mulheres no Brasil entre os
séculos XVI e XVIII, também esbarrou na escassez e dispersão das informações:
Ao perseguir os caminhos das populações femininas no fundo dos fundos
arquivísticos, acabei por tropeçar numa documentação multiforme.
Constatava assim que as fontes existiam, mas que estavam em migalhas e
dispersas, dificultando-me perceber as transformações mais finas pelas
quais passavam as mulheres. (DEL PRIORI, 1993: 16)
Na literatura, também, até por volta da metade do século XVIII, nota-se uma
indiferença no tratamento da mãe e da criança. A partir de então, houve escassas
tentativas de se abordar a maternidade com mais atenção às suas implicações para
a vida das mulheres e dos filhos, e essas não foram vistas com bons olhos pela
crítica literária. Em 1798, em Maria, or the Wrongs of Woman, livro publicado
postumamente, a escritora inglesa Mary Wollstonecraft retrata a angústia de uma
mãe afastada da filha pelo marido ambicioso e pelas instituições patriarcais. Livro de
pouca
receptividade
literária,
cujas
críticas
se
juntaram
às
abundantes
manifestações de desacordo despertadas pelo manifesto A Vindication of the Rights
of Woman (1992), no qual a escritora defende uma família baseada no amor entre
mães, pais e filhos, enfatizando a necessidade de respeito e novos direitos para as
mães, esposas e mulheres em geral. Na apresentação de Lives of the Great
Romantics,Part III, ressaltou-se que Mary Wollstonecraft foi fortemente criticada
depois de sua morte. No entanto, gradualmente sua imagem foi sendo melhorada e
começou-se a enfatizar suas qualidades.
No século XIX, a escritora inglesa George Eliot apresenta a maternidade de
formas diferentes em sua obra, o que nem sempre agradou os críticos literários.
Conforme Jill L. Matus, o romance Adam Bede (1859) recebeu uma crítica favorável
no Saturday Review. No entanto, o crítico demonstrou sua objeção ao fato de ter a
escritora retratado os diversos estágios que antecedem o nascimento de uma
criança, segundo ele, prática que estava se tornando cada vez mais comum entre
romancistas e que deveria ser evitada. De acordo com esse crítico, havia a ameaça
64
de uma possível “literatura da gravidez”, ou seja, de uma literatura que retratasse os
desdobramentos e os pormenores da maternidade. Portanto, exortava os escritores
a copiar os “velhos mestres” que, se incluíam um bebê na narrativa, faziam-no
nascer de uma vez, como num passe de mágica, sem descrever as complexas fases
e implicações da maternidade:
Há outro aspecto nessa parte da história sobre o qual não podemos deixar
de fazer um comentário. A autora de Adam Bede aderiu a uma prática bem
curiosa que está se tornando comum entre romancistas, e é uma prática
que consideramos bastante desagradável. Trata-se de datar e discutir os
diversos estágios que precedem o nascimento de uma criança. Parecemos
estar ameaçados com uma literatura da gravidez ... Os sentimentos e as
mudanças de Hetty são indicados com uma seqüência pontual que faz com
que o relato de seus infortúnios se pareça com o tom rude de conversas de
um “obstetra/ parteiro” [man-midwife] com uma noiva. Isso é intolerável.
Deixem-nos copiar os velhos mestres da arte, que, se nos deram um bebê,
o deram de uma vez. Um autor decente e um público decente consideram
os sintomas premonitórios como existentes sem, no entanto, necessitarem
presenciá-los. (MATUS, 1995: 1)
Ainda no século XX, em pleno movimento feminista, percebe-se ainda a falta
das vozes das mães na literatura. Brenda O. Daly e Maureen T. Reddy, em Narrating
Mothers (1991), salientam que as narrativas raramente dão espaço para as vozes
maternas. E apesar de que no final do século XX tenha crescido o número de livros
sobre as mães, as perspectivas maternas estão, geralmente,ausentes, pois até
mesmo as feministas, na maioria das vezes, se posicionam como filhas em seus
escritos e falham em abordar os aspectos teóricos e políticos que permeiam a
maternidade a partir da perspectiva das mães.
Acredito ser necessário problematizar e desconstruir os mitos patriarcais que
envolveram e ainda envolvem a maternidade, principalmente à medida em que
novos conceitos se juntam ao conceito de maternidade tradicional, como descrito
pela professora Cristina Stevens em seu artigo Maternidade e Literatura:
Desconstruindo Mitos (2007):
Por muito tempo a maternidade foi considerada um fato puramente
biológico, fixado literal e simbolicamente nos limites do domínio privado e
emocional. Os discursos religiosos, médicos e psicológicos que descreviam
e, sobretudo, prescreviam esses papéis, foram bastante danosos para as
mulheres. Hoje, debatemos a função e status da maternidade no espaço
público, e sua complexidade aumenta à medida que o sentido de
maternidade se diversifica, uma vez que à mãe tradicional vem juntar-se a
mãe adotiva, a mãe lésbica, o homossexual que materna, a mãe de aluguel,
a mãe adolescente, a mãe solteira, a mãe prisioneira, a mãe pobre, negra, a
mãe genética, etc. (STEVENS, 2003: 38)
Em O Segundo Sexo, Simone de Beavoir atribui à capacidade de reprodução
das mulheres a associação destas à imanência, à estagnação, enquanto que tudo
65
relacionado aos homens foi relacionado durante muito tempo à transcedência, ao
cultural, ao dinâmico, à dominação. Segundo Friedrich Engels, em A origem da
família, da propriedade privada e do Estado (1985), foi essa capacidade biológica da
mulher que levou à primeira grande divisão do trabalho da humanidade. Para ele, o
desenvolvimento da propriedade privada está atrelado à maternidade, pois os pais
começaram a ter necessidade da certeza de sua paternidade para que os filhos
pudessem herdar suas posses.
Cristina
Stevens,
no
livro
Maternidade
e
Feminismo
–
Diálogos
interdisciplinares (2007), enfatiza que até aproximadamente os anos setenta houve
escassas tentativas de retratar a maternidade como tema central e de analisar as
distorções criadas pelo patriarcado sobre essa complexa experiência. Nessa época,
intensificou-se a produção teórica sobre a maternidade sob a ótica das mulheres. No
campo da história, segundo Tania Navarro Swain, em seu texto Você disse
imaginário? (1994), até os anos setenta encontra-se um discurso etno e
androcêntrico, situação que, segundo ela, vem se modificando com os caminhos
abertos pela história das mentalidades e pelos questionamentos do feminismo. As
produções teóricas dessa fase são bastante ricas, com estudos nas áreas de
psicanálise, sociologia, antropologia, dentre outras. São desse período as
contribuições de Nancy Chodorow, Adrienne Rich, e Julia Kristeva.
A psicanalista Nancy Chodorow, em The Reproduction of Mothering (1979),
argumenta que os comportamentos socias tradicionais que envolvem a maternidade,
ou seja, o fato de se atribuir às mulheres o cuidado com os filhos, não são naturais,
mas sim resultado de valores e práticas sociais que são interiorizados nas primeiras
relações da criança com as pessoas que a cercam, sobretudo com a mãe, onde se
encontra uma identidade entre mãe e função materna. Assim, esses processos
psicológicos dão origem a comportamentos que se perpetuam e são responsáveis
pela divisão não igualitária dos papéis sexuais e pela conseqüente dominação
masculina. Segundo ela:
O comportamento e as características da personalidade adulta são
determinados, mas não biologicamente deterministas. Entretanto,
culturalmente, a personalidade e o comportamento esperados não são
simplesmente “ensinados”. Mais exatamente, certas características da
estrutura social sustentadas por crenças, valores e percepções culturais,
são interiorizados através das relações objetais sociais primárias da criança
e da família. Essa organização inconsciente ampla é o contexto no qual se
dá o treinamento de papéis e a socialização intencional. (CHODOROW in
ROSALDO e LAMPHERE, 1979: 76)
Embora alguns possam pensar que as análises de Chodorow demonstram
66
uma inevitabilidade dessa situação, a psicanalista afirma que é possível e que
devemos separar as mulheres e a função materna. Ao mostrar como as funções de
cuidado com os filhos são criadas nas mulheres por meio de processos psicológicos
e sociais específicos, Chodorow mostra como essas qualidades também podem ser
criadas nos homens, desde que homens e mulheres exerçam suas funções de forma
igual. Segundo ela, há estudos que mostram que não apenas as mães biológicas
são capazes de oferecer o cuidado adequado e que a criança não exige o
relacionamento exclusivo com uma única pessoa.
Na mesma linha de raciocínio desenvolvido por Chodorow, Dorothy
Dinnerstein, em The Mermaid and the Minotaur: Sexual Arrangements and Human
Malaise (1976), alega que enquanto o cuidado com os filhos for papel exclusivo das
mães, as mulheres continuarão sendo objeto de mitos e ideias deturpadas que a
denigrem e sustentam seu papel secundário no domínio público. É preciso mudar a
forma como os papéis sexuais estão organizados, e a mudança principal seria fazer
com que o homem fosse tão importante no cuidado e criação dos filhos quanto as
mulheres. Como tem sido, geralmente, uma mulher a primeira a estabelecer o
contato inicial dos seres humanos com a humanidade e a natureza, a mãe é
investida de um poder absoluto, se torna uma entidade poderosa capaz de
proporcionar infinitos prazeres ao fornecer alimento, carinho, conforto; no entanto, a
mãe também provoca rancor, trauma e inúmeras dores ao privar a criança de todos
esses prazeres. Assim, a mãe, e consequentemente a mulher, é objeto do ataque de
sentimentos ambivalentes, medos do poder de vida e morte atribuído a ela. O
contato com a figura masculina, muitas vezes, acontece mais esporadicamente ou
mais tarde na vida da criança e, portanto, essa figura não fica sujeita a grandes
cargas emocionais. Segundo Dorothy Dinnerstein:
Quando os homens estiverem tão diretamente envolvidos como as
mulheres nas vidas intensamente corporais dos bebês e das crianças
maiores, a realidade do corpo masculino como uma fonte de novas vidas
estará sujeito a se tornar substancial para nós em uma idade mais tenra, e a
continuar emocionalmente mais presente a partir de então (...). A mudança
não fará a procriação da mulher parecer menos miraculosa do que parece
agora, apenas menos assustadora (...). (DINNERSTEIN, 1976: 150)
O livro de Adrienne Rich, Of Woman Born (1981), também constitui um marco
nos estudos feministas sobre a maternidade. A partir de uma ótica psicanalítica,
dentre outras, Rich expõe análises da relação entre a mãe e os filhos, o homem e a
sociedade, além de outros pontos fundamentais. Ela demonstra como a mãe reage
às expectativas da sociedade em relação a seu comportamento, escrevendo até
67
mesmo sobre uma alienação da maternidade, de mulheres que não participam
conscientemente nem mesmo do trabalho de parto. Segundo Rich, desde a
Antigüidade, as mulheres têm sido “ensinadas” o que devem sentir: dor, angústia,
realização extática. O trabalho de parto têm sido visto de diversas formas negativas,
como punição e sofrimento, por exemplo, raramente sendo considerado de forma
positiva, como um desafio ou uma descoberta.
Na literatura contemporânea, algumas escritoras têm trabalhado no sentido
de recuperar a temática da maternidade, a partir da perspectiva das mulheres e da
mãe. Em 1999, a escritora de origem inglesa e francesa Michèle Roberts deu ênfase
ao tema em seu romance Fair Exchange. Nessa narrativa, como na maioria de seus
romances, a problemática da identificação mãe-filha se sobressai, o que pode ser
consequência da própria experiência de vida da escritora.
O romance recria ficcionalmente a figura de Mary Wollstonecraft, uma
pensadora de importância crucial para a história das mulheres, ligando, dessa forma,
o passado ao presente. Ao recriar essa personagem histórica, Michèle Roberts traz
para a contemporaneidade a preocupação de Wollstonecraft com a questão da
maternidade e da família, o que levou essa pensadora a escrever dois romances no
século XVIII: além da predominância da relação entre mãe e filha em Maria, or the
Wrongs of Woman, a autora apresenta reflexões sobre os relacionamentos humanos
sob a perspectiva das mulheres em Mary: a Fiction (1788). Ironicamente, a própria
vida da escritora se encerrou com os desdobramentos da maternidade: morreu ao
dar à luz sua filha MaryWollstonecraft Shelley45, em 1797. O amálgama da
“realidade”46 e da ficção torna Fair Exchange, um romance que questiona a verdade
da narrativa histórica.
O diálogo entre a história e a literatura e o consequente questionamento da
primeira pela última tornaram-se temas muito frequentes na ficção pós-moderna e se
encontram na obra de Michèle Roberts. Uma das consequências dessa relação
entre as duas áreas é a auto-reflexividade, que revela uma preocupação não só com
a “arquitetura” narrativa, mas também com a utilização de fatos e personagens
históricos na produção ficcional, característica que levou Linda Hutcheon a introduzir
o conceito de metaficção historiográfica, na década de oitenta:
45
Escritora inglesa, mais conhecida por Mary Shelley. Filha de Mary Wollstonecraft e do filósofo
William Godwin, casou-se com o poeta Bysshe Shelley, em 1816. Sua obra mais famosa é
Frankenstein, escrita entre 1816 e 1817, quando a escritora tinha apenas 19 anos.
46
Entendo e aceito toda a problematização dos conceitos de realidade, representação e discurso, mas
não desenvolverei esse assunto neste trabalho.
68
Metaficções historiográficas são romances intensamente auto-reflexivos,
mas que também reintroduzem contexto histórico na metaficção e
problematizam toda a questão do conhecimento histórico. (HUTCHEON,
1987: 285)
Na metaficção, o autor demonstra sua consciência sobre a teoria subjacente
à construção de trabalhos ficcionais, expondo, assim, as estruturas fundamentais da
narrativa. Além disso, ao reescrever e reapresentar o passado na ficção, a
metaficção historiográfica acaba por abri-lo para o presente, evitando, assim, que ele
esteja para sempre concluso. Segundo Linda Hutcheon, o seu questionamento cria
uma espécie de túnel do tempo que descobre histórias de pessoas e povos
oprimidos no passado, como as mulheres e os nativos colonizados. Nesse sentido, a
metaficção historiográfica vem problematizar a imparcialidade científica da história,
demonstrando que essa também é uma narrativa que busca reconstituir e interpretar
discursivamente o fato histórico, não de forma objetiva e neutra, mas a partir de um
lugar de fala.
O conceito de metaficção historiográfica demonstra a fragilidade da verdade
objetiva da história, formada por diversos elementos volúveis como mitos, fatos,
opiniões, interpretações, dentre outros. Assim, constitui um dos caminhos que
podem contribuir para a produção literária de autoria feminina, pois ao se
problematizar a historiografia tradicional, colabora-se para a desconstrução de ideias
distorcidas e verdades criadas pelo patriarcado, como as que envolvem a
maternidade, por exemplo.
Dessa forma, a partir da perspectiva de gênero, seguindo o objetivo de
resgatar escritoras negligenciadas pela historiografia literária tradicional, e de
promover novas leituras de produções literárias de autoria feminina, venho trazer a
importância do resgate e da releitura da obra de Mary Wollstonecraft e do estudo do
romance de Michèle Roberts, unindo-as pela temática da maternidade. Apesar de
ser uma das precursoras do movimento feminista já no século XVIII, com o seu livro
de natureza não-ficcional A Vindication of the Rights of Woman (considerado o
documento fundante desse movimento), Mary Wollstonecraft merece maior
visibilidade quanto à sua produção ficcional. Daí nosso objetivo de lançar uma nova
luz sobre os livros Maria, or the Wrongs of Woman e Mary: a Fiction. Durante minha
análise, propicio o diálogo entre esses livros e A Vindication of the Rights of Woman,
manifesto que será de grande importância, pois apresenta os pensamentos de
Wollstonecraft com relação à família e à maternidade de maneira direta, e ajuda a
conhecer mais de perto as aspirações que teve e o que ajudou a concretizar, mesmo
69
depois de sua morte.
Seguindo os mesmos objetivos, apresento Michèle Roberts, autora de vários
romances que abordam questões de natureza feminista e que merece estudos mais
aprofundados. Em sua obra, da qual destacamos The Book of Mrs. Noah (1987),
Daughters of the House (1992) e Fair Exchange (1999), essa escritora explora as
vidas das mulheres, suas histórias e experiências, com grande ênfase na
experiência materna.
Analisar a maternidade na literatura e tentar contribuir para a desconstrução
dos conceitos patriarcais sobre essa experiência requer um estudo de, pelo menos,
certos momentos da maternidade na história e sua relação com a literatura. A
história mantém certa semelhança com a literatura. Ambas são narrativas e,
portanto, são construídas de acordo com a perspectiva do narrador. Com as várias
discussões e dificuldades sobre a definição da literatura, muitas vezes a própria
linha divisória que a separa da história se torna tênue. No entanto, a relação da
história com a literatura nem sempre foi problemática, pois a primeira era
considerada como um desdobramento da segunda. Foi apenas com a construção do
sentido da literatura e de sua constituição como a temos hoje, que a história
apareceu como algo distinto dela. Lionel Gossman, em seu ensaio History and
Literature: Reproduction or Signification relata como foi a relação entre essas duas
áreas ao longo dos séculos e mostra como se deu sua separação. Apenas na fase
final do Neoclassicismo, a associação entre a literatura e a retórica começou a ser
quebrada e aquela passou a ser identificada à poesia, à escrita figurativa, ao grupo
de textos privilegiados e sagrados, diferentes de e se contrapondo a todos os
produtos do mundo “degradado” do capitalismo industrial. A história, por sua vez,
começou a ter seu foco discutido, passando a haver uma preocupação maior com
uma teoria de objetividade histórica. Por fim, durante o século XIX, uma separação
mais definitiva e derradeira se deu na divisão disciplinar e especializada das
disciplinas na universidade.
No entanto, apesar de seu passado de aproximação e das semelhanças que
ainda são possíveis observar mesmo depois de sua separação, a história e a
literatura ainda enfrentam resistência no que diz respeito à aceitação de seus pontos
em comum. É difícil concordar em chamar de narrativa algo próximo da ficção, um
relato da “realidade”, feito sob os princípios da objetividade e imparcialidade
científica, como pretende ser entendida a história. Segundo o historiador
estadunidense Hayden White, “tem havido uma relutância em considerar as
70
narrativas históricas como o que elas mais manifestamente são -ficções verbais,
cujos conteúdos são tão inventados como achados e cujas formas têm mais em
comum com a literatura do que com a ciência.” (WHITE, 1978: 42). Para White, a
história difere da ciência no ponto em que não é capaz de dar origem às leis
universais que tenta produzir. Ao mesmo tempo, seria diferente da literaturaà
medida em que se interessa em retratar o “real” e não o “possível”, considerado o
objeto da ficção. Entretanto, ele deixa bem claro que a suposta concretude dos
textos históricos é produto da própria capacidade ficcional do historiador. Elisabeth
Badinter também atenta para a inevitável parcialidade dos historiadores:
Há muito tempo foi reconhecida a impossibilidade de um observador, por
mais circunspecto e cauteloso que seja, despojar-se de suas paixões para
ver os outros com toda a objetividade. Georges Duby lembrou recentemente
esta verdade essencial aos seus colegas historiadores. O desenvolvimento
da história quantitativa e a utilização da informática, diz ele, permite ter
materiais mais precisos, mas o historiador os utiliza a serviço de suas
paixões e da ideologia que o domina. (BADINTER, 1985: 12)
Sob tal lógica, a história é discurso, uma forma cultural como qualquer outra.
É um discurso fortemente imbuído do sistema simbólico do imaginário social, que de
acordo com Tania Navarro Swain, em Você disse imaginário?, se encontra em toda
formação social. Como nos explica Swain, os símbolos criam realidades, naturalizam
imagens em certos momentos históricos, utilizando a memória coletiva e as
tradições. O imaginário dissemina, revitaliza, ressemantiza imagens, criando
paradigmas e normas, que se fortalecem na repetição ritual. O controle do
imaginário, assim, acaba sendo fonte de poder: “A posse do controle do imaginário é
(...) uma peça essencial do dispositivo do poder” (SWAIN, 1993: 49) e, portanto, os
paradigmas criados pelo imaginário são manipulados de forma a dominar e
organizar a sociedade de acordo com os interesses dos que detêm o poder. “Assim,
na trama do social, criam-se as noções de ‘evidente’, ‘natural’, ‘universal’,
bloqueando inclusive a possibilidade de se pensar o heterogêneo” (SWAI, 1993: 49).
Margareth Rago, lembrando o pensamento de Michel Foucault, diz que para
esse filósofo, o discurso não é reflexo do real, mas sim, prática e, como tal, constrói
figuras sociais, identidades, dando um sentido determinado ao fato histórico:
Recusando a concepção do discurso como reflexo do real, o filósofo
explicava que o discurso é prática, e que as práticas discursivas instituem
figuras sociais, constroem identidades e objetivam o fato histórico, dandolhe visibilidade e imprimindo-lhe sentido determinado. Contrariava, nesse
sentido, a cristalizada representação de que o fato existe por si só
independentemente do discurso. (RAGO, 1995: 28)
71
Consciente do poder e das limitações da história, Foucault defende a sua
autonomização, sua libertação de procedimentos envelhecidos, cristalizadores,
totalizadores, de construções autoritárias do passado, que pretendem levar à única
verdade. Acaba, assim, defendendo uma “nova história”, mais aberta às diferenças,
à diversidade, aos múltiplos pontos de vista. Segundo Margareth Rago:
Foucault, na contramão, publicava A Arqueologia do Saber, livro de 1969,
partindo em defesa da História. Denunciava os atentados aos seus direitos,
quando se ignoram os acidentes, os acasos, os desníveis, em nome de uma
homogeneização totalizadora quando se é incapaz de pensar as
descontinuidades. (RAGO, 2002: 257)
A descontinuidade é aquela que está dispersa e que emerge contrapondo-se
à idéia de continuidade, e supõe a existência dos “obstáculos”, ou seja, elementos
postos de lado pela continuidade da historiografia tradicional. Assim, esses
“obstáculos” significam grupos sociais, experiências etc., silenciados pelos recortes
dos historiadores, como as mulheres e, consequentemente, a maternidade. E ao se
“pensar as descontinuidades”, vozes silenciadas são trazidas à luz. Isso implica
reconhecer o aspecto ficcional das narrativas históricas, atitude que, “serviria como
um antídoto poderoso contra a tendência dos historiadores em se tornar cativos de
pré-conceitos ideológicos, que eles não reconhecem como tal, mas honram como a
‘correta’ percepção da ‘maneira como as coisas realmente são’ ”, nas palavras de
Hayden White. (WHITE in CANARY e KOZICKI, 1978: 61)
A busca por vozes silenciadas encontra saída sobretudo na literatura, que
tanto nos diz sobre uma época, suas ideologias, seus costumes. Assim, a
preocupação com a maternidade e sua abordagem pela história e pela literatura faz
com que a experiência materna seja pesquisada e historicizada, não mais para
confirmar a superioridade da autoridade do homem, de acordo com a perspectiva
androcêntrica, mas sim conforme uma leitura feminista dessa experiência que
constitui mulheres como mães. Assim, em meio ao mundo patriarcal de pensamento,
pinçam-se vozes maternas um pouco apagadas na história, como o romance Maria,
or the Wrongs of Woman, e Mary, a Fiction, escritos por uma mãe, Mary
Wollstonecraft. E, praticamente na virada do século XX para o XXI, a voz da mãe se
faz sentir também intensamente no romance Fair Exchange, não só por também ter
a maternidade como tema central, mas por evocar uma voz materna do século XVIII:
Mary Wollstonecraft. Laços de identificação entre mulheres, contribuições ricas em
experiência e elementos capazes de desconstruir noções distorcidas do patriarcado
sobre elas.
72
Mary Wollstonecraft é importante para uma nova visão da família e da
maternidade não só por causa de seus textos políticos, mas também pelo
precedente que abriu sobre esses temas também na literatura. Apesar de não terem
sido considerados sucessos literários, ambos os romances apresentam muitas das
atitudes criticadas por Wollstonecraft e muitos de seus ideais representados em
suas personagens. Dentre os valores e os comportamentos expostos e discutidos
pela pensadora inglesa se encontram os relativos à maternidade, os quais são
investidos de grande importância em suas representações. Nessas, Wollstonecraft
analisa as atitudes da mãe como sendo a base fundamental para o crescimento
físico e mental saudável do ser humano e, portanto, defende que enquanto não
houver uma mudança nos comportamentos e valores que dizem respeito à
maternidade, não haverá melhoria nas condições sociais e políticas das mulheres e,
consequentemente, da sociedade como um todo. O pai também é descrito como
tendo um papel imprescindível na criação dos filhos, principalmente quando
Wollstonecraft sustenta que a relação entre mães, pais e filhos deve se desenvolver
com afeto e respeito, como requisito indispensável para o crescimento de cidadãos
sensatos e virtuosos.
O romance Mary, a Fiction foi todo escrito em terceira pessoa e a história
principal gira em torno da amizade entre as personagens Mary e Ann, baseada na
forte amizade entre Wollstonecraft e Frances Blood (Fanny), que morreu ainda
jovem. Há uma forte presença de referências à triste infância da escritora ao lado de
um pai violento e machista. A semelhança entre a história real e a ficcional chega a
ser tamanha, que se torna, às vezes, difícil distinguir uma da outra. Além de retratar
essa forte amizade entre mulheres, o romance também mostra a opressão a que a
mulher estava submetida numa sociedade patriarcal que utiliza o casamento para
subjugar as mulheres com o fim de atender aos seus interesses. Mary se recusava a
viver com um homem com o qual havia se casado por vontade de seu pai em
perpetuar e aumentar a herança da família e é, assim, um exemplo de resistência.
O romance Maria, or the Wrongs of Woman traz algo especial: a maternidade
como tema central. O romance inova, sobretudo, não só por sua temática, mas por
ser narrado sob a perspectiva da mãe, em uma época em que se falava muito sobre
a mãe, mas ela quase não era ouvida. Publicado inacabado no ano após a morte de
Mary Wollstonecraft, Maria se desenvolve a partir da personagem principal Maria,
mãe que foi separada de sua filha de apenas quatro meses de idade. Começa com
suas reflexões sobre sua situação angustiante, ao acordar e ver-se presa em um
hospício de um dia para o outro, internada pelo próprio marido, que queria a herança
73
que o tio de Maria deixara para ela. Ela ama sua filha e nada parece doer mais do
que estar separada dela e não estar acompanhando e cuidando da menina. A
personagem Maria também se preocupa por ter uma filha, portanto, uma menina
sujeita ao regime patriarcal, à autoridade de um pai cruel e ambicioso, privada de
uma infância feliz e amorosa ao lado da mãe, que a ama. Parte desse receio remete
às preocupações da própria Wollstonecraft em relação à sua filha Fanny, como se
pode perceber em suas cartas escritas durante uma viagem aos países
escandinavos, quando a escritora expressa saudades de sua filha e a preocupação
por ela ser menina e estar, portanto, sujeita à opressão patriarcal:
A empatia que inspirei, assim caindo das nuvens em uma terra estranha,
me afetou mais do que se meu espírito não tivesse sido assediado por
várias causas – por pensar demais – pensando quase até a loucura – e até
por um tipo de melancolia fraca que envolvia meu coração por me separar
da minha filha pela primeira vez.
Você sabe que, como uma mulher, eu sou particularmente ligada a ela; eu
sinto mais do que o carinho e ansiedade de uma mãe quando reflito sobre o
estado dependente e oprimido do seu sexo. (WOLLSTONECRAFT, 2009:
carta VI)
A personagem Maria apresenta uma forma de maternidade mais livre, à
medida em que cuidar da filha e amamentá-la são desejos seus, e não simples
obrigações provenientes de situações opressoras. As reflexões feitas por ela
expressam desejos profundos e denunciam a situação a que as mulheres estavam
submetidas. Apesar de conter grande parte dos sentimentos e experiências da
própria Mary Wollstonecraft em sua relação amorosa malsucedida com Gilbert Imlay,
essas reflexões expressam os desejos da escritora de mudanças políticas e sociais
para as mulheres e a família. As preocupações de Maria com o futuro da filha no
sistema patriarcal opressivo em que se encontravam demonstra que mudanças
eram urgentes. Wollstonecraft defendia o afeto e o respeito entre mãe, pai e filhos
como algo fundamental, tanto em seu manifesto quanto em seus romances. Além
disso, a escritora se preocupava com os primeiros anos da infância e enfatizava a
importância do aleitamento materno ao retratar a tristeza de Maria por não poder
amamentar a filha no momento em que o bebê mais precisa.
Durante sua produção política, Wollstonecraft defendeu que apenas uma
transformação na família, que incentivasse o amor e o respeito entre pai, mãe, filhos
e filhas levaria a uma transformação progressiva da sociedade. Nesse sentido, de
acordo com Eileen M. Hunt, concordava com seu rival Edmund Burke que, apesar
de defender a estrutura patriarcal, compartilhava com Wollstonecraft a importância
da função moral, social e política da família. Segundo Burke, nós começamos
nossas relações com os outros na família, e o bom cidadão deve, primeiro, ter afeto
74
pelos pais, irmãos e todos os seres vivos que estão presentes em seu mundo
familiar. No entanto, para Wollstonecraft, a sociedade patriarcal deturpava e impedia
o desenvolvimento das virtudes morais, sociais e políticas dos filhos, que servem
como a base de qualquer sociedade humana estável. Essa seria, como vimos, uma
das preocupações que Maria tinha em relação à sua filha, uma menina, sujeita ao
regime patriarcal.
Um dos aspectos mais interessantes sobre o discurso de Mary Wollstonecraft
é a atualidade de seus pensamentos principais sobre a família. As mudanças
pretendidas dois séculos atrás, nada mais eram do que os ideais ainda buscados
hoje. Não sendo patriarcal, havendo igualdade entre marido e esposa, entre irmãos
e irmãs, todavia a nova família não prescindia do dever da mãe e do pai de proteger,
educar e disciplinar seus filhos, e do dever desses, em contrapartida, de respeitar
seus progenitores e retribuir o afeto recebido, até a velhice dos pais. Pois, segundo
ela, o afeto natural entre pais e filhos é muito fraco e, por isso, deve ser cultivado no
dever de cuidado, que tanto a mãe quanto o pai tem com as crianças. Derruba,
dessa forma, teorias essencialistas patriarcais. Apesar de que os pais deveriam
exercer sua autoridade sobre os filhos, Mary Wollstonecraft defendia que deveria
haver limites à essa autoridade. Ela protestava contra a violência física e a
manipulação emocional, se opondo, assim, à legitimidade da autoridade dos pais (os
homens) que lhes dava o direito de dispor até mesmo da liberdade dos filhos.47 Além
disso, defendia a emancipação dos filhos na maioridade para, eles próprios
determinarem o curso de suas vidas, sem estarem sob o controle dos pais.
Dessa forma, o pensamento de Mary Wollstonecraft rompeu com o discurso
essencialista e patriarcal e trouxe ideias que repercutiriam no pensamento feminista
do século XX.Demonstra que a maternidade pode ser uma experiência positiva na
vida das mulheres sem atrapalhar ou impedir realizações pessoais, como estudo e
trabalho, já que Wollstonecraft defendia educação e oportunidades iguais para
homens e mulheres. Além disso, mostrava a exequibilidade desse pensamento em
suas próprias ações: teve uma filha, mas não deixou de escrever. Com Maria, or the
Wrongs of Woman, abria um precedente para a abordagem da maternidade como
tema central na literatura e, acima de tudo, sob a perspectiva da própria mãe. Além
47
De acordo com Elisabeth Badinter, uma leitura atenta do quarto mandamento do Decálogo (“Pai e
Mãe honrarás, para que vivas longamente” ) leva à ideia de que caso o filho não cumpra o preceito, o
pai tem o direito de tirar-lhe a vida. (BADINTER, 1985: 37) Além disso, há informações de que ainda
no século XVII, na França, filhos eram mandados para a prisão por motivos fúteis e crianças bem
jovens e adultos se misturavam nas celas.
75
disso, ressaltou uma relação em especial, dentre as muitas que envolvem a
maternidade: a relação entre mãe e filha.
Apesar de ser um romance inacabado e, por isso, com final vago, a sua
publicação possui bastante valor, pois retrata a mulher que se torna mãe, em uma
época onde a crítica literária não concordava com representações desse tema. Além
disso, no início de Mary, e também no prefácio de Maria apresenta-se a vontade da
autora de desenvolver uma personagem diferente das geralmente retratadas,
diferente de Sophie, de Rousseau, por exemplo, mulheres como ela, que erravam e
sofriam, eram amigas, amantes apaixonadas, mulheres independentes e livres.
Ainda no século XX, apesar de uma vigorosa produção do movimento
feminista, percebe-se ainda a escassez das vozes das mães na literatura. No
entanto, Michèle Roberts, nascida em Hertfordshire, Inglaterra, em 1949, apresenta
a subjetividade feminina e, em especial, a materna, como tópico principal de sua
produção ficcional, como forma de contar suas histórias de vida e desafiar o conceito
patriarcal da história tradicional e, portanto, “reivindicar a posição social e histórica
das mulheres na cultura ocidental”. (RODRÍGUEZ, 2003: 93) E em um de seus
romances, Fair Exchange, Roberts retoma muitos dos ideais e pensamentos da
própria Wollstonecraft.
Em Fair Exchange, publicado em 1999, a relação entre mãe e filha assume
importância, assim como outros aspectos relacionados à maternidade. A perspectiva
materna é fundamental, pois é por intermédio da história contada por uma mãe
(pobre), Louise Daudry, que se conhece a história de outras mães. Assim, a voz
materna é ouvida em dois níveis: mães que falam por meio de outra mãe que fala. O
ponto de vista narrativo assume complexidade, à medida em que a narração de
Louise é apresentada ao leitor por uma narradora onisciente.
O romance, escrito em terceira pessoa, começa com Louise, uma mulher do
interior da França, mãe de dois filhos, casada, que se encontra muito doente e
precisa se confessar e, assim, livrar-se do peso do que considera ser o pecado
horrível de sua vida, cometido no outono de 1792. Louise conta a história de Annette
e Jemima. Jemima foi uma menina órfã, mandada pelos parentes para a escola
dirigida por Mary Wollstonecraft e suas duas irmãs. Ela acabaria sendo influenciada
pelas idéias feministas de Wollstonecraft, assimilando grande parte de seus ideais e,
como a pensadora inglesa, vivendo de acordo com eles. Assim como Wollstonecraft,
Jemima desejava ganhar a vida como escritora e ser mãe ao mesmo tempo.
Buscava sua independência, ao contrário de Annette, que sonhava em se casar e
76
formar uma família. As vidas e os pensamentos de Jemima e da Wollstonecraft
ficcional são tão parecidos que, às vezes, é difícil distinguir uma da outra.
Já Annette foi educada em um convento e, quando adulta, foi mandada para o
interior da França pela família para esconder sua situação de mãe solteira. Lá,
hospedada na casa da criada Louise, se fez passar por viúva para não despertar
comentários dos moradores do lugar. Pouco tempo depois, Jemima, já adulta
também, foi morar na mesma vila em busca de paz e concentração, pois queria ser
escritora, mas encontrava-se na mesma situação de Annette: estava sozinha,
grávida e vestida de viúva. A partir daqui começa o clímax da história, que retrata os
detalhes da vida, das experiências cotidianas de duas mulheres à espera de um
filho.
Ao ler as conversas entre Jemima e Annette sobre suas incertezas e
preocupações, conhecemos a Revolução Francesa por intermédio de seus pontos
de vista. Excluídas da igualdade e da liberdade defendidas pela Revolução, elas
sofrem as consequências dos valores arraigados do patriarcado. Ambas estavam
sozinhas, grávidas e sem a presença e o apoio de seus companheiros. Assim,
quando Jemima conversa com sua amiga Annette sobre os problemas que as
assolam, Annette critica os ideais da Revolução Francesa:
Liberdade, fraternidade, igualdade, disse a Jemima: e para onde isso te
levou? Para onde isso me levou? Aquela preciosa liberdade da qual você
fala, é liberdade para os homens, não para as mulheres. Olhe para nós.
Grávidas e tendo que nos esconder porque não estamos casadas.
(ROBERTS, 2000: 113)
Coincidentemente, os bebês de Annette e Jemima nasceram no mesmo dia.
Duas meninas: Caroline, filha de Annette, e Maria, filha de Jemima. E os pais,
amigos, visitaram as mães nesse mesmo momento, abandonando-as tempos
depois. Mais tarde, quando os pais resolvem voltar, trocam os bebês das duas
mulheres no dia do parto baseando-se numa aposta negligente para comprovar suas
idéias deterministas de que o caráter é fixado ao nascer, independentemente da
criação, e abandonam as mães novamente. Tempos depois, Maria morreria ainda
bebê, deixando Jemima muito triste. Assim, ao retratar a condição de não liberdade
das mulheres, questiona-se o conceito de indivíduo abstrato universal, possuidor dos
direitos assegurados pela Revolução Francesa, conforme o questionamento de Joan
Scott, em Relendo a História do Feminismo. Ela mostra a contradição desse
conceito, segundo o qual para que os seres humanos pudessem ser concebidos
como iguais, deveria haver a exclusão de categorias diferenciadoras de raça, classe,
religião, sexo etc. Mas a diferença entre o eu e o outro acabou se reduzindo a uma
77
questão de diferença sexual: a masculinidade se igualava à individualidade e a
feminilidade à alteridade. Portanto, “a mulher não era um indivíduo não só por ser
não-idêntica ao protótipo humano [do homem branco europeu], mas também porque
era o outro que confirmava a individualidade do indivíduo (masculino).” (SCOTT,
2002: 34)
Dezessete anos mais tarde, Jemima, cujos sonhos e ideais haviam
desvanecido com a morte de sua filha Maria e com o abandono de Paul Gilbert, pai
de sua filha, descobriu que ele havia pago Louise para trocar os bebês no dia do
parto. Jemima, assim, teve sua filha de volta, pois a menina que havia morrido era,
na verdade, filha de Annette. No entanto, Caroline, imediatamente após conhecer
sua verdadeira mãe, sentia a necessidade de deixá-la novamente, seguir seu
caminho e ir em busca do pai, mesmo que ele não desejasse vê-la. Mas Caroline é
como Perséfone. Ela partirá, mas prometeu à sua mãe que voltará.
Retornamos, então, a Louise que, assim, confessa o crime que cometeu. Por
ter compactuado com a idéia inconsequente de Paul de trocar os bebês por dinheiro,
se sentia extremamente culpada. Oprimida pela pobreza e assustada com sua
condição vulnerável diante dos patrões, fez uma coisa que considera horrível, e por
ser mulher e, agora mãe, a dor que deve ter causado às mães e às filhas parece lhe
doer ainda mais. Quanto ao mais culpado de todos, Paul Gilbert, não há sinais de
arrependimento. No entanto, contar sua história havia acalmado Louise. A visita do
padre lhe ensinou uma coisa: “Contar a história era tão importante quanto o que
estava nela.” (ROBERTS, 2000: 246)
Ao retratar como devem ter sido as vidas de mulheres do passado em seus
romances, Roberts traz à vida milhares de vozes silenciadas pela opressão do relato
histórico patriarcal. Além de contar histórias silenciadas, é necessário recontar
histórias de mulheres, como a de Mary Wollstonecraft, que foram distorcidas ou
transmitidas de forma incompleta pelo discurso patriarcal; recontar histórias, como
faz Roberts ao contar novamente as biografias de mulheres que conhecemos, sob
perspectivas diferentes, ou melhor, das próprias mulheres, da mãe. Assim, é preciso
(re) contar as histórias dessas mulheres e, consequentemente, a própria história.
Assim, romances como Mary, a Fiction, Maria, or the Wrongs of Woman e Fair
Exchange, por suas inovações, como as referentes à visibilidade da voz materna e
da experiência da mulher na produção ficcional de autoria feminina, contribuem não
apenas para a desconstrução de mitos patriarcais e para novas visões da
maternidade, mas também para uma reformulação dos padrões estéticos literários
tradicionais.
78
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80
LITERATURA LESBIANA CONTEMPORÂNEA - UM LOCUS NEM TÃO AMENO
Maria da Glória de Castro Azevedo48
RESUMO:
A literatura de temática lesbiana contemporânea além de representar um lugar de afirmação desse
gênero “menor”, dentro do sistema literário, propõe-se a ser um lugar de visibilidade das relações
afetivas entre mulheres-fato que muitas vezes faz com que o discurso literário seja ameno e
mesclado de romantismo. Entretanto, nem toda literatura de temática lesbiana apresenta-se como
literatura cor –de-rosa, também há autoras que se propõem a analisar a mulher num um contexto
sócio-cultural envoltas nas (im)possibilidades das relações afetivas, resguardando-se de uma ficção
em que predomine a idealização da realidade.
PALAVRAS-CHAVE: literatura , lesbianidade, representação e margem.
Como estabelecer uma relação ente preconceitos, representações e
linguagem, quando se busca entender alguns ruídos na representação da
mulher? O eixo da reflexão é a mulher que escreve, a escritora, em um
contexto no qual a cultura parece estar ainda pouco combativa e engajada
nas questões que se referem às práticas de escrita, à função da autora.
(Tânia Regina de Oliveira Ramos)
A literatura de temática lesbiana escrita por mulheres vive numa zona de
conflito na construção do discurso literário. Em primeiro plano é preciso transgredir a
linguagem para poderá alcançar a literariedade e em segundo plano, mas não em
tão segundo plano assim, é necessário tomar cuidado para que essa transgressão
não produza um discurso essencialmente erotizado. Do que deve falar a literatura
lesbiana, de sexo, de perdas, de conflitos, de impossibilidades, de possibilidades?
Qual a representação da literatura lesbiana na contemporaneidade? Ela ocupa o
mesmo lugar que os romances românticos, com o diferencial de que os amantes são
“as amantes?” A literatura lesbiana contemporânea constrói-se como um discurso de
relações afetivas, como um espaço intermitente da busca da amante perdida, da
parte arrancada da outra49. São corpos separados que se procuram para que assim
possam chegar à completude, por isso, nessa literatura, o sexo lésbico está sempre
presente como uma marca de identidade, aceitação, saída de armário, conflito e
como zona central da narrativa.
48
Maria da Glória de Castro Azevedo é professora do curso de Letras na Universidade Federal do
Tocantins/ UFT. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília/ UnB e Doutoranda em
Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília/ UnB, com pesquisa sobre Cassandra Rios e a
literatura de temática lesbiana brasileira. Publicou em 2008 os artigos “O interdito no ideal de nação:
a lesbiana existe para a literatura brasileira?” Revista Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea; “Literatura Lesbiana: o gênero demarca o lugar de exclusão”, no livro
Representação de gênero e sexualidades, (Universidade Estadual da Paraíba). Em 2007: “O outro
me transgride: deve a literatura sair do centro?”, Intercâmbio, - X Congresso Internacional de
Humanidades Palavra e Cultura da América latina, Universidade de Brasília.
49
Platão define o amor, em O Banquete como a junção de dois corpos completos como num só.
Anteriormente não havia um homem e uma mulher, mas um ser andrógino, um ser completo e feliz e
por isso despertou a inveja dos deuses que separaram os corpos, transformando-os em seres
incompletos e infelizes, sempre em busca de suas metades. O ser andrógino é por natureza
pertencente ao mundo das idéias platônico, como a forma de beleza ideal do amor; seria o amor puro
e verdadeiro, numa dicotomia entre mundo ideal e mundo real.( Platão. Diálogos. 3ª ed., São Paulo:
Cultrix, s/d)
81
Esse é talvez o choque inicial do discurso lesbiano, a voz narrativa, de autoria
feminina falando em outro corpo feminino, em zonas erógenas de prazer, em corpos
saciados50:
Cochilo sem forças, sinto o perfume da sua pele que me acalma, minha
perna sobre a sua, os corpos distantes, um sono curto e profundo, meu
corpo ainda não esqueceu a cozinha. Acaricio suas costas, sua nuca, olho
com atenção sua bunda e a toco em pensamento, acaricio, lambo, numa
cama meio sombra meio sol. Ela acorda, me sorri um sorriso maroto, finjo
medo e ela se anima, me prende com força entre suas pernas e braços, me
morde as costas e me toca, num ritmo lento, dorminhoco, sem pressa.
O sujeito marginalizado, literariamente, transgride o discurso e fala da
interdição do desejo/ atuação sexual duplamente transgressor para a fala feminina:
desejo sexual e homossexualidade: Outro elemento que deve ser considerado na
literatura lésbica é que ela se inscreve como um subgênero dentro dos gêneros
literários. Por ser um discurso centrado na sexualidade, por ter como fundamento
principal da narrativa a subjetividade amorosa entre mulheres, esses textos são
classificados como “literatura de temática lesbiana”, ou “literatura lésbica” e essa
classificação já a separa e desautoriza a legitimidade de ser literatura brasileira e de,
conseqüentemente, ter visibilidade de títulos e de autoras, fator que as restringem a
um pequeno espaço de divulgação.
A costumeira ausência dessa literatura nos ambientes acadêmicos, nas salas
de aula dos cursos de letras, nas resenhas de revistas e jornais, lembra o quanto o
cânone literário é fechado para quebra de paradigmas, não há uma cultura de
enfrentamento de questões consideradas polêmicas. O número crescente de
autoras lésbicas me faz retornar ao feminismo francês dos anos 70 que assegura
haver uma escritura feminina que diferencia o discurso masculino do feminino, visto
que o discurso da mulher perpassa pelo corpo e suas sensibilidades, subjetividade,
linguagem e emoção. O discurso literário lesbiano ainda se instaura nessa escrita do
corpo e por isso é visto, atualmente, de modo sexista-assunto particular, assunto
sem relevância.
Esse número crescente de autoras que publicam em editoras voltadas
especificamente para a literatura de temática lesbiana não consegue sair gueto em
que está enredada. Não há referência, fora do eixo das editoras GLS e Malagueta,
por exemplo, de autoras como Valéria Melki Busin, Fátima Mesquita, Lúcia Facco,
Naomi Conte, Vange Leonel, dentre tantas. O preconceito que marginaliza essas
autoras e suas editoras é, sem que elas o percebam ou aceitem, o mesmo que havia
50
Naomi Conte em A livraria da esquina, pp 12-13
82
para com Cassandra Rios, só que agora velado. Elas também são desprestigiadas,
seus textos não são sequer referidos e alguns são questionados quanto à qualidade
da linguagem e valor editorial. Mas o desprestígio sobre elas talvez seja maior,
porque sequer são incomodadas. Talvez lhes falte “o eixo de reflexão”, talvez elas
não tenham percebido que não basta falar sobre sexo. Ou renegar Cassandra Rios,
como fez a escritora Vange Leonel:51
“Há uma necessidade de romper, definitivamente, com a fase de Cassandra Rios e
Nelson Rodrigues, e suas obras moralistas. Nelas, o homossexual são sempre pervertidos,
sem caráter e mal sucedidos” cuja fala demonstra que a escritora quando leu
Cassandra Rios não entendeu seu lugar de fala nem o contexto histórico no qual
suas obras se inserem. As personagens de Cassandra Rios são trágicas, mas não
são sem caráter e nem pervertidas. São mal sucedidas subjetivamente, devido a
fatores culturais e sociais, mas não são mal sucedidas economicamente. Cassandra
Rios, ao criar personagens abalados psicologicamente, problematizava a estrutura
social dominante, utilizando-se de um discurso tenso e em conflito com o
pensamento patriarcal heterossexista de sua época ( de 1948 aos anos 80) como
pioneira nesse tipo de temática, na literatura brasileira, essa autora não poderia
tratar o romance com idealização e romantismo, daí porque sua escrita é uma
espécie de naturalismo. No entanto, Cassandra Rios não trata a homossexualidade
masculina ou feminina de forma negativa, como doença ou deformação do caráter,
como é feito pelo naturalismo. Essa talvez seja a sua maior ousadia - a de confrontar
o vigente discurso biológico e social sobre a homossexualidade, ao construir
personagens conflitantes não em conseqüência da homossexualidade, mas em
decorrência da violência / exclusão social a que se viam obrigadas a viverem.
Na literatura de temática lésbica contemporânea não há a problematização da
marginalização histórica da mulher lésbica, embora haja uma audaciosa capacidade
de criação literária pautada na sexualidade, na descrição de relações sexuais As
novas escritoras lesbianas desejam criar um ethos de semelhança ao da
heterossexualidade, por isso produzem histórias em que as personagens vivem
numa espécie de ilha da fantasia, artificial e improvável à realidade, como, por
exemplo, no romance A vila das meninas, de Stella C, Ferraz. Na maioria desses
romances, o conflito por que passam as personagens é apenas o de aceitação
pessoal, sem que haja uma reflexão sobre o que gera esse conflito ou qual
representação sócio-cultural que uma nova identidade sexual acarretaria à
personagem.
51
Lúcia Facco em As heroínas saem do armário, p 171
83
Mas o “território selvagem” em que se insere a literatura lesbiana não se limita
ao erotismo e ao final cor - de – rosa, também há textos em que aparece o “ruído das
representações da mulher”, comum discurso reflexivo quanto à problematização da
homossexualidade feminina, do relacionamento amoroso, da vida cotidiana.. Nesses
textos fala-se sobre solidão, medo, preconceitos e amor. Como exemplo, analisarei
aqui os contos Tigrela, publicado em Mistérios, de Lygia Fagundes Telles, o qual
orbita no universo feminino e pertence à narrativa fantástica sobre os mistérios que
envolvem a condição humana, temática recorrente em Lygia Fagundes Telles e Das
crises inúteis, de Naomi Conte52, publicado em A livraria da esquina e outros contos
de mulheres.
Em Tigrela, a presença do fantástico leva, inicialmente, @s leitor@s a crer
que “Tigrela” refere-se apenas a um tigre morando no apartamento de uma
rica, excêntrica, perturbada e solitária mulher, mas essa leitura segue outro
caminho a medida em que Romana, a perturbada mulher, fala de tigrela para
uma amiga, que encontrou por acaso, num café. O nome Tigrela é sugestivo:
junção de tigre, mais o pronome feminino ela. Sabemos que o tigre
simbolicamente representa a fatalidade, a sedução, a beleza feminina.
A narradora vale-se do fantástico para produzir uma narrativa altamente
simbólica sobre a solidão feminina e o conflito existente em relações afetivas entre
pessoas de classes sociais, idades diferentes, e sexualidades transgressoras (a
personagem Romana, eixo do enredo, é bissexual) . A narrativa se inicia com uma
personagem-narradora falando que encontrou por acaso, Romana, meio bêbada, num
café. Amigas antigas, Romana agora envelhecida, ainda guarda resquício de beleza,
embora seja uma beleza triste. Esta pede ajuda à amiga e conta-lhe que se separou
do seu quinto marido e que vive, agora, com um tigre, no apartamento: “ dois terços
de tigre e um terço de mulher, foi se humanizando e agora”. A personagem Romana
parece hesitar sobre falar da Tigrela. Tenta pedir ajuda amiga, tenta contar sobre o
jovem animal que vive com ela num imenso apartamento, sem vizinhos, mas à medida
que fala e bebe, apenas metaforiza Tigrela53
52
A livraria da esquina e outros contos de mulheres ( Editora GLS)é o primeiro livro da escritora
Naomi Conte, autora do excelente Contos interditos (http://contosinterditos.blogspot.com), blogue de
contos minimalistas lésbicos com alto teor erótico. Sobre as autoras lesbianas contemporâneas é
curioso o fato de muitas usarem pseudônimo. Naomi Conte é o pseudônimo de uma autora que
possivelmente não deseja ser identificada como lésbica, embora a Editora GLS tenha a política de
publicação de livros de escritoras lésbicas. Vê-se que desde Cassandra Rios, pseudônimo de Odete
Rios, que publicou seu primeiro livro em 1948, até hoje, as escritoras lésbicas ainda não conseguem
assumir uma identidade com a literatura que produzem. O mesmo não acontece com as escritoras
não identificadas como lésbicas que publicam em grandes editoras e não negam suas autorias
quando tratam de assuntos polêmicos como o erotismo e a homossexualidade, para serem
abordados por mulheres, caso de Lygia Fagundes Telles de cujo conto Tigrela farei um breve estudo
no presente artigo.
53
Lygia Fagundes Telles em Mistérios, p.95
84
No começo me imitava tanto, era divertido, comecei também a imitá-la e
acabamos nos embrulhando de tal jeito que já não sei se foi com ela que aprendi a me
olhar no espelho com esse olho de fenda. Ou se foi comigo que aprendeu a se estirar
no chão e deitar a cabeça no braço para ouvir música, é tão harmoniosa.
A personagem titubeia, parece ter medo de revelar para a amiga a identidade
verdadeira de Tigrela e prefere traçar um perfil de um animal felino, dócil controlado e
aprisionado num grande apartamento branco, com um jardim na varanda. Tigrela é
um animal solitário, enjaulado, depressivo, alcoólatra e ciumento. Nas suas crises de
depressão e ciúme, torna-se violento e suicida, por isso Romana põe grade nas
janelas.
Nos parágrafos iniciais da narrativa, aparece uma relação em conflito e que
perpassará por diferentes situações numa relação que poderia ser simétrica, mas é
desigual: a mulher mais velha, separada do quinto casamento, vive livre e solta,sai à
noite, ( e desencadeia as crises de ciúmes da jovem Tigrela), mantém ainda um
relacionamento de idas e voltas com seu quinto último marido. Romana comprou
tigrela e a mantém dócil e lúcida, presa em sua jaula de luxo. Mas já sei que só tenta
o suicídio na bebedeira e então basta fechar a porta que dá para o terraço. Está
sempre tão lúcida54.
Do outro lado está uma jovem tigrela que gosta de ver sua dona(?) vestir-se
elegantemente para sair (embora sinta ciúme, se enfureça e para se acalmar, ganha
um colar de pérola), sente ciúme da empregada mais jovem e obriga Romana a
despedi-la, passa os dias solitária no apartamento, sendo cuidada por uma
empregada mais velha- uma espécie de mãe. Ouve música, deita-se nas almofadas,
chora escondida, como um bicho acuado diante da traição de Romana. Não há
referência explícita sobre um romance envolvendo essas duas mulheres, mas há a
tensão sobre o não dito, o terreno do interditado em uma relação afetiva que é
mantida em silêncio, negação, atração e repulsa, talvez por isso Romana segure a
mão da amiga como se a lhe pedir ajuda, duas vezes, para logo depois se revestir de
indiferença. Talvez por isso, Romana crie uma identidade outra para a mulher mais
nova. Ela não sabe como revelar para a amiga com quem vive atualmente.
A amiga, vendo o machucado no pescoço de Romana e percebendo o medo e
angústia em que esta se enredada, sugere-lhe:
54
Id.,p.96
85
Mas Romana, não seria mais humano se a mandasse para o zoológico?Deixe
que ela volte a ser bicho, acho cruel isso de lhe impor sua jaula, e se ela for
mais feliz na outra? Você a escravizou. E acabou se escravizando, tinha que
55
ser. Não vai lhe dar ao menos liberdade de escolha?
Escravização, essa é a tensão da relação afetiva entre Romana e Tigrela: Um
escravizada pela juventude e sedução, a outra pela maturidade, amor e luxo
oferecidos. Uma cansada do novo brinquedo, da sexta relação amorosa, a outra ferida
e felina no seu amor. Liberdade é conforto, minha querida. Tigrela também sabe
disso. Teve todo o conforto, como Yasbeck fez comigo até me descartar.56 Aí está:
Tigrela está acostumada à liberdade do conforto, Tigrela, assim como o quinto marido
pode se cansar da mulher mais velha e a descartar. Mas, antes que isso aconteça,
Romana deseja se descartar de Tigrela e de uma relação amorosa tensa e doentia,
para isso, depois de uma discussão saiu de casa e está na rua, bebendo.
Antes de sair, preparou a morte de seu bicho de estimação: ao invés de leite,
pôs uísque na tigela, apagou as luzes e deixou a porta do terraço abeta (como nas
noites anteriores, embora nada tenha acontecido) e volta para casa, tarde da noite,
tremendo porque nunca sabe se o porteiro vem ou não me avisar que de algum
terraço se atirou uma jovem nua, com um colar de âmbar no pescoço57.
A narrativa se encerra e só aí, na última frase do conto, é revelado que a
Tigrela era, na verdade, uma jovem mulher aprisionada num apartamento de luxo,
vivendo invisível para todos ( o porteiro dirá: “de algum terraço”, ele não identificará o
terraço como sendo o de Romana) Elas moram no último andar, num apartamento de
cobertura e sem vizinhos. Tigrela vive escondida como algo ilícito e proibitivo. O conto
fala de forma magnífica de uma relação amorosa pautada na solidão: duas mulheres
solitárias, embora amantes(?), vivem uma relação num mundo tenso. A narrativa é
densa e pesada, nela perpassa a idéia de vidas e lugares fechados, escuros,
solitários. Assim como se aprisionam as duas mulheres uma a outra. Há amor na
relação, mas há também posse e egoísmo. Escravização, ciúme e ameaças de morte.
Tigrela é a narrativa de um grande conflito e desacerto amoroso: duas pessoas
de idades diferentes, de classes sociais diferentes e de mesmo gênero sexual: duas
mulheres: uma a quem foi ensinado muito e com quem se aprendeu algo: às vezes
nos medimos e não sei o resultado, ensinei-lhe tanta coisa, aprendi outro tanto, disse
55
Id.,p.100
Id., p.100
57
Id.,p.101
56
86
Romana esboçando um gesto que não completou58.
A mais velha com sua
sexualidade transitando: bissexual e livre, a mais nova aprisionada à liberdade da
mulher mais velha, à compra que ela fez de si, para depois mantê-la presa no
apartamento enquanto vai à festas, reata com o último amigo/marido, transita entre
rua e a jaula de luxo em que se encontra Tigrela.
Embora a autora não tenha usado explicitamente a lesbianidade na narrativa,
seu texto transgride a heterotextualidade e coloca em lugar de discussão um universo
feminino transgressor desde a relação afetiva, até a construção das personagens
Romana e Tigrela, que não se encaixam no imaginário sobre as tradicionais
personagens femininas: A primeira é bissexual, passou por vários casamentos,
compra a liberdade de seus amantes oferecendo-lhes conforto, é infiel, tem
consciência de que seus amores valem o quanto ela paga, traz uma jovem amante de
uma de suas viagens e, em conflito com a desigual relação amorosa, deseja/ induz
sua jovem caça ao suicídio; a segunda é uma presa alcoólatra, depressiva, ciumenta
e temperamental, vive presa e acuada num apartamento de luxo, sente-se insegura e
“passageira” numa relação amorosa destinada ao abandono e ao término:
Só eu sei que cresceu, só eu notei que está ocupando mais espaço embora
continue do mesmo tamanho, ultimamente mal cabemos as duas, uma de nós
teria mesmo que... Interrompeu para acender a cigarrilha, a chama vacilante
na mão trêmula. Dorme comigo, mas quando está de mau humor vai dormir
59
no almofadão.
O conto
Das crises inúteis, de Naomi Conte trata da solidão e do
deslocamento da mulher contemporânea em crise com seu trabalho e com sua vida.
Num espaço de três páginas, a narradora fala da angústia existencial e do
esvaziamento que a personagem ( sem nome) sente tanto por seu trabalho de
”fotógrafa de horrores”, premiado internacionalmente, quanto por sua longa relação
amorosa. Uma mulher cansada de seu trabalho, cansada de sua companheira
desorganizada com as coisas da casa, apática diante do tempo que transforma a vida
num cotidiano sem alegria:
- Hoje não me importo com muitas coisas, com a eterna xícara suja de café
em cima da pia, com as roupas velhas desbotadas, com o ter de levantar
cedo todo dia de manhã...-e continuou a lembrar de um alista enorme de
pequenas coisas que algum dia a haviam incomodado e que já não faziam
60
sentido
58
Id., p.99
Id., p.97
60
Naomi Conte em A livraria da esquina, p.55.
59
87
Das crises inúteis é uma desalentada reflexão sobre a vida e o tempo
corrosivo, trata da inutilidade das coisas, desde o título e se adensa na aguda
atmosfera do conto ambientado num quarto abafado, de luz amarela vindo de um
abajur amarelado e antigo, nos móveis inúteis do quarto, compondo um quadro que
reflete o estado emocional da personagem que persiste numa relação amorosa mais
pelo costume do que pelo amor já acabado e com isso fala do sentimento de muitas
mulheres entediadas nas suas relações amorosas que se pensavam eternas e
vivazes:
Mas é o amor? Este ficava adormecido quietinho num canto, às vezes sofria
de rompantes de saudades e um sentimento doentio de que não se podia
viver sem a sua presença, mas isso acontecia só às vezes. Era isso mesmo o
amor, um alinha contínua e tênue fiada dia a dia,que se esgarçava nos dias
de desencontros, quando a pata de dente aberta em cima da pia e as roupas
jogadas pelo quarto assumiam uma dimensão irrefreável e engrossava nas
noites frias cheias de carinho, no telefonema na hora difícil seguido do ombro
61
amigo?
Uma narrativa das sensibilidades femininas que não idealiza a eternidade do
amor, nem a felicidade constante. A autora trata da relação amorosa feminina sem
idealização e de forma crítica mostra o tempo a destruir sentimentos e produzir
conflitos sobre o amor e a convivência, com isso, a autora desfaz o locus do amor
incondicional e sem fim e contradiz a tradicional narrativa lesbiana contemporânea do
amor eterno, ao apresentar a personagem mergulhada num caos ordenado de apatia.
Mas o conto não é apenas uma reflexão sobre a inutilidade das crises existenciais, no
final, a autora, de modo sutil, talvez para dar crédito ao amor duradouro, induz à
leitura para a esperança de que a crise por que passa a personagem seja nada mais
do que um “problema tipicamente” feminino:
Baixou os olhos e viu um primeiro fio
vagarosamente de seu corp a se misturar
Levantou-se visivelmente mais aliviada e
Lavou o rosto com o sabonete perfumado,
62
corpo que dormia do lado direito da cama .
mensal de sangue escorrendo
com a água no fundo do vaso.
certa de que acordaria melhor.
voltou para a cama e abraçou o
É um conto sobre a mulher e que não deve ser posto à margem, devido às
nuances da lesbianidade. É um conto que deve ser visto antes como uma reflexão
sobre a maturidade, a crise amorosa, a acomodação profissional e o grande abismo
entre o que se sonhou e aquilo em que se transformou. A personagem sabe-se assim,
61
Id., p.57
Id., p.57
62
88
e sabendo que não há respostas ou solução, e que sua vida continuará abafada e
desorganizada, como uma extensão do caos do seu apartamento, prefere acreditar
que tudo é causado pela menstruação e, por isso, ao acordar as coisas não seriam
vistas com olhos tão nublados. Com isso ela pensa ganhar tempo e adia a decisão
(que talvez nunca venha a acontecer) de dar novo rumo à sua existência.
Permanecerá na mesma vida, igual a outras tantas mulheres.
Um terreno pantanoso, esse é o locus da literatura de temática lesbiana que
quando não confinada apenas ao entretenimento romântico é capaz de suscitar
análises sobre a mulher, seu lugar de fala, conflitos, afirmações, construções de
novos discursos e desconstrução de linguagens e discursos antigos. Se essa
literatura vive na a princípio margem, por tratar de um assunto considerado local
demais para ser vista como leitura e discussão universal sobre a relação afetiva
feminina (diga-se aqui afetiva feminina heterossexual), ela não deixa, por isso, de
ser uma análise das relações sociais e culturais em que a mulher está inserida. Essa
mesma literatura junta, num mesmo espaço, diversas manifestações femininas: a
narrativa erotizada, o final feliz cor-de rosa, as análises da complexa relação sócioafetiva, o texto como uma linguagem do corpo, o texto como lugar de gritos e
sussurros. E se consolida à medida que algumas autoras, não estigmatizadas pela
sexualidade, também debruçam seu olhar para a feitura de textos que abordam a
homossexualidade. Os estudos acadêmicos que surgem paulatinamente, sobre essa
temática, também se configuram como fator importante para a formação de uma
crítica específica.
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89
O CASTELO INTERIOR DE SANTA TERESA D´ÁVILA: LEITURA DE ALGUNS SÍMBOLOS
Wiliam Alves Biserra63
RESUMO
Este artigo faz uma leitura analítica dos principais símbolos utilizados por Santa Teresa de Jesus em
sua obra: O castelo interior. Trata-se de um dos maiores clássicos da literatura mística ocidental,bem
como uma das obras mais importantes do chamado siglo de oro da literatura espanhola.Com base
em instrumental Junguiano e da história das religiões são comentados os símbolos do castelo, do
bicho-da-seda, das fontes de água e do esponsal místico.
PALAVRAS-CHAVE: Teresa de Jesus, Gênero, Mística
“Para ter benefício neste caminho e subir às moradas
que desejamos, o importante não é pensar muito, mas amar
muito.” Santa Teresa d’Ávila
Santa Teresa de Jesus, ou d’Ávila, é uma das maiores místicas de todos os
tempos. No campo literário foi prosadora, historiadora, poetisa e mistagoga. Ela foi a
primeira mulher a ser proclamada solenemente como doutora da igreja e, logo após,
declarada patrona dos escritores; sua representação tradicional é quase sempre
com uma pena na mão.64
Mas quem foi esta mulher tão discutida, estudada, admirada e seguida? A
“verdadeira” Teresa, se isso existir, se encontra no universo do noumênico kantiano,
e só pode ser conhecida pelo amado a quem se entregou sem reservas. A
experiência do numinoso (Conf. OTTO, 2007) é, em si, um fenômeno que desafia a
compreensão e mais ainda a verbalização, Teresa não pretende, em momento
algum, esgotar os mistérios da vida interior, pelo contrário, ela sabe plenamente das
limitações da linguagem humana. Sua relutância em escrever era muito grande, ou
ao menos ela assim dizia, conforme inúmeras cartas e testemunhos.(Conf. AVILA,
2008)
A obra de Teresa que será comentada neste brevíssimo texto se chama:
Castelo interior; é considerada por alguns críticos como “o ensinamento maior da
autora. Fruto maduro de sua última jornada terrena, reflete o estádio definitivo de
sua evolução espiritual e completa a mensagem das obras anteriores”( SCIADINI in
AVILA,2008) Teresa escreve o Castelo interior, como todas as suas outras obras,
por obediência, isto é, sua vocação literária seria, para um observador desatento,
Mestre e doutorando em literatura pela Universidade de Brasília (UnB). É pesquisador bolsista do
CNPQ e membro do grupo VOZES FEMININAS. Pesquisa e publicações nas áreas de literaturas de
expressão inglesa, questões de gênero, estudos de religião e estudos historiográficos:
1. “Oração e confissão na poesia mística de Gerard Manley Hopkins”. Revista do Instituto Humanitas
Unisinos, v. 1, p. 32-35, 2008. 2. “A pedra e a torre: o cristianismo de Pedro e Maria Madalena”. In:
Elga Perez Laborde, João Vianney Cavalcanti Nuto. (Org.). Em torno à integração: estudos
transdisciplinares. 1 ed. Brasilia: Editora UnB-TEL, 2008, v. 1, p. 212-219.
64
A outra representação de Teresa, claro, é a tradição da famosa estátua de Bernini, ou seja, as
representações de seus êxtases.
63
90
algo forçado, feito por obrigação. Obviamente as coisas não são tão simples; Teresa
está envolta em todo um jogo político, de poder e papéis sociais. Ela precisa buscar
intermediações e conciliações entre o que se espera dela, como mulher e monja, e o
que ela quer fazer como reformadora e mística; qualquer redução seria, sem dúvida,
parcial.
Para alcançar as conciliações que buscava, Teresa usava algumas
ferramentas, entre elas, a mais comum é uma ferramenta retórica muito usada pelos
oradores da antiguidade, especialmente Cícero, e adaptada pelos padres do início
do Cristianismo, notadamente Agostinho, chamada captatio benevolentiae “Modéstia
exagerada, ou o desejo de colocar o leitor favorável ao escritor”65 (WEBER, 1996:49)
neste sentido, é muito sintomático que se encontre a seguinte afirmação de Teresa:
Para que querem que eu escreva? Escrevam os letrados, que estudaram.
Sou uma tonta e não saberei o que falar: trocarei uma palavra por outra e com isso
causarei dano. Já se escreveram muitos livros sobre coisas de oração. Pelo amor de
Deus, deixem-me fiar em minha Roca e seguir meu coro e meus ofícios de religião,
como as outras irmãs. Não sirvo para escrever, não tenho saúde nem cabeça para
isso”( ÁVILA,2008: 434).
Teresa faz o jogo que se espera de uma mulher naquela situação, isto é, de
não possuir instrução e de que não quer escrever. Ora, pelas suas obras percebe-se
que ela citava de cor Santo Agostinho e São Jerônimo, além de vários trechos da
bíblia; ela não era, de modo algum, ignorante, muito menos tola. Isso sabiam seus
amigos, confessores, leitores, mas também os inquisidores, e é essa a fonte do
problema. A cautela de Teresa com relação ao santo ofício sempre foi muito grande,
como não poderia deixar de ser:
Se eu disser alguma coisa que não esteja em conformidade com o que
ensina a santa madre igreja católica romana, atribua-se isso a minha ignorância e não
a malícia. Isso se pode ter por certo; pela bondade de Deus, sempre estive, estou e
estarei sujeita a ela (AVILA, 2008:440)
Reza a tradição católica que as últimas palavras de Teresa foram: “Morro filha
da igreja” (AVILA, 2008:16). Sendo mulher, mística e de descendência judaica
atrevendo-se a escrever sobre assuntos teológicos delicados, a doutora de Ávila foi
um prato cheio para a inquisição e foi levada ao tribunal, tendo seu livro da vida
apreendido e queimado em praça pública.
Quando começou a escrever castelo interior, Teresa já havia fundado a
ordem das carmelitas descalças e o mosteiro de São José, em Ávila, tendo
experimentado grande perseguição. O que a motivou e amparou durante todo o
processo foi uma intensíssima vida interior que ela já havia revelado por meio de
duas outras obras: O livro da vida e Caminho de Perfeição. O castelo, que dá nome
65
Neste trabalho, as traduções dos livros publicados em inglês são de minha autoria
91
ao livro, mostra-se como um símbolo muito rico, cheio de ramificações, metáfora
básica para a compreensão de toda a obra.
No livro se destacam quatro símbolos maiores: o castelo, as duas fontes, o
bicho da seda e o símbolo nupcial. Poderíamos classificá-los nessa mesma ordem:
Símbolo antropológico, o castelo; símbolo tomado da natureza, as fontes; de matiz
biológico, o bicho da seda; sociológico, o símbolo nupcial. (SCIADINI in AVILA, 2008:
436)
Além destes símbolos, que serão estudados mais detalhadamente, Teresa
usa a técnica de dividir o castelo em sete moradas, cada uma correspondendo a um
grau de aproximação ao sagrado, numa espécie de ascensão que é interiorização e
silêncio. De maneira bem geral poder-se-ia resumir as sete moradas da seguinte
maneira:
Primeira Morada: Entrar no castelo, converter-se, iniciar o trato com Deus
(oração); conhecer-se a si mesmo e recuperar a sensibilidade espiritual.
Segunda Morada: Lutar; o pecado ainda cerca; persistem os dinamismos
desordenados; necessidade de ancorar-se numa opção radical; progressiva
sensibilidade na escuta da palavra de Deus (oração meditativa).
Terceira Morada: A prova do amor. Estabelecimento de um programa de vida
espiritual e oração; manter-se nele; surgimento do zelo apostólico; mas sobrevêm a
aridez e a impotência como estados de prova. “Prova-nos Senhor, que sabe as
verdades”.
Quarta Morada: Brota a fonte interior, passagem à experiência mística; mas a
sorvos, intermitentemente: momentos de lucidez infusa (recolhimento da mente) e
de amor místico-passivo (quietude da vontade).
Quinta Morada: Morre o bicho-da-seda; a alma renasce em Cristo; estado de
união por conformidade de vontades, manifesta especialmente no amor ao próximo.
Sexta Morada: Crisol do Amor.Período extático e tensão escatológica. Novo
modo de sentir os pecados. Cristo presente. Esponsal místico.
Sétima Morada: Matrimônio místico. Duas graças de ingresso no estado final:
uma cristológica, outra trinitária. Plena inserção na ação. Plena configuração a Cristo
crucificado. ( SCIADINI in AVILA, 2008: 437)
Este sumário, embora bastante útil, não oferece senão uma visão por demais
resumida e intelectualizada do castelo interior, concebido pela própria santa como
uma obra prática, quase um manual, sem a pretensão acadêmica de um tratado
teológico, tirando a força dos ensinamentos da experiência pessoal de Teresa e da
alegada simplicidade do seu estilo. Foi escrito especialmente para as carmelitas
descalças do convento de São José de Ávila e deveria ser uma obra de consulta,
caso estas sentissem necessidade de ajuda em sua ascese. Para melhor
92
compreender a mistagogia teresiana, convém dedicar algumas palavras a cada um
dos símbolos principais.
1- O Castelo
Estando eu hoje suplicando a nosso Senhor...deparei com o que agora direi
para começar com algum fundamento. Falo de Considerar a alma como um castelo
todo de diamante ou de cristal muito claro onde há muitos aposentos, tal como no céu
há muitas moradas ( AVILA 2008: 441)
Teresa inicia sempre pela oração; como mulher, ela faz questão de dizer que
não possui o saber dos doutores e letrados. O que a guia, entretanto é a
experiência. A experiência pessoal da oração é, portanto, o que dá autoridade a
Teresa. Logo em seguida aparece a grande metáfora que dá nome à obra; a autora
pede para se considerar a alma “como um castelo todo de diamante ou de cristal
onde há muitos aposentos”, isso é particularmente interessante; vejamos a
simbologia do castelo:
O castelo...é uma construção sólida e de difícil acesso. Dá impressão de
segurança (como a casa, geralmente), mas de uma segurança no mais alto grau. É
um símbolo de proteção. ... O castelo figura entre os símbolos de transcendência: a
Jerusalém celeste toma a forma, nas obras de arte, de uma fortaleza eriçada de
torres e torreões pontiagudos. (CHEVALIER/GHEERBRANT, 1994:199)
Obviamente, além do simbolismo mais universal do castelo, não se deve
esquecer da ligação de Teresa com o universo das novelas de cavalaria, muito
importante para a configuração do imaginário do siglo de oro. O primeiro contato que
ela tem com a leitura não é através dos evangelhos, mas das novelas de cavalaria
que sua mãe, Dueña Sancha, lia avidamente todas as tardes. Logo que aprendeu a
ler, Teresa imitou a mãe e, com tanto afinco que sentiu-se impelida a escrever, ela
mesma, uma novela de cavalaria, o que fez, por volta dos 14 anos. O castelo não
era para ela uma imagem abstrata, colhida somente em livros, eles eram facilmente
avistados em Ávila e seus arredores. O mais famoso de todos, certamente
conhecido por Teresa, era o
castelo de Arévalo:
Castelo de Arévalo- Ávila foto
Disponível em
http://farm1.static.flickr.com/26/63242033_
0823980d5c.jpg?v=0 acesso dia 16/03/09
É comum encontrar-se
em
castelos
uma
outra
característica simbólica muito
93
interessante: a quaternidade:
A individuação aparece simbolizada pela adição do quarto componente,
donde se conclui que a quaternidade é um símbolo do si-mesmo, que sua importância
é central, ocupando o lugar de divindade. ... Podemos interpretar o aspecto da
imagem divina da quaternidade como um reflexo do si-mesmo ou, inversamente, o simesmo como uma imago Dei. (JUNG,1983: 190)
A imagem de Teresa, de um castelo muito claro, reforça ainda mais o caráter
espiritual desse símbolo. O castelo branco é um símbolo de realização, de um
destino
perfeitamente
cumprido,
de
uma
perfeição
espiritual
(CHEVALIER/GHEERBRANT, 1994:199). Ora o que isso quer dizer, a quaternidade
e a luz,? As quatros torres do castelo, com a grande construção ao centro é,
conforme apontado por Jung, um símbolo do SELF, que se confunde com a
divindade. Na imagética cristã, é muito forte a tradição de representar o cristo como
o si-mesmo, e a quaternidade como a completude, donde emana o quinto elemento,
no centro, que é o próprio messias:
Fernando Gallegos Cristo abençoando 1495 Museu do prado Madrid disponível em
http://ucelo.blogspot.com/2008_11_01_archive.html acesso em 16/03/09
Nesta Pintura, feita na Espanha, por um quase contemporâneo de Teresa,
percebemos claramente os quatro evangelistas com Cristo no centro. No canto
superior esquerdo está a águia, de João; logo abaixo, o leão de Marcos; no canto
inferior direito, o touro de Lucas e, acima, o anjo, de Mateus. O Cristo abençoando é
a quintessência alquímica,ou atma-purusha da filosofia indiana.(Conf JUNG, 1983)
A escolha dos representantes para os evangelistas também é sintomática,
Três figuras animais e uma humana, Jung veria nisso o chamado axioma de Maria:
(do terceiro surge o um como o quarto) ou seja, o símbolo antropomórfico do anjo,
se contrapõe aos símbolos zoomórficos dos outros evangelistas, esta divisão 3:1 se
94
encontra também no conteúdo dos evangelhos, pois há três escritos sinóticos e um
gnóstico, João. A visão Junguiana baseia-se na sua idéia de funções,66 basicamente
maneiras que o ego tem de lidar com a realidade. São quatro as funções principais:
pensamento, sentimento, intuição e sensação, cada uma delas pode ser introvertida
ou extrovertida e pode ocupar uma posição superior, intermediária ou inferior para a
consciência. A função mais utilizada pelo indivíduo em suas relações com a
realidade externa se diz função diferenciada, a menos usada, função inferior. A
junção das três funções diferenciadas da personalidade permite a busca pela quarta
função inferior negligenciada, a união das quatro permitiria um encontro com o Simesmo. O símbolo do castelo de luz é ainda interessante quando comparado a outro
símbolo cristão muito recorrente, a Jerusalém celeste:
A nova Jerusalém descendo do céu, página do manuscrito de Bamberg, Alemanha, datado do século X (C. 1000-20)
Disponível em http://media-2.web.britannica.com/eb-media/54/34654-004-ECA207F1.jpg acesso 16/03/09
Podemos ver neste manuscrito medieval, a nova Jerusalém representada
como um círculo com quatro torres, o que evoca o tema alquímico da quadratura do
círculo, e o Cristo, cordeiro no centro. O todo da imagem é muito semelhante a uma
mandala oriental. Mandalas são símbolos circulares milenares utilizados em várias
culturas muitas vezes com o intuito de concentração ou mesmo de proteção e cura.
66
Conf JUNG, 1991
95
A mandala tende a traçar um círculo de defesa para a psiquê e deixar toda a
desordem fora enquanto unifica, gradativamente, o Si-mesmo. É uma representação
de completude e perfeição, é o castelo ao qual nos convida Teresa.
2- O símbolo da Fonte
Para explicar algumas coisas do espírito, nada vejo de mais apropriado do
que a água. ...Esses dois reservatórios, ou piscinas, enchem-se de diferentes
maneiras. Para um, a água vem de mais longe, através de muitos aquedutos e
artifícios; o outro tendo sido construído na própria nascente, vai se enchendo sem
nenhum ruído. (AVILA, 2008: 477)
A idéia da fonte, ou das águas, é algo anterior nas obras da santa de Ávila.
Podemos encontrá-la já desde sua primeira obra O livro da vida e também na
seguinte, Caminho de perfeição; desse modo, é algo recorrente na retórica
teresiana. A novidade é a idéia de duas fontes, como piscinas.
O símbolo da água é um dos mais poderosos do imaginário; apesar de
incrivelmente complexo e multifacetado é resumido por alguns estudiosos a três
vertentes básicas (conf CHEVALIER;GHEERBRANT, 1994:14): Fonte de vida,, meio
de purificação e centro de regeneração. No caso de Teresa, ela busca suas
referências em passagens bíblicas, Cristo é descrito como fonte de água viva, do
lado de seu coração trespassado fluem sangue e água. Ele controla as águas, é
batizado nelas, anda sobre elas, as transforma em vinho. São incontáveis as
passagens do novo testamento que possuem alguma relação com a água. Tratandose de uma região seca e quente, como é o oriente médio, a água não poderia deixar
de ser um símbolo positivo. Os locais em que ela pode ser encontrada também se
tornam especiais.
Na bíblia, os poços no deserto, as fontes que se oferecem aos nômades
são outros tantos lugares de alegria e encantamento. Junto das fontes e
dos poços operam-se os encontros essenciais. Como lugares sagrados, os
pontos de água têm papel incomparável. Perto deles nasce o amor e
começam os casamentos. (CHEVALIER; GHEERBRANT,1994: 16)
É dessa tradição que vem a imagem de água de Teresa. A água que vem por
meio de aquedutos são os contentamentos67 conseguidos por meio da oração
insistente, da meditação diligente, da repetição vocal de fórmulas ou com alguma
leitura “edificante”. Trata-se, pois, de algo conseguido por empenho pessoal: “Isso
porque os trazemos mediante o pensamento, recorrendo na meditação às coisas
criadas e cansando o intelecto.” (AVILA, 2008:476)
Contentamentos na linguagem de Santa Teresa quer dizer algum tipo de consolação, quietude, paz
ou benefícios espirituais ou mentais, não raro terapêuticos, que se pode obter na oração.
67
96
O outro reservatório fica na própria nascente e apenas recebe a água que
vem naturalmente: “A água vem de sua própria nascente que é Deus” (AVILA,2008:
477). Teresa reconhece a diferença dessa água, não tanto em termos de falta ou de
esforço próprio, mas pelos efeitos gerados; segundo ela “produz esta água
grandíssima paz, quietude e suavidade no mais íntimo de nós mesmos”
(AVILA,2008:477). É exatamente o expediente utilizado por ela no Livro da vida,
para diferenciar as experiências que tinha entre, segundo ela, provenientes de Deus
ou do diabo. Qualquer coisa proveniente de Deus deixava-lhe com uma ótima
sensação que durava até muito tempo depois que se acabara a experiência mística.
No caso das falsas consolações ou visões, nada restava ou sentia medo e duvidava
da procedência do que sentira.
Quanto à imagem da piscina à beira da fonte, seria aquele que se abandona
ao amor, sem medo ou esperanças, apenas amando. Esse é um fundamento
importante na espiritualidade carmelita, especialmente explicitado por São João da
Cruz em sua Subida ao Monte Carmelo(conf. DA CRUZ, 2002); quem quiser, não
terá, quem procurar, não achará, quem temer, terá seu medo realizado, apenas o
nada leva ao tudo da divindade “Nada querer, tudo ter”. É impossível enquadrar os
grandes místicos em padrões acadêmicos rígidos. O discurso sobre eles muitas
vezes se perde em paradoxos e tautologias. O Verbo deles se fez Carne, nosso
verbo é só verborragia. A premissa básica da qual partem é a do amor inefável,
amor que excede todo o conhecimento, a rosa é sem porquê.
3-O Símbolo do Bicho da Seda
Já tereis ouvido das maravilhas de Deus no modo como se cria a seda,
invenção que só Ele poderia conceber. É como se fosse uma semente, grãos
pequeninos como o da pimenta. Devo dizer que nunca o vi, mas ouvi-o dizer, assim
se algo não corresponder, não é minha a culpa. Pois bem, com o calor, quando
começa a haver folhas nas amoreiras,essa semente- que até então estivera como
morta- começa a viver. E esses grãos pequeninos se criam com folhas de amoreira;
quando crescem, cada verme, com a boquinha, vai fiando a seda, que tira de si
mesmo. Tece um pequeno casulo muito apertado,onde se encerra; então desaparece
o verme, que é muito feio, e sai do mesmo casulo uma borboletinha branca, muito
graciosa (AVILA, 2008:493)
Eis a nova imagem de Teresa, sem dúvida um símbolo poderoso de
transformação, de passagem de uma condição inferior a outra, superior. Entretanto
as comparações vão além das obviedades. A pequenez e fragilidade do bicho da
seda são como as humanas, a idéia da semente alude a algo que já se possui em si,
como um devir, possibilidades diferentes de vir-a-ser. Não se pode esquecer
também da rica tradição simbólica cristã, certamente conhecida por Teresa, do grão
pequenino, comparado no evangelhos ao reino de Deus e ao próprio Cristo.
97
Há, novamente, a captatio benevolentiae. Teresa se esquiva do que fala
alegando ignorância; entretanto, baseia boa parte das quintas moradas, já um grau
elevado da vida mística, nessa imagem de transformação. É este o primeiro
momento de mudança íntima mostrado nas moradas? Certamente não, trata-se de
um processo que vem se dando desde a entrada no castelo, pela porta da oração,
nas primeiras moradas. O que ocorre de diferente é a maturidade que aplaina um
caminho cheio de subidas e descidas, perdas e encontros.
O calor é interpretado pela santa como o amor de Deus, que anima a alma a
buscá-Lo. A idéia de ressurreição, por vezes ligada à de semente, aparece,
confirmando a tradição bíblica da qual se nutria Teresa. O alimento dado ao jovem
bicho-da-seda não é a mais fina das iguarias, mas algo trivial, encontrado por todos
na natureza, assim:
A alma- representada por essa lagarta- começa a ter vida quando, com o
calor do Espírito Santo, começa a beneficiar-se do auxílio geral que Deus dá a todos,
fazendo uso dos meios confiados pelo Senhor a sua igreja: confissões freqüentes,
boas leituras, sermões. São esses os remédios para uma alma que está morta em
seu descuido, pecados e ocasiões de cometê-los. ( AVILA,2008: 494)
O alimento do auxilio geral é algo prático, técnica; não mais, porém pode
levar a frutos de experiência mística. O pequeno inseto tira de dentro de si, pela
boca, a seda que usa para fazer seu casulo. O paralelo pretendido pela santa é com
a oração, que se tira de dentro de si, às vezes com esforço, mas que propicia o
material para o casulo transformador. O período de mudança interior, simbolizado
pelo casulo apertado é feito de dores e escuridão para o místico. O processo é
coroado com a transformação em borboleta, entretanto, é apenas um novo começo,
pois é preciso aprender tudo novamente, em uma nova perspectiva.
4-O símbolo do casamento espiritual
E entendei que há enorme diferença entre todas as visões passadas e as
desta morada. Há tão grande distância entre o noivado e o matrimônio espiritual
quanto a que existe entre os que apenas são noivos e os que já não podem separarse. ( AVILA, 2008:570)
Essa é a última morada da alma, o ponto máximo do caminho místico
teresiano. O símbolo maior apresentado é o do casamento espiritual. Teresa, assim
como João da Cruz, retira sua concepção do cântico dos cânticos, atribuído ao rei
Salomão. A imagem da amada que busca seu amado, sozinha e com frio, em meio a
uma noite escura, é a expressão mais forte da espiritualidade carmelita. O fim do
périplo da amada é a união com aquele a quem buscava. João da Cruz conta em
detalhes este caminho em sua obra mais famosa em uma noite escura.
Ao se buscar uma definição de dicionário, encontra-se, por exemplo, que:
98
Em um sentido místico, significa a união de Cristo com sua igreja, de Deus
com seu povo, da alma com seu Deus. ...Simboliza a origem divina da vida, da qual
as uniões do homem e da mulher não são senão receptáculos,instrumentos e canais
transitórios. Ele se inclui entre os ritos de sacralização da vida. (CHEVALIER;
GHEERBRANT,1994: 197)
Expandindo um pouco mais essa definição, na psicologia analítica, o
casamento é um símbolo de individuação, a união entre consciente e inconsciente, a
junção dos princípios masculino e feminino que leva a uma representação da
totalidade, da completude. Jung resgata psicologicamente algo que é conhecido há
muito tempo pelos historiadores da religião e antropólogos: o hierosgamos.
Imagem disponível em :http://www.istanbul-yes-istanbul.co.uk/alchemy/Rosariumfinal.htm acesso 25/03/09
A ilustração acima, retirada de um dos mais importantes livros da alquimia, o
Rosarium philosophorum, mostra o hieros gamos. O princípio masculino, o rei, está
de pé sobre o sol, nu, ele segura uma rosa vermelha na direção da rainha, também
nua, de pé sobre a lua crescente, com uma rosa branca na mão. As duas rosas se
cruzam e cada um segura a rosa oferecida pelo outro. Entre eles há um mediador, a
pomba, com uma rosa negra no bico, fazendo uma intersecção vertical entre as
duas rosas diagonais dos amantes. Na alquimia o papel de intermediário é dado a
Mercúrio, tido como um deus ambivalente, venerado por ladrões e guia das almas
para o hades, psychopompos. A pomba é a terceira pessoa da trindade, o paráclito,
consolador, o deus que fica e mora dentro dos homens. A pomba é um símbolo
fortemente feminino, era o pássaro de Afrodite e continuou sendo o de Vênus,
representa suavidade e a esperança de algo novo, do fim de um ciclo de sofrimento
e purgação, como a pomba que Noé lança, logo após o dilúvio, para saber se já
havia terra.
No caso de Teresa, o hieros gamos é algo mais íntimo ainda, pois se trata da
união plena entre Cristo e a alma:
Há tão grande distância entre o noivado e o matrimônio espiritual quanto a
que há entre os que apenas são noivos e os que já não podem separar-se. ...
Equiparemos a união a duas velas de cera ligadas de tal maneira que produzem uma
99
única chama, como se o pavio, a luz e a cera não formassem senão uma unidade. No
entanto, depois, é possível separar uma vela da outra. ... Todavia [no matrimônio] é
como se num aposento houvesse duas janelas por onde entrasse muita luz, penetra
dividida no recinto, mas se torna uma só luz. ( AVILA,2008: 572)
Ou seja, o matrimônio místico carmelita é uma espécie de hieros gamos, mas
é mais profundo. Na tradição pré-cristã e alquímica, os dois se unem e geram um
terceiro: o filho salvador, o puer aeternus, o hermaphroditus. O rei e a rainha se
unem e geram um terceiro, deixam, pois, de ser o que eram. Não é o caso com
Teresa, Deus não deixa de ser o que era, nem tampouco a alma; com a
espiritualidade do amor esponsal, ela apenas realiza o que sempre foi, cumpre seu
devir. Muitas ligações podem ser feitas entre essa idéia e a visão junguiana de
individuação.
Ainda na doutrina teresiana, o matrimônio espiritual produz grandes efeitos na
alma todos em identificação com o esposo. A santa enumera (Conf. AVILA,
2008:575): 1- esquecimento de si; 2- desejo de padecer; 3- grande deleite interior, 4grande desejo de servir a Deus, não de morrer, como antes; 5- Desapego de tudo;
6- O não temor do disfarces do demônio; 7- o amor sereno que tudo excede e
abarca.
Teresa nos aponta um itinerário espiritual; o castelo interior é um caminho de
busca e realização, é um processo de individuação. A mística cristã produziu, ao
longo dos séculos, muitos tratados, mas sem dúvida os relatos dos próprios místicos
são os melhores documentos que temos para avalia essa experiência. A literatura
tem sido o veículo privilegiado para isso. Quase todos os grandes místicos foram
poetas ou prosadores. Os símbolos e metáforas, os espaços vazios do significante,
são o caminho encontrado pelos visionários para exprimir o inefável. Teresa fez isso
como poucos. A porta do castelo é a oração, o centro é o próprio Divino.
Para concluir, deixo o(a) leitor(a), com um dos mais belos poemas de Teresa,
para que por esforço próprio e por meio das palavras, chegue ao amor que excede
todas as palavras:
Buscando a Deus
Alma, buscar-te-ás em mim,
E a mim, buscar-me-ás em ti.
De tal sorte pôde o amor
Alma, em mim te retratar,
Que nenhum sábio pintor
Soubera com tal primor
Tua imagem estampar
Foste por amor criada,
100
Bonita,formosa e assim
Em meu coração pintada,
Se te perderes, amada,
Alma, buscar-te-ás em mim.
Porque sei que te acharás
Em meu peito retratada,
Tão ao vivo desenhada,
Que em te olhando folgarás
Vendo-te tão bem pintada
E se acaso não souberes
Em que lugar me escondi,
Não busques aqui e ali,
Mas se me encontrar quiseres,
A mim, buscar-me-ás em ti.
Sim, porque és meu aposento,
És minha casa e morada;
E assim chamo no momento
Em que de teu pensamento
Encontro a porta cerrada.
Busca-me em ti, não por fora...
Para me achares ali,
Chama-me, que, a qualquer hora,
A ti virei sem demora,
E a mim, buscar-me-ás em ti.
Imagem disponível em: http://beaconforlife.blogs.com/pastoral_coach/Teresa_of_Avila.jpg acesso em 26/03/09
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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AVILA, Santa Teresa de, Caminho de perfeição in Obras completas, Loyola, São Paulo, 2008.
AVILA, Santa Teresa de, O castelo interior, in obras completas, Loyola, São Paulo, 2008.
AVILA, Santa Teresa de, O livro da vida, in Obras completas, Loyola, São Paulo, 2008.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain Dicionário de símbolos, José Olympio, Rio de Janeiro,
1994, 8ª edição.
CRUZ, São João da, Obras completas, Vozes, Petrópolis,2002.
JUNG, Carl Gustav, tentativa de interpretação psicológica do dogma da trindade in Psicologia da
religião ocidental e oriental, Vozes, Petrópolis, 1983.
JUNG, Carl Gustav, Tipos psicológicos, Vozes, Petrópolis, 1991.
JUNG, Carl Gustav , Os arquétipos e o inconsciente coletivo, Vozes, Petrópolis, 2008.
KANT, Immanuel, Crítica da razão pura, Ícone, São Paulo, 2007.
OTTO, Rudolf, O sagrado, Vozes, São Paulo, 2007.
SCIADINI, Patrício Introdução in AVILA, Santa Teresa de, O castelo interior, op cit.
WEBER, Alison Teresa of Ávila and the rhetoric of femininity, Princeton university press, EUA, 1996.
101
OS RITUAIS SIMBÓLICOS NA LÍRICA DE ADÉLIA MARIA WOELLNER
68
Clarice Braatz Schmid Neukirchen, t
69
Antonio Donizeti da Cruz
RESUMO:
Este é artigo é resultante da investigação realizada para a dissertação de Mestrado intitulada
“Tempo e Memória na lírica de Adélia Maria Woellner”, sob orientação do prof. Dr. Antonio Donizeti da
Cruz. O trabalho também faz parte da pesquisa do projeto “Ritual, sacralidade e epifania na lírica de
Adélia Maria Woellner e Arriete Vilela”, cadastrado junto ao Grupo LER – UnB.
PALAVRAS-CHAVE: recepção, Adélia Maria Woellner, Arriete Vilela.
É indiscutível que, para além do mundo concreto, existe um mundo abstrato,
povoado de imagens e símbolos preexistentes à vida humana. Este mundus
imaginalis, utilizando a expressão cunhada por Henri Corbin, seria, na visão de Ana
Maria Lisboa de Mello, “o mundo intermediário – território do onírico, do simbólico.
Essa instância indicia que a função imaginária é inerente ao ser humano e está em
perene atividade, de tal forma que atua sobre os comportamentos, sobre as criações
e altera as formas de vida” (2002, p. 18). Mello observa que, em consonância com
as teorias junguianas,
certas personagens mitológicas, determinadas configurações simbólicas,
alguns emblemas, longe de serem o produto evemerista de uma
circunstância histórica precisa, são espécies de universais imaginados – os
arquétipos e as imagens arquetípicas – passíveis de dar conta da
universalidade de certos comportamentos humanos, normais ou
patológicos (2002, p. 16).
Por muito tempo, esse “mundo intermediário” foi banido do campo de estudos
científicos, por entender-se que os saberes ligados ao imaginário eram uma forma
errônea e ilusória de se explicar os acontecimentos. No entanto, a partir do século
XX, os estudos envolvendo o imaginário foram retomados e filósofos como Gaston
Bachelard, ao se debruçarem sobre esse campo do saber, afirmaram que “as
criações tecnológicas foram, de modo geral, antecedidas pela criação artística,
revelando que o imaginário humano é fonte de criação e transformação das
sociedades” (MELLO, 2002, p. 18-19). Ou seja, a partir do século XX, o mundus
68
Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Docente Colaboradora do curso
de Letras da Unioeste., campus de Cascavel, e do curso de Letras da Unipar, Campus de Cascavel.
69
Doutor em Teoria Literária. Docente do programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras da
Unioeste, campus de Cascavel e do curso de Letras da Unioeste, Campus de Marechal Cândido
Rondon.
102
imaginalis volta a figurar entre os objetos de estudos científicos, sendo que o campo
de estudos tendeu a ampliar-se cada vez mais com o passar do tempo.
Mello observa que, de acordo com Jung, o homem possuiria uma tendência
congênita a simbolizar, evidenciando a existência de uma “hereditária capacidade
humana de produzir as mesmas imagens” (MELLO, 2002, p. 28), o que se
inscreveria num plano anterior à lógica, manifestando-se em todas as áreas do
saber, inclusive no científico. Nessa perspectiva,
enquanto capacidade de alcançar a realidade em si mesma, a consciência
mítica é parte constitutiva da consciência humana. É uma possibilidade
radical de ver, natural ao espírito humano, porque determinada por uma
possibilidade de ser anterior a qualquer formulação lógica (CRIPPA, 1975,
p. 44, apud MELLO, 2002, p. 35).
Conforme salienta Mello,
a possibilidade de ver, anterior à lógica, associa-se às idéias expostas pela
psicologia, mais especificamente pela concepção junguiana da existência
do inconsciente coletivo, cujos conteúdos ‘não provêm de aquisições
pessoais, mas da possibilidade herdada do funcionamento psíquico, quer
dizer, da estrutura cerebral herdada´. Tal estrutura produz arquétipos,
imagens primordiais coletivas, isto é, comuns a povos de diferentes
culturas e épocas, além de serem sujeitas a manifestações periódicas. O
inconsciente coletivo, ao contrário do individual, é idêntico em todos os
homens e constitui o fundamento psíquico universal, de teor suprapessoal,
presente em cada ser humano (2002, p. 35-36).
Este inconsciente coletivo, no qual residem as imagens arquetípicas, pode ser
considerado uma espécie de patrimônio da humanidade, cuja data de fundação não
pode ser precisada, sendo dele que, na visão de Jung, surgem sonhos e mitos. Para
a teoria junguiana, as lembranças pessoais seriam depositadas no inconsciente
individual, enquanto os conteúdos de natureza universal no inconsciente coletivo.
Mello observa que, segundo Jung, as “imagens primordiais” revelariam “a ‘aptidão
hereditária’ que tem a imaginação humana de ser como era nos primórdios” (2002,
p. 67, grifos do autor).
Seja entre os gregos ou entre outros povos, os mitos, geralmente, assumem
esta característica de representarem um conjunto de símbolos muito antigos, que
teriam a intenção de preservar dogmas e preceitos morais, dando aos seres
103
humanos um exemplo a ser seguido. Nessa perspectiva, seriam “a súmula do
conhecimento útil” (ELIADE, 1991, p. 112).
Da mesma forma, os mitos costumam guardar a representação da vida
passada dos povos, suas histórias, atos heróicos etc., o que torna a mitologia ainda
mais correlata à memória. No dizer de Mircea Eliade, os mitos seriam a
representação de histórias verdadeiras e preciosas por seu caráter sagrado,
ocorridas em um passado muito distante. Nesse prisma, é plausível afirmar que os
rituais religiosos assumem certa equivalência com os mitos. Para Eliade, as grandes
religiões possuem mitologias, sendo estas a expressão da influência do sagrado no
mundo natural.
Conforme salienta Eliade, “o mito re-atualiza continuamente o Grande Tempo
e dessa forma projeta quem o ouve a um plano sobre-humano e sobre-histórico que,
dentre outras coisas, proporciona a abordagem de uma realidade impossível de ser
alcançada no plano da existência individual profana” (1996a, p. 56).
Na visão de José Carlos Reis, por meio do tempo mítico, o homem buscaria
participar de uma realidade transcendente, tentaria voltar a um tempo inaugural, no
qual se deu a fundação do mundo. Esta característica também pode ser transposta
para a religião, haja vista que a função desta é, geralmente, ligar o homem a um
plano superior, colocá-lo em contato com o divino e primordial. Através da imitação
das realidades perpetuadas por meio dos mitos, o homem tenta abolir seu lado
profano, tornando o momento da criação “um eterno presente” (REIS, 1994, p. 144).
No tempo mítico, o homem teria o poder de encontrar o ser, a estabilidade e a
eternidade, sendo o eterno retorno às origens o responsável pela perpetuação de
eventos e personagens dignos de rememoração. Para Reis, a memória mítica seria
anti-histórica, pois a história tenderia a transformar ações e personagens em
modelos, modificando-os no decorrer dos séculos. A partir deste ângulo, pode-se
104
dizer que a memória mítica contribuiria para que o indivíduo fosse liberto do tempo
cronológico, instaurando a eternidade por meio dos rituais.
Seja qual for a interpretação que se dê ao mito, sua maior importância seria a
capacidade que este possui de “trazer à tona a função simbolizadora da imaginação.
[...] seu valor simbólico, que lhe revela o sentido profundo” (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 2002, p. 612). No dizer de Eliade, “o símbolo, o mito, a imagem
pertencem à substância da vida espiritual, que podemos camuflá-los, mutilá-los,
degradá-los, mas que jamais poderemos extirpá-los” (1996a, p. 7).
Na contemporaneidade, seria por meio da poesia que os mitos seriam reevocados, pois
a poesia restabelece o equilíbrio mítico. Nas nossas sociedades, onde
reina a especialização e a divisão do trabalho, o poeta tem por função
fabricar solitariamente as palavras e os cantos que o semantismo coletivo
das sociedades primitivas segrega anonimamente sob a forma de mitos
(DURAND, 1996, p. 52).
Nesse sentido, a própria poesia seria um instrumento a serviço da
rememoração. Mello, por sua vez, declara que,
o poema lírico, ao privilegiar as imagens simbólicas, bem como as
70
metafóricas (subespécies do símbolo, segundo Creuzer) , provoca a
ruptura com a linguagem cotidiana e, desse modo, instaura o ‘sagrado’.
Nesse sentido, ‘poesia é mitologia’; [...] O hermetismo da lírica moderna
assenta na reapropriação do passado, através da construção de versos
‘plenos de ressonâncias de um patrimônio poético, mítico e arcaico (2002,
p. 48-49).
A presença de imagens e símbolos, bem como a recorrência à mitologia e
rituais de diversos povos, é uma das formas por meio das quais se dá, na lírica
woellneriana, a rememoração. Segundo Mello, “ao mergulhar profundamente no seu
mundo psíquico, o poeta pode resgatar ‘imagens primordiais mágicas e míticas’”
(2002, p. 48) as quais, além de pertencerem ao patrimônio simbólico universal,
também fazem parte do imenso cabedal de símbolos que a memória individual
comporta.
70
CREUZER apud TODOROV, 1977, p. 254.
105
Ocorrem de forma constante, na obra de Woellner, reflexões acerca dos mitos
cosmogônico, principalmente daqueles referentes à mitologia cristã, como acontece
no poema “Deus”:
Artesão-Poeta
teceu o mundo
com agulhas de luz
e fez,
do sol,
um poema dourado.
(WOELLNER, Infinito em mim, 2000, p. 37).
Observa-se que a poeta recorre ao mito genesíaco, segundo o qual, o Deus
cristão teria criado o mundo. A poeta apresenta Deus como um artesão, haja vista
ter feito o mundo com suas próprias mãos, conforme o mito bíblico da criação. A
criação de Deus, exemplificada pelo sol, é considerada um verdadeiro poema. Por
isso, ele também é exibido como um poeta, salientando que a matéria com da qual o
Criador faz surgir o mundo é a palavra. Atentando-se para os escritos bíblicos, é
possível perceber que tudo o que existe formou-se por meio da palavra: “E disse
Deus: Haja luz. E houve luz”71. A palavra proferida por Deus materializa-se,
formando os seres que compõem o mundo. O próprio Cristo apresenta-se como a
materialização da palavra, conforme nota-se nos seguintes versículos: “no princípio
era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. [...] E o verbo se fez
carne e habitou entre nós”72. Jesus é visto, assim, como o Verbo, a palavra em seu
estado concreto. É somente depois que Deus, através da palavra, povoou a terra
com inúmeras criaturas, que recorre ao barro para, nele, moldar o homem. Em
Gênesis, capítulo 2, versículo 19, lê-se: “Havendo, pois, o Senhor Deus formado da
terra todo animal do campo e toda ave dos céus, os trouxe a Adão, para este ver
como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu
nome”. O homem, ao receber o poder de nomear as coisas criadas, torna-se
71
72
Gênesis, capítulo 1, versículo 3. Bíblia Sagrada. Edição revista e corrigida, 1995.
João, capítulo 1, versículos 1 e 14. Bíblia Sagrada. Edição revista e corrigida, 1995.
106
parceiro de Deus, visto que nomear também pode ser considerado uma prática de
criação, pois transforma a matéria concreta em um elemento abstrato, sendo que, às
vezes, a palavra que nomeia um objeto perdura por muito mais tempo que o próprio
objeto. O poeta continua a dar nome a realidades que somente a arte poética
consegue alcançar, continuando, assim, a tarefa outorgada a Adão.
Adélia Maria pinta com novas cores este mito bíblico, sem alterar seu
significado. A poeta, em consonância com a perspectiva apontada por Burgos sobre
a retomada dos mitos na literatura, reatualiza, regenera e prolonga a potencialidade
do mito evocado, já que “cada leitura do imaginário será uma ‘ação nova’ que realiza
um possível anterior, mas, sobretudo, inaugura uma multiplicidade de novos
possíveis” (MELLO, 2002, p. 97).
Rituais católicos e alquímicos ocupam lugar de destaque na poesia de
Woellner, conforme evidencia o poema “Oferenda”:
No altar do firmamento,
a lua cheia
é hóstia
consagrada aos deuses.
(WOELLNER, Infinito em mim, 2000, p. 74).
Aqui, o ritual Católico Apostólico Romano da consagração da hóstia é
comparado a um rito de consagração da própria natureza. Ocorre a junção de uma
crença católica a uma crença politeísta, já que a palavra “deuses” encontrar-se no
plural. Há um paradoxo no poema, pois enquanto o ritual católico representaria
Deus, que é a manifestação do absoluto e do uno, o politeísmo seria a
representação da multiplicidade e divisão do absoluto. A lua, que representa uma
divindade feminina em várias mitologias – como, por exemplo, a deusa grega
Ártemis – nesse poema é considerada a própria hóstia, que, na simbologia Católica,
representaria o corpo de Cristo. Assim, de forma sutil, a poeta faz uma junção entre
o politeísmo e a simbologia ritualística católica da comunhão, unindo uma prática
considerada sagrada a outra considerada pagã, criando uma imagem delicada de
107
exaltação da divindade da natureza. Também no poema “Constelação”, há a
menção a um ritual católico:
Na madrugada
transparente e fria,
no céu sobressaia
o Cruzeiro do Sul.
A emoção
compreendeu ser
cada estrela
a marca do toque de Deus,
no corpo do infinito,
ao fazer
o sinal da Cruz...
(WOELLNER, Infinito em mim, 2000, p. 30).
Novamente, Adélia Maria une um gesto ritualístico católico a uma imagem da
natureza. Para a crença católica, “tudo o que existe concerne ao ser subsistente
(Deus), é relativo a ele” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 332). Nessa
perspectiva, o eu lírico estaria simplesmente explicando a formação do Cruzeiro do
Sul, tendo em vista que esta constelação, assim como todo o restante da natureza,
seria obra das mãos do Criador. É interessante notar que, na obra woellneriana, há
uma espécie de panteísmo. Em diversos poemas é possível perceber a divinização
dos elementos da natureza, como no poema “Oferenda”, no qual a lua simbolizaria o
“corpo de Cristo”. Chevalier & Gheerbrant afirmam que,
todos os seres aparentes e sensíveis da natureza são participações do ser:
da mesma forma, todos os mistérios da vida da graça são, para os crentes,
participações na natureza mesma de Deus. Esses seres contingentes, por
sua própria realidade, são, por sua vez, símbolos do ser e de Deus (2002,
p. 333).
Eliade, por sua vez, observa que, “para o homem religioso, a Natureza nunca
é exclusivamente ‘natural’: está sempre carregada de um valor religioso. Isto é
facilmente compreensível, pois o Cosmos é uma criação divina: saindo das mãos
dos deuses, o mundo fica impregnado de sacralidade” (1996b, p. 99). É o que
acontece nos poemas de Woellner, nos quais as cenas mais banais nunca
correspondem somente àquilo que o olho humano despercebido pode captar. Antes,
apresentam-se elementos aparentemente corriqueiros, mas que revelam e
comportam outras realidades, desvelando sentidos insuspeitos. Consoante Bastide,
108
a obrigação que tem o poeta de exprimir o inefável o transporta a um campo em que
se torna necessário “a constituição de mitos, a criação de imagens analógicas”
(1997, p. 127), o que explicaria este olhar diferenciado com que os poetas,
geralmente, contemplam a realidade circundante.
A união entre imagens da mitologia cristã e pagã pode ser observada, ainda,
no poema “Comemoração”:
As fadas
estenderam a toalha azul
e cobriram a mesa celeste
com nuvens
de algodão-doce,
para festejar
o aniversário dos anjos...
(WOELLNER, Sons do silêncio, 2004, p. 36).
No texto, Woellner unifica a simbologia pagã das fadas à imagem
preponderantemente cristã dos anjos. São elas que festejam o aniversário dos
anjos, colocando-se, assim, em proximidade com estes seres. As fadas
simbolizariam, segundo Chevalier & Gheerbrant, as “capacidades mágicas da
imaginação”, representando “a capacidade que o homem possui para construir, na
imaginação, os projetos que não pôde realizar” (2002, p. 415). Inicialmente, a
imagem das fadas era correlata à imagem da mulher, sendo consideradas
mensageiras do outro mundo. No entanto, conforme a visão de Chevalier &
Gheerbrant, com o advento do cristianismo, esta figura se modifica, passando a
simbolizar o amor feminino. Pode-se notar que, consideradas mensageiras entre o
mundo humano e o divino, as fadas tornam-se um símbolo equivalente ao dos anjos,
pois estes também atuam como mensageiros entre Deus e os homens. Além de
serem, ambos, considerados mensageiros, tanto fadas quanto anjos deslocar-seiam, muitas vezes, sob a forma de cisnes. No poema, ao partilharem de uma mesma
natureza, fadas e anjos podem, juntos, comemorar um evento, anulando a divisão
existentes entre seres pagãos e cristãos, o que, de certa forma, preconiza a
existência de uma unidade cósmica.
109
A imagem das fadas apresenta-se, ainda, em consonância com as Parcas
romanas. Chevalier & Gheerbrant observam que, da mesma forma que as Parcas,
ou Moiras, também as fadas seriam uma personificação do destino. O próprio nome
“fada” seria, segundo Jorge Luis Borges, uma derivação do vocábulo latino Fatum,
ou seja, estaria vinculada à palavra "destino”. Inclusive, de acordo com Chevalier &
Gheerbrant, as estátuas das três Parcas costumavam ser chamadas, na Itália, de
tria fata, isto é, “três fadas”. Seriam tecedeiras que, ao cortar o fio do destino,
demarcam a hora da morte dos seres humanos. Pierre Brunel apresenta o mito das
fiandeiras como “aquele que nos prende ainda à dinâmica imaginária mais fecunda”
(1997, p. 370). São as fiandeiras, as três fadas, que tecem a trama dos destinos,
determinando a hora do nascimento e da morte, revelando o porquê de, no poema,
serem as fadas que estendem a tecido azul, resultado de seu trabalho, que cobre “a
mesa celeste”, para comemorar “o aniversário dos anjos”.
As fadas associam-se, ainda, ao ritmo terciário – demarcado pelo nascimento,
evolução e involução – e ao quaternário, o ritmo lunar e das estações, marcado por
um tempo de pausa, silêncio e morte, seguido por outro de renascimento,
representação de uma vida contínua que, apesar de possuir uma fase de morte,
renasce ao término desta. A imagem do aniversário também pode ser considerada
como símbolo do ciclo da existência. No poema, a menção ao aniversário dos anjos
corrobora para com a representação de um tempo quaternário, isto é, correlacionase ao tempo infinito, marcado pelo constante renascimento, haja vista a imortalidade
dos seres angelicais.
A imagem de seres celestes novamente se faz presente no poema “Ritual”:
Os querubins,
em sublime reverência,
acenderam o fogo
no altar da eternidade,
para iluminar
a noite do mundo.
Receptivo,
o céu
110
engalanou-se de fagulhas.
(WOELLNER, Infinito em mim, 2000, p. 91).
É possível observar a explicação de um fenômeno da natureza de uma forma
mágica, remetendo à mitologia cristã. O céu estrelado revela a presença das forças
divinas. O firmamento repicado de estrelas é uma imagem do altar da eternidade em
que os querubins acenderam o fogo designado a iluminar o mundo. Apesar de, na
atualidade, a referência a anjos ser atribuída aos cristãos, outros povos, como os
celtas e os babilônicos, também desenvolveram, na antiguidade, uma angeologia
muito semelhante à adotada pelo cristianismo. Os querubins, na hierarquia celeste,
ocupariam uma posição intermediária entre tronos e serafins, sendo caracterizados
por “sua conformidade com Deus, pela massa de conhecimento, ou seja, pela
efusão de sabedoria: a denominação de querubim revela, por outro lado, aptidão
para conhecer e para contemplar Deus, para receber os mais elevados dons de sua
luz” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 763).
Para Durand, o anjo é símbolo extremo da ascensão, “são símbolos da
própria função simbólica que é – como eles! – mediadora entre a transcendência do
significado e o mundo manifesto dos signos concretos, encarnados” (DURAND,
1995a, p. 25) No poema em questão, os querubins acedem a chama que há de
iluminar os homens, o que, na perspectiva acima apresentada, pode corresponder
não somente à luz propriamente dita, mas também à iluminação espiritual, haja vista
que a luz é símbolo de regeneração, pureza e conhecimento, tanto na mitologia
judaico-cristã, quanto em outras mitologias, como na chinesa e na islâmica. Além
disso, os anjos são considerados seres intermediários entre Deus e os homens, a
quem cabe funções reveladoras, produzindo a elevação espiritual dos homens a
Deus, o que coopera para que a luz que estes distribuem ao mundo possa ser
entendida como conhecimento divino.
111
Vale lembrar que os símbolos seriam uma forma de representar “coisas
ausentes ou difíceis de perceber, tais como ‘causa primeira’, ‘alma’, espírito’,
‘deuses’ e que são enfocados pela metafísica, pela arte ou pela religião” (MELLO,
2002, p. 65). É o que ocorre no poema, haja vista que por meio da organização das
imagens desvela-se algo que não se encontra expresso explicitamente.
O desejo de desviar-se da fugacidade da existência humana é um tema
sempre presente nos rituais simbólicos dos mais variados povos, presentificando-se,
também, na obra de Woellner, conforme observa-se no poema “Alma gêmea”, por
meio da recorrência ao “Sansara”, termo sânscrito relacionado ao ciclo da vida:
Agora é hora.
Vai e vence o destino!
Revelando tua fé,
tem coragem rara,
para não deixar que, sutilmente
e de inopino,
te iluda e te domine
a Roda de Sansara...
Fica de olhos abertos e,
sem desatino,
as seduções fugazes, com firmeza encara.
Que a cada ameaça,
no interior, toque o sino
fiel
da consciência,
que sempre a dúvida aclara.
Investiga e ouve,
apenas, o teu coração
e rompe, de vez, com a cruel repetição:
desata o nó
que te prende, ainda, ao passado!
Liberto dos grilhões,
seja iluminado
pra reconhecer, enfim, tua mulher,
tua fêmea,
e acolher, nos braços,
feliz,
a tu’alma gêmea.
(WOELLNER, Sons do silêncio, 2004, p. 33).
No Sânscrito a Roda de Sansara seria a representação do ciclo da vida, do
qual ninguém pode escapar. Na concepção budista, o Sansara seria semelhante ao
nirvana, com a distinção de que o nirvana ligar-se-ia à pureza de espírito e
consciência do absoluto, enquanto o Sansara estaria vinculado às inclinações
sensuais e a uma representação da natureza maculada. Nesta perspectiva,
112
enquanto o nirvana simbolizaria o acesso à purificação, o Sansara seria uma
espécie de círculo vicioso. No poema, o eu lírico aconselha seu interlocutor a fugir
da Roda de Sansara, revelando uma certa polaridade maléfica desta. Observa-se
que a Roda de Sansara é relacionada, no poema, a seduções e ameaças, as quais
somente poderão ser vencidas por meio de uma consciência em alerta.
Atrelado à consciência, apresenta-se a imagem do sino, cujo simbolismo
encontra-se ligado à percepção do som “que é reflexo da vibração primordial”
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 835). No islã, o sino representaria o reflexo
do Poder divino no viver humano, sendo que a percepção de seu som extinguiria as
restrições instituídas pela temporalidade, ou seja, o som do sino possibilitaria que o
homem participasse de um tempo e de uma experiência que lhe é negado pela
transitoriedade da vida humana. Universalmente, a simbologia dos sinos
representaria “um poder de exorcismo e purificação. Ele afasta as influências
malignas ou, pelo menos, adverte da sua proximidade” (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 2002, p. 835). É o que se evidencia no poema, haja vista que seria
o toque fiel do sino da consciência que preveniria o interlocutor contra as possíveis
ameaças. Conforme observam os autores, no Tibet, o símbolo dos sinos também
estaria associado à sabedoria, considerada elemento passivo e feminino, oposto ao
Método. Estes autores salientam que “a sineta, em oposição ao raio, simboliza
também as virtudes femininas, a Doutrina” (2002, p. 835). Note-se que, no poema,
ocorre uma busca por libertar a feminilidade, conforme expressa-se nos versos:
“Liberto dos grilhões,/ seja iluminado/ pra reconhecer, enfim, tua mulher,/ tua fêmea”.
O ato de ouvir o tocar dos sinos da consciência contribuiria para esta libertação.
Vale lembrar que o “feminino” pode ser entendido como o símbolo da sublimação
dos desejos em direção à espiritualidade, destacando que, segundo Durand, na
literatura, o “eterno feminino e sentimento de natureza caminham lado a lado” (2001,
p. 233). Consoante Chevalier & Gheerbrant, a mulher “está mais ligada do que o
113
homem à alma do mundo, às primeiras forças elementares, e é através da mulher
que o homem comunga com essas forças” (2002, p. 421). A feminilidade seria
o encontro de uma aspiração humana à transcendência e de um instinto
natural, em que se manifestam: 1) o vestígio mais experimental do domínio
dos indivíduos por uma corrente vital extremamente vasta; 2) a fonte, em
certo modo, de todo potencial afetivo; 3) e, por fim, uma energia
eminentemente apta a aperfeiçoar-se, a enriquecer-se de mil matizes cada
vez mais espiritualizados, a reportar-se, em pensamento, para múltiplos
objetos, e principalmente para Deus (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002,
p. 421).
Esta “alma do mundo”, a que se referem os autores supracitados, seria, para
Durand, uma organização mediadora e realizante, que funcionaria como uma
espécie de “modelo mecânico do inteligível”, atuando “entre o Universo sensível,
divisível, objeto de opinião, e o Universo inteligível, uno, objeto de episteme” (1995b,
p. 83, grifos do autor). A figuração feminina divinizada assemelha-se à “alma do
mundo”, como é o caso, por exemplo, da figura de Maria, mãe de Jesus, que,
segundo Durand, apresentaria os traços visionários próprios da “alma do mundo”,
sinalizando “no mundo sensível a presença do Bem Soberano invisível” (1995b, p.
90). Ressalta-se que a imagem da “alma do mundo” faz referência, também, a uma
ordem de totalidade, correspondendo à forma circular, que simboliza a perfeição e a
“excelência absoluta” (DURAND, 1995b, p. 100).
O princípio feminino também se relaciona ao aspecto do inconsciente,
denominado anima, que seria a personificação das tendências psicológicas
femininas presentes no inconsciente humano, e estas englobariam as intuições
proféticas, a sensibilidade ao irracional, a capacidade de amar, as relações
sensitivas com a natureza, bem como a ligação com a irrealidade. Para Bachelard, o
nível menos profundo do inconsciente seria regido pelo masculino, enquanto os
níveis mais profundos, pelo feminino. Projetos e preocupações pertenceriam ao
animus, enquanto devaneios e as imagens pertenceriam à anima. Nesta
perspectiva, também o imaginário estaria dentro das fronteiras da anima. Para
Bachelard, “o devaneio puro, repleto de imagens, é uma manifestação da anima”
(2001, p. 61).
114
O poema menciona, ainda, a imagem do nó, que, prendendo ao passado,
impossibilitaria o interlocutor de reconhecer-se em sua essência. A simbologia dos
nós e amarras representa “o poder que liga e desliga” (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 2002, p. 637), e o ato de desatar um nó simboliza, dentre outras
possibilidades, a solução de determinada situação conflituosa e a libertação.
Segundo Chevalier & Gheerbrant, os nós podem representar não somente
dificuldades, mas também barreiras psicológicas e sociais que impedem o indivíduo
de realizar-se. No poema, é o nó que prende o indivíduo ao passado, podendo ser
entendido como a representação das normas e regras que o impedem de descobrir
sua feminilidade e encontrar o amor. “Num plano espiritual, desfazer os liames
significa libertar-se das afeições, para viver em um nível mais elevado” (2002, p.
637). Neste contexto, o amor pode ser considerado o símbolo máximo da busca de
“um centro unificador que permitirá a realização da síntese dinâmica de suas
virtualidades” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 46), ou seja, o amor seria o
espaço em que a espiritualidade poderia desenvolver-se de forma plena, visto que
dois entes que se entregam e se abandonam, reencontram-se um no outro,
mas elevados a um grau superior do ser, se a doação tiver sido total, e não
apenas limitada a um certo nível de sua pessoa, que é, na maioria das
vezes, carnal. O amor é fonte ontológica de progresso, na medida em que
é efetivamente união, e não só aproximação (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 2002, p. 47).
Já na visão de Octávio Paz, o amor – assim como a experiência poética e a
experiência do sagrado – “é uma das vias de acesso à revelação de nós mesmos”
(1982, p. 184), apontando, ainda, para uma revelação do próprio ser.
A alusão ao termo “alma gêmeas” evidencia a situação do homem que,
fazendo parte de um cosmos formado por elementos distintos, precisa se
harmonizar com eles para alcançar a elevação. Chevalier & Gheerbrant observam
que, no pensamento judaico, a alma humana dividir-se-ia em duas orientações, uma
terrena e outra divina, bem como em dois princípios: um feminino e outro masculino.
“Um e outro são chamados a transformar-se, a fim de tornar-se um único princípio
115
espiritual” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 34). Nesta perspectiva, o
encontro das almas gêmeas pode ser considerado a confluência de dois princípios
opostos que se completam. O termo “gêmeas” reitera esta visão de opostos que se
integram, haja vista que o fenômeno dos gêmeos seria uma representação da
condição de ambivalência que faz parte das representações simbólicas, bem como
da condição do ser humano, que é plural por natureza. O símbolo dos gêmeos
também simbolizaria o cruzamento dos caminhos, unindo duas realidades opostas
que, no entanto, se completam.
Assim, as imagens da Roda de Sansara, do sino, do ato de desatar nós, da
feminilidade, do amor e da alma gêmea convergem para o mesmo fim, isto é,
instaurar um espaço em que possa ser descoberta a verdadeira essência do
indivíduo, possibilitando, assim, sua elevação espiritual.
A poesia de Adélia Maria Woellner apresenta, constantemente, o regresso
aos caminhos outrora trilhados pelas andanças da humanidade. A viagem pelo
passado mítico traduz “a tendência humana de tentar fixar o passado e dominar o
futuro” (MELLO, 2002, p. 78), em função de desvendar a essência humana. Para
Durand, “a virtude essencial do símbolo é assegurar no seio do mistério pessoal a
própria presença da transcendência” (1995a, p. 30). É o que se verifica nos poemas
de Woellner, cujas imagens e símbolos, geralmente, confluem para a instauração de
um espaço de transcendência. Sua obra dá mostras de um olhar contemplativo e
autêntico, que revela as profundezas da alma humana e o âmago dos objetos a
respeito dos quais a poeta tece reflexões. Desde as cenas mais triviais até as mais
incomuns, há sempre descobertas fantásticas, que demonstram a presença de uma
acurada sensibilidade poética, que indica um desejo de transformação das
realidades inaceitáveis. A lírica woellneriana apresenta uma manifestação original da
vida, sendo que, por meio da reapropriação de verdades primitivas, ocorre o
reencontro do homem consigo mesmo, revelando que o olhar lançado sobre o
116
passado mítico expressa a tentativa de compreender o que há de mais
imperscrutável no interior dos seres humanos, o que incorre no desvelar de múltiplos
e inovadores sentidos.
REFERÊNCIAS:
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva et.
al. 17. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos
Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1974 (Coleção Os Pensadores).
_______. A poética do devaneio. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_______. A água e os sonhos. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Trad. Carlos Aboim de Brito. Lisboa: Edições 70, 1995a.
_______. A fé do sapateiro. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1995b.
_______. Campos do imaginário. Trad. Maria João Batalha Reis. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
_______. As estruturas antropológicas do imaginário. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.
MELLO, Ana Maria Lisboa de. Poesia e imaginário. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
117
LITERATURA E RESGATE DE VOZES FEMININAS: PALAVRA E MEMÓRIA EM
ANA CRISTINA CESAR, ADÉLIA MARIA WOELLNER E ARRIETE VILELA
Antonio Donizeti da Cruz73
(Universidade Estadual do Oeste do Paraná)
“De alma debruçada
sobre a úmida falca
escuto o diálogo surdo
entre o cais e a corrente
o que jaz e o que se desprende.
Entre margens engessadas
na história escrita
ágrafas navegam
sem âncora de memória
as águas da vida”
Astrid Cabral
As palavras de Astrid Cabral74 são balizas em um “mar de palavras” e
canções, tecidas no tear de palavras, esse “ofício do verso” – de que fala Jorge Luiz
Borges –, marcado pela palavra-memória, registros, histórias, linguagem, amor e
poesia. Vozes líricas femininas da poesia brasileira, Ana Cristina Cesar, Adélia Maria
Woellner e Arriete Vilela, têm, em cumplicidade, o encantamento pela palavra
poética e a paixão pela poesia e pela linguagem-memória.
A seguir, breve apresentação, das Artistas da Palavra:
ANA CRISTINA CESAR nasceu no Rio de Janeiro, em junho de 1952.
Publicou seus primeiros poemas muito cedo, em 1959, no “Suplemento Literário”, do
Jornal carioca Tribuna da Imprensa. Licenciada em Letras pela Pontifícia
Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro em 1975. Mestre em Comunicação
pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1979.
Master of Arts (M.A.) em Theory and Practice of Literary Translation pela
73
Antonio Donizeti da Cruz é professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Ministra aulas
de Teoria da Literatura, na graduação em Letras, Campus de Marechal Cândido Rondon e de Lírica e
Sociedade e, também, Literatura Comparada, no Programa de Pós-Graduação em Letras, área de
concentração em Linguagem e Sociedade, da UNIOESTE, Campus de Cascavel. Com graduação em
Letras Português Inglês pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Palmas (1985);
Especialização em Literatura Brasileira e Lingüística, pela Universidade Federal do Paraná; Mestrado
em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), sob
orientação do Prof. Dr. Antonio João Silvestre Mottin; Doutorado em Literatura Brasileira pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com tese intitulada O universo imaginário e o
fazer poético de Helena Kolody; sob orientação da Profª Drª Ana Maria Lisboa de Mello; e com Pósdoutoramento em Letras – Estudos da Literatura, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio), sob orientação do Professor Dr. Gilberto Mendonça Teles, sobre a obra poética
de Lília A. Pereira da Silva. É membro efetivo das seguintes associações: ABRALIC (Associação
Brasileira de Literatura Comparada); GT - Teoria do texto poético (ANPOLL); IASA – Associação
Internacional de Estudos Americanos. Participa do Grupo de pesquisa LER: Literatura, Educação e
Recepção - Núcleo LER -, sob coordenação da Profª Drª Hilda Orquídea Hartmann Lontra.
74
Astrid Cabral nasceu em Manaus (AM). Poeta, ensaísta, escritora, publicou várias obras, entre elas:
Alameda (1963); Ponto de cruz (1979); Intramuros (1998); De déu em déu (1998); Rasos d’água
(2003). Em 1962, inicia o magistério superior, na recém criada Universidade de Brasília. Afastou-se
devido a ditadura militar. Com a anistia, em 1988, foi reintegrada, passando a lecionar Literatura
Brasileira. (CABRAL, 1998, vii)
118
Universidade de Essex, Inglaterra, em 1980. Exerceu intensa atividade jornalística,
editorial e como tradutora de relevantes autores estrangeiros, entre os quais a poeta
Silvia Plath. Traduziu várias obras, entre elas, O Relatório Hite: um profundo estudo
sobre a sexualidade feminina, de Shere Hite, e também realizou vários ensaios
literários e jornalísticos.
Ana Cristina Cesar publicou as seguintes obras: Luvas de pelica; Cenas de
Abril; Correspondência completa; Literatura não é documento. Em 1982, publicou A
teus pés. Após sua morte em 29 de outubro de 1983, a reunião de seus escritos
inéditos resultaram em três obras, organizadas por Armando Freitas Filho: Inéditos e
dispersos (prosa e poesia) (1985); Escritos da Inglaterra (1988) e Escritos no Rio
(1993).
ADÉLIA MARIA WOELLNER nasceu em Curitiba (PR). Formou-se em Direito
pela Universidade Federal do Paraná. Foi professora de Direito Penal na Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. Pertence a várias academias, entre elas, a
Academia Paranaense de Letras, Academia Internacional de Letras da Inglaterra
(Grafton Road, London, England).
Adélia Maria Woellner tem recebido prêmios literários e homenagens
(Comenda Medalha de Mérito Ferroviário, concedida pela RFFSA, Rio de Janeiro,
RJ). Publicou as seguintes obras: Balada do Amor que se foi (1963); Nhanduti
(1964); Poesia Trilógica (1973); Avesso meu (1990); Infinito em mim (1997); Luzes
no Espelho: memórias do corpo e da emoção (2004); Sons do silêncio (2004). A
obra Infinito em mim já foi editada em Espanhol, Inglês, Italiano, Francês, Alemão e
também em Braile. Também escreve ensaios. A obra Luzes no Espelho é uma
narrativa ficcional (memória autobiográfica). A obra woellneriana já foi pesquisada
nos meios acadêmicos75.
ARRIETE VILELA nasceu em Marechal Deodoro (Alagoas). Foi professora de
Literatura Brasileira na Universidade Federal de Alagoas. Publicou as seguintes
obras: Para além do avesso da corda (1980); Farpa (1988); Fantasia e avesso
(1986); A rede do anjo (1992); Dos destroços, o resgate (Gazeta de Alagoas); O ócio
dos anjos ignorados (1995); Tardios afetos (1999); Vadios afetos (1999); Artesanias
da palavra (Antologia de poemas, com participação de outros poetas); Maria Flor
etc (2002); Grande baú, a infância (2003); Frêmitos (2004); A Palavra sem Âncora
(2005); Lãs ao vento (2005); Ávidas paixões, áridos amores (2007).
75
Clarice Braatz Schmidt Neukirchen defendeu, em 2006, a Dissertação de mestrado intitulada
Tempo e Memória na lírica de Adélia Maria Woellner, sob minha orientação, no Programa de Pósgraduação Stricto Sensu em Letras – Aérea de concentração em Linguagem e Sociedade, da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
119
Arriete Vilela tem recebido prêmios e homenagens: Prêmio Organização
Arnon de Melo - pela Academia Alagoana de Letras; Prêmio Cecília Meireles - União
Brasileira de Escritores - UBE; Prêmio Jorge de Lima - pela Academia Carioca de
Letras e União Brasileira de Escritores (RJ); Recebeu, em 2005, a “Comenda Dra.
Nise da Silveira, outorgada pelo Governo do Estado de Alagoas, como uma das
mulheres que mais têm se destacado no panorama cultural alagoano. A obra de
Arriete Vilela já foi estudada nos meios acadêmicos, tendo sido objeto de pesquisa
de dissertações de mestrado.
Palavra, poesia e memória: vozes líricas femininas
Para o poeta Octavio Paz, a poesia é a Memória feito imagem e convertida
em outra voz. A poesia é sempre a “outra voz”, porque “é a voz das paixões e das
visões; é de outro mundo e é deste mundo, é antiga e é de hoje mesmo, antiguidade
sem datas” (1993, p. 140). No dizer de Paz, os poetas têm sido a memória de seus
povos, pois “cada poeta é uma pulsão no rio da tradição, um momento da
linguagem. Às vezes os poetas negam sua tradição mas só para inventar outra”
(1993, p. 108-109). A invenção lírica se projeta do presente para o futuro. O poeta é
ciente de sua tarefa: ser elo da corrente, uma ponte entre o ontem e o amanhã.
Entretanto, no findar do século XX, ele “descobre que essa ponte está suspensa
entre dois abismos: o do passado que se afasta e o do futuro que se arrebenta. O
poeta se sente perdido no tempo” (PAZ, 1982. p. 69). Nesse sentido, ao recriar sua
experiência, leva avante um passado que é um futuro. O tempo possui uma direção,
um sentido, ou seja, “ele deixa de ser medida abstrata e retorna ao que é:
concretude e dotado de direção. O tempo é um constante transcender” (PAZ, 1982.
p. 69).
A função essencial do tempo na estruturação da imagem do mundo reside,
conforme Octavio Paz, no fato de que o homem, dotado de uma direção e
apontando para um fim, faz parte de um processo intencional (1991, p. 97). Os atos
e as palavras dos homens são feitos de tempo. Assim, a cronologia está
fundamentada na própria crítica. Já a poesia é tempo revelado, isto é, o enigma do
mundo que se transforma em “enigmática transparência”. O poeta diz o que diz o
tempo, até quando o contradiz, pois ele é capaz de nomear o transcorrer, e ainda,
“torna palavra a sucessão” (PAZ, 1991, p. 98).
A palavra é sempre uma “manifestação profunda do ser”, afirma Javier
González (1990, p. 156). Para o autor, mediante o universo poético, o poeta se
apóia nos aspectos lúdicos, rítmicos e imaginários da linguagem, cuja função poética
120
funciona como um vetor constitutivo da natureza humana. É pela palavra que o
homem se coloca no plano expressivo superior a não-significação da ordem natural,
pois ela, enquanto núcleo de dispersão e convergência, é capaz de nomear o mundo
(1990, p. 152-153). González considera o trabalho do poeta como um
desenvolvimento frente aos meios de fixação e dispersão de sentido, ou seja, como
um jogo de palavras que tem por finalidade projetar um grande número de
significações. Nessa perspectiva, o escritor descobre e constrói o mundo utilizando a
palavra enquanto instrumento “capaz de conter a surpreendente variedade do real”,
isto é, ele sabe que ofício da linguagem abre múltiplos espaços de “comunicação e
de nominação dos objetos” (GONZÁLES, 1990, p. 156-157).
A poesia é potência capaz de dar sentido à vida. Ao buscar a essência da
linguagem, o artista realiza o poder mágico através das palavras enquanto
mediação, comunicação e exercício de construção de sentidos.
Para o filósofo Gaston Bachelard, o homem sonha através de uma
personalidade de uma memória muito antiga. Ele mira-se em seu passado, pois toda
imagem para ele é lembrança. “As verdadeiras imagens são gravuras. A imaginação
grava-as em nossa memória. Elas aprofundam lembranças vividas, deslocam-nas
para que se tornem lembranças da imaginação” (1993, p. 181, p. 13. Grifo do autor).
Nesse sentido, memória e imaginação não se deixam dissociar, ou seja, ambas
trabalham para o aprofundamento mútuo. Elas constituem, na ordem dos valores,
uma união da lembrança com a imagem. “Uma memória imemorial trabalha numa
retaguarda do mundo. Os sonhos, os pensamentos, as lembranças formam um
único tecido. A alma sonha e pensa, e depois imagina” (BACHELARD, 1993, p. 181).
Conforme Bachelard, os poetas ordenam suas impressões associando-as a
uma tradição. O mundo é um espelho do nosso tempo e também a reação das
nossas forças, isto é, “se o mundo é a minha vontade, é também o meu adversário”
(1989a, p. 165-166). Resulta desse embate a compreensão do mundo mediante a
surpresa das próprias forças incisivas, nas quais consistem as renovações, pois é
através da imaginação que o homem se situa frente ao “mundo novo”, cujos
detalhes predominam sobre o panorama, decorrendo daí a expressão: “uma simples
imagem, se for nova, abre o mundo” (1993, p. 143).
Gilbert Durand salienta que a memória tem “o caráter fundamental do
imaginário, que é ser eufemismo, ela é também, por isso mesmo, antidestino que se
ergue contra o tempo” (1997, p. 405. Grifo nosso.). É ainda “poder de organização
de um todo a partir de um fragmento vivido”. Essa potência “reflexógena” é “o poder
121
da vida”, que por sua vez, é capacidade de reação, de regresso. A organização que
faz com que uma parte se torne “dominante” em relação a um todo é a negação da
capacidade de equivalência irreversível que é o tempo. Por isso, a memória – bem
como a imagem – é a magia dupla “pela qual um fragmento existencial pode resumir
e simbolizar a totalidade do tempo reencontrado” (1997, p. 403). O ato reflexo é
ontologicamente esboço da recusa fundamental da morte. Longe de estar do lado do
tempo, “a memória, como o imaginário, ergue-se contra as faces do tempo e
assegura ao ser, contra a dissolução do devir, a continuidade da consciência e a
possibilidade de regressar, de regredir, para além das necessidades do destino”
(DURAND, 1997, p. 403).
Frente às “faces do tempo” e à cristalização da “memória”, o homem se vê
isolado, ilhado, mesmo estando rodeado por uma multidão. Mergulhado em
um mundo de imagens e realidades que dão uma configuração à própria
vida, ele é sabedor da sua condição existencial: a solidão habita a sua vida.
Ou seja, ela é experiência viva que se concretiza não só enquanto
recolhimento, mas, acima da tudo, como sentimento intrínseco frente à
sensação de isolamento e vazio vivenciado pelo sujeito humano.
Em Amor, poesia, sabedoria, o filósofo Edgar Morin define a poesia como
amor, estética, gozo, prazer, participação e, principalmente, vida (1998, p. 59). Ela é,
igualmente, a manifestação de possibilidades infinitas da indeterminação humana.
Já a criação poética tem o poder de reativar os conceitos analógicos e mágicos do
mundo e, também, despertar as forças adormecidas do espírito, com o intuito de
reencontrar os mitos esquecidos. Para o filósofo, a poesia não é somente um modo
de “expressão literária”, mas um “estado segundo” vivenciado pelo sujeito e que
deriva da participação, da exaltação, embriaguez e, acima de tudo, “do amor, que
contém em si todas as expressões desse estado segundo. A poesia é liberada do
mito e da razão, mas contém em si sua união” (MORIN, 1998, p. 9). Essas duas
forças são capazes de realizar a grande transformação vital, quer dizer, o amor se
liga à “poesia da vida”. O filósofo ainda complementa:
A vida é um tecido mesclado ou alternativo de prosa e poesia. Pode-se
chamar de prosa as atividades práticas, técnicas e materiais que são
necessárias à existência. Pode-se chamar de poesia aquilo que nos coloca
num estado segundo: primeiramente, a poesia em si mesma, depois a
música, a dança, o gozo e, é claro, o amor. (MORIN, 1998, 59-60)
Em relação à figura do poeta, Morin destaca que este é portador de uma
competência plena, “multidimensional”, pois sua mensagem poética tem a
capacidade de reanimar a “generalidade adormecida”, ao mesmo tempo em que
“reivindica uma harmonia profunda, nova, uma relação verdadeira entre o homem e
o mundo” (1998, p. 158).
122
A linguagem poética é por natureza diálogo. É social porque envolve quem
fala e quem ouve. A palavra que o poeta inventa é a de “todos os dias” e faz parte
de nosso ser, quer dizer, “são nosso próprio ser. E por fazerem parte de nós, são
alheias, são dos outros: são uma das formas de nossa ‘outridade’ constitutiva. [...] A
palavra poética é a revelação de nossa condição original porque por ela o homem,
na realidade, se nomeia outro, e assim ele é ao mesmo tempo este e aquele, ele
mesmo e o outro” (PAZ, 1982, p. 217).
Palavra, memória e imaginação poética são elementos basilares na poesia de
Ana Cristina Cesar, Adélia Maria Woellner e Arriete Vilela. Ao elaborar uma poiesis
alicerçada em um mundo de significações, as poetas realizam um fazer poético que
direciona à condição humana: transitoriedade e permanência. Nessa perspectiva, as
poetas, com suas vozes líricas femininas, elaboram os textos/poemas dando-lhes
sentidos, formas e um colorido singular, que exprimem um “sentimento do mundo”.
A temática social – na obra das Artistas da Palavra – está alicerçada numa
construção poética capaz de valorizar os sentimentos de amor, participação frente
aos inquietantes desafios que a vida impõe.
Rede de imagens poéticas intercruzadas nas vozes femininas: palavra e
memória lírica
Os poemas de Ana Cristina Cesar, Adélia Maria Woellner e Arriete Vilela
registram as sutilezas de um fazer poético embasado na força da linguagem, na
memória e na concretização de um dizer que aponta para imagens visuais, claras,
momentos de observação atenta de um eu em sintonia com o mundo circundante.
“Estas areias pesadas são linguagem
Qual a palavra que
Todos os homens sabem?”
Ana Cristina Cesar (1998a, p. 124).
Na obra da poeta-artista Ana Cristina Cesar é marcante o entrelaçamento de
imagens poéticas centradas na questão da identidade/alteridade e na linguagem
marcada pelo teor de modernidade e crítica, tal como no texto sintético, em prosa:
Lá onde cruzo com a modernidade, e meu pensamento passa
como um raio, a pedra no caminho é o time que você tira de campo.
(CESAR, 1998a, p. 154).
Segundo
Armando
Freitas
Filho,
“Ana
Cristina
Cesar
encarava
a
modernidade. Talvez por isso tenha morrido cedo – pura passagem permanente –
muitas asas e um desdém pelo que poderia ser raiz. O lugar que ocupa é na linha do
123
horizonte – virtual e veloz” (FILHO, 1998). Ainda sobre a poesia de Ana Cristina
Cesar, o poeta Armando Freitas Filho complementa a seguinte crítica:
Seu verso, que pertenceu à vertente cultivada da geração que apareceu em
70, é, hoje, pedra de toque para toda poesia que se quer nova; com seus
motivos e matizes estilizadas que se deixam acompanhar, ao fundo, por
uma brusca e inusitada melodia que parece ter sido feita pela mistura de
cristais, heavy metal e tafetá. A obra é breve, um cinema essencial, e
depressa. Morria de sede no meio de tanta seda. Nunca nos esquecemos
de sua paixão acesa e seca. O que mais queima: a pedra de gelo ou o ferro
em brasa? Vulcão de neve. Ela não foi - ela fica - como uma fera. (FILHO,
1998).
No texto “Soneto”, a poeta Ana Cristina se (auto)apresenta e busca a
interlocução com o leitor mediante o jogo da linguagem. Faz, ainda, uma possível
aproximação com o poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, que diz “O poeta
é um fingidor” (do latim Fingire: imitatore: imitador): “Pergunto aqui se sou louca /
Quem quem saberá dizer / Pergunto mais se sou sã / E ainda mais, se sou eu // Que
uso o viés pra amar / E finjo fingir que finjo / Adorar o fingimento / Fingindo que sou
fingida // Pergunto aqui meus senhores / Quem é a loura donzela / Que se chama
Ana Cristina // E que se diz ser alguém / É um fenômeno mor / Ou um lapso sutil?” Inconfissões – 31.10.68 (CESAR, 1998a, p. 38).
São várias as indagações do eu lírico: há os questionamentos do Eu e da
linguagem. Note-se a ausência de pontuação no texto, com exceção do último verso
no qual aparece o ponto de interrogação. A permanente interrogação - marca
profunda da literatura moderna - gira em torno da ausência que o branco da folha
sugere. Dessa forma, é pela palavra que o poeta desenvolve a contínua
transmutação de significantes, gerando novos sentidos e possibilidades de ser.
Na poesia/prosa de Ana Cristina Cesar, a palavra adquire, muitas vezes, a
inflexão da interrogação ontológica. A poesia, enquanto busca de sentido, faz com
que o poeta e o leitor mantenham na atualidade um procedimento de indagação
perante esta arte, pois, no dizer de Octavio Paz, na modernidade, o poema adquire
a forma de questionamento e, ao mesmo tempo, é “recuperação da outridade,
projeção da linguagem num espaço despovoado por todas as mitologias, o poema
assume a forma de interrogação. Não é o homem que pergunta: a linguagem nos
interroga” (PAZ, 1982, p. 345).
O texto “Não adianta”, apresenta a temática da memória circunscrita na
linguagem capaz de registrar os momentos vividos pelo eu lírico:
Antes havia o registro das memórias
cadernos, agendas, fotografias.
Muito documental.
124
Eu também estou inventando alguma coisa
para você.
Aguarde até amanhã.
Uma vez ouvi secamente o chega pra lá
e pensei: o mundo despencou
Quem teria a chave?
(CESAR, 1998a, p. 192).
Há, no texto, a afirmação do sujeito de enunciação de que o “mundo
despencou”, por isso a indagação “Quem teria a chave?” Além da invenção e
criatividade do sujeito lírico, a constatação do “documental”, uma vez que “antes
havia o registro das memórias”, isto é, os “cadernos, agendas, fotografias” que
serviam como baliza para se “escrever” de forma pontual a história, marcar o fluxo
temporal e as ações vivenciadas pelo Eu.
No texto “aí é que são elas”, nota-se a busca incessante do eu lírico
“procurando as chaves”, quer na (auto)referencialidade, quer pela incessante busca
de identidade, quer pelas sendas e labirintos da linguagem marcada pelas
lembranças e esquecimentos, mas, acima de tudo, evidencia-se a memória lírica
registrada pelas palavras do sujeito da enunciação:
Eu procurava as chaves, a questão pendente, atravessava a luz deserta da
praia de cabo a rabo, de vestido, voltava sobre os
meus próprios passos, ficava na varanda, atravessava os dias como uma
planta perdida no deserto, naquele sol mais quieta. “Aqui eu
te conheço”. Eu não sabia que sabia, aquela planta.
A pauta se calasse... Ouvia: “se você dançar...” Só de memória
me espanto, de cabeça caio e saio, de cor, e pronto, socorram-me
então nesse esforço de raízes, ouvindo a chuva nas telhas de
menos dessa casa escura, com goteiras de verão e falta dágua,
sem transporte, descendo a estrada de pó nas sandálias havaianas,
fazendo uma bolha no calor, um lanho rubro,
repetindo. “Ana, na janela há um recadinho”, um curativo aberto,
um sanduíche aberto, um fantasma romântico no peito,
“se você dançar...”
Me lembro da rádio a mil dentro do carro,
e de uma saudade inata.
CESAR, 1998a, p. 106).
O texto (narrativa lírica) apresenta uma linguagem “rápida”, telegráfica,
intercalada por uma multiplicidade de vozes que se interligam, marcada pelo forte
acento de outras vozes que se cruzam o discurso do sujeito da enunciação que diz
“eu procurava as chaves”. A imagem do sujeito lírico é comparada a uma “planta
perdida no deserto”. O texto é norteado pela procura do Eu frente à desertificação,
ao sentimento de vazio e por uma “saudade inata”.
125
A obra de Ana Cristina Cesar apresenta uma procura incessante de dizer o
mundo e (re)inventar a linguagem poética a partir de uma estética e elaboração
literária criativa, com sua “pinceladas de poesia”, numa multiplicidade de temas:
linguagem, alteridade, metapoesia, lirismo, paixão, arrebatamento, mas acima de
tudo o amor à palavra e à poesia, como nos versos do poema “Mulher”:
a coisa que mais o preocupava
naquele momento
era estudo de mulher
toda mulher
dos quinze aos dezoito.
Não sou mais mulher.
Ela quer o sujeito.
Coleciona histórias de amor.
(CESAR, 1998a, p. 131).
Da questão da identidade à reflexão de um eu que se presentifica nos versos,
o lirismo evidencia-se de forma clara e enquanto buscas do sujeito da enunciação.
No texto “Poesia”, de Ana Cristina, presença e ausência se mesclam num
jogo de palavras, acentuado pelo ofício-cantante do sujeito lírico:
jardins inabitados pensamentos
pretensas palavras em
pedaços
jardins ausenta-se
a lua figura de
uma falta contemplada
jardins extremos dessa ausência
de jardins anteriores que
recuam
ausência freqüentada sem mistério
céu que recua
sem pergunta
(CESAR, 1998a, p. 97).
No texto, o amor e o encantamento pela palavra/poesia se mesclam e se
identificam entre si. Já o sentido do amor e da poesia aponta para a qualidade
suprema da vida. Amor e poesia, no dizer de Morin, quando concebidos como fins e
meios do viver, dão plenitude ao “viver por viver” (1998, p. 9-10). São versos que
direcionam o poema no sentido do amor e do ato de nomear as coisas; mesmo entre
“ausências”, “palavras em pedaços”, a imagem da “lua” projetada em “uma falta
contemplada”, a poesia é comparada a um “jardim de palavras”. Mas também há a
consciência da fragilidade e dos mistérios frente às vicissitudes da vida. Emerge do
poema uma relação de sentidos que se conjugam em torno do encantamento do eu
lírico em relação ao amor às palavras, daí a aproximação de poesia e do amor, à
afirmação de Morin: “o amor é algo único, como uma tapeçaria que é tecida com fios
126
extremamente diversos”, isto é, “o amor enraíza-se em nossa corporeidade e, nesse
sentido, pode-se dizer que o amor precede a palavra” (1998, p. 16-17).
“A palavra:
o porão
onde oculto
as estiagens
do amor.”
Arriete Vilela (“Poema 13”, 2004, p. 27).
A poeta Arriete Vilela, com uma poesia densa, tece sua “rede” de palavras
centrada na temática da memória. O poema “Não devias” apresenta uma
linguagem altamente elaborada, com acentuado lirismo e encantamento do eu
lírico para com a palavra poética:
Não devias enamorar-te assim
das minhas palavras: são fios
que tecem a renda com que adorno
as entardecidas beiradas dos meus dias
e tecem, igualmente, a renda com que caço
borboletas que, à tua semelhança, voejam
solitárias ao redor do meu mistério
Não, não te devias exibir assim
à beira do poço: és pássaro de pequenas asas
e basta um descuidado sopro de minha poesia
para fazer-te ver o céu menor do que uma lágrima.
Não devias jogar-me à passagem
– e assim, à vista de todos –
belas metáforas: esmago-as com amorosos gestos
para que gotejem em mim o sumo das folhas
da pitangueira com seu cheiro de infância
reencontrada na tua ausência.
Poupa-te, anjo de flores que só duram um dia.
Passa à margem do que sou,
protege esses teus olhos de mares transparentes
e não queiras estender o meu silêncio, a minha recusa
nem os sutis precipícios sobre os quais vivo
e escrevo.
Protege o teu coração
e não atices nele a colméia que espreita,
para além das cercas vivas de papoulas,
a dor nos descuidos da alegria amorosa
(VILELA, et al. 2001, p. 29-30)
A memória lírica, no poema, surge enquanto baliza capaz de realizar e
resgatar fatos e lembranças passadas, mas sempre organizada de maneira
individual, centrada nos artifícios da linguagem, nas modulações de um pensamento
que (re)elabora o passado, dando novos sentidos ao ato de rememorar, como na
127
passagem: “para que gotejem em mim o sumo das folhas / da pitangueira com seu
cheiro de infância / reencontrada na tua ausência” (p. 29-30). Bosi lembra que,
memória não é sonho, é trabalho, pois “lembrar não é reviver, mas reconstruir,
repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado” (1994, p. 55).
O texto “Tua Palavra”, de Arriete Vilela, exprime uma linguagem vigorosa,
acentuada pela interlocução do Eu lírico com o Outro:
Tua palavra de pitanga madura,
lua vermelha esmagada na minha mão
mesclou de amargos amores o legítimo
linho branco em que mãe, avó e bisavó bordaram
um fatídico destino poético.
Tua palavra de pólen na leveza da ave nômade
fecundou a minha palavra: fiz-me útero
e te embriaguei, amorosamente, das sinuosidades
labirínticas em que protegias os teus medos,
e te nutri com a alegria das bandeirolas
que se esperançavam nas manhãs de prata
com os sinos a quererem-se cristais.
[...]
Tua palavra invejou a minha palavra
e então nos distanciamos,
porque não podíamos ser galantes entre iguais
entrelinhas.
(VILELA, et al. 2001, p. 36-37)
Os versos do poema registram a contenção, o rigor da linguagem e as
sutilezas das imagens, que resultam no equilíbrio e na condensação textual. É a
memória que se cristaliza no instante de dizer quando o sujeito da enunciação diz
que a palavra do outro é como “pitanga madura”, também comparada à “lua
vermelha”. Há, no texto, uma aproximação de palavra-memória capaz de nomear o
ser de forma amorosa, mediante a palavra poética. Mesmo que haja a consciência
de um distanciamento de eu e do outro, a certeza, para o sujeito lírico de que a
palavra é portadora de esperanças, tal com os “sinos a quererem-se cristais”, ela
apresenta-se como “pólen na leveza da ave nômade”.
Pode-se constatar, nos
versos, que a palavra – mediante o ato de nomear - realça a condição do poeta: ser
solitário e, ao mesmo tempo, solidário, mediante a força das palavras, tal como
afirma Cecília Meireles: “Ai, palavras, ai, palavras,/ que estranha potência, a vossa!”
(1983, p. 235). Na criação literária, o poeta (re)inventa o seu mundo e dá sentido à
vida através do reino encantado das palavras.
Nos poemas sintético de Arriete Vilela, a palavra – enquanto registro/memória
– é a expressão maior de um eu lírico que tem, na palavra, a força de um contato
128
amoroso com as palavras. No texto “Poema 27”, a palavra é elemento vital da luta
travada pelo poeta:
A Palavra:
uma forma
de debater-me em
voragens
de fundo de rio
aparentemente calmo
(Vilela, 2004, p. 50).
Mas se há o embate do poeta com as palavras, há também a consciência
de solidão, de vazio e impotência perante o ofício do verso, tal como no texto
“Poema 28, de Arriete Vilela:
Como inconfessável
roteiro, a palavra às vezes
me falta
e então vivo como
lã ao vento:
desatada,
transitória,
cardadura inútil.
(Vilela, 2004, p. 51)
O eu lírico feminino se compara como “lã ao vento”, que sente, às vezes, o
aparente abandono das palavras, mas não o da poesia.
“A poesia,
generosa,
permitiu-me
morar com ela”
Adélia Maria Woellner (“Privilégio”, 2004a, p. 44).
A poesia de Adélia Maria Woellner apresenta uma multiplicidade de temas
que se intercruzam: fazer poético, temporalidade, solidão, memória, religiosidade.
No poema “Tecelã”, a poeta trabalha a palavra enquanto tecitura:
Costurei palavras,
retalhos colhidos
no baú dos devaneios.
Fiz, do manto-poema,
agasalho
das esperanças.
(WOELLNER, 2004a, p. 50).
Da mesma forma como o tecelão que vai escolhendo os fios e emaranhandoos no tear, Woellner constrói seus poemas – tecidos de palavras – com arte e
precisão. Daí à afirmação do eu lírico: “fiz, do manto-poema”, tendo em visto a
129
esperança e o viver. Nota-se, na lírica de woellneriana, um “enxugamento” dos
textos, encaminhando-se cada vez mais para um estilo direto, privilegiando a
economia dos meios de expressão. A poeta realiza uma construção poética
alicerçada por uma linguagem densa, sutil, registrando o instantâneo, com uma
poesia altamente elaborada, sintética.
No poema “Caçador de Estrelas”, o sujeito lírico se entrega ao ofício poético e
faz da linguagem a razão maior de se transformar em “caçador de estrelas”:
No espaço da noite,
projeto meu ser:
cavalgo cometas
e me transformo
em caçador de estrelas...
(WOELLNER, 1997, p. 21).
Ao projetar o ser, no “espaço noturno”, o sujeito poético realiza uma
poesia de busca, mediante o trabalho com as palavras. Assim, o poeta – operador
de enigmas - faz da linguagem um espelho de dupla face: de um lado a palavra e do
outro o silêncio. Na conjugação das formas dialéticas ele constrói o universo
imaginário em que é possível a total realização em meio às configurações da
linguagem e das imagens simbólicas do poema, enquanto revelação da condição
humana. Nas palavras de Paz, “a revelação poética pressupõe uma busca interior.
Busca que em nada se assemelha à análise ou à introspecção, mais que busca,
atividade psíquica capaz de provocar a passividade propícia ao surgimento de
imagens” (1982, p. 65).
No poema sintético, intitulado “Batismo”, o sujeito lírico se entrega
completamente ao ofício cantante da poesia:
Mergulhei num mar de sonho
E me fiz azul.
Batizei-me...
(WOELLNER, 1997, p. 20).
A imersão no “mar dos sonhos”, por extensão, no “mar das palavras” e
também a entrega total à poesia, faz do sujeito lírico um apaixonado pela palavra
poética. Nesse sentido, uma das marcas da modernidade literária é o permanente
ato de acreditar na linguagem. O poeta é sempre um apaixonado pela linguagem, ou
seja, um lutador e resistente no sentido de desafiar as palavras.
No poema “Infinito em mim”, há, na declaração do eu lírico, o sentido de
totalidade em relação à palavra poética:
130
Em tudo,
na semente,
a expressão do todo.
No poema,
resulto ser
criador e criado,
quando me permito
fundir-me com o universo
e perceber
o infinito em mim...
(WOELLNER, 1997, p. 7).
No texto, constata-se que o eu lírico busca a fusão do poema ao universo. O
ato criador parece surgir de uma luta de corpo a corpo com as palavras em que a
poeta se dedica sem tréguas ao seu ofício de lapidar as palavras e, ao mesmo
tempo, constrói uma sólida arquitetura do poema, que resulta na palavra-memória,
uma vez que a finalidade do trabalho poético é o próprio poema, pois é esta mesma
objetividade interna que, no dizer de Ramos Rosa, “o abre ao mundo e permite a
comunicação. O que o poema canta, seja qual for o seu motivo ou tema explícito, é
o momento sublime da criação” (1980, p. 6). Por isso a revelação do poema
enquanto “ação da linguagem”, instante de ordenação e unificação com o mundo.
As palavras não se diferenciam das coisas. O que as interligam “não é a relação de
um signo a um referente, ou significado, mas a energia que, através da operação da
linguagem, as percorre e assim desvenda a unidade do presente criador” (ROSA,
1980, p. 6-7).
Tempo, palavra e memória aparecem de forma articulada na poesia
woellneriana. Primeiramente, há o tempo vivido, cronologicamente, base
para situar as reminiscências vivenciadas, que são (re)elaboradas,
reorganizadas pelo sujeito. Em um segundo momento, a memória tem o
poder de ativar ou reter as coisas. A memória faz parte da vida, ou seja,
somos feitos, de certa forma de memória, mas também de lembranças e
esquecimentos. Da conjugação do tempo e memória, a palavra é o elo vital
de um Eu que busca “reviver”, ou simplesmente lembrar o passado, mesmo
que de forma evanescente, pois através do ato de rememorar, se realiza o
milagre da linguagem.
No poema “Memória atávica”, o eu lírico sente a vida como “infinito mistério” e
na busca de si mesmo, se defronta com o espelhamento da linguagem-memória:
Em algum lugar
deste infinito mistério
– que é meu ser –,
a emoção primitiva
brilha
e reflete
a memória de todas as eras.
(WOELLNER, 1997, p. 63).
131
O elemento atávico é recorrente na poesia woellneriana, isto é, os impulsos
criadores oriundos da ancestralidade e da memória coletiva ganham contornos em
sua obra. O atavismo também está presente no poema “Herança”, de Adélia Maria:
Trago gravada nas células
a memória do ancestrais
e no corpo impregnados
os instintos dos animais.
Desvelo minha resistência mineral.
Descubro que tudo mora em mim:
céus, estrelas,
lua e sol,
mares e areias,
ventos e marés,
montanhas e vales,
chuvas e trovões.
Sou terra e sou ar,
sou fogo e água.
Visto-me de folhas e flores,
mastigo resinas
e me sacio em perfumes.
Afinal, despida do que não é meu,
quem sou eu?
(WOELLNER, 2004, p. 120).
O fato de o eu lírico se (auto)descobrir integrado à essência da vida,
impregnado pelos quatro elementos da natureza, no sentido bachelardiano, instaura,
no texto, um diálogo do sujeito lírico com questão atávica, centrada no enfoque da
memória ancestral e na busca de resposta para a indagação: “quem sou eu?”. Em
relação à obra e à temática da memória na obra woellneriana, Clarice Braatz
Schmidt Neukirchen tece a seguinte afirmação: “a obra de Adélia Maria Woellner
caracteriza-se,
sobretudo
pela
busca
da
essência
humana.
A
poeta,
constantemente, volta-se à observação do passado, revivendo situações e tentando,
assim, desvendar o âmago dos seres. Sua obra evidencia que o regresso ao
passado é uma forma de se adquirir o autoconhecimento” (2006, p. 137).
As imagens do poema woellneriano apresentam, ainda, uma maneira especial
do sujeito poético ver, sentir e interpretar o mundo, a partir da memória e da força
onírica que faz com que o poeta seja um “sonhador de palavras”, como diz
Bachelard,
[...] todo sonhador inflamado é um poeta em potencial. [...] Todo
sonhador inflamado vive em estado de primeira fantasia. Esta
primeira admiração está enraizada em nosso passado longínquo.
[...] temos mil lembranças, sonhamos tudo através da personalidade
de uma memória muito antiga e, no entanto, sonhamos como todo
mundo, lembramo-nos como todo mundo se lembra – então,
132
seguindo uma das leis mais constantes da fantasia diante da chama,
o sonhador vive em um passado que não é mais unicamente seu, no
passado dos primeiros fogos do mundo. (1989b, p. 11. Grifos do
autor)
Nesse sentido, o sonhador inflamado conjuga o que vê ao já visto, ou seja,
conhece perfeitamente a associação entre imaginação e memória (1989b, p. 19).
Nesse sentido, através da palavra e da memória, enquanto forças mediadoras e
potências capazes de interligar os fatos, as pessoas e suas ações e as coisas do
mundo, os poetas, muitas vezes, se sentem fragilizados ao lutar com as palavras na
tentativa de expressá-las de forma fecunda e essencial, tal como os versos do
poema de Helena Kolody76, intitulado “Não era isso”, em que o eu-lírico sabe de sua
incapacidade de expressar a essência da linguagem, ao dizer,
Não.
Não era isso.
O que eu queria dizer
era tão alto
e tão longe
que nem consegui soletrar
suas palavras-estrelas.
(KOLODY, PM, 1986, p. 56)
Os versos sugerem que por mais que o eu “cante as palavras da canção”,
sempre falta algo que poderia ser dito, pois a não-completude e a insatisfação fazem
parte da vida humana. Mas quem é o poeta? – esse “legislador desconhecido do
mundo” – no dizer de Percey B. Shelley. A poeta Adélia Maria Woellner, com seu
poema intitulado “Poeta” aponta para a resposta:
Poema inteiro
é o Universo.
Poeta?
É o clandestino da poesia,
que se contenta
com pequenas viagens.
(WOELLNER, 1997, p. 75)
Assim, é no “uni-verso” da linguagem que o poeta consegue se afirmar e
registrar seu “estar no mundo” e sua maneira de ser e de ver as coisas. O texto de
76
É possível observar um diálogo na obra de Adélia Maria Woellner com a de Helena Kolody (19122004). Kolody - filha de imigrantes ucranianos, nascida em Cruz Machado (Paraná) - tem uma obra
significativa no panorama da Literatura brasileira (publicou doze obras, várias antologias e obras
reunidas).
133
Woellner apresenta um fazer poético em que aparece de forma nítida o limite entre o
sujeito e seu objeto de criação: o poema. Nota-se, nos versos, a expressão suave
das palavras que rompem do branco da página, transformando-se em “flor de
poema”. Nesse sentido, António Ramos Rosa observa que, por meio da linguagem,
o poeta preserva o ser, pois o que ele realmente sente não é, de maneira alguma,
um conhecimento prévio, o passado, o já realizado, mas um mundo que, por meio
da ação, “o poeta exerce sobre a linguagem e, reciprocamente, da linguagem sobre
o poeta, se constitui, revelando a potencialidade infinita, um novo modo de ser
aberto ao futuro” (ROSA, 1980, p. 9).
Na criação literária as poetas Cesar, Woellner e Vilela (re)inventam mundos e
dão sentidos à vida através das palavras. Nesse sentido, a palavra-memória é o
fator imprescindível que movimenta as aspirações e sentimentos do sujeito poético,
pois no momento da recordação o eu rememora, com profundidade, os
acontecimentos e experiências anteriormente vivenciados. A palavra é uma força
que impulsiona os artistas da palavra a atingirem sonhos, objetivos e realizações.
Os textos de Ana Cristina Cesar, Adélia Maria Woellner e Arriete Vilela,
lapidados no cinzel da memória, instauram um procedimento poético em que a
palavra poética – enquanto magia e encanto – tem o poder de despertar no leitor
uma atenção voltada para as coisas mais simples, sensíveis, pois a linguagem é
sinal de vida e permanência.
134
Referências:
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia
geral. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (Ensino Superior).
GONZALES, Javier. El cuerpo y la letra: la cosmología poética de Octavio Paz. México –
Madrid – Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1990.
MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Trad. Edgard de Assis Carvalho. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1998.
PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo. Siciliano, 1993.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982
(Coleção Logos).
ROSA, António Ramos. O conceito de criação na poesia moderna. COLÓQUIO/LETRAS,
Lisboa, n. 56, julho, 1980.
135
(RE)CONTRUÇÃO ÉTNICA N’AS MULHERES DE TIJUCOPAPO
Alexsandra Maria Ferreira da Silva77
RESUMO:
Este trabalho tem como objetivo analisar a representação do feminino em As Mulheres de
Tijucopapo, de Marilene Felinto. O romance, escrito em 1982, aponta para o questionamento de uma
ideologia hegemônica nas duas identidades sociais: a de gênero e a étnico-racial. Considerando-se a
coexistência de múltiplas identidades - gênero e étnica, a identidade da narradora-protagonista, Rísia,
se constrói/ destrói/ reconstrói nos processos vivos do acontecer das relações familiar e social.
PALAVRAS-CHAVES: Gênero, feminismo, etnia.
O romance As Mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, escrito em 1982,
aponta para o questionamento de uma ideologia hegemônica nas duas identidades
sociais: a de gênero e a étnica. A análise do romance abre espaço para a discussão
da mulher que, a despeito de sua posição marginalizada em uma organização social
assentada na hierarquização de lugares sociais e na desigualdade entre os gêneros
masculino e feminino, é capaz de introduzir cunhas no poder hegemônico.
Rísia, narradora-protagonista, na busca por uma identidade da mulher sujeito
de sua história, desorganiza a ordem hegemônica de gênero e de etnia. Com
despeito a estas duas categorias, é interessante notar que a protagonista engendrou
estratégias de escape ao ordenamento social instituído.
Os estudos de gênero, de um modo geral, sob o impacto das conceituações
sobre a fragmentação do sujeito, abriram-se para a reflexão sobre outros fatores
constitutivos da identidade, como etnia, conforme irei discutir nos parágrafo
seguintes.
A protagonista põe-se a caminho na busca de sua identidade. Este sujeito
carregado, fundamentalmente, de dois estigmas: ( de gênero e de etnia) busca lugar
no interior de si e de sua coletividade, num vagar incessante, para combater este
sentimento decepcionante de descoberta do mundo (FELINTO, 1992, p.76),
sentimento, agora consciente, do homem contemporâneo, como esclarece Hall:
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável
está se tornando fragmentado; composto não de uma, mas de várias
identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. (HALL, 2003,
p.12).
77
Alexsandra Maria Ferreira da Silva é mestre em Teoria da Literatura. Atualmente desenvolve o
projeto de doutorado na ficção literária anglo-americana e brasileira contemporânea de autoria
feminina, enfocando, principalmente a reconstrução da identidade do feminino. É membro do grupo
de pesquisa Vozes Femininas do departamento de Literária e Literaturas, programa de pósgraduação em Teoria Literária da Universidade de Brasília.
136
A narradora-protagonista, à procura de sua identidade, busca resgatar sua
origem étnica a partir do exercício de reflexão desses pólos:
Pobres mulheres como mamãe, que eram dadas numa noite de luar, por
minha avó, uma negra pesada, e que depois seriam mulheres sem mãe
nem irmãos, desgarradas, mulheres tão sem nada, mulheres tão de nada.
(p.34).
Mulheres negras, colocadas à margem da sociedade. Nesse sentido, a
narradora delineia a etnia das personagens ao longo do texto com um acento
lingüístico
que,
a
princípio,
pode
passar
despercebido.
Rísia
recupera,
eventualmente, questões importantes da sua trajetória. A questão étnica é uma das
causas do abalo identitário sofrido pela protagonista. E não há um interesse em
esconder sua origem étnica. Pelo contrário, ela, nos termos de Bourdieu, reivindica o
estigma.
Portanto, este é um problema a ser resolvido e requer, por isso, uma
discussão sobre etnia. Para expor tal complexidade de marcação étnica, apoio-me,
para início de discussão, na reflexão de Stuart Hall sobre os conceitos de etnia e
raça.
Em primeiro lugar, é necessário ressaltar aqui que há posições divergentes
nas Ciências Sociais quanto ao uso do termo “raça”. Aqueles que se negam a utilizálo, o fazem apoiando-se no fato de que biologicamente não existem raças na
espécie humana, bem como no argumento de que esta categoria encontra-se
carregada de conteúdo ideológico discriminatório.
Stuart Hall, em Da diáspora: identidade e mediações culturais, compartilha tal
recusa, e analisa a questão britânica como um breve exemplo de um argumento
mais amplo. O autor afirma que tem-se feito um esforço para que a questão da
“raça” seja reconhecida com seriedade na teoria política em geral, no pensamento
jornalístico e acadêmico.
O silêncio a esse respeito, segundo Hall, está sendo
rompido à medida que esses termos se impõem sobre a construção pública. Sua
crescente visibilidade constitui, inevitavelmente, um processo difícil e pesado,
enfatiza o autor.
Nas palavras de Hall, conceitualmente, a categoria “raça” não é científica. As
diferenças atribuíveis à “raça” numa mesma população são tão grandes quanto
aquelas encontradas entre populações racialmente definidas. “Raça”, segundo ele, é
uma construção política e social. Para o autor, a “etnicidade”, por outro lado, gera
137
um discurso em que a diferença se funda sobre características culturais e religiosas.
Nesses termos, ela freqüentemente se contrapõe a raça.
A reflexão de Stuart Hall a respeito do termo remete à idéia de que a
categoria social “raça” se refere a uma classificação fundada nas representações
sobre a dinâmica das forças sociais em permanente tensão. É uma elaboração
social forjada na relação entre grupos que se auto-representam a partir do
pertencimento a ‘raças’ diferentes. Assim, o processo de construção social das
‘raças’ supõe a definição a partir da relação de reciprocidade/alteridade entre os
distintos grupos étnicos existentes.
O conceito de etnia, para o autor, implica a idéia de identificação no interior do
mesmo grupo de pessoas em relação à atitude de compartilhar elementos culturais
comuns. Comparada à raça, a etnia apresenta, pensando na discussão de Hall, uma
articulação mais tênue à problemática da presença do pluralismo e diversidade. Diz
respeito, portanto, à alteridade e às identidades heterogêneas e em desacordo ou
dissidência com os valores compartilhados por outros grupos.
Estas colocações de Hall são relevantes na medida em que penso tentar
desfiar os fios da teia da identidade do feminino/etnia de um personagem claramente
marcado, também, pela sua origem étnica.
Concordo que a etnia também marca a construção da identidade. Por
intermédio das interpretações das lembranças, portanto, desvelam-se alguns destes
registros e aponta-se como circulam, pois a ideologia nos coloca naturalmente
colados à construção das crenças sobre a identidade que, por sua vez, está
associada ao amadurecimento das imagens do mundo individual e socialmente
aceitas como verdadeiras. Esses mitos são crenças que temos a respeito de nós
mesmos que marcam a nossa vida como destino, sina e verdades absolutas que
recebemos como heranças de família e que fixam o sujeito em uma determinada
posição. A seguir, aprofundarei a discussão abordando as reflexões de diferentes
autores.
Para Elisabeth Mercadante (1997), a identidade étnica é construída
contrastivamente. A etnia pode ser entendida como um classificador que opera o
contraste entre o “eu” e o “outro”. Como afirma a autora, a etnia diz respeito à
separação e ordenamento de uma população numa série de categorias definidas em
termos de “nós” e “eles” (p.15). Contraste que marca a construção de uma
138
identidade individual e de grupo e que surge por oposição, pelo estigma que um
determinado grupo social recebe historicamente. No pensamento de Mercadante,
ela não se afirma isoladamente.
Já para Erick Erikesen (1993, p.12), a etnicidade, que considera um conceito
bem mais amplo que o de raça, é um elemento definidor de identidades sociais,
entendidas como uma forma de vínculo de parentesco metafórico. Aqui, fica explícita
a noção de etnicidade definida como pertencimento a um grupo, com o qual se tem
afinidades e semelhanças, em contraposição a outros grupos distintos com os quais
se mantém relação.
No que se refere ao estudo das relações étnicas e do racismo, à literatura
sobre a situação do negro no Brasil, à diáspora e ao escravismo, bem como ao
debate conceitual acerca de “raça”, etnicidade e classe, há hoje um acúmulo nada
desprezível de produção acadêmica, o que indica um amadurecimento intelectual e
político neste campo. Contudo, a clivagem de gênero é quase ausente do universo
de preocupação daqueles que se dedicam a esta área político-intelectual, salvo
algumas exceções - geralmente representadas por mulheres negras-feministas. O
inverso também é verdadeiro: pesquisadores nas áreas de classe ou etnia
costumam desconsiderar o dado do gênero.
Sustenta-se que a argumentação teórico-ideológica do racismo deva ser
essencialmente histórica, mas não-autônoma, nem primeira, como destaca Etienne
Balibar (1988 p.28). O autor diz que ela deve se fazer acompanhar de formações
discursivas com contornos de etnia e classe e, acrescente-se o que nele constitui
um hiato, a clivagem de gênero.
O debate intelectual referente ao problema das relações étnicas pode ser
traduzido pela polarização em duas vertentes, embora com diferenças de ângulo de
análise no interior da cada uma delas. Uma reúne as posições defensoras das
desigualdades étnicas como resultantes da distribuição econômica existente na
sociedade e sua corolária assimetria no acesso à educação. Essa perspectiva é
edificada sobre o pressuposto da prevalência da classe sobre a etnia, propugnando
que uma vez obtendo patamares mais elevados de educação e renda, os negros
teriam mobilidade social ascendente, não enfrentando barreiras ou discriminações,
nos termos do que defende Donald Pierson:
(...) a cor tem menos valor do que os outros indícios de classe. Estes
sobrepujam a ascendência racial na determinação final do status. Sem
139
dúvida, a cor é um percalço. Mas tende sempre a ser negligenciada e
mesmo esquecida, se o indivíduo em questão possuir outras características
que identificam as classes ‘superiores’, tais como (...) instrução, riqueza,
encanto pessoal, pose, ‘boas maneiras’ e, especialmente para as
mulheres, beleza. (PIERSON, 1942, apud IANNI, 1988 a., p.128).
Os que defendem esta posição argumentam que com o crescimento
econômico advindo do capitalismo moderno, automaticamente se asseguraria a
eqüidade social; logo, a igualdade étnica (e de gênero).
O paradigma da modernização, obviamente, serviu de inspiração a este ponto
de vista, conforme se pode observar na citação abaixo extraída de Peggy Lovell
(1995), onde se sugere que a partir do aprimoramento do modelo de
desenvolvimento brasileiro: “O grande contraste nas condições sociais e
econômicas. Entre os estratos mais baixos e a classe alta predominantemente
branca desapareceria (LOVELL 1995, apud WAGLEY, 1969, p. 60).”
Neste ângulo de análise encontra-se subjacente a suposição de que a
população negra está distribuída na base da pirâmide de renda, em virtude de se
encontrar em situação diferente, em relação aos brancos, no momento da abolição
da escravatura. Em outras palavras, é depositada no legado escravista a origem do
lugar adjudicado que os negros e mestiços ocupam no presente. Como define Peggy
Lovell (1995), esta vertente associa as desigualdades étnicas aos vestígios do
passado e suas conseqüentes diferenças no capital humano: desigualdades de
educação e renda (p. 43-44).
Acredito tratar-se de posição acrítica e ahistórica, que nega a existência dos
conflitos étnicos: conflitos por poder, os brancos desenvolvendo estratégias,
baseadas no racismo, pela manutenção do status quo, e os negros se contrapondo
a elas. Esta posição se ancora na suposta cordialidade do brasileiro, bem como no
mito da democracia racial e na apologia da mestiçagem, como signo da tolerância e
harmonia no convívio entre as etnias. Esta é a concepção desenvolvida pelas elites
políticas acerca dos seus países, onde se acredita (e se faz acreditar) que existe
uma harmonia entre os cidadãos oriundos de todo o contínuo de cor, e ausência de
preconceito e discriminação étnicos.
Um elemento na construção dessa posição é, como aponta Heloísa Buarque
de Hollanda, a reelaboração idílica do passado escravo, para escamotear a
prevalência de uma sociedade altamente hierárquica e pigmentocrática. (1992 p.53)
140
A outra vertente, nas ciências sociais no Brasil, não ignorando o pretérito
histórico escravocrata, centra a análise da problemática étnica nos processos sociais
de transformação das marcas fenotípicas em emblemas de desigualdade. Estes
processos constantemente reiteram hierarquizações sociais e formas de seleção e
controle social nas sociedades contemporâneas. Seus representantes defendem
que os indivíduos tomados individual ou coletivamente como pertencentes a grupos
de brancos, negros ou mestiços, se defrontam com diferentes estruturas de
oportunidades sociais. Em decorrência de uma situação de extrema desvantagem
competitiva, sem transformações substantivas desde a abolição, a população negra
apresenta menor grau de mobilidade social vertical, constituindo a imensa massa da
base da hierarquia social. Sobre isto, Matilde Ribeiro, ao pesquisar as relações
raciais nas pesquisas e processos sociais, revela as condições de subumanidade
vividas pela população negra:
É flagrante a enorme concentração de negros nas faixas de menor renda da
população brasileira. Segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), publicada em 2002, os negros representavam,
em 1999, 45% da população brasileira. Entre os 53 milhões de pobres, os
negros correspondem a 64% do total e a 69% da população de indigentes.
Da mesma forma, é majoritariamente negra a massa de desempregados e
subempregados em todo o país.
Constata-se que as mulheres negras são mais freqüentemente submetidas a
ocupações precárias, seguidas das mulheres brancas e dos homens
negros, como, por exemplo, no serviço doméstico, que é a maior área
profissional feminina do país, ocupando aproximadamente 4,6 milhões de
mulheres em um total de 5 milhões de trabalhadores em 2000, sendo 71%
dessa mão- de-obra composta por mulheres negras. (RIBEIRO, 2004,
p.90).
Para Carlos Hasenbalg, o potencial explicativo da escravidão como causa das
desigualdades entre brancos, negros e mestiços decresce com o tempo. Hoje, para
ele, esta pode ser considerada uma “causa residual” (1992 p.57). Já em Florestan
Fernandes (1978; 1989), a escravidão tem maior estatura teórica e política do
ângulo das causas das desigualdades étnicas. Entretanto, qualquer que seja o ponto
de vista, é certo que a composição étnica da população brasileira deixa descoberta
uma ferida aberta, produzida no passado colonial e ainda não cicatrizada.
Em Carlos Hasenbalg, a forma como os antagonismos étnicos, longe de
serem superados com a industrialização e a ampliação capitalista, se atualizam
reafirmando a discriminação e o preconceito como barreira à ascensão social dos
negros e mestiços. De outro lado, o autor avalia a tese da crescente perda de
legitimidade da idéia de democracia étnica.
141
Considerando-se a constituição de grupos sociais a partir dos cortes de
classe, de gênero e etnia, os negros constituem o grupamento que apresenta o
menor grau de mobilidade social, em virtude de serem definidos através do
nascimento e, principalmente, pela cor da pele, marca que se metamorfoseia em
estigma. Este estigma, como assinala Ianni (1996, p.19), institui racismos,
etnicismos, xenofobias.
Neste sentido, é possível perceber a dor dura e fechada que aprofunda a
solidão de Rísia, levada pelo seu naufrágio existencialista. Experiência intransferível,
a dor (principalmente a do amor negado) se revela como algo visceral ao ser: coisa
que parecia impossível de a vida agüentar – uma descarga elétrica, paralisa, choca,
é mais próxima da morte do que da vida. (p.123).
O que fazer com tanta dor? Onde encontrar a trajetória da rejeição? Como
preencher as fendas da infância vilipendiada, acuada pelos espaços da agressão e
da violência?
Às vezes eu me olho no espelho e me digo que venho de índios e negros,
gente escura, e me sinto como uma árvore, me sinto raiz, mandioca saindo
da terra. Depois me lembro que não sou nada. Que sou uma pessoa com
ódio, quase Severina Podre, lunática, enluarada, aluada, em estado de
porre sem nunca ter bebido. (p.35)
Assim, neste espaço agonizante, ela inicia seu processo de reflexão: é
preciso lançar-se à procura da origem de seu drama existencial porque aí também
reside a origem de sua identidade, perdida ou duramente desdobrada. Ir atrás de
seu começo, mesmo chorando de morte e medo, chorando lágrimas de sal enquanto
o mar de seu relato estronda dentro de si.
Ronaldo Costa Fernandes, em O narrador do romance, diz que: O narrador
em primeira pessoa é como uma película sensível onde o mundo visível vai marcar
suas impressões. Diria que Rísia é como uma chaga aberta que a vida foi cavando.
Vida que ejacula sangue.
Como se fosse o estilhaçamento de um presente em rotação perpétua à
busca de um discurso que busca desesperadamente a constituição de si, através de
suas dores, este narrador esfacelado se desconstitui e se constrói em suas feridas:
Minhas mãos são feitas de carne que dois pregos podem atravessar furando
buracos a caminho da madeira da cruz. (p.62).
Bíblico relato. Mas principalmente um relato de quem viveu em situação de
exclusão. E sentiu as dores sociais do tripé capitalismo-racismo-sexismo e caminha
pela ponte onde os esmoleres (conforme expressão utilizada no romance) margeiam
142
a sua estrada e onde ela se encontra e se identifica. É justo? Interroga-se a
narradora, empreendendo um diálogo com o leitor, com um questionamento críticosocial. É justo que algumas pessoas sejam mais felizes que outras? Não é justo,
responderíamos nós, leitores, a esta narradora tão digna que se corta inteira, que se
consome inteira em prol de um coletivo que se perdeu. Onde todos os justos se
encontram porque, como diz Walter Benjamim narrador é a figura na qual o justo se
encontra consigo mesmo. (p.74).
Ficar ou não ficar consigo mesma, questão que inunda a narrativa de Rísia.
Este esforço de captar a sua essência é fruto, segundo Adorno, da estranheza das
relações humanas na modernidade e que desemboca nessa tentativa de
deciframento interno do homem. Este momento anti-realista, como ele nomeia o
chamado romance metafísico, é produzido por esta sociedade em que os homens
estão separados uns dos outros e de si mesmos. (Adorno, 1980) O romance de
tempo metafísico fundamenta-se na linguagem como expressão da humanidade do
homem no tempo. Observa-se que a narrativa revela a mutilação do mundo na
esfera do ‘eu’ do homem contemporâneo. Assim, a palavra, na ficção metafísica, é
um eterno questionar-se.
É o homem indo ao encontro de si mesmo. O
desencantamento do mundo refletir-se-á nessa nova estética.
Na ficção de Marilene Felinto, esta estética se manifesta através do
depoimento comprometido, emocionado e dolorido de Rísia. No seu texto, lugar
desmedido, o seu eu partido se dilacera em corte. Fio de navalha, a sua narrativa
atravessa o discurso visceral da escrita do corpo alquebrado e ferido: não do corpo
erotizado feminino e sim do corpo que, às vezes, quer se entregar gratuitamente,
sem culpas, para romper o silêncio, a solidão, a morte e tentar refazer a relação
primordial: aquela sem descontinuidade entre o “eu” e o “outro”. A narradora tenta
transcender suas culpas: a culpa pelo exercício da sexualidade, por ter nascido de
um tal exercício, por querer matar o pai, por ter tanto ódio dentro de si. Rísia
consegue isso através da relação com um outro, que é transgressor, o guerrilheiro
Guevara/Lampião. Deve-se considerar, no entanto, que toda transgressão carrega
alguma culpa.
Mas este corpo que carrega o mundo em seus ombros não se envergonha
diante da dor. Tenta carregá-la heroicamente como Hércules num tom épico que
singulariza a narrativa. O tom intimista se conjuga ao tom épico delineando um
narrador dilacerado, mas heróico, prestes a entrar numa guerra, transformando as
143
suas feridas em arma social para combater os opressores e os culpados de sua vida
miserável e de suas dores.
Esta voz épica, carregada de tom social, dialoga constantemente com a voz
dolorida em um embate que incendeia nossa protagonista nutrindo-a de uma força
impulsionadora que a leva para um caminho desconhecido, mas seu. O lugar do
motim.
Na procura de sua identidade, Rísia busca respostas para se afirmar
enquanto sujeito da sua história. Para isto, é necessário olhar para si. Mas este olhar
para si, é encontrar-se (a si) com suas mulheres – mãe, avó, tia, colega de escola,
amiga, vizinhas. Encontrar-se (a si) no lugar do motim significa, nesse momento da
narrativa, transformar-se em Maria Bonita: Que ainda ontem eu...ainda ontem eu me
deitara com um homem chamado Lampião. Ou em destemida guerreira amazona
que pretende invadir a Avenida Paulista em busca das luzes que brilham lá para
dependurá-las nos postes apagados nas ruas de infância de seus irmãos, de Nema,
de Severinos podres que vagueiam em sua infância viva.
Em meio à voracidade de Rísia encontra-se a fronteira da origem e da
finitude, da vida e da morte. Em meio também a esta voracidade, se encontra o
deslimite do amor. A nossa heroína que abre a cena do ilimitado e do desmedido,
vem de uma família negra patriarcal, centrada na figura do pai. Este afirma a sua
superioridade aos únicos que são subordinados a ele: esposa e filhos.
À guisa de evitar equívocos no entendimento conceitual da categoria utilizada,
vale deixar claro que o patriarcado está sendo entendido como o conjunto dinâmico
e contraditório de relações em que prevalece o exercício de poder do sexo
masculino sobre o feminino, com fins de submeter este a uma situação de
dominação-exploração. Acredita-se que este sistema perpassa todos os modos de
produção, sendo, portanto, milenar e universal, mas assumindo uma feição
particular, na medida em que se funde com este ou aquele sistema: escravista,
feudal, capitalista ou socialista. No caso da sociedade brasileira, o patriarcado se
imbrica com o capitalismo e com o racismo, constituindo um único sistema de
dominação-exploração.
Assim, o passado e suas origens são resgatados numa longa travessia de dor
e morte. Dor pelas lembranças da mãe, da tia, das vizinhas – mulheres vilipendiadas
e sem consciência. Morte onde seu eu primeiro se encontrava sufocado - ela que já
144
sofrera demais em menina por ser negra, pobre, por não praticar a religião
reconhecida como hegemônica, deseja embarcar, agora adulta, na conquista de
estabelecer sua identidade.
Dialogando com a teoria de Stuart Hall, do sujeito descentrado, resultando
nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pósmoderno. (HALL, 2001), penso que Rísia, andarilha, peregrina, quer reencontrar a
sua identidade nos três estigmas que a tornam um sujeito morre-não-morre. Este
sujeito heterogêneo que a divide no interior de si mesma, através do caminho na
estrada que a leva às suas origens, a mesma estrada que a faz vagar entre a vida e
a morte, é o sujeito contemporâneo que morre de si para poder viver em suas
inúmeras identidades numa dialética constante, praticando um canibalismo
existencial, pré-requisito para a sobrevivência de uma sociedade esquizofrênica e
terminal dos tempos atuais.
Um dos estigmas que marca fortemente a personagem-protagonista é a sua
etnia. A questão étnica é um dos elementos formadores de uma identidade
fragmentária, ainda pensando na teoria de Hall. A etnia, como o gênero, é visível e,
portanto, parte indelével, mas não única, da construção de identidades dos sujeitos.
Sendo assim, encontramos no discurso de Marilene Felinto, através da voz de
Rísia, a representação de uma outra busca, a de uma unidade da fragmentação
exposta da identidade dessa protagonista. Para isto, farei uma breve exposição da
teoria do sujeito fragmentado de Stuart Hall, de como o sujeito fragmentado está
sendo construído.
Na teoria de Hall, observamos que o sujeito pós-moderno pode resultar não
em uma, mas em várias identidades. Para ele as culturas nacionais, ao produzir
sentidos sobre ‘a nação’, sentidos com os quais podemos nos ‘identificar’, constroem
identidades que estão contidas nas estórias que são contadas à nação, memórias
que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas
(HALL, 2001, p.51). Contudo, deve-se considerar que ...as identidades nacionais
foram uma vez centradas, coerentes e inteiras, mas que estão sendo agora
deslocadas pelos processos de globalização. (HALL, 2001, p.50).
A busca de uma identidade na ficção de Marilene Felinto parte justamente do
aspecto da cultura nacional. Mas, nesse sentido, o que seria essa cultura nacional?
145
Para Hall, as identidades nacionais representam vínculos a lugares, eventos,
símbolos, histórias particulares (HALL, 2001, p.76). O autor ainda considera o
aspecto de que elas ...não são coisas com as quais nascemos, mas são formadas e
transformadas no interior da representação. (HALL, 2001, p.48).
Em Felinto, essa cultura nacional é revelada pelas marcas de classe, etnia e
gênero da narradora-protagonista. No que tange especificamente à questão da
mulher negra em nossa cultura, vale considerar as palavras de Margareth Rago:
As mulheres negras têm sido as principais vítimas das discriminações e
violências que pesam sobre as mulheres, às vezes pelas próprias
mulheres. A herança colonial escravista, a mistificação da sexualidade das
negras mulatas no imaginário social, o mito da democracia racial brasileira,
mascarando as violentas e dissimuladas formas de discriminação contra
elas (...). Assim como as questões da prostituição, do tráfico internacional
de mulheres, do turismo sexual e da exploração sexual da infância, que
crescem com grande velocidade, demandam debates sociais e políticas
públicas urgentes. (RAGO, 2004, p.40).
Como bem aponta Rago, a mulher negra habita o extremo mais frágil do
espectro social. Isso significa que elas têm que negociar seu senso de identidade a
partir de dados diversos. Segundo Stuart Hall, quem se movimenta no palco
contemporâneo é o sujeito provisório, senhor de identidades móveis constituídas
continuamente em respostas à múltiplas interpelações culturais que nos rodeiam.
Identidades diversas sinalizando para diferentes alvos. Identidades intercambiantes
prontas para emergir à medida que os sistemas exigirem. Este sujeito provisório vai
encontrar ressonância perfeita na mulher negra, oriunda de uma classe
desfavorecida economicamente que, para sobreviver às diferenças e ao lugar (a
cultura nacional, especificamente, a brasileira cuja política sociocultural é sustentada
pela diferença) desprivilegiado em que está – que não é o seu – , procura encontrar
outras histórias, outras ficções em que o seu eu narrado seja mais aceito.
Analogicamente, é isto que acontece com Rísia: precisa contatar sua outra
identidade.
Ela precisa reencontrar-se com a sua cultura, sua origem, também,
étnica: minha avó era tão negra que arrastava (p.20); eu tinha cabelo duro (p.72).
Isso é necessário para estabelecer um diálogo que favoreça um projeto que ela
acredita que se possa ainda ser. Este sujeito, que nos círculos familiar e social não
consegue ser e que vive à margem de um discurso que não consegue comunicar
plenamente agora eu já não gaguejo mais, agora eu emudeço de vez ou falo em
língua estrangeira (FELINTO, p.40) vai se emaranhar no sertão do seu eu e vai
aprofundando grandes indagações existenciais e metafísicas. Por isso segue por um
146
caminho de ... babaçus, mocambos e sol árido (FELINTO, p.32), rumo ao agreste
onde espera encontrar as mulheres de Tijucopapo, que a ajudem a encontrar seu
lugar que fora negado.
Dessa forma, na própria análise de uma identidade sobre a outra, quando
uma consciência cai sobre si, neste movimento dialógico das identidades, a
personagem parece que consegue refletir sobre o seu próprio existir, indo de
encontro às referências das mulheres de sua família, do seu meio social, marcadas
pelas categorias do patriarcado, racismo e capitalismo – faces de um mesmo modo
de produzir e reproduzir a vida.
Assim, Marilene Felinto explora o jogo de emoções resultante do confronto
que a personagem Rísia realiza no diálogo das suas identidades. A identidade
pessoal de Rísia é uma montagem humana que se desagrega na sua cor, um dos
elementos formadores de uma identidade fragmentária.
Referências:
Benjamim, Walter. A modernidade In: Benjamim, Walter. A modernidade e os
modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
1993.
Eriksen, Thomas H. Etnicity & nacionalism: anthropological perspectives. Pluto Press,
Felinto, Marilene. As mulheres de tijucopapo. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3a ed. São
Paulo: Ática, Ensaios 34, vol. 1 e 2, 1978.
Fernandes, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez; Autores
Associados, 1989. (Col. Polêmicas do nosso tempo; vol.33).
1996.
Fernandes, Ronaldo Costa. O narrador do romance. Rio de Janeiro: Sete Letras,
Hall, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora
UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003.
Hasenbalg, Carlos A. Notas sobre relações de raça no Brasil e na América Latina. In:
Holanda, Helloisa Buarque de. (org.). Encontro Latino-americano sobre gênero e raça. y
nosostras latinoamericanas: Estudos sobre gênero e raça. São Paulo: Fundação Memorial
da América Latina, 1992.
Hasenbalg, Carlos A. &Silva, N. Relações raciais no Brasil contemporâneo. Rio de
Janeiro: Rio Fundo/ IUPERJ, 1992.
Ianni, Octavio. A racialização do mundo. Tempo Social; Revista de Sociologia, USP,
São Paulo, no 8(1), 1996.
Mercadante, Elisabeth Frohlich (1970). A construção da identidade e da subjetividade
do idoso. Tese de Doutorado. São Paulo, PUC - SP, 1997.
Rago, Margareth. Ser mulher no século XXI ou carta de alforria. In: Venturi, Recamán
Marisol e Oliveira, Suely de (org).- 1. Ed. - São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2004.
147
“Sociological poetics”. A maternidade em George Eliot
Cristina Maria Teixeira Stevens78
RESUMO
O objetivo do presente trabalho é desenvolver uma breve análise da representação da maternidade
nos romances da escritora inglesa George Eliot. Considerados precursores da sociologia, seus
romances analisam aspectos fundamentais da sociedade vitoriana. Além disto, a escritora – que optou
por não ser mãe, problematiza as representações tradicionais da maternidade; expõe as
complexidades e contradições desta experiência, e propõe novas formas de parentalidade em sua
obra, onde a função materna não é exclusivamente exercida pela mulher.
PALAVRAS-CHAVE: feminismo, maternidade, literatura inglesa
A profissão médica sempre esteve consciente da verdade nas palavras de
St. Agostinho de que nascemos inter faeces et urinam. Esta verdade
anatômica, combinada com a visão religiosa da mulher no parto como
ritualmente suja, explica parcialmente porque os Vitorianos encaravam o
parto com desconfiança. . Por outro lado, o status da maternidade –
presidido pela imagem da Madona e seu filho Jesus - é puro e límpido. .
Esses dois comentários . um que evidencia o aspecto desagradável do
nascimento e o outro que glorifica a maternidade, reflete o comentário de
Tertuliano sobre a dualidade da mulher - templum aedificatum super
cloacam, um templo construído sobre uma fossa.
John Hawkins Miller, in Death and the Mother from Dickens to Freud (Carol
79
Denver )
Considerada um dos elementos mais fundamentais da estrutura social, a
maternidade sempre foi definida - desde tempos remotos e em vários campos e
práticas disciplinares - pelos homens, sejam eles religiosos, médicos, antropólogos,
sociólogos, filósofos, juristas, artistas, ou escritores. Samuel Johnson reflete a
ideologia de sua época, quando, em 1763 formula o seguinte comentário sobre este
assunto: “A natureza deu à mulher tanto poder, que a lei sabiamente deu a elas
muito pouco”(apud KIPP, 2003: 1).
Como décadas de pesquisas desenvolvidas, sobretudo por feministas, vêm
demonstrando, a ideologia vitoriana foi dominada pela imagem burguesa da mulher
como “o anjo do lar”, mãe assexuada e altruísta. Seu poder, exercido apenas no
domínio da família, era apenas um poder de ordem moral, o de supervisionar as
tarefas domésticas, e acompanhar o desenvolvimento espiritual e intelectual de seus
filhos. Assim, a mulher=mãe ideal estaria sempre disponível - para os outros: família,
esposo, filhos, obras de caridade, etc. Ao pai era reservado o poder ilimitado, não
apenas sobre a família, mas em todos os domínios da esfera pública de uma
Inglaterra imperial que se expandia rápida e vigorosamente nos campos político,
78
Doutora em Literatura Inglesa (Universidade de São Paulo,1987), Pós doutorado no Center for
Interdisciplinary Gender Studies da Univesity of Leeds ((Inglaterra, 2003). Professora de Literatura
Inglesa (curso de Letras e Letras/Tradução) e de Teoria e Crítica Literária Feminista (Programa de
Pós Graduação em Literatura) da UnB. Publicações (livros, periódicos nacionais e internacionais) e
orientação (mestrado e doutorado) na área de estudos feministas e estudos interculturais.
79
Neste trabalho, as traduções dos textos publicados em inglês são de minha autoria
148
econômico, científico, sócio-cultural. Em seu livro The Mothers of England: Their
Influence and Responsibility (1844), Sara Ellis (considerada a 'Benjamin Spock' leiga
de sua época), também não está sozinha entre as mulheres que não apenas
internalizam os dogmas impostos pela tradição patriarcal, mas tornam-se
ventríloquos dessas verdades inquestionáveis: “não há como escapar dos deveres
de mãe; assim, se em algum momento na vida de uma mulher, ela precisa pensar
com seriedade, é precisamente quando ela se torna mãe” (apud MCKNIGHT,1997:5)
A pesquisadora feminista Carol Dyhouse comenta que o filósofo inglês Herbert
Spencer chegou a sugerir que a dependência da mulher poderia ser usada como um
indicador do progresso social (DYHOUSE, 1978:176); o pai=provedor daria assim
evidência de seu vigor capitalista através de sua capacidade de sustentar todos os
membros de sua família. Como lembra a pesquisadora inglesa Tony Bowers, surge
no século XVIII a figura da esposa em tempo integral e da mãe como elemento
essencial na estrutura da família nuclear; ela era um elemento invisível e
supostamente não-produtivo - em oposição ao trabalho assalariado do homem no
capitalismo emergente, obviamente um conceito limitado do trabalho produtivo que a
sociedade patriarcal consolidou e que dura até os dias de hoje, embora felizmente
em menor grau.
Bowers também comenta sobre os esforços (alguns dos exemplos já citados
acima), para criar uma versão monolítica da excelência maternal, para o que tornouse necessária a proliferação de literatura didática que visava atingir a classe média ou àqueles que aspiravam chegar a esse nível. A maternidade era então definida
como um conjunto supostamente universal de comportamentos e sentimentos:
ternura envolvente e ilimitada, amamentação longa, ausência de desejo sexual,
movimentação física restrita ao 'santuário' doméstico, rejeição ao trabalho dito
"produtivo" (ie, assalariado), supervisão constante e educação das crianças. A
educação da mulher servia apenas para que ela pudesse servir melhor à família e
aos filhos. Sobre as limitações dessa construção utópica, Aminatta Forna observa de
forma bem humorada em seu livro Mãe de todos os mitos: como a sociedade modela
e reprime as mães (1999): “o menino Jesus nunca foi pintado chorando . Sua mãe
nunca tem uma aparência irritada ou cansada. . Ninguém jamais pintou Maria nos
afazeres prosaicos da mãe. . Nossa Senhora e o menino Jesus estão congelados na
eternidade de um momento relativamente raro da mãe com seu bebê” (p. 18).
A imagem da rainha Vitória, como mulher devotada aos nove filhos e ao
esposo, contribuiu de forma decisiva para a consolidação da imagem da mãe como
um ser sem existência independente de seus deveres, que se auto-anulava no
149
desempenho sublime de sua função materna. Entretanto, esta imagem ideal
exaustivamente propagada contrasta com a realidade sobre a qual ela escreve em
cartas para sua filha Vicky, a quem confessa: “Odeio a idéia de dar à luz”:
Sem dúvida, é extremamente difícil e aterrorizante o que nós mulheres
temos que enfrentar, e os homens deviam ter adoração por nós e
inquestionavelmente fazer de tudo para compensar o que, afinal, somente
eles são a causa! Tenho que confessar que esta é uma disposição
inadequada, mas temos que suportá-la com paciência e sentir que não
podemos evitá-la e portanto temos que esquecê-la, e quanto mais
mantivermos nossos sentimentos puros e modestos, tanto mais fácil será
superar isto depois (MCKNIGHT,1997: 14).
Em seu livro Unstable bodies. Victorian representations of sexuality and
maternity (1995), a pesquisadora inglesa Jill Matus cita os conselhos d o médico
W.R.Greg, o qual enfatiza a necessidade da mulher manter-se ignorante sobre a
'ciência' dos afetos sexuais, que para ele deveria ser do conhecimento apenas do
homem (p. 14). Matus também lembra que William Acton, ao fazer uma clara
distinção entre homem e mulher, coloca-a mais próxima do mundo animal; para ele,
a natureza e a cultura estão harmonicamente organizadas de forma a provocar na
mulher a dose certa de desejo e repugnância de forma a garantir a continuidade da
espécie e, ao mesmo tempo, evitar que os homens se destruam em indulgências
perigosas provocadas pela insaciabilidade feminina (p. 47).
Essas construções médico-científicas sobre a maternidade reforçam as
concepções culturais sobre a mulher, como um ser 'desenhado' especialmente para
a reprodução, para o que já vinha também 'equipada' com um instinto maternal sobre
o qual Darwin escreveu:
A mulher parece diferir do homem em sua disposição mental,principalmente
no que se refere à sua maior ternura e menor egoísmo. . Devido ao instinto
maternal, a mulher desenvolve essas qualidades com relação aos seus
filhos em um grau elevado; consequentemente, é provável que ela
naturalmente estenda essas qualidades em direção a outras criaturas
(AGONITO, 1979:260)
Entretanto, esse 'capital simbólico' sobre a maternidade na Inglaterra Vitoriana
não foi construído de forma simples, sem contestações; era difícil, para não dizer
impossível, negar os desvios gritantes dessa imagem idealizada: as pressões
socioeconômicas e os efeitos das cruéis privações pelas quais passava a classe
operária eram óbvios demais para serem negligenciados. Vários pesquisadores
dedicaram-se ao estudo da classe operária, e as consequências das condições de
trabalho nas fábricas sobre o desenvolvimento biológico, psicológico e moral da
população operária feminina, por exemplo; entretanto, esses efeitos, analisados a
partir da perspectiva masculina e burguesa desses estudos (que se pretendiam
objetivos e universais), eram definidos como degenerativos e contaminadores. As
150
mães solteiras eram caracterizadas como moralmente depravadas, e a gravidez
nunca era vista como efeito da sua situação vulnerável de mulher em meio a uma
população operária majoritariamente masculina, mas sim como evidência de seu
comportamento sexual condenável80.
Essas
circunstâncias
potencialmente
revolucionárias
exigiam
medidas
urgentes que só o zelo didático e a preocupação missionária da classe dominante
poderia efetivar – assim pensavam eles. Não se imaginava a possibilidade de o
agente das mudanças surgir da base oprimida, muito menos da base feminina ou
das mulheres em geral, vistas como seres celestiais, belos e frágeis.
Em seu livro The Condition of the Working Class in England, Engels descreve
detalhadamente as condições degradantes da experiência de industrialização sobre
o proletariado, especialmente sobre a mulher operária. Forçadas a trabalhar entre 14
a 16 horas diárias para ganhar um terço - ou no máximo a metade - do salário do
trabalhador, elas eram preferidas pelos empregadores, por submeterem-se mais
facilmente às cruéis condições de trabalho e de salário; isto as colocava em
condições de conflito diante de seus esposos, parceiros e companheiros homens,
que às vezes perdiam seus empregos em função desta concorrência feminina.
Engels descreve algumas consequências que as péssimas condições de trabalho
nas fábricas provocam nas mulheres, tais como o efeito retardado da constituição do
corpo feminino, a desorganização da estrutura familiar, aumento de acidentes com
as crianças (queda, queimaduras, afogamentos), muitas das quais recebiam doses
diárias de narcótico para mantê-las calmas em casa, enquanto as mães trabalhavam
nas fábricas. Promiscuidade e prostituição eram provocadas, sobretudo, pela
condição vulnerável da mulher diante do patrão, do seu superior imediato, ou até
mesmo dos seus companheiros de trabalho, e não pela corrupção moral dessas
mulheres.
É importante ressaltar, contudo, que se observa na mesma época desses
intensos debates e doutrinações patriarcais sobre a mulher,o crescimento de vozes
discordantes que surgem de atividades e grupos que já poderiam ser caracterizados
como feministas;81 esses grupos reivindicavam para as mulheres outros papéis na
sociedade, para os quais lutavam por melhor educação, cidadania e independência
econômica. A pesquisadora inglesa Carol Dyhouse comenta sobre os argumentos
pseudocientíficos que circulavam na época em que as feministas lutavam pelo
80
Para maiores detalhes sobre o assunto, v. HELLERSTEIN, E. et alli. Victorian women
A palavra feminismo foi utilizada pela primeira vez na França em 1837; em 1851, o Oxford English
Dictionary a define como “qualidade das fêmeas [female]”, seguido da informação sintomática: “raro”
(BRENNAN, 89. p.43)
81
151
acesso à educação superior: “Os conselhos dos médicos e ginecologistas nos anos
1880, os quais alertavam que os riscos de uma séria perturbação de constituição nas
mulheres que recebiam educação universitária, eram desproporcionalmente altos”
(1978:179). Entretanto, a luta feminista daquela época raramente contemplava a
combinação casamento/emprego; este último, era visto apenas como alternativa ao
primeiro, objetivo mais desejável para a maioria.
A equação ‘eterno feminino/eterno maternal’ também foi problematizada por
Elizabeth Badinter em seu livro Um Amor Conquistado:o mito do amor materno
(1980). Badinter não questiona o amor materno, mas sim o instinto materno, ou seja,
a função nutrícia e maternante como algo natural e espontâneo. Com dados de sua
pesquisa sobre o comportamento das mães na França entre os séculos XVI e XVIII
principalmente, Badinter desconstrói a imagem da mãe como naturalmente devotada.
Ela utiliza sólida documentação para mostrar como o vocabulário religioso foi usado
intensamente – o que poderia ser interpretado como evidencia da resistência da
mulher em aceitar essa ideologia – para convencer que haveria uma recompensa
sublime para os sofrimentos da maternidade, caracterizados como um tributo pago
pelas mulheres para ganhar o céu: “Se a criança não fosse um Deus, se a relação
com ela não fosse um culto, ela não viveria. É um ser tão frágil que jamais teria sido
criado se não tivesse tido nessa mãe a maravilhosa idólatra que o diviniza, que torna
doce e desejável para si imolar-se por ele (1985: 270. grifos da autora).
Embora o estudo de Badinter focalize a maternidade na França, a situação na
Inglaterra não era diferente. Na Inglaterra pre-industrial, a estrutura familiar ampliada
e economicamente ativa dos pequenos vilarejos da sociedade agrária comunal e o
apoio mútuo dos membros daquelas pequenas comunidades, davam uma conotação
bastante diferente do que conhecemos hoje como estrutura familiar e domínios
público e privado. Com a Revolução Industrial, as esposas e mães perderam sua
posição de produtoras que ocupavam na economia de trocas e pequeno comércio da
Inglaterra rural. Surge então a mãe 'moderna' da família nuclear/burguesa: a 'rainha
do lar', frágil, dependente, dedicada exclusivamente ao dever sagrado da
maternidade – uma radical mudança de paradigma, que precisava de um intenso e
complexo processo de naturalização desses novos papéis. O que foi feito com
grande sucesso.
Entretanto, com a rápida expansão da mão de obra feminina na classe
trabalhadora, a realidade da mãe operária era bem diversa da visão utópica da
mariologia Vitoriana: a mulher operária não tinha tempo, nem interesse, em cultivar
tradições que poucos benefícios traziam para ela e sua família; com uma carga diária
152
de trabalho média de 16 horas, tinha-se pouco tempo e motivação para
demonstrações de afeto. O aborto era praticado intensamente e muitos crianças
precisavam ser deixadas em condições cruéis nas chamadas 'fazendas de bebê',
com um alarmante índice de mortalidade infantil (HELLERSTEIN, 1981: 234-38).
Essa bem sucedida doutrinação patriarcal produziu efeitos complexos e
contraditórios que não pretendemos detalhar neste breve espaço. A força ideológica
dessas imagens também provocava ansiedades em muitas mulheres que, na
realidade, percebiam-se incapazes de satisfazer a este ideal; não apenas a
imprensa, mas também a ficção dessa época, apresentavam muitas imagens de
mães solteiras que matavam seus filhos, além de mães da classe média que
ignoravam sua missão 'mariana' em busca de diversões e ocupações fúteis, como
Becky Sharp em Vanity Fair, entre tantas outras mães condenáveis que a ficção de
autoria masculina criou.
O romance Moll Flanders (1722) difere um pouco das construções patriarcais
que ignoram a complexa experiência da maternidade, pois coloca esta temática em
interface com questões de classe. Embora um romance de autoria masculina, essa
voz autoral esconde-se na forma de um romance autobiográfico da personagem Moll
Flanders; ela nasce em uma prisão, filha de uma presidiária cuja pena é o exílio para
uma das colônias inglesas; por esta razão, Moll é abandonada ao nascer.
Ventríloquo das concepções do autor sobre o certo e o errado, a picaresca
narradora/personagem analisa sua vida, a qual ela descreve como “não apenas
escandalosa, mas uma vida cujo curso normal tendeu para a rápida destruição do
corpo e da alma” (DEFOE, 1963:14). O autor nos explica no prefácio do romance que
seu objetivo em trazer à tona a vida criminosa de Moll é “alertar as pessoas
honestas, mostrando os métodos utilizados para roubar e prejudicar pessoas
inocentes, e como consequência, alertá-los para evitar este tipo de gente” (p.10).
A vida de Moll envolve uma gama de comportamentos deploráveis, tais como,
abandono dos vários filhos que teve, adultério, prostituição, bigamia e incesto
(embora inconsciente, este último foi resultado do seu comportamento pervertido).
Entretanto, ela busca justificativa para seus ‘pecados’ no sistema sócio-econômico
excludente e cruel no qual o pobre – sobretudo a mulher pobre – é uma vítima
impotente; longe de assumir um papel passivo, Moll manipula o sistema em seu
próprio benefício. Ao final de sua vida, mulher casada e respeitada e em situação
financeiramente confortável, resolve escrever sobre sua vida “em sincera penitência
pela vida depravada que levei” (p.335). Com este romance, Defoe condena o
comportamento transgressor de sua personagem, ao mesmo tempo em que alerta
153
para a crueldade de um sistema sócio-econômico injusto que produz esses
comportamentos.
Se olharmos para a literatura inglesa do século XIX, observamos uma
preocupante construção da imagem da mãe. Como sabemos, a autoria dos
romances daquela época era masculina na sua avassaladora maioria; este
preocupante desequilíbrio já foi alterado consideravelmente na contemporaneidade,
mas ainda se mantém. Coube então ao homem principalmente, exercer a confortável
liberdade ficcional para escrever sobre a forma e função da maternidade. Em
Dickens, por exemplo, as mães, quando presentes, são inexpressivas ou egoístas,
incapazes de amar (A Sra. Gradgrind e a esposa de Stephen em Hard Times,
respectivamente), ou já estão mortas quando o romance se inicia. (Oliver Twist,
David Copperfield, entre outros); Sobre este último aspecto, a feminista Carol Denver
nos alerta para um dado intrigante: “ Escrever sobre a vida, no período Vitoriano, é
escrever uma história de perda da mãe. Na ficção e biografia, autobiografia e poesia,
a lógica que organiza as experiências de vida não se iniciam com o momento do
nascimento, mas com o momento desta perda originária”(1988:1).
A galeria de mães mortas nos romances Moll Flanders, Wuthering Heights,
Jane Eyre, The Professor, Emma, Persuasion, North and South, Mary Barton,
poderia ser expandida com facilidade, caso fosse nosso interesse fazer este triste
mapeamento;as explicações também são interessantes, mas também fugiriam do
objetivo proposto para o presente trabalho82.Vale apenas observar que a
centralidade estrutural da perda da mãe nesses romances também pode ser
interpretada como mais uma forma de idealização da mãe, o qual só é atingido com
sua ausência.
Além de ser apenas objeto desta narrativa quase sempre patriarcal, a mãe e
sua subjetividade também foram construídas por escritoras que não vivenciaram a
experiência da maternidade, como Jane Austen, as irmãs Brontë e George Eliot.
Assim como a mãe de Maggie Tulliver (The Mill on the Floss – Eliot), as mães nos
romances de Jane Austen são quase sempre frágeis, impotentes, descartáveis
(Sense and Sensibility, Mansfield Park, Northanger Abbey, por exemplo) - algumas
delas, até ridículas, como a Sra.Bennet (Pride and Prejudice). As heroínas dos
romances das irmãs Bronte em geral nunca têm mães - com exceção de Agnes
Grey, onde a doce figura da mãe é praticamente invisível. Em Shirley, a presença da
82
Ver STEVENS, C.M.T .“O corpo da mãe na literatura: uma ausência presente” in STEVENS &
SWAIN (ed.). A construção dos corpos: perspectivas feministas. Para as explicações fornecidas pela
psicanálise sobre este tema, ver STEVENS, C.M.T.(ed.) Maternidade e feminismo: diálogos
interdisciplinares. Florianópolis: Editora Mulheres, 2007.
154
Sra. Pryor é também periférica, embora desafie a representação idealizada deste
papel, já que ela havia inicialmente abandonado sua filha Caroline. Os exemplos
poderiam ser mais largamente expandidos.
A literatura dessa época às vezes é caracterizada como propagandística e
didática; esperava-se que o escritor fornecesse diversão e instrução para o leitor uma espécie de 'estética moral', orientando a sociedade nesse complexo processo
de transformação que ela vivia. Que objetivos teriam então ess@s escritor@s em
construir essas imagens da mãe?
Ruth (1848), o segundo romance de Gaskell, fala de uma mulher (também
órfã) que pecou: mãe solteira, é redimida com sua morte, após uma vida humilde e
resignada, inteiramente devotada ao filho e ao próximo. Na introdução ao romance,
Angus Easson cita as palavras da autora, temerosa do desafio que esta temática iria
representar: “[o romance] fez o leitor falar e pensar um pouco sobre um assunto que
é muito doloroso e requer coragem para não esconder a cabeça como um avestruz e
tentar . esquecer que o mal existe” (VIII).
Segundo Easson, muitos leitores enfurecidos queimaram o livro, pois Gaskell
havia desafiado valores consolidados na burguesia vitoriana: a autora não deixa
clara a culpa de Ruth sobre sua experiência inaceitavelmente transgressora; a
inocência moral e sexual dessa jovem e órfã operária sensibiliza a sociedade da
cidadezinha onde ela vivia reclusa e dedicada ao próximo, e ela é perdoada antes de
sua morte. Entretanto, para a moral vitoriana, a ilegitimidade de um filho é prova da
fraqueza e da frivolidade feminina, nunca dos ardilosos sedutores. Benson é o
pároco que, com a ajuda de sua irmã e a empregada da família, acolhe Ruth e seu
filho; por ser personagem masculino, há maior autoridade no ensinamento sábio
contido em suas palavras, que a sociedade da época rejeitava, apesar de sua fé
cristã: ”É o desejo de Deus que as mulheres que pecaram estejam ao lado daqueles
que têm o coração partido e precisam de conforto, e não sejam abandonadas como
se estivessem perdidas para sempre”(288). A morte constitui então uma estratégia
narrativa confortável para evitar o enfrentamento e questionamento dos valores
patriarcais que regulavam os comportamentos da época.
A literatura contemporânea de autoria feminina tem produzido representações
não tradicionais da figura da mãe e do comportamento materno, além de
problematizar este “imperativo da reprodução”. Percebemos que, quando a mulher
torna-se agente desta representação, essas imagens patriarcais são radicalmente
155
transformadas.Nossa pesquisa de alguns anos nesta área83 evidencia uma
variedade de ideologias heterogêneas e contraditórias sobre a mãe e a maternidade;
nessas
representações
conflitantes
que
lutam
por
legitimação,
narrativas
contemporâneas problematizam essas imagens tradicionais e apresentam novas
formas de maternidade / parentalidade.
Entretanto, ainda que as imagens brevemente mencionadas neste trabalho
sejam as imagens dominantes da maternidade na Inglaterra vitoriana, não nos
deteremos na análise dessas brilhantes escritoras que citamos brevemente acima –
quase todas sem filhos84.
Nosso
objetivo é analisar a temática da maternidade nos
romances de George Eliot, que nos fornece imagens diversificadas e complexas da
figura materna em seus romances.
Adam Bede, apesar do título ter o nome do personagem masculino central,
apresenta uma narrativa de sedução, gravidez e infanticídio, envolvendo a intrigante
Hetty. Apesar de sua vital importância para a sobrevivência das espécies, o parto é
uma experiência que tem estado ausente na literatura (POSTON, 1978:20). A reação
da crítica ao tema explorado por Eliot neste romance, indica o quanto esta “literatura
de gravidez” era considerada inaceitável; talvez a descrição dos horrores de uma
guerra fossem mais relevantes para o critico que formulou o seguinte comentário:
O autor de Adam Bede aderiu a uma prática muito curiosa que agora está se
tornando comum entre os romancistas, e é uma prática que consideramos mais
indesejável: a cronologia e discussão dos vários estágios que precedem o
nascimento de uma criança. Parece que estamos ameaçados com uma literatura da
gravidez. Os sentimentos de Hetty e suas mudanças no seu corpo são indicadas
com uma sequência pontual que torna o relato de seus infortúnios parecer uma
anotação grosseira de um parteiro [sic] com uma mulher. Isto é intolerável. Vamos
copiar os velhos mestres da arte, os quais, se nos dão um bebê, nos dão de uma
vez.Um autor decente e um público decente vão entender os sintomas premonitórios.
(MATUS,1995:1)
83
v. STEVENS,C.M.T.(ed.) Maternidade e feminismo: diálogos interdisciplinares. Florianópolis:
Editora Mulheres, 2007. e STEVENS, C.M.T. “Maternidade e literatura: desconstruíndo mitos”. In
SWAIN, T.N. & MUNIZ, D.G. Mulheres em ação. Práticas discursivas, práticas políticas.
84
Talvez esta seja uma condição que tenha facilitado o desenvolvimento da genialidade dessas
mulheres. Como sabemos, são poucas as escritoras na Inglaterra desta época que, como Elizabeth
Gaskell, conseguiram conciliar o exercício deste duplo papel de esposa, mãe e escritora; entretanto,
ela nos fala com indisfarçável rancor sobre as dificuldades de conciliar esses três papéis: “O principal
trabalho na vida de uma mulher raramente é escolhido por ela; ela não pode abandonar as
responsabilidades domésticas . para dedicar-se ao mais esplêndido talento que alguém possa ter
recebido. . Ela não pode esconder este dom em um guardanapo: ele foi dado para o uso e ajuda a
outras pessoas. Então, com um espírito humilde e cheio de fé ela deve trabalhar duro para fazer tudo
que não é impossível” (OLSEN, 1978:226)
156
Denver comenta ironicamente sobre esse silêncio ficcional acerca da mãe e a
preservação de um ideal abstrato sobre a maternidade: “É mais perigoso dar à luz no
mundo ficcional do que em qualquer região, sob quaisquer condições, em qualquer
classe social da Inglaterra Vitoriana (1998:11). Em termos gerais, as mães (mortas
literal e/ou simbolicamente) da ficção Vitoriana não são feias, velhas, raivosas, más,
ou vítimas de violência doméstica ou outras formas de violência; elas são geralmente
bonitas, da classe média, resignadas, submissas, com qualidades que se
assemelham ao ideal mariano cultivado pela sociedade patriarcal.
Eliot rejeitava a imagem do corpo feminino como um corpo que apenas
reproduz, nada devendo impedir essa função divina, sem a qual não teríamos a
continuidade da raça humana; para ela, essas regulamentações cobram um preço
alto para as mulheres que se recusam a seguir esses papéis de gênero
tradicionalmente
prescritos.
Escrevendo
sobre
duas
importantes
feministas,
Margareth Fuller e Mary Wollstonecraft, Eliot comenta sobre “a estupidez de
definições absolutas sobre a natureza da mulher e demarcações absolutas sobre a
'missão' da mulher”, citando Fuller com aprovação: ““A natureza” diz ela [Fuller],
“parece se deliciar em desenvolver combinações variadas, como se quisesse mostrar
que ela não será limitada por nenhuma regra; e precisamos admitir as mesmas
variedades que a natureza admite””(ELIOT, 1992:183)
Como tentaremos mostrar em nossa análise, Eliot evidenciava em sua obra
profundo interesse na maneira pela qual essas formulações doutrinárias sobre o
desejo da mulher pela reprodução determinaram seus papéis sociais, limitando sua
auto-realização apenas ao casamento e maternidade. Considerados pelos críticos
como precursores da sociologia, seus romances já alertam para a distinção das
categorias sexo/gênero, posteriormente teorizada pelos feminismos.
Em seu livro Suffering mothers in mid-Victorian novels, Natalie McKnight
explica que Eliot confessou que “se alegrava profundamente [de nunca haver] trazido
uma criança para este mundo”(MCKNIGHT,1997:117); por outro lado, ela
considerava seus livros“meus filhos espirituais”(apud GILBERT & GUBAR:533).
Apesar disto, seu companheiro George H. Lewes e os filhos dele reconheciam a
natureza maternal da escritora, a quem chamavam de “Mutter” e “Madonna”. Ainda
segundo McKnight, a mãe de Eliot havia perdido gêmeos e jamais se recuperou do
trauma; distanciou-se da filha que então tinha apenas dois anos, enviando-a para a
escola quando Eliot era ainda uma criancinha indefesa. Educada em um internato,
Eliot recebia apenas a visita do pai ; sua mãe faleceu quando Eliot tinha dezesseis
anos. De acordo com as pesquisadoras feministas americanas Sandra Gilbert e
157
Susan Gubar, Mary Ann Evans85 sentia-se como a filha de um pai inflexível; também
sentia que os irmãos, e não ela, eram os herdeiros da afeição e do patrimônio do pai
(1979:447). Ao longo de sua vida, ela conviveu mais com figuras masculinas: além
de seu pai e do irmão, seu editor ( John Chapman), seu amigo (Herbert Spencer),
seu companheiro, George H. Lewes (com quem viveu por 24 anos) e, após a morte
de Lewes, seu marido - este último, jovem bastante para ser seu filho, e com quem
permaneceu casada por apenas 7 meses, até a morte dela.
Gilbert and Gubar escrevem sobre a insegurança que, segundo suas
pesquisas, fazia parte da estrutura emocional de Eliot - se levarmos a sério as
palavras de seu companheiro: “Infelizmente, a tônica habitual de sua mente era falta
de autoconfiança”. Ainda segundo a autoridade de outra voz masculina - Herbert
Spencer, para quem ela parecia ter “double consciousness” (GILBERT & GUBAR,
1979:448). Sua assumida ligação com um homem casado provocou um longo
período de ostracismo social, o que a deixou ignorada pelo pai e irmão; sobre isto,
Eliot escreve com profunda tristeza: “O que farei sem meu pai. . Parece-me que uma
parte de minha natureza moral desapareceu. Tive uma visão de mim mesma . em
que me tornava sensual e demoníaca, pela ausência daquela influência purificadora
e controladora”(GILBERT & GUBAR,1979: 467). Seus romances evidenciam a
ambivalência de sua personalidade, “infectada86” pelas verdades patriarcais nas
quais ela havia sido educada, e ao mesmo tempo reagindo criticamente a essas
falsas construções de verdade, a partir de sua experiência de mulher.
As observações acima parecem-me ser melhor analisadas se incluirmos a
perspectiva da escritora canadense Margareth Atwood, a qual comenta sobre “o
outro sensível e tímido da corajosa George Eliot” (ATWOOD, 2002:79). Essa
afirmação nos remete imediatamente para a evidência inegável de força e coragem
dos temas escolhidos para seus romances, e o talento admirável de quem é
considerada uma das melhores escritoras da literatura inglesa por vários críticos; sua
voz viril, 'hermafrodita', não se encaixa facilmente entre os papéis de gênero
rigidamente definidos na sociedade de sua época; neste sentido, é bastante curioso
observar que, ao voltarmos a atenção para as mães que povoam os romances de
Eliot, percebemos que, na maioria das vezes, elas fogem ao ‘script’ a elas reservado
pela ideologia da época.
85
O verdadeiro nome de George Eliot
No ensaio “Infection in the sentence: the woman writer and the anxiety of autorship”, Gilbert & Gubar
adaptam o conceito de “ansiedade de influência” de Harold Bloom para analisar a psicologia da
criação literária feminina. Elas nos alertam para a tradição patriarcal que habita o texto de autoria
feminina, reforçando a necessidade de revisitar essa tradição com um olhar crítico, perspectivado
pela problemática do gênero.
86
158
Em Silas Marner (1861), por exemplo, a ‘função materna’ é exercida por um
homem; o solitário Marner encontra e cuida de uma criança abandonada após a
morte de sua mãe pobre, solteira e alcoólatra - dificilmente identificada com imagens
idealizadas da mãe daquela época. Marner torna-se um “iniciado nos mistérios”
(p.180) da maternação e esta se torna uma experiência de afeto e crescimento para
ambos: “à medida que a vida daquela criança se desenvolvia, o coração [soul] de
Marner, durante muito tempo entorpecido em uma prisão fria e estreita, também se
expandia” (p.185). Após vários anos, o verdadeiro e aristocrático pai de Eppie tenta
assumir a paternidade que ele covardemente escondera de todos; entretanto, a
jovem opta pelos laços fortes que ela havia desenvolvido com Marner, desistindo
inclusive da ascensão social que a opção pelos laços de sangue trariam para ela.
Bem antes de Freud, Eliot separa nitidamente as funções naturais de procriação das
imposições culturais relativas aos cuidados com as crianças, desestabilizando a
dogmática distinção de papéis materno e paterno que posteriormente iria ser ainda
mais avassaladoramente reforçada pela psicanálise.
Romola (1862) é um romance histórico que se passa na cidade de Florença,
no final do século XV. Diferente da maioria dos romances de Eliot, que recebem seu
título do personagem masculino central, a órfã Romola tem seu nome como título do
romance; esta visibilidade parece denunciar ironicamente as limitações paralisantes
impostas ao sexo feminino. Sem mãe, Romola recebe uma educação clássica de seu
sábio pai, para quem a educação sofisticada que ele dá para sua filha “não é
incompativel, mesmo com sua inteligência feminina [para você] . que tem a nobreza
de alma de um homem”(53). Entretanto, apesar de sua formação laica, Romola
assemelha-se à figura da madona cristã, pela sua inesgotável capacidade de
sacrificar seus interesses em benefício do velho pai e do marido traidor – na verdade,
Romola é referida por este nome em vários momentos no romance. Após a morte do
pai, corajosamente abandona o cruel esposo. Sem filhos, “mamma Romola”(565)
exerce uma forma vicária de maternidade, dedicando sua vida à ingênua Tessa
(amante de seu falecido esposo) e seus dois filhos.
Felix Holt (1866) é o romance de Eliot que mais se aproximou do que
chamamos de romance industrial, com representação e análise acurada das
mudanças econômicas e sócio-culturais provocadas pelo processo (revolucionário)
de industrialização nas pequenas e tradicionais comunidades rurais da Inglaterra.
Pelo seu interesse no indivíduo como um ser social, a autora mistura os
acontecimentos do mundo público e privado, uma prática que faz lembrar um dos
momentos epistemológicos mais importantes do feminismo: a convicção de que o
159
pessoal é político.
Mais uma vez com Eliot, o operário radical Felix Holt empresta seu nome ao
título de um romance povoado por personagens femininas complexas e
surpreendentes. O romance explora os acontecimentos perturbadores ligados às
reformas trabalhistas na Inglaterra dos anos 1830. Felix Holt envolve-se
profundamente com as rebeliões dos trabalhadores, agindo na esfera pública dos
movimentos reivindicatórios do Chartismo; paralelamente, o romance desenvolve
uma outra temática, não menos complexa, quando Esther vivencia sua 'revolução
interior': uma linda jovem, que segundo @ narrador/a onisciente, “não se inclina para
a imagem de santa nem de anjo”(p.333). Esther vive em circunstâncias humildes;
entretanto, sua origem nobre - e sua propriedade – são surpreendentemente
restauradas no final. Mais uma órfã de mãe que povoa a ficção Vitoriana, Esther é
criada pelo pároco Rufus Lyon; como Silas Marner, o papel da mãe é
desnaturalizado, pois é Lyon que exerce a função materna neste romance.
A Sra. Holt, para quem Felix retorna depois de longa residência em Glasgow,
é a imagem da mãe convencional, em contraste marcante com Mrs. Transome, a
matriarca que administra as propriedades da família em virtude da senilidade do
esposo e morte de seu irresponsável primogênito, evento que lhe traz uma felicidade
que choca o leitor:
O desejo do qual ela estava faminta desde o tempo em que era uma jovem
mãe ainda desabrochando, foi finalmente realizado – finalmente, quando
seus cabelos já estavam cinza, e seu rosto parecia amargo, inquieto e sem
prazer, como sua vida. A notícia da morte de seu filho imbecil. Agora,
Harold era o herdeiro da família (p.100).
Harold era seu filho ilegítimo, filho amado de sua “paixão de juventude”, por
quem “ela havia pecado”(p.101). Este terrível segredo não é o único que a Sra.
Transome guarda consigo: Esther, e não Harold, é a herdeira legítima das imensas
propriedades da família que esta mulher viril e conservadora administra; seus
extensos monólogos sobre sua condição de mulher às vezes ecoam as palavras de
Lady Macbeth: “unsex me”. Sem precisarmos des-sexualizar as mulheres, é
necessário, entretanto, que mudem os papéis de gênero para elas prescritos.
Esther aproxima-se ainda mais de seu pai adotivo, ao saber por este da
identidade de seu pai biológico – o que a tornaria herdeira das extensas
propriedades da família Transome. Dividida entre os valores da aristocracia (à qual
ela subitamente tem acesso pela revelação de sua verdadeira identidade) e os ideais
trabalhistas e de dignidade, personificados por Felix Holt e Rufus Lyon, Esther rejeita
a proposta de casamento de Harold Transome e a herança à qual tinha direito. Sua
opção corajosa pelo mundo e sentimentos não comercializáveis de seu pai adotivo e
160
de seu futuro esposo, a torna, a meu ver, a personagem mais importante do
romance, assim como a Sra. Transome.
Apesar do título dado ao personagem masculino, Daniel Deronda (1876)
também nos fornece uma variada galeria de personagens femininas, em torno das
quais se desenvolvem o que me parece ser a temática central do romance: o
complexo processo de crescimento interior da Gwendolen Harleth, em meio às
injustas limitações impostas ao sexo feminino. Forçada a casar com o rico Grancourt
como única alternativa à pobreza após a morte do pai, Gwendolen, viúva e sem filhos
ao final, dedica parte de sua vida a ajudar os filhos ilegítimos que Grancourt tivera
com Lydia Glasher – outra mulher corajosa que abandona o marido por amor, apesar
de sua escolha infeliz ter sido o egoísta Grancourt. A angelical jovem judia Mirah
Lapidoth foge corajosamente de outro pai tirano em busca de sua mãe, sem saber
que ela já está morta; é recompensada pela sua bondade e pureza com o casamento
com Daniel, o qual descobre sua identidade judia no final do romance. Este script
aparentemente convencional tem ricas e complexas implicações que não
objetivamos explorar neste trabalho.
Daniel Deronda é comparado por alguns críticos com Moisés. Criado como um
verdadeiro
gentleman
inglês
pelo
seu
pai
adotivo
(Sir
Hugo
Mallinger),
involuntariamente Daniel descobre sua identidade judia, processo que toma toda a
narrativa deste longo e intricado romance. Sua mãe (Contessa Maria Alcharisi), filha
de um rabino ilustre, havia aceitado casar com seu primo sem amor, pois ele a deixa
exercer seu talento notável de atriz e cantora de ópera; com ele, tem o filho Daniel.
Após a morte do esposo, Alcharisi entrega seu filho ao apaixonado Sir Hugo para
adoção e segue sua carreira de sucesso, a qual abandona posteriormente quando a
voz já não é mais a mesma; converte-se então ao cristianismo e casa-se com um
nobre russo. Perto da morte, decide encontrar Daniel e confessar sua ancestralidade.
Em um romance estruturado em livros com títulos sugestivos como
“Revelação”,“Fruto e Semente”, é no livro intitulado “A Mãe e o Filho” que Alcharisi
explica para Deronda, sem sentimentos de culpa, que não é um monstro pelo fato de
ter escolhido sua carreira artística e não o papel de mãe. As palavras dirigidas ao
filho com firmeza não são as que a mariologia ocidental normalmente espera de uma
mãe: “Não sou tola de pensar que você me ama só porque sou sua mãe. . Não tinha
muito afeto para lhe dar. . Não queria seu afeto. Sentia-me sufocada com isto. Queria
viver a vida que sentia dentro de mim, e não ser limitada por outras vidas”(p.688)
Caracterizada como Melusina pel@ narrador/a onisciente, Alcharisi conversa
com o filho, a quem se dirige com um olhar de fascinação e admiração, mas não com
161
prazer e amor convencionalmente caracterizado como maternal - às vezes com
distanciamento e até com um certo desprezo e sarcasmo, como quando responde
sobre as razões de seu comportamento transgressor:
Quando você for tão velho quanto eu, perceberá que não temos respostas
simples sobre nossas motivações. . Não sou um monstro, mas não sinto
exatamente o que as outras mulheres sentem – ou dizem que sentem, por
temerem ser consideradas diferentes das outras. Você não é uma mulher.
Você pode tentar – mas jamais conseguirá imaginar como é sentir a força
de uma genialidade masculina dentro de você e ter que sofrer a escravidão
de ser uma mulher (p.694)
Personagem (talvez estrategicamente) secundária, Alcharisi é mais uma das
personagens de Eliot que evidenciam um amor materno não instintivo, mas
contingente. Sua motivação para o abandono do filho e da função maternal é
radicalmente diferente do que estabelece o discurso religioso e científico da época e
as práticas sócio-culturais consequentes; reflete, de uma certa forma, o pensamento
de Eliot que já mencionamos brevemente neste trabalho. Sua subjetividade e suas
ambições falam mais alto, e contrariam a conduta maternal dita universal - e
necessária para o patriarcado, como reforçado exaustivamente, lembra-nos Badinter,
citando a descrição da Larousse de 1971 sobre o instinto materno: “uma tendência
primordial que cria em toda mulher normal um desejo de maternidade e que, uma
vez satisfeito esse desejo, incita a mulher a zelar pela proteção física e moral dos
filhos”(BADINTER, 1985:11. Grifo no original)
Middlemarch (1871) é um brilhante estudo sociológico sobre a Inglaterra
provinciana das primeiras décadas do século XIX. Laurence Lerner comentou com
bastante propriedade sobre este romance: “praticamente todas as áreas que
produzem discursos sérios são articuladas neste romance, mas não sentimos
incongruência
entre
essa
dimensão
e
a
natureza
ficcional
da
obra”
(LERNER,1983:18). Caracterizada por Gilbert & Gubar como “épica doméstica”
(GILBERT & GUBAR, 1979:531), a obra nos fornece uma acurada etnografia da vida
provinciana na Inglaterra dos anos 1830s, numa orgânica tecitura de várias
narrativas paralelas e uma rica galeria de personagens igualmente importantes que
exploram aspectos econômicos, educacionais, políticos, além de questões de classe
e gênero. Nessa complexa arquitetura narrativa construída em mais de 900 páginas,
selecionamos apenas três personagens femininas para uma brevíssima análise em
torno da temática escolhida para este trabalho.
Rosamond é uma jovem bela, narcisista e superficial, que casa com Dr.
Lydgate, motivada principalmente pela posição aristocrática deste jovem médico
idealista. Com temperamentos bem diferentes, o casamento transforma-se em uma
162
infeliz e resignada união, sem filhos, já que Rosamond parece ter escolhido perder o
filho quando, grávida, decide cavalgar perigosamente. Isto parece não ter afetado
esta personagem, uma mulher fútil que continua suas atividades sociais medíocres
sem nenhuma frustração. Em contraste com Rosamond, Celia Brooke é a jovem e
bela esposa de Sr. James Chettam, feliz e realizada em suas funções de mãe e
esposa, em perfeita harmonia com os valores patriarcais da Inglaterra Vitoriana.
Entretanto, a personagem mais complexa do romance é uma outra mulher: Dorothea,
uma jovem idealista, cheia de energia e amor ao próximo. Decepciona-se com seu
esposo Casaubon logo após o casamento, ao perceber a superficialidade, inutilidade
e egoísmo de sua vida intelectual e social.
Após a morte do esposo, Dorothea renuncia à fortuna de Casaubon para
casar com o primo dele, o jovem Ladislaw; talentoso e idealista, Ladislaw era um
jovem sem posses, pois sua avó havia sido deserdada por ter desafiado a família por
amor, casando-se com um músico polonês. Dorothea e seu esposo mudam-se para
Londres, onde vivem felizes e modestamente.
Como a alguns dos romances de Eliot, Middlemarch é ambíguo na construção
de suas personagens femininas, no sentido de que pode ser visto como uma crítica
às limitações impostas à mulher e ao mesmo tempo uma lamentável aceitação dos
valores conservadores da época. Dorothea é associada com imagens de Madonna,
algumas vezes de forma direta; chega a ser descrita pelo pintor Naumann como
“mais perfeita jovem Madonna que ele já viu” (p. 847). Dorothea é também objeto da
análise superficial e equivocada de seu marido, que caracteriza com superioridade
complacente o “entusiasmo quixotesco”(p. 458) de sua esposa, a quem também
define como “uma jovem e modesta mulher com habilidades meramente apreciativas
e sem ambição, essas qualidades naturais do seu sexo” (p.12). Ao mesmo tempo,
Dorothea é comparada à Santa Tereza de Ávila, uma energética e empreendedora
figura da hagiografia cristã. Essas imagens contraditórias não são conciliadas no
desenvolvimento dessa complexa personagem; aparentemente, ela parece ceder
gradualmente à ideologia dominante da mulher altruísta, dedicando (ou gastando?)
sua energia inteiramente ao lar e ao filho – um filho homem, cujo parto quase lhe
custou a vida, fato que tem implicações simbólicas evidentes. Entretanto, Dorothea
muitas vezes permanece impenetrável, até para @ narrador/a onisciente, que
poucas vezes transforma esta complexa personagem em sujeito de sua própria
narrativa; sentimos que um discurso em terceira pessoa é uma estratégia que
objetiva mostrar ao leitor a impossibilidade de ter acesso direto ao que realmente
sente essa personagem.
163
É curioso observar que este fato de importância considerável na vida de uma
mulher – o nascimento de uma criança e os perigos do parto – e suas implicações
simbólicas para a vida de Dorothea, chegam ao leitor de forma bastante distanciada,
através de uma carta que ela escreve para sua irmã. Não temos a descrição da
gravidez ou do parto, nem o relato direto desta experiência que por tanto tempo
definiu a mulher; apenas o relato indireto desta carta que Celia transmite para seu
esposo. No último capítulo, Dorothea está mais uma vez silenciosa, transformada em
objeto das palavras do narrador e de outros personagens: “Muitos que a conheciam,
lamentavam que uma criatura tão substantiva e rara tenha sido absorvida pela vida
de outra pessoa, sendo conhecida apenas em alguns círculos como esposa e mãe”
(p.894)
Sentimos uma nostálgica e realista tristeza nas palavras d@ narrador/a ao
final do livro, ao descrever a transformação do potencial criativo de Dorothea
simplesmente em capacidade reprodutiva, maternal, enquanto que para o marido
está reservada uma participação ativa nas realizações de uma época efervescente
de reformas, nas quais este “ardoroso homem público” (p.894) se envolve:
Não existe criatura cujo ser interior seja tão forte que não seja em grande
parte determinado pelo mundo exterior. Uma nova Tereza raramente terá a
oportunidade de reformar a vida de um convento, nem uma nova Antígona
gastará sua piedade heróica para desafiar todos pelo enterro de um irmão:
o meio no qual essas ações ardentes se materializaram desapareceu para
sempre. Entretanto, nós seres insignificantes com nossas palavras e ações
diárias estamos preparando as vidas de muitas Dorotheas, algumas das
quais podem apresentar um sacrifício muito mais penoso do que este da
Dorothea cuja história conhecemos (p.896)
O romance parece aceitar esta separação entre as esferas privada e pública,
entre as energias reprodutivas femininas e as realizações produtivas reservadas ao
homem, que ainda hoje reforçam papéis de gênero diferentes para homens e
mulheres. Seria este narrador onisciente o alterego da escritora, que não seguiu esta
prescrição para mulher como um ser naturalmente, absolutamente, devotado ao seu
'sacerdócio'? Frustração? Decepção? Resignação apenas aparente? Não sabemos
ao certo o que sente Dorothea, movida pelas forças de sua inteligência apaixonada e
seus deveres de esposa que ama. Como bem sugere o título do romance - Middlemarch, ao final deste romance de mais de 900 páginas, a jornada de
autoconhecimento, auto-realização de Dorothea parece estar ainda no meio do
caminho.
Adam Bede (1859) é o primeiro romance de Eliot; aborda o tema da
maternidade ilegítima e infanticídio. Segundo a autora, este romance foi inspirado em
uma história verdadeira (MATUS, 1995:168). O caso da jovem Mary Voce, executada
164
em 1802 pelo assassinato de seu filho, parece adequado à poética sociológica de
Eliot, que transfere para o mundo ficcional as preocupações com estatísticas
alarmantes de infanticídio nos anos de 1850, e as preocupações com o declínio do
instinto maternal, como ilustram os jornais da época: “Nos ombros [de uma mãe] está
a maior parte da culpa [da mortalidade infantil] (…) Matamos nossas crianças com
nosso mau gerenciamento”(The British Mothers´Journal (June, 1858, in McKNIGHT,
1997:8). Um outro artigo, publicado no Saturday Review (em 1866) com o título
“Sedução e Infanticídio”, que também aponta para causa desses horrores de forma
assustadoramente misoginista, ao responsabilizar “a tão elogiada extensão da
educação às mulheres . pois possibilitaram para elas a leitura de romances e
inutilizou-as para as tarefas domésticas”(MATUS,1995:167). Arthur Leared, por sua
vez, atribui toda a depravação ao fato de as mulheres trabalharem fora de casa
(MATUS,1995:164); em sintonia com o pensamento de Herbert Spencer que citamos
anteriormente, o médico inglês não acredita na necessidade que leva as mulheres a
acrescentar às inúmeras tarefas domésticas, a dura jornada de trabalho
desigualmente remunerado na fábrica.
Os formadores de opinião não pensavam sob a perspectiva da mulher,
obrigada a “conceber sem pecado”, arriscando a vida em gravidez frequente, partos
dolorosos; assim, elas assimilavam, sem alternativas, conselhos inadequados que
muitas vezes levavam a uma exacerbação do sentimento de culpa, por não sentirem,
na
sua
dura
realidade,
esses
impulsos
ditos
'naturais',
exaustivamente
descritos/prescritos sobre a maternidade. No estudo histórico de Walter E. Houghton
– Victorian Frame of Mind87 - o verbete 'mãe' aponta para outros verbetes: “ver
também Família, Lar, Casamento, Pureza”(DENVER, 1998:10).
Adam Bede foi classificado por Laurence Lerner como “um estudo sobre puro
egoísmo” (1978: 273). O crítico não percebe a variedade de figuras maternas
contraditórias que o romance nos apresenta. A corajosa representação da gravidez
de Hetty, algo inédito na ficção inglesa, como já mencionamos, foi considerada
ofensiva e seu comportamento, uma aberração; esta condenação confortável
formulada pelo patriarcado burguês não condenou o comportamento imoral do
capitão Arthur, o jovem e rico herdeiro da família Donnithorne, sedutor que engravida
a jovem órfã e a abandona, embora com profundo remorso, juntando-se ao seu
regimento. Não considerou a fragilidade de Hetty, jovem vítima seduzida que, apesar
de grávida de Arthur, aceita a oferta de casamento do apaixonado Adam Bede, um
87
Trad. A mentalidade Vitoriana
165
bondoso e talentoso carpinteiro da pequena comunidade rural, onde a maior parte
das ações do romance se desenvolvem. Hetty percebe a impossibilidade de
esconder a “terrível realidade” de sua condição e foge em busca de Arthur, sem
sucesso. Sem dinheiro e nenhuma forma de proteção, abandona seu filho logo ao
nascer, o qual morre em virtude de sua exposição.
Quando Hetty está sendo julgada por esse “crime horrendo”, o recurso
narrativo usado por Eliot é bastante revelador do longo e cruel processo de
silenciamento/desempoderamento sofrido pela mulher ao longo dos séculos,
sobretudo das mulheres das camadas mais baixas da sociedade. Hetty recusa-se a
falar e não se declara culpada ou inocente, quando solicitada; temos então a
oportunidade
de
interpretações
complexas
e
polifônicas,
sobretudo
se
desenvolvermos uma leitura 'gendrada' desse silêncio:
-”Mas ela não é tão culpada quanto eles dizem, é? Você não acredita que
ela é, acredita? Ele não pode ter feito isto.”
- “Talvez jamais teremos certeza sobre isto, Adam. . Nesses casos, nós
formamos nosso julgamento com o que parece ser evidência forte;
entretanto, por desconhecimento de um pequeno detalhe, nosso julgamento
é errado. Mas suponha o pior: você não tem o direito de dizer que a culpa
do crime dela está nele [Arthur, o sedutor], e que ele é que deveria ser
punido. Não cabe a nós homens atribuir parcela de culpa moral e sua
retribuição. Achamos impossível evitar erros até mesmo em simplesmente
determinar quem cometeu um único ato criminoso; estabelecer até que
ponto esta pessoa pode ser considerada responsável pelas consequências
imprevisíveis de seu crime é um problema que nos faz tremer. É tão terrível
pensar nos efeitos maléficos que estão escondidos em um único ato de
indulgência egoísta, que certamente deveria despertar sentimentos menos
presunçosos do que um desejo apressado de punir”(406)
O narrador passa então a reconstituir os fatos de forma fragmentada, através
apenas da narrativa das testemunhas. Quando Hetty finalmente confessa para a
doce e maternal prima Dinah Morris (também órfã), sua narrativa dá ao leitor uma
visão completamente diferente daquela construída no 'tribunal dos justos': não mais
um “monstro”, Hetty nos faz perceber que a impotência da mulher é uma causa
decisiva que foi negligenciada nos debates sobre o infanticídio e instinto maternal:
Eu fiz isto, Dinah . Eu o enterrei na floresta . meu pequeno bebê . e ele
chorou. . Mas pensei que ele não morreria – alguém poderia encontrá-lo.
Não o matei . . Aconteceu porque eu sentia-me tão miserável, Dinah . Não
sabia para onde ir . tentei me matar, mas não tive coragem. Tentei afogarme no lago, mas não consegui. . Tentei encontrá-lo [Arthur} para que ele
tomasse conta de mim, mas ele havia desaparecido; então, não sabia o que
fazer. . .Não sei como me sentia sobre o bebê. Parecia odiá-lo – era um
peso para mim em volta do meu pescoço ” (p. 434/5)
Em outras circunstâncias (que envolvem questões de gênero e classe), talvez
Hetty tivesse administrado de outra forma sua condição de mãe solteira. É tentador
imaginar a voz autoral implicada na voz narrativa, que às vezes parece
convencionalmente moralizante, às vezes demonstra compaixão e revolta contra a
opressão da mulher. O comentário de autora, que repetimos abaixo, nos parece
166
bastante revelador dos sentimentos que devem ter impulsionado sua brilhante
produção ficcional: “se houvessem espíritos miseráveis que nós pudéssemos ajudar
– então penso que deveríamos fazer uma pausa e sermos mais pacientes com essas
mentes triviais”(apud GILBERT & GUBAR, 445)
O romance tem inúmeras descrições que desaceleram esta trágica narrativa e
exploram, de forma inovadora, a subjetividade de uma mãe considerada monstruosa,
e as circunstâncias que a tornaram assim; embora às vezes percebemos na
confissão de Hetty que há uma ligação natural entre mãe e filho, não há defesa
inequívoca de que o amor materno é um sentimento nato, universal. O 'instinto'
maternal precisa na verdade de responsabilidade conscientemente assumida, pois a
maternidade não torna a mulher naturalmente mais humana, como nos lembra
Badinter. O texto não abraça o ideal mariano tão confortável para o homem; ao
contrário, mostra-nos que o componente biológico da maternidade, sem as
condições adequadas que a sociedade patriarcal da Inglaterra Vitoriana não
possibilita a uma grande parcela da população feminina, não garante a
responsabilidade e sentimentos maternais adequados; afinal, como pode um amor
expressar-se em circunstâncias catastróficas? Assim, infanticídio jamais deveria ser
visto simplesmente como prova de indiferença e monstruosidade.
Antes de meados do século XIX, muitos dos dilemas da condição humana não
eram visibilisados na ficção, apesar de este discurso pretender-se mimético desde
Aristóteles. Em sua 'poética sociológica', Eliot foi bastante inclusiva e acurada; seus
romances exploram de maneira admirável, entre tantos outros aspectos relevantes
da sociedade Vitoriana, a natureza das aspirações e desejos da mulher e as injustas
limitações sócio-culturais que impedem a sua realização. Admiradora fiel desta
escritora, percebi de repente que sua obra apresentava uma rica e complexa
variedade de personagens-mãe e relações maternas, elaboradas por uma mulher
que desafiadoramente optou por não ter filhos, além de suportar com coragem e
dignidade uma espécie de alienação voluntária da sociedade que rejeitava sua
relação com Lewes; Não são muitas as mulheres que, como Eliot, não se deixaram
aprisionar pelas tradicionais categorias de gênero, como brevemente apresentamos
neste trabalho. Talvez seu distanciamento desta experiência tenha possibilitado à
autora analisar com mais objetividade as enormes distâncias entre a imagem
idealizada e as complexidades e ambiguidades que envolvem esta complexa
condição em situações concretas.
Kaplan retoma a questão de Kristeva - “por que essa representação (do
maternal patriarcal, cristão) não leva em conta o que a mulher poderia dizer ou
167
querer da maternidade?” (1992: 4), explicando que esta prgunta não tem resposta
fácil, dada a sua complexidade. George Eliot dá apenas a sua, não a única possível;
uma voz andrógina - ou uma voz feminina que recusa as definições tradicionais
desta palavra. Uma voz construída por um narrador distanciado e onisciente, de
quem sentimos uma espécie de ceticismo tolerante ao construir as vidas de tantas
personagens que tentam reagir – muitas vezes sem sucesso - contra a internalização
de uma tradição que ela reconhece ser limitadora para as mulheres.
Caracterizada muitas vezes como conservadora, outras vezes como radical,
ela é proteana: “Eliot permanece indecifrável porque ela pode ser decifrada
infinitamente” (GILBERT & GUBAR, 526. grifo meu)
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AUTORES EM ORDEM ALFABÉTICA
Alexsandra Maria Ferreira da Silva
(RE)CONTRUÇÃO ÉTNICA
Alexsandra Maria Ferreira da Silva é mestre em Teoria da Literatura. Atualmente
desenvolve o projeto de doutorado na ficção literária anglo-americana e brasileira
contemporânea de autoria feminina, enfocando, principalmente a reconstrução da
identidade do feminino. É membro do grupo de pesquisa Vozes Femininas do
departamento de Literária e Literaturas, programa de pós-graduação em Teoria
Literária da Universidade de Brasília.
Antonio Donizeti da Cruz
RESGATE DE VOZES FEMININAS
Antonio Donizeti da Cruz é professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Ministra aulas de Teoria da Literatura, na graduação em Letras, Campus de
Marechal Cândido Rondon e de Lírica e Sociedade e, também, Literatura
Comparada, no Programa de Pós-Graduação em Letras, área de concentração em
Linguagem e Sociedade, da UNIOESTE, Campus de Cascavel. Com graduação em
Letras Português Inglês pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Palmas
(1985); Especialização em Literatura Brasileira e Lingüística, pela Universidade
Federal do Paraná; Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), sob orientação do Prof. Dr. Antonio João
Silvestre Mottin; Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), com tese intitulada O universo imaginário e o fazer
poético de Helena Kolody; sob orientação da Profª Drª Ana Maria Lisboa de Mello; e
com Pós-doutoramento em Letras – Estudos da Literatura, na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), sob orientação do Professor Dr.
Gilberto Mendonça Teles, sobre a obra poética de Lília A. Pereira da Silva. É
membro efetivo das seguintes associações: ABRALIC (Associação Brasileira de
Literatura Comparada); GT - Teoria do texto poético (ANPOLL); IASA – Associação
Internacional de Estudos Americanos. Participa do Grupo de pesquisa LER:
Literatura, Educação e Recepção - Núcleo LER -, sob coordenação da Profª Drª
Hilda Orquídea Hartmann Lontra.
Clarice Braatz Schmid Neukirchen
OS RITUAIS SIMBÓLICOS NA LÍRICA
Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Docente
Colaboradora do curso de Letras da Unioeste, campus de Cascavel, e do curso de
Letras da Unipar, Campus de Cascavel.
Cristina Maria Teixeira Stevens
A MULHER ESCRITA: A ESCRITA-MULHER? e
“SOCIOLOGICAL POETICS”
Doutora em Literatura Inglesa (Universidade de São Paulo,1987), Pós doutorado no
Center for Interdisciplinary Gender Studies da Univesity of Leeds ((Inglaterra, 2003).
Professora de Literatura Inglesa (curso de Letras e Letras/Tradução) e de Teoria e
Crítica Literária Feminista (Programa de Pós Graduação em Literatura) da UnB.
Publicações (livros, periódicos nacionais e internacionais) e orientação (mestrado e
doutorado) na área de estudos feministas e estudos interculturais.
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Eliane T. Amaral Campello
A CRÍTICA LITERÁRIA DE SAIA JUSTA
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). É professora colaboradora da Universidade Federal do Rio Grande
(FURG), atuando no Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado em História
da Literatura., na área de estudos de gênero. Pertence ao grupo de pesquisa “Vozes
femininas”. Publicou O Künstlerroman de autoria feminina: a poética da artista em
Atwood, Tyler, Piñon e Valenzuela (2003) e, em co-autoria com Núbia Hanciau e
Eloína Santos, organizou A voz da crítica canadense no feminino (2001), além de
possuir diversos ensaios críticos publicados em revistas especializadas.
Janaina Gomes Fontes
EDUCAÇÃO DA MULHER: RUPTURA E TRADIÇÃO
Mestre em literatura e doutoranda na mesma área pela Universidade de Brasília –
UnB.
Marcos de Jesus Oliveira
DESEJO E HOMOEROTISMO
Graduado em Letras pela Universidade de Brasília (2006). Mestre em Literatura pela
Universidade de Brasília (2008). Doutorando em Sociologia pela Universidade de
Brasília, desenvolvendo pesquisa sobre os usos sociais da diferença sexual na
contemporaneidade. Principais áreas de interesse: gênero/sexualidade em interface
com a psicanálise e o pensamento social contemporâneo.
Maria da Glória de Castro Azevedo
LITERATURA LESBIANA CONTEMPORÊNEA
Professora do curso de Letras na Universidade Federal do Tocantins/ UFT. Mestre
em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília/ UnB e Doutoranda em
Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília/ UnB, com pesquisa sobre
Cassandra Rios e a literatura de temática lesbiana brasileira. Publicou em 2008 os
artigos “O interdito no ideal de nação: a lesbiana existe para a literatura brasileira?”
Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea; “Literatura Lesbiana: o
gênero demarca o lugar de exclusão”, no livro Representação de gênero e
sexualidades, (Universidade Estadual da Paraíba). Em 2007: “O outro me
transgride: deve a literatura sair do centro?”, Intercâmbio, - X Congresso
Internacional de Humanidades Palavra e Cultura da América latina, Universidade de
Brasília.
Marly Jean de A. P. Vieira
A REPRESENTAÇÃO DA MATERNIDADE
Professora da Rede Pública de Ensino do Distrito Federal, com mestrado em
Literatura Brasileira (UnB, 2003). Pesquisadora das áreas de estudos feministas e
de gênero e literatura de minorias. Integrante do grupo de pesquisa Vozes
Femininas Atualmente pesquisa o gênero narrativo conhecido como romance de
formação (Bildungsroman).
Wiliam Alves Biserra
O CASTELO INTERIOR DE SANTA TERESA D´ÁVILA
Mestre e doutorando em literatura pela Universidade de Brasília (UnB). É
pesquisador bolsista do CNPQ e membro do grupo VOZES FEMININAS. Pesquisa e
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publicações nas áreas de literaturas de expressão inglesa, questões de gênero,
estudos de religião e estudos historiográficos: