Livro_eletronico_A mulher escrita_a escritamulher
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Apresentação A MULHER ESCRITA: A ESCRITA-MULHER? Por Cristina Maria T. Stevens É com prazer que apresentamos o material organizado para compor este livro, o qual foi um resultado positivo de uma experiência bastante enriquecedora. Nós nos reunimos pela primeira vez em 1998, a partir da iniciativa da professora Hilda Lontra, a qual concebeu a criação do grupo de pesquisa DIÁLOGOS POÉTICOS. O objetivo deste grupo era estimular o diálogo entre vários pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Literatura, do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília. Um desdobramento natural deste fértil encontro foi a permanência, há mais de 10 anos, de grupos de pesquisa reunidos sob o título geral LER o qual, entre várias iniciativas de mérito, destaca-se a realização do Encontro de Professores de Letras do Brasil Central – EnProL do Brasil Central (cuja ambigüidade do nome é proposital), também organizado pela professora Hilda. O sucesso deste primeiro evento, realizado em 2000, estimulou a sua continuidade; dessa forma, houve cinco EnProL do Brasil Central entre os anos de 2001 a 2007. Ao longo desta rica jornada, muitos desafios tiveram que ser enfrentados, dada a diversidade das áreas de pesquisa que integravam o projeto original. Assim, dois grupos de pesquisa foram gerados a partir do grupo original: LER: LEITURA, ENSINO E RECEPÇÃO, e VOZES FEMININAS. Coordenado por mim, o VOZES FEMININAS busca resgatar e visibilizar a autoria feminina, a partir da perspectiva dos estudos feministas e de gênero. Decidimos então organizar este livro, o qual evidencia a frutífera produção acadêmica deste grupo. Porém antes de dar voz às/aos participantes desta coletânea, cabe apresentar, também, uma retrospectiva dos estudos feministas no contexto mundial e brasileiro, a fim de que os leitores melhor compreendam a semente integradora dos trabalhos. Por volta do século XVIII, a mulher começou a entrar na cena literária. Claro que ela já escrevia há bastante tempo[i], mas sua inegável visibilidade começa 2 a se expandir por volta desta época; uma mudança que, para a escritora inglesa Virginia Woolf, foi mais importante do que as Cruzadas[ii]. O ingresso da mulher na cena literária foi considerado por muitos como um verdadeiro “apocalipse literário”, pois provocou, entre outras consequências de ordem sócio-econômica, política e cultural, uma mudança radical na relação entre sexo e novas formas de produção literária. As mulheres, grandes consumidoras de romances, passaram também a produzi-los; esse processo de comercialização da literatura, intensificado a partir do século XIX, foi visto por muitos como um processo de 'feminização' da literatura. O conflito entre High Art e Low Art, foi caracterizado como uma “batalha entre os sexos”, na qual as mulheres estavam associadas a uma retórica de parasitismo e vampirismo, com relação à produção literária de autoria masculina, considerada por todos como de maior valor estético. Desnecessário observar que esse “todos” a que me refiro diz respeito, sobretudo, àqueles que tinham o poder de definir o belo, o bom, segundo paradigmas patriarcais. Em seu brilhante ensaio “Tradition and Female Talent”, as feministas estadunidenses Sandra Gilbert e Susan Gubar, registram exemplos dessa reação, provavelmente provocada por uma ansiedade face à competição inevitável dentro desta 'reserva de mercado' sacralizada pela ideologia patriarcal. Oscar Wilde, e, bem antes dele, nos Estados Unidos, Nathaniel Hawthorne, caracterizaram essas escritoras como “scribbling women”[iii] . Igualmente destruidor é o comentário do brilhante escritor estadunidense Henry James, que definiu a obra dessas corajosas escritoras como o “triunfo do lixo”; em The Bostonians, seu narrador não é menos cáustico, ao definir a época em que tantas mulheres se organizavam para reivindicar seus direitos- inclusive o direito à palavra literária - como ”a feminine, chattering, canting age”[iv]. Na Inglaterra, D.H. Lawrence comentava com preocupação sobre “nossas mulheres”, as quais, segundo ele, ao lutar por igualdade de oportunidades, estavam horrosamente “bursten into self-assertion”[v] Felizmente, as mulheres não se deixaram desencorajar. As diferenças, entretanto, ainda são óbvias, uma vez que, ainda neste terceiro milênio em que vivemos - apenas citando o exemplo brasileiro, a voz autoral ainda é majoritariamente masculina[vi]. Neste quadro, justificamos a produção acadêmica de VOZES FEMININAS, um pouco da qual se substancia neste livro. Não buscamos 3 identificar a diferença desta voz, mas principalmente ouvi-la. Neste sentido, inspiranos sobremaneira o termo gynesis, um termo criado pela teórica feminista Alice Jardine, para tentar definir o processo de colocar em discurso, de valorizar o feminino, a mulher, e sua dimensão histórica, como algo intrínseco para novos e necessários modos de pensar, falar, e escrever. Feminino é uma palavra com carga semântica patriarcal extremamente forte, mas que não objetivamos encapsular em uma nova definição; qualquer esforço neste sentido talvez levasse a um essencialismo que não nos interessa. Entretanto, como lembra a teórica feminista estadunidense Elaine Showalter[vii], nossa experiência e, consequentemente, nossa produção literária, ainda diferem das do homem. Neste sentido, é iluminadora a observação da escritora canadense Margareth Atwood:“Os escritores gostam de afirmar que somos andróginos quanto à capacidade, o que sem dúvida é verdade, embora seja evidente que a maioria dos que dizem isto são mulheres. Mas os escritores não são genericamente neutros em seus interesses”[viii] Não nos interessa 'sexualizar' o texto, ou buscar uma 'fala hermafrodita', ao tentar compreender a narrativa de autoria feminina. Entretanto, como os textos do presente livro nos mostram, percebemos uma espécie de “consciência dupla”, ou talvez, de uma construção narrativa em forma de palimpsesto, na qual ainda conseguimos identificar traços de uma estética patriarcal e, ao mesmo tempo, a resistência e transformação criativa desta tradição; como se essas escritoras tivessem dois cérebros, que não as transformam em monstros, mas que permitem pensar e criar de forma mais rica. NOTAS [i] O primeiro autor de que se conhece o nome e a escrever em primeira pessoa é na verdade uma mulher– Enheduana (2285-2250 AC), sacerdotisa da deusa Inanna, autora de vários hinos sumérios. Escribas anteriores a Enheduanna escreviam sobre deus e o divino, mas nunca sobre eles mesmos; os hinos que ela escreveu para a deusa Inanna, celebram sua relação individual com a deusa e são considerados pelos historiadores os escritos mais antigos produzidos por uma consciência individual sobre sua vida interior. [ii] Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. [iii] “mulheres que fazem garranchos”. GILBERT, S. & GUBAR, S. “Tradition and Female Talent” in MILLER, N. (ed.). The poetics of gender. New York: Columbia University Press,1986. pp.183-207 (p.196) [iv] “uma época feminina, de tagarelices e fofocas guetoizadas”. Id,ibid, p. 190 [v] “explodindo em auto-afirmção”.Id.ibid. p. 197. [vi] v. DALCASTAGNE, R. “A personagem do romance brasileiro contemporâneo” in Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, no. 26 (jul/dez-2005), p.13-72. [vii] SHOWALTER, E. A crítica feminista em território selvagem. [viii] Negociando com os mortos. Trad. Ligia Wyler, Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 50. 4 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO A MULHER ESCRITA: A ESCRITA-MULHER? POR CRISTINA MARIA TEIXEIRA STEVENS I POR ELIANE T. DO AMARAL CAMPELLO 5 POR MARLY JEAN DE A. P. VIEIRA 19 POR MARCOS DE JESUS OLIVEIRA 35 POR JANAINA GOMES FONTES 59 LITERATURA LESBIANA CONTEMPORÊNEA POR MARIA DA GLÓRIA DE CASTRO AZEVEDO 80 A CRÍTICA LITERÁRIA DE SAIA JUSTA A REPRESENTAÇÃO DA MATERNIDADE DESEJO E HOMOEROTISMO EDUCAÇÃO DA MULHER: RUPTURA E TRADIÇÃO O CASTELO INTERIOR DE SANTA TERESA D´ÁVILA POR W ILIAM ALVES BISERRA 89 POR CLARICE BRAATZ SCHMID NEUKIRCHEN 101 POR ANTONIO DONIZETI DA CRUZ 117 (RE)CONTRUÇÃO ÉTNICA NAS MULHERES POR ALEXSANDRA MARIA FERREIRA DA SILVA 135 OS RITUAIS SIMBÓLICOS NA LÍRICA RESGATE DE VOZES FEMININAS “SOCIOLOGICAL POETICS” POR CRISTINA MARIA TEIXEIRA STEVENS 147 BIBLIOGRAFIA 169 AUTORES 179 5 A CRÍTICA LITERÁRIA DE SAIA JUSTA Eliane T. A. Campello (FURG)1 RESUMO Um dos caminhos para se abordar os estudos de gênero na literatura envolve a produção de ensaios críticos que proliferaram no Brasil, especialmente, a partir dos anos 60 do século XX. Os questionamentos que a ensaística de cunho feminista propõe abalam a rigidez das estruturas de poder tradicionais em campos variados, pois atingem o patriarcado, a historiografia literária, as relações entre mulher e literatura, e chegam ao ensino de gênero nos cursos de Letras. Nessa perspectiva, quem está de saia justa? A crítica literária tradicional ou a crítica literária feminista? PALAVRAS-CHAVE: ensaio crítico, crítica literária feminista, gênero Pelo título dado a este trabalho – “A crítica literária de saia justa” – fica, de início, evidente que algum constrangimento ou embaraço existe, quando se fala em crítica literária. É isso mesmo. Há temas provocativos o suficiente para levar a reflexões que, mesmo não sendo novos (pelo menos para o GT Mulher na Literatura da ANPOLL), são bastante polêmicos e até contraditórios. Refiro-me a questões que despontam no cenário acadêmico, a partir da constatação da existência de uma enorme quantidade de publicações críticas que surgiram após os anos 60/70 do século XX, quando a Crítica Literária Feminista começa a se estruturar formalmente tanto nos Estados Unidos, na Europa, no Canadá quanto no Brasil. Construída sobre dois eixos essenciais – o da recuperação (resgate de obras esquecidas pela historiografia) e o da revisão (propostas de leituras com base na categoria de gênero, que dá conta do sexo, classe e etnia) – a Crítica Literária Feminista confere visibilidade a escritoras e suas obras, do passado e do presente. Esta minha manifestação tem como hipótese central o embate que se estabelece entre a crítica literária tradicional e a crítica literária feminista. Uma delas está de saia justa. Por quê? Parto do pressuposto de que esse material crítico aparece, principalmente, em forma de ensaio. Portanto o meu foco recai sobre a ensaística de autoria feminina no Brasil essencialmente. E, a minha preocupação diz respeito às modificações que esses ensaios vêm causando à historiografia e à crítica literária, embora na maioria das vezes, sejam, paradoxalmente, desconsiderados pelos acadêmicos que insistem em permanecer fiéis ao cânone tradicional, ao qual a maioria das escritoras jamais pertenceu. 1 Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É professora colaboradora da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), atuando no Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado em História da Literatura., na área de estudos de gênero. Pertence ao grupo de pesquisa “Vozes femininas”. Publicou O Künstlerroman de autoria feminina: a poética da artista em Atwood, Tyler, Piñon e Valenzuela (2003) e, em co-autoria com Núbia Hanciau e Eloína Santos, organizou A voz da crítica canadense no feminino (2001), além de possuir diversos ensaios críticos publicados em revistas especializadas. 6 Se a crítica e a história literária tradicionais não conferiram valor suficiente às mulheres para nomeá-las ao lado de nossos escritores, essa situação está se modificando. Hoje, contam-se escritoras em múltiplas centenas, conforme atestam as re-edições de obras literárias, as antologias e os dicionários publicados recentemente, no Brasil e no exterior. A (re)descoberta e a (re)avaliação da produção literária de autoria feminina vem fortemente calcada em novos paradigmas de análise, bem como em conceitos alargados de sujeito, literatura e de história, fato que oportuniza a leitoras e leitores o conhecimento tanto de textos atuais como daqueles que foram sufocados por grossas camadas de poeira acumuladas pelo tempo. Longe de pretender esgotar o assunto, questiono-o, em vez de chegar a conclusões definitivas. Para isso, apresento primeiramente um panorama do estado da arte, lembrando que o ensaio engloba um amplo espectro, embora aqui me restrinja a categorias específicas de publicação: as histórias da literatura e obras de referência (catálogos, índices, guias e dicionários), por um lado e, por outro, os ensaios crítico-teóricos publicados em jornais, revistas, livros e antologias. Assunto superado, do conhecimento de todos, é o fato de que tradicionalmente as histórias da literatura (brasileira e de outros países) contemplam poucas mulheres escritoras (às vezes, nenhuma), apesar de elas terem, desde o início, se manifestado literariamente por meio de romances, poesias, dramaturgia, cartas, diários e ensaios críticos. Para comprovar esta afirmativa, poderia trazer uma lista de obras de referência e de histórias da literatura, até a exaustão, que foram escritas na esteira do modelo europeu. Esse parece ser o caso de História da Literatura Brasileira, de Silvio Romero que, em 1888, cita 40 nomes de mulheres, dos quais menos de 5 correspondem a escritoras2, de História da Literatura Brasileira (1916), de José Veríssimo, que não cita nenhuma escritora e de Sacramento Blake, cujo Dicionário bibliográfico brasileiro, na edição de 1970, referencia 83 mulheres. Ainda, na História concisa da Literatura Brasileira, de 1975, Alfredo Bosi menciona somente 31 escritoras. Heloísa Buarque de Hollanda chama a atenção que o ensaio, este “gênero parapedagógico de historiografia” (1993, p. 13), pela mão das primeiras críticas serviu [e ainda serve] para tirar as mulheres da “barbárie do esquecimento”, 2 Ver o trabalho de Raimunda Alvim Lopes Bessa, “Mulheres na história da literatura brasileira”, apresentado no Encontro Regional da ABRALIC 2007, Literaturas, Artes, Saberes, realizado na USP – São Paulo, Brasil, retirado do site http://www.abralic.org.br/enc2007/anais/40/702.pdf, consultado em 30/06/2007, que fornece números precisos a respeito de referências a nomes de mulheres em diversas obras de história da literatura brasileira, de que me valho para este trabalho. 7 expressão utilizada por Inês Sabino, em Mulheres ilustres do Brasil, nos idos de 1899 (p. 13). Com este mesmo propósito, Andradina de Oliveira publica em 1907, A mulher riograndense, em que reúne as “miniaturas” de 13 escritoras mortas tendo “em mira tornar conhecida a actividade feminina neste extremo sul de nossa pátria”, pois “Em nosso paiz muito pouco se tem escripto sobre as mulheres que – e não são poucas – têm sahido da linha vulgar” (1907, p.7)3. Ainda, no primeiro volume de Perfis de musas, poetas e prosadores brasileiros, publicado em 1956, por Alzira Freitas Tacques e dedicado às mulheres escritoras, há 412 nomes referidos. As organizadoras de dicionários e antologias reconhecem que o ensaio crítico de autoria feminina acerca da produção literária de mulheres mostra-se não só um meio promissor e consistente de interpretação das circunstâncias sociais, esteticamente estruturadas, como também um terreno propício para a escritura de experiências e de histórias de vida particulares. Além disso, segundo Hollanda, nas obras pioneiras da prática da crítica feminina [ela está se referindo às obras que eu citei, de Inês Sabino e de Andradina], o eixo central da preocupação [é] com a lógica do “silenciamento” na construção da série literária, marcando uma tendência, de claro acento político, em denunciar e tentar romper com a estigmatização da presença feminina na literatura (1993, p. 15). Eu acrescento que este mesmo propósito ainda move as ensaístas contemporâneas, uma vez que aquelas não dão conta de todas as escritoras de sua época. Nos seus primórdios, assim como hoje, o ensaio desempenha um papel preponderante na relação entre a mulher e as práticas sociais do patriarcado. Por meio dele, eram realizadas (e ainda são) as reivindicações de igualdade política e social entre homens e mulheres, na busca por direitos que eram radical e injustamente surrupiados às mulheres, tais como o direito à educação, ao voto, às profissões, ao aborto. Basta ver o texto matriz de Mary Wollstonecraft (1759-1797)4, a avó de Frankenstein, que, em 1792, escreve A vindication of the rights of woman, reclamando a igualdade jurídica e política para as mulheres. Posiciona-se contrária à desigualdade advinda da exclusão, fundamentada na ética, que gira em torno da mudança dos princípios culturais sobre os quais se assenta a opressão feminina. 3 Outras obras: AZEVEDO, Josefina Álvares de. Galeria ilustre (mulheres célebres), 1897; BITTENCOURT, Adalzira. Mulheres e livros, 1948 e Dicionário biobbligráfico de mulheres ilustres, notáveis e intelectuais do Brasil, 1969; GUIMARÃES, Rute. Mulheres célebres, 1963; GALENO, Henriqueta. Mulheres admiráveis, 1965. 4 Casou com o escritor William Godwin e morreu, em 1797, dez dias após dar à luz a Mary Shelley, autora de Frankeinstein (1818). 8 Este exemplo tem repercussões no Brasil: Nísia Floresta Brasileira Augusta, em 1832, publica uma “tradução livre” do texto da crítica inglesa, adaptada às circunstâncias da realidade brasileira, intitulada Direito das mulheres e injustiça dos homens. No dizer de Constância Duarte, este deve “ser considerado o texto fundante do feminismo brasileiro” (2003). O tópico argumentativo recai no fato de que a mulher é mais capaz do que o homem para educar crianças, mas isso não quer dizer que não possa também desempenhar outro cargo. Inclusive o de ensaísta. Em 1992, Heloísa Buarque de Hollanda (1993, p. 18-20) aponta a imprensa dirigida e editada por mulheres, que prolifera dos meados do século XIX ao primeiro decênio do século XX, como “um espaço decisivo para o desenvolvimento da expressão feminina” (p. 18). Uma década depois, essa constatação é reforçada por críticas como Nádia Gotlib, em “A literatura feita por mulheres no Brasil”, de 2002 e Zahidé Muzart, em “Feminismo e literatura ou quando a mulher começou a falar”, de 2003. Entre tantos periódicos referidos5 por essas críticas, salientam-se o Jornal das Senhoras, criado em 1852, por Joana Paula Manso de Noronha; O Belo Sexo, de 1862; Jornal das Famílias, de 1863 e A família (1889-1898), de Josefina Álvares de Azevedo. Aproveito essa listagem para acrescentar que circulou na cidade de Rio Grande (RS), por 60 anos, o jornal Corimbo (1884-1944), de propriedade de Revocata Heloísa de Melo (1860?-1944) e Julieta de Melo Monteiro (1863-1928), não referido por Gotlib, porém contemplado em Escritoras brasileiras do século XIX. O Corimbo, no dizer de Rita Terezinha Schmidt “promovia, assim, uma consciência feminina pautada na necessidade de união e luta pela emancipação”6. Da mesma forma, vale citar o jornal Orvalho (1898-1904)7, dirigido pelas irmãs Alaíde e Matilde de Almeida, que circulou no Rio Grande do Sul, em Santana do Livramento, cidade fronteira com a Argentina. E, O Escrínio (1898-1910), de circulação em Bagé, Santa Maria e Porto Alegre, de propriedade de Andradina de Oliveira (1864-1935). 5 Outros referências: O Espelho Diamantino, lançado em 1827; Correio das Modas (1839-1841); O Sexo Feminino, 1873; O Domingo, de 1879; A mensageira, “revista literária” dirigida por Prisciliana Duarte de Almeida, de 1897 a 1900. 6 Ver os capítulos “Revocata Heloísa de Melo” (MUZART, 1999, v. 1, p. 892-902) e “Julieta de Melo Monteiro” (MUZART, 2004, v. 2, p. 306-319), de Rita Terezinha Schmidt. 7 Os exemplares, todos publicados em Santana do Livramento, encontrados são: Ano I, n. 2, 11 set. 1898; Ano I, n. 9, 30 out. 1898; Ano VI, n. 209, 28 mar. 1904 (localizados na Biblioteca RioGrandense, na cidade do Rio Grande); Ano III, n. 72, 15 jul. 1900 (localizado no Museu de Comunicação Social Hipólito da Costa, em Porto Alegre), e a primeira página (danificada) do Ano VI, n. 202, 7 fev. 1904, no acervo de Ivo Caggiani, em Santana do Livramento. Ver os capítulos “Matilde Ulrich de Almeida” e “Alaíde Ulrich”, (MUZART, 2004, v. 2, p. 995-1021 e p. 1022-1030), de Eliane T. A. Campello. 9 Sem dúvida, o legado das precursoras frutificou. Em contrapartida aos mirrados números citados anteriormente, graças ao trabalho de resgate de obras de autoria feminina ─ a “tendência arqueológica” da Crítica Literária Feminista de caça ao tesouro ─, contamos hoje com uma bibliografia já numerosa e em expansão a respeito de escritoras brasileiras. A título de exemplo, tornaram-se visíveis as 105 escritoras analisadas entre o 1° e o 2° volumes, das Escritoras brasileiras do século XIX, publicados pela Editora Mulheres, sob a organização de Zahidé Muzart, os 3330 verbetes do Dicionário de mulheres (1999), bibliografadas por Hilda Flores, as 1401 escritoras bio-bibliografadas em Dicionário crítico de escritoras brasileiras (2002) por Nelly Novaes Coelho8 e a centena de escritoras incluídas no Dicionário Mulheres do Brasil (2000), organizado por Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil. Tudo isso, sem perder de vista, especialmente porque se constitui no foco destes comentários, as 629 ensaístas incluídas em Ensaístas brasileiras (1993), de Heloísa Buarque de Hollanda e Lúcia Nascimento Araújo. Não posso deixar de ilustrar aqui um contraste marcante entre a presença dessas 629 ensaístas na historiografia brasileira e o discurso do acadêmico Eduardo Portella9, em 2000, na conferência cujo tema é “O Ensaio”, no “Ciclo – Panorama da Literatura Brasileira Contemporânea”. Após traçar o histórico deste gênero literário desde o romantismo no Brasil, mencionar vários autores e enfatizar que o ensaio se identifica pelo “vigor crítico” e pela “qualidade textual”, abre-se a oportunidade para a platéia dirigir-lhe perguntas. Neide Archanjo10 manifesta-se, interrogando-o a respeito da “ausência de um nome feminino”, entre os ensaístas mencionados: “O que acontece com as brasileiras? A mulher não tem a capacidade de crítica, a capacidade do ensaio?” A que ele responde: EDUARDO PORTELLA: Olhe, Oneide Archanjo, você fez muito bem em ter promovido essa lembrança. [...] Agora, você tem razão, temos figuras femininas no ensaio, como Nelly Novaes Coelho ─ como, quem foi, Nejar, que você me soprou? ─ Como Cecília Meireles, que o Josué está me lembrando, que também fez um bom ensaio. Tem razão, não são deliberadamente ensaístas, mas chegaram ao ensaio em condições bastante respeitáveis. Você tem razão e obrigado pela lembrança. Na 11 próxima vez vou convidá-la para você me soprar (2000) . 8 Ver também da autoria de Coelho, A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993. 9 Membro da Academia Brasileira de Letras. De 1979 a 1980, foi ministro da Educação e Cultura no Governo de João Figueiredo. Integra o Conselho de Pesquisa e Ensino para Graduados da UFRJ e o Conselho Estadual de Cultura. 10 Poetisa brasileira. Nasceu em São Paulo, em 15 de setembro de 1940. 11 Retirado do site www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=4268&sid=531-48k-, consultado em 9/11/2007. A passagem completa é a que segue: “PLATÉIA: Professor Portella: queria cumprimentá-lo, em primeiro lugar, pela brilhante exposição, mas me chamou a atenção, nesse seu trabalho realmente extraordinário, a ausência de um nome feminino. E fiquei a pensar: não haverá no 10 A evidência é concreta: ironias à parte, pela primeira vez o acadêmico pensa na possibilidade de haver mulheres ensaístas no Brasil. E, estamos no ano de 2000, no espocar do século XXI. Se fosse possível neste espaço listar as centenas de revistas e obras, de dissertações e de teses, de sites que enfocam a questão da mulher e sua relação com a história da literatura na contemporaneidade, não sairíamos daqui hoje. Uma breve consulta, via Internet, nos mostra que existem à venda 2.052 (dois mil e cinqüenta e dois) títulos, na “Amazon.com”12, sob a chamada geral de “Literary Feminist Criticism” e, na “Barnes & Nobles”13, encontram-se 7.429 (sete mil quatrocentos e vinte e nove) resultados. No Brasil, embora a consulta seja mais restrita, as livrarias, especialmente as universitárias, dispõem de obras neste gênero. Isso significa dizer que, ao se falar em ensaio crítico (ou literário), estamos circulando no âmbito acadêmico. Se a pesquisa for feita pelo “Google”, os números, então, são mais surpreendentes, conforme o demonstram os Anexos 1, 2 e 3 deste trabalho. Juntamente com a análise de obras literárias, o ensaio incorpora outros ingredientes, tais quais, valor e interesse. No caso da crítica literária feminista, é no ensaio que se explicitam os critérios e o viés ideológico que subjazem à escritura da mulher, assim como aqueles que inflamam o próprio texto ensaístico. Mais do que isso, os ensaios críticos feministas apresentam um enfoque contestatório ao status quo da crítica literária tradicional e dão a conhecer os novos paradigmas interpretativos para a apreciação da obra literária. Numa verificação ligeira de ensaios produzidos por pesquisadoras brasileiras, encontro um total aproximado a 1400 publicados, prioritariamente, pelas componentes do GT Mulher na Literatura, da ANPOLL. Em vista disso, impõe-se uma constatação, não uma queixa. Apesar desta quantidade imensa de material crítico, parece haver uma disseminação apenas circular do mesmo; parece que dificilmente a ele recorrem pesquisadores e pesquisadoras (fora do circuito da crítica feminista) para o estudo Brasil uma Hannah Arendt, uma Simone Weil, uma Simone de Beauvoir? O que acontece com as brasileiras? A mulher não tem a capacidade de crítica, a capacidade do ensaio? Acadêmico EDUARDO PORTELLA: Olhe, Oneide Archanjo, você fez muito bem em ter promovido essa lembrança. O Josué está me lembrando aqui que eu falei muito em Clarice. Aliás, sempre falo muito em Clarice, não sei viver sem falar muito em Clarice. Agora, você tem razão, temos figuras femininas no ensaio, como Nelly Novaes Coelho - como, quem foi, Nejar, que você me soprou? - Como Cecília Meireles, que o Josué está me lembrando, que também fez um bom ensaio. Tem razão, não são deliberadamente ensaístas, mas chegaram ao ensaio em condições bastante respeitáveis. Você tem razão e obrigado pela lembrança. Na próxima vez, vou convidá-la para você me soprar”. 12 Retirado do site Amazon.com, consultado em 8/11/2007. 13 Retirado do site Barnesandnobles.com, consultado em 8/11/2007. 11 da literatura produzida pelas mulheres. Há manifestações de respeito e aceitação da existência da crítica literária feminista, uma vez que não há como negá-la. Entretanto, o valor dos textos literários de autoria feminina fica ainda restrito ao seu enquadramento em parâmetros tradicionais, os quais não dão conta de especificidades da escritura da mulher. São nuanças e sutilezas que se perdem, permanecem invisíveis, obscurecidas. Em outras palavras, caso o texto não se molde a tais parâmetros (e não vai se moldar a eles), não apresentará o valor literário esperado. Em decorrência, a ampliação de limites e a flexibilidade necessárias para traçar um novo perfil da historiografia literária, ficam prejudicadas. Parece haver um constrangimento, uma manifestação “sorda” (para não falar em preconceito) em incorporar as argumentações do contradictio, dos matizes de uma experiência de vida diferenciada. A crítica feminista se caracteriza pelo empenho na produção de conhecimento “que se quer como prática ideológica, no sentido de resistência e intervenção, tanto na hegemonia do establishment crítico acadêmico quanto na própria realidade social e material”, explica Rita Schmidt (1994, p. 23). Na crítica literária feminista tanto o sujeito quanto o objeto do conhecimento se relativizam. Estabelece-se uma inteiração explícita entre conhecimento e interesse com vistas a imprimir ao processo hermenêutico o elemento emancipatório, que “é inimigo de todo o processo colonizador” (SCHMIDT, 1994, p. 30). Talvez um dos focos de infecção que assola a crítica feminista na academia, impedindo que se difunda em outros pagos, esteja localizado nos cursos de Letras. É aqui o lugar da formação de leitoras e leitores. De fato, pouco se tem avançado em termos de configuração de currículos e programas no nível da graduação. Marisa Lajolo e Regina Zilberman, em A formação da leitura no Brasil (1999), dedicam um capítulo belíssimo (vou me permitir utilizar este adjetivo), além de consistente acerca da representação da leitora na obra de escritores e escritoras brasileiras, de sua fundação até Clarice: é “A leitora no banco dos réus”. No entanto, na conclusão não podem deixar de reconhecer e explicitar sua preocupação acerca da fragilidade de práticas culturais e projetos educacionais brasileiros “talvez sintomaticamente representada pela constante e duradoura crise por que passam os cursos de Letras – que desfavorece a existência de um espaço maior para as necessárias pesquisas...” (1999, p. 311). Não obstante o cenário desconstrutivista em que habitamos hoje, parece que ainda se coloca de um lado o que é “tradicionalmente definido (...) de peso intelectual em oposição ao que é irrelevante”. Leia-se: irrelevante é o ensaio crítico feminista, como já afirmava Rita Schmidt, em 1994 (p. 25). No espaço da academia, as inovações, quando existem, ocorrem nos 12 programas de pós-graduação. Nesse sentido, vale a pena registrar que o Mestrado em História da Literatura, da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), onde atuo, apresenta uma abertura incomum, ao ter eleito a “escrita de autoria feminina” como uma de suas linhas de pesquisa. Apesar da flagrante existência deste corpo crítico maciço, a crítica feminista permanece (in)visível. Nesta trama reside o paradoxo. Daqui surge o embate. A crítica feminista abala as estruturas implantadas pela tradição, provoca, causa mudanças, mas..., seus argumentos não são incorporados nos ensaios críticos dos acadêmicos e das acadêmicas (refiro os acadêmicos, porque é deste lugar que eu falo, é na academia que eu transito), que se colocam fora do círculo feminista. Mais do que isso: alguns e algumas (re)negam esta perspectiva. As pesquisas na área da história da literatura atualmente são bastante otimistas quando tratam dessa elasticidade do cânone, para abarcar as diferenças. Para Eduardo Coutinho, por força das correntes do pensamento fundadas na desconstrução, em estudos transculturais e pós-coloniais, “A perspectiva linear do historicismo cedeu lugar a uma visão múltipla e móvel, capaz de dar conta das diferenças específicas, das formas disjuntivas de representação” (1996, p. 69). Nesse sentido, a distorção está no cânone tradicional (o europeu em relação ao latino-americano, no âmbito internacional; a série literária oficial do continente ou do país em relação às minorais marginalizadas por razões de raça, classe social e sexo), o que leva a pensar na necessidade de re/elaboração da historiografia literária. As escritoras, as poetisas, as dramaturgas produzem a literatura: as críticas, a historicizam. Atualmente, é o ensaio literário que dá conta também da historiografia, devido ao olhar oblíquo do/a ensaísta, que é crítico, avaliativo e imprime um elevado valor ao texto. É no ensaio que vamos encontrar as matrizes culturais, literárias e ideológicas. O ensaio abarca o literário sem esquecer o social, o estético, o psicológico e o moral. O ensaio carrega a polêmica. O ensaio crítico feminista altera o modo de ver o texto literário. Mais do que isso, constitui-se no berço de onde brota a possibilidade de transformação do fato literário. Com o abalo sofrido pelo cânone tradicional, principalmente devido à produção da crítica com base na categoria de gênero, os historiadores da literatura estão também de “saia justa”, pois não conseguem decidir que história contar, uma vez que as mulheres e as minorias, trazem à público outras versões da história oficial. Problematiza-se a questão: Qual a eficácia de transferência de paradigmas teórico/analíticos de um segmento para outro, isso é, do cânone tradicional para a 13 produção literária fundada na perspectiva de gênero? As noções de unidade e homogeneidade podem ser aplicadas a textos literários propostos de locus diferenciados, móveis e flexíveis? Os estudos críticos feministas levarão à coexistência de cânones distintos e paralelos dentro de um mesmo contexto literário? Esse último questionamento, por exemplo, encontra respostas controversas: enquanto algumas acadêmicas insistem em demarcar a diferença, a marginalização da produção de autoria feminina, com seu locus próprio, outras buscam inseri-la no cânone já existente, apenas preenchendo seus vazios. A manifestação de Zahidé Muzart ilustra esses posicionamentos: “Ao mesmo tempo em que gostaríamos de vê-las inseridas nas histórias da literatura, não nos agrada vê-las separadas num espaço exclusivo, tal como se encontram na História da Literatura Brasileira, de Luciana Stegagno-Picchio, [...], em que temos um capítulo intitulado “A escrita das mulheres” e outro, “Poetas mulheres” (1999, p. 25, v. 1). Uma da implicações de fundo, que tento inserir na expressão “saia justa”, aponta para a relação “Mulher e História da Literatura” e diz respeito ao nosso desempenho docente, em qualquer grau de ensino. As interrogações persistem: Que literatura dispor aos nossos alunos e alunas? Que viés crítico? Como formar leitores & leitoras? De que forma construir para depois desconstruir uma história da literatura a fim de nela inserir a mulher, seja na posição de escritora, de leitora, de crítica? O que fazer com o susto que ainda hoje o termo “feminista” provoca? A prática da crítica literária feminista na academia suscita algumas reflexões. Na percepção de Maria Elisa Cevasco, há o risco de tornar a crítica feminista em item no mercado de teorias atual, em mais um código opcional de leitura entre tantos outros equivalentes. Para evitar isso, é preciso desenvolver um corpo crítico concentrado nas manifestações localizadas em problemas de gênero no Brasil (1999, p. 178). Parece haver concordância entre os pesquisadores e pesquisadoras dos vários campos do saber para quem os pós-modernismos, os pós-estruturalismos e as atitudes desconstrutivistas aliam-se para englobar a crítica do falogocentrismo, do descentramento de teorias e de visões. Fala-se hoje em enfoques transpostos do colonizador para o colonizado, do colonial para o pós-colonial, do branco para o negro, do rico para o pobre, do homem para a mulher, com o objetivo de deslocar as culturas hegemônicas e de dar visibilidade à diferença (se é que isto é possível num Brasil do paradoxo, em que se vê tantas formas relacionadas, porém diferentes de opressão). Bem, teoricamente, na academia isso é possível, sim. Mais, é possível que um grupo dominado possa aprender com a luta de outro grupo dominado 14 (CEVASCO, p. 188), no caminho para a conscientização de uma mudança mais fundamental em termos de relações sociais. Para Susana Funck, em “Da questão da mulher à questão do gênero” (1994, p. 21), esta transfusão entre estudos sobre a masculinidade e a homossexualidade e os estudos da mulher reforça o gênero como categoria de análise. Nesse sentido, a crítica literária feminista de “saia justa e de salto alto” pode ser considerada como um dos vários meios essenciais, inevitáveis e necessários de mudança, se é que queremos sair de uma história da literatura dos meninos e das meninas para construir outra história, utópica, talvez, em que o Superman e a Barbie, libertos da “saia justa”, não sejam os únicos símbolos visíveis a nos representarem. Bibliografia BLAKE, Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro: 1883-1902. Rio de Janeiro: Tip. Nacional. Reimpressão: Conselho Federal de Cultura, 1970. 7t. BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo; Cultrix, 1975. CEVASCO, Maria Elisa. Importing feminist criticism. In: OLIVEIRA, Solange RIBEIRO e STILL, Judith (ed.). 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Site: http://www.anpoll.ufal.br/, consultado em 9/11/2007. Anexo 1 - Slide 1 (sites) Crítica feminista Crítica literária feminista Web 1.070.000 289.000 em português 268.000 68.400 no Brasil 174.000 48.300 Feminist criticism Literary feminist criticism Web 1.920.000 1.580.000 Antologias de escritoras Web 157.000 em português 24.900 Ensaios críticos Female critical essays de autoria feminina Web 124.000 1.830.000 em português 121.000 797 no Brasil 83.500 981 [consultas realizadas em 2007] Anexo 2 - Slide 2 Antologias de escritoras 1- Galeria ilustre: mulheres AZEVEDO, Josefina Álvares de (1897) célebres. 2 - Mulheres ilustres do SABINO, Inês (1899) Brasil. 3 - A mulher rio-grandense e OLIVEIRA, Andradina de (1907) escritoras mortas. 16 4 - Antologia feminina: BRITO, Cândida de (1929) escritoras e poetisas contemporâneas. 5 - Mulheres e livros. BITTENCOURT, Adalgisa (1948) 6 - Perfis de musas, poetas e prosadores brasileiros. 7 - Mulheres célebres. 8 - Mulheres admiráveis. 9 - Mulheres do Brasil. TACQUES, Alzira Freitas (1956-1958) GUIMARÃES, Rute (1963) GALEANO, Henriqueta (1965) GALENO, Henriqueta (1971) Vol. I (publicação em quatro volumes) DUARTE, Constancia Lima e MACEDO, Diva Cunha Pereira de (Natal: EDUFRN, 1999) DUARTE, Constancia Lima e MACEDO, Diva Cunha Pereira de (Belo Horizonte: Edições Limiar, 1999) ALVES, Lizir Arcanjo. 2. ed. (Salvador: Étera Projetos Editoriais, 1999) 10 - Literatura do Rio Grande do Norte — Antologia. 11 - Iniciação à Poesia do Rio Grande do Norte Antologia 12 - Mulheres escritoras na Bahia: as poetisas – 1822 – 1918. 13 - Escritoras brasileiras do MUZART, Zahidé L. (org.) 2 ed. (Florianópolis: século XIX. Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2000) v. 1 14 - Poesia Barroca – FERREIRA, Nadiá Paulo (Rio de Janeiro: Antologia do século XVII Editora Ágora da Ilha, 2000) 15 - Antologia de escritoras ALVES, Ívia (UFBA) baianas 16 - Antologia das escritoras BRITTO, Carla dos Santos afro-brasileiras 17 - Antologia de escritoras (Rede de Escritoras Brasileiras – REBRA) brasileiras 18 - O amor que move o sol (REBRA - 42 escritoras brasileiras) e outras estrelas 19 - Talento delas (REBRA - 32 escritoras) 20 - À margem das Alagoas BRANDÃO, Izabel e ALVES, Ivia (orgs.) e Bahia: Antologia de (Maceió: EDUFAL/CNPq, 2002) escritoras (1900-1950). 21 - Antologia de contos de GUIDIN, Márcia Lígia e VIANA, Lúcia (orgs.) escritoras brasileiras (década de '80, 31 escritoras, Ed.Martins Fontes, 2003) 22 - Escritoras brasileiras do MUZART, Zahidé (org.) (v. 2, 2004) século XIX. 23 - Talento feminino em (Editora Scortecci, São Paulo, 2004) prosa e verso I 24 - Talento feminino em (Editora Scortecci, São Paulo, 2005) prosa e verso II 25 - Presente de Natal em (Ed. Scortecci, São Paulo, 2005) Prosa e Verso [consultas realizadas em 2007] 17 Anexo 3 - SLIDE 3 DICIONÁRIOS 1-Dicionário BITTENCOURT, Adalgisa. 1969, Três volumes biobibliográfico de mulheres ilustres, notáveis e intelectuais do Brasil. 2 -Ensaístas brasileiras: HOLLANDA, Heloísa Buarque de; ARAUJO, Lúcia mulheres que Nascimento. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. escreveram sobre literatura e artes de 1860 a 1991. 3 - Dicionário teologia feminista. de 4 - Dicionário mulheres. de FLORES, Hilda. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1999. GOSSMANN, Elisabeth. Vozes, 1997. 5 - Dicionário Mulheres SCHUMAHER, Schuma e BRAZIL, Érico Vital (orgs.). Rio do Brasil de 1500 até a de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. atualidade. 6 - Dicionário crítico de COELHO, Nelly Novaes. São Paulo: Escrituras, 2002. escritoras brasileiras: 1711-2001. Copyright © Carlos Ceia, 2005 http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/C/critica_feminista.htm 8 - Dicionário da crítica MACEDO, Ana Gabriela e AMARAL, Ana Luísa (orgs.). feminista Porto: Afrontamento, 2005. 18 19 EDUCAÇÃO DA MULHER: RUPTURA E TRADIÇÃO EM A INTRUSA DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA* Marly Jean de A. P. Vieira** RESUMO: Esta análise traz mais um exemplo de como a escritora Júlia Lopes de Almeida utilizou o espaço narrativo para problematizar a condição feminina. O romance A intrusa destaca o conflito entre o novo modelo de mulher burguesa e os papéis estabelecidos pela aristocracia. A autora privilegia a relação entre o universo feminino e os preceitos sociais enfatizando a importância da educação como instrumento que permitirá a ascensão feminina. É com perspicácia que Júlia Lopes negocia com os valores conservadores sem deixar de sinalizar as mudanças necessárias e inevitáveis aos novos tempos. Esta análise tem por base a Crítica Literária Feminista. Palavras-chave: Júlia Lopes de Almeida. Educação. Mulheres A carioca Júlia Lopes de Almeida nasceu em 1862 e foi uma das figuras femininas mais expressivas do período entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Mãe, esposa, mas também escritora, iniciou sua carreira aos dezenove anos escrevendo no jornal Gazeta de Campinas. A partir daí, e por mais de trinta anos, ela produziria uma obra extensa e de reconhecida qualidade literária que incluiria desde textos infantis a crônicas, ensaios, peças de teatro, novelas, contos e romances. Sua escrita – marcada pela criatividade e pelo espírito crítico - retratou a condição feminina em meio à discussão de importantes temas sociais como a abolição da escravidão, a agricultura como meio de desenvolvimento do país, o difícil acesso da mulher à educação. A partir de meados do século XX a autora e sua obra caíram em profundo esquecimento do qual começaram a sair graças ao esforço de estudiosas ligadas à linha de resgate da Teoria/Crítica Literária Feminista que vêm promovendo o estudo e a reedição de suas obras. O fato de conviver num lar onde se valorizavam as artes e a cultura, certamente facilitou-lhe o desenvolvimento do talento natural para a literatura. É no espaço da escrita - habitualmente dominado pelo homem e onde ele estabelece as suas verdades – que Júlia Lopes penetra e desenvolve os textos que quase sempre problematizam a questão da educação da mulher. * Este artigo foi adaptado do capítulo ‘Mulheres imaginadas – mulheres reais’ da dissertação de Mestrado: Do privado ao público – Júlia Lopes e a educação da mulher. * * Professora da Rede Pública de Ensino do Distrito Federal, com mestrado em Literatura Brasileira (UnB, 2003). Pesquisadora das áreas de estudos feministas e de gênero e literatura de minorias. Integrante do grupo de pesquisa Vozes Femininas Atualmente pesquisa o gênero narrativo conhecido como romance de formação (Bildungsroman). 20 Sua origem burguesa não a impediu de perceber, juntamente com outras mulheres de letras14, que a condição de subalternidade social, cultural e econômica da mulher era provocada pelo seu limitado acesso ao ambiente educacional. O exercício do jornalismo, provavelmente, contribuiu para aguçar a percepção que tinha de si e dos outros. Atenta às mudanças que aconteciam, Júlia Lopes anteviu que a mulher poderia exercer um papel mais ativo no contexto social contribuindo, inclusive, com o desenvolvimento do país, bastava apenas que tivesse os meios para desenvolver suas potencialidades. A segunda metade do século XIX foi rica em importantes acontecimentos histórico-sociais e Júlia Lopes os vivenciou. Eles vão desde a transição do regime monárquico para o republicano, passando pela abolição da escravidão, a reurbanização da cidade do Rio de Janeiro, a grave crise financeira conhecida com “encilhamento”, o movimento sufragista, até a Primeira Guerra Mundial, no início do século seguinte. Valendo-se de um grande senso de observação, ela consegue explorar elementos indicadores de algumas dessas transformações sociais em sua ficção, quando fala, por exemplo, sobre a família burguesa do Segundo Império e da Primeira República. Assim, traz para a intimidade do ambiente familiar a discussão – aguçadamente crítica - de temas que transcendem o espaço doméstico e que, ao meu ver, fazem com que sua literatura não se encaixe, de forma genérica, no conjunto de produções estereotipadas como “sorriso da sociedade”. Ao se tomar conhecimento da sua trajetória pessoal e da aceitação que sua obra obteve em seu tempo, torna-se mais fácil compreender o seu engajamento nas mais diferentes questões sociais, sendo a principal delas a da educação da mulher sobre a qual defendeu opiniões marcadamente feministas. Algumas de suas personagens15 apresentarão e discutirão essas idéias, outras evidenciarão em suas falas posições preconceituosas sobre a condição das mulheres. Isso tudo torna-se importante, dentro da abordagem de gênero, para que se possa caracterizar Júlia Lopes como uma mulher que está, em muitas questões, à frente de seu tempo, pelas suas idéias e atitudes inovadoras. A postura diferenciada dessa autora permitiu que ela não só se projetasse como escritora talentosa no meio intelectual de seu tempo, mas também abrisse para as brasileiras um espaço ao qual não haviam tido acesso até então. Júlia Lopes 14 Segundo Mª Thereza Bernardes, a expressão “mulheres de letras” refere-se àquelas que escreveram e publicaram obras nos mais diversos gêneros literários ou as deixaram inéditas. In: BERNARDES, Mª Thereza C. C. Mulheres de ontem? Rio de Janeiro – século XIX. São Paulo: T. A. Queiroz, 1989, p. 10. 15 O termo personagem refere-se tanto às personagens masculinas quanto às femininas. 21 realizou a proeza de tornar-se uma profissional das letras – terreno monopolizado pelos homens. Conforme atesta Norma Teles, “talvez [ela] tenha sido a única escritora do período a conseguir dinheiro com sua pena” (TELES: 1997, p. 441). E acrescenta que a filha de Júlia Lopes, a declamadora Margarida Lopes de Almeida, contava que a mãe, em certa ocasião, levara toda a família à Europa com ganhos da sua produção. Optando pela produção em prosa, ela destaca-se de outras mulheres que geralmente escreviam poesia e não mantinham o mesmo volume de produção e nem a mesma constância de nossa biografada. Havia ainda as que escreviam ocasionalmente, restringindo-se ao amadorismo e ao diletantismo. É claro que existiram também várias mulheres como Narcísia Amália e Francisca Júlia que produziram obras de grande qualidade, mas Júlia Lopes foi a que alcançou maior sucesso. Ela não se deixou marcar pelo contexto histórico e social em que viveu; procurou, interagindo com este contexto, modificá-lo dentro do que era possível para o quadro de sua época. O caminho percorrido por Júlia Lopes não é só individual, mas parece sinalizar um novo percurso a ser trilhado também por outras mulheres na busca de um lugar onde, juntamente com os homens, poderão usufruir de uma verdadeira igualdade entre os dois sexos. O romance A intrusa, de Júlia Lopes de Almeida, é festejado como um dos mais interessantes produzidos pela autora. Publicado, inicialmente, em folhetim no Jornal do Comércio (Rio de Janeiro) em 1905, sua primeira edição é de 1908, pela Editora Francisco Alves. O romance retrata o ambiente urbano e burguês do Rio de Janeiro do início do século. Um narrador observador nos conta a história dessa “intrusa”, que é a governanta Alice, contratada por um advogado viúvo para se tornar preceptora da filha. Isso era necessário para que, segundo os estritos preceitos da época, ele pudesse viver na mesma casa com sua filha, que estava entregue aos cuidados da avó materna. Pouco a pouco, pela simpatia e por suas habilidades em lidar com a menina, a governante se sobrepõe à influência dominadora da avó e à própria memória persistente da falecida esposa do advogado. Caracterizado por Wilson Martins como “mais um dos seus [de Júlia Lopes] romances de sombrio realismo,” (MARTINS: 1996, p. 384). A intrusa desvela para o leitor o momento de transição entre a antiga estrutura aristocrática e a nova ordem social que se estabelece com a ascensão da burguesia. Essa dicotomia se estabelece na figura da avó, Luíza - que representa os valores antigos e 22 conservadores - e na figura da governante, Alice - que representa os novos valores e comportamentos que devem reger a família burguesa. Segundo Peggy Sharpe, Júlia Lopes, assim como seus contemporâneos, sempre esteve preocupada com duas instituições sociais proeminentes: a família e a República. A educação adequada da mulher estaria, assim, “ligada ao bem-estar social da família e, por extensão, à bem sucedida consolidação dos ideais republicanos” (SHARPE apud ALMEIDA: 1999, p. 23-24). Em A intrusa, projeta-se um perfil feminino afinado com os ideais burgueses da época. Esse perfil destaca a figura feminina no papel de mãe e regeneradora da sociedade. Assim, percebo nesse romance uma contribuição de Júlia Lopes para se elevar o status da mulher. Mais uma vez reforço que em meio às ambigüidades, às negociações com o mundo masculino, nossa autora conseguiu, a partir de uma posição periférica, caminhar para o centro e chamar a atenção sobre a importância da mulher na sociedade. Focalizando o ambiente social da época, a autora traça um bem elaborado panorama das classes que o formam, incluindo a nobreza decadente, o escravo recém-libertado, o representante do poder econômico, o clero e a classe política. A discussão central recai sobre o papel da mulher, especialmente aquele representado pela figura de Alice. Júlia Lopes constrói em sua narrativa um enredo envolvente, que cativa o público da época, principalmente o feminino. A autora desenvolve uma narrativa que leva a história a mergulhar num clima de mistério. Esse clima envolve a personagem Alice, que não tem voz própria na história, e o padre Assunção, amigo de infância de Argemiro. A ausência de voz da protagonista faz com que o leitor preste ainda mais atenção em tudo que é dito sobre ela através dos outros personagens. Isso permite que muitas expectativas sejam criadas em relação a ela. O mesmo ocorre com o padre Assunção, que terá uma participação decisiva dentro do enredo. O fato do romance ser narrado em terceira pessoa não impede que se perceba uma falsa neutralidade do narrador revelando, em vários momentos, uma opinião que se confunde com a visão da própria autora. Pelo que já foi verificado da postura política e literária de Júlia Lopes, acredito que ela aproveite-se de vários momentos dentro do romance para evidenciar sua visão crítica acerca dos pensamentos retrógrados e preconceituosos sobre a mulher. Seu discurso destaca a importância da educação e - concordando com os positivistas - a nobreza do trabalho digno e honesto para a mulher. Para tanto, ela faz com que seus 23 personagens falem ironicamente sobre os preconceitos e hipocrisias da sociedade. Em outros momentos, permite - com sua habilidade de narradora - que se depreenda uma mensagem crítica na fala deles e na maneira como os representa. A invisibilidade da protagonista funciona, como uma metáfora da invisibilidade da própria mulher no espaço público, social e profissional. A narrativa de A intrusa inicia-se com uma reunião de amigos na casa do advogado viúvo Argemiro Cláudio de Menezes. Estão presentes neste momento o padre Assunção, o deputado Armindo Teles e Adolfo Caldas, sem profissão definida. Em meio à conversa, Argemiro revela que colocou no jornal um anúncio em busca de uma governanta para sua residência, pois só assim poderá trazer a filha para morar consigo. Nesse momento, são feitas inúmeras críticas a sua atitude, e destacam-se as opiniões sexistas que são expressas por alguns de seus amigos. Caldas, em tom de quem previne, assim se dirige a ele: _Olha que essas madamas trazem anzóis nas saias... Quando menos pensares... estás fisgado... E tu que és bom peixe! É uma raça abominável, a das governantas... Verás amanhã que afluência de francesas velhas à tua porta! Feia ou bonita, a mulher é sempre perigosa. Eu deixar-me-ia ficar sossegadinho nos braços do Feliciano! [ o empregado da casa] (ALMEIDA: 1935, p. 18) Essa opinião expressa a maneira como a sociedade enxergava a mulher: como um perigo, pronto para provocar o mal; a pecadora que usava o corpo para tentar o homem e levá-lo à perdição. Por isso, tantas doutrinas e teorias forjadas com o interesse de aprisionar, domesticar, vigiar e punir a mulher. Resistindo às críticas, Argemiro mantém-se firme no seu propósito, justificando que não pode mais permanecer vítima dos desmandos e desmazelos do ex-escravo Feliciano, aliado da baronesa, sua sogra. Ele está decidido a entregar sua casa aos cuidados de uma governanta, pois “uma casa sem mulher, afirmava ele, é um túmulo com janelas: toda a vida está lá fora...” (Ibidem, p. 6). Ele tranqüiliza o padre, que também era padrinho da sua filha, deixando bem claro a sua preocupação com os comentários maledicentes: “_ Preciso de uma mulher em casa, que não seja boçal como uma criada, mas que não tenha pretensões a outra coisa. Saberei indicar-lhe o seu lugar. Nem quero vê-la, mas sentir-lhe apenas a influência na casa. É a minha primeira condição” (Ibid., p. 18). E complementa: “(...) Quero uma mulher que tenha boa vista, bom olfato e bom gosto. São as qualidades que eu exijo por essenciais, numa dona de casa. Quero uma moça educada” (Ibid., p. 19) 24 O conceito que Argemiro tem de moça educada fica ainda mais claro no momento em que entrevista Alice - que respondeu ao anúncio - e lhe expõe o tipo de pessoa que quer para o cargo: (...) preciso, para governanta de minha casa, de uma senhora séria, uma senhora honesta, a quem eu possa francamente confiar minha filha, que é uma menina de onze anos. (...) quero uma governanta (...) que seja ao mesmo tempo uma companheira para minha filha nos dias em que ela vier ver-me. Para isso é preciso que seja sobretudo educada, não digo instruída, mas que enfim não seja analfabeta e que tenha hábitos de asseio, de ordem e de economia. (...) Quero sentir na minha casa a influência de uma pessoa moça, saudável e ordenada (Ibid., p. 23-25). Vê-se a partir destas citações que o perfil de mulher educada, desejado pelo advogado, está bem de acordo com os valores sociais e com os papéis que se projetavam para a mulher naquela época. Além das exigências em relação ao comportamento da governanta, Argemiro ainda lhe impõe a condição de jamais se encontrar com ela. Pretende, com isso, evitar qualquer tipo de envolvimento com Alice, calar as más línguas e permanecer fiel à memória da mulher a quem jurou, no leito de morte, jamais voltar a se casar. Alice aceita as regras, comprometendo-se a cuidar de tudo e a permanecer invisível. Apesar de seguirem rigorosamente as regras combinadas, os comentários acontecem e partem não só dos personagens masculinos, mas também dos femininos. Envolvido gradualmente pela eficiência de Alice no desempenho das tarefas domésticas e por sua habilidade em lidar com a filha, Argemiro acaba se apaixonando por ela e pedindo-a em casamento. No entanto, até que aconteça esse desfecho feliz, ele será motivo de disputa pela Pedrosa, que quer vê-lo casado com a filha, e pela baronesa, que cuida para que não se quebre a promessa feita a sua filha. O tema da educação da mulher será abordado dentro do romance através da formação da menina, Maria, que vive com os avós maternos em uma chácara afastada da cidade. A criança, criada livremente, sem contato com as restrições do processo de “domesticação” feminina, passa das mãos pouco rigorosas da avó para a orientação segura de Alice que promove a transformação da “selvagem” sem instrução em uma menina prendada. Apesar de preocupar-se com a formação moral e com o caráter de sua filha, Argemiro também interessa-se pela aquisição do saber necessário ao bom convívio social. Veja-se a passagem abaixo que reproduz um diálogo entre Argemiro e o padre Assunção: _ A avó tem razão; minha filha já está muito crescida para aqueles modos de rapaz... (...) É uma selvagem... esta é que é a verdade; mal sabe ler, rabisca umas letras em péssima caligrafia... e toca sem compasso umas intoleráveis lições do método! Já era tempo de saber muito mais. Não te parece? (Ibid., p. 28) 25 Representante do poder econômico, Argemiro (cujo nome vem de argentum – prata metal, dinheiro) considera que a filha já está na idade de ser preparada para o convívio social e precisa aprender as convenções que farão dela uma mulher. Esse é um dos pré-requisitos para que mais tarde a menina possa fazer um bom casamento. O passo seguinte a essa tomada de atitude era convencer a baronesa de que a contratação de uma governanta e a ida da neta para a cidade era o melhor para o seu desenvolvimento. A baronesa gozava de grande prestígio na comunidade em que morava e de grande influência sobre a neta. É Argemiro quem nos informa os sentimentos da sogra para com Glória: A neta reproduz para ela a filha morta. Glória foi para a casa da avó, muito pequena; foi ela quem a criou, julga-se com todo direito a guardá-la para sempre... E é para tê-la só para si, nos mesmos lugares em que cresceu minha mulher, que teima em não sair do seu canto... (Ibid., p. 41) Esses sentimentos farão com que a baronesa oponha-se ferrenhamente às intenções de Argemiro, pois ela sabe que corre o risco de não exercer mais poder sobre a neta e sobre seu genro. Segundo Elódia Xavier, a descrição que o narradorobservador faz da baronesa reflete a decadência de uma aristocracia que foi substituída pela burguesia republicana e perdeu o seu poder: “A baronesa era uma senhora gorda, alta, de lindos olhos negros e cabelos completamente brancos. Tinha as faces flácidas, a carne do pescoço descaída, a boca larga, a testa curta e ainda roubada pela espessura das sobrancelhas escuras” (ALMEIDA: 1935, p. 48). Para a baronesa, a figura de Alice transforma-se na da usurpadora que vem lhe tirar os seus bens mais preciosos. Ao visitar a sogra com o amigo Adolfo Caldas, Argemiro cogita em colocar a filha Glória em um colégio, ao que a baronesa responde: “_Se quiserem matá-la...” O barão reage imediatamente protestando: “_ Isso nunca. Colégios, nem para rapazes. São lugares de perdição. O que temos a fazer é interessá-la pelo estudo” (Ibid., p. 49). Apesar de o romance A intrusa ter sido escrito no início do século XX, reflete uma mentalidade ligada ao século XIX que enxergava o ambiente escolar com muita desconfiança; por isso eram poucos os colégios que despertavam o interesse das famílias. Os pais, em muitos casos, preferiam receber em suas residências a visita de professoras particulares. Boa parte delas era de origem estrangeira, e iniciavam as moças nos conhecimentos necessários, como francês, piano, leitura. 26 A sogra de Argemiro parece satisfeita com o nível de instrução da neta: “(...) ela lê... e escreve... e demonstra muito jeito para a música. Afinal, não se educa para doutora nem para professora. No meu tempo não se exigia tanto...” (Ibid., p. 50). Desse comentário vê-se claramente quais eram os papéis destinados à mulher, que, certamente, não incluíam a preocupação com o exercício de alguma profissão. O conflito entre o antigo e o novo reflete-se na pouca importância dada à instrução pela baronesa, ao que Argemiro responde: “_ Não é razão. A mulher hoje precisa ser instruída, solidamente instruída (...) e eu quero, ou exijo que minha filha o seja” (Ibid., p. 51). Mesmo que o maior interesse do pai de Glória seja com a aprendizagem das habilidades necessárias para torná-la uma moça educada nos padrões burgueses, sua fala parece servir para que a autora revele, através do uso do espaço ficcional, a sua opinião sobre a condição feminina, posicionando-se contra o que considerava limitador para a mulher. Ela não vai deixar, entretanto, de estar negociando com os valores do mundo masculino. Já foi colocada, neste trabalho, a importância da mulher para o estabelecimento do modo de vida burguês, uma ordem social bem diferente daquela que a baronesa viveu em seus tempos de mulher aristocrática, quando não se enfatizava a responsabilidade da mulher na condução da família e da sociedade. Para a baronesa, o estudo é um grande sacrifício que oferece poucas compensações: (...) Andar atrás de uma pobre criança o dia inteiro, fazendo-a conjugar verbos e compor e recompor orações gramaticais, atirando-lhe para dentro da cabeça nomes de terras e complicações matemáticas; curvar-lhe a espinha em cima de mapas e linhas geométricas, cansar-lhe a vista antes de tempo roubando-lhe a liberdade que dá saúde, alegria e ousadia, olhem que não me parece obra de amor nem de caridade! Eu cá por mim, confesso: fujo da sala de estudo quando vejo meu marido chamar a neta para a lição... (Idem) O advogado Argemiro está convicto de que já passa da hora de oferecer à filha uma formação mais ampla e sistemática. Ele argumenta com a sogra: _ Precisamos prepará-la [Glória] para o futuro, que é sempre incerto. Imagine que um dia, que infelizmente há de vir, faltem a nossa Glória os seus cuidados, os do avozinho e os meus...que será dela se for uma ignorante, ela é tão impulsiva e... tão geniosa; hein? (Idem) Ao que a sogra rebate, promovendo o seguinte diálogo: _ Quando isto acontecer, para longe o agouro, sua filha estará casada! _ Estará ou não. E se for mal casada? Se o marido esbanjar toda a sua fortuna e a atirar depois às ortigas? 27 _Glória casará bem, com um homem que a ame e a respeite. Não faltava mais nada. Minha neta mal casada! Pobre... desprezada... precisando trabalhar para viver... que coisa horrível! _O que é horrível (...) não é trabalhar; é não saber trabalhar! (Ibid., p. 52) Todo este trecho revela por parte da baronesa uma postura extremamente conservadora; afinal, cabe a ela, dentro do enredo do romance, o papel de resguardar as velhas estruturas patriarcais, das novas concepções. Fica evidente a sua certeza de que o casamento – única aspiração feminina e destino natural de toda mulher – seria, por si só, garantia de segurança e estabilidade para a mulher. Embora Argemiro não esteja disposto a ultrapassar os limites estabelecidos pela sociedade, sua resposta denota uma consciência bastante crítica dessa sociedade e afinada com a nova mentalidade que surge com a ascensão da burguesia. Sua fala procura, ainda, enfatizar a necessidade de a mulher estar preparada para todo tipo de adversidade, exercendo, inclusive, algum tipo de tarefa remunerada. Esse discurso procura tirar do trabalho exercido por mulheres o estigma de atividade vergonhosa. É sabido que essa maneira de pensar é um resquício do sistema escravagista. Acredito que ao criar um personagem burguês que pensa de forma coerente sobre a possibilidade de sua filha ter de trabalhar e, para isto, ter de adquirir instrução, a autora está procurando, através da sua produção literária, derrubar antigos preconceitos e mostrar que o acesso ao conhecimento e o trabalho digno e honesto são importantes e só trarão benefícios para a mulher, seja ela burguesa ou não. Ao tornar visível o problema da educação da mulher, o romance contribui para corrigir uma visão atrasada sobre essa questão e bastante comum na época, que se expressa na fala da baronesa Luíza. A narrativa prossegue e, apesar da contrariedade da baronesa, Maria da Glória passa a freqüentar a casa do pai durante os finais de semana. A partir desse momento, Alice começa a vivenciar duas situações opostas que vão acrescentar ao enredo um clima de expectativa e tensão. O conflito vai se estabelecer entre as opiniões negativas da baronesa sobre a governanta - que inicialmente vão influenciar o comportamento de Glória - e as opiniões positivas de Argemiro sobre as habilidades domésticas de Alice. Enquanto a filha se comporta com rebeldia, deixando transparecer uma forte antipatia por Alice, o pai já percebe claramente a influência positiva da governanta na organização de sua casa. O resultado dessa situação conflituosa é que, na mesma proporção em que cresce o ódio da baronesa por Alice, também cresce a admiração de Argemiro e, mais tarde, a de Glória por ela. Na mesma medida em que se amplia a influência de Alice sobre pai e filha, diminui a influência da baronesa sobre eles, metaforizando a 28 decadência da ordem aristocrática que foi substituída pela ordem burguesa. O mais interessante é que a falta de voz e a invisibilidade de Alice não impedem que sua imagem seja evocada o tempo todo pelos outros personagens e que se torne conhecida para o leitor. É em torno da sua figura e das conseqüências das suas ações que toda a narrativa se desenrola. Esse é um dos pontos que revela a habilidade narrativa de Júlia Lopes. A baronesa Luíza tentará de todas as formas atingir negativamente a imagem de Alice. Para impedir o crescente aumento do poder de sua rival, ela recorre a uma cartomante e alia-se a Feliciano - empregado revoltado com a sua condição social para quem a presença de Alice passou a representar um grande prejuízo, pois antes ele dispunha de liberdade e intimidade com a casa e com as coisas do patrão, valendo-se indevidamente dessa situação. A chegada da governanta atrapalha os planos de Feliciano, e Alice passa a ser vista por ele como uma ameaça a sua irresponsabilidade. Todas as iniciativas da baronesa para atingir a governanta só produzem um resultado: aumentam a sua vulnerabilidade e anulam sua antiga dignidade com a diminuição gradativa do seu poder. O desgaste físico e emocional da avó de Glória é enorme e, ao final, sua imagem passa a suscitar no leitor um misto de pena e repulsa: (...), quando a avó de Glória apareceu na sala, notou toda gente que ela estava pálida, com olheiras pisadas e um sorriso forçado que não conseguia levantar-lhe os cantos da boca fatigada. A carne pálida e flácida do pescoço descaíalhe sobre as rendas da gravata (...). Os cabelos brancos (...) iluminavam de reflexos de prata a sua fronte amargurada, em que o pensamento parecia perder-se no labirinto das rugas (Ibid., p. 147-148). Os únicos que estão ao lado da sogra de Argemiro, ao término da história, são o marido e o padre Assunção. A aliança do padre com a baronesa é significativa e representa, por extensão, a aliança da Igreja com a nobreza no plano do contexto social; com o advento da República e da assimilação de valores liberais, estas duas classes perderam muito de sua influência na sociedade. O papel de Assunção é importante dentro do romance por ser ele a pessoa que descobre o passado de Alice. A jovem era filha de advogado e neta de general. Sozinha no mundo, é a única responsável por um casal de antigos empregados que lhe são dependentes. Apesar de estar pobre, ela possui instrução acima do esperado para uma mulher naquela época. É através desse conhecimento e da habilidade em administrar um lar que ela se põe a trabalhar e, assim, ascende socialmente, mudando a sua condição de governanta para a de dona da casa. 29 Mais uma vez, a autora utilizará o enredo de uma de suas obras para fazer a apologia do trabalho digno e honesto. Enfatizo que a primeira década do século XX ainda estava sob o impacto da Proclamação da República e das transformações sociais dela decorrentes. Assim, o trabalho será estimulado como meio natural para promover a ascensão das classes emergentes. No caso de Alice, pertencente à média burguesia, esse trabalho ainda é mais justificado pelo fato de, por meio dele ela poder manter-se e ainda auxiliar os antigos empregados. Outro ponto interessante, observado por Elódia Xavier, é que o trabalho nesta narrativa de Júlia Lopes - assim como em outras - tem função terapêutica, ou seja, através dele a ordem familiar no lar do viúvo Argemiro é restabelecida. A atuação pedagógica de Alice sobre Maria da Glória é bastante eficiente, inserindo a menina no padrão de educação concebido na época: costura, bordado, decoração do lar, música, francês, além de transmitir-lhe - através do diálogo e da vivência de situações práticas - valores humanitários e atitudes de caridade para com os menos afortunados, despertando-lhe sentimentos tidos como naturalmente femininos: Maria aproveitava sempre as segundas-feiras em passeios, uma vez ao Jardim Botânico, outras aos asilos (...) trazendo sempre impressões bem definidas e em que se percebia uma direção cuidadosa e inteligente. A pouco e pouco a criança ia-se tornando mais observadora e mais piedosa. O padre Assunção (...) sentia (...) que esses passeios através da cidade desenvolviam melhor o espírito e o coração de Maria do que o mais volumoso livro de moral (ALMEIDA, op. cit., p.113). Em A intrusa, uma figura se destaca no universo da representação feminina, contrapondo-se ao modelo de mulher abnegada e resignada. Trata-se da Pedrosa que, como o nome sugere, se comporta como uma espécie de “homem de saias”. Essa imagem opõe-se ao perfil feminino consagrado na literatura do período, em que se cultuam as mulheres dóceis e submissas. Pertencendo à classe dominante, a personagem caracteriza-se pela determinação com que diz o que pensa e faz o que pode para alcançar os seus objetivos. Graças a sua influência, ela consegue fazer do marido deputado, senador e, depois, ministro. A Pedrosa movimenta-se com desenvoltura entre os espaços público e privado, entre o ambiente social e o político. Através da representação dessa personagem, a autora constrói uma narrativa que revela grande maturidade artística, mesclando à apresentação do comportamento social uma crítica bastante lúcida a esse comportamento. Ao dizer, por exemplo, que “a esposa [Pedrosa] instigava-o [ o marido] a ir ao encontro das posições aparatosas da alta política” (Ibid., p. 35), Júlia Lopes divulga uma imagem desconhecida para a mulher daquela 30 época - a mulher estrategista e de iniciativa. Observe-se o comportamento da Pedrosa: “Vingava-se [Pedrosa] do Destino a ter feito mulher, (...). Não era bonita, mas a sua expressão de desafio que agradava aos homens e irritava as mulheres, tornava-a talvez um tanto original. Gostava de impor a sua autoridade” (Idem, p. 35). Está claro que a autora tem consciência de que o “destino de mulher” é bastante cruel e de que não há muito o que fazer para mudá-lo. No entanto, promove – por meio da voz dessa personagem – ,uma crítica à ordem patriarcal, ao mostrar o uso de certos estratagemas como a única alternativa que a própria sociedade oferece à mulher para que ela possa, de alguma forma, se afirmar e vingar-se desse destino. Isso fica evidente nesta fala da Pedrosa com a filha: _ Se não fosse a minha tática, pensas que teu pai teria alcançado as posições que tem tido? (...) Só pelos merecimentos, sem um pouco de manha, ninguém faz nada neste mundo!... (...) Faço tudo com muita diplomacia; sei disfarçar a minha vontade, fazê-la triunfar sem que ninguém perceba. É um dom peculiar e que eu desejo transmitir-te (Ibid., p. 123, adaptado). A autora ainda revela, de forma um tanto romântica, as manobras usuais para se garantir bons casamentos. Sinhá, a filha de Pedrosa, influenciada por sentimentos românticos, sente-se envergonhada e constrangida com a exposição a que a mãe a submete na esperança de vê-la casada com Argemiro: “Tinha pensado muito desde aquele passeio ao Corcovado e começava a compreender o seu papel... A mãe ofereci-a [sic] ao Argemiro... era por causa dele que lhe pusera nas orelhas aquelas pérolas, que pareciam queimá-la...” (Ibid., p. 152). Após essa constatação, ela nega-se a ser objeto de transação - forma como a mãe enxerga o matrimônio - e acaba por encontrar um verdadeiro amor. Um outro aspecto denunciado é o preconceito - de quase todas as figuras masculinas do romance - em relação às mulheres. Essa atitude revela-se na fala dos amigos de Argemiro, na fala do barão: “Mas és mulher, e vives mais do sentimento que da razão...” (Ibid., p. 198); na fala do ex-escravo Feliciano que, apesar de ser homem, está subordinado à Alice no comando da casa: “Quem se fia em mulheres está bem servido!... pensava consigo o negro, desandando no seu caminho” (ibid., p. 184); e do próprio Argemiro que assim se dirige à Alice quando vai acertar-lhe as contas: “Os seus cadernos estão numa ordem admirável. Realmente eu nunca imaginei que uma senhora entendesse tanto de contas... é um guarda-livros!” (ibid., p. 298). A surpresa de Argemiro em relação à capacidade intelectual de Alice decorre do fato de que os homens são preparados para ser independentes e para gerir seus 31 negócios, enquanto as mulheres são educadas para depender deles na gerência de suas próprias vidas. Além disso, no imaginário masculino, a mulher é identificada a um anjo ou a uma santa que deve ser admirada e adorada. Era essa, inclusive, a imagem que Argemiro tinha da própria mulher: “Ela perdurava no seu espírito como o conjunto de todas as perfeições. A sua figura esguia e branca, que a cabeleira aureolava de ouro pálido, plantara-se no seu coração” (Ibid., p. 84). Essa visão do feminino, entretanto, não o impede de elogiar a formação de Alice, inclusive bem mais completa que a da falecida esposa, pois, além de ser uma excelente administradora do lar, possui amplo conhecimento cultural e conseguiu corrigir a sua filha “de feios vícios da educação” (Ibid., p. 211). Será esse o perfil de mulher educada que o ideário republicano consagrará e que a levará, dentro do contexto burguês, a ter um pouco mais de destaque na sociedade. Paralelamente à questão da condição feminina, Júlia Lopes expõe as hipocrisias sociais e, sutilmente, critica o mecanismo do favor, do oportunismo entre os funcionários e políticos - e as relações baseadas apenas no interesse, que imperavam na sociedade carioca. Não é de se espantar que essas relações influenciassem o comportamento feminino; assim, o narrador, em vários momentos, vai se posicionar, em relação à condição feminina, aceitando e, ao mesmo tempo, recusando os valores vigentes. Essa acaba sendo uma estratégia para se questionar o sistema patriarcal sem, no entanto, desautorizá-lo. É por isso que, ao final do romance, o comportamento transgressor da Pedrosa é punido e o comportamento adequado de Alice é premiado com o casamento. Ao término do romance, a autora ainda surpreende o leitor, revelando a paixão secreta do padre Assunção por Maria, a primeira mulher de Argemiro. Diante da decisão do seu amigo de infância de casar-se com a mulher que ele amava, Assunção acabou abraçando o sacerdócio e zelando por Glória como se ela fosse sua filha. O fato de se ter na história um personagem que representa o clero permitiu que algumas críticas fossem feitas à Igreja, como no seguinte fragmento em que o personagem Caldas opina sobre o sacramento da confissão: _ Bonitas coisas você deve ter ouvido padre! A mim o que espanta e revolta, é que ainda haja pais e maridos que consintam nessa abominação do confessionário. A religião não poderia ter inventado coisa mais vil nem mais repugnante. (...) A minha confissão é que tu não ouves, padre! (Ibid., p. 186) Vê-se aí o confronto entre o pensamento liberal e republicano com o conservadorismo e tradicionalismo da Igreja, expresso em palavras carregadas de 32 indignação. Esse tipo de posicionamento da autora se repetirá em outro romance seu, A Silveirinha. Muita coisa poderia ainda ser dita a respeito de A intrusa – romance tão rico e aberto a tantas leituras. No entanto, é preciso finalizar esta análise que procurou privilegiar a relação da mulher – tema central de toda a trama - com a questão da educação feminina. O trabalho feminino tornou-se um ponto importante dentro da narrativa, pois é ele – conseqüência da formação de Alice - que possibilita a sua ascensão social. Convém ressaltar que, a partir da segunda metade do século XIX, o culto da domesticidade será reforçado no meio literário em conseqüência da valorização dos ideais burgueses. Essa tendência também se reproduzirá nos textos de Júlia Lopes. A ascensão de Alice se dará através do trabalho dentro do espaço doméstico algo natural na perspectiva do século XIX, mas que acaba sendo visto como redutor, limitador para as mulheres empenhadas em expandir seus direitos. Entretanto, o que considero interessante é que essa melhoria da sua condição social ocorre em virtude da educação da personagem. Um dos aspectos que a autora mais enfatiza nessa formação é o amplo conhecimento cultural da governanta. Alice não estava preparada só para lidar com a casa. Lembremos a surpresa de Argemiro ao descobrir que sua governanta lia em inglês. Essas qualidades permitirão que a sua atuação se projete até o universo público, alcançando os círculos elegantes da sociabilidade carioca, sobretudo os salões, que mediavam o encontro da esfera privada e da pública, onde muitas questões relativas a esta última eram resolvidas. Seduzido por todos esses predicados, Argemiro apaixona-se por Alice e a premia com o casamento. Acredito que a mensagem da autora pretende valorizar a educação feminina e promover o abandono dos preconceitos lançados à mulher que trabalha. Interessa-lhe divulgar uma imagem de mulher que está preparada para enfrentar os obstáculos, não importando a sua classe social. Com isso, reduz-se o estereótipo da mulher absolutamente dependente e sem nenhuma iniciativa, e projeta-se um novo perfil feminino, mas adequado às mudanças sociais. Entretanto, o que importa, no final, é a felicidade doméstica e familiar. E essa é uma preocupação da autora em sua vida e em sua obra. Para Júlia Lopes, a preservação da família está, indiscutivelmente, atrelada à educação da mulher. No contexto da obra, essa noção é reforçada pelo trabalho de uma mulher educada, que transforma uma casa em um lar: ao casar-se com Alice, Argemiro, recupera, finalmente, sua filha e a sua família. Essa solução revela a estratégia do avanço e 33 do recuo através da qual a autora negocia com o mundo masculino, mesclando às inovações posições ainda conservadoras. A oposição que se estabelece entre Alice e a baronesa serve para evidenciar opiniões retrógradas sobre o papel feminino e a incoerência delas no novo contexto que se estabelece. Em razão do ambiente histórico-social, é inevitável que nossa autora procure acomodar suas idéias aos valores da época reforçando, em certos momentos, o discurso dominante. Mas a consciência da perversidade do “destino de mulher” está latente nas entrelinhas, nas ironias, nas críticas diretas e ferinas. Provavelmente ainda não havia chegado o momento certo para se questionar, de forma contundente, o papel da mulher na sociedade, mas os primeiros sinais estavam sendo dados... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Júlia Lopes de. A intrusa. 2ª ed. Porto: Livraria Simões Lopes, 1935. BERNARDES, Maria Thereza C. C. Mulheres de ontem? Rio de Janeiro – século XIX. São Paulo: T. A. Queiroz, 1989. MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. 1897-1914. 2ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1996. (v.5) SHARPE, Peggy. Introdução à re-edição de A viúva Simões. In: ALMEIDA, Júlia Lopes de. A viúva Simões. Florianópolis: Mulheres, 1999. TELLES, Norma. “Escritoras, escritas, escrituras”. In: PRIORE, Mary Del. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. VIEIRA, Marly Jean de A. P. Do privado ao público – Júlia Lopes e a educação da mulher. Dissertação de mestrado defendida em junho de 2003, UnB-DF. XAVIER, Elódia. Declínio do patriarcado – a família no imaginário feminino. Rio de Janeiro: Record/Rosa do Tempos, 1998. XAVIER, Elódia. Introdução à re-edição de A intrusa. In: ALMEIDA, Júlia Lopes de. A intrusa. Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Livro/ Biblioteca Nacional, 1994. XAVIER, Elódia. “Júlia Lopes de Almeida: o discurso do outro”. In: Travessia nº 23, UFSC, 1992. P. 178-184. 34 35 NÓS, POETAS DE NOSSAS VIDAS?: DESEJO E HOMOEROTISMO EM BERKELEY EM BELLAGIO, DE JOÃO GILBERTO NOLL. Marcos de Jesus Oliveira16 RESUMO: O presente trabalho se debruça sobre o modo pelo qual desejo e homoerotismo emergem em Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll, evidenciando a centralidade dessas duas categorias para a compreensão da proposta estética do autor. Como processos reorganizadores de formas tradicionais de sociabilidade, de política e de identificação, o desejo e o homoerotismo conseguem desvincular o “eu” dos discursos da biologia, da natureza e até mesmo dos padrões de normalidade, rumo a novas formas de existência e subjetividade. Por isso, essas questões são articuladas à estética da existência nos termos propostos por pensadores como Nietzsche e Foucault. PALAVRAS-CHAVE: João Gilberto Noll; Berkeley em Bellagio; homoerotismo Desde que o escritor gaúcho João Gilberto Noll despontou no cenário literário brasileiro com o livro de contos O cego e a dançarina, em 1980, seus trabalhos têm sido aclamados unanimemente por seus leitores e pela crítica. Essa última tem abordado sua obra, principalmente, a partir das teorias do pós-moderno (DUSI, 2004, p. 17), motivada possivelmente pela idéia de que as narrativas nollianas seriam marcadas por certa recusa aos valores culturais, estéticos e ideológicos, que estão no centro do debate sobre a modernidade e a pós-modernidade (MAGALHÃES, 1993). Dentre o amplo espectro de temas explorados pela crítica, vale mencionar a questão do corpo, sobretudo, em sua relação com o erotismo e a transgressão,17 e as noções de espaço18 e de tempo. Ainda em relação aos críticos de João Gilberto Noll, é relevante destacar que alguns deles afirmam que a obra do escritor reflete a falta de consciência e o fracasso existencial do homem contemporâneo. Daí, em seus escritos, a recorrência de personagens cujas identidades estão sempre à deriva; sujeitos supostamente fragmentados e incapazes de estabelecer uma narrativa coerente do “eu” que confira significado e sentido a sua própria existência.19 O fracasso existencial do homem pós-moderno a que se refere a crítica – presentificada na obra do autor gaúcho por meio de personagens “inadequado[s] ao meio em que vive[m]” 16 Graduado em Letras pela Universidade de Brasília (2006). Mestre em Literatura pela Universidade de Brasília (2008). Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília, desenvolvendo pesquisa sobre os usos sociais da diferença sexual na contemporaneidade. Principais áreas de interesse: gênero/sexualidade em interface com a psicanálise e o pensamento social contemporâneo. 17 Um dos estudos pioneiros nesse sentido é “Corpo e transgressão no romance pós-moderno”, de Adriano Alcides Espíndola (1989). Vale ainda destacar “A transgressão erótica na obra de João Gilberto Noll”, de Norberto Perkoski (1994) e, mais recentemente, “Body, corporeal perception and aesthetic experience in the work of João Gilberto Noll”, de Aquiles Ratti Alencar Brayner (2006). 18 De modo geral, a discussão em torno do espaço nas obras de Noll aparece ligada à dimensão temporal. Vários trabalhos sinalizam essa perspectiva: “Um passeio pelos espaços de O processo de Franz Kafka e O quieto animal da esquina de João Gilberto Noll”, de Sandra Schnaider (2003); “Canoas a Céu Aberto: experiência de espaço em Canoas e Marolas e A céu aberto de João Gilberto Noll”, de Rosseana Mezzadri Dusi (2004). 36 (CARREIRA, 2007, p. 72) – seria sintoma de uma nova ordem global, que geraria a perda da noção de história e, como conseqüência, geraria também a impossibilidade de tornar o vivido um saber organizado e significativo. Diana Klinger, ao comentar as obras de Noll em seu conjunto, expressa, de forma bastante eloqüente, essa perspectiva, quando afirma, por exemplo, que as viagens dos personagens, na verdade derivas e perambulações sem rumo, não estão dotadas de nenhuma função libertadora, edificante ou pedagógica; não oferecem ao personagem nenhuma formação, nenhuma Bildung, nenhum enriquecimento. (KLINGER, 2005, p. 60) Não se trata, conforme veremos, de personagens que perderam a capacidade de, a partir de suas próprias experiências, formar uma consciência individual. Tratase, ao contrário, de uma nova forma de consciência. Uma consciência mais fenomenológica, ou seja, não mais ancorada no cogito cartesiano e que, portanto, se constitui por um constante jogo de (re)criação de espaços sociais, cujo dinamismo é posto em ação a partir de uma pluralidade de práticas e de desejos entre homens same-sex oriented. Os encontros sexuais e afetivos entre homens – tais como aparecem na narrativa – reorganizam ou, como queiram alguns, desorganizam as formas tradicionais de sociabilidade, de política e de identidade. Por isso, esse trabalho visa a discutir como os personagens de Berkeley em Bellagio, fortemente marcados por um jogo de (des/re)territorialização de agenciamentos e de intensidades psicossociais recusam criar para si uma narrativa coerente e orientada por um senso de história, negando, assim, qualquer ontologia e/ou metafísica em torno do sujeito. Nessa recusa em encontrar ou em constituir para si uma identidade estável e ancorada em representações sociais que instituem e impõem aos indivíduos modelos de identidade hegemônicos e dominantes, muitos dos personagens das obras de Noll e, em especial os de Berkeley em Bellagio, conseguem se “desprender” das relações de poder, nas quais os padrões identitários, em geral, estão imersos. Disso segue que os personagens parecem transformar suas vidas em uma obra de arte, em um jogo incessante de criar-se e recriar-se a si mesmo, dissolvendo os limites entre vida e arte, em que desejo e homoerotismo assumem um papel importante. E é nesse sentido que, ao substituir a autoridade pela experiência, se vê o desenho de uma estética da existência nos termos propostos por pensadores como Nietzsche e Foucault. 19 Cf. AVELAR, 2003. 37 IDENTIDADE, TEMPO E ESPAÇOS FRAGMENTADOS: DESEJO E HOMOEROTISMO O enredo de Berkeley em Bellagio é razoavelmente simples. João, narradorprotagonista é um escritor brasileiro que se aproxima dos sessenta anos e que, como professor visitante da Universidade de Berkeley, na Califórnia, recebe um convite de uma fundação americana para elaborar um romance numa residência de escritores em Bellagio, na Itália. Não obstante, a aparente simplicidade oculta uma narrativa recortada pela força do desejo, a partir do qual se ensaiam novas formas de subjetividade e de possibilidades de encontro com o outro. Para entender como a problemática do desejo emerge no comportamento e nas vivências dos personagens, bem como a relação desse conceito com o de identidade e de homoerotismo, é importante ressaltar que denomino desejo, seguindo a sugestão do psicanalista francês Félix Guattari, “a todas as formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção do mundo, outros sistemas de valores.” (GUATTARI, 2005, p. 261).O conceito de desejo proposto por Guattari se distancia não tão-somente daqueles informados, direta ou indiretamente, pela tradição judaico-cristã,20 na qual grande parte da cultura ocidental está mergulhada e que tem alimentado o imaginário social, bem como da noção de desejo proposta pelo psicanalista francês Jacques Lacan, cujo pensamento dá continuidade à concepção filosófica clássica – Platão, Kant, Hegel – do desejo como falta.21 Se a perspectiva presente na tradição judaico-cristã costuma atribuir ao desejo toda uma aura de vergonha e de culpabilização, colocando-o na ordem do instinto animal, ou seja, como algo que precisa, necessariamente, ser controlado e reprimido; a perspectiva lacaniana apresenta problemas de outra ordem.22 Fugiria aos objetivos deste trabalho desenvolver a complexidade e a riqueza do pensamento lacaniano; no entanto, cabe ressaltar que subjaz ao seu modelo teórico uma concepção de desejo, na qual se definem domínios ontológicos bastante estreitos. Para Lacan, o processo de simbolização decorre de certas linhas 20 Poderíamos resumir, usando as palavras de Marilena Chauí (1990, p. 36), que “o desejo [para a tradição judaico-cristã] por ser cisão e perturbação da alma, é desmedido e ‘aquilo que é excessivo não pode ser natural’, pois a Natureza, sempre sabia, é medida e proporção, concórdia consigo mesma. Não sendo natural, o desejo é mera opinião, juízo fantasioso sobre o bem e o mal e por isso mesmo não pode ser favorável à virtude, pois sendo falsa opinião e desmedido, é contrário à razão.” 21 Crítica feita por Gille Deleuze e Félix Guattari em O anti-Édipo, no qual afirmam que “ao desejo não falta nada, não lhe falta o seu objecto. É antes o sujeito que falta ao desejo, ou o desejo que não tem sujeito fixo; é sempre a repressão que cria o sujeito fixo.” (DELEUZE & GUATTARI, 1972, p. 31) 22 É correto afirmar que há certa continuidade entre a experiência ética da tradição judaico-cristã e da psicanálise lacaniana. Tanto para tradição cristã, conforme pode ser visto em Confissões, de Santo Agostinho (2003), bem como para a psicanálise lacaniana, conforme aponta Joel Birman (2000), a questão da renúncia é um aspecto crucial. 38 de força – irredutíveis e a-históricas –, cujas estruturas organizam, previamente, todo e qualquer campo possível da experiência humana. Em seus próprios termos: Antes de qualquer experiência, antes de qualquer dedução individual, antes de mesmo que se inscrevam as experiências coletivas que só são relacionáveis com as necessidades sociais, algo organiza esse campo, nele inscrevendo as linhas de força iniciais. (...) Antes ainda que se estabeleçam relações que sejam propriamente humanas, certas relações já são determinadas. Elas se prendem a tudo que a natureza possa oferecer como suporte, suportes que se dispõem em temas de oposição. A natureza fornece, para dizer o termo, significantes, e esses significantes organizam de modo inaugural as relações humanas, lhes dão as estruturas, e as modelam. (LACAN, 1995, pp. 25-26) As linhas que organizam e estruturam as montagens e os limites da subjetividade desejante estão, na psicanálise lacaniana, intimamente, relacionadas aos complexos de Édipo e de castração. Isso porque, ao retomar a famosa tese de Lévi-Strauss a respeito da lei de interdição do incesto como fundamento da cultura, Lacan a descreve como o recalque originário, fundador do sujeito do inconsciente. Assim, a experiência de perda induzida pelo interdito do incesto representa a condição sine qua non de emergência do sujeito dito humanamente normal e de sua inscrição no registro da linguagem e do desejo, visto que dela resulta o recalcamento da relação primária com o corpo materno, na qual o objeto primitivo de desejo, isto é, a Coisa materna (das Ding), passa a existir apenas como objeto para sempre perdido; indefinidamente, buscado, mas nunca (re)encontrado. Por outras palavras, a entrada na ordem simbólica se dá pela instauração de um vazio, uma falta: O que encontramos na lei do incesto situa-se como tal no nível da relação inconsciente com das Ding, a Coisa. O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito pois ele é o fim, o término, a abolição do mundo inteiro da demanda, que é o que estrutura mais profundamente o inconsciente do homem. É na própria medida em que a função do princípio do prazer é fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas que não poderá atingir, que nesse ponto reside o essencial, esse móvel, essa relação que se chama a lei da interdição do incesto. (LACAN, 1988, pp. 87-88) A isso convém acrescer que a operação pela qual um significante, denominado por Lacan de Nome-do-Pai, cuja significação é ignorada pelo sujeito, mas sem o qual estaria fadado à psicose (LACAN, 1999, p. 149 e segs.), faz surgir o falo, que tem por função mediatizar a relação da criança com a mãe, desempenhando aí um papel fundamentalmente estruturante. Como “significante destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de significado” (LACAN, 1990b, 39 pp. 697), o falo se encontra, indissoluvelmente, vinculado ao complexo de castração inconsciente, que, segundo Lacan, tem uma função de nó: [...] a instalação, no sujeito, de uma posição inconsciente sem a qual não poderia identificar-se com o tipo ideal de seu sexo, nem tampouco responder, sem alguns graves incidentes, às necessidades de seu parceiro na relação sexual, ou até mesmo acolher 23 com justeza as da criança daí procriada. Ora, entre os aspectos mais sobressalentes de Berkeley e Bellagio está o constante jogo de (re)criação de espaços sociais, cujo dinamismo é posto em ação a partir de uma pluralidade de práticas e de desejos entre homens same-sex oriented. Em termos mais precisos, a narrativa expõe o caráter historicamente contingente das relações sociais, evidenciando, por exemplo, que a família nuclear burguesa é apenas uma configuração histórica, já em decadência na atualidade. Contra o simbólico a-histórico dos psicanalistas e, em decorrência, contra o imaginário familialista e a perspectiva do desejo como falta, a narrativa revela que quando, de volta ao Brasil, João reencontra Léo, seu antigo namorado, e Sarita, filha de Leo, passando a viver juntos. O desejo de relação com o outro que conduz os personagens a experimentos relacionais para além do modelo triangular edípico clássico não surge de um suposto vazio ou da suposta busca pela completude para sempre perdida, mas do próprio desejo. Em outras palavras, o desejo é potência, não é a finalidade ideal a que se quer aceder. São os desejos que afloram sensibilidades e criam novos estilos de vida e, por isso, têm a satisfação como seu ponto de partida: (...) quando Sarita então choramingava pedindo a proteção do pai ou então a minha, nunca se sabia o premiado da manhã, assim jantávamos, eu dizia, mas às vezes com uma presença a mais, a sombra passageira insinuando que todo aquele quadro poderia expirar a qualquer hora. Sarita estava ali comigo, pois é, com o seu outro pai, nem primeiro nem segundo, mas esse outro que deveria lhe passar a impressão de que tudo o que vinga na vida vem em duplo! (NOLL, 2002, p. 98) Assim o modelo burguês de família como índice dos limites e dos alcances dos processos de subjetivação ditos normais é apenas uma construção ilusória, uma tentativa de normalização social dos sujeitos. A crítica de Berkeley e Bellagio a esse “imaginário familialista” – cuja tendência é ver o triângulo edípico como universal e necessário – abre espaço a novas formas de sociabilidade, nas quais se negociam ambiguamente os territórios da conjugalidade, da família e do amor. Por isso, é 23 LACAN, 1990b, p. 692. 40 importante destacar que não há nos personagens uma vontade de normalização, isto é, de integração ao modelo dominante de família, mas uma disposição antinormalizadora de vivenciar a realidade, valendo-se das possibilidades abertas por essa atitude: Falo de um quadro em que estaríamos sem pensar, incluindo a pequenininha, e assim continuaríamos não pedindo nada além do que o dia nos apresentasse, pouco, muito pouco para muitos, até demais para nós, que talvez precisássemos de muito, muito menos, apenas esse roçar de dois corpos completos (...) Havia naquele apartamento três vidas para preservar, pouco mais que isso, e para tanto éramos ali bons operários, sem demonstrar nenhum fervor esparramado. (NOLL, 2002, pp. 92-93) E, mais adiante, continua: Eu e Léo porém começávamos a perceber que o desejo em demasia enfraquece, paralisa, e que o melhor mesmo era a paciência, preparar o dia seguinte sem pensar nele como um esposo que necessariamente nos dará mais do que pedimos. O que é que pedíamos, hein? Antes de me responder, se é que chegaria a tanto, Léo corria para atender Sarita que chorava acordando da sesta (...) (NOLL, 2002, p. 93) Estaríamos diante de uma tentativa “de emancipação das normas de representação”24, com vistas à criação de modalidades de percepção que desfaçam “a teia de aranha do papai-mamãe”?25 Ou, no caso da relação entre João e Léo, em uma busca de novos modos de pensar os encontros amorosos, de experimentar as fronteiras ambíguas e frágeis desse sentimento – “líquido”, no dizer de Bauman (2004) –, cujas exigências de eternidade não passam de uma forma de imputar violência ao outro? Diante de um jogo do fort/da, no qual se ergue o desejo, ao invés de rebatê-lo, deslocando-o no tempo, desterritorializando-o, fazendo proliferar suas conexões, fazendo-o passar para outras intensidades? Minha aposta é de que se trata de uma reinvenção das formas tradicionais de comunidade, cujos deslocamentos apontam para uma outra economia, uma outra gramática na qual o dar não pressupõe o receber (DERRIDA, 1991) ou, ao menos, nem sempre o pressupõe. O desejo se revela aí em seu sentido produtivo, como o modo de construção de algo, como ampliação das constelações referenciais, como multiplicidades, polifonias e heterogeneidades (GUATTARI, 1992). Por isso, a proposta de Gille Deuleze e de Félix Guattari me parece uma alternativa bastante profícua para se pensar como as narrativas contemporâneas têm lidado com a problemática da 24 RANCIÈRE, 1996, p. 68. 25 DELEUZE & GUATTARI, 1972, p. 117. 41 suposta fragilização dos vínculos sociais que, segundo algumas visões apocalípticas,26 teriam acarretado a exacerbação do individualismo, decorrente da falência dos valores e verdades defendidas pelo Iluminismo. Conforme lembra Suely Rolnik (2000, p. 458), em Deleuze e Guattari, encontramos a subjetividade não como algo dado, mas como uma incansável produção que transborda o indivíduo por todos os lados, resultando em um desfilar de figuras que se sucedem, geradas nas miscigenações promovidas pelo nomadismo do desejo. Por isso, a questão do desejo não deve ser colocada mais em termos de uma escolha entre o possível e o impossível, e sim de uma viabilização do trânsito em mão dupla entre o plano virtual das intensidades e o plano atual das formas.27 O desejo de encontro com o outro também está retratado na cena final, na qual o narrador relata a comunicação entre ele e Sarita, levada a cabo pelo balbucio. Aí se entrevê a invenção de novas formas de sociabilidade, relacionamento e comunicação, para além das modalidades tradicionais. Na mesma cena, João ainda relata o contato que Sarita faz com outra menina de uma nacionalidade diferente da dela. Impossibilitadas de falar a mesma língua, no sentido estrito do termo, a comunicação entre elas é feita quando Sarita lhe dá um botão que, provavelmente, arrancara de sua própria blusa: (...) Soltei a mão de Sarita, deixei-a que andasse a caminho da outra. Sarita disse oh, assim mesmo, oh, como se ainda não soubesse falar, virgem de semântica. (...) OH!, como se estalasse o primeiro sentido da espécie, o espanto!, espanto diante do outro com o meu corpo, que podia estar aqui onde eu estou, e eu naquele espaço preciso que ela ocupa agora, oh!, é mais que espanto, ou menos, melhor, bem menos: designa a calma tentação que faz Sarita tirar do bolso um botão perdido, talvez de sua própria roupa, um grande botão vermelho (...) Sarita passava o botão vermelho para a mão da outra menina que olhou pra mim não bem com um sorriso, mas olhou parecendo suspirar pacificada... (NOLL, 2002, p. 103) Essas cenas apontam que, embora a pós-modernidade nos tenha imposto, dada certa proliferação e exaltação da diferença, uma constante sensação de que somos estrangeiros em nosso próprio país ou em nossa própria língua, o desejo de contato é uma das grandes forças capazes de fazer surgir novas formas de comunicação e de relação com o outro, não mais fundadas em sistemas identitários limitadores, mas em sistemas que valorizem a autonomia do processo criador e que restaurem a realidade em toda a sua complexidade. Com essas observações, podemos avançar na discussão da obra e dizer que Berkeley em 26 Refiro-me, por exemplo, à perspectiva de um Christopher Lasch (1991), discutida mais adiante. 27 ROLNIK, 2000, p. 458. 42 Bellagio se constitui por um recorrente devir de ruptura com segmentos sociais e/ou limites históricos. João, narrador-protagonista, ora narrando sua própria história em primeira pessoa, ora em terceira, é um personagem cuja subjetividade está em constante deriva. Trata-se de um personagem desterritorializado sexual, geográfica e temporalmente. Sua desterritorialização temporal aparece, de forma bastante evidente, ao regressar a Porto Alegre após passar algum tempo na Califórnia e em Bellagio; embora a narrativa dê ao leitor a sensação de linearidade temporal e de que ela está sendo escrita no momento em que os fatos estão ocorrendo: Passou-se bem mais tempo do que eu contava. Eu já nem lembrava. Fui para ficar um ano, sei lá, dois, o certo é que fiquei o tempo necessário para que Léo se envolvesse com a norueguesa e com ela procriasse: a menina hoje deve estar com quatro, cinco anos (...) (NOLL, 2002, p. 86) Em relação ao espaço, a desterritorialização está bem descrita, sobretudo, em sua condição de estrangeiro, dimensão que também recorta toda a obra: Esse homem caminhava pelo campus da Universidade, sim, em Berkeley, naquela Califórnia gelada muito embora ensolarada –, e, por um segundo, como quem acorda, lhe ascendeu a dúvida se estava ali chegando do Brasil, ou, ao contrário, se já estava voltando ao Sul do planeta, pra aquela falta de trabalho ou de aceno de qualquer coisa que lhe restituísse a prática do convívio seguro em volta de uma refeição, sob um endereço seguro – “ah esse país, esse país, deixa pra lá, deixa pra lá que agora eu vou mijar, ruminou na sua entonação secreta, aquela sim que nunca soubera levar aos lábios por timidez ou covardia... (NOLL, 2002, p. 10) A desterritorialização sexual, que, por sua vez, também perpassa a narrativa desde o início, pode ser vista na recusa em estabelecer papéis sexuais bem definidos ou uma identidade sexual fixa, coerente ou unitária. João, ao mencionar, por exemplo, que era “Leo, o homem a quem costumava chamar de namorado mas que lhe era bem mais, um parceiro de cuja ardência ainda lhe vinham certos laivos” (NOLL, 2002, p. 9) e, mais adiante, que Maria foi “a moça brasileira que conhecera logo que chegara à Califórnia” (NOLL, 2002, p. 14), parece refletir o debate iniciado pelos teóricos de gênero/sexualidade, no qual se problematizam as noções de masculino e feminino, bem como a idéia de uma identidade ancorada em uma verdade universal sobre o sexo. Por isso, é interessante notar que João, embora se relacione sexualmente com pessoas do mesmo sexo que o seu, não se auto-referencia como homossexual, ou mesmo como bissexual no caso de seu encontro sexual com Maria. João parece 43 consciente de que reivindicar para si o termo homossexualidade é uma forma de legitimar a heterossexualidade, já que, como o vértice de um par binário, essa última não pode existir sem a primeira.28 A ênfase recai sobre a experimentação corporal, movida pelo desejo de extrapolar os limites das práticas sexuais convencionais e, a partir disso, criar novas formas de comunicação e de encontro com o outro: Ela o masturbava sem avidez. Ele enfiava o dedo primeiro com suavidade pela vagina dela e encontrava lá no fundo um pênis em miniatura; quando chegava ali, a coisa já o esperava, em riste, e nela ele mexia como num pênis sem glande ou prepúcio, pura umidade que a promessa de seus dedos tinham o dom de excitar. Naquele ponto ocluso se banqueteavam, até que o seu próprio pau monstruosamente maior viesse a toda e entornasse o leite pelas coxas dela. (...) Seria um quisto provedor de benefícios sem conta, o pau feminino primevo, simétrico aos mamilos masculinos que tanto prazer de carícias poderiam dar a alguns homens? (NOLL, 2002, p. 15) Valendo-se do mesmo raciocínio que Judith Butler (2002) utiliza, ao levantar a hipótese de que uma mulher pode encontrar o remanescente fantasmático de seu pai em outra mulher ou substituir seu desejo de sua mãe em um homem, para questionar os limites das categorias homo/hetero/bi, poderíamos nos indagar em qual dessas categorias o encontro sexual de João e Maria estaria inscrito. No exemplo citado por Butler, a mulher que encontra o remanescente fantasmático de seu pai em outra mulher é heterossexual, homossexual ou bissexual? De forma semelhante, em virtude do modo como o encontro é descrito, que tipo de gozo/prazer sexual é esse, no qual João encontra lá no fundo da vagina de Maria um pênis em miniatura? A narrativa parece indicar que a anatomia não é um referente estável, mas dependente de um esquema imaginário.29 Por isso, parecemme oportunas as palavras de Butler, sobretudo, quando a autora afirma que Desde sempre um signo cultural, o corpo estabelece limites para os significados imaginários que ocasiona, mas nunca está livre de uma construção imaginária. O corpo fantasiado jamais poderá ser compreendido em relação ao corpo real; ele só pode ser compreendido em relação a uma outra fantasia culturalmente instituída, a qual postula o lugar do “literal” e do “real”. Os limites do “real” são produzidos no campo da heterossexualização 28 “Para que o modelo da homossexualidade permaneça intacto como forma social distinta, ele exige uma concepção inteligível da homossexualidade e também a proibição dessa concepção, tornando-a culturalmente inteligível”. [É por isso que] “na psicanálise, a bissexualidade e a homossexualidade são consideradas predisposições libidinais primárias, e a heterossexualidade é uma construção laboriosa que se baseia no seu recalcamento gradual”. (BUTLER, 2003, p. 116) 29 Uso o termo imaginário na acepção dada por Lacan, quer dizer, sob tal categoria situo os fenômenos ligados à preponderância da imagem, da “ilusão”, da fascinação (Cf. LACAN, 1990a). A sexualidade é tributária desse registro, já que, conforme, aponta Laplanche & Pontalis (1992, p. 233), o imaginário é um dos três registros (imaginário, real e simbólico) essenciais no campo da psicanálise. 44 naturalizada dos corpos, em que os fatos físicos servem como causas e os 30 desejos refletem os efeitos inexoráveis dessa fisicalidade. O inconsciente e o desejo têm suas próprias regras, ou seja, aquilo que, do ponto de vista social, é considerado como feminino na cultura não é, do ponto de vista do inconsciente ou do desejo, prerrogativa da anatomia feminina ou vice-versa, estando, por isso, aberto a qualquer sujeito, independente de seu predicado físico. É isso que se observa no trecho abaixo, quando a respeito de seu encontro com Maria, o protagonista revela que Ele [João] não queria lembrar, queria tão-só estar nos bosques de Berkeley diante da brasileira que o fez pela primeira vez vibrar como uma fêmea na cama eternamente redemoinhada de cobertores, travesseiros, lençóis... Mais uma vez perguntava-se a si mesmo se voltando a seu país teria teto, emprego, as famigeradas refeições ou aquela mulher para acompanhá-lo na desdita. (NOLL, 2002, p. 19) Em outras palavras, o inconsciente não conhece a diferença sexual (SOLER, 1998, p. 187-188), isto é, não conhece a anatomia, mas tão-somente pulsões parciais. Por isso, não há complementaridade entre o desejo “masculino” e “feminino”. Essa idéia contida em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), sobretudo, quando Freud acentua o caráter perverso-polimorfo da sexualidade, é radicalizada, em 1915, época na qual o pai da psicanálise reitera que “o objeto de uma pulsão é uma coisa em relação à qual ou através da qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade. É o que há de mais variável numa pulsão e, originalmente, não está ligada a ela” (FREUD, 1991, p. 143). Entretanto, a não-complementaridade entre os sexos aparecerá de forma ainda mais radical no clássico aforismo lacaniano31 de que não existe relação sexual (il n'y a pas de rapport sexuel), reiterado várias vezes em seu seminário Mais, ainda.32 Então, “Se o macho não basta para constituir o homem, nem a fêmea, a mulher, de que modo se instaura o 30 BUTLER, 2003, p. 108. 31 Devo reconhecer minha dívida para com o pensamento psicanalítico, inclusive o lacaniano; este último, alvo de minha crítica no início do presente capítulo. Por isso, cabe esclarecer que minha leitura busca a superação de certos obstáculos teóricos existentes no discurso psicanalítico para pensar a pluralidade de práticas e desejos entre homens same-sex oriented. Em outras palavras, a desconstrução de conceitos de falo, castração, Nome-do-Pai, etc, de modo a pôr em cena aquilo que Derrida (2001) designa de “psicanálise sem-álibi”, isto é, uma psicanálise capaz de se opor ao pensamento da metafísica do sujeito. Assim, minha leitura não reivindica um “retorno a Freud”, no sentido lacaniano, isto é, a busca da verdade sobre o texto psicanalítico, seja freudiano, seja lacaniano; é, antes, uma tentativa de ler a psicanálise, de forma a “salvá-la” da constelação histórica, genérica e universal, nunca caracterizada socialmente, da qual seu edifício teórico é tributário. Dito de outro modo, trata-se de desconstruir aquilo que, elevado a uma espécie de a priori transcendental pelo discurso psicanalítico, é apenas resultado reificado de práticas performativas. 32 Lacan afirma também que “entre os sexos, no ser falante, a relação não se dá”. (LACAN, 1985, p. 90) 45 que aparece como norma heterossexual?” (SOLER, 2005, p. 16). A resposta não pode, obviamente, ser encontrada na própria sexualidade, mas no processo de materizalização dos corpos, isto é, na reiteração forçada das normas de gênero, cujo objetivo é estabilizar através do tempo o desejo no âmbito de uma estrutura heterossexual compulsória. Parece existir uma recusa por parte de João em construir uma identidade sexual, quer calcada na anatomia, quer em qualquer outro suposto referente estável; o que nos permite entrever certa tendência pós-identitária no romance do autor. Essa tendência está inscrita no recorrente questionamento de sua própria identidade, no movimento incessante de indagar-se a si mesmo o que ou quem ele é. Obviamente, não temos nisso uma busca de autoconhecimento, de descobrir quem se é de fato, mas de tornar a identidade uma pergunta, uma pergunta para a qual não se tem resposta. Em outras palavras, a identidade nunca se apresenta como um fato, algo dado; nunca é totalmente explicável e, por isso, a questão persiste como um fantasma que acompanha os pensamentos e experiências do protagonista: quem será esse homem aqui que já não se reconhece ao se surpreender de um golpe num imenso espelho ornado em volta de dourados arabescos, um senhor chegando à meia-idade? (NOLL, 2002, p. 15) (...) e qual percepção eu poderia ter de mim mesmo naquele vão noturno que quase me engole num repente? Quem me responde, e já, se o fato de eu estar aqui andando pelo bosque em plena madrugada me confere alguma garantia de que eu não seja um outro que de fato sou, um estrangeiro de mim mesmo entre norte-americano (embora pisando em solo italiano)? Sou alguém que se desloca para me manter fixo? (NOLL, 2002, p. 36) A recusa de João em construir uma identidade sexual se contrapõe à heterossexualidade compulsória, rompendo com a coerência sexo/gênero/desejo por ela pressuposta. Por isso, a ênfase recai sobre o “uso dos prazeres”, para retomar a expressão foucaultiana. Ou, para colocar em termos psicanalíticos, sendo o sujeito “fundado na pulsão enquanto força, [esse sujeito] é marcado por exigências éticas e estéticas” (BIRMAN, 1996, p. 34), questões abordados com mais detalhe adiante. Por agora, basta dizer que a constituição de uma estilística da existência, isto é, de “uma leitura fragmentar sobre as coisas e perda da crença nos enunciados universais”,33 também parece estar presente no fato de que o romance diz respeito a vidas de homens maduros que quase não falam de seus pais, mães, etc. Quando se 33 BIRMAN, 1996, p. 19. 46 referem à infância, fazem-no apenas para oferecer ao leitor algumas informações que confiram certa cadência narrativa à história, e não para conferir racionalidade teleológica à situação na qual se encontram. Com respeito à descrição das práticas sexuais em detrimento de uma busca identitária que confira coerência e unidade a tais práticas, importa dizer que a apresentação dada por João de seus encontros sexuais ou mesmo da relação com seu o próprio corpo ocorre por meio da valorização de códigos lingüísticos usualmente excluídos de trabalhos literários, trazendo à tona o que poderíamos chamar de “poética da transgressão” (CARREIRA, 2007). Poética que revela, por exemplo, a capacidade do protagonista em inventar formas de linguagem capazes de ir além da clássica referência ativo/passivo, a partir da qual a sociedade confere inteligibilidade às práticas e aos comportamentos sexuais. Nessa poética entrecruzam-se signos ambíguos e incoerentes; admite-se o trânsito, o entre-lugar, o não-lugar, o fora-do-lugar. Esse aspecto fica patente quando João, ao narrar um de seus encontros furtivos com um garçom italiano em Bellagio, denominado por ele de ragazzo, o descreve, de modo a evidenciar como os limites entre profano e sagrado são demasiadamente tênues, ao mesmo tempo em que realiza uma crítica irônica ao discurso religioso sobre a homossexualidade: De imediato tocou na espádua arcaica do peninsular divino, mesmo que o ragazzo não soubesse, não importa, era Deus que ele continha no seu peito arfante, não o Deus que não saía das igrejas mas o Deus que pulsava atrás da calça apertada do ragazzo, o Deus que se aplumava e se punha rígido, colosso! –, o Deus que foi levado pelo escritor porto-alegrense para trás de uma cortina malcheirosa pelo tempo, o Deus que ali se deixou ordenhar como um bovino e que ali se deixou beber não bem em vinho mas em leite que o nosso senhor gaúcho engoliu aos poucos, na carestia da idade, lembrando-se da Primeira Comunhão, terço nas mãos, ar de bemaventurança – de joelhos olhou o ragazzo como se rezasse pelos mortos seus amigos, por aqueles que não mais podiam aproveitar a vida desse jeito, sentindo o gosto áspero que ele não experimentava havia tanto, gosto desse nobre líquido que corre em seus microfilamentos – vários cavalos no páreo até um ter a sorte ou a infelicidade já não sei de fecundar a vítima. (NOLL, 2002, pp. 29-30) A ironia e crítica ao discurso religioso e a outras formas discursivas que censuram a homossexualidade também estão presentes em outros momentos da obra e aparecem simultaneamente à desconstrução da hegemonia heterossexual, privilegiando novos modos de pensar e de experienciar a realidade. Nisso reside a valorização da autonomia e a da autopoiesis do processo criador como enriquecimento processual que escape à prisão da significação estabelecida a priori. O trecho abaixo em tom de crítica aos discursos religioso e científico em relação à 47 homossexualidade – via questionamento da dicotomia homossexual/heterossexual, bem como a referência ativo/passivo – deixa claro esse aspecto: Ao ser pego abraçado a um colega no banheiro, abocanhando a carne de seus lábios, alisando seus cabelos ondulados, ele era o culpado – já o colega, não, nem tanto; ele, sim, apontado como o que desviarão desejo de outros jovens das “metas proliferantes da espécie”. Por que era ele esse emissário de um mundo que os discursos dos padres condenavam ao silêncio sepulcral? Quem era ele afinal, por que se roía a ponto de o levaram para o Sanatório para ali se revolver impregnando-se de choques insulínicos, como se só na convulsão pudesse remediar um erro que ainda não tivera tempo de notar dentro de si? (NOLL, 2002, p. 22) O desejo de saltar as “metas proliferantes da espécie” faz com que João recrie espaços sociais, produzindo novos modos de subjetividade que “se instaura[m] no cruzamento de múltiplos componentes relativamente autônomos uns em relação aos outros e, se for o caso, francamente discordantes” (GUATTARI, 1999, p. 18). Essas discordâncias também estão representadas nas realidades discrepantes com as quais João se depara em suas viagens pelos Estados Unidos e pela Itália. É na deriva e na instabilidade do desejo como modo de ser e de estar no mundo, ou seja, na precariedade de seus relacionamentos (sejam eles com pessoas, seja com nações) que “surgirá [no protagonista] um desejo de fusão, de comunhão e de comunidade que indicará novos campos da afetividade a serem explorados” (VIDAL, 2007, sem paginação), tornando possível a reinvenção de práticas de solidariedade e de encontro. Os personagens se mostram, assim, contrários às representações do homoerotismo como decorrência do “individualismo ou do narcisismo que alguns, com muita pressa, crêem descobrir em nossas sociedades” (MAFFESOLI, 1997, p. 243). Christopher Lasch, sem dúvida, um dos autores que mais se destaca entre aqueles que tendem a equacionar homoerotismo e narcisismo, afirma, em um diagnóstico absolutamente pessimista e sombrio a respeito das novas sociabilidades, que as novas idéias sobre a liberalização sexual – a celebração do sexo orgia, da masturbação e da homossexualidade – brotam do medo predominante com relação à paixão heterossexual e até ao próprio intercurso sexual. O repúdio à monogamia expressa uma compreensão acurada dos efeitos destrutivos da extensão do individualismo possessivo no âmbito emocional. No entanto, ele também expressa uma rejeição da intimidade e uma busca do sexo sem emoção – a “foda sem paixão”, em que “ninguém está querendo provar alguma coisa, sem querendo conquistar algo no outro”. (LASCH, 1991, p. 159) 48 Outros autores, como Elisabeth Roudinesco (2003), também têm utilizado o conceito psicanalítico de narcisismo para entender os novos modos as relações homoeróticas, ainda que, nas análises da historiadora francesa, tal categoria não tenha assumido um tom de “crítica cultural psicologizante e moralizante” (JAMESON, 1996, p. 53), a qual Fredric Jameson, por exemplo, atribui a Lasch. Tais perspectivas são, seguramente, tributárias de uma moral das condutas sexuais associadas à conjugalidade. Entretanto, vale dizer que nem sempre a gramática moral dos comportamentos sexuais esteve vinculada ao ideal conjugal (COSTA, 1992; FOUCAULT, 1988a). Na Grécia clássica, as éticas sexuais estavam ligadas, especialmente, aos amores entre homens e tomavam como padrão não a conjugalidade, mas as relações homoeróticas. A reflexão moral dos gregos sobre o comportamento sexual não procurou justificar interdições, mas estilizar uma liberdade: aquela que o homem “livre” exerce em sua atividade, escreve Foucault (1988b, p. 89). Em Berkeley em Bellagio, o desejo de contato ocorre, em muitos momentos, por meio de encontros furtivos, sutis e inesperados entre homens. Palavras não são pronunciadas; contudo, olhares falam e criam novas formas de linguagem e de comunicação. O trecho abaixo, oportunamente selecionado para evidenciar o aspecto que acabo de assinalar, descreve o momento em que João, ao ouvir a música tocada por um pianista italiano em um de seus passeios e referindo-se a si mesmo em terceira pessoa, se põe a pensar: O pianista (...) foi à janela pálido que estava, e deu de cara com o homem que vinha da floresta tentando ouvir o Liszt que ele gerava acalorado. Ficaram parados, sem falar, sem nenhum gesto, nenhum sinal em que pudessem se comunicar, saber a identidade um do outro, suas intenções, seus vícios, traumas... (...) Por que o pianista não voltava ao seu piano, o escritor ao seu abrigo na Fundação americana, e nada carecesse de maiores explicações regadas a gemido, risos, palpitações e alívios? (NOLL, 2002, p. 33) Concordando com Jurandir F. Costa (1992, p. 96), podemos dizer que, nas relações homoeróticas, sobretudo, nas descritas até então, domina o ideal da “mínima fala” e da inflação de gestos, sinais e atos, de modo a indicar com a máxima precisão onde está o desejo. Os encontros furtivos, sutis e inesperados entre homens apontam para outra gramática que, certamente, não pode ser apreendida, quer por um “olhar intimista”,34 quer por um olhar em cujas lentes esteja o ideal de conjugalidade e/ou de família. Nesses encontros, entrevêem-se outras 34 Cf. SENNETT, 1988. 49 possibilidades de expressão do desejo no seio de uma sociedade em que toda palavra sobre o homoerotismo carrega um tom preconceituoso e/ou de dominação. Trata-se de uma tentativa de relação sexual sem palavras, isto é, sem discursos sublimatórios. Assim, pode-se dizer que Berkeley em Bellagio privilegia descrições sensoriais numa tentativa de expandir o “real” para além da palavra. O ideal de amor romântico tende a condicionar o afeto e o sentimento à noção de tempo e ao que, na relação sexual, excede ao contato físico. Para nossa sociedade, a única linguagem do afeto e do amor é aquela calcada no ideal de amor romântico, que, entretanto, se encontra “temperado pelo romantismo conformista, de acordo com os interesses familialistas da sociedade burguesa em geral” (COSTA, 1998, p. 70). Vivemos, dessa forma, sob a tirania do logos em que só a palavra pode revelar a verdadeira linguagem do amor e do afeto. O encontro do escritor com o pianista italiano aponta para uma relação entre homens cujas línguas e nacionalidades não coincidem, nem mesmo o status social ou seus conhecimentos parecem partilhados. No entanto, a despeito das diferenças, conseguem inventar formas de comunicação, nas quais se mesclam desejo e potencialidades de relacionamento a ser descobertas: (...) ali, parados feito estátuas, sem demonstrar o menor desejo de participar da prosa apressada que o visitante noturno poderia estar na iminência de gerar. Mas na verdade enquanto eu estivesse ali, parado, olhando aqueles dois afantasmados, eu estava pronta a deter no tempo, a economizar de forma radical minhas batidas cardíacas, ser apenas mais um elemento na floresta, um corpo que não precisasse baralhar por mais um dia (...) (NOLL, 2002, p. 35) A sexualidade de João é deslocada rumo a novas experiências e a novos enlaces sociais, fundando uma estética da existência e uma ética dos prazeres, e não do sexo. Isso porque ali estão presentes intensidades afetivas marcadas por relações mútuas, questões abordadas com mais detalhe a seguir. Por agora, é suficiente dizer que o homoerotismo é, dessa perspectiva, a comprovação de que existe uma história universal, que não é da necessidade, mas sim da contingência. Em outras palavras, a narrativa instaura a relativização de qualquer modo de pensar que queira dizer a verdade última a respeito do homoerotismo. UMA ÉTICA E UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA? Há, em toda a obra, conforme argumentei, uma recusa de se criar para si uma narrativa coerente e orientada por um senso de história, negando, assim, qualquer ontologia ou metafísica em torno do sujeito. Ao rejeitar a busca em construir para si 50 uma identidade estável ancorada nas representações sociais hegemônicas, João, Leo e outros personagens de Berkeley em Bellagio conseguem se “desprender” das relações de poder, aos quais os padrões identitários, em geral, estão subordinados. Os personagens parecem dissolver os limites entre vida e arte, substituindo a autoridade pela experiência. Por isso, gostaria de reconduzir parte da discussão precedente, sobretudo, no que concerne aos experimentos relacionais, à luz da noção estética da existência, nos termos propostos por pensadores como Nietzsche e Foucault. Em O nascimento da tragédia, de 1872, Nietzsche inicia sua crítica à metafísica dos conceitos, cuja matriz ocidental se encontra no pensamento lógico e dialético de Sócrates e Platão. É o próprio filósofo alemão que, dezesseis anos depois em O crepúsculo dos ídolos, ao reportar-se aos escritos de 1872, esclarece seu significado: “[...] reconheci em Sócrates e em Platão sintomas de decadência, instrumentos da decomposição grega, pseudogregos, antigregos” (NIETZSCHE, s/d, p. 23). As estratégias de Nietzsche para romper com a idéia de universalidade e de unicidade da tradição filosófica moderna do cogito cartesiano e da tradição da renúncia cristã se constituíram, sobretudo, por meio da valorização da arte. Para o pensador alemão, a tragédia grega reunia o equilíbrio apolíneo e a embriaguez dionisíaca e, com isso, conseguia tornar a arte a grande força criadora, o único valor possível. Desse modo, O nascimento da tragédia tem dois objetivos principais: a crítica da racionalidade conceitual instaurada na filosofia por Sócrates e Platão; a apresentação da arte trágica, expressão das pulsões artísticas dionisíaca e apolínea, como alternativa à racionalidade. (MACHADO, 1999, p. 11) A crítica de Nietzsche (2007) ao que, em uma linguagem mais contemporânea, se convencionou chamar de logocentrismo evidencia que o importante não é buscar a essência última das coisas, própria da atitude socrática, ou encontrar a verdade mais profunda por trás das aparências, mas sim reinventar o real, transfigurar a própria vida, transmutar todos os valores. O interesse de Nietzsche pelas potencialidades oferecidas pela arte culmina em uma aproximação teórica, cada vez maior, entre arte e vida, já que “como fenômeno estético a existência ainda nós é suportável, e por meio da arte nos são dados os olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno.” (NIETZSCHE, 2001, §107, grifos do autor). Ao que acrescenta a idéia de que “necessitamos de toda arte exuberante, flutuante, zombeteira, infantil e 51 venturosa, para não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós”.35 Assim, o pensador alemão destrói a lógica das essências, das identidades, dos fundamentos e das verdades absolutas, tendo em vista que a arte não tem um compromisso com a verdade ou, ao menos, não deveria ter. Sendo a arte um conjunto de técnicas a partir das quais os artistas criam e constroem suas obras, a “vontade de criação” se sobrepõe à “vontade de verdade”; essa última típica dos metafísicos. Por isso, uma estética da existência, em termos nietzschianos, resulta da aliança complementar que existia nas experiências antagônicas dos deuses Apolo e Dionísio, tão bem representadas na tragédia grega antes de Sócrates. A estética da existência em Nietzsche nos convida a adotar uma atitude artística diante dos fenômenos humanos. A estética da existência em Foucault se aproxima, em muitos aspectos, à concepção do filósofo alemão quando, por exemplo, o pensador francês se interroga sobre como o fenômeno artístico tem se dado nas sociedades ocidentais: O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feito por especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar em uma obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida? (FOUCAULT, 1995, p. 261) Entretanto, é importante ressaltar que a estética da existência foucaultiana não se constitui apenas pela sua dimensão propriamente artística, mas também pelo seu caráter de um programa ético-político (ORTEGA, 1999, p. 52). A estética da existência, para o filósofo francês, está relacionada à possibilidade de constituição de novos estilos de vida baseados em uma ética capaz de criar subjetividades mais libertárias e, a partir delas, novas formas de sociabilidade. Ao evidenciar o caráter ético-político de sua proposta, Foucault, para quem a ética é um modo de relação do indivíduo consigo mesmo (FOUCAULT, 1988b, p. 219), revela que é somente nesse sentido que os sujeitos podem se reinventar, de modo a não precisar recorrer às identidades criadas pelo sistema de poder que institui a priori as possibilidades das formas que as relações entre indivíduos podem assumir no âmbito da sociedade. Trata-se de uma reinvenção do sujeito através de práticas de si, e não da constituição de uma hermenêutica do desejo ou do “eu”, como quer a psicanálise, 35 NIETZSCHE, 2001, §107. 52 por exemplo. Em outras palavras, uma negação da injunção délfica de descoberta da verdade de um sujeito. A reinvenção de si pode estar presente na amizade, à qual Foucault relaciona a homossexualidade: “a amizade tem, para Foucault, principalmente o sentido de uma amizade homossexual”.36 O projeto foucaultiano de reabilitação da amizade tem como intuito incorporar o componente eros nas relações de amizade, suprimido desde a Antiguidade. As relações de amizade37 são, em geral, marcadas pela espontaneidade, igualdade e pelo controle interativo, bem como pela reciprocidade simétrica e pela não fixação num contexto determinado e, conseqüentemente, pela pouca normalização e sanção exterior. A amizade permite que o indivíduo se torne o arquiteto de sua rede de relações sociais, em um universo construído por ele mesmo. A amizade constitui, dessa forma, uma alternativa às velhas formas de relação institucionalizadas e, ao vinculá-la à questão da homossexualidade, Foucault afirma que Aquilo para o que se orientam os desenvolvimentos do problema da homossexualidade é o problema da amizade. (...) Homens de idade notavelmente diferentes, que código terão eles para se comunicarem entre si? Eles estão um em face do outro sem armas, sem palavras convencionais, sem nada que possa reassegurá-los sobre o sentido do movimento que os leva um para o outro. Terão que inventar de A a Z uma relação ainda sem forma e que é a amizade: quer dizer a soma de todas as coisas pelas quais pode-se dar prazer um ao outro (FOUCAULT, 2008, sem paginação) O potencial crítico da amizade está no fato de que ela “é, no fundo, um ‘programa vazio’, outra denominação para uma forma de vida cuja importância reside nas inúmeras formas que pode assumir, uma relação ainda por imaginar, aberta, na qual cada indivíduo deve inventar sua própria ética da amizade.” (ORTEGA, 2002, p. 96). É, portanto, nesse sentido que inscrevo a obra Berkeley em Bellagio, ou seja, como uma que problematiza as formas tradicionais de sociabilidade a partir da invenção e intensificação de redes de amizade, no sentido proposto por Foucault, isto é, como “a soma de todas as coisas através das quais se obtém prazer mútuo”.38 Trata-se de uma obra que representa a possibilidade de se repensar e se reutilizar os espaços abertos pela perda de vínculos orgânicos causados pela suposta fragmentação pós-moderna e pelas estruturas e instituições burocráticas, que limitam consideravelmente o tecido relacional. 36 ORTEGA, 1999, p. 165. 37 Idem, ibidem, p. 165. 38 FOUCAULT, 2008, sem paginação. 53 Reabilitar a amizade como espaço de experimentação e negociação de subjetividades requer uma crítica ao “imaginário familialista”, que, conforme vimos, aparece na narrativa quando, de volta ao Brasil, João reencontra Léo, seu antigo namorado, e Sarita, filha de Leo, passando a viver juntos. Aí vimos como esses experimentos relacionais ressignificam ambiguamente os territórios da conjugalidade, da família e do amor. Entretanto, a crítica ao imaginário familialista também está presente nas descrições dos encontros furtivos entre homens, na busca de novos núcleos a partir dos quais se possa estabelecer outras formas de encontro e de contato com o outro. São relações que se desenvolvem fora dos quadros normativos, de onde decorre a potencialidade para criação de entrelugares, de formas intersticiais de subjetivação nas quais se entrevêem atitudes transgressoras: Quem é esse ragazzo, hein?, e quem será esse homem aqui que já não se reconhece ao se surpreender de um golpe num imenso espelho ornado em volta de dourados arabescos, um senhor chegando à meia-idade? E se ainda quisesse algum prazer da carne a hora era essa, o ragazzo o esperava desde sempre, estava ali a postos, calça preta, colete listrado em branco e preto, a repetir “prego”, “prego, mi signore”, sim, um bom signore, geralmente sem ter onde cair morto em sua própria terra, mas hoje um escritor famoso a receber convites do mercenato internacional. (NOLL, 2002, p. 15) Para prosseguirmos com nossa análise, é importante destacar que a ideologia familialista está tão enraizada no imaginário ocidental que nem mesmo nossa concepção de amigo escapou dela e foi, por isso, subsumida à figura do irmão. É inegável que a semântica familialista da amizade aponta para a igualdade e para a ausência de hierarquias de poder entre os sujeitos, configurando-se, dessa forma, uma relação horizontal, pois, conforme argumentou Kehl (2000), a fratria tem a igualdade política entre os indivíduos como sua condição. Entretanto, Derrida (1994) e Ortega (1999, 2002) já evidenciaram, de modo bastante convincente, que, subjacente à noção do amigo como irmão, se esconde uma lógica perversa de desumanização e de intolerância. O tom familialista presume intimidade e homogeneidade entre os sujeitos e, conseqüentemente, a supressão da alteridade e da diferença, uma vez que o amigo passa a ser um outro eu. Por isso, para Derrida, A “boa amizade” supõe desproporção. Ela exige certa ruptura em reciprocidade ou igualdade, bem como a interrupção de toda fusão ou confusão entre você e mim. (...) A “boa amizade” nasce da desproporção: quando você estima ou respeita o outro mais que a si mesmo. (...) A “boa amizade”, seguramente, supõe certo ar, certo toque de intimidade, mas “sem uma intimidade propriamente dita”. Ela nos pede que nos abstenhamos “sensatamente”, “prudentemente” de toda confusão, de toda 54 permutação entre as singularidades de você e mim. (DERRIDA, 1994, p. 81, tradução minha) Assim, pode-se dizer que os encontros de João com homens de língua e nacionalidade diferentes, homens cujas intenções, vícios ou traumas sequer conhecia, conforme descrevi, acenam para rupturas com as noções de reciprocidade ou de igualdade como fundamento para o contato com o outro. Esses encontros se dão entre indivíduos cujas línguas não coincidem; nem mesmo o status social ou seus conhecimentos parecem partilhados, mas, a despeito dessas diferenças, conseguem criar novas formas de comunicação, nas quais se mesclam intensidades afetivas. As descrições de seus encontros sexuais escapam ao regime da heterossexualidade compulsória que, como norma padrão para os relacionamentos entre indivíduos, interrompe relações diferentes daquelas previamente estabelecida por sua lógica. E, vale ainda lembrar, o relacionamento entre João e Léo é marcado pelo cuidado mútuo, mesmo tendo situações de vida tão discrepantes: Quanta exultação seria [João] capaz de suportar? Ele precisava mesmo era correr atrás do que o manteria inteiro, ou então que não caísse novamente à porta do banheiro vítima de uma aneurisma nada comprovado, e sem ter Léo para ajudá-lo, levá-lo até o pronto-socorro e se encarregar dele pelo resto de uma relação já a ponto de apagar. De fato, aquela assistência de Léo ao seu corpo temporariamente combalido era uma desdobrada despedida. (NOLL, 2002, pp. 12-13) E, mais adiante, revela: Certas noites Léo vinha para o meu sofá, fechava a porta do quarto para não acordar a garota, e vinha ao meu encontro no sofá. Muitas vezes só para um abraço, nada mais que isso –, a vida se mostrava agora tão parcimoniosa que todos ali ficaram contentes se tivesses à sua espera não aquele apartamento, mas a cela de um religioso medieval, bem algo assim, uma vida que nos oferecesse apenas uma refeição diária, um copo d’água sempre que necessitássemos, um banho, uma roupa lavada no fim do dia, o sono nu, de manha novamente seca para que usássemos. (NOLL, 2002, p. 92) A busca pela experimentação de novas formas de relacionamento e de prazer, recortadas pelo desejo e, conseqüentemente, pela intensificação das relações sociais, passa pela descoberta de mundos improváveis, de mundos a serem explorados. Por isso, vale dizer que a relação entre João e Léo não diz respeito a uma amizade-amorosa ou de uma pretensão de conjugalidade e/ou de família, no sentido tradicional que se costuma atribuir a esses termos. Trata-se antes de descobertas que em alguns momentos causam medo e ambivalência e que, por isso, revelam situações onde o amor entre rapazes é sempre um devir a ser inventado de “A a Z”. Isso pode ser percebido quando, por exemplo, o narrador descreve: 55 (...) ele voltaria para casa para se enamorar de um homem mais jovem, nem tanto, gerente, de uma farmácia em Porto Alegre, (...) ele andava agora com saudades do caso que tivera com esse rapaz e que acabara de se extinguir (ou não?) – ah, sua memória depois da queda! – saudades do caso, sim, e não exatamente do seu sentimento teimosamente preambular que nutria por Léo (...), o cara que lhe emprestava um pouco da prática da vida: em quem confiar ou não, como conseguir o que não atinava pedir por algum orgulho, rarefação oral, medo de não ser aceito e não sei que mais. (...) eles se sentiram impossibilitados de resistir à tirania da rotina os apartamentos um do outro até o ponto em que voltar para casa tornava-se um martírio, mesmo que na hora anterior ao desenlace (houve?) os dois tenham ido para cama (...) apenas para selar com o jorro amarelado a história deles dois, nada mais. (NOLL, 2002, pp. 20-21) Estaríamos diante do “homossexual astucioso”?39 De “micropolíticas”, no sentido guattariniano (GUATTARI, 2005)? De uma política que se faz pela inventividade, pela experimentação, pela criação de mundos improváveis, pela busca de espaços para a singularização dos laços afetivo-sexuais? Os encontros eróticos entre homens que descrevi são repletos de trocas de conhecimento e de aprendizagens nos quais os amigos se modificam, aguçam sonhos e exploram o desconhecido. Trata-se de espaços para a experimentação, no qual o encontro com o outro, em sua alteridade radical, irrompe o imprevisto, gerando fissuras e questionamentos aos modelos dominantes: (...) encabulado se alguém do meio cultural me visse, por estar gastando à toa o meu tempo histórico, sim, estava na moda à época se falar em tempo histórico, o tempo em progressão, usado sobretudo para melhorar os dias de necessidade que corriam, até que se pudesse reviver a lenda de um reino onde folgaríamos plenamente suprimidos, (...) uma humanidade novamente coesa em harmonia pela selva, (...) um paraíso mais à frente, quem sabe além daquele rio, logo após aquela árvore – venha! Eu e Léo, porém, começávamos a compreender (...) que o melhor mesmo era a paciência, preparar o dia seguinte sem pensar nele como um esposo que necessariamente nos dará mais do que pedimos. O que é que pedíamos, hein? Antes de me responder (...) Léo corria para atender Sarita, que chorava acordando da sesta. (NOLL, 2002, p. 93) Das descrições que apresentei de João, é factível dizer que sua erótica “nãodisciplinada” desencadeia uma economia sexual, cujos objetivos parecem se orientar para a multiplicação dos centros de prazer corporal, de modo a escapar à sexualidade presa ao prazer genital e aos padrões identitários que cristalizam papéis e comportamentos sexuais. O corpo de João se transforma, assim, em um espaço de experimentação de novas intensidades, um espaço para a produção de “prazeres 39 Quem o define é Silviano Santiago: “pergunto se o homossexual não pode e dever ser mais astucioso? Se formas sutis de militância não são mais rentáveis do que as formas agressivas? Se a subversão através do anonimato corajoso das subjetividades em jogo, processo mais lento de conscientização, não condiciona melhor o futuro diálogo entre homossexuais e heterossexuais, do que o afrontamento aberto por parte de um grupo que se auto-marginaliza, processo dado pela cultura norte-americana como mais rápido e eficiente?” (SANTIAGO, 2004, p. 202) 56 perverso-polimorfos”. Isso porque a ética da amizade procura jogar dentro das relações de poder com um mínimo de dominação e criar um tipo de relacionamento intenso e móvel, cujas linhas de força se orientam no sentido de evitar que as relações de poder se transformem em estados de dominação. Em busca de uma multiplicidade libidinal e, como conseqüência disso, a configuração de uma nova geografia do prazer, o corpo de João se torna um dos principais pontos de resistência ao poder; sua sexualidade, uma possibilidade de que novas relações possam ser “estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas”.40 Por isso, antes de ser um narcisismo ou um mero culto ao prazer, a estética da existência é uma abertura à alteridade, na medida em que afirmar a diferença e o singular possibilita que o sujeito se torne um outro para si mesmo. Por isso, convém dizer que “a [atitude] estética relativiza (...) o ego que lhe gerou [de tal maneira que] a exacerbação do sentimento individual transfigura-se numa cultura do sentimento negando o que lhe serve de suporte” (MAFFESOLI, 1997, p. 261). Esse trabalho que alguém faz em si mesmo para transformar-se só pode ser realizado em relação a um outro: “sem a presença do outro não se pode produzir nenhum auto-relacionamento satisfatório”.41 Em outras palavras, a estética da existência não é uma prática ex nihilo, mas algo que só se dá a partir da relação com o outro, cujo resultado é sempre da ordem do improvável. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse jogo de suspensão das coordenadas ordinárias da experiência sensorial – quer pela (re)(des)estruturação das redes de afinidades entre espaços e tempos, sujeito e objeto, universal e singular –, a narrativa se torna locus para a problematização de questões relacionadas à representação da alteridade e à construção social da diferença. Com isso, fica patente que a dimensão política do romance está nas fissuras causadas nos modelos dominantes de família e de outras relações afetivo-sexuais institucionalizadas pela heterossexualidade compulsória; na busca de João por “uma instância e (...) uma capacidade de enunciação que não eram identificáveis num campo de experiência dado, cuja identificação portanto caminha a par com a reconfiguração do campo da experiência”.42 40 FOUCAULT, 2008, sem paginação. 41 ORTEGA, 1999, p. 126. 42 RANCIÈRE, 1996, p. 42. 57 A estética se torna o lugar de emancipação das normas de representação e, como conseqüência, das mutações das formas de percepção e de organização da realidade. Ou, em termos mais precisos, observa-se uma contestação das categorias, que, como estruturas estruturantes das formas cotidianas de percepção, delimitam posições e lugares de privilégios aos heterossexuais. O romance rompe com os lugares pré-estabelecidos, reconfigurando os espaços sociais e deslocando práticas e desejos do lugar que lhes fora designado. Em outras palavras, “faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho”.43 Assim, ao instaurar novas maneiras de pensar o desejo e as relações afetivosexuais entre homens, o romance imprime novos sentidos aos marcadores sociais da diferença. Disso decorrem novos espaços morais, visto que no tocante às questões afetivo-sexuais há sempre “uma íntima ligação entre a construção identificatória do eu e alguma espécie de orientação de sentido moral: a dinâmica dos gêneros (seja cultural ou subjetiva) se constitui em elemento mediador, difusor, desses conteúdos ou descrições morais, na medida em que define parâmetros para cada sujeito se orientar no espaço moral” (MATOS, 2002, p. 113). Berkeley em Bellagio se torna uma obra política não apenas devido à mensagem que veicula com relação à temática social, mas, sobretudo, na medida em que suspende as coordenadas ordinárias da experiência sensorial, (re)estruturando nossas formas de percepção. 43 RANCIÈRE, 1996, p. 42. 58 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del ‘sexo’. Buenos Aires: Paidós, 2002. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. DELEUZE, Gille; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 1972. DERRIDA, Jacques. Donner le temps. Paris: Galilée, 1991. DERRIDA, Jacques. Donner le temps. Paris: Galilée, 1991. DERRIDA, Jacques. Politiques de la amitié (suivi de L'oreille de Heidegger). Paris: Galilée, 1994. FOUCAULT, Michel História de sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1988b. 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São Paulo: Ed. 34, 2000. 59 A REPRESENTAÇÃO DA MATERNIDADE EM MARY WOLLSTONECRAFT E MICHÈLE ROBERTS Janaina Gomes Fontes* RESUMO: Neste artigo, analiso a representação da maternidade nos romances Maria, or the Wrongs of Woman e Mary, a Fiction, da escritora inglesa do século XVIII Mary Wollstonecraft, e no romance Fair Exchange, da escritora inglesa contemporânea Michèle Roberts, com o auxílio de textos diversos que exemplificam como o papel da mãe foi construído ao longo do tempo e dos estudos feministas, que contribuem, cada vez mais, para a desconstrução dos mitos patriarcais sobre a maternidade. PALAVRAS-CHAVE: maternidade, feminismo, literatura. O nascimento do ser humano sempre foi permeado por sentimentos complexos, muitas vezes opostos, como fascinação e medo. A maternidade, experiência que abrange várias transformações físicas, psicológicas e comportamentais que ocorrem antes, durante e após o parto, vem sendo considerada de formas diferentes ao longo do tempo, nas diversas sociedades, atingindo os extremos do sagrado e do ameaçador/assustador. O psicólogo jungiano e antropólogo alemão Erich Neumann trabalha com o arquétipo do Grande Feminino, mais especificamente, o da “Grande Mãe”, por meio da análise de um vasto material mitológico e estético de diferentes grupos culturais em diferentes épocas, abordando tanto o caráter positivo desse arquétipo (“A Mãe Bondosa”), como o negativo (“A Mãe Terrível”, “A Deusa Terrível” etc.). Ele explora de forma rica e detalhada como se desenvolveu, nos povos primitivos, a identificação das mulheres à natureza e os mistérios advindos dessa identificação. Além disso, mostra como essa correlação passou a ser compreendida e modificada ao longo dos séculos, chegando até hoje, infundida nos símbolos que permeiam a vida da humanidade. Segundo Neumann e a feminista americana Adrienne Rich, há fortes indícios de que nas primeiras sociedades era cultuada a “Grande Deusa”, criadora de tudo o que existe, tendo o Deus masculino criador surgido muito tempo depois. Na década de 80 do século XX, ao publicar um estudo sobre o processo histórico da maternidade do século XVI ao XX, a filósofa francesa Elisabeth Badinter considera que a maternidade ainda é um tema sagrado, ao descrever as reações apaixonadas que o seu livro Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno (1985) provocou. Segundo ela, “continua difícil questionar o amor materno, e a mãe permanece, em nosso inconsciente coletivo, identificada a Maria, símbolo do indefectível amor oblativo”(BADINTER, 1985: 9). Na década de 90 do século XX, a historiadora Mary Del Priori, na introdução de seu livro Ao Sul do Corpo (1993), que constitui um estudo histórico sobre as • * Mestre em literaturae doutoranda na mesma área pela Universidade de Brasília – UnB. 60 condições das mulheres e, sobretudo, sobre a maternidade no Brasil colonial, também atenta para a presença marcante da importância da maternidade na mentalidade histórica. A autora demonstra a força do conceito da “santa-mãezinha”, ou seja, da mãe bondosa, dedicada e assexuada, construído na época colonial brasileira e que se enraizou no imaginário social, atravessando os séculos e chegando aos nossos dias: Quatrocentos anos depois do início do projeto de normatização, as santasmãezinhas são personagens de novelas de televisão, são invocadas em pára-choques de caminhão (“Mãe só tem uma”, “Mãe é mãe”), fecundam o adagiário e as expressões cotidianas (“Nossa Mãe”, “Mãe do céu”); (...) A maternidade extrapola, portanto, dados simplesmente biológicos; ela possui um intenso conteúdo sociológico, antropológico e uma visível presença na mentalidade histórica. (DEL PRIORE, 1993: 18) Sentimentos tão variados e extremos de origem remota refletiram-se nos discursos religiosos, científicos, literários, dentre outros, produzindo explicações, representações e preceitos muitas vezes desfavoráveis, e não raro contraditórios, às mulheres e à maternidade; isso se deu, principalmente, à medida em que o patriarcado comparava de forma distorcida a capacidade reprodutiva das mulheres às forças da natureza. Desde a Antigüidade, textos filosóficos afirmam a inferioridade das mulheres e justificam a conseqüente necessidade de sua submissão e controle. Para Aristóteles, a mulher é considerada personagem secundária na concepção. Segundo Rosemary Agonito, que faz uma compilação das ideias de pensadores importantes da humanidade sobre as mulheres em History of Ideas on Womem (1977), Aristóteles argumenta que a mulher é um ser mutilado ou um homem incompleto. Na reprodução, o homem contribui com a essência e a alma, enquanto que a mulher só fornece a nutrição necessária para manter o embrião. Ou seja, é o homem, e não a mulher, que cria a vida: “A mulher é um homem mutilado, e a ‘catamenia’ é sêmen, apenas não pura; pois há apenas uma coisa que ela não tem, o príncipio da alma (...) As mulheres, então, fornecem a matéria, os homens o princípio do movimento.”44 (AGONITO, 1977:48) Essa “deficiência” torna a mulher fisicamente mais fraca, menos capaz de pensamento racional e subordinada ao homem. Dessa forma, para o filósofo, as mulheres são naturalmente inferiores aos homens e, por isso, devem submeter-se à autoridade masculina: “os homens são por natureza superiores, e as mulheres inferiores; e um governa e o outro é governado.” (AGONITO, 1977:51) 44 Neste trabalho, todas as traduções de textos publicados em inglês são de minha responsabilidade. 61 A teologia cristã, por meio dos textos bíblicos, trouxe conseqüências danosas para a imagem das mulheres ao retratar que a criação feminina foi feita a partir de uma costela do homem, e ao descrever a desobediência de Eva, que recebeu como castigo, além de outros, a dor do parto e a dominação pelo marido. Aliás, Mary Del Priori e Adrienne Rich mostram que durante séculos essa ideia perdurou no discurso médico, que via as dores do parto como um sofrimento necessário pelo qual as mulheres deveriam passar como castigo pelo pecado original. Isso resultava no desinteresse dos médicos em aliviar as dores do parto para as mulheres e numa atitude apática diante da situação da parturiente. A identificação das mulheres à natureza e a conseqüente naturalização dos comportamentos relacionados à sexualidade feminina e à maternidade foram distorcidos e perpetuados de uma forma negativa para as mulheres, de acordo com os interesses do patriarcado. É o que ocorre, por exemplo, quando pensamos sobre o conceito de instinto materno. Segundo Elisabeth Badinter, a partir do século XVIII, além do discurso médico, o filosófico e o econômico passaram a defender de forma enfática que a mãe assumisse a responsabilidade de cuidar dos filhos, agindo de acordo com seu instinto, para diminuir a mortalidade infantil no interesse do Estado francês. Em comparação com a situação brasileira, Del Priori enfatiza também o desenvolvimento da medicina no Brasil na época colonial, que descobriu nos corpos femininos uma “fisiologia moral que justificasse a maternidade e que suprisse as demandas de um Estado que relacionava aumento de produção com aumento de braços”. (DEL PRIORI, 1993: 334) Segundo Del Priori, no Brasil colonial, os discursos moralistas e religiosos a favor da mãe santa e dedicada, que educa seus filhos de forma cristã e cuida da casa com zelo e amor, corroborados pelo discurso médico, segundo o qual a função natural da mulher era a procriação, acabaram por normatizar o comportamento das mulheres. Os primeiros séculos da colonização foram marcados por grandes massas, sobretudo de homens, que desbravavam as terras brasileiras e cujas condutas sexuais, bastante “promíscuas”, desagradavam os interesses do Estado português. Para adequar as necessidades de povoamento aos valores morais e religiosos e aos interesses econômicos da metrópole, era necessário que as mulheres se casassem, constituíssem família e ficassem em casa, fazendo todo o trabalho de base para o estabelecimento da vida familiar, o que consequentemente, influenciaria os habitantes da Colônia para o trabalho organizado e produtivo e para a aceitação e difusão do catolicismo. As santas mães, assim, integravam a família ao processo de formação da sociedade capitalista na Idade Moderna. 62 Ainda segundo Badinter, a defesa do instinto materno pela ciência culminaria, no século XX, com a psicanálise, quando Freud mostra que o desenvolvimento de uma mulher normal leva-a a ser mãe. Em um ensaio sobre as mulheres (A Feminidade), Freud atribui o desejo de ter um filho à inveja que a mulher teria do órgão sexual masculino. Segundo Freud, o primeiro objeto amoroso do menino é a mãe e continua a sê-lo durante toda a vida. O menino possui inicialmente um grande amor pela mãe; sente ciúmes e rivalidade em relação ao pai, desenvolvendo, assim, o complexo de Édipo. Ao descobrir que a mãe não possui o órgão sexual masculino, o menino tem medo de vir a ser castrado como ela e abandona o complexo de Édipo. Não podendo eliminar o pai para ficar com a mãe, o filho a abandona e se junta ao pai, que representa o poder. No entanto, o menino volta a ter uma mulher como objeto amoroso que, para Freud, estaria substituindo o seu amor pela mãe. O primeiro objeto amoroso da menina também é a mãe. No entanto, ao perceber que a mãe não possui o órgão sexual masculino, ao descobrir que como ela a mãe também é castrada, a menina sente-se incompleta e repele seu amor à mãe. Assim, explica-nos Freud, com essa descoberta “a mulher fica desvalorizada para a menina, o mesmo que para o menino e talvez para o homem” (FREUD, 1976: 133); essa inveja possui influências e conseqüências em toda a vida da mulher. Depois dessa separação hostil contra a mãe, a menina volta-se para o pai, talvez com o objetivo de conseguir um órgão sexual masculino. Porém, a situação feminina se estabelece quando esse desejo é substituído pelo de ter um menino. Assim, a mulher “normal” adviria de um “complexo de castração” e, obrigatoriamente, deveria ser mãe (preferencialmente de um menino, o qual teria o pênis que lhe falta). Percebe-se, dessa forma, que o argumento de Aristóteles sobre as mulheres como seres incompletos possui claro eco na teoria freudiana, correlação que mostra como certas ideias negativas sobre as mulheres podemperdurar por séculos e séculos. Percebe-se, então, que a maternidade, assim como outros assuntos relacionados às mulheres, ainda tem sido utilizada para defender os interesses do patriarcado, muitas vezes reforçando um discurso androcêntrico e misógino. Dessa forma, tem sido uma questão que carece de novos estudos, principalmente sob a perspectiva das mulheres. Em várias áreas do conhecimento, podemos identificar até mesmo um silenciamento dos aspectos relacionados à maternidade. É o que pude observar nos estudos que fiz na área de literatura, encontrando lacunas, sinais de censura moralista e de mitificação dos aspectos relacionados às mães e às mulheres em geral. Para Badinter, “ao buscar nos documentos históricos e literários a substância e a qualidade das relações entre a mãe e o filho, constatamos seja 63 indiferença, sejam recomendações de frieza, e um aparente desinteresse pelo bebê que acaba de nascer”. (BADINTER, 1985: 85) Em seu estudo histórico sobre a maternidade, a autora frequentemente expressa a dificuldade de se encontrar registros precisos sobre os nascimentos, a mortalidade infantil, o uso de amas-deleite, entre outros fatores relacionados à experiência materna, na França, até meados do século XVIII. Dessa forma, Badinter teve que recorrer, muitas vezes, a estimativas e números aproximados, retirados de documentos esparsos. Mary Del Priori, ao pesquisar sobre as vidas das mulheres no Brasil entre os séculos XVI e XVIII, também esbarrou na escassez e dispersão das informações: Ao perseguir os caminhos das populações femininas no fundo dos fundos arquivísticos, acabei por tropeçar numa documentação multiforme. Constatava assim que as fontes existiam, mas que estavam em migalhas e dispersas, dificultando-me perceber as transformações mais finas pelas quais passavam as mulheres. (DEL PRIORI, 1993: 16) Na literatura, também, até por volta da metade do século XVIII, nota-se uma indiferença no tratamento da mãe e da criança. A partir de então, houve escassas tentativas de se abordar a maternidade com mais atenção às suas implicações para a vida das mulheres e dos filhos, e essas não foram vistas com bons olhos pela crítica literária. Em 1798, em Maria, or the Wrongs of Woman, livro publicado postumamente, a escritora inglesa Mary Wollstonecraft retrata a angústia de uma mãe afastada da filha pelo marido ambicioso e pelas instituições patriarcais. Livro de pouca receptividade literária, cujas críticas se juntaram às abundantes manifestações de desacordo despertadas pelo manifesto A Vindication of the Rights of Woman (1992), no qual a escritora defende uma família baseada no amor entre mães, pais e filhos, enfatizando a necessidade de respeito e novos direitos para as mães, esposas e mulheres em geral. Na apresentação de Lives of the Great Romantics,Part III, ressaltou-se que Mary Wollstonecraft foi fortemente criticada depois de sua morte. No entanto, gradualmente sua imagem foi sendo melhorada e começou-se a enfatizar suas qualidades. No século XIX, a escritora inglesa George Eliot apresenta a maternidade de formas diferentes em sua obra, o que nem sempre agradou os críticos literários. Conforme Jill L. Matus, o romance Adam Bede (1859) recebeu uma crítica favorável no Saturday Review. No entanto, o crítico demonstrou sua objeção ao fato de ter a escritora retratado os diversos estágios que antecedem o nascimento de uma criança, segundo ele, prática que estava se tornando cada vez mais comum entre romancistas e que deveria ser evitada. De acordo com esse crítico, havia a ameaça 64 de uma possível “literatura da gravidez”, ou seja, de uma literatura que retratasse os desdobramentos e os pormenores da maternidade. Portanto, exortava os escritores a copiar os “velhos mestres” que, se incluíam um bebê na narrativa, faziam-no nascer de uma vez, como num passe de mágica, sem descrever as complexas fases e implicações da maternidade: Há outro aspecto nessa parte da história sobre o qual não podemos deixar de fazer um comentário. A autora de Adam Bede aderiu a uma prática bem curiosa que está se tornando comum entre romancistas, e é uma prática que consideramos bastante desagradável. Trata-se de datar e discutir os diversos estágios que precedem o nascimento de uma criança. Parecemos estar ameaçados com uma literatura da gravidez ... Os sentimentos e as mudanças de Hetty são indicados com uma seqüência pontual que faz com que o relato de seus infortúnios se pareça com o tom rude de conversas de um “obstetra/ parteiro” [man-midwife] com uma noiva. Isso é intolerável. Deixem-nos copiar os velhos mestres da arte, que, se nos deram um bebê, o deram de uma vez. Um autor decente e um público decente consideram os sintomas premonitórios como existentes sem, no entanto, necessitarem presenciá-los. (MATUS, 1995: 1) Ainda no século XX, em pleno movimento feminista, percebe-se ainda a falta das vozes das mães na literatura. Brenda O. Daly e Maureen T. Reddy, em Narrating Mothers (1991), salientam que as narrativas raramente dão espaço para as vozes maternas. E apesar de que no final do século XX tenha crescido o número de livros sobre as mães, as perspectivas maternas estão, geralmente,ausentes, pois até mesmo as feministas, na maioria das vezes, se posicionam como filhas em seus escritos e falham em abordar os aspectos teóricos e políticos que permeiam a maternidade a partir da perspectiva das mães. Acredito ser necessário problematizar e desconstruir os mitos patriarcais que envolveram e ainda envolvem a maternidade, principalmente à medida em que novos conceitos se juntam ao conceito de maternidade tradicional, como descrito pela professora Cristina Stevens em seu artigo Maternidade e Literatura: Desconstruindo Mitos (2007): Por muito tempo a maternidade foi considerada um fato puramente biológico, fixado literal e simbolicamente nos limites do domínio privado e emocional. Os discursos religiosos, médicos e psicológicos que descreviam e, sobretudo, prescreviam esses papéis, foram bastante danosos para as mulheres. Hoje, debatemos a função e status da maternidade no espaço público, e sua complexidade aumenta à medida que o sentido de maternidade se diversifica, uma vez que à mãe tradicional vem juntar-se a mãe adotiva, a mãe lésbica, o homossexual que materna, a mãe de aluguel, a mãe adolescente, a mãe solteira, a mãe prisioneira, a mãe pobre, negra, a mãe genética, etc. (STEVENS, 2003: 38) Em O Segundo Sexo, Simone de Beavoir atribui à capacidade de reprodução das mulheres a associação destas à imanência, à estagnação, enquanto que tudo 65 relacionado aos homens foi relacionado durante muito tempo à transcedência, ao cultural, ao dinâmico, à dominação. Segundo Friedrich Engels, em A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1985), foi essa capacidade biológica da mulher que levou à primeira grande divisão do trabalho da humanidade. Para ele, o desenvolvimento da propriedade privada está atrelado à maternidade, pois os pais começaram a ter necessidade da certeza de sua paternidade para que os filhos pudessem herdar suas posses. Cristina Stevens, no livro Maternidade e Feminismo – Diálogos interdisciplinares (2007), enfatiza que até aproximadamente os anos setenta houve escassas tentativas de retratar a maternidade como tema central e de analisar as distorções criadas pelo patriarcado sobre essa complexa experiência. Nessa época, intensificou-se a produção teórica sobre a maternidade sob a ótica das mulheres. No campo da história, segundo Tania Navarro Swain, em seu texto Você disse imaginário? (1994), até os anos setenta encontra-se um discurso etno e androcêntrico, situação que, segundo ela, vem se modificando com os caminhos abertos pela história das mentalidades e pelos questionamentos do feminismo. As produções teóricas dessa fase são bastante ricas, com estudos nas áreas de psicanálise, sociologia, antropologia, dentre outras. São desse período as contribuições de Nancy Chodorow, Adrienne Rich, e Julia Kristeva. A psicanalista Nancy Chodorow, em The Reproduction of Mothering (1979), argumenta que os comportamentos socias tradicionais que envolvem a maternidade, ou seja, o fato de se atribuir às mulheres o cuidado com os filhos, não são naturais, mas sim resultado de valores e práticas sociais que são interiorizados nas primeiras relações da criança com as pessoas que a cercam, sobretudo com a mãe, onde se encontra uma identidade entre mãe e função materna. Assim, esses processos psicológicos dão origem a comportamentos que se perpetuam e são responsáveis pela divisão não igualitária dos papéis sexuais e pela conseqüente dominação masculina. Segundo ela: O comportamento e as características da personalidade adulta são determinados, mas não biologicamente deterministas. Entretanto, culturalmente, a personalidade e o comportamento esperados não são simplesmente “ensinados”. Mais exatamente, certas características da estrutura social sustentadas por crenças, valores e percepções culturais, são interiorizados através das relações objetais sociais primárias da criança e da família. Essa organização inconsciente ampla é o contexto no qual se dá o treinamento de papéis e a socialização intencional. (CHODOROW in ROSALDO e LAMPHERE, 1979: 76) Embora alguns possam pensar que as análises de Chodorow demonstram 66 uma inevitabilidade dessa situação, a psicanalista afirma que é possível e que devemos separar as mulheres e a função materna. Ao mostrar como as funções de cuidado com os filhos são criadas nas mulheres por meio de processos psicológicos e sociais específicos, Chodorow mostra como essas qualidades também podem ser criadas nos homens, desde que homens e mulheres exerçam suas funções de forma igual. Segundo ela, há estudos que mostram que não apenas as mães biológicas são capazes de oferecer o cuidado adequado e que a criança não exige o relacionamento exclusivo com uma única pessoa. Na mesma linha de raciocínio desenvolvido por Chodorow, Dorothy Dinnerstein, em The Mermaid and the Minotaur: Sexual Arrangements and Human Malaise (1976), alega que enquanto o cuidado com os filhos for papel exclusivo das mães, as mulheres continuarão sendo objeto de mitos e ideias deturpadas que a denigrem e sustentam seu papel secundário no domínio público. É preciso mudar a forma como os papéis sexuais estão organizados, e a mudança principal seria fazer com que o homem fosse tão importante no cuidado e criação dos filhos quanto as mulheres. Como tem sido, geralmente, uma mulher a primeira a estabelecer o contato inicial dos seres humanos com a humanidade e a natureza, a mãe é investida de um poder absoluto, se torna uma entidade poderosa capaz de proporcionar infinitos prazeres ao fornecer alimento, carinho, conforto; no entanto, a mãe também provoca rancor, trauma e inúmeras dores ao privar a criança de todos esses prazeres. Assim, a mãe, e consequentemente a mulher, é objeto do ataque de sentimentos ambivalentes, medos do poder de vida e morte atribuído a ela. O contato com a figura masculina, muitas vezes, acontece mais esporadicamente ou mais tarde na vida da criança e, portanto, essa figura não fica sujeita a grandes cargas emocionais. Segundo Dorothy Dinnerstein: Quando os homens estiverem tão diretamente envolvidos como as mulheres nas vidas intensamente corporais dos bebês e das crianças maiores, a realidade do corpo masculino como uma fonte de novas vidas estará sujeito a se tornar substancial para nós em uma idade mais tenra, e a continuar emocionalmente mais presente a partir de então (...). A mudança não fará a procriação da mulher parecer menos miraculosa do que parece agora, apenas menos assustadora (...). (DINNERSTEIN, 1976: 150) O livro de Adrienne Rich, Of Woman Born (1981), também constitui um marco nos estudos feministas sobre a maternidade. A partir de uma ótica psicanalítica, dentre outras, Rich expõe análises da relação entre a mãe e os filhos, o homem e a sociedade, além de outros pontos fundamentais. Ela demonstra como a mãe reage às expectativas da sociedade em relação a seu comportamento, escrevendo até 67 mesmo sobre uma alienação da maternidade, de mulheres que não participam conscientemente nem mesmo do trabalho de parto. Segundo Rich, desde a Antigüidade, as mulheres têm sido “ensinadas” o que devem sentir: dor, angústia, realização extática. O trabalho de parto têm sido visto de diversas formas negativas, como punição e sofrimento, por exemplo, raramente sendo considerado de forma positiva, como um desafio ou uma descoberta. Na literatura contemporânea, algumas escritoras têm trabalhado no sentido de recuperar a temática da maternidade, a partir da perspectiva das mulheres e da mãe. Em 1999, a escritora de origem inglesa e francesa Michèle Roberts deu ênfase ao tema em seu romance Fair Exchange. Nessa narrativa, como na maioria de seus romances, a problemática da identificação mãe-filha se sobressai, o que pode ser consequência da própria experiência de vida da escritora. O romance recria ficcionalmente a figura de Mary Wollstonecraft, uma pensadora de importância crucial para a história das mulheres, ligando, dessa forma, o passado ao presente. Ao recriar essa personagem histórica, Michèle Roberts traz para a contemporaneidade a preocupação de Wollstonecraft com a questão da maternidade e da família, o que levou essa pensadora a escrever dois romances no século XVIII: além da predominância da relação entre mãe e filha em Maria, or the Wrongs of Woman, a autora apresenta reflexões sobre os relacionamentos humanos sob a perspectiva das mulheres em Mary: a Fiction (1788). Ironicamente, a própria vida da escritora se encerrou com os desdobramentos da maternidade: morreu ao dar à luz sua filha MaryWollstonecraft Shelley45, em 1797. O amálgama da “realidade”46 e da ficção torna Fair Exchange, um romance que questiona a verdade da narrativa histórica. O diálogo entre a história e a literatura e o consequente questionamento da primeira pela última tornaram-se temas muito frequentes na ficção pós-moderna e se encontram na obra de Michèle Roberts. Uma das consequências dessa relação entre as duas áreas é a auto-reflexividade, que revela uma preocupação não só com a “arquitetura” narrativa, mas também com a utilização de fatos e personagens históricos na produção ficcional, característica que levou Linda Hutcheon a introduzir o conceito de metaficção historiográfica, na década de oitenta: 45 Escritora inglesa, mais conhecida por Mary Shelley. Filha de Mary Wollstonecraft e do filósofo William Godwin, casou-se com o poeta Bysshe Shelley, em 1816. Sua obra mais famosa é Frankenstein, escrita entre 1816 e 1817, quando a escritora tinha apenas 19 anos. 46 Entendo e aceito toda a problematização dos conceitos de realidade, representação e discurso, mas não desenvolverei esse assunto neste trabalho. 68 Metaficções historiográficas são romances intensamente auto-reflexivos, mas que também reintroduzem contexto histórico na metaficção e problematizam toda a questão do conhecimento histórico. (HUTCHEON, 1987: 285) Na metaficção, o autor demonstra sua consciência sobre a teoria subjacente à construção de trabalhos ficcionais, expondo, assim, as estruturas fundamentais da narrativa. Além disso, ao reescrever e reapresentar o passado na ficção, a metaficção historiográfica acaba por abri-lo para o presente, evitando, assim, que ele esteja para sempre concluso. Segundo Linda Hutcheon, o seu questionamento cria uma espécie de túnel do tempo que descobre histórias de pessoas e povos oprimidos no passado, como as mulheres e os nativos colonizados. Nesse sentido, a metaficção historiográfica vem problematizar a imparcialidade científica da história, demonstrando que essa também é uma narrativa que busca reconstituir e interpretar discursivamente o fato histórico, não de forma objetiva e neutra, mas a partir de um lugar de fala. O conceito de metaficção historiográfica demonstra a fragilidade da verdade objetiva da história, formada por diversos elementos volúveis como mitos, fatos, opiniões, interpretações, dentre outros. Assim, constitui um dos caminhos que podem contribuir para a produção literária de autoria feminina, pois ao se problematizar a historiografia tradicional, colabora-se para a desconstrução de ideias distorcidas e verdades criadas pelo patriarcado, como as que envolvem a maternidade, por exemplo. Dessa forma, a partir da perspectiva de gênero, seguindo o objetivo de resgatar escritoras negligenciadas pela historiografia literária tradicional, e de promover novas leituras de produções literárias de autoria feminina, venho trazer a importância do resgate e da releitura da obra de Mary Wollstonecraft e do estudo do romance de Michèle Roberts, unindo-as pela temática da maternidade. Apesar de ser uma das precursoras do movimento feminista já no século XVIII, com o seu livro de natureza não-ficcional A Vindication of the Rights of Woman (considerado o documento fundante desse movimento), Mary Wollstonecraft merece maior visibilidade quanto à sua produção ficcional. Daí nosso objetivo de lançar uma nova luz sobre os livros Maria, or the Wrongs of Woman e Mary: a Fiction. Durante minha análise, propicio o diálogo entre esses livros e A Vindication of the Rights of Woman, manifesto que será de grande importância, pois apresenta os pensamentos de Wollstonecraft com relação à família e à maternidade de maneira direta, e ajuda a conhecer mais de perto as aspirações que teve e o que ajudou a concretizar, mesmo 69 depois de sua morte. Seguindo os mesmos objetivos, apresento Michèle Roberts, autora de vários romances que abordam questões de natureza feminista e que merece estudos mais aprofundados. Em sua obra, da qual destacamos The Book of Mrs. Noah (1987), Daughters of the House (1992) e Fair Exchange (1999), essa escritora explora as vidas das mulheres, suas histórias e experiências, com grande ênfase na experiência materna. Analisar a maternidade na literatura e tentar contribuir para a desconstrução dos conceitos patriarcais sobre essa experiência requer um estudo de, pelo menos, certos momentos da maternidade na história e sua relação com a literatura. A história mantém certa semelhança com a literatura. Ambas são narrativas e, portanto, são construídas de acordo com a perspectiva do narrador. Com as várias discussões e dificuldades sobre a definição da literatura, muitas vezes a própria linha divisória que a separa da história se torna tênue. No entanto, a relação da história com a literatura nem sempre foi problemática, pois a primeira era considerada como um desdobramento da segunda. Foi apenas com a construção do sentido da literatura e de sua constituição como a temos hoje, que a história apareceu como algo distinto dela. Lionel Gossman, em seu ensaio History and Literature: Reproduction or Signification relata como foi a relação entre essas duas áreas ao longo dos séculos e mostra como se deu sua separação. Apenas na fase final do Neoclassicismo, a associação entre a literatura e a retórica começou a ser quebrada e aquela passou a ser identificada à poesia, à escrita figurativa, ao grupo de textos privilegiados e sagrados, diferentes de e se contrapondo a todos os produtos do mundo “degradado” do capitalismo industrial. A história, por sua vez, começou a ter seu foco discutido, passando a haver uma preocupação maior com uma teoria de objetividade histórica. Por fim, durante o século XIX, uma separação mais definitiva e derradeira se deu na divisão disciplinar e especializada das disciplinas na universidade. No entanto, apesar de seu passado de aproximação e das semelhanças que ainda são possíveis observar mesmo depois de sua separação, a história e a literatura ainda enfrentam resistência no que diz respeito à aceitação de seus pontos em comum. É difícil concordar em chamar de narrativa algo próximo da ficção, um relato da “realidade”, feito sob os princípios da objetividade e imparcialidade científica, como pretende ser entendida a história. Segundo o historiador estadunidense Hayden White, “tem havido uma relutância em considerar as 70 narrativas históricas como o que elas mais manifestamente são -ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventados como achados e cujas formas têm mais em comum com a literatura do que com a ciência.” (WHITE, 1978: 42). Para White, a história difere da ciência no ponto em que não é capaz de dar origem às leis universais que tenta produzir. Ao mesmo tempo, seria diferente da literaturaà medida em que se interessa em retratar o “real” e não o “possível”, considerado o objeto da ficção. Entretanto, ele deixa bem claro que a suposta concretude dos textos históricos é produto da própria capacidade ficcional do historiador. Elisabeth Badinter também atenta para a inevitável parcialidade dos historiadores: Há muito tempo foi reconhecida a impossibilidade de um observador, por mais circunspecto e cauteloso que seja, despojar-se de suas paixões para ver os outros com toda a objetividade. Georges Duby lembrou recentemente esta verdade essencial aos seus colegas historiadores. O desenvolvimento da história quantitativa e a utilização da informática, diz ele, permite ter materiais mais precisos, mas o historiador os utiliza a serviço de suas paixões e da ideologia que o domina. (BADINTER, 1985: 12) Sob tal lógica, a história é discurso, uma forma cultural como qualquer outra. É um discurso fortemente imbuído do sistema simbólico do imaginário social, que de acordo com Tania Navarro Swain, em Você disse imaginário?, se encontra em toda formação social. Como nos explica Swain, os símbolos criam realidades, naturalizam imagens em certos momentos históricos, utilizando a memória coletiva e as tradições. O imaginário dissemina, revitaliza, ressemantiza imagens, criando paradigmas e normas, que se fortalecem na repetição ritual. O controle do imaginário, assim, acaba sendo fonte de poder: “A posse do controle do imaginário é (...) uma peça essencial do dispositivo do poder” (SWAIN, 1993: 49) e, portanto, os paradigmas criados pelo imaginário são manipulados de forma a dominar e organizar a sociedade de acordo com os interesses dos que detêm o poder. “Assim, na trama do social, criam-se as noções de ‘evidente’, ‘natural’, ‘universal’, bloqueando inclusive a possibilidade de se pensar o heterogêneo” (SWAI, 1993: 49). Margareth Rago, lembrando o pensamento de Michel Foucault, diz que para esse filósofo, o discurso não é reflexo do real, mas sim, prática e, como tal, constrói figuras sociais, identidades, dando um sentido determinado ao fato histórico: Recusando a concepção do discurso como reflexo do real, o filósofo explicava que o discurso é prática, e que as práticas discursivas instituem figuras sociais, constroem identidades e objetivam o fato histórico, dandolhe visibilidade e imprimindo-lhe sentido determinado. Contrariava, nesse sentido, a cristalizada representação de que o fato existe por si só independentemente do discurso. (RAGO, 1995: 28) 71 Consciente do poder e das limitações da história, Foucault defende a sua autonomização, sua libertação de procedimentos envelhecidos, cristalizadores, totalizadores, de construções autoritárias do passado, que pretendem levar à única verdade. Acaba, assim, defendendo uma “nova história”, mais aberta às diferenças, à diversidade, aos múltiplos pontos de vista. Segundo Margareth Rago: Foucault, na contramão, publicava A Arqueologia do Saber, livro de 1969, partindo em defesa da História. Denunciava os atentados aos seus direitos, quando se ignoram os acidentes, os acasos, os desníveis, em nome de uma homogeneização totalizadora quando se é incapaz de pensar as descontinuidades. (RAGO, 2002: 257) A descontinuidade é aquela que está dispersa e que emerge contrapondo-se à idéia de continuidade, e supõe a existência dos “obstáculos”, ou seja, elementos postos de lado pela continuidade da historiografia tradicional. Assim, esses “obstáculos” significam grupos sociais, experiências etc., silenciados pelos recortes dos historiadores, como as mulheres e, consequentemente, a maternidade. E ao se “pensar as descontinuidades”, vozes silenciadas são trazidas à luz. Isso implica reconhecer o aspecto ficcional das narrativas históricas, atitude que, “serviria como um antídoto poderoso contra a tendência dos historiadores em se tornar cativos de pré-conceitos ideológicos, que eles não reconhecem como tal, mas honram como a ‘correta’ percepção da ‘maneira como as coisas realmente são’ ”, nas palavras de Hayden White. (WHITE in CANARY e KOZICKI, 1978: 61) A busca por vozes silenciadas encontra saída sobretudo na literatura, que tanto nos diz sobre uma época, suas ideologias, seus costumes. Assim, a preocupação com a maternidade e sua abordagem pela história e pela literatura faz com que a experiência materna seja pesquisada e historicizada, não mais para confirmar a superioridade da autoridade do homem, de acordo com a perspectiva androcêntrica, mas sim conforme uma leitura feminista dessa experiência que constitui mulheres como mães. Assim, em meio ao mundo patriarcal de pensamento, pinçam-se vozes maternas um pouco apagadas na história, como o romance Maria, or the Wrongs of Woman, e Mary, a Fiction, escritos por uma mãe, Mary Wollstonecraft. E, praticamente na virada do século XX para o XXI, a voz da mãe se faz sentir também intensamente no romance Fair Exchange, não só por também ter a maternidade como tema central, mas por evocar uma voz materna do século XVIII: Mary Wollstonecraft. Laços de identificação entre mulheres, contribuições ricas em experiência e elementos capazes de desconstruir noções distorcidas do patriarcado sobre elas. 72 Mary Wollstonecraft é importante para uma nova visão da família e da maternidade não só por causa de seus textos políticos, mas também pelo precedente que abriu sobre esses temas também na literatura. Apesar de não terem sido considerados sucessos literários, ambos os romances apresentam muitas das atitudes criticadas por Wollstonecraft e muitos de seus ideais representados em suas personagens. Dentre os valores e os comportamentos expostos e discutidos pela pensadora inglesa se encontram os relativos à maternidade, os quais são investidos de grande importância em suas representações. Nessas, Wollstonecraft analisa as atitudes da mãe como sendo a base fundamental para o crescimento físico e mental saudável do ser humano e, portanto, defende que enquanto não houver uma mudança nos comportamentos e valores que dizem respeito à maternidade, não haverá melhoria nas condições sociais e políticas das mulheres e, consequentemente, da sociedade como um todo. O pai também é descrito como tendo um papel imprescindível na criação dos filhos, principalmente quando Wollstonecraft sustenta que a relação entre mães, pais e filhos deve se desenvolver com afeto e respeito, como requisito indispensável para o crescimento de cidadãos sensatos e virtuosos. O romance Mary, a Fiction foi todo escrito em terceira pessoa e a história principal gira em torno da amizade entre as personagens Mary e Ann, baseada na forte amizade entre Wollstonecraft e Frances Blood (Fanny), que morreu ainda jovem. Há uma forte presença de referências à triste infância da escritora ao lado de um pai violento e machista. A semelhança entre a história real e a ficcional chega a ser tamanha, que se torna, às vezes, difícil distinguir uma da outra. Além de retratar essa forte amizade entre mulheres, o romance também mostra a opressão a que a mulher estava submetida numa sociedade patriarcal que utiliza o casamento para subjugar as mulheres com o fim de atender aos seus interesses. Mary se recusava a viver com um homem com o qual havia se casado por vontade de seu pai em perpetuar e aumentar a herança da família e é, assim, um exemplo de resistência. O romance Maria, or the Wrongs of Woman traz algo especial: a maternidade como tema central. O romance inova, sobretudo, não só por sua temática, mas por ser narrado sob a perspectiva da mãe, em uma época em que se falava muito sobre a mãe, mas ela quase não era ouvida. Publicado inacabado no ano após a morte de Mary Wollstonecraft, Maria se desenvolve a partir da personagem principal Maria, mãe que foi separada de sua filha de apenas quatro meses de idade. Começa com suas reflexões sobre sua situação angustiante, ao acordar e ver-se presa em um hospício de um dia para o outro, internada pelo próprio marido, que queria a herança 73 que o tio de Maria deixara para ela. Ela ama sua filha e nada parece doer mais do que estar separada dela e não estar acompanhando e cuidando da menina. A personagem Maria também se preocupa por ter uma filha, portanto, uma menina sujeita ao regime patriarcal, à autoridade de um pai cruel e ambicioso, privada de uma infância feliz e amorosa ao lado da mãe, que a ama. Parte desse receio remete às preocupações da própria Wollstonecraft em relação à sua filha Fanny, como se pode perceber em suas cartas escritas durante uma viagem aos países escandinavos, quando a escritora expressa saudades de sua filha e a preocupação por ela ser menina e estar, portanto, sujeita à opressão patriarcal: A empatia que inspirei, assim caindo das nuvens em uma terra estranha, me afetou mais do que se meu espírito não tivesse sido assediado por várias causas – por pensar demais – pensando quase até a loucura – e até por um tipo de melancolia fraca que envolvia meu coração por me separar da minha filha pela primeira vez. Você sabe que, como uma mulher, eu sou particularmente ligada a ela; eu sinto mais do que o carinho e ansiedade de uma mãe quando reflito sobre o estado dependente e oprimido do seu sexo. (WOLLSTONECRAFT, 2009: carta VI) A personagem Maria apresenta uma forma de maternidade mais livre, à medida em que cuidar da filha e amamentá-la são desejos seus, e não simples obrigações provenientes de situações opressoras. As reflexões feitas por ela expressam desejos profundos e denunciam a situação a que as mulheres estavam submetidas. Apesar de conter grande parte dos sentimentos e experiências da própria Mary Wollstonecraft em sua relação amorosa malsucedida com Gilbert Imlay, essas reflexões expressam os desejos da escritora de mudanças políticas e sociais para as mulheres e a família. As preocupações de Maria com o futuro da filha no sistema patriarcal opressivo em que se encontravam demonstra que mudanças eram urgentes. Wollstonecraft defendia o afeto e o respeito entre mãe, pai e filhos como algo fundamental, tanto em seu manifesto quanto em seus romances. Além disso, a escritora se preocupava com os primeiros anos da infância e enfatizava a importância do aleitamento materno ao retratar a tristeza de Maria por não poder amamentar a filha no momento em que o bebê mais precisa. Durante sua produção política, Wollstonecraft defendeu que apenas uma transformação na família, que incentivasse o amor e o respeito entre pai, mãe, filhos e filhas levaria a uma transformação progressiva da sociedade. Nesse sentido, de acordo com Eileen M. Hunt, concordava com seu rival Edmund Burke que, apesar de defender a estrutura patriarcal, compartilhava com Wollstonecraft a importância da função moral, social e política da família. Segundo Burke, nós começamos nossas relações com os outros na família, e o bom cidadão deve, primeiro, ter afeto 74 pelos pais, irmãos e todos os seres vivos que estão presentes em seu mundo familiar. No entanto, para Wollstonecraft, a sociedade patriarcal deturpava e impedia o desenvolvimento das virtudes morais, sociais e políticas dos filhos, que servem como a base de qualquer sociedade humana estável. Essa seria, como vimos, uma das preocupações que Maria tinha em relação à sua filha, uma menina, sujeita ao regime patriarcal. Um dos aspectos mais interessantes sobre o discurso de Mary Wollstonecraft é a atualidade de seus pensamentos principais sobre a família. As mudanças pretendidas dois séculos atrás, nada mais eram do que os ideais ainda buscados hoje. Não sendo patriarcal, havendo igualdade entre marido e esposa, entre irmãos e irmãs, todavia a nova família não prescindia do dever da mãe e do pai de proteger, educar e disciplinar seus filhos, e do dever desses, em contrapartida, de respeitar seus progenitores e retribuir o afeto recebido, até a velhice dos pais. Pois, segundo ela, o afeto natural entre pais e filhos é muito fraco e, por isso, deve ser cultivado no dever de cuidado, que tanto a mãe quanto o pai tem com as crianças. Derruba, dessa forma, teorias essencialistas patriarcais. Apesar de que os pais deveriam exercer sua autoridade sobre os filhos, Mary Wollstonecraft defendia que deveria haver limites à essa autoridade. Ela protestava contra a violência física e a manipulação emocional, se opondo, assim, à legitimidade da autoridade dos pais (os homens) que lhes dava o direito de dispor até mesmo da liberdade dos filhos.47 Além disso, defendia a emancipação dos filhos na maioridade para, eles próprios determinarem o curso de suas vidas, sem estarem sob o controle dos pais. Dessa forma, o pensamento de Mary Wollstonecraft rompeu com o discurso essencialista e patriarcal e trouxe ideias que repercutiriam no pensamento feminista do século XX.Demonstra que a maternidade pode ser uma experiência positiva na vida das mulheres sem atrapalhar ou impedir realizações pessoais, como estudo e trabalho, já que Wollstonecraft defendia educação e oportunidades iguais para homens e mulheres. Além disso, mostrava a exequibilidade desse pensamento em suas próprias ações: teve uma filha, mas não deixou de escrever. Com Maria, or the Wrongs of Woman, abria um precedente para a abordagem da maternidade como tema central na literatura e, acima de tudo, sob a perspectiva da própria mãe. Além 47 De acordo com Elisabeth Badinter, uma leitura atenta do quarto mandamento do Decálogo (“Pai e Mãe honrarás, para que vivas longamente” ) leva à ideia de que caso o filho não cumpra o preceito, o pai tem o direito de tirar-lhe a vida. (BADINTER, 1985: 37) Além disso, há informações de que ainda no século XVII, na França, filhos eram mandados para a prisão por motivos fúteis e crianças bem jovens e adultos se misturavam nas celas. 75 disso, ressaltou uma relação em especial, dentre as muitas que envolvem a maternidade: a relação entre mãe e filha. Apesar de ser um romance inacabado e, por isso, com final vago, a sua publicação possui bastante valor, pois retrata a mulher que se torna mãe, em uma época onde a crítica literária não concordava com representações desse tema. Além disso, no início de Mary, e também no prefácio de Maria apresenta-se a vontade da autora de desenvolver uma personagem diferente das geralmente retratadas, diferente de Sophie, de Rousseau, por exemplo, mulheres como ela, que erravam e sofriam, eram amigas, amantes apaixonadas, mulheres independentes e livres. Ainda no século XX, apesar de uma vigorosa produção do movimento feminista, percebe-se ainda a escassez das vozes das mães na literatura. No entanto, Michèle Roberts, nascida em Hertfordshire, Inglaterra, em 1949, apresenta a subjetividade feminina e, em especial, a materna, como tópico principal de sua produção ficcional, como forma de contar suas histórias de vida e desafiar o conceito patriarcal da história tradicional e, portanto, “reivindicar a posição social e histórica das mulheres na cultura ocidental”. (RODRÍGUEZ, 2003: 93) E em um de seus romances, Fair Exchange, Roberts retoma muitos dos ideais e pensamentos da própria Wollstonecraft. Em Fair Exchange, publicado em 1999, a relação entre mãe e filha assume importância, assim como outros aspectos relacionados à maternidade. A perspectiva materna é fundamental, pois é por intermédio da história contada por uma mãe (pobre), Louise Daudry, que se conhece a história de outras mães. Assim, a voz materna é ouvida em dois níveis: mães que falam por meio de outra mãe que fala. O ponto de vista narrativo assume complexidade, à medida em que a narração de Louise é apresentada ao leitor por uma narradora onisciente. O romance, escrito em terceira pessoa, começa com Louise, uma mulher do interior da França, mãe de dois filhos, casada, que se encontra muito doente e precisa se confessar e, assim, livrar-se do peso do que considera ser o pecado horrível de sua vida, cometido no outono de 1792. Louise conta a história de Annette e Jemima. Jemima foi uma menina órfã, mandada pelos parentes para a escola dirigida por Mary Wollstonecraft e suas duas irmãs. Ela acabaria sendo influenciada pelas idéias feministas de Wollstonecraft, assimilando grande parte de seus ideais e, como a pensadora inglesa, vivendo de acordo com eles. Assim como Wollstonecraft, Jemima desejava ganhar a vida como escritora e ser mãe ao mesmo tempo. Buscava sua independência, ao contrário de Annette, que sonhava em se casar e 76 formar uma família. As vidas e os pensamentos de Jemima e da Wollstonecraft ficcional são tão parecidos que, às vezes, é difícil distinguir uma da outra. Já Annette foi educada em um convento e, quando adulta, foi mandada para o interior da França pela família para esconder sua situação de mãe solteira. Lá, hospedada na casa da criada Louise, se fez passar por viúva para não despertar comentários dos moradores do lugar. Pouco tempo depois, Jemima, já adulta também, foi morar na mesma vila em busca de paz e concentração, pois queria ser escritora, mas encontrava-se na mesma situação de Annette: estava sozinha, grávida e vestida de viúva. A partir daqui começa o clímax da história, que retrata os detalhes da vida, das experiências cotidianas de duas mulheres à espera de um filho. Ao ler as conversas entre Jemima e Annette sobre suas incertezas e preocupações, conhecemos a Revolução Francesa por intermédio de seus pontos de vista. Excluídas da igualdade e da liberdade defendidas pela Revolução, elas sofrem as consequências dos valores arraigados do patriarcado. Ambas estavam sozinhas, grávidas e sem a presença e o apoio de seus companheiros. Assim, quando Jemima conversa com sua amiga Annette sobre os problemas que as assolam, Annette critica os ideais da Revolução Francesa: Liberdade, fraternidade, igualdade, disse a Jemima: e para onde isso te levou? Para onde isso me levou? Aquela preciosa liberdade da qual você fala, é liberdade para os homens, não para as mulheres. Olhe para nós. Grávidas e tendo que nos esconder porque não estamos casadas. (ROBERTS, 2000: 113) Coincidentemente, os bebês de Annette e Jemima nasceram no mesmo dia. Duas meninas: Caroline, filha de Annette, e Maria, filha de Jemima. E os pais, amigos, visitaram as mães nesse mesmo momento, abandonando-as tempos depois. Mais tarde, quando os pais resolvem voltar, trocam os bebês das duas mulheres no dia do parto baseando-se numa aposta negligente para comprovar suas idéias deterministas de que o caráter é fixado ao nascer, independentemente da criação, e abandonam as mães novamente. Tempos depois, Maria morreria ainda bebê, deixando Jemima muito triste. Assim, ao retratar a condição de não liberdade das mulheres, questiona-se o conceito de indivíduo abstrato universal, possuidor dos direitos assegurados pela Revolução Francesa, conforme o questionamento de Joan Scott, em Relendo a História do Feminismo. Ela mostra a contradição desse conceito, segundo o qual para que os seres humanos pudessem ser concebidos como iguais, deveria haver a exclusão de categorias diferenciadoras de raça, classe, religião, sexo etc. Mas a diferença entre o eu e o outro acabou se reduzindo a uma 77 questão de diferença sexual: a masculinidade se igualava à individualidade e a feminilidade à alteridade. Portanto, “a mulher não era um indivíduo não só por ser não-idêntica ao protótipo humano [do homem branco europeu], mas também porque era o outro que confirmava a individualidade do indivíduo (masculino).” (SCOTT, 2002: 34) Dezessete anos mais tarde, Jemima, cujos sonhos e ideais haviam desvanecido com a morte de sua filha Maria e com o abandono de Paul Gilbert, pai de sua filha, descobriu que ele havia pago Louise para trocar os bebês no dia do parto. Jemima, assim, teve sua filha de volta, pois a menina que havia morrido era, na verdade, filha de Annette. No entanto, Caroline, imediatamente após conhecer sua verdadeira mãe, sentia a necessidade de deixá-la novamente, seguir seu caminho e ir em busca do pai, mesmo que ele não desejasse vê-la. Mas Caroline é como Perséfone. Ela partirá, mas prometeu à sua mãe que voltará. Retornamos, então, a Louise que, assim, confessa o crime que cometeu. Por ter compactuado com a idéia inconsequente de Paul de trocar os bebês por dinheiro, se sentia extremamente culpada. Oprimida pela pobreza e assustada com sua condição vulnerável diante dos patrões, fez uma coisa que considera horrível, e por ser mulher e, agora mãe, a dor que deve ter causado às mães e às filhas parece lhe doer ainda mais. Quanto ao mais culpado de todos, Paul Gilbert, não há sinais de arrependimento. No entanto, contar sua história havia acalmado Louise. A visita do padre lhe ensinou uma coisa: “Contar a história era tão importante quanto o que estava nela.” (ROBERTS, 2000: 246) Ao retratar como devem ter sido as vidas de mulheres do passado em seus romances, Roberts traz à vida milhares de vozes silenciadas pela opressão do relato histórico patriarcal. Além de contar histórias silenciadas, é necessário recontar histórias de mulheres, como a de Mary Wollstonecraft, que foram distorcidas ou transmitidas de forma incompleta pelo discurso patriarcal; recontar histórias, como faz Roberts ao contar novamente as biografias de mulheres que conhecemos, sob perspectivas diferentes, ou melhor, das próprias mulheres, da mãe. Assim, é preciso (re) contar as histórias dessas mulheres e, consequentemente, a própria história. Assim, romances como Mary, a Fiction, Maria, or the Wrongs of Woman e Fair Exchange, por suas inovações, como as referentes à visibilidade da voz materna e da experiência da mulher na produção ficcional de autoria feminina, contribuem não apenas para a desconstrução de mitos patriarcais e para novas visões da maternidade, mas também para uma reformulação dos padrões estéticos literários tradicionais. 78 BIBLIOGRAFIA AGONITO, Rosemary. History of Ideas on Women. 1. ed. New York: Paragon, 1977. BADINTER, Elisabeth. Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno. Tradução de Waltensir Dutra. 4.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BEAUVOIR, Simone de. The Second Sex. Tradução de H.M. Parshley. 3.ed. New York: Vintage Books, 1989. CHODOROW, Nancy. Estrutura Familiar e Personalidade Feminina in ROSALDO, Michelle e LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura e a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. CHODOROW, Nancy. 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Disponível em http://www.gutenberg.org/files/3529/3529-h/3529-h.htm. Acessado em março/2009. 80 LITERATURA LESBIANA CONTEMPORÂNEA - UM LOCUS NEM TÃO AMENO Maria da Glória de Castro Azevedo48 RESUMO: A literatura de temática lesbiana contemporânea além de representar um lugar de afirmação desse gênero “menor”, dentro do sistema literário, propõe-se a ser um lugar de visibilidade das relações afetivas entre mulheres-fato que muitas vezes faz com que o discurso literário seja ameno e mesclado de romantismo. Entretanto, nem toda literatura de temática lesbiana apresenta-se como literatura cor –de-rosa, também há autoras que se propõem a analisar a mulher num um contexto sócio-cultural envoltas nas (im)possibilidades das relações afetivas, resguardando-se de uma ficção em que predomine a idealização da realidade. PALAVRAS-CHAVE: literatura , lesbianidade, representação e margem. Como estabelecer uma relação ente preconceitos, representações e linguagem, quando se busca entender alguns ruídos na representação da mulher? O eixo da reflexão é a mulher que escreve, a escritora, em um contexto no qual a cultura parece estar ainda pouco combativa e engajada nas questões que se referem às práticas de escrita, à função da autora. (Tânia Regina de Oliveira Ramos) A literatura de temática lesbiana escrita por mulheres vive numa zona de conflito na construção do discurso literário. Em primeiro plano é preciso transgredir a linguagem para poderá alcançar a literariedade e em segundo plano, mas não em tão segundo plano assim, é necessário tomar cuidado para que essa transgressão não produza um discurso essencialmente erotizado. Do que deve falar a literatura lesbiana, de sexo, de perdas, de conflitos, de impossibilidades, de possibilidades? Qual a representação da literatura lesbiana na contemporaneidade? Ela ocupa o mesmo lugar que os romances românticos, com o diferencial de que os amantes são “as amantes?” A literatura lesbiana contemporânea constrói-se como um discurso de relações afetivas, como um espaço intermitente da busca da amante perdida, da parte arrancada da outra49. São corpos separados que se procuram para que assim possam chegar à completude, por isso, nessa literatura, o sexo lésbico está sempre presente como uma marca de identidade, aceitação, saída de armário, conflito e como zona central da narrativa. 48 Maria da Glória de Castro Azevedo é professora do curso de Letras na Universidade Federal do Tocantins/ UFT. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília/ UnB e Doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília/ UnB, com pesquisa sobre Cassandra Rios e a literatura de temática lesbiana brasileira. Publicou em 2008 os artigos “O interdito no ideal de nação: a lesbiana existe para a literatura brasileira?” Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea; “Literatura Lesbiana: o gênero demarca o lugar de exclusão”, no livro Representação de gênero e sexualidades, (Universidade Estadual da Paraíba). Em 2007: “O outro me transgride: deve a literatura sair do centro?”, Intercâmbio, - X Congresso Internacional de Humanidades Palavra e Cultura da América latina, Universidade de Brasília. 49 Platão define o amor, em O Banquete como a junção de dois corpos completos como num só. Anteriormente não havia um homem e uma mulher, mas um ser andrógino, um ser completo e feliz e por isso despertou a inveja dos deuses que separaram os corpos, transformando-os em seres incompletos e infelizes, sempre em busca de suas metades. O ser andrógino é por natureza pertencente ao mundo das idéias platônico, como a forma de beleza ideal do amor; seria o amor puro e verdadeiro, numa dicotomia entre mundo ideal e mundo real.( Platão. Diálogos. 3ª ed., São Paulo: Cultrix, s/d) 81 Esse é talvez o choque inicial do discurso lesbiano, a voz narrativa, de autoria feminina falando em outro corpo feminino, em zonas erógenas de prazer, em corpos saciados50: Cochilo sem forças, sinto o perfume da sua pele que me acalma, minha perna sobre a sua, os corpos distantes, um sono curto e profundo, meu corpo ainda não esqueceu a cozinha. Acaricio suas costas, sua nuca, olho com atenção sua bunda e a toco em pensamento, acaricio, lambo, numa cama meio sombra meio sol. Ela acorda, me sorri um sorriso maroto, finjo medo e ela se anima, me prende com força entre suas pernas e braços, me morde as costas e me toca, num ritmo lento, dorminhoco, sem pressa. O sujeito marginalizado, literariamente, transgride o discurso e fala da interdição do desejo/ atuação sexual duplamente transgressor para a fala feminina: desejo sexual e homossexualidade: Outro elemento que deve ser considerado na literatura lésbica é que ela se inscreve como um subgênero dentro dos gêneros literários. Por ser um discurso centrado na sexualidade, por ter como fundamento principal da narrativa a subjetividade amorosa entre mulheres, esses textos são classificados como “literatura de temática lesbiana”, ou “literatura lésbica” e essa classificação já a separa e desautoriza a legitimidade de ser literatura brasileira e de, conseqüentemente, ter visibilidade de títulos e de autoras, fator que as restringem a um pequeno espaço de divulgação. A costumeira ausência dessa literatura nos ambientes acadêmicos, nas salas de aula dos cursos de letras, nas resenhas de revistas e jornais, lembra o quanto o cânone literário é fechado para quebra de paradigmas, não há uma cultura de enfrentamento de questões consideradas polêmicas. O número crescente de autoras lésbicas me faz retornar ao feminismo francês dos anos 70 que assegura haver uma escritura feminina que diferencia o discurso masculino do feminino, visto que o discurso da mulher perpassa pelo corpo e suas sensibilidades, subjetividade, linguagem e emoção. O discurso literário lesbiano ainda se instaura nessa escrita do corpo e por isso é visto, atualmente, de modo sexista-assunto particular, assunto sem relevância. Esse número crescente de autoras que publicam em editoras voltadas especificamente para a literatura de temática lesbiana não consegue sair gueto em que está enredada. Não há referência, fora do eixo das editoras GLS e Malagueta, por exemplo, de autoras como Valéria Melki Busin, Fátima Mesquita, Lúcia Facco, Naomi Conte, Vange Leonel, dentre tantas. O preconceito que marginaliza essas autoras e suas editoras é, sem que elas o percebam ou aceitem, o mesmo que havia 50 Naomi Conte em A livraria da esquina, pp 12-13 82 para com Cassandra Rios, só que agora velado. Elas também são desprestigiadas, seus textos não são sequer referidos e alguns são questionados quanto à qualidade da linguagem e valor editorial. Mas o desprestígio sobre elas talvez seja maior, porque sequer são incomodadas. Talvez lhes falte “o eixo de reflexão”, talvez elas não tenham percebido que não basta falar sobre sexo. Ou renegar Cassandra Rios, como fez a escritora Vange Leonel:51 “Há uma necessidade de romper, definitivamente, com a fase de Cassandra Rios e Nelson Rodrigues, e suas obras moralistas. Nelas, o homossexual são sempre pervertidos, sem caráter e mal sucedidos” cuja fala demonstra que a escritora quando leu Cassandra Rios não entendeu seu lugar de fala nem o contexto histórico no qual suas obras se inserem. As personagens de Cassandra Rios são trágicas, mas não são sem caráter e nem pervertidas. São mal sucedidas subjetivamente, devido a fatores culturais e sociais, mas não são mal sucedidas economicamente. Cassandra Rios, ao criar personagens abalados psicologicamente, problematizava a estrutura social dominante, utilizando-se de um discurso tenso e em conflito com o pensamento patriarcal heterossexista de sua época ( de 1948 aos anos 80) como pioneira nesse tipo de temática, na literatura brasileira, essa autora não poderia tratar o romance com idealização e romantismo, daí porque sua escrita é uma espécie de naturalismo. No entanto, Cassandra Rios não trata a homossexualidade masculina ou feminina de forma negativa, como doença ou deformação do caráter, como é feito pelo naturalismo. Essa talvez seja a sua maior ousadia - a de confrontar o vigente discurso biológico e social sobre a homossexualidade, ao construir personagens conflitantes não em conseqüência da homossexualidade, mas em decorrência da violência / exclusão social a que se viam obrigadas a viverem. Na literatura de temática lésbica contemporânea não há a problematização da marginalização histórica da mulher lésbica, embora haja uma audaciosa capacidade de criação literária pautada na sexualidade, na descrição de relações sexuais As novas escritoras lesbianas desejam criar um ethos de semelhança ao da heterossexualidade, por isso produzem histórias em que as personagens vivem numa espécie de ilha da fantasia, artificial e improvável à realidade, como, por exemplo, no romance A vila das meninas, de Stella C, Ferraz. Na maioria desses romances, o conflito por que passam as personagens é apenas o de aceitação pessoal, sem que haja uma reflexão sobre o que gera esse conflito ou qual representação sócio-cultural que uma nova identidade sexual acarretaria à personagem. 51 Lúcia Facco em As heroínas saem do armário, p 171 83 Mas o “território selvagem” em que se insere a literatura lesbiana não se limita ao erotismo e ao final cor - de – rosa, também há textos em que aparece o “ruído das representações da mulher”, comum discurso reflexivo quanto à problematização da homossexualidade feminina, do relacionamento amoroso, da vida cotidiana.. Nesses textos fala-se sobre solidão, medo, preconceitos e amor. Como exemplo, analisarei aqui os contos Tigrela, publicado em Mistérios, de Lygia Fagundes Telles, o qual orbita no universo feminino e pertence à narrativa fantástica sobre os mistérios que envolvem a condição humana, temática recorrente em Lygia Fagundes Telles e Das crises inúteis, de Naomi Conte52, publicado em A livraria da esquina e outros contos de mulheres. Em Tigrela, a presença do fantástico leva, inicialmente, @s leitor@s a crer que “Tigrela” refere-se apenas a um tigre morando no apartamento de uma rica, excêntrica, perturbada e solitária mulher, mas essa leitura segue outro caminho a medida em que Romana, a perturbada mulher, fala de tigrela para uma amiga, que encontrou por acaso, num café. O nome Tigrela é sugestivo: junção de tigre, mais o pronome feminino ela. Sabemos que o tigre simbolicamente representa a fatalidade, a sedução, a beleza feminina. A narradora vale-se do fantástico para produzir uma narrativa altamente simbólica sobre a solidão feminina e o conflito existente em relações afetivas entre pessoas de classes sociais, idades diferentes, e sexualidades transgressoras (a personagem Romana, eixo do enredo, é bissexual) . A narrativa se inicia com uma personagem-narradora falando que encontrou por acaso, Romana, meio bêbada, num café. Amigas antigas, Romana agora envelhecida, ainda guarda resquício de beleza, embora seja uma beleza triste. Esta pede ajuda à amiga e conta-lhe que se separou do seu quinto marido e que vive, agora, com um tigre, no apartamento: “ dois terços de tigre e um terço de mulher, foi se humanizando e agora”. A personagem Romana parece hesitar sobre falar da Tigrela. Tenta pedir ajuda amiga, tenta contar sobre o jovem animal que vive com ela num imenso apartamento, sem vizinhos, mas à medida que fala e bebe, apenas metaforiza Tigrela53 52 A livraria da esquina e outros contos de mulheres ( Editora GLS)é o primeiro livro da escritora Naomi Conte, autora do excelente Contos interditos (http://contosinterditos.blogspot.com), blogue de contos minimalistas lésbicos com alto teor erótico. Sobre as autoras lesbianas contemporâneas é curioso o fato de muitas usarem pseudônimo. Naomi Conte é o pseudônimo de uma autora que possivelmente não deseja ser identificada como lésbica, embora a Editora GLS tenha a política de publicação de livros de escritoras lésbicas. Vê-se que desde Cassandra Rios, pseudônimo de Odete Rios, que publicou seu primeiro livro em 1948, até hoje, as escritoras lésbicas ainda não conseguem assumir uma identidade com a literatura que produzem. O mesmo não acontece com as escritoras não identificadas como lésbicas que publicam em grandes editoras e não negam suas autorias quando tratam de assuntos polêmicos como o erotismo e a homossexualidade, para serem abordados por mulheres, caso de Lygia Fagundes Telles de cujo conto Tigrela farei um breve estudo no presente artigo. 53 Lygia Fagundes Telles em Mistérios, p.95 84 No começo me imitava tanto, era divertido, comecei também a imitá-la e acabamos nos embrulhando de tal jeito que já não sei se foi com ela que aprendi a me olhar no espelho com esse olho de fenda. Ou se foi comigo que aprendeu a se estirar no chão e deitar a cabeça no braço para ouvir música, é tão harmoniosa. A personagem titubeia, parece ter medo de revelar para a amiga a identidade verdadeira de Tigrela e prefere traçar um perfil de um animal felino, dócil controlado e aprisionado num grande apartamento branco, com um jardim na varanda. Tigrela é um animal solitário, enjaulado, depressivo, alcoólatra e ciumento. Nas suas crises de depressão e ciúme, torna-se violento e suicida, por isso Romana põe grade nas janelas. Nos parágrafos iniciais da narrativa, aparece uma relação em conflito e que perpassará por diferentes situações numa relação que poderia ser simétrica, mas é desigual: a mulher mais velha, separada do quinto casamento, vive livre e solta,sai à noite, ( e desencadeia as crises de ciúmes da jovem Tigrela), mantém ainda um relacionamento de idas e voltas com seu quinto último marido. Romana comprou tigrela e a mantém dócil e lúcida, presa em sua jaula de luxo. Mas já sei que só tenta o suicídio na bebedeira e então basta fechar a porta que dá para o terraço. Está sempre tão lúcida54. Do outro lado está uma jovem tigrela que gosta de ver sua dona(?) vestir-se elegantemente para sair (embora sinta ciúme, se enfureça e para se acalmar, ganha um colar de pérola), sente ciúme da empregada mais jovem e obriga Romana a despedi-la, passa os dias solitária no apartamento, sendo cuidada por uma empregada mais velha- uma espécie de mãe. Ouve música, deita-se nas almofadas, chora escondida, como um bicho acuado diante da traição de Romana. Não há referência explícita sobre um romance envolvendo essas duas mulheres, mas há a tensão sobre o não dito, o terreno do interditado em uma relação afetiva que é mantida em silêncio, negação, atração e repulsa, talvez por isso Romana segure a mão da amiga como se a lhe pedir ajuda, duas vezes, para logo depois se revestir de indiferença. Talvez por isso, Romana crie uma identidade outra para a mulher mais nova. Ela não sabe como revelar para a amiga com quem vive atualmente. A amiga, vendo o machucado no pescoço de Romana e percebendo o medo e angústia em que esta se enredada, sugere-lhe: 54 Id.,p.96 85 Mas Romana, não seria mais humano se a mandasse para o zoológico?Deixe que ela volte a ser bicho, acho cruel isso de lhe impor sua jaula, e se ela for mais feliz na outra? Você a escravizou. E acabou se escravizando, tinha que 55 ser. Não vai lhe dar ao menos liberdade de escolha? Escravização, essa é a tensão da relação afetiva entre Romana e Tigrela: Um escravizada pela juventude e sedução, a outra pela maturidade, amor e luxo oferecidos. Uma cansada do novo brinquedo, da sexta relação amorosa, a outra ferida e felina no seu amor. Liberdade é conforto, minha querida. Tigrela também sabe disso. Teve todo o conforto, como Yasbeck fez comigo até me descartar.56 Aí está: Tigrela está acostumada à liberdade do conforto, Tigrela, assim como o quinto marido pode se cansar da mulher mais velha e a descartar. Mas, antes que isso aconteça, Romana deseja se descartar de Tigrela e de uma relação amorosa tensa e doentia, para isso, depois de uma discussão saiu de casa e está na rua, bebendo. Antes de sair, preparou a morte de seu bicho de estimação: ao invés de leite, pôs uísque na tigela, apagou as luzes e deixou a porta do terraço abeta (como nas noites anteriores, embora nada tenha acontecido) e volta para casa, tarde da noite, tremendo porque nunca sabe se o porteiro vem ou não me avisar que de algum terraço se atirou uma jovem nua, com um colar de âmbar no pescoço57. A narrativa se encerra e só aí, na última frase do conto, é revelado que a Tigrela era, na verdade, uma jovem mulher aprisionada num apartamento de luxo, vivendo invisível para todos ( o porteiro dirá: “de algum terraço”, ele não identificará o terraço como sendo o de Romana) Elas moram no último andar, num apartamento de cobertura e sem vizinhos. Tigrela vive escondida como algo ilícito e proibitivo. O conto fala de forma magnífica de uma relação amorosa pautada na solidão: duas mulheres solitárias, embora amantes(?), vivem uma relação num mundo tenso. A narrativa é densa e pesada, nela perpassa a idéia de vidas e lugares fechados, escuros, solitários. Assim como se aprisionam as duas mulheres uma a outra. Há amor na relação, mas há também posse e egoísmo. Escravização, ciúme e ameaças de morte. Tigrela é a narrativa de um grande conflito e desacerto amoroso: duas pessoas de idades diferentes, de classes sociais diferentes e de mesmo gênero sexual: duas mulheres: uma a quem foi ensinado muito e com quem se aprendeu algo: às vezes nos medimos e não sei o resultado, ensinei-lhe tanta coisa, aprendi outro tanto, disse 55 Id.,p.100 Id., p.100 57 Id.,p.101 56 86 Romana esboçando um gesto que não completou58. A mais velha com sua sexualidade transitando: bissexual e livre, a mais nova aprisionada à liberdade da mulher mais velha, à compra que ela fez de si, para depois mantê-la presa no apartamento enquanto vai à festas, reata com o último amigo/marido, transita entre rua e a jaula de luxo em que se encontra Tigrela. Embora a autora não tenha usado explicitamente a lesbianidade na narrativa, seu texto transgride a heterotextualidade e coloca em lugar de discussão um universo feminino transgressor desde a relação afetiva, até a construção das personagens Romana e Tigrela, que não se encaixam no imaginário sobre as tradicionais personagens femininas: A primeira é bissexual, passou por vários casamentos, compra a liberdade de seus amantes oferecendo-lhes conforto, é infiel, tem consciência de que seus amores valem o quanto ela paga, traz uma jovem amante de uma de suas viagens e, em conflito com a desigual relação amorosa, deseja/ induz sua jovem caça ao suicídio; a segunda é uma presa alcoólatra, depressiva, ciumenta e temperamental, vive presa e acuada num apartamento de luxo, sente-se insegura e “passageira” numa relação amorosa destinada ao abandono e ao término: Só eu sei que cresceu, só eu notei que está ocupando mais espaço embora continue do mesmo tamanho, ultimamente mal cabemos as duas, uma de nós teria mesmo que... Interrompeu para acender a cigarrilha, a chama vacilante na mão trêmula. Dorme comigo, mas quando está de mau humor vai dormir 59 no almofadão. O conto Das crises inúteis, de Naomi Conte trata da solidão e do deslocamento da mulher contemporânea em crise com seu trabalho e com sua vida. Num espaço de três páginas, a narradora fala da angústia existencial e do esvaziamento que a personagem ( sem nome) sente tanto por seu trabalho de ”fotógrafa de horrores”, premiado internacionalmente, quanto por sua longa relação amorosa. Uma mulher cansada de seu trabalho, cansada de sua companheira desorganizada com as coisas da casa, apática diante do tempo que transforma a vida num cotidiano sem alegria: - Hoje não me importo com muitas coisas, com a eterna xícara suja de café em cima da pia, com as roupas velhas desbotadas, com o ter de levantar cedo todo dia de manhã...-e continuou a lembrar de um alista enorme de pequenas coisas que algum dia a haviam incomodado e que já não faziam 60 sentido 58 Id., p.99 Id., p.97 60 Naomi Conte em A livraria da esquina, p.55. 59 87 Das crises inúteis é uma desalentada reflexão sobre a vida e o tempo corrosivo, trata da inutilidade das coisas, desde o título e se adensa na aguda atmosfera do conto ambientado num quarto abafado, de luz amarela vindo de um abajur amarelado e antigo, nos móveis inúteis do quarto, compondo um quadro que reflete o estado emocional da personagem que persiste numa relação amorosa mais pelo costume do que pelo amor já acabado e com isso fala do sentimento de muitas mulheres entediadas nas suas relações amorosas que se pensavam eternas e vivazes: Mas é o amor? Este ficava adormecido quietinho num canto, às vezes sofria de rompantes de saudades e um sentimento doentio de que não se podia viver sem a sua presença, mas isso acontecia só às vezes. Era isso mesmo o amor, um alinha contínua e tênue fiada dia a dia,que se esgarçava nos dias de desencontros, quando a pata de dente aberta em cima da pia e as roupas jogadas pelo quarto assumiam uma dimensão irrefreável e engrossava nas noites frias cheias de carinho, no telefonema na hora difícil seguido do ombro 61 amigo? Uma narrativa das sensibilidades femininas que não idealiza a eternidade do amor, nem a felicidade constante. A autora trata da relação amorosa feminina sem idealização e de forma crítica mostra o tempo a destruir sentimentos e produzir conflitos sobre o amor e a convivência, com isso, a autora desfaz o locus do amor incondicional e sem fim e contradiz a tradicional narrativa lesbiana contemporânea do amor eterno, ao apresentar a personagem mergulhada num caos ordenado de apatia. Mas o conto não é apenas uma reflexão sobre a inutilidade das crises existenciais, no final, a autora, de modo sutil, talvez para dar crédito ao amor duradouro, induz à leitura para a esperança de que a crise por que passa a personagem seja nada mais do que um “problema tipicamente” feminino: Baixou os olhos e viu um primeiro fio vagarosamente de seu corp a se misturar Levantou-se visivelmente mais aliviada e Lavou o rosto com o sabonete perfumado, 62 corpo que dormia do lado direito da cama . mensal de sangue escorrendo com a água no fundo do vaso. certa de que acordaria melhor. voltou para a cama e abraçou o É um conto sobre a mulher e que não deve ser posto à margem, devido às nuances da lesbianidade. É um conto que deve ser visto antes como uma reflexão sobre a maturidade, a crise amorosa, a acomodação profissional e o grande abismo entre o que se sonhou e aquilo em que se transformou. A personagem sabe-se assim, 61 Id., p.57 Id., p.57 62 88 e sabendo que não há respostas ou solução, e que sua vida continuará abafada e desorganizada, como uma extensão do caos do seu apartamento, prefere acreditar que tudo é causado pela menstruação e, por isso, ao acordar as coisas não seriam vistas com olhos tão nublados. Com isso ela pensa ganhar tempo e adia a decisão (que talvez nunca venha a acontecer) de dar novo rumo à sua existência. Permanecerá na mesma vida, igual a outras tantas mulheres. Um terreno pantanoso, esse é o locus da literatura de temática lesbiana que quando não confinada apenas ao entretenimento romântico é capaz de suscitar análises sobre a mulher, seu lugar de fala, conflitos, afirmações, construções de novos discursos e desconstrução de linguagens e discursos antigos. Se essa literatura vive na a princípio margem, por tratar de um assunto considerado local demais para ser vista como leitura e discussão universal sobre a relação afetiva feminina (diga-se aqui afetiva feminina heterossexual), ela não deixa, por isso, de ser uma análise das relações sociais e culturais em que a mulher está inserida. Essa mesma literatura junta, num mesmo espaço, diversas manifestações femininas: a narrativa erotizada, o final feliz cor-de rosa, as análises da complexa relação sócioafetiva, o texto como uma linguagem do corpo, o texto como lugar de gritos e sussurros. E se consolida à medida que algumas autoras, não estigmatizadas pela sexualidade, também debruçam seu olhar para a feitura de textos que abordam a homossexualidade. Os estudos acadêmicos que surgem paulatinamente, sobre essa temática, também se configuram como fator importante para a formação de uma crítica específica. REFERÊNCIAS FACCO, Lúcia. As heroínas saem do armário. São Paulo: Edições GLS, 2003. CONTE, Naomi. A livraria da esquina e outros contos de mulheres. São Paulo: Edições PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Cultrix, s/ d GLS, 2007. RIOS, Cassandra. Mezzamaro, Flores e cassis - O pecado de Cassandra. São Paulo: Cassandra Rios Editora, 2000. TELLES, Lygia Fagundes. Mistérios. Rio de janeiro: Rocco, 1998. _________. A noite escura e mais eu. Rio de janeiro: Rocco, 1998. 89 O CASTELO INTERIOR DE SANTA TERESA D´ÁVILA: LEITURA DE ALGUNS SÍMBOLOS Wiliam Alves Biserra63 RESUMO Este artigo faz uma leitura analítica dos principais símbolos utilizados por Santa Teresa de Jesus em sua obra: O castelo interior. Trata-se de um dos maiores clássicos da literatura mística ocidental,bem como uma das obras mais importantes do chamado siglo de oro da literatura espanhola.Com base em instrumental Junguiano e da história das religiões são comentados os símbolos do castelo, do bicho-da-seda, das fontes de água e do esponsal místico. PALAVRAS-CHAVE: Teresa de Jesus, Gênero, Mística “Para ter benefício neste caminho e subir às moradas que desejamos, o importante não é pensar muito, mas amar muito.” Santa Teresa d’Ávila Santa Teresa de Jesus, ou d’Ávila, é uma das maiores místicas de todos os tempos. No campo literário foi prosadora, historiadora, poetisa e mistagoga. Ela foi a primeira mulher a ser proclamada solenemente como doutora da igreja e, logo após, declarada patrona dos escritores; sua representação tradicional é quase sempre com uma pena na mão.64 Mas quem foi esta mulher tão discutida, estudada, admirada e seguida? A “verdadeira” Teresa, se isso existir, se encontra no universo do noumênico kantiano, e só pode ser conhecida pelo amado a quem se entregou sem reservas. A experiência do numinoso (Conf. OTTO, 2007) é, em si, um fenômeno que desafia a compreensão e mais ainda a verbalização, Teresa não pretende, em momento algum, esgotar os mistérios da vida interior, pelo contrário, ela sabe plenamente das limitações da linguagem humana. Sua relutância em escrever era muito grande, ou ao menos ela assim dizia, conforme inúmeras cartas e testemunhos.(Conf. AVILA, 2008) A obra de Teresa que será comentada neste brevíssimo texto se chama: Castelo interior; é considerada por alguns críticos como “o ensinamento maior da autora. Fruto maduro de sua última jornada terrena, reflete o estádio definitivo de sua evolução espiritual e completa a mensagem das obras anteriores”( SCIADINI in AVILA,2008) Teresa escreve o Castelo interior, como todas as suas outras obras, por obediência, isto é, sua vocação literária seria, para um observador desatento, Mestre e doutorando em literatura pela Universidade de Brasília (UnB). É pesquisador bolsista do CNPQ e membro do grupo VOZES FEMININAS. Pesquisa e publicações nas áreas de literaturas de expressão inglesa, questões de gênero, estudos de religião e estudos historiográficos: 1. “Oração e confissão na poesia mística de Gerard Manley Hopkins”. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, v. 1, p. 32-35, 2008. 2. “A pedra e a torre: o cristianismo de Pedro e Maria Madalena”. In: Elga Perez Laborde, João Vianney Cavalcanti Nuto. (Org.). Em torno à integração: estudos transdisciplinares. 1 ed. Brasilia: Editora UnB-TEL, 2008, v. 1, p. 212-219. 64 A outra representação de Teresa, claro, é a tradição da famosa estátua de Bernini, ou seja, as representações de seus êxtases. 63 90 algo forçado, feito por obrigação. Obviamente as coisas não são tão simples; Teresa está envolta em todo um jogo político, de poder e papéis sociais. Ela precisa buscar intermediações e conciliações entre o que se espera dela, como mulher e monja, e o que ela quer fazer como reformadora e mística; qualquer redução seria, sem dúvida, parcial. Para alcançar as conciliações que buscava, Teresa usava algumas ferramentas, entre elas, a mais comum é uma ferramenta retórica muito usada pelos oradores da antiguidade, especialmente Cícero, e adaptada pelos padres do início do Cristianismo, notadamente Agostinho, chamada captatio benevolentiae “Modéstia exagerada, ou o desejo de colocar o leitor favorável ao escritor”65 (WEBER, 1996:49) neste sentido, é muito sintomático que se encontre a seguinte afirmação de Teresa: Para que querem que eu escreva? Escrevam os letrados, que estudaram. Sou uma tonta e não saberei o que falar: trocarei uma palavra por outra e com isso causarei dano. Já se escreveram muitos livros sobre coisas de oração. Pelo amor de Deus, deixem-me fiar em minha Roca e seguir meu coro e meus ofícios de religião, como as outras irmãs. Não sirvo para escrever, não tenho saúde nem cabeça para isso”( ÁVILA,2008: 434). Teresa faz o jogo que se espera de uma mulher naquela situação, isto é, de não possuir instrução e de que não quer escrever. Ora, pelas suas obras percebe-se que ela citava de cor Santo Agostinho e São Jerônimo, além de vários trechos da bíblia; ela não era, de modo algum, ignorante, muito menos tola. Isso sabiam seus amigos, confessores, leitores, mas também os inquisidores, e é essa a fonte do problema. A cautela de Teresa com relação ao santo ofício sempre foi muito grande, como não poderia deixar de ser: Se eu disser alguma coisa que não esteja em conformidade com o que ensina a santa madre igreja católica romana, atribua-se isso a minha ignorância e não a malícia. Isso se pode ter por certo; pela bondade de Deus, sempre estive, estou e estarei sujeita a ela (AVILA, 2008:440) Reza a tradição católica que as últimas palavras de Teresa foram: “Morro filha da igreja” (AVILA, 2008:16). Sendo mulher, mística e de descendência judaica atrevendo-se a escrever sobre assuntos teológicos delicados, a doutora de Ávila foi um prato cheio para a inquisição e foi levada ao tribunal, tendo seu livro da vida apreendido e queimado em praça pública. Quando começou a escrever castelo interior, Teresa já havia fundado a ordem das carmelitas descalças e o mosteiro de São José, em Ávila, tendo experimentado grande perseguição. O que a motivou e amparou durante todo o processo foi uma intensíssima vida interior que ela já havia revelado por meio de duas outras obras: O livro da vida e Caminho de Perfeição. O castelo, que dá nome 65 Neste trabalho, as traduções dos livros publicados em inglês são de minha autoria 91 ao livro, mostra-se como um símbolo muito rico, cheio de ramificações, metáfora básica para a compreensão de toda a obra. No livro se destacam quatro símbolos maiores: o castelo, as duas fontes, o bicho da seda e o símbolo nupcial. Poderíamos classificá-los nessa mesma ordem: Símbolo antropológico, o castelo; símbolo tomado da natureza, as fontes; de matiz biológico, o bicho da seda; sociológico, o símbolo nupcial. (SCIADINI in AVILA, 2008: 436) Além destes símbolos, que serão estudados mais detalhadamente, Teresa usa a técnica de dividir o castelo em sete moradas, cada uma correspondendo a um grau de aproximação ao sagrado, numa espécie de ascensão que é interiorização e silêncio. De maneira bem geral poder-se-ia resumir as sete moradas da seguinte maneira: Primeira Morada: Entrar no castelo, converter-se, iniciar o trato com Deus (oração); conhecer-se a si mesmo e recuperar a sensibilidade espiritual. Segunda Morada: Lutar; o pecado ainda cerca; persistem os dinamismos desordenados; necessidade de ancorar-se numa opção radical; progressiva sensibilidade na escuta da palavra de Deus (oração meditativa). Terceira Morada: A prova do amor. Estabelecimento de um programa de vida espiritual e oração; manter-se nele; surgimento do zelo apostólico; mas sobrevêm a aridez e a impotência como estados de prova. “Prova-nos Senhor, que sabe as verdades”. Quarta Morada: Brota a fonte interior, passagem à experiência mística; mas a sorvos, intermitentemente: momentos de lucidez infusa (recolhimento da mente) e de amor místico-passivo (quietude da vontade). Quinta Morada: Morre o bicho-da-seda; a alma renasce em Cristo; estado de união por conformidade de vontades, manifesta especialmente no amor ao próximo. Sexta Morada: Crisol do Amor.Período extático e tensão escatológica. Novo modo de sentir os pecados. Cristo presente. Esponsal místico. Sétima Morada: Matrimônio místico. Duas graças de ingresso no estado final: uma cristológica, outra trinitária. Plena inserção na ação. Plena configuração a Cristo crucificado. ( SCIADINI in AVILA, 2008: 437) Este sumário, embora bastante útil, não oferece senão uma visão por demais resumida e intelectualizada do castelo interior, concebido pela própria santa como uma obra prática, quase um manual, sem a pretensão acadêmica de um tratado teológico, tirando a força dos ensinamentos da experiência pessoal de Teresa e da alegada simplicidade do seu estilo. Foi escrito especialmente para as carmelitas descalças do convento de São José de Ávila e deveria ser uma obra de consulta, caso estas sentissem necessidade de ajuda em sua ascese. Para melhor 92 compreender a mistagogia teresiana, convém dedicar algumas palavras a cada um dos símbolos principais. 1- O Castelo Estando eu hoje suplicando a nosso Senhor...deparei com o que agora direi para começar com algum fundamento. Falo de Considerar a alma como um castelo todo de diamante ou de cristal muito claro onde há muitos aposentos, tal como no céu há muitas moradas ( AVILA 2008: 441) Teresa inicia sempre pela oração; como mulher, ela faz questão de dizer que não possui o saber dos doutores e letrados. O que a guia, entretanto é a experiência. A experiência pessoal da oração é, portanto, o que dá autoridade a Teresa. Logo em seguida aparece a grande metáfora que dá nome à obra; a autora pede para se considerar a alma “como um castelo todo de diamante ou de cristal onde há muitos aposentos”, isso é particularmente interessante; vejamos a simbologia do castelo: O castelo...é uma construção sólida e de difícil acesso. Dá impressão de segurança (como a casa, geralmente), mas de uma segurança no mais alto grau. É um símbolo de proteção. ... O castelo figura entre os símbolos de transcendência: a Jerusalém celeste toma a forma, nas obras de arte, de uma fortaleza eriçada de torres e torreões pontiagudos. (CHEVALIER/GHEERBRANT, 1994:199) Obviamente, além do simbolismo mais universal do castelo, não se deve esquecer da ligação de Teresa com o universo das novelas de cavalaria, muito importante para a configuração do imaginário do siglo de oro. O primeiro contato que ela tem com a leitura não é através dos evangelhos, mas das novelas de cavalaria que sua mãe, Dueña Sancha, lia avidamente todas as tardes. Logo que aprendeu a ler, Teresa imitou a mãe e, com tanto afinco que sentiu-se impelida a escrever, ela mesma, uma novela de cavalaria, o que fez, por volta dos 14 anos. O castelo não era para ela uma imagem abstrata, colhida somente em livros, eles eram facilmente avistados em Ávila e seus arredores. O mais famoso de todos, certamente conhecido por Teresa, era o castelo de Arévalo: Castelo de Arévalo- Ávila foto Disponível em http://farm1.static.flickr.com/26/63242033_ 0823980d5c.jpg?v=0 acesso dia 16/03/09 É comum encontrar-se em castelos uma outra característica simbólica muito 93 interessante: a quaternidade: A individuação aparece simbolizada pela adição do quarto componente, donde se conclui que a quaternidade é um símbolo do si-mesmo, que sua importância é central, ocupando o lugar de divindade. ... Podemos interpretar o aspecto da imagem divina da quaternidade como um reflexo do si-mesmo ou, inversamente, o simesmo como uma imago Dei. (JUNG,1983: 190) A imagem de Teresa, de um castelo muito claro, reforça ainda mais o caráter espiritual desse símbolo. O castelo branco é um símbolo de realização, de um destino perfeitamente cumprido, de uma perfeição espiritual (CHEVALIER/GHEERBRANT, 1994:199). Ora o que isso quer dizer, a quaternidade e a luz,? As quatros torres do castelo, com a grande construção ao centro é, conforme apontado por Jung, um símbolo do SELF, que se confunde com a divindade. Na imagética cristã, é muito forte a tradição de representar o cristo como o si-mesmo, e a quaternidade como a completude, donde emana o quinto elemento, no centro, que é o próprio messias: Fernando Gallegos Cristo abençoando 1495 Museu do prado Madrid disponível em http://ucelo.blogspot.com/2008_11_01_archive.html acesso em 16/03/09 Nesta Pintura, feita na Espanha, por um quase contemporâneo de Teresa, percebemos claramente os quatro evangelistas com Cristo no centro. No canto superior esquerdo está a águia, de João; logo abaixo, o leão de Marcos; no canto inferior direito, o touro de Lucas e, acima, o anjo, de Mateus. O Cristo abençoando é a quintessência alquímica,ou atma-purusha da filosofia indiana.(Conf JUNG, 1983) A escolha dos representantes para os evangelistas também é sintomática, Três figuras animais e uma humana, Jung veria nisso o chamado axioma de Maria: (do terceiro surge o um como o quarto) ou seja, o símbolo antropomórfico do anjo, se contrapõe aos símbolos zoomórficos dos outros evangelistas, esta divisão 3:1 se 94 encontra também no conteúdo dos evangelhos, pois há três escritos sinóticos e um gnóstico, João. A visão Junguiana baseia-se na sua idéia de funções,66 basicamente maneiras que o ego tem de lidar com a realidade. São quatro as funções principais: pensamento, sentimento, intuição e sensação, cada uma delas pode ser introvertida ou extrovertida e pode ocupar uma posição superior, intermediária ou inferior para a consciência. A função mais utilizada pelo indivíduo em suas relações com a realidade externa se diz função diferenciada, a menos usada, função inferior. A junção das três funções diferenciadas da personalidade permite a busca pela quarta função inferior negligenciada, a união das quatro permitiria um encontro com o Simesmo. O símbolo do castelo de luz é ainda interessante quando comparado a outro símbolo cristão muito recorrente, a Jerusalém celeste: A nova Jerusalém descendo do céu, página do manuscrito de Bamberg, Alemanha, datado do século X (C. 1000-20) Disponível em http://media-2.web.britannica.com/eb-media/54/34654-004-ECA207F1.jpg acesso 16/03/09 Podemos ver neste manuscrito medieval, a nova Jerusalém representada como um círculo com quatro torres, o que evoca o tema alquímico da quadratura do círculo, e o Cristo, cordeiro no centro. O todo da imagem é muito semelhante a uma mandala oriental. Mandalas são símbolos circulares milenares utilizados em várias culturas muitas vezes com o intuito de concentração ou mesmo de proteção e cura. 66 Conf JUNG, 1991 95 A mandala tende a traçar um círculo de defesa para a psiquê e deixar toda a desordem fora enquanto unifica, gradativamente, o Si-mesmo. É uma representação de completude e perfeição, é o castelo ao qual nos convida Teresa. 2- O símbolo da Fonte Para explicar algumas coisas do espírito, nada vejo de mais apropriado do que a água. ...Esses dois reservatórios, ou piscinas, enchem-se de diferentes maneiras. Para um, a água vem de mais longe, através de muitos aquedutos e artifícios; o outro tendo sido construído na própria nascente, vai se enchendo sem nenhum ruído. (AVILA, 2008: 477) A idéia da fonte, ou das águas, é algo anterior nas obras da santa de Ávila. Podemos encontrá-la já desde sua primeira obra O livro da vida e também na seguinte, Caminho de perfeição; desse modo, é algo recorrente na retórica teresiana. A novidade é a idéia de duas fontes, como piscinas. O símbolo da água é um dos mais poderosos do imaginário; apesar de incrivelmente complexo e multifacetado é resumido por alguns estudiosos a três vertentes básicas (conf CHEVALIER;GHEERBRANT, 1994:14): Fonte de vida,, meio de purificação e centro de regeneração. No caso de Teresa, ela busca suas referências em passagens bíblicas, Cristo é descrito como fonte de água viva, do lado de seu coração trespassado fluem sangue e água. Ele controla as águas, é batizado nelas, anda sobre elas, as transforma em vinho. São incontáveis as passagens do novo testamento que possuem alguma relação com a água. Tratandose de uma região seca e quente, como é o oriente médio, a água não poderia deixar de ser um símbolo positivo. Os locais em que ela pode ser encontrada também se tornam especiais. Na bíblia, os poços no deserto, as fontes que se oferecem aos nômades são outros tantos lugares de alegria e encantamento. Junto das fontes e dos poços operam-se os encontros essenciais. Como lugares sagrados, os pontos de água têm papel incomparável. Perto deles nasce o amor e começam os casamentos. (CHEVALIER; GHEERBRANT,1994: 16) É dessa tradição que vem a imagem de água de Teresa. A água que vem por meio de aquedutos são os contentamentos67 conseguidos por meio da oração insistente, da meditação diligente, da repetição vocal de fórmulas ou com alguma leitura “edificante”. Trata-se, pois, de algo conseguido por empenho pessoal: “Isso porque os trazemos mediante o pensamento, recorrendo na meditação às coisas criadas e cansando o intelecto.” (AVILA, 2008:476) Contentamentos na linguagem de Santa Teresa quer dizer algum tipo de consolação, quietude, paz ou benefícios espirituais ou mentais, não raro terapêuticos, que se pode obter na oração. 67 96 O outro reservatório fica na própria nascente e apenas recebe a água que vem naturalmente: “A água vem de sua própria nascente que é Deus” (AVILA,2008: 477). Teresa reconhece a diferença dessa água, não tanto em termos de falta ou de esforço próprio, mas pelos efeitos gerados; segundo ela “produz esta água grandíssima paz, quietude e suavidade no mais íntimo de nós mesmos” (AVILA,2008:477). É exatamente o expediente utilizado por ela no Livro da vida, para diferenciar as experiências que tinha entre, segundo ela, provenientes de Deus ou do diabo. Qualquer coisa proveniente de Deus deixava-lhe com uma ótima sensação que durava até muito tempo depois que se acabara a experiência mística. No caso das falsas consolações ou visões, nada restava ou sentia medo e duvidava da procedência do que sentira. Quanto à imagem da piscina à beira da fonte, seria aquele que se abandona ao amor, sem medo ou esperanças, apenas amando. Esse é um fundamento importante na espiritualidade carmelita, especialmente explicitado por São João da Cruz em sua Subida ao Monte Carmelo(conf. DA CRUZ, 2002); quem quiser, não terá, quem procurar, não achará, quem temer, terá seu medo realizado, apenas o nada leva ao tudo da divindade “Nada querer, tudo ter”. É impossível enquadrar os grandes místicos em padrões acadêmicos rígidos. O discurso sobre eles muitas vezes se perde em paradoxos e tautologias. O Verbo deles se fez Carne, nosso verbo é só verborragia. A premissa básica da qual partem é a do amor inefável, amor que excede todo o conhecimento, a rosa é sem porquê. 3-O Símbolo do Bicho da Seda Já tereis ouvido das maravilhas de Deus no modo como se cria a seda, invenção que só Ele poderia conceber. É como se fosse uma semente, grãos pequeninos como o da pimenta. Devo dizer que nunca o vi, mas ouvi-o dizer, assim se algo não corresponder, não é minha a culpa. Pois bem, com o calor, quando começa a haver folhas nas amoreiras,essa semente- que até então estivera como morta- começa a viver. E esses grãos pequeninos se criam com folhas de amoreira; quando crescem, cada verme, com a boquinha, vai fiando a seda, que tira de si mesmo. Tece um pequeno casulo muito apertado,onde se encerra; então desaparece o verme, que é muito feio, e sai do mesmo casulo uma borboletinha branca, muito graciosa (AVILA, 2008:493) Eis a nova imagem de Teresa, sem dúvida um símbolo poderoso de transformação, de passagem de uma condição inferior a outra, superior. Entretanto as comparações vão além das obviedades. A pequenez e fragilidade do bicho da seda são como as humanas, a idéia da semente alude a algo que já se possui em si, como um devir, possibilidades diferentes de vir-a-ser. Não se pode esquecer também da rica tradição simbólica cristã, certamente conhecida por Teresa, do grão pequenino, comparado no evangelhos ao reino de Deus e ao próprio Cristo. 97 Há, novamente, a captatio benevolentiae. Teresa se esquiva do que fala alegando ignorância; entretanto, baseia boa parte das quintas moradas, já um grau elevado da vida mística, nessa imagem de transformação. É este o primeiro momento de mudança íntima mostrado nas moradas? Certamente não, trata-se de um processo que vem se dando desde a entrada no castelo, pela porta da oração, nas primeiras moradas. O que ocorre de diferente é a maturidade que aplaina um caminho cheio de subidas e descidas, perdas e encontros. O calor é interpretado pela santa como o amor de Deus, que anima a alma a buscá-Lo. A idéia de ressurreição, por vezes ligada à de semente, aparece, confirmando a tradição bíblica da qual se nutria Teresa. O alimento dado ao jovem bicho-da-seda não é a mais fina das iguarias, mas algo trivial, encontrado por todos na natureza, assim: A alma- representada por essa lagarta- começa a ter vida quando, com o calor do Espírito Santo, começa a beneficiar-se do auxílio geral que Deus dá a todos, fazendo uso dos meios confiados pelo Senhor a sua igreja: confissões freqüentes, boas leituras, sermões. São esses os remédios para uma alma que está morta em seu descuido, pecados e ocasiões de cometê-los. ( AVILA,2008: 494) O alimento do auxilio geral é algo prático, técnica; não mais, porém pode levar a frutos de experiência mística. O pequeno inseto tira de dentro de si, pela boca, a seda que usa para fazer seu casulo. O paralelo pretendido pela santa é com a oração, que se tira de dentro de si, às vezes com esforço, mas que propicia o material para o casulo transformador. O período de mudança interior, simbolizado pelo casulo apertado é feito de dores e escuridão para o místico. O processo é coroado com a transformação em borboleta, entretanto, é apenas um novo começo, pois é preciso aprender tudo novamente, em uma nova perspectiva. 4-O símbolo do casamento espiritual E entendei que há enorme diferença entre todas as visões passadas e as desta morada. Há tão grande distância entre o noivado e o matrimônio espiritual quanto a que existe entre os que apenas são noivos e os que já não podem separarse. ( AVILA, 2008:570) Essa é a última morada da alma, o ponto máximo do caminho místico teresiano. O símbolo maior apresentado é o do casamento espiritual. Teresa, assim como João da Cruz, retira sua concepção do cântico dos cânticos, atribuído ao rei Salomão. A imagem da amada que busca seu amado, sozinha e com frio, em meio a uma noite escura, é a expressão mais forte da espiritualidade carmelita. O fim do périplo da amada é a união com aquele a quem buscava. João da Cruz conta em detalhes este caminho em sua obra mais famosa em uma noite escura. Ao se buscar uma definição de dicionário, encontra-se, por exemplo, que: 98 Em um sentido místico, significa a união de Cristo com sua igreja, de Deus com seu povo, da alma com seu Deus. ...Simboliza a origem divina da vida, da qual as uniões do homem e da mulher não são senão receptáculos,instrumentos e canais transitórios. Ele se inclui entre os ritos de sacralização da vida. (CHEVALIER; GHEERBRANT,1994: 197) Expandindo um pouco mais essa definição, na psicologia analítica, o casamento é um símbolo de individuação, a união entre consciente e inconsciente, a junção dos princípios masculino e feminino que leva a uma representação da totalidade, da completude. Jung resgata psicologicamente algo que é conhecido há muito tempo pelos historiadores da religião e antropólogos: o hierosgamos. Imagem disponível em :http://www.istanbul-yes-istanbul.co.uk/alchemy/Rosariumfinal.htm acesso 25/03/09 A ilustração acima, retirada de um dos mais importantes livros da alquimia, o Rosarium philosophorum, mostra o hieros gamos. O princípio masculino, o rei, está de pé sobre o sol, nu, ele segura uma rosa vermelha na direção da rainha, também nua, de pé sobre a lua crescente, com uma rosa branca na mão. As duas rosas se cruzam e cada um segura a rosa oferecida pelo outro. Entre eles há um mediador, a pomba, com uma rosa negra no bico, fazendo uma intersecção vertical entre as duas rosas diagonais dos amantes. Na alquimia o papel de intermediário é dado a Mercúrio, tido como um deus ambivalente, venerado por ladrões e guia das almas para o hades, psychopompos. A pomba é a terceira pessoa da trindade, o paráclito, consolador, o deus que fica e mora dentro dos homens. A pomba é um símbolo fortemente feminino, era o pássaro de Afrodite e continuou sendo o de Vênus, representa suavidade e a esperança de algo novo, do fim de um ciclo de sofrimento e purgação, como a pomba que Noé lança, logo após o dilúvio, para saber se já havia terra. No caso de Teresa, o hieros gamos é algo mais íntimo ainda, pois se trata da união plena entre Cristo e a alma: Há tão grande distância entre o noivado e o matrimônio espiritual quanto a que há entre os que apenas são noivos e os que já não podem separar-se. ... Equiparemos a união a duas velas de cera ligadas de tal maneira que produzem uma 99 única chama, como se o pavio, a luz e a cera não formassem senão uma unidade. No entanto, depois, é possível separar uma vela da outra. ... Todavia [no matrimônio] é como se num aposento houvesse duas janelas por onde entrasse muita luz, penetra dividida no recinto, mas se torna uma só luz. ( AVILA,2008: 572) Ou seja, o matrimônio místico carmelita é uma espécie de hieros gamos, mas é mais profundo. Na tradição pré-cristã e alquímica, os dois se unem e geram um terceiro: o filho salvador, o puer aeternus, o hermaphroditus. O rei e a rainha se unem e geram um terceiro, deixam, pois, de ser o que eram. Não é o caso com Teresa, Deus não deixa de ser o que era, nem tampouco a alma; com a espiritualidade do amor esponsal, ela apenas realiza o que sempre foi, cumpre seu devir. Muitas ligações podem ser feitas entre essa idéia e a visão junguiana de individuação. Ainda na doutrina teresiana, o matrimônio espiritual produz grandes efeitos na alma todos em identificação com o esposo. A santa enumera (Conf. AVILA, 2008:575): 1- esquecimento de si; 2- desejo de padecer; 3- grande deleite interior, 4grande desejo de servir a Deus, não de morrer, como antes; 5- Desapego de tudo; 6- O não temor do disfarces do demônio; 7- o amor sereno que tudo excede e abarca. Teresa nos aponta um itinerário espiritual; o castelo interior é um caminho de busca e realização, é um processo de individuação. A mística cristã produziu, ao longo dos séculos, muitos tratados, mas sem dúvida os relatos dos próprios místicos são os melhores documentos que temos para avalia essa experiência. A literatura tem sido o veículo privilegiado para isso. Quase todos os grandes místicos foram poetas ou prosadores. Os símbolos e metáforas, os espaços vazios do significante, são o caminho encontrado pelos visionários para exprimir o inefável. Teresa fez isso como poucos. A porta do castelo é a oração, o centro é o próprio Divino. Para concluir, deixo o(a) leitor(a), com um dos mais belos poemas de Teresa, para que por esforço próprio e por meio das palavras, chegue ao amor que excede todas as palavras: Buscando a Deus Alma, buscar-te-ás em mim, E a mim, buscar-me-ás em ti. De tal sorte pôde o amor Alma, em mim te retratar, Que nenhum sábio pintor Soubera com tal primor Tua imagem estampar Foste por amor criada, 100 Bonita,formosa e assim Em meu coração pintada, Se te perderes, amada, Alma, buscar-te-ás em mim. Porque sei que te acharás Em meu peito retratada, Tão ao vivo desenhada, Que em te olhando folgarás Vendo-te tão bem pintada E se acaso não souberes Em que lugar me escondi, Não busques aqui e ali, Mas se me encontrar quiseres, A mim, buscar-me-ás em ti. Sim, porque és meu aposento, És minha casa e morada; E assim chamo no momento Em que de teu pensamento Encontro a porta cerrada. Busca-me em ti, não por fora... Para me achares ali, Chama-me, que, a qualquer hora, A ti virei sem demora, E a mim, buscar-me-ás em ti. Imagem disponível em: http://beaconforlife.blogs.com/pastoral_coach/Teresa_of_Avila.jpg acesso em 26/03/09 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS AVILA, Santa Teresa de, Obras completas, Loyola, São Paulo,2008. AVILA, Santa Teresa de, Caminho de perfeição in Obras completas, Loyola, São Paulo, 2008. AVILA, Santa Teresa de, O castelo interior, in obras completas, Loyola, São Paulo, 2008. AVILA, Santa Teresa de, O livro da vida, in Obras completas, Loyola, São Paulo, 2008. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain Dicionário de símbolos, José Olympio, Rio de Janeiro, 1994, 8ª edição. CRUZ, São João da, Obras completas, Vozes, Petrópolis,2002. JUNG, Carl Gustav, tentativa de interpretação psicológica do dogma da trindade in Psicologia da religião ocidental e oriental, Vozes, Petrópolis, 1983. JUNG, Carl Gustav, Tipos psicológicos, Vozes, Petrópolis, 1991. JUNG, Carl Gustav , Os arquétipos e o inconsciente coletivo, Vozes, Petrópolis, 2008. KANT, Immanuel, Crítica da razão pura, Ícone, São Paulo, 2007. OTTO, Rudolf, O sagrado, Vozes, São Paulo, 2007. SCIADINI, Patrício Introdução in AVILA, Santa Teresa de, O castelo interior, op cit. WEBER, Alison Teresa of Ávila and the rhetoric of femininity, Princeton university press, EUA, 1996. 101 OS RITUAIS SIMBÓLICOS NA LÍRICA DE ADÉLIA MARIA WOELLNER 68 Clarice Braatz Schmid Neukirchen, t 69 Antonio Donizeti da Cruz RESUMO: Este é artigo é resultante da investigação realizada para a dissertação de Mestrado intitulada “Tempo e Memória na lírica de Adélia Maria Woellner”, sob orientação do prof. Dr. Antonio Donizeti da Cruz. O trabalho também faz parte da pesquisa do projeto “Ritual, sacralidade e epifania na lírica de Adélia Maria Woellner e Arriete Vilela”, cadastrado junto ao Grupo LER – UnB. PALAVRAS-CHAVE: recepção, Adélia Maria Woellner, Arriete Vilela. É indiscutível que, para além do mundo concreto, existe um mundo abstrato, povoado de imagens e símbolos preexistentes à vida humana. Este mundus imaginalis, utilizando a expressão cunhada por Henri Corbin, seria, na visão de Ana Maria Lisboa de Mello, “o mundo intermediário – território do onírico, do simbólico. Essa instância indicia que a função imaginária é inerente ao ser humano e está em perene atividade, de tal forma que atua sobre os comportamentos, sobre as criações e altera as formas de vida” (2002, p. 18). Mello observa que, em consonância com as teorias junguianas, certas personagens mitológicas, determinadas configurações simbólicas, alguns emblemas, longe de serem o produto evemerista de uma circunstância histórica precisa, são espécies de universais imaginados – os arquétipos e as imagens arquetípicas – passíveis de dar conta da universalidade de certos comportamentos humanos, normais ou patológicos (2002, p. 16). Por muito tempo, esse “mundo intermediário” foi banido do campo de estudos científicos, por entender-se que os saberes ligados ao imaginário eram uma forma errônea e ilusória de se explicar os acontecimentos. No entanto, a partir do século XX, os estudos envolvendo o imaginário foram retomados e filósofos como Gaston Bachelard, ao se debruçarem sobre esse campo do saber, afirmaram que “as criações tecnológicas foram, de modo geral, antecedidas pela criação artística, revelando que o imaginário humano é fonte de criação e transformação das sociedades” (MELLO, 2002, p. 18-19). Ou seja, a partir do século XX, o mundus 68 Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Docente Colaboradora do curso de Letras da Unioeste., campus de Cascavel, e do curso de Letras da Unipar, Campus de Cascavel. 69 Doutor em Teoria Literária. Docente do programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras da Unioeste, campus de Cascavel e do curso de Letras da Unioeste, Campus de Marechal Cândido Rondon. 102 imaginalis volta a figurar entre os objetos de estudos científicos, sendo que o campo de estudos tendeu a ampliar-se cada vez mais com o passar do tempo. Mello observa que, de acordo com Jung, o homem possuiria uma tendência congênita a simbolizar, evidenciando a existência de uma “hereditária capacidade humana de produzir as mesmas imagens” (MELLO, 2002, p. 28), o que se inscreveria num plano anterior à lógica, manifestando-se em todas as áreas do saber, inclusive no científico. Nessa perspectiva, enquanto capacidade de alcançar a realidade em si mesma, a consciência mítica é parte constitutiva da consciência humana. É uma possibilidade radical de ver, natural ao espírito humano, porque determinada por uma possibilidade de ser anterior a qualquer formulação lógica (CRIPPA, 1975, p. 44, apud MELLO, 2002, p. 35). Conforme salienta Mello, a possibilidade de ver, anterior à lógica, associa-se às idéias expostas pela psicologia, mais especificamente pela concepção junguiana da existência do inconsciente coletivo, cujos conteúdos ‘não provêm de aquisições pessoais, mas da possibilidade herdada do funcionamento psíquico, quer dizer, da estrutura cerebral herdada´. Tal estrutura produz arquétipos, imagens primordiais coletivas, isto é, comuns a povos de diferentes culturas e épocas, além de serem sujeitas a manifestações periódicas. O inconsciente coletivo, ao contrário do individual, é idêntico em todos os homens e constitui o fundamento psíquico universal, de teor suprapessoal, presente em cada ser humano (2002, p. 35-36). Este inconsciente coletivo, no qual residem as imagens arquetípicas, pode ser considerado uma espécie de patrimônio da humanidade, cuja data de fundação não pode ser precisada, sendo dele que, na visão de Jung, surgem sonhos e mitos. Para a teoria junguiana, as lembranças pessoais seriam depositadas no inconsciente individual, enquanto os conteúdos de natureza universal no inconsciente coletivo. Mello observa que, segundo Jung, as “imagens primordiais” revelariam “a ‘aptidão hereditária’ que tem a imaginação humana de ser como era nos primórdios” (2002, p. 67, grifos do autor). Seja entre os gregos ou entre outros povos, os mitos, geralmente, assumem esta característica de representarem um conjunto de símbolos muito antigos, que teriam a intenção de preservar dogmas e preceitos morais, dando aos seres 103 humanos um exemplo a ser seguido. Nessa perspectiva, seriam “a súmula do conhecimento útil” (ELIADE, 1991, p. 112). Da mesma forma, os mitos costumam guardar a representação da vida passada dos povos, suas histórias, atos heróicos etc., o que torna a mitologia ainda mais correlata à memória. No dizer de Mircea Eliade, os mitos seriam a representação de histórias verdadeiras e preciosas por seu caráter sagrado, ocorridas em um passado muito distante. Nesse prisma, é plausível afirmar que os rituais religiosos assumem certa equivalência com os mitos. Para Eliade, as grandes religiões possuem mitologias, sendo estas a expressão da influência do sagrado no mundo natural. Conforme salienta Eliade, “o mito re-atualiza continuamente o Grande Tempo e dessa forma projeta quem o ouve a um plano sobre-humano e sobre-histórico que, dentre outras coisas, proporciona a abordagem de uma realidade impossível de ser alcançada no plano da existência individual profana” (1996a, p. 56). Na visão de José Carlos Reis, por meio do tempo mítico, o homem buscaria participar de uma realidade transcendente, tentaria voltar a um tempo inaugural, no qual se deu a fundação do mundo. Esta característica também pode ser transposta para a religião, haja vista que a função desta é, geralmente, ligar o homem a um plano superior, colocá-lo em contato com o divino e primordial. Através da imitação das realidades perpetuadas por meio dos mitos, o homem tenta abolir seu lado profano, tornando o momento da criação “um eterno presente” (REIS, 1994, p. 144). No tempo mítico, o homem teria o poder de encontrar o ser, a estabilidade e a eternidade, sendo o eterno retorno às origens o responsável pela perpetuação de eventos e personagens dignos de rememoração. Para Reis, a memória mítica seria anti-histórica, pois a história tenderia a transformar ações e personagens em modelos, modificando-os no decorrer dos séculos. A partir deste ângulo, pode-se 104 dizer que a memória mítica contribuiria para que o indivíduo fosse liberto do tempo cronológico, instaurando a eternidade por meio dos rituais. Seja qual for a interpretação que se dê ao mito, sua maior importância seria a capacidade que este possui de “trazer à tona a função simbolizadora da imaginação. [...] seu valor simbólico, que lhe revela o sentido profundo” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 612). No dizer de Eliade, “o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da vida espiritual, que podemos camuflá-los, mutilá-los, degradá-los, mas que jamais poderemos extirpá-los” (1996a, p. 7). Na contemporaneidade, seria por meio da poesia que os mitos seriam reevocados, pois a poesia restabelece o equilíbrio mítico. Nas nossas sociedades, onde reina a especialização e a divisão do trabalho, o poeta tem por função fabricar solitariamente as palavras e os cantos que o semantismo coletivo das sociedades primitivas segrega anonimamente sob a forma de mitos (DURAND, 1996, p. 52). Nesse sentido, a própria poesia seria um instrumento a serviço da rememoração. Mello, por sua vez, declara que, o poema lírico, ao privilegiar as imagens simbólicas, bem como as 70 metafóricas (subespécies do símbolo, segundo Creuzer) , provoca a ruptura com a linguagem cotidiana e, desse modo, instaura o ‘sagrado’. Nesse sentido, ‘poesia é mitologia’; [...] O hermetismo da lírica moderna assenta na reapropriação do passado, através da construção de versos ‘plenos de ressonâncias de um patrimônio poético, mítico e arcaico (2002, p. 48-49). A presença de imagens e símbolos, bem como a recorrência à mitologia e rituais de diversos povos, é uma das formas por meio das quais se dá, na lírica woellneriana, a rememoração. Segundo Mello, “ao mergulhar profundamente no seu mundo psíquico, o poeta pode resgatar ‘imagens primordiais mágicas e míticas’” (2002, p. 48) as quais, além de pertencerem ao patrimônio simbólico universal, também fazem parte do imenso cabedal de símbolos que a memória individual comporta. 70 CREUZER apud TODOROV, 1977, p. 254. 105 Ocorrem de forma constante, na obra de Woellner, reflexões acerca dos mitos cosmogônico, principalmente daqueles referentes à mitologia cristã, como acontece no poema “Deus”: Artesão-Poeta teceu o mundo com agulhas de luz e fez, do sol, um poema dourado. (WOELLNER, Infinito em mim, 2000, p. 37). Observa-se que a poeta recorre ao mito genesíaco, segundo o qual, o Deus cristão teria criado o mundo. A poeta apresenta Deus como um artesão, haja vista ter feito o mundo com suas próprias mãos, conforme o mito bíblico da criação. A criação de Deus, exemplificada pelo sol, é considerada um verdadeiro poema. Por isso, ele também é exibido como um poeta, salientando que a matéria com da qual o Criador faz surgir o mundo é a palavra. Atentando-se para os escritos bíblicos, é possível perceber que tudo o que existe formou-se por meio da palavra: “E disse Deus: Haja luz. E houve luz”71. A palavra proferida por Deus materializa-se, formando os seres que compõem o mundo. O próprio Cristo apresenta-se como a materialização da palavra, conforme nota-se nos seguintes versículos: “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. [...] E o verbo se fez carne e habitou entre nós”72. Jesus é visto, assim, como o Verbo, a palavra em seu estado concreto. É somente depois que Deus, através da palavra, povoou a terra com inúmeras criaturas, que recorre ao barro para, nele, moldar o homem. Em Gênesis, capítulo 2, versículo 19, lê-se: “Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todo animal do campo e toda ave dos céus, os trouxe a Adão, para este ver como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome”. O homem, ao receber o poder de nomear as coisas criadas, torna-se 71 72 Gênesis, capítulo 1, versículo 3. Bíblia Sagrada. Edição revista e corrigida, 1995. João, capítulo 1, versículos 1 e 14. Bíblia Sagrada. Edição revista e corrigida, 1995. 106 parceiro de Deus, visto que nomear também pode ser considerado uma prática de criação, pois transforma a matéria concreta em um elemento abstrato, sendo que, às vezes, a palavra que nomeia um objeto perdura por muito mais tempo que o próprio objeto. O poeta continua a dar nome a realidades que somente a arte poética consegue alcançar, continuando, assim, a tarefa outorgada a Adão. Adélia Maria pinta com novas cores este mito bíblico, sem alterar seu significado. A poeta, em consonância com a perspectiva apontada por Burgos sobre a retomada dos mitos na literatura, reatualiza, regenera e prolonga a potencialidade do mito evocado, já que “cada leitura do imaginário será uma ‘ação nova’ que realiza um possível anterior, mas, sobretudo, inaugura uma multiplicidade de novos possíveis” (MELLO, 2002, p. 97). Rituais católicos e alquímicos ocupam lugar de destaque na poesia de Woellner, conforme evidencia o poema “Oferenda”: No altar do firmamento, a lua cheia é hóstia consagrada aos deuses. (WOELLNER, Infinito em mim, 2000, p. 74). Aqui, o ritual Católico Apostólico Romano da consagração da hóstia é comparado a um rito de consagração da própria natureza. Ocorre a junção de uma crença católica a uma crença politeísta, já que a palavra “deuses” encontrar-se no plural. Há um paradoxo no poema, pois enquanto o ritual católico representaria Deus, que é a manifestação do absoluto e do uno, o politeísmo seria a representação da multiplicidade e divisão do absoluto. A lua, que representa uma divindade feminina em várias mitologias – como, por exemplo, a deusa grega Ártemis – nesse poema é considerada a própria hóstia, que, na simbologia Católica, representaria o corpo de Cristo. Assim, de forma sutil, a poeta faz uma junção entre o politeísmo e a simbologia ritualística católica da comunhão, unindo uma prática considerada sagrada a outra considerada pagã, criando uma imagem delicada de 107 exaltação da divindade da natureza. Também no poema “Constelação”, há a menção a um ritual católico: Na madrugada transparente e fria, no céu sobressaia o Cruzeiro do Sul. A emoção compreendeu ser cada estrela a marca do toque de Deus, no corpo do infinito, ao fazer o sinal da Cruz... (WOELLNER, Infinito em mim, 2000, p. 30). Novamente, Adélia Maria une um gesto ritualístico católico a uma imagem da natureza. Para a crença católica, “tudo o que existe concerne ao ser subsistente (Deus), é relativo a ele” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 332). Nessa perspectiva, o eu lírico estaria simplesmente explicando a formação do Cruzeiro do Sul, tendo em vista que esta constelação, assim como todo o restante da natureza, seria obra das mãos do Criador. É interessante notar que, na obra woellneriana, há uma espécie de panteísmo. Em diversos poemas é possível perceber a divinização dos elementos da natureza, como no poema “Oferenda”, no qual a lua simbolizaria o “corpo de Cristo”. Chevalier & Gheerbrant afirmam que, todos os seres aparentes e sensíveis da natureza são participações do ser: da mesma forma, todos os mistérios da vida da graça são, para os crentes, participações na natureza mesma de Deus. Esses seres contingentes, por sua própria realidade, são, por sua vez, símbolos do ser e de Deus (2002, p. 333). Eliade, por sua vez, observa que, “para o homem religioso, a Natureza nunca é exclusivamente ‘natural’: está sempre carregada de um valor religioso. Isto é facilmente compreensível, pois o Cosmos é uma criação divina: saindo das mãos dos deuses, o mundo fica impregnado de sacralidade” (1996b, p. 99). É o que acontece nos poemas de Woellner, nos quais as cenas mais banais nunca correspondem somente àquilo que o olho humano despercebido pode captar. Antes, apresentam-se elementos aparentemente corriqueiros, mas que revelam e comportam outras realidades, desvelando sentidos insuspeitos. Consoante Bastide, 108 a obrigação que tem o poeta de exprimir o inefável o transporta a um campo em que se torna necessário “a constituição de mitos, a criação de imagens analógicas” (1997, p. 127), o que explicaria este olhar diferenciado com que os poetas, geralmente, contemplam a realidade circundante. A união entre imagens da mitologia cristã e pagã pode ser observada, ainda, no poema “Comemoração”: As fadas estenderam a toalha azul e cobriram a mesa celeste com nuvens de algodão-doce, para festejar o aniversário dos anjos... (WOELLNER, Sons do silêncio, 2004, p. 36). No texto, Woellner unifica a simbologia pagã das fadas à imagem preponderantemente cristã dos anjos. São elas que festejam o aniversário dos anjos, colocando-se, assim, em proximidade com estes seres. As fadas simbolizariam, segundo Chevalier & Gheerbrant, as “capacidades mágicas da imaginação”, representando “a capacidade que o homem possui para construir, na imaginação, os projetos que não pôde realizar” (2002, p. 415). Inicialmente, a imagem das fadas era correlata à imagem da mulher, sendo consideradas mensageiras do outro mundo. No entanto, conforme a visão de Chevalier & Gheerbrant, com o advento do cristianismo, esta figura se modifica, passando a simbolizar o amor feminino. Pode-se notar que, consideradas mensageiras entre o mundo humano e o divino, as fadas tornam-se um símbolo equivalente ao dos anjos, pois estes também atuam como mensageiros entre Deus e os homens. Além de serem, ambos, considerados mensageiros, tanto fadas quanto anjos deslocar-seiam, muitas vezes, sob a forma de cisnes. No poema, ao partilharem de uma mesma natureza, fadas e anjos podem, juntos, comemorar um evento, anulando a divisão existentes entre seres pagãos e cristãos, o que, de certa forma, preconiza a existência de uma unidade cósmica. 109 A imagem das fadas apresenta-se, ainda, em consonância com as Parcas romanas. Chevalier & Gheerbrant observam que, da mesma forma que as Parcas, ou Moiras, também as fadas seriam uma personificação do destino. O próprio nome “fada” seria, segundo Jorge Luis Borges, uma derivação do vocábulo latino Fatum, ou seja, estaria vinculada à palavra "destino”. Inclusive, de acordo com Chevalier & Gheerbrant, as estátuas das três Parcas costumavam ser chamadas, na Itália, de tria fata, isto é, “três fadas”. Seriam tecedeiras que, ao cortar o fio do destino, demarcam a hora da morte dos seres humanos. Pierre Brunel apresenta o mito das fiandeiras como “aquele que nos prende ainda à dinâmica imaginária mais fecunda” (1997, p. 370). São as fiandeiras, as três fadas, que tecem a trama dos destinos, determinando a hora do nascimento e da morte, revelando o porquê de, no poema, serem as fadas que estendem a tecido azul, resultado de seu trabalho, que cobre “a mesa celeste”, para comemorar “o aniversário dos anjos”. As fadas associam-se, ainda, ao ritmo terciário – demarcado pelo nascimento, evolução e involução – e ao quaternário, o ritmo lunar e das estações, marcado por um tempo de pausa, silêncio e morte, seguido por outro de renascimento, representação de uma vida contínua que, apesar de possuir uma fase de morte, renasce ao término desta. A imagem do aniversário também pode ser considerada como símbolo do ciclo da existência. No poema, a menção ao aniversário dos anjos corrobora para com a representação de um tempo quaternário, isto é, correlacionase ao tempo infinito, marcado pelo constante renascimento, haja vista a imortalidade dos seres angelicais. A imagem de seres celestes novamente se faz presente no poema “Ritual”: Os querubins, em sublime reverência, acenderam o fogo no altar da eternidade, para iluminar a noite do mundo. Receptivo, o céu 110 engalanou-se de fagulhas. (WOELLNER, Infinito em mim, 2000, p. 91). É possível observar a explicação de um fenômeno da natureza de uma forma mágica, remetendo à mitologia cristã. O céu estrelado revela a presença das forças divinas. O firmamento repicado de estrelas é uma imagem do altar da eternidade em que os querubins acenderam o fogo designado a iluminar o mundo. Apesar de, na atualidade, a referência a anjos ser atribuída aos cristãos, outros povos, como os celtas e os babilônicos, também desenvolveram, na antiguidade, uma angeologia muito semelhante à adotada pelo cristianismo. Os querubins, na hierarquia celeste, ocupariam uma posição intermediária entre tronos e serafins, sendo caracterizados por “sua conformidade com Deus, pela massa de conhecimento, ou seja, pela efusão de sabedoria: a denominação de querubim revela, por outro lado, aptidão para conhecer e para contemplar Deus, para receber os mais elevados dons de sua luz” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 763). Para Durand, o anjo é símbolo extremo da ascensão, “são símbolos da própria função simbólica que é – como eles! – mediadora entre a transcendência do significado e o mundo manifesto dos signos concretos, encarnados” (DURAND, 1995a, p. 25) No poema em questão, os querubins acedem a chama que há de iluminar os homens, o que, na perspectiva acima apresentada, pode corresponder não somente à luz propriamente dita, mas também à iluminação espiritual, haja vista que a luz é símbolo de regeneração, pureza e conhecimento, tanto na mitologia judaico-cristã, quanto em outras mitologias, como na chinesa e na islâmica. Além disso, os anjos são considerados seres intermediários entre Deus e os homens, a quem cabe funções reveladoras, produzindo a elevação espiritual dos homens a Deus, o que coopera para que a luz que estes distribuem ao mundo possa ser entendida como conhecimento divino. 111 Vale lembrar que os símbolos seriam uma forma de representar “coisas ausentes ou difíceis de perceber, tais como ‘causa primeira’, ‘alma’, espírito’, ‘deuses’ e que são enfocados pela metafísica, pela arte ou pela religião” (MELLO, 2002, p. 65). É o que ocorre no poema, haja vista que por meio da organização das imagens desvela-se algo que não se encontra expresso explicitamente. O desejo de desviar-se da fugacidade da existência humana é um tema sempre presente nos rituais simbólicos dos mais variados povos, presentificando-se, também, na obra de Woellner, conforme observa-se no poema “Alma gêmea”, por meio da recorrência ao “Sansara”, termo sânscrito relacionado ao ciclo da vida: Agora é hora. Vai e vence o destino! Revelando tua fé, tem coragem rara, para não deixar que, sutilmente e de inopino, te iluda e te domine a Roda de Sansara... Fica de olhos abertos e, sem desatino, as seduções fugazes, com firmeza encara. Que a cada ameaça, no interior, toque o sino fiel da consciência, que sempre a dúvida aclara. Investiga e ouve, apenas, o teu coração e rompe, de vez, com a cruel repetição: desata o nó que te prende, ainda, ao passado! Liberto dos grilhões, seja iluminado pra reconhecer, enfim, tua mulher, tua fêmea, e acolher, nos braços, feliz, a tu’alma gêmea. (WOELLNER, Sons do silêncio, 2004, p. 33). No Sânscrito a Roda de Sansara seria a representação do ciclo da vida, do qual ninguém pode escapar. Na concepção budista, o Sansara seria semelhante ao nirvana, com a distinção de que o nirvana ligar-se-ia à pureza de espírito e consciência do absoluto, enquanto o Sansara estaria vinculado às inclinações sensuais e a uma representação da natureza maculada. Nesta perspectiva, 112 enquanto o nirvana simbolizaria o acesso à purificação, o Sansara seria uma espécie de círculo vicioso. No poema, o eu lírico aconselha seu interlocutor a fugir da Roda de Sansara, revelando uma certa polaridade maléfica desta. Observa-se que a Roda de Sansara é relacionada, no poema, a seduções e ameaças, as quais somente poderão ser vencidas por meio de uma consciência em alerta. Atrelado à consciência, apresenta-se a imagem do sino, cujo simbolismo encontra-se ligado à percepção do som “que é reflexo da vibração primordial” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 835). No islã, o sino representaria o reflexo do Poder divino no viver humano, sendo que a percepção de seu som extinguiria as restrições instituídas pela temporalidade, ou seja, o som do sino possibilitaria que o homem participasse de um tempo e de uma experiência que lhe é negado pela transitoriedade da vida humana. Universalmente, a simbologia dos sinos representaria “um poder de exorcismo e purificação. Ele afasta as influências malignas ou, pelo menos, adverte da sua proximidade” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 835). É o que se evidencia no poema, haja vista que seria o toque fiel do sino da consciência que preveniria o interlocutor contra as possíveis ameaças. Conforme observam os autores, no Tibet, o símbolo dos sinos também estaria associado à sabedoria, considerada elemento passivo e feminino, oposto ao Método. Estes autores salientam que “a sineta, em oposição ao raio, simboliza também as virtudes femininas, a Doutrina” (2002, p. 835). Note-se que, no poema, ocorre uma busca por libertar a feminilidade, conforme expressa-se nos versos: “Liberto dos grilhões,/ seja iluminado/ pra reconhecer, enfim, tua mulher,/ tua fêmea”. O ato de ouvir o tocar dos sinos da consciência contribuiria para esta libertação. Vale lembrar que o “feminino” pode ser entendido como o símbolo da sublimação dos desejos em direção à espiritualidade, destacando que, segundo Durand, na literatura, o “eterno feminino e sentimento de natureza caminham lado a lado” (2001, p. 233). Consoante Chevalier & Gheerbrant, a mulher “está mais ligada do que o 113 homem à alma do mundo, às primeiras forças elementares, e é através da mulher que o homem comunga com essas forças” (2002, p. 421). A feminilidade seria o encontro de uma aspiração humana à transcendência e de um instinto natural, em que se manifestam: 1) o vestígio mais experimental do domínio dos indivíduos por uma corrente vital extremamente vasta; 2) a fonte, em certo modo, de todo potencial afetivo; 3) e, por fim, uma energia eminentemente apta a aperfeiçoar-se, a enriquecer-se de mil matizes cada vez mais espiritualizados, a reportar-se, em pensamento, para múltiplos objetos, e principalmente para Deus (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 421). Esta “alma do mundo”, a que se referem os autores supracitados, seria, para Durand, uma organização mediadora e realizante, que funcionaria como uma espécie de “modelo mecânico do inteligível”, atuando “entre o Universo sensível, divisível, objeto de opinião, e o Universo inteligível, uno, objeto de episteme” (1995b, p. 83, grifos do autor). A figuração feminina divinizada assemelha-se à “alma do mundo”, como é o caso, por exemplo, da figura de Maria, mãe de Jesus, que, segundo Durand, apresentaria os traços visionários próprios da “alma do mundo”, sinalizando “no mundo sensível a presença do Bem Soberano invisível” (1995b, p. 90). Ressalta-se que a imagem da “alma do mundo” faz referência, também, a uma ordem de totalidade, correspondendo à forma circular, que simboliza a perfeição e a “excelência absoluta” (DURAND, 1995b, p. 100). O princípio feminino também se relaciona ao aspecto do inconsciente, denominado anima, que seria a personificação das tendências psicológicas femininas presentes no inconsciente humano, e estas englobariam as intuições proféticas, a sensibilidade ao irracional, a capacidade de amar, as relações sensitivas com a natureza, bem como a ligação com a irrealidade. Para Bachelard, o nível menos profundo do inconsciente seria regido pelo masculino, enquanto os níveis mais profundos, pelo feminino. Projetos e preocupações pertenceriam ao animus, enquanto devaneios e as imagens pertenceriam à anima. Nesta perspectiva, também o imaginário estaria dentro das fronteiras da anima. Para Bachelard, “o devaneio puro, repleto de imagens, é uma manifestação da anima” (2001, p. 61). 114 O poema menciona, ainda, a imagem do nó, que, prendendo ao passado, impossibilitaria o interlocutor de reconhecer-se em sua essência. A simbologia dos nós e amarras representa “o poder que liga e desliga” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 637), e o ato de desatar um nó simboliza, dentre outras possibilidades, a solução de determinada situação conflituosa e a libertação. Segundo Chevalier & Gheerbrant, os nós podem representar não somente dificuldades, mas também barreiras psicológicas e sociais que impedem o indivíduo de realizar-se. No poema, é o nó que prende o indivíduo ao passado, podendo ser entendido como a representação das normas e regras que o impedem de descobrir sua feminilidade e encontrar o amor. “Num plano espiritual, desfazer os liames significa libertar-se das afeições, para viver em um nível mais elevado” (2002, p. 637). Neste contexto, o amor pode ser considerado o símbolo máximo da busca de “um centro unificador que permitirá a realização da síntese dinâmica de suas virtualidades” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 46), ou seja, o amor seria o espaço em que a espiritualidade poderia desenvolver-se de forma plena, visto que dois entes que se entregam e se abandonam, reencontram-se um no outro, mas elevados a um grau superior do ser, se a doação tiver sido total, e não apenas limitada a um certo nível de sua pessoa, que é, na maioria das vezes, carnal. O amor é fonte ontológica de progresso, na medida em que é efetivamente união, e não só aproximação (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 47). Já na visão de Octávio Paz, o amor – assim como a experiência poética e a experiência do sagrado – “é uma das vias de acesso à revelação de nós mesmos” (1982, p. 184), apontando, ainda, para uma revelação do próprio ser. A alusão ao termo “alma gêmeas” evidencia a situação do homem que, fazendo parte de um cosmos formado por elementos distintos, precisa se harmonizar com eles para alcançar a elevação. Chevalier & Gheerbrant observam que, no pensamento judaico, a alma humana dividir-se-ia em duas orientações, uma terrena e outra divina, bem como em dois princípios: um feminino e outro masculino. “Um e outro são chamados a transformar-se, a fim de tornar-se um único princípio 115 espiritual” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 34). Nesta perspectiva, o encontro das almas gêmeas pode ser considerado a confluência de dois princípios opostos que se completam. O termo “gêmeas” reitera esta visão de opostos que se integram, haja vista que o fenômeno dos gêmeos seria uma representação da condição de ambivalência que faz parte das representações simbólicas, bem como da condição do ser humano, que é plural por natureza. O símbolo dos gêmeos também simbolizaria o cruzamento dos caminhos, unindo duas realidades opostas que, no entanto, se completam. Assim, as imagens da Roda de Sansara, do sino, do ato de desatar nós, da feminilidade, do amor e da alma gêmea convergem para o mesmo fim, isto é, instaurar um espaço em que possa ser descoberta a verdadeira essência do indivíduo, possibilitando, assim, sua elevação espiritual. A poesia de Adélia Maria Woellner apresenta, constantemente, o regresso aos caminhos outrora trilhados pelas andanças da humanidade. A viagem pelo passado mítico traduz “a tendência humana de tentar fixar o passado e dominar o futuro” (MELLO, 2002, p. 78), em função de desvendar a essência humana. Para Durand, “a virtude essencial do símbolo é assegurar no seio do mistério pessoal a própria presença da transcendência” (1995a, p. 30). É o que se verifica nos poemas de Woellner, cujas imagens e símbolos, geralmente, confluem para a instauração de um espaço de transcendência. Sua obra dá mostras de um olhar contemplativo e autêntico, que revela as profundezas da alma humana e o âmago dos objetos a respeito dos quais a poeta tece reflexões. Desde as cenas mais triviais até as mais incomuns, há sempre descobertas fantásticas, que demonstram a presença de uma acurada sensibilidade poética, que indica um desejo de transformação das realidades inaceitáveis. A lírica woellneriana apresenta uma manifestação original da vida, sendo que, por meio da reapropriação de verdades primitivas, ocorre o reencontro do homem consigo mesmo, revelando que o olhar lançado sobre o 116 passado mítico expressa a tentativa de compreender o que há de mais imperscrutável no interior dos seres humanos, o que incorre no desvelar de múltiplos e inovadores sentidos. REFERÊNCIAS: CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva et. al. 17. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1974 (Coleção Os Pensadores). _______. A poética do devaneio. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001. _______. A água e os sonhos. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2002. DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Trad. Carlos Aboim de Brito. Lisboa: Edições 70, 1995a. _______. A fé do sapateiro. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1995b. _______. Campos do imaginário. Trad. Maria João Batalha Reis. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. _______. As estruturas antropológicas do imaginário. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991. MELLO, Ana Maria Lisboa de. Poesia e imaginário. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. 117 LITERATURA E RESGATE DE VOZES FEMININAS: PALAVRA E MEMÓRIA EM ANA CRISTINA CESAR, ADÉLIA MARIA WOELLNER E ARRIETE VILELA Antonio Donizeti da Cruz73 (Universidade Estadual do Oeste do Paraná) “De alma debruçada sobre a úmida falca escuto o diálogo surdo entre o cais e a corrente o que jaz e o que se desprende. Entre margens engessadas na história escrita ágrafas navegam sem âncora de memória as águas da vida” Astrid Cabral As palavras de Astrid Cabral74 são balizas em um “mar de palavras” e canções, tecidas no tear de palavras, esse “ofício do verso” – de que fala Jorge Luiz Borges –, marcado pela palavra-memória, registros, histórias, linguagem, amor e poesia. Vozes líricas femininas da poesia brasileira, Ana Cristina Cesar, Adélia Maria Woellner e Arriete Vilela, têm, em cumplicidade, o encantamento pela palavra poética e a paixão pela poesia e pela linguagem-memória. A seguir, breve apresentação, das Artistas da Palavra: ANA CRISTINA CESAR nasceu no Rio de Janeiro, em junho de 1952. Publicou seus primeiros poemas muito cedo, em 1959, no “Suplemento Literário”, do Jornal carioca Tribuna da Imprensa. Licenciada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro em 1975. Mestre em Comunicação pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1979. Master of Arts (M.A.) em Theory and Practice of Literary Translation pela 73 Antonio Donizeti da Cruz é professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Ministra aulas de Teoria da Literatura, na graduação em Letras, Campus de Marechal Cândido Rondon e de Lírica e Sociedade e, também, Literatura Comparada, no Programa de Pós-Graduação em Letras, área de concentração em Linguagem e Sociedade, da UNIOESTE, Campus de Cascavel. Com graduação em Letras Português Inglês pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Palmas (1985); Especialização em Literatura Brasileira e Lingüística, pela Universidade Federal do Paraná; Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), sob orientação do Prof. Dr. Antonio João Silvestre Mottin; Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com tese intitulada O universo imaginário e o fazer poético de Helena Kolody; sob orientação da Profª Drª Ana Maria Lisboa de Mello; e com Pósdoutoramento em Letras – Estudos da Literatura, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), sob orientação do Professor Dr. Gilberto Mendonça Teles, sobre a obra poética de Lília A. Pereira da Silva. É membro efetivo das seguintes associações: ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada); GT - Teoria do texto poético (ANPOLL); IASA – Associação Internacional de Estudos Americanos. Participa do Grupo de pesquisa LER: Literatura, Educação e Recepção - Núcleo LER -, sob coordenação da Profª Drª Hilda Orquídea Hartmann Lontra. 74 Astrid Cabral nasceu em Manaus (AM). Poeta, ensaísta, escritora, publicou várias obras, entre elas: Alameda (1963); Ponto de cruz (1979); Intramuros (1998); De déu em déu (1998); Rasos d’água (2003). Em 1962, inicia o magistério superior, na recém criada Universidade de Brasília. Afastou-se devido a ditadura militar. Com a anistia, em 1988, foi reintegrada, passando a lecionar Literatura Brasileira. (CABRAL, 1998, vii) 118 Universidade de Essex, Inglaterra, em 1980. Exerceu intensa atividade jornalística, editorial e como tradutora de relevantes autores estrangeiros, entre os quais a poeta Silvia Plath. Traduziu várias obras, entre elas, O Relatório Hite: um profundo estudo sobre a sexualidade feminina, de Shere Hite, e também realizou vários ensaios literários e jornalísticos. Ana Cristina Cesar publicou as seguintes obras: Luvas de pelica; Cenas de Abril; Correspondência completa; Literatura não é documento. Em 1982, publicou A teus pés. Após sua morte em 29 de outubro de 1983, a reunião de seus escritos inéditos resultaram em três obras, organizadas por Armando Freitas Filho: Inéditos e dispersos (prosa e poesia) (1985); Escritos da Inglaterra (1988) e Escritos no Rio (1993). ADÉLIA MARIA WOELLNER nasceu em Curitiba (PR). Formou-se em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Foi professora de Direito Penal na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Pertence a várias academias, entre elas, a Academia Paranaense de Letras, Academia Internacional de Letras da Inglaterra (Grafton Road, London, England). Adélia Maria Woellner tem recebido prêmios literários e homenagens (Comenda Medalha de Mérito Ferroviário, concedida pela RFFSA, Rio de Janeiro, RJ). Publicou as seguintes obras: Balada do Amor que se foi (1963); Nhanduti (1964); Poesia Trilógica (1973); Avesso meu (1990); Infinito em mim (1997); Luzes no Espelho: memórias do corpo e da emoção (2004); Sons do silêncio (2004). A obra Infinito em mim já foi editada em Espanhol, Inglês, Italiano, Francês, Alemão e também em Braile. Também escreve ensaios. A obra Luzes no Espelho é uma narrativa ficcional (memória autobiográfica). A obra woellneriana já foi pesquisada nos meios acadêmicos75. ARRIETE VILELA nasceu em Marechal Deodoro (Alagoas). Foi professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Alagoas. Publicou as seguintes obras: Para além do avesso da corda (1980); Farpa (1988); Fantasia e avesso (1986); A rede do anjo (1992); Dos destroços, o resgate (Gazeta de Alagoas); O ócio dos anjos ignorados (1995); Tardios afetos (1999); Vadios afetos (1999); Artesanias da palavra (Antologia de poemas, com participação de outros poetas); Maria Flor etc (2002); Grande baú, a infância (2003); Frêmitos (2004); A Palavra sem Âncora (2005); Lãs ao vento (2005); Ávidas paixões, áridos amores (2007). 75 Clarice Braatz Schmidt Neukirchen defendeu, em 2006, a Dissertação de mestrado intitulada Tempo e Memória na lírica de Adélia Maria Woellner, sob minha orientação, no Programa de Pósgraduação Stricto Sensu em Letras – Aérea de concentração em Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. 119 Arriete Vilela tem recebido prêmios e homenagens: Prêmio Organização Arnon de Melo - pela Academia Alagoana de Letras; Prêmio Cecília Meireles - União Brasileira de Escritores - UBE; Prêmio Jorge de Lima - pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores (RJ); Recebeu, em 2005, a “Comenda Dra. Nise da Silveira, outorgada pelo Governo do Estado de Alagoas, como uma das mulheres que mais têm se destacado no panorama cultural alagoano. A obra de Arriete Vilela já foi estudada nos meios acadêmicos, tendo sido objeto de pesquisa de dissertações de mestrado. Palavra, poesia e memória: vozes líricas femininas Para o poeta Octavio Paz, a poesia é a Memória feito imagem e convertida em outra voz. A poesia é sempre a “outra voz”, porque “é a voz das paixões e das visões; é de outro mundo e é deste mundo, é antiga e é de hoje mesmo, antiguidade sem datas” (1993, p. 140). No dizer de Paz, os poetas têm sido a memória de seus povos, pois “cada poeta é uma pulsão no rio da tradição, um momento da linguagem. Às vezes os poetas negam sua tradição mas só para inventar outra” (1993, p. 108-109). A invenção lírica se projeta do presente para o futuro. O poeta é ciente de sua tarefa: ser elo da corrente, uma ponte entre o ontem e o amanhã. Entretanto, no findar do século XX, ele “descobre que essa ponte está suspensa entre dois abismos: o do passado que se afasta e o do futuro que se arrebenta. O poeta se sente perdido no tempo” (PAZ, 1982. p. 69). Nesse sentido, ao recriar sua experiência, leva avante um passado que é um futuro. O tempo possui uma direção, um sentido, ou seja, “ele deixa de ser medida abstrata e retorna ao que é: concretude e dotado de direção. O tempo é um constante transcender” (PAZ, 1982. p. 69). A função essencial do tempo na estruturação da imagem do mundo reside, conforme Octavio Paz, no fato de que o homem, dotado de uma direção e apontando para um fim, faz parte de um processo intencional (1991, p. 97). Os atos e as palavras dos homens são feitos de tempo. Assim, a cronologia está fundamentada na própria crítica. Já a poesia é tempo revelado, isto é, o enigma do mundo que se transforma em “enigmática transparência”. O poeta diz o que diz o tempo, até quando o contradiz, pois ele é capaz de nomear o transcorrer, e ainda, “torna palavra a sucessão” (PAZ, 1991, p. 98). A palavra é sempre uma “manifestação profunda do ser”, afirma Javier González (1990, p. 156). Para o autor, mediante o universo poético, o poeta se apóia nos aspectos lúdicos, rítmicos e imaginários da linguagem, cuja função poética 120 funciona como um vetor constitutivo da natureza humana. É pela palavra que o homem se coloca no plano expressivo superior a não-significação da ordem natural, pois ela, enquanto núcleo de dispersão e convergência, é capaz de nomear o mundo (1990, p. 152-153). González considera o trabalho do poeta como um desenvolvimento frente aos meios de fixação e dispersão de sentido, ou seja, como um jogo de palavras que tem por finalidade projetar um grande número de significações. Nessa perspectiva, o escritor descobre e constrói o mundo utilizando a palavra enquanto instrumento “capaz de conter a surpreendente variedade do real”, isto é, ele sabe que ofício da linguagem abre múltiplos espaços de “comunicação e de nominação dos objetos” (GONZÁLES, 1990, p. 156-157). A poesia é potência capaz de dar sentido à vida. Ao buscar a essência da linguagem, o artista realiza o poder mágico através das palavras enquanto mediação, comunicação e exercício de construção de sentidos. Para o filósofo Gaston Bachelard, o homem sonha através de uma personalidade de uma memória muito antiga. Ele mira-se em seu passado, pois toda imagem para ele é lembrança. “As verdadeiras imagens são gravuras. A imaginação grava-as em nossa memória. Elas aprofundam lembranças vividas, deslocam-nas para que se tornem lembranças da imaginação” (1993, p. 181, p. 13. Grifo do autor). Nesse sentido, memória e imaginação não se deixam dissociar, ou seja, ambas trabalham para o aprofundamento mútuo. Elas constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem. “Uma memória imemorial trabalha numa retaguarda do mundo. Os sonhos, os pensamentos, as lembranças formam um único tecido. A alma sonha e pensa, e depois imagina” (BACHELARD, 1993, p. 181). Conforme Bachelard, os poetas ordenam suas impressões associando-as a uma tradição. O mundo é um espelho do nosso tempo e também a reação das nossas forças, isto é, “se o mundo é a minha vontade, é também o meu adversário” (1989a, p. 165-166). Resulta desse embate a compreensão do mundo mediante a surpresa das próprias forças incisivas, nas quais consistem as renovações, pois é através da imaginação que o homem se situa frente ao “mundo novo”, cujos detalhes predominam sobre o panorama, decorrendo daí a expressão: “uma simples imagem, se for nova, abre o mundo” (1993, p. 143). Gilbert Durand salienta que a memória tem “o caráter fundamental do imaginário, que é ser eufemismo, ela é também, por isso mesmo, antidestino que se ergue contra o tempo” (1997, p. 405. Grifo nosso.). É ainda “poder de organização de um todo a partir de um fragmento vivido”. Essa potência “reflexógena” é “o poder 121 da vida”, que por sua vez, é capacidade de reação, de regresso. A organização que faz com que uma parte se torne “dominante” em relação a um todo é a negação da capacidade de equivalência irreversível que é o tempo. Por isso, a memória – bem como a imagem – é a magia dupla “pela qual um fragmento existencial pode resumir e simbolizar a totalidade do tempo reencontrado” (1997, p. 403). O ato reflexo é ontologicamente esboço da recusa fundamental da morte. Longe de estar do lado do tempo, “a memória, como o imaginário, ergue-se contra as faces do tempo e assegura ao ser, contra a dissolução do devir, a continuidade da consciência e a possibilidade de regressar, de regredir, para além das necessidades do destino” (DURAND, 1997, p. 403). Frente às “faces do tempo” e à cristalização da “memória”, o homem se vê isolado, ilhado, mesmo estando rodeado por uma multidão. Mergulhado em um mundo de imagens e realidades que dão uma configuração à própria vida, ele é sabedor da sua condição existencial: a solidão habita a sua vida. Ou seja, ela é experiência viva que se concretiza não só enquanto recolhimento, mas, acima da tudo, como sentimento intrínseco frente à sensação de isolamento e vazio vivenciado pelo sujeito humano. Em Amor, poesia, sabedoria, o filósofo Edgar Morin define a poesia como amor, estética, gozo, prazer, participação e, principalmente, vida (1998, p. 59). Ela é, igualmente, a manifestação de possibilidades infinitas da indeterminação humana. Já a criação poética tem o poder de reativar os conceitos analógicos e mágicos do mundo e, também, despertar as forças adormecidas do espírito, com o intuito de reencontrar os mitos esquecidos. Para o filósofo, a poesia não é somente um modo de “expressão literária”, mas um “estado segundo” vivenciado pelo sujeito e que deriva da participação, da exaltação, embriaguez e, acima de tudo, “do amor, que contém em si todas as expressões desse estado segundo. A poesia é liberada do mito e da razão, mas contém em si sua união” (MORIN, 1998, p. 9). Essas duas forças são capazes de realizar a grande transformação vital, quer dizer, o amor se liga à “poesia da vida”. O filósofo ainda complementa: A vida é um tecido mesclado ou alternativo de prosa e poesia. Pode-se chamar de prosa as atividades práticas, técnicas e materiais que são necessárias à existência. Pode-se chamar de poesia aquilo que nos coloca num estado segundo: primeiramente, a poesia em si mesma, depois a música, a dança, o gozo e, é claro, o amor. (MORIN, 1998, 59-60) Em relação à figura do poeta, Morin destaca que este é portador de uma competência plena, “multidimensional”, pois sua mensagem poética tem a capacidade de reanimar a “generalidade adormecida”, ao mesmo tempo em que “reivindica uma harmonia profunda, nova, uma relação verdadeira entre o homem e o mundo” (1998, p. 158). 122 A linguagem poética é por natureza diálogo. É social porque envolve quem fala e quem ouve. A palavra que o poeta inventa é a de “todos os dias” e faz parte de nosso ser, quer dizer, “são nosso próprio ser. E por fazerem parte de nós, são alheias, são dos outros: são uma das formas de nossa ‘outridade’ constitutiva. [...] A palavra poética é a revelação de nossa condição original porque por ela o homem, na realidade, se nomeia outro, e assim ele é ao mesmo tempo este e aquele, ele mesmo e o outro” (PAZ, 1982, p. 217). Palavra, memória e imaginação poética são elementos basilares na poesia de Ana Cristina Cesar, Adélia Maria Woellner e Arriete Vilela. Ao elaborar uma poiesis alicerçada em um mundo de significações, as poetas realizam um fazer poético que direciona à condição humana: transitoriedade e permanência. Nessa perspectiva, as poetas, com suas vozes líricas femininas, elaboram os textos/poemas dando-lhes sentidos, formas e um colorido singular, que exprimem um “sentimento do mundo”. A temática social – na obra das Artistas da Palavra – está alicerçada numa construção poética capaz de valorizar os sentimentos de amor, participação frente aos inquietantes desafios que a vida impõe. Rede de imagens poéticas intercruzadas nas vozes femininas: palavra e memória lírica Os poemas de Ana Cristina Cesar, Adélia Maria Woellner e Arriete Vilela registram as sutilezas de um fazer poético embasado na força da linguagem, na memória e na concretização de um dizer que aponta para imagens visuais, claras, momentos de observação atenta de um eu em sintonia com o mundo circundante. “Estas areias pesadas são linguagem Qual a palavra que Todos os homens sabem?” Ana Cristina Cesar (1998a, p. 124). Na obra da poeta-artista Ana Cristina Cesar é marcante o entrelaçamento de imagens poéticas centradas na questão da identidade/alteridade e na linguagem marcada pelo teor de modernidade e crítica, tal como no texto sintético, em prosa: Lá onde cruzo com a modernidade, e meu pensamento passa como um raio, a pedra no caminho é o time que você tira de campo. (CESAR, 1998a, p. 154). Segundo Armando Freitas Filho, “Ana Cristina Cesar encarava a modernidade. Talvez por isso tenha morrido cedo – pura passagem permanente – muitas asas e um desdém pelo que poderia ser raiz. O lugar que ocupa é na linha do 123 horizonte – virtual e veloz” (FILHO, 1998). Ainda sobre a poesia de Ana Cristina Cesar, o poeta Armando Freitas Filho complementa a seguinte crítica: Seu verso, que pertenceu à vertente cultivada da geração que apareceu em 70, é, hoje, pedra de toque para toda poesia que se quer nova; com seus motivos e matizes estilizadas que se deixam acompanhar, ao fundo, por uma brusca e inusitada melodia que parece ter sido feita pela mistura de cristais, heavy metal e tafetá. A obra é breve, um cinema essencial, e depressa. Morria de sede no meio de tanta seda. Nunca nos esquecemos de sua paixão acesa e seca. O que mais queima: a pedra de gelo ou o ferro em brasa? Vulcão de neve. Ela não foi - ela fica - como uma fera. (FILHO, 1998). No texto “Soneto”, a poeta Ana Cristina se (auto)apresenta e busca a interlocução com o leitor mediante o jogo da linguagem. Faz, ainda, uma possível aproximação com o poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, que diz “O poeta é um fingidor” (do latim Fingire: imitatore: imitador): “Pergunto aqui se sou louca / Quem quem saberá dizer / Pergunto mais se sou sã / E ainda mais, se sou eu // Que uso o viés pra amar / E finjo fingir que finjo / Adorar o fingimento / Fingindo que sou fingida // Pergunto aqui meus senhores / Quem é a loura donzela / Que se chama Ana Cristina // E que se diz ser alguém / É um fenômeno mor / Ou um lapso sutil?” Inconfissões – 31.10.68 (CESAR, 1998a, p. 38). São várias as indagações do eu lírico: há os questionamentos do Eu e da linguagem. Note-se a ausência de pontuação no texto, com exceção do último verso no qual aparece o ponto de interrogação. A permanente interrogação - marca profunda da literatura moderna - gira em torno da ausência que o branco da folha sugere. Dessa forma, é pela palavra que o poeta desenvolve a contínua transmutação de significantes, gerando novos sentidos e possibilidades de ser. Na poesia/prosa de Ana Cristina Cesar, a palavra adquire, muitas vezes, a inflexão da interrogação ontológica. A poesia, enquanto busca de sentido, faz com que o poeta e o leitor mantenham na atualidade um procedimento de indagação perante esta arte, pois, no dizer de Octavio Paz, na modernidade, o poema adquire a forma de questionamento e, ao mesmo tempo, é “recuperação da outridade, projeção da linguagem num espaço despovoado por todas as mitologias, o poema assume a forma de interrogação. Não é o homem que pergunta: a linguagem nos interroga” (PAZ, 1982, p. 345). O texto “Não adianta”, apresenta a temática da memória circunscrita na linguagem capaz de registrar os momentos vividos pelo eu lírico: Antes havia o registro das memórias cadernos, agendas, fotografias. Muito documental. 124 Eu também estou inventando alguma coisa para você. Aguarde até amanhã. Uma vez ouvi secamente o chega pra lá e pensei: o mundo despencou Quem teria a chave? (CESAR, 1998a, p. 192). Há, no texto, a afirmação do sujeito de enunciação de que o “mundo despencou”, por isso a indagação “Quem teria a chave?” Além da invenção e criatividade do sujeito lírico, a constatação do “documental”, uma vez que “antes havia o registro das memórias”, isto é, os “cadernos, agendas, fotografias” que serviam como baliza para se “escrever” de forma pontual a história, marcar o fluxo temporal e as ações vivenciadas pelo Eu. No texto “aí é que são elas”, nota-se a busca incessante do eu lírico “procurando as chaves”, quer na (auto)referencialidade, quer pela incessante busca de identidade, quer pelas sendas e labirintos da linguagem marcada pelas lembranças e esquecimentos, mas, acima de tudo, evidencia-se a memória lírica registrada pelas palavras do sujeito da enunciação: Eu procurava as chaves, a questão pendente, atravessava a luz deserta da praia de cabo a rabo, de vestido, voltava sobre os meus próprios passos, ficava na varanda, atravessava os dias como uma planta perdida no deserto, naquele sol mais quieta. “Aqui eu te conheço”. Eu não sabia que sabia, aquela planta. A pauta se calasse... Ouvia: “se você dançar...” Só de memória me espanto, de cabeça caio e saio, de cor, e pronto, socorram-me então nesse esforço de raízes, ouvindo a chuva nas telhas de menos dessa casa escura, com goteiras de verão e falta dágua, sem transporte, descendo a estrada de pó nas sandálias havaianas, fazendo uma bolha no calor, um lanho rubro, repetindo. “Ana, na janela há um recadinho”, um curativo aberto, um sanduíche aberto, um fantasma romântico no peito, “se você dançar...” Me lembro da rádio a mil dentro do carro, e de uma saudade inata. CESAR, 1998a, p. 106). O texto (narrativa lírica) apresenta uma linguagem “rápida”, telegráfica, intercalada por uma multiplicidade de vozes que se interligam, marcada pelo forte acento de outras vozes que se cruzam o discurso do sujeito da enunciação que diz “eu procurava as chaves”. A imagem do sujeito lírico é comparada a uma “planta perdida no deserto”. O texto é norteado pela procura do Eu frente à desertificação, ao sentimento de vazio e por uma “saudade inata”. 125 A obra de Ana Cristina Cesar apresenta uma procura incessante de dizer o mundo e (re)inventar a linguagem poética a partir de uma estética e elaboração literária criativa, com sua “pinceladas de poesia”, numa multiplicidade de temas: linguagem, alteridade, metapoesia, lirismo, paixão, arrebatamento, mas acima de tudo o amor à palavra e à poesia, como nos versos do poema “Mulher”: a coisa que mais o preocupava naquele momento era estudo de mulher toda mulher dos quinze aos dezoito. Não sou mais mulher. Ela quer o sujeito. Coleciona histórias de amor. (CESAR, 1998a, p. 131). Da questão da identidade à reflexão de um eu que se presentifica nos versos, o lirismo evidencia-se de forma clara e enquanto buscas do sujeito da enunciação. No texto “Poesia”, de Ana Cristina, presença e ausência se mesclam num jogo de palavras, acentuado pelo ofício-cantante do sujeito lírico: jardins inabitados pensamentos pretensas palavras em pedaços jardins ausenta-se a lua figura de uma falta contemplada jardins extremos dessa ausência de jardins anteriores que recuam ausência freqüentada sem mistério céu que recua sem pergunta (CESAR, 1998a, p. 97). No texto, o amor e o encantamento pela palavra/poesia se mesclam e se identificam entre si. Já o sentido do amor e da poesia aponta para a qualidade suprema da vida. Amor e poesia, no dizer de Morin, quando concebidos como fins e meios do viver, dão plenitude ao “viver por viver” (1998, p. 9-10). São versos que direcionam o poema no sentido do amor e do ato de nomear as coisas; mesmo entre “ausências”, “palavras em pedaços”, a imagem da “lua” projetada em “uma falta contemplada”, a poesia é comparada a um “jardim de palavras”. Mas também há a consciência da fragilidade e dos mistérios frente às vicissitudes da vida. Emerge do poema uma relação de sentidos que se conjugam em torno do encantamento do eu lírico em relação ao amor às palavras, daí a aproximação de poesia e do amor, à afirmação de Morin: “o amor é algo único, como uma tapeçaria que é tecida com fios 126 extremamente diversos”, isto é, “o amor enraíza-se em nossa corporeidade e, nesse sentido, pode-se dizer que o amor precede a palavra” (1998, p. 16-17). “A palavra: o porão onde oculto as estiagens do amor.” Arriete Vilela (“Poema 13”, 2004, p. 27). A poeta Arriete Vilela, com uma poesia densa, tece sua “rede” de palavras centrada na temática da memória. O poema “Não devias” apresenta uma linguagem altamente elaborada, com acentuado lirismo e encantamento do eu lírico para com a palavra poética: Não devias enamorar-te assim das minhas palavras: são fios que tecem a renda com que adorno as entardecidas beiradas dos meus dias e tecem, igualmente, a renda com que caço borboletas que, à tua semelhança, voejam solitárias ao redor do meu mistério Não, não te devias exibir assim à beira do poço: és pássaro de pequenas asas e basta um descuidado sopro de minha poesia para fazer-te ver o céu menor do que uma lágrima. Não devias jogar-me à passagem – e assim, à vista de todos – belas metáforas: esmago-as com amorosos gestos para que gotejem em mim o sumo das folhas da pitangueira com seu cheiro de infância reencontrada na tua ausência. Poupa-te, anjo de flores que só duram um dia. Passa à margem do que sou, protege esses teus olhos de mares transparentes e não queiras estender o meu silêncio, a minha recusa nem os sutis precipícios sobre os quais vivo e escrevo. Protege o teu coração e não atices nele a colméia que espreita, para além das cercas vivas de papoulas, a dor nos descuidos da alegria amorosa (VILELA, et al. 2001, p. 29-30) A memória lírica, no poema, surge enquanto baliza capaz de realizar e resgatar fatos e lembranças passadas, mas sempre organizada de maneira individual, centrada nos artifícios da linguagem, nas modulações de um pensamento que (re)elabora o passado, dando novos sentidos ao ato de rememorar, como na 127 passagem: “para que gotejem em mim o sumo das folhas / da pitangueira com seu cheiro de infância / reencontrada na tua ausência” (p. 29-30). Bosi lembra que, memória não é sonho, é trabalho, pois “lembrar não é reviver, mas reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado” (1994, p. 55). O texto “Tua Palavra”, de Arriete Vilela, exprime uma linguagem vigorosa, acentuada pela interlocução do Eu lírico com o Outro: Tua palavra de pitanga madura, lua vermelha esmagada na minha mão mesclou de amargos amores o legítimo linho branco em que mãe, avó e bisavó bordaram um fatídico destino poético. Tua palavra de pólen na leveza da ave nômade fecundou a minha palavra: fiz-me útero e te embriaguei, amorosamente, das sinuosidades labirínticas em que protegias os teus medos, e te nutri com a alegria das bandeirolas que se esperançavam nas manhãs de prata com os sinos a quererem-se cristais. [...] Tua palavra invejou a minha palavra e então nos distanciamos, porque não podíamos ser galantes entre iguais entrelinhas. (VILELA, et al. 2001, p. 36-37) Os versos do poema registram a contenção, o rigor da linguagem e as sutilezas das imagens, que resultam no equilíbrio e na condensação textual. É a memória que se cristaliza no instante de dizer quando o sujeito da enunciação diz que a palavra do outro é como “pitanga madura”, também comparada à “lua vermelha”. Há, no texto, uma aproximação de palavra-memória capaz de nomear o ser de forma amorosa, mediante a palavra poética. Mesmo que haja a consciência de um distanciamento de eu e do outro, a certeza, para o sujeito lírico de que a palavra é portadora de esperanças, tal com os “sinos a quererem-se cristais”, ela apresenta-se como “pólen na leveza da ave nômade”. Pode-se constatar, nos versos, que a palavra – mediante o ato de nomear - realça a condição do poeta: ser solitário e, ao mesmo tempo, solidário, mediante a força das palavras, tal como afirma Cecília Meireles: “Ai, palavras, ai, palavras,/ que estranha potência, a vossa!” (1983, p. 235). Na criação literária, o poeta (re)inventa o seu mundo e dá sentido à vida através do reino encantado das palavras. Nos poemas sintético de Arriete Vilela, a palavra – enquanto registro/memória – é a expressão maior de um eu lírico que tem, na palavra, a força de um contato 128 amoroso com as palavras. No texto “Poema 27”, a palavra é elemento vital da luta travada pelo poeta: A Palavra: uma forma de debater-me em voragens de fundo de rio aparentemente calmo (Vilela, 2004, p. 50). Mas se há o embate do poeta com as palavras, há também a consciência de solidão, de vazio e impotência perante o ofício do verso, tal como no texto “Poema 28, de Arriete Vilela: Como inconfessável roteiro, a palavra às vezes me falta e então vivo como lã ao vento: desatada, transitória, cardadura inútil. (Vilela, 2004, p. 51) O eu lírico feminino se compara como “lã ao vento”, que sente, às vezes, o aparente abandono das palavras, mas não o da poesia. “A poesia, generosa, permitiu-me morar com ela” Adélia Maria Woellner (“Privilégio”, 2004a, p. 44). A poesia de Adélia Maria Woellner apresenta uma multiplicidade de temas que se intercruzam: fazer poético, temporalidade, solidão, memória, religiosidade. No poema “Tecelã”, a poeta trabalha a palavra enquanto tecitura: Costurei palavras, retalhos colhidos no baú dos devaneios. Fiz, do manto-poema, agasalho das esperanças. (WOELLNER, 2004a, p. 50). Da mesma forma como o tecelão que vai escolhendo os fios e emaranhandoos no tear, Woellner constrói seus poemas – tecidos de palavras – com arte e precisão. Daí à afirmação do eu lírico: “fiz, do manto-poema”, tendo em visto a 129 esperança e o viver. Nota-se, na lírica de woellneriana, um “enxugamento” dos textos, encaminhando-se cada vez mais para um estilo direto, privilegiando a economia dos meios de expressão. A poeta realiza uma construção poética alicerçada por uma linguagem densa, sutil, registrando o instantâneo, com uma poesia altamente elaborada, sintética. No poema “Caçador de Estrelas”, o sujeito lírico se entrega ao ofício poético e faz da linguagem a razão maior de se transformar em “caçador de estrelas”: No espaço da noite, projeto meu ser: cavalgo cometas e me transformo em caçador de estrelas... (WOELLNER, 1997, p. 21). Ao projetar o ser, no “espaço noturno”, o sujeito poético realiza uma poesia de busca, mediante o trabalho com as palavras. Assim, o poeta – operador de enigmas - faz da linguagem um espelho de dupla face: de um lado a palavra e do outro o silêncio. Na conjugação das formas dialéticas ele constrói o universo imaginário em que é possível a total realização em meio às configurações da linguagem e das imagens simbólicas do poema, enquanto revelação da condição humana. Nas palavras de Paz, “a revelação poética pressupõe uma busca interior. Busca que em nada se assemelha à análise ou à introspecção, mais que busca, atividade psíquica capaz de provocar a passividade propícia ao surgimento de imagens” (1982, p. 65). No poema sintético, intitulado “Batismo”, o sujeito lírico se entrega completamente ao ofício cantante da poesia: Mergulhei num mar de sonho E me fiz azul. Batizei-me... (WOELLNER, 1997, p. 20). A imersão no “mar dos sonhos”, por extensão, no “mar das palavras” e também a entrega total à poesia, faz do sujeito lírico um apaixonado pela palavra poética. Nesse sentido, uma das marcas da modernidade literária é o permanente ato de acreditar na linguagem. O poeta é sempre um apaixonado pela linguagem, ou seja, um lutador e resistente no sentido de desafiar as palavras. No poema “Infinito em mim”, há, na declaração do eu lírico, o sentido de totalidade em relação à palavra poética: 130 Em tudo, na semente, a expressão do todo. No poema, resulto ser criador e criado, quando me permito fundir-me com o universo e perceber o infinito em mim... (WOELLNER, 1997, p. 7). No texto, constata-se que o eu lírico busca a fusão do poema ao universo. O ato criador parece surgir de uma luta de corpo a corpo com as palavras em que a poeta se dedica sem tréguas ao seu ofício de lapidar as palavras e, ao mesmo tempo, constrói uma sólida arquitetura do poema, que resulta na palavra-memória, uma vez que a finalidade do trabalho poético é o próprio poema, pois é esta mesma objetividade interna que, no dizer de Ramos Rosa, “o abre ao mundo e permite a comunicação. O que o poema canta, seja qual for o seu motivo ou tema explícito, é o momento sublime da criação” (1980, p. 6). Por isso a revelação do poema enquanto “ação da linguagem”, instante de ordenação e unificação com o mundo. As palavras não se diferenciam das coisas. O que as interligam “não é a relação de um signo a um referente, ou significado, mas a energia que, através da operação da linguagem, as percorre e assim desvenda a unidade do presente criador” (ROSA, 1980, p. 6-7). Tempo, palavra e memória aparecem de forma articulada na poesia woellneriana. Primeiramente, há o tempo vivido, cronologicamente, base para situar as reminiscências vivenciadas, que são (re)elaboradas, reorganizadas pelo sujeito. Em um segundo momento, a memória tem o poder de ativar ou reter as coisas. A memória faz parte da vida, ou seja, somos feitos, de certa forma de memória, mas também de lembranças e esquecimentos. Da conjugação do tempo e memória, a palavra é o elo vital de um Eu que busca “reviver”, ou simplesmente lembrar o passado, mesmo que de forma evanescente, pois através do ato de rememorar, se realiza o milagre da linguagem. No poema “Memória atávica”, o eu lírico sente a vida como “infinito mistério” e na busca de si mesmo, se defronta com o espelhamento da linguagem-memória: Em algum lugar deste infinito mistério – que é meu ser –, a emoção primitiva brilha e reflete a memória de todas as eras. (WOELLNER, 1997, p. 63). 131 O elemento atávico é recorrente na poesia woellneriana, isto é, os impulsos criadores oriundos da ancestralidade e da memória coletiva ganham contornos em sua obra. O atavismo também está presente no poema “Herança”, de Adélia Maria: Trago gravada nas células a memória do ancestrais e no corpo impregnados os instintos dos animais. Desvelo minha resistência mineral. Descubro que tudo mora em mim: céus, estrelas, lua e sol, mares e areias, ventos e marés, montanhas e vales, chuvas e trovões. Sou terra e sou ar, sou fogo e água. Visto-me de folhas e flores, mastigo resinas e me sacio em perfumes. Afinal, despida do que não é meu, quem sou eu? (WOELLNER, 2004, p. 120). O fato de o eu lírico se (auto)descobrir integrado à essência da vida, impregnado pelos quatro elementos da natureza, no sentido bachelardiano, instaura, no texto, um diálogo do sujeito lírico com questão atávica, centrada no enfoque da memória ancestral e na busca de resposta para a indagação: “quem sou eu?”. Em relação à obra e à temática da memória na obra woellneriana, Clarice Braatz Schmidt Neukirchen tece a seguinte afirmação: “a obra de Adélia Maria Woellner caracteriza-se, sobretudo pela busca da essência humana. A poeta, constantemente, volta-se à observação do passado, revivendo situações e tentando, assim, desvendar o âmago dos seres. Sua obra evidencia que o regresso ao passado é uma forma de se adquirir o autoconhecimento” (2006, p. 137). As imagens do poema woellneriano apresentam, ainda, uma maneira especial do sujeito poético ver, sentir e interpretar o mundo, a partir da memória e da força onírica que faz com que o poeta seja um “sonhador de palavras”, como diz Bachelard, [...] todo sonhador inflamado é um poeta em potencial. [...] Todo sonhador inflamado vive em estado de primeira fantasia. Esta primeira admiração está enraizada em nosso passado longínquo. [...] temos mil lembranças, sonhamos tudo através da personalidade de uma memória muito antiga e, no entanto, sonhamos como todo mundo, lembramo-nos como todo mundo se lembra – então, 132 seguindo uma das leis mais constantes da fantasia diante da chama, o sonhador vive em um passado que não é mais unicamente seu, no passado dos primeiros fogos do mundo. (1989b, p. 11. Grifos do autor) Nesse sentido, o sonhador inflamado conjuga o que vê ao já visto, ou seja, conhece perfeitamente a associação entre imaginação e memória (1989b, p. 19). Nesse sentido, através da palavra e da memória, enquanto forças mediadoras e potências capazes de interligar os fatos, as pessoas e suas ações e as coisas do mundo, os poetas, muitas vezes, se sentem fragilizados ao lutar com as palavras na tentativa de expressá-las de forma fecunda e essencial, tal como os versos do poema de Helena Kolody76, intitulado “Não era isso”, em que o eu-lírico sabe de sua incapacidade de expressar a essência da linguagem, ao dizer, Não. Não era isso. O que eu queria dizer era tão alto e tão longe que nem consegui soletrar suas palavras-estrelas. (KOLODY, PM, 1986, p. 56) Os versos sugerem que por mais que o eu “cante as palavras da canção”, sempre falta algo que poderia ser dito, pois a não-completude e a insatisfação fazem parte da vida humana. Mas quem é o poeta? – esse “legislador desconhecido do mundo” – no dizer de Percey B. Shelley. A poeta Adélia Maria Woellner, com seu poema intitulado “Poeta” aponta para a resposta: Poema inteiro é o Universo. Poeta? É o clandestino da poesia, que se contenta com pequenas viagens. (WOELLNER, 1997, p. 75) Assim, é no “uni-verso” da linguagem que o poeta consegue se afirmar e registrar seu “estar no mundo” e sua maneira de ser e de ver as coisas. O texto de 76 É possível observar um diálogo na obra de Adélia Maria Woellner com a de Helena Kolody (19122004). Kolody - filha de imigrantes ucranianos, nascida em Cruz Machado (Paraná) - tem uma obra significativa no panorama da Literatura brasileira (publicou doze obras, várias antologias e obras reunidas). 133 Woellner apresenta um fazer poético em que aparece de forma nítida o limite entre o sujeito e seu objeto de criação: o poema. Nota-se, nos versos, a expressão suave das palavras que rompem do branco da página, transformando-se em “flor de poema”. Nesse sentido, António Ramos Rosa observa que, por meio da linguagem, o poeta preserva o ser, pois o que ele realmente sente não é, de maneira alguma, um conhecimento prévio, o passado, o já realizado, mas um mundo que, por meio da ação, “o poeta exerce sobre a linguagem e, reciprocamente, da linguagem sobre o poeta, se constitui, revelando a potencialidade infinita, um novo modo de ser aberto ao futuro” (ROSA, 1980, p. 9). Na criação literária as poetas Cesar, Woellner e Vilela (re)inventam mundos e dão sentidos à vida através das palavras. Nesse sentido, a palavra-memória é o fator imprescindível que movimenta as aspirações e sentimentos do sujeito poético, pois no momento da recordação o eu rememora, com profundidade, os acontecimentos e experiências anteriormente vivenciados. A palavra é uma força que impulsiona os artistas da palavra a atingirem sonhos, objetivos e realizações. Os textos de Ana Cristina Cesar, Adélia Maria Woellner e Arriete Vilela, lapidados no cinzel da memória, instauram um procedimento poético em que a palavra poética – enquanto magia e encanto – tem o poder de despertar no leitor uma atenção voltada para as coisas mais simples, sensíveis, pois a linguagem é sinal de vida e permanência. 134 Referências: BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (Ensino Superior). GONZALES, Javier. El cuerpo y la letra: la cosmología poética de Octavio Paz. México – Madrid – Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1990. MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Trad. Edgard de Assis Carvalho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo. Siciliano, 1993. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982 (Coleção Logos). ROSA, António Ramos. O conceito de criação na poesia moderna. COLÓQUIO/LETRAS, Lisboa, n. 56, julho, 1980. 135 (RE)CONTRUÇÃO ÉTNICA N’AS MULHERES DE TIJUCOPAPO Alexsandra Maria Ferreira da Silva77 RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar a representação do feminino em As Mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto. O romance, escrito em 1982, aponta para o questionamento de uma ideologia hegemônica nas duas identidades sociais: a de gênero e a étnico-racial. Considerando-se a coexistência de múltiplas identidades - gênero e étnica, a identidade da narradora-protagonista, Rísia, se constrói/ destrói/ reconstrói nos processos vivos do acontecer das relações familiar e social. PALAVRAS-CHAVES: Gênero, feminismo, etnia. O romance As Mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, escrito em 1982, aponta para o questionamento de uma ideologia hegemônica nas duas identidades sociais: a de gênero e a étnica. A análise do romance abre espaço para a discussão da mulher que, a despeito de sua posição marginalizada em uma organização social assentada na hierarquização de lugares sociais e na desigualdade entre os gêneros masculino e feminino, é capaz de introduzir cunhas no poder hegemônico. Rísia, narradora-protagonista, na busca por uma identidade da mulher sujeito de sua história, desorganiza a ordem hegemônica de gênero e de etnia. Com despeito a estas duas categorias, é interessante notar que a protagonista engendrou estratégias de escape ao ordenamento social instituído. Os estudos de gênero, de um modo geral, sob o impacto das conceituações sobre a fragmentação do sujeito, abriram-se para a reflexão sobre outros fatores constitutivos da identidade, como etnia, conforme irei discutir nos parágrafo seguintes. A protagonista põe-se a caminho na busca de sua identidade. Este sujeito carregado, fundamentalmente, de dois estigmas: ( de gênero e de etnia) busca lugar no interior de si e de sua coletividade, num vagar incessante, para combater este sentimento decepcionante de descoberta do mundo (FELINTO, 1992, p.76), sentimento, agora consciente, do homem contemporâneo, como esclarece Hall: O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável está se tornando fragmentado; composto não de uma, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. (HALL, 2003, p.12). 77 Alexsandra Maria Ferreira da Silva é mestre em Teoria da Literatura. Atualmente desenvolve o projeto de doutorado na ficção literária anglo-americana e brasileira contemporânea de autoria feminina, enfocando, principalmente a reconstrução da identidade do feminino. É membro do grupo de pesquisa Vozes Femininas do departamento de Literária e Literaturas, programa de pósgraduação em Teoria Literária da Universidade de Brasília. 136 A narradora-protagonista, à procura de sua identidade, busca resgatar sua origem étnica a partir do exercício de reflexão desses pólos: Pobres mulheres como mamãe, que eram dadas numa noite de luar, por minha avó, uma negra pesada, e que depois seriam mulheres sem mãe nem irmãos, desgarradas, mulheres tão sem nada, mulheres tão de nada. (p.34). Mulheres negras, colocadas à margem da sociedade. Nesse sentido, a narradora delineia a etnia das personagens ao longo do texto com um acento lingüístico que, a princípio, pode passar despercebido. Rísia recupera, eventualmente, questões importantes da sua trajetória. A questão étnica é uma das causas do abalo identitário sofrido pela protagonista. E não há um interesse em esconder sua origem étnica. Pelo contrário, ela, nos termos de Bourdieu, reivindica o estigma. Portanto, este é um problema a ser resolvido e requer, por isso, uma discussão sobre etnia. Para expor tal complexidade de marcação étnica, apoio-me, para início de discussão, na reflexão de Stuart Hall sobre os conceitos de etnia e raça. Em primeiro lugar, é necessário ressaltar aqui que há posições divergentes nas Ciências Sociais quanto ao uso do termo “raça”. Aqueles que se negam a utilizálo, o fazem apoiando-se no fato de que biologicamente não existem raças na espécie humana, bem como no argumento de que esta categoria encontra-se carregada de conteúdo ideológico discriminatório. Stuart Hall, em Da diáspora: identidade e mediações culturais, compartilha tal recusa, e analisa a questão britânica como um breve exemplo de um argumento mais amplo. O autor afirma que tem-se feito um esforço para que a questão da “raça” seja reconhecida com seriedade na teoria política em geral, no pensamento jornalístico e acadêmico. O silêncio a esse respeito, segundo Hall, está sendo rompido à medida que esses termos se impõem sobre a construção pública. Sua crescente visibilidade constitui, inevitavelmente, um processo difícil e pesado, enfatiza o autor. Nas palavras de Hall, conceitualmente, a categoria “raça” não é científica. As diferenças atribuíveis à “raça” numa mesma população são tão grandes quanto aquelas encontradas entre populações racialmente definidas. “Raça”, segundo ele, é uma construção política e social. Para o autor, a “etnicidade”, por outro lado, gera 137 um discurso em que a diferença se funda sobre características culturais e religiosas. Nesses termos, ela freqüentemente se contrapõe a raça. A reflexão de Stuart Hall a respeito do termo remete à idéia de que a categoria social “raça” se refere a uma classificação fundada nas representações sobre a dinâmica das forças sociais em permanente tensão. É uma elaboração social forjada na relação entre grupos que se auto-representam a partir do pertencimento a ‘raças’ diferentes. Assim, o processo de construção social das ‘raças’ supõe a definição a partir da relação de reciprocidade/alteridade entre os distintos grupos étnicos existentes. O conceito de etnia, para o autor, implica a idéia de identificação no interior do mesmo grupo de pessoas em relação à atitude de compartilhar elementos culturais comuns. Comparada à raça, a etnia apresenta, pensando na discussão de Hall, uma articulação mais tênue à problemática da presença do pluralismo e diversidade. Diz respeito, portanto, à alteridade e às identidades heterogêneas e em desacordo ou dissidência com os valores compartilhados por outros grupos. Estas colocações de Hall são relevantes na medida em que penso tentar desfiar os fios da teia da identidade do feminino/etnia de um personagem claramente marcado, também, pela sua origem étnica. Concordo que a etnia também marca a construção da identidade. Por intermédio das interpretações das lembranças, portanto, desvelam-se alguns destes registros e aponta-se como circulam, pois a ideologia nos coloca naturalmente colados à construção das crenças sobre a identidade que, por sua vez, está associada ao amadurecimento das imagens do mundo individual e socialmente aceitas como verdadeiras. Esses mitos são crenças que temos a respeito de nós mesmos que marcam a nossa vida como destino, sina e verdades absolutas que recebemos como heranças de família e que fixam o sujeito em uma determinada posição. A seguir, aprofundarei a discussão abordando as reflexões de diferentes autores. Para Elisabeth Mercadante (1997), a identidade étnica é construída contrastivamente. A etnia pode ser entendida como um classificador que opera o contraste entre o “eu” e o “outro”. Como afirma a autora, a etnia diz respeito à separação e ordenamento de uma população numa série de categorias definidas em termos de “nós” e “eles” (p.15). Contraste que marca a construção de uma 138 identidade individual e de grupo e que surge por oposição, pelo estigma que um determinado grupo social recebe historicamente. No pensamento de Mercadante, ela não se afirma isoladamente. Já para Erick Erikesen (1993, p.12), a etnicidade, que considera um conceito bem mais amplo que o de raça, é um elemento definidor de identidades sociais, entendidas como uma forma de vínculo de parentesco metafórico. Aqui, fica explícita a noção de etnicidade definida como pertencimento a um grupo, com o qual se tem afinidades e semelhanças, em contraposição a outros grupos distintos com os quais se mantém relação. No que se refere ao estudo das relações étnicas e do racismo, à literatura sobre a situação do negro no Brasil, à diáspora e ao escravismo, bem como ao debate conceitual acerca de “raça”, etnicidade e classe, há hoje um acúmulo nada desprezível de produção acadêmica, o que indica um amadurecimento intelectual e político neste campo. Contudo, a clivagem de gênero é quase ausente do universo de preocupação daqueles que se dedicam a esta área político-intelectual, salvo algumas exceções - geralmente representadas por mulheres negras-feministas. O inverso também é verdadeiro: pesquisadores nas áreas de classe ou etnia costumam desconsiderar o dado do gênero. Sustenta-se que a argumentação teórico-ideológica do racismo deva ser essencialmente histórica, mas não-autônoma, nem primeira, como destaca Etienne Balibar (1988 p.28). O autor diz que ela deve se fazer acompanhar de formações discursivas com contornos de etnia e classe e, acrescente-se o que nele constitui um hiato, a clivagem de gênero. O debate intelectual referente ao problema das relações étnicas pode ser traduzido pela polarização em duas vertentes, embora com diferenças de ângulo de análise no interior da cada uma delas. Uma reúne as posições defensoras das desigualdades étnicas como resultantes da distribuição econômica existente na sociedade e sua corolária assimetria no acesso à educação. Essa perspectiva é edificada sobre o pressuposto da prevalência da classe sobre a etnia, propugnando que uma vez obtendo patamares mais elevados de educação e renda, os negros teriam mobilidade social ascendente, não enfrentando barreiras ou discriminações, nos termos do que defende Donald Pierson: (...) a cor tem menos valor do que os outros indícios de classe. Estes sobrepujam a ascendência racial na determinação final do status. Sem 139 dúvida, a cor é um percalço. Mas tende sempre a ser negligenciada e mesmo esquecida, se o indivíduo em questão possuir outras características que identificam as classes ‘superiores’, tais como (...) instrução, riqueza, encanto pessoal, pose, ‘boas maneiras’ e, especialmente para as mulheres, beleza. (PIERSON, 1942, apud IANNI, 1988 a., p.128). Os que defendem esta posição argumentam que com o crescimento econômico advindo do capitalismo moderno, automaticamente se asseguraria a eqüidade social; logo, a igualdade étnica (e de gênero). O paradigma da modernização, obviamente, serviu de inspiração a este ponto de vista, conforme se pode observar na citação abaixo extraída de Peggy Lovell (1995), onde se sugere que a partir do aprimoramento do modelo de desenvolvimento brasileiro: “O grande contraste nas condições sociais e econômicas. Entre os estratos mais baixos e a classe alta predominantemente branca desapareceria (LOVELL 1995, apud WAGLEY, 1969, p. 60).” Neste ângulo de análise encontra-se subjacente a suposição de que a população negra está distribuída na base da pirâmide de renda, em virtude de se encontrar em situação diferente, em relação aos brancos, no momento da abolição da escravatura. Em outras palavras, é depositada no legado escravista a origem do lugar adjudicado que os negros e mestiços ocupam no presente. Como define Peggy Lovell (1995), esta vertente associa as desigualdades étnicas aos vestígios do passado e suas conseqüentes diferenças no capital humano: desigualdades de educação e renda (p. 43-44). Acredito tratar-se de posição acrítica e ahistórica, que nega a existência dos conflitos étnicos: conflitos por poder, os brancos desenvolvendo estratégias, baseadas no racismo, pela manutenção do status quo, e os negros se contrapondo a elas. Esta posição se ancora na suposta cordialidade do brasileiro, bem como no mito da democracia racial e na apologia da mestiçagem, como signo da tolerância e harmonia no convívio entre as etnias. Esta é a concepção desenvolvida pelas elites políticas acerca dos seus países, onde se acredita (e se faz acreditar) que existe uma harmonia entre os cidadãos oriundos de todo o contínuo de cor, e ausência de preconceito e discriminação étnicos. Um elemento na construção dessa posição é, como aponta Heloísa Buarque de Hollanda, a reelaboração idílica do passado escravo, para escamotear a prevalência de uma sociedade altamente hierárquica e pigmentocrática. (1992 p.53) 140 A outra vertente, nas ciências sociais no Brasil, não ignorando o pretérito histórico escravocrata, centra a análise da problemática étnica nos processos sociais de transformação das marcas fenotípicas em emblemas de desigualdade. Estes processos constantemente reiteram hierarquizações sociais e formas de seleção e controle social nas sociedades contemporâneas. Seus representantes defendem que os indivíduos tomados individual ou coletivamente como pertencentes a grupos de brancos, negros ou mestiços, se defrontam com diferentes estruturas de oportunidades sociais. Em decorrência de uma situação de extrema desvantagem competitiva, sem transformações substantivas desde a abolição, a população negra apresenta menor grau de mobilidade social vertical, constituindo a imensa massa da base da hierarquia social. Sobre isto, Matilde Ribeiro, ao pesquisar as relações raciais nas pesquisas e processos sociais, revela as condições de subumanidade vividas pela população negra: É flagrante a enorme concentração de negros nas faixas de menor renda da população brasileira. Segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), publicada em 2002, os negros representavam, em 1999, 45% da população brasileira. Entre os 53 milhões de pobres, os negros correspondem a 64% do total e a 69% da população de indigentes. Da mesma forma, é majoritariamente negra a massa de desempregados e subempregados em todo o país. Constata-se que as mulheres negras são mais freqüentemente submetidas a ocupações precárias, seguidas das mulheres brancas e dos homens negros, como, por exemplo, no serviço doméstico, que é a maior área profissional feminina do país, ocupando aproximadamente 4,6 milhões de mulheres em um total de 5 milhões de trabalhadores em 2000, sendo 71% dessa mão- de-obra composta por mulheres negras. (RIBEIRO, 2004, p.90). Para Carlos Hasenbalg, o potencial explicativo da escravidão como causa das desigualdades entre brancos, negros e mestiços decresce com o tempo. Hoje, para ele, esta pode ser considerada uma “causa residual” (1992 p.57). Já em Florestan Fernandes (1978; 1989), a escravidão tem maior estatura teórica e política do ângulo das causas das desigualdades étnicas. Entretanto, qualquer que seja o ponto de vista, é certo que a composição étnica da população brasileira deixa descoberta uma ferida aberta, produzida no passado colonial e ainda não cicatrizada. Em Carlos Hasenbalg, a forma como os antagonismos étnicos, longe de serem superados com a industrialização e a ampliação capitalista, se atualizam reafirmando a discriminação e o preconceito como barreira à ascensão social dos negros e mestiços. De outro lado, o autor avalia a tese da crescente perda de legitimidade da idéia de democracia étnica. 141 Considerando-se a constituição de grupos sociais a partir dos cortes de classe, de gênero e etnia, os negros constituem o grupamento que apresenta o menor grau de mobilidade social, em virtude de serem definidos através do nascimento e, principalmente, pela cor da pele, marca que se metamorfoseia em estigma. Este estigma, como assinala Ianni (1996, p.19), institui racismos, etnicismos, xenofobias. Neste sentido, é possível perceber a dor dura e fechada que aprofunda a solidão de Rísia, levada pelo seu naufrágio existencialista. Experiência intransferível, a dor (principalmente a do amor negado) se revela como algo visceral ao ser: coisa que parecia impossível de a vida agüentar – uma descarga elétrica, paralisa, choca, é mais próxima da morte do que da vida. (p.123). O que fazer com tanta dor? Onde encontrar a trajetória da rejeição? Como preencher as fendas da infância vilipendiada, acuada pelos espaços da agressão e da violência? Às vezes eu me olho no espelho e me digo que venho de índios e negros, gente escura, e me sinto como uma árvore, me sinto raiz, mandioca saindo da terra. Depois me lembro que não sou nada. Que sou uma pessoa com ódio, quase Severina Podre, lunática, enluarada, aluada, em estado de porre sem nunca ter bebido. (p.35) Assim, neste espaço agonizante, ela inicia seu processo de reflexão: é preciso lançar-se à procura da origem de seu drama existencial porque aí também reside a origem de sua identidade, perdida ou duramente desdobrada. Ir atrás de seu começo, mesmo chorando de morte e medo, chorando lágrimas de sal enquanto o mar de seu relato estronda dentro de si. Ronaldo Costa Fernandes, em O narrador do romance, diz que: O narrador em primeira pessoa é como uma película sensível onde o mundo visível vai marcar suas impressões. Diria que Rísia é como uma chaga aberta que a vida foi cavando. Vida que ejacula sangue. Como se fosse o estilhaçamento de um presente em rotação perpétua à busca de um discurso que busca desesperadamente a constituição de si, através de suas dores, este narrador esfacelado se desconstitui e se constrói em suas feridas: Minhas mãos são feitas de carne que dois pregos podem atravessar furando buracos a caminho da madeira da cruz. (p.62). Bíblico relato. Mas principalmente um relato de quem viveu em situação de exclusão. E sentiu as dores sociais do tripé capitalismo-racismo-sexismo e caminha pela ponte onde os esmoleres (conforme expressão utilizada no romance) margeiam 142 a sua estrada e onde ela se encontra e se identifica. É justo? Interroga-se a narradora, empreendendo um diálogo com o leitor, com um questionamento críticosocial. É justo que algumas pessoas sejam mais felizes que outras? Não é justo, responderíamos nós, leitores, a esta narradora tão digna que se corta inteira, que se consome inteira em prol de um coletivo que se perdeu. Onde todos os justos se encontram porque, como diz Walter Benjamim narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo. (p.74). Ficar ou não ficar consigo mesma, questão que inunda a narrativa de Rísia. Este esforço de captar a sua essência é fruto, segundo Adorno, da estranheza das relações humanas na modernidade e que desemboca nessa tentativa de deciframento interno do homem. Este momento anti-realista, como ele nomeia o chamado romance metafísico, é produzido por esta sociedade em que os homens estão separados uns dos outros e de si mesmos. (Adorno, 1980) O romance de tempo metafísico fundamenta-se na linguagem como expressão da humanidade do homem no tempo. Observa-se que a narrativa revela a mutilação do mundo na esfera do ‘eu’ do homem contemporâneo. Assim, a palavra, na ficção metafísica, é um eterno questionar-se. É o homem indo ao encontro de si mesmo. O desencantamento do mundo refletir-se-á nessa nova estética. Na ficção de Marilene Felinto, esta estética se manifesta através do depoimento comprometido, emocionado e dolorido de Rísia. No seu texto, lugar desmedido, o seu eu partido se dilacera em corte. Fio de navalha, a sua narrativa atravessa o discurso visceral da escrita do corpo alquebrado e ferido: não do corpo erotizado feminino e sim do corpo que, às vezes, quer se entregar gratuitamente, sem culpas, para romper o silêncio, a solidão, a morte e tentar refazer a relação primordial: aquela sem descontinuidade entre o “eu” e o “outro”. A narradora tenta transcender suas culpas: a culpa pelo exercício da sexualidade, por ter nascido de um tal exercício, por querer matar o pai, por ter tanto ódio dentro de si. Rísia consegue isso através da relação com um outro, que é transgressor, o guerrilheiro Guevara/Lampião. Deve-se considerar, no entanto, que toda transgressão carrega alguma culpa. Mas este corpo que carrega o mundo em seus ombros não se envergonha diante da dor. Tenta carregá-la heroicamente como Hércules num tom épico que singulariza a narrativa. O tom intimista se conjuga ao tom épico delineando um narrador dilacerado, mas heróico, prestes a entrar numa guerra, transformando as 143 suas feridas em arma social para combater os opressores e os culpados de sua vida miserável e de suas dores. Esta voz épica, carregada de tom social, dialoga constantemente com a voz dolorida em um embate que incendeia nossa protagonista nutrindo-a de uma força impulsionadora que a leva para um caminho desconhecido, mas seu. O lugar do motim. Na procura de sua identidade, Rísia busca respostas para se afirmar enquanto sujeito da sua história. Para isto, é necessário olhar para si. Mas este olhar para si, é encontrar-se (a si) com suas mulheres – mãe, avó, tia, colega de escola, amiga, vizinhas. Encontrar-se (a si) no lugar do motim significa, nesse momento da narrativa, transformar-se em Maria Bonita: Que ainda ontem eu...ainda ontem eu me deitara com um homem chamado Lampião. Ou em destemida guerreira amazona que pretende invadir a Avenida Paulista em busca das luzes que brilham lá para dependurá-las nos postes apagados nas ruas de infância de seus irmãos, de Nema, de Severinos podres que vagueiam em sua infância viva. Em meio à voracidade de Rísia encontra-se a fronteira da origem e da finitude, da vida e da morte. Em meio também a esta voracidade, se encontra o deslimite do amor. A nossa heroína que abre a cena do ilimitado e do desmedido, vem de uma família negra patriarcal, centrada na figura do pai. Este afirma a sua superioridade aos únicos que são subordinados a ele: esposa e filhos. À guisa de evitar equívocos no entendimento conceitual da categoria utilizada, vale deixar claro que o patriarcado está sendo entendido como o conjunto dinâmico e contraditório de relações em que prevalece o exercício de poder do sexo masculino sobre o feminino, com fins de submeter este a uma situação de dominação-exploração. Acredita-se que este sistema perpassa todos os modos de produção, sendo, portanto, milenar e universal, mas assumindo uma feição particular, na medida em que se funde com este ou aquele sistema: escravista, feudal, capitalista ou socialista. No caso da sociedade brasileira, o patriarcado se imbrica com o capitalismo e com o racismo, constituindo um único sistema de dominação-exploração. Assim, o passado e suas origens são resgatados numa longa travessia de dor e morte. Dor pelas lembranças da mãe, da tia, das vizinhas – mulheres vilipendiadas e sem consciência. Morte onde seu eu primeiro se encontrava sufocado - ela que já 144 sofrera demais em menina por ser negra, pobre, por não praticar a religião reconhecida como hegemônica, deseja embarcar, agora adulta, na conquista de estabelecer sua identidade. Dialogando com a teoria de Stuart Hall, do sujeito descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pósmoderno. (HALL, 2001), penso que Rísia, andarilha, peregrina, quer reencontrar a sua identidade nos três estigmas que a tornam um sujeito morre-não-morre. Este sujeito heterogêneo que a divide no interior de si mesma, através do caminho na estrada que a leva às suas origens, a mesma estrada que a faz vagar entre a vida e a morte, é o sujeito contemporâneo que morre de si para poder viver em suas inúmeras identidades numa dialética constante, praticando um canibalismo existencial, pré-requisito para a sobrevivência de uma sociedade esquizofrênica e terminal dos tempos atuais. Um dos estigmas que marca fortemente a personagem-protagonista é a sua etnia. A questão étnica é um dos elementos formadores de uma identidade fragmentária, ainda pensando na teoria de Hall. A etnia, como o gênero, é visível e, portanto, parte indelével, mas não única, da construção de identidades dos sujeitos. Sendo assim, encontramos no discurso de Marilene Felinto, através da voz de Rísia, a representação de uma outra busca, a de uma unidade da fragmentação exposta da identidade dessa protagonista. Para isto, farei uma breve exposição da teoria do sujeito fragmentado de Stuart Hall, de como o sujeito fragmentado está sendo construído. Na teoria de Hall, observamos que o sujeito pós-moderno pode resultar não em uma, mas em várias identidades. Para ele as culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre ‘a nação’, sentidos com os quais podemos nos ‘identificar’, constroem identidades que estão contidas nas estórias que são contadas à nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas (HALL, 2001, p.51). Contudo, deve-se considerar que ...as identidades nacionais foram uma vez centradas, coerentes e inteiras, mas que estão sendo agora deslocadas pelos processos de globalização. (HALL, 2001, p.50). A busca de uma identidade na ficção de Marilene Felinto parte justamente do aspecto da cultura nacional. Mas, nesse sentido, o que seria essa cultura nacional? 145 Para Hall, as identidades nacionais representam vínculos a lugares, eventos, símbolos, histórias particulares (HALL, 2001, p.76). O autor ainda considera o aspecto de que elas ...não são coisas com as quais nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação. (HALL, 2001, p.48). Em Felinto, essa cultura nacional é revelada pelas marcas de classe, etnia e gênero da narradora-protagonista. No que tange especificamente à questão da mulher negra em nossa cultura, vale considerar as palavras de Margareth Rago: As mulheres negras têm sido as principais vítimas das discriminações e violências que pesam sobre as mulheres, às vezes pelas próprias mulheres. A herança colonial escravista, a mistificação da sexualidade das negras mulatas no imaginário social, o mito da democracia racial brasileira, mascarando as violentas e dissimuladas formas de discriminação contra elas (...). Assim como as questões da prostituição, do tráfico internacional de mulheres, do turismo sexual e da exploração sexual da infância, que crescem com grande velocidade, demandam debates sociais e políticas públicas urgentes. (RAGO, 2004, p.40). Como bem aponta Rago, a mulher negra habita o extremo mais frágil do espectro social. Isso significa que elas têm que negociar seu senso de identidade a partir de dados diversos. Segundo Stuart Hall, quem se movimenta no palco contemporâneo é o sujeito provisório, senhor de identidades móveis constituídas continuamente em respostas à múltiplas interpelações culturais que nos rodeiam. Identidades diversas sinalizando para diferentes alvos. Identidades intercambiantes prontas para emergir à medida que os sistemas exigirem. Este sujeito provisório vai encontrar ressonância perfeita na mulher negra, oriunda de uma classe desfavorecida economicamente que, para sobreviver às diferenças e ao lugar (a cultura nacional, especificamente, a brasileira cuja política sociocultural é sustentada pela diferença) desprivilegiado em que está – que não é o seu – , procura encontrar outras histórias, outras ficções em que o seu eu narrado seja mais aceito. Analogicamente, é isto que acontece com Rísia: precisa contatar sua outra identidade. Ela precisa reencontrar-se com a sua cultura, sua origem, também, étnica: minha avó era tão negra que arrastava (p.20); eu tinha cabelo duro (p.72). Isso é necessário para estabelecer um diálogo que favoreça um projeto que ela acredita que se possa ainda ser. Este sujeito, que nos círculos familiar e social não consegue ser e que vive à margem de um discurso que não consegue comunicar plenamente agora eu já não gaguejo mais, agora eu emudeço de vez ou falo em língua estrangeira (FELINTO, p.40) vai se emaranhar no sertão do seu eu e vai aprofundando grandes indagações existenciais e metafísicas. Por isso segue por um 146 caminho de ... babaçus, mocambos e sol árido (FELINTO, p.32), rumo ao agreste onde espera encontrar as mulheres de Tijucopapo, que a ajudem a encontrar seu lugar que fora negado. Dessa forma, na própria análise de uma identidade sobre a outra, quando uma consciência cai sobre si, neste movimento dialógico das identidades, a personagem parece que consegue refletir sobre o seu próprio existir, indo de encontro às referências das mulheres de sua família, do seu meio social, marcadas pelas categorias do patriarcado, racismo e capitalismo – faces de um mesmo modo de produzir e reproduzir a vida. Assim, Marilene Felinto explora o jogo de emoções resultante do confronto que a personagem Rísia realiza no diálogo das suas identidades. A identidade pessoal de Rísia é uma montagem humana que se desagrega na sua cor, um dos elementos formadores de uma identidade fragmentária. Referências: Benjamim, Walter. A modernidade In: Benjamim, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. 1993. Eriksen, Thomas H. Etnicity & nacionalism: anthropological perspectives. Pluto Press, Felinto, Marilene. As mulheres de tijucopapo. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3a ed. São Paulo: Ática, Ensaios 34, vol. 1 e 2, 1978. Fernandes, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1989. (Col. Polêmicas do nosso tempo; vol.33). 1996. Fernandes, Ronaldo Costa. O narrador do romance. Rio de Janeiro: Sete Letras, Hall, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. 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A maternidade em George Eliot Cristina Maria Teixeira Stevens78 RESUMO O objetivo do presente trabalho é desenvolver uma breve análise da representação da maternidade nos romances da escritora inglesa George Eliot. Considerados precursores da sociologia, seus romances analisam aspectos fundamentais da sociedade vitoriana. Além disto, a escritora – que optou por não ser mãe, problematiza as representações tradicionais da maternidade; expõe as complexidades e contradições desta experiência, e propõe novas formas de parentalidade em sua obra, onde a função materna não é exclusivamente exercida pela mulher. PALAVRAS-CHAVE: feminismo, maternidade, literatura inglesa A profissão médica sempre esteve consciente da verdade nas palavras de St. Agostinho de que nascemos inter faeces et urinam. Esta verdade anatômica, combinada com a visão religiosa da mulher no parto como ritualmente suja, explica parcialmente porque os Vitorianos encaravam o parto com desconfiança. . Por outro lado, o status da maternidade – presidido pela imagem da Madona e seu filho Jesus - é puro e límpido. . Esses dois comentários . um que evidencia o aspecto desagradável do nascimento e o outro que glorifica a maternidade, reflete o comentário de Tertuliano sobre a dualidade da mulher - templum aedificatum super cloacam, um templo construído sobre uma fossa. John Hawkins Miller, in Death and the Mother from Dickens to Freud (Carol 79 Denver ) Considerada um dos elementos mais fundamentais da estrutura social, a maternidade sempre foi definida - desde tempos remotos e em vários campos e práticas disciplinares - pelos homens, sejam eles religiosos, médicos, antropólogos, sociólogos, filósofos, juristas, artistas, ou escritores. Samuel Johnson reflete a ideologia de sua época, quando, em 1763 formula o seguinte comentário sobre este assunto: “A natureza deu à mulher tanto poder, que a lei sabiamente deu a elas muito pouco”(apud KIPP, 2003: 1). Como décadas de pesquisas desenvolvidas, sobretudo por feministas, vêm demonstrando, a ideologia vitoriana foi dominada pela imagem burguesa da mulher como “o anjo do lar”, mãe assexuada e altruísta. Seu poder, exercido apenas no domínio da família, era apenas um poder de ordem moral, o de supervisionar as tarefas domésticas, e acompanhar o desenvolvimento espiritual e intelectual de seus filhos. Assim, a mulher=mãe ideal estaria sempre disponível - para os outros: família, esposo, filhos, obras de caridade, etc. Ao pai era reservado o poder ilimitado, não apenas sobre a família, mas em todos os domínios da esfera pública de uma Inglaterra imperial que se expandia rápida e vigorosamente nos campos político, 78 Doutora em Literatura Inglesa (Universidade de São Paulo,1987), Pós doutorado no Center for Interdisciplinary Gender Studies da Univesity of Leeds ((Inglaterra, 2003). Professora de Literatura Inglesa (curso de Letras e Letras/Tradução) e de Teoria e Crítica Literária Feminista (Programa de Pós Graduação em Literatura) da UnB. Publicações (livros, periódicos nacionais e internacionais) e orientação (mestrado e doutorado) na área de estudos feministas e estudos interculturais. 79 Neste trabalho, as traduções dos textos publicados em inglês são de minha autoria 148 econômico, científico, sócio-cultural. Em seu livro The Mothers of England: Their Influence and Responsibility (1844), Sara Ellis (considerada a 'Benjamin Spock' leiga de sua época), também não está sozinha entre as mulheres que não apenas internalizam os dogmas impostos pela tradição patriarcal, mas tornam-se ventríloquos dessas verdades inquestionáveis: “não há como escapar dos deveres de mãe; assim, se em algum momento na vida de uma mulher, ela precisa pensar com seriedade, é precisamente quando ela se torna mãe” (apud MCKNIGHT,1997:5) A pesquisadora feminista Carol Dyhouse comenta que o filósofo inglês Herbert Spencer chegou a sugerir que a dependência da mulher poderia ser usada como um indicador do progresso social (DYHOUSE, 1978:176); o pai=provedor daria assim evidência de seu vigor capitalista através de sua capacidade de sustentar todos os membros de sua família. Como lembra a pesquisadora inglesa Tony Bowers, surge no século XVIII a figura da esposa em tempo integral e da mãe como elemento essencial na estrutura da família nuclear; ela era um elemento invisível e supostamente não-produtivo - em oposição ao trabalho assalariado do homem no capitalismo emergente, obviamente um conceito limitado do trabalho produtivo que a sociedade patriarcal consolidou e que dura até os dias de hoje, embora felizmente em menor grau. Bowers também comenta sobre os esforços (alguns dos exemplos já citados acima), para criar uma versão monolítica da excelência maternal, para o que tornouse necessária a proliferação de literatura didática que visava atingir a classe média ou àqueles que aspiravam chegar a esse nível. A maternidade era então definida como um conjunto supostamente universal de comportamentos e sentimentos: ternura envolvente e ilimitada, amamentação longa, ausência de desejo sexual, movimentação física restrita ao 'santuário' doméstico, rejeição ao trabalho dito "produtivo" (ie, assalariado), supervisão constante e educação das crianças. A educação da mulher servia apenas para que ela pudesse servir melhor à família e aos filhos. Sobre as limitações dessa construção utópica, Aminatta Forna observa de forma bem humorada em seu livro Mãe de todos os mitos: como a sociedade modela e reprime as mães (1999): “o menino Jesus nunca foi pintado chorando . Sua mãe nunca tem uma aparência irritada ou cansada. . Ninguém jamais pintou Maria nos afazeres prosaicos da mãe. . Nossa Senhora e o menino Jesus estão congelados na eternidade de um momento relativamente raro da mãe com seu bebê” (p. 18). A imagem da rainha Vitória, como mulher devotada aos nove filhos e ao esposo, contribuiu de forma decisiva para a consolidação da imagem da mãe como um ser sem existência independente de seus deveres, que se auto-anulava no 149 desempenho sublime de sua função materna. Entretanto, esta imagem ideal exaustivamente propagada contrasta com a realidade sobre a qual ela escreve em cartas para sua filha Vicky, a quem confessa: “Odeio a idéia de dar à luz”: Sem dúvida, é extremamente difícil e aterrorizante o que nós mulheres temos que enfrentar, e os homens deviam ter adoração por nós e inquestionavelmente fazer de tudo para compensar o que, afinal, somente eles são a causa! Tenho que confessar que esta é uma disposição inadequada, mas temos que suportá-la com paciência e sentir que não podemos evitá-la e portanto temos que esquecê-la, e quanto mais mantivermos nossos sentimentos puros e modestos, tanto mais fácil será superar isto depois (MCKNIGHT,1997: 14). Em seu livro Unstable bodies. Victorian representations of sexuality and maternity (1995), a pesquisadora inglesa Jill Matus cita os conselhos d o médico W.R.Greg, o qual enfatiza a necessidade da mulher manter-se ignorante sobre a 'ciência' dos afetos sexuais, que para ele deveria ser do conhecimento apenas do homem (p. 14). Matus também lembra que William Acton, ao fazer uma clara distinção entre homem e mulher, coloca-a mais próxima do mundo animal; para ele, a natureza e a cultura estão harmonicamente organizadas de forma a provocar na mulher a dose certa de desejo e repugnância de forma a garantir a continuidade da espécie e, ao mesmo tempo, evitar que os homens se destruam em indulgências perigosas provocadas pela insaciabilidade feminina (p. 47). Essas construções médico-científicas sobre a maternidade reforçam as concepções culturais sobre a mulher, como um ser 'desenhado' especialmente para a reprodução, para o que já vinha também 'equipada' com um instinto maternal sobre o qual Darwin escreveu: A mulher parece diferir do homem em sua disposição mental,principalmente no que se refere à sua maior ternura e menor egoísmo. . Devido ao instinto maternal, a mulher desenvolve essas qualidades com relação aos seus filhos em um grau elevado; consequentemente, é provável que ela naturalmente estenda essas qualidades em direção a outras criaturas (AGONITO, 1979:260) Entretanto, esse 'capital simbólico' sobre a maternidade na Inglaterra Vitoriana não foi construído de forma simples, sem contestações; era difícil, para não dizer impossível, negar os desvios gritantes dessa imagem idealizada: as pressões socioeconômicas e os efeitos das cruéis privações pelas quais passava a classe operária eram óbvios demais para serem negligenciados. Vários pesquisadores dedicaram-se ao estudo da classe operária, e as consequências das condições de trabalho nas fábricas sobre o desenvolvimento biológico, psicológico e moral da população operária feminina, por exemplo; entretanto, esses efeitos, analisados a partir da perspectiva masculina e burguesa desses estudos (que se pretendiam objetivos e universais), eram definidos como degenerativos e contaminadores. As 150 mães solteiras eram caracterizadas como moralmente depravadas, e a gravidez nunca era vista como efeito da sua situação vulnerável de mulher em meio a uma população operária majoritariamente masculina, mas sim como evidência de seu comportamento sexual condenável80. Essas circunstâncias potencialmente revolucionárias exigiam medidas urgentes que só o zelo didático e a preocupação missionária da classe dominante poderia efetivar – assim pensavam eles. Não se imaginava a possibilidade de o agente das mudanças surgir da base oprimida, muito menos da base feminina ou das mulheres em geral, vistas como seres celestiais, belos e frágeis. Em seu livro The Condition of the Working Class in England, Engels descreve detalhadamente as condições degradantes da experiência de industrialização sobre o proletariado, especialmente sobre a mulher operária. Forçadas a trabalhar entre 14 a 16 horas diárias para ganhar um terço - ou no máximo a metade - do salário do trabalhador, elas eram preferidas pelos empregadores, por submeterem-se mais facilmente às cruéis condições de trabalho e de salário; isto as colocava em condições de conflito diante de seus esposos, parceiros e companheiros homens, que às vezes perdiam seus empregos em função desta concorrência feminina. Engels descreve algumas consequências que as péssimas condições de trabalho nas fábricas provocam nas mulheres, tais como o efeito retardado da constituição do corpo feminino, a desorganização da estrutura familiar, aumento de acidentes com as crianças (queda, queimaduras, afogamentos), muitas das quais recebiam doses diárias de narcótico para mantê-las calmas em casa, enquanto as mães trabalhavam nas fábricas. Promiscuidade e prostituição eram provocadas, sobretudo, pela condição vulnerável da mulher diante do patrão, do seu superior imediato, ou até mesmo dos seus companheiros de trabalho, e não pela corrupção moral dessas mulheres. É importante ressaltar, contudo, que se observa na mesma época desses intensos debates e doutrinações patriarcais sobre a mulher,o crescimento de vozes discordantes que surgem de atividades e grupos que já poderiam ser caracterizados como feministas;81 esses grupos reivindicavam para as mulheres outros papéis na sociedade, para os quais lutavam por melhor educação, cidadania e independência econômica. A pesquisadora inglesa Carol Dyhouse comenta sobre os argumentos pseudocientíficos que circulavam na época em que as feministas lutavam pelo 80 Para maiores detalhes sobre o assunto, v. HELLERSTEIN, E. et alli. Victorian women A palavra feminismo foi utilizada pela primeira vez na França em 1837; em 1851, o Oxford English Dictionary a define como “qualidade das fêmeas [female]”, seguido da informação sintomática: “raro” (BRENNAN, 89. p.43) 81 151 acesso à educação superior: “Os conselhos dos médicos e ginecologistas nos anos 1880, os quais alertavam que os riscos de uma séria perturbação de constituição nas mulheres que recebiam educação universitária, eram desproporcionalmente altos” (1978:179). Entretanto, a luta feminista daquela época raramente contemplava a combinação casamento/emprego; este último, era visto apenas como alternativa ao primeiro, objetivo mais desejável para a maioria. A equação ‘eterno feminino/eterno maternal’ também foi problematizada por Elizabeth Badinter em seu livro Um Amor Conquistado:o mito do amor materno (1980). Badinter não questiona o amor materno, mas sim o instinto materno, ou seja, a função nutrícia e maternante como algo natural e espontâneo. Com dados de sua pesquisa sobre o comportamento das mães na França entre os séculos XVI e XVIII principalmente, Badinter desconstrói a imagem da mãe como naturalmente devotada. Ela utiliza sólida documentação para mostrar como o vocabulário religioso foi usado intensamente – o que poderia ser interpretado como evidencia da resistência da mulher em aceitar essa ideologia – para convencer que haveria uma recompensa sublime para os sofrimentos da maternidade, caracterizados como um tributo pago pelas mulheres para ganhar o céu: “Se a criança não fosse um Deus, se a relação com ela não fosse um culto, ela não viveria. É um ser tão frágil que jamais teria sido criado se não tivesse tido nessa mãe a maravilhosa idólatra que o diviniza, que torna doce e desejável para si imolar-se por ele (1985: 270. grifos da autora). Embora o estudo de Badinter focalize a maternidade na França, a situação na Inglaterra não era diferente. Na Inglaterra pre-industrial, a estrutura familiar ampliada e economicamente ativa dos pequenos vilarejos da sociedade agrária comunal e o apoio mútuo dos membros daquelas pequenas comunidades, davam uma conotação bastante diferente do que conhecemos hoje como estrutura familiar e domínios público e privado. Com a Revolução Industrial, as esposas e mães perderam sua posição de produtoras que ocupavam na economia de trocas e pequeno comércio da Inglaterra rural. Surge então a mãe 'moderna' da família nuclear/burguesa: a 'rainha do lar', frágil, dependente, dedicada exclusivamente ao dever sagrado da maternidade – uma radical mudança de paradigma, que precisava de um intenso e complexo processo de naturalização desses novos papéis. O que foi feito com grande sucesso. Entretanto, com a rápida expansão da mão de obra feminina na classe trabalhadora, a realidade da mãe operária era bem diversa da visão utópica da mariologia Vitoriana: a mulher operária não tinha tempo, nem interesse, em cultivar tradições que poucos benefícios traziam para ela e sua família; com uma carga diária 152 de trabalho média de 16 horas, tinha-se pouco tempo e motivação para demonstrações de afeto. O aborto era praticado intensamente e muitos crianças precisavam ser deixadas em condições cruéis nas chamadas 'fazendas de bebê', com um alarmante índice de mortalidade infantil (HELLERSTEIN, 1981: 234-38). Essa bem sucedida doutrinação patriarcal produziu efeitos complexos e contraditórios que não pretendemos detalhar neste breve espaço. A força ideológica dessas imagens também provocava ansiedades em muitas mulheres que, na realidade, percebiam-se incapazes de satisfazer a este ideal; não apenas a imprensa, mas também a ficção dessa época, apresentavam muitas imagens de mães solteiras que matavam seus filhos, além de mães da classe média que ignoravam sua missão 'mariana' em busca de diversões e ocupações fúteis, como Becky Sharp em Vanity Fair, entre tantas outras mães condenáveis que a ficção de autoria masculina criou. O romance Moll Flanders (1722) difere um pouco das construções patriarcais que ignoram a complexa experiência da maternidade, pois coloca esta temática em interface com questões de classe. Embora um romance de autoria masculina, essa voz autoral esconde-se na forma de um romance autobiográfico da personagem Moll Flanders; ela nasce em uma prisão, filha de uma presidiária cuja pena é o exílio para uma das colônias inglesas; por esta razão, Moll é abandonada ao nascer. Ventríloquo das concepções do autor sobre o certo e o errado, a picaresca narradora/personagem analisa sua vida, a qual ela descreve como “não apenas escandalosa, mas uma vida cujo curso normal tendeu para a rápida destruição do corpo e da alma” (DEFOE, 1963:14). O autor nos explica no prefácio do romance que seu objetivo em trazer à tona a vida criminosa de Moll é “alertar as pessoas honestas, mostrando os métodos utilizados para roubar e prejudicar pessoas inocentes, e como consequência, alertá-los para evitar este tipo de gente” (p.10). A vida de Moll envolve uma gama de comportamentos deploráveis, tais como, abandono dos vários filhos que teve, adultério, prostituição, bigamia e incesto (embora inconsciente, este último foi resultado do seu comportamento pervertido). Entretanto, ela busca justificativa para seus ‘pecados’ no sistema sócio-econômico excludente e cruel no qual o pobre – sobretudo a mulher pobre – é uma vítima impotente; longe de assumir um papel passivo, Moll manipula o sistema em seu próprio benefício. Ao final de sua vida, mulher casada e respeitada e em situação financeiramente confortável, resolve escrever sobre sua vida “em sincera penitência pela vida depravada que levei” (p.335). Com este romance, Defoe condena o comportamento transgressor de sua personagem, ao mesmo tempo em que alerta 153 para a crueldade de um sistema sócio-econômico injusto que produz esses comportamentos. Se olharmos para a literatura inglesa do século XIX, observamos uma preocupante construção da imagem da mãe. Como sabemos, a autoria dos romances daquela época era masculina na sua avassaladora maioria; este preocupante desequilíbrio já foi alterado consideravelmente na contemporaneidade, mas ainda se mantém. Coube então ao homem principalmente, exercer a confortável liberdade ficcional para escrever sobre a forma e função da maternidade. Em Dickens, por exemplo, as mães, quando presentes, são inexpressivas ou egoístas, incapazes de amar (A Sra. Gradgrind e a esposa de Stephen em Hard Times, respectivamente), ou já estão mortas quando o romance se inicia. (Oliver Twist, David Copperfield, entre outros); Sobre este último aspecto, a feminista Carol Denver nos alerta para um dado intrigante: “ Escrever sobre a vida, no período Vitoriano, é escrever uma história de perda da mãe. Na ficção e biografia, autobiografia e poesia, a lógica que organiza as experiências de vida não se iniciam com o momento do nascimento, mas com o momento desta perda originária”(1988:1). A galeria de mães mortas nos romances Moll Flanders, Wuthering Heights, Jane Eyre, The Professor, Emma, Persuasion, North and South, Mary Barton, poderia ser expandida com facilidade, caso fosse nosso interesse fazer este triste mapeamento;as explicações também são interessantes, mas também fugiriam do objetivo proposto para o presente trabalho82.Vale apenas observar que a centralidade estrutural da perda da mãe nesses romances também pode ser interpretada como mais uma forma de idealização da mãe, o qual só é atingido com sua ausência. Além de ser apenas objeto desta narrativa quase sempre patriarcal, a mãe e sua subjetividade também foram construídas por escritoras que não vivenciaram a experiência da maternidade, como Jane Austen, as irmãs Brontë e George Eliot. Assim como a mãe de Maggie Tulliver (The Mill on the Floss – Eliot), as mães nos romances de Jane Austen são quase sempre frágeis, impotentes, descartáveis (Sense and Sensibility, Mansfield Park, Northanger Abbey, por exemplo) - algumas delas, até ridículas, como a Sra.Bennet (Pride and Prejudice). As heroínas dos romances das irmãs Bronte em geral nunca têm mães - com exceção de Agnes Grey, onde a doce figura da mãe é praticamente invisível. Em Shirley, a presença da 82 Ver STEVENS, C.M.T .“O corpo da mãe na literatura: uma ausência presente” in STEVENS & SWAIN (ed.). A construção dos corpos: perspectivas feministas. Para as explicações fornecidas pela psicanálise sobre este tema, ver STEVENS, C.M.T.(ed.) Maternidade e feminismo: diálogos interdisciplinares. Florianópolis: Editora Mulheres, 2007. 154 Sra. Pryor é também periférica, embora desafie a representação idealizada deste papel, já que ela havia inicialmente abandonado sua filha Caroline. Os exemplos poderiam ser mais largamente expandidos. A literatura dessa época às vezes é caracterizada como propagandística e didática; esperava-se que o escritor fornecesse diversão e instrução para o leitor uma espécie de 'estética moral', orientando a sociedade nesse complexo processo de transformação que ela vivia. Que objetivos teriam então ess@s escritor@s em construir essas imagens da mãe? Ruth (1848), o segundo romance de Gaskell, fala de uma mulher (também órfã) que pecou: mãe solteira, é redimida com sua morte, após uma vida humilde e resignada, inteiramente devotada ao filho e ao próximo. Na introdução ao romance, Angus Easson cita as palavras da autora, temerosa do desafio que esta temática iria representar: “[o romance] fez o leitor falar e pensar um pouco sobre um assunto que é muito doloroso e requer coragem para não esconder a cabeça como um avestruz e tentar . esquecer que o mal existe” (VIII). Segundo Easson, muitos leitores enfurecidos queimaram o livro, pois Gaskell havia desafiado valores consolidados na burguesia vitoriana: a autora não deixa clara a culpa de Ruth sobre sua experiência inaceitavelmente transgressora; a inocência moral e sexual dessa jovem e órfã operária sensibiliza a sociedade da cidadezinha onde ela vivia reclusa e dedicada ao próximo, e ela é perdoada antes de sua morte. Entretanto, para a moral vitoriana, a ilegitimidade de um filho é prova da fraqueza e da frivolidade feminina, nunca dos ardilosos sedutores. Benson é o pároco que, com a ajuda de sua irmã e a empregada da família, acolhe Ruth e seu filho; por ser personagem masculino, há maior autoridade no ensinamento sábio contido em suas palavras, que a sociedade da época rejeitava, apesar de sua fé cristã: ”É o desejo de Deus que as mulheres que pecaram estejam ao lado daqueles que têm o coração partido e precisam de conforto, e não sejam abandonadas como se estivessem perdidas para sempre”(288). A morte constitui então uma estratégia narrativa confortável para evitar o enfrentamento e questionamento dos valores patriarcais que regulavam os comportamentos da época. A literatura contemporânea de autoria feminina tem produzido representações não tradicionais da figura da mãe e do comportamento materno, além de problematizar este “imperativo da reprodução”. Percebemos que, quando a mulher torna-se agente desta representação, essas imagens patriarcais são radicalmente 155 transformadas.Nossa pesquisa de alguns anos nesta área83 evidencia uma variedade de ideologias heterogêneas e contraditórias sobre a mãe e a maternidade; nessas representações conflitantes que lutam por legitimação, narrativas contemporâneas problematizam essas imagens tradicionais e apresentam novas formas de maternidade / parentalidade. Entretanto, ainda que as imagens brevemente mencionadas neste trabalho sejam as imagens dominantes da maternidade na Inglaterra vitoriana, não nos deteremos na análise dessas brilhantes escritoras que citamos brevemente acima – quase todas sem filhos84. Nosso objetivo é analisar a temática da maternidade nos romances de George Eliot, que nos fornece imagens diversificadas e complexas da figura materna em seus romances. Adam Bede, apesar do título ter o nome do personagem masculino central, apresenta uma narrativa de sedução, gravidez e infanticídio, envolvendo a intrigante Hetty. Apesar de sua vital importância para a sobrevivência das espécies, o parto é uma experiência que tem estado ausente na literatura (POSTON, 1978:20). A reação da crítica ao tema explorado por Eliot neste romance, indica o quanto esta “literatura de gravidez” era considerada inaceitável; talvez a descrição dos horrores de uma guerra fossem mais relevantes para o critico que formulou o seguinte comentário: O autor de Adam Bede aderiu a uma prática muito curiosa que agora está se tornando comum entre os romancistas, e é uma prática que consideramos mais indesejável: a cronologia e discussão dos vários estágios que precedem o nascimento de uma criança. Parece que estamos ameaçados com uma literatura da gravidez. Os sentimentos de Hetty e suas mudanças no seu corpo são indicadas com uma sequência pontual que torna o relato de seus infortúnios parecer uma anotação grosseira de um parteiro [sic] com uma mulher. Isto é intolerável. Vamos copiar os velhos mestres da arte, os quais, se nos dão um bebê, nos dão de uma vez.Um autor decente e um público decente vão entender os sintomas premonitórios. (MATUS,1995:1) 83 v. STEVENS,C.M.T.(ed.) Maternidade e feminismo: diálogos interdisciplinares. Florianópolis: Editora Mulheres, 2007. e STEVENS, C.M.T. “Maternidade e literatura: desconstruíndo mitos”. In SWAIN, T.N. & MUNIZ, D.G. Mulheres em ação. Práticas discursivas, práticas políticas. 84 Talvez esta seja uma condição que tenha facilitado o desenvolvimento da genialidade dessas mulheres. Como sabemos, são poucas as escritoras na Inglaterra desta época que, como Elizabeth Gaskell, conseguiram conciliar o exercício deste duplo papel de esposa, mãe e escritora; entretanto, ela nos fala com indisfarçável rancor sobre as dificuldades de conciliar esses três papéis: “O principal trabalho na vida de uma mulher raramente é escolhido por ela; ela não pode abandonar as responsabilidades domésticas . para dedicar-se ao mais esplêndido talento que alguém possa ter recebido. . Ela não pode esconder este dom em um guardanapo: ele foi dado para o uso e ajuda a outras pessoas. Então, com um espírito humilde e cheio de fé ela deve trabalhar duro para fazer tudo que não é impossível” (OLSEN, 1978:226) 156 Denver comenta ironicamente sobre esse silêncio ficcional acerca da mãe e a preservação de um ideal abstrato sobre a maternidade: “É mais perigoso dar à luz no mundo ficcional do que em qualquer região, sob quaisquer condições, em qualquer classe social da Inglaterra Vitoriana (1998:11). Em termos gerais, as mães (mortas literal e/ou simbolicamente) da ficção Vitoriana não são feias, velhas, raivosas, más, ou vítimas de violência doméstica ou outras formas de violência; elas são geralmente bonitas, da classe média, resignadas, submissas, com qualidades que se assemelham ao ideal mariano cultivado pela sociedade patriarcal. Eliot rejeitava a imagem do corpo feminino como um corpo que apenas reproduz, nada devendo impedir essa função divina, sem a qual não teríamos a continuidade da raça humana; para ela, essas regulamentações cobram um preço alto para as mulheres que se recusam a seguir esses papéis de gênero tradicionalmente prescritos. Escrevendo sobre duas importantes feministas, Margareth Fuller e Mary Wollstonecraft, Eliot comenta sobre “a estupidez de definições absolutas sobre a natureza da mulher e demarcações absolutas sobre a 'missão' da mulher”, citando Fuller com aprovação: ““A natureza” diz ela [Fuller], “parece se deliciar em desenvolver combinações variadas, como se quisesse mostrar que ela não será limitada por nenhuma regra; e precisamos admitir as mesmas variedades que a natureza admite””(ELIOT, 1992:183) Como tentaremos mostrar em nossa análise, Eliot evidenciava em sua obra profundo interesse na maneira pela qual essas formulações doutrinárias sobre o desejo da mulher pela reprodução determinaram seus papéis sociais, limitando sua auto-realização apenas ao casamento e maternidade. Considerados pelos críticos como precursores da sociologia, seus romances já alertam para a distinção das categorias sexo/gênero, posteriormente teorizada pelos feminismos. Em seu livro Suffering mothers in mid-Victorian novels, Natalie McKnight explica que Eliot confessou que “se alegrava profundamente [de nunca haver] trazido uma criança para este mundo”(MCKNIGHT,1997:117); por outro lado, ela considerava seus livros“meus filhos espirituais”(apud GILBERT & GUBAR:533). Apesar disto, seu companheiro George H. Lewes e os filhos dele reconheciam a natureza maternal da escritora, a quem chamavam de “Mutter” e “Madonna”. Ainda segundo McKnight, a mãe de Eliot havia perdido gêmeos e jamais se recuperou do trauma; distanciou-se da filha que então tinha apenas dois anos, enviando-a para a escola quando Eliot era ainda uma criancinha indefesa. Educada em um internato, Eliot recebia apenas a visita do pai ; sua mãe faleceu quando Eliot tinha dezesseis anos. De acordo com as pesquisadoras feministas americanas Sandra Gilbert e 157 Susan Gubar, Mary Ann Evans85 sentia-se como a filha de um pai inflexível; também sentia que os irmãos, e não ela, eram os herdeiros da afeição e do patrimônio do pai (1979:447). Ao longo de sua vida, ela conviveu mais com figuras masculinas: além de seu pai e do irmão, seu editor ( John Chapman), seu amigo (Herbert Spencer), seu companheiro, George H. Lewes (com quem viveu por 24 anos) e, após a morte de Lewes, seu marido - este último, jovem bastante para ser seu filho, e com quem permaneceu casada por apenas 7 meses, até a morte dela. Gilbert and Gubar escrevem sobre a insegurança que, segundo suas pesquisas, fazia parte da estrutura emocional de Eliot - se levarmos a sério as palavras de seu companheiro: “Infelizmente, a tônica habitual de sua mente era falta de autoconfiança”. Ainda segundo a autoridade de outra voz masculina - Herbert Spencer, para quem ela parecia ter “double consciousness” (GILBERT & GUBAR, 1979:448). Sua assumida ligação com um homem casado provocou um longo período de ostracismo social, o que a deixou ignorada pelo pai e irmão; sobre isto, Eliot escreve com profunda tristeza: “O que farei sem meu pai. . Parece-me que uma parte de minha natureza moral desapareceu. Tive uma visão de mim mesma . em que me tornava sensual e demoníaca, pela ausência daquela influência purificadora e controladora”(GILBERT & GUBAR,1979: 467). Seus romances evidenciam a ambivalência de sua personalidade, “infectada86” pelas verdades patriarcais nas quais ela havia sido educada, e ao mesmo tempo reagindo criticamente a essas falsas construções de verdade, a partir de sua experiência de mulher. As observações acima parecem-me ser melhor analisadas se incluirmos a perspectiva da escritora canadense Margareth Atwood, a qual comenta sobre “o outro sensível e tímido da corajosa George Eliot” (ATWOOD, 2002:79). Essa afirmação nos remete imediatamente para a evidência inegável de força e coragem dos temas escolhidos para seus romances, e o talento admirável de quem é considerada uma das melhores escritoras da literatura inglesa por vários críticos; sua voz viril, 'hermafrodita', não se encaixa facilmente entre os papéis de gênero rigidamente definidos na sociedade de sua época; neste sentido, é bastante curioso observar que, ao voltarmos a atenção para as mães que povoam os romances de Eliot, percebemos que, na maioria das vezes, elas fogem ao ‘script’ a elas reservado pela ideologia da época. 85 O verdadeiro nome de George Eliot No ensaio “Infection in the sentence: the woman writer and the anxiety of autorship”, Gilbert & Gubar adaptam o conceito de “ansiedade de influência” de Harold Bloom para analisar a psicologia da criação literária feminina. Elas nos alertam para a tradição patriarcal que habita o texto de autoria feminina, reforçando a necessidade de revisitar essa tradição com um olhar crítico, perspectivado pela problemática do gênero. 86 158 Em Silas Marner (1861), por exemplo, a ‘função materna’ é exercida por um homem; o solitário Marner encontra e cuida de uma criança abandonada após a morte de sua mãe pobre, solteira e alcoólatra - dificilmente identificada com imagens idealizadas da mãe daquela época. Marner torna-se um “iniciado nos mistérios” (p.180) da maternação e esta se torna uma experiência de afeto e crescimento para ambos: “à medida que a vida daquela criança se desenvolvia, o coração [soul] de Marner, durante muito tempo entorpecido em uma prisão fria e estreita, também se expandia” (p.185). Após vários anos, o verdadeiro e aristocrático pai de Eppie tenta assumir a paternidade que ele covardemente escondera de todos; entretanto, a jovem opta pelos laços fortes que ela havia desenvolvido com Marner, desistindo inclusive da ascensão social que a opção pelos laços de sangue trariam para ela. Bem antes de Freud, Eliot separa nitidamente as funções naturais de procriação das imposições culturais relativas aos cuidados com as crianças, desestabilizando a dogmática distinção de papéis materno e paterno que posteriormente iria ser ainda mais avassaladoramente reforçada pela psicanálise. Romola (1862) é um romance histórico que se passa na cidade de Florença, no final do século XV. Diferente da maioria dos romances de Eliot, que recebem seu título do personagem masculino central, a órfã Romola tem seu nome como título do romance; esta visibilidade parece denunciar ironicamente as limitações paralisantes impostas ao sexo feminino. Sem mãe, Romola recebe uma educação clássica de seu sábio pai, para quem a educação sofisticada que ele dá para sua filha “não é incompativel, mesmo com sua inteligência feminina [para você] . que tem a nobreza de alma de um homem”(53). Entretanto, apesar de sua formação laica, Romola assemelha-se à figura da madona cristã, pela sua inesgotável capacidade de sacrificar seus interesses em benefício do velho pai e do marido traidor – na verdade, Romola é referida por este nome em vários momentos no romance. Após a morte do pai, corajosamente abandona o cruel esposo. Sem filhos, “mamma Romola”(565) exerce uma forma vicária de maternidade, dedicando sua vida à ingênua Tessa (amante de seu falecido esposo) e seus dois filhos. Felix Holt (1866) é o romance de Eliot que mais se aproximou do que chamamos de romance industrial, com representação e análise acurada das mudanças econômicas e sócio-culturais provocadas pelo processo (revolucionário) de industrialização nas pequenas e tradicionais comunidades rurais da Inglaterra. Pelo seu interesse no indivíduo como um ser social, a autora mistura os acontecimentos do mundo público e privado, uma prática que faz lembrar um dos momentos epistemológicos mais importantes do feminismo: a convicção de que o 159 pessoal é político. Mais uma vez com Eliot, o operário radical Felix Holt empresta seu nome ao título de um romance povoado por personagens femininas complexas e surpreendentes. O romance explora os acontecimentos perturbadores ligados às reformas trabalhistas na Inglaterra dos anos 1830. Felix Holt envolve-se profundamente com as rebeliões dos trabalhadores, agindo na esfera pública dos movimentos reivindicatórios do Chartismo; paralelamente, o romance desenvolve uma outra temática, não menos complexa, quando Esther vivencia sua 'revolução interior': uma linda jovem, que segundo @ narrador/a onisciente, “não se inclina para a imagem de santa nem de anjo”(p.333). Esther vive em circunstâncias humildes; entretanto, sua origem nobre - e sua propriedade – são surpreendentemente restauradas no final. Mais uma órfã de mãe que povoa a ficção Vitoriana, Esther é criada pelo pároco Rufus Lyon; como Silas Marner, o papel da mãe é desnaturalizado, pois é Lyon que exerce a função materna neste romance. A Sra. Holt, para quem Felix retorna depois de longa residência em Glasgow, é a imagem da mãe convencional, em contraste marcante com Mrs. Transome, a matriarca que administra as propriedades da família em virtude da senilidade do esposo e morte de seu irresponsável primogênito, evento que lhe traz uma felicidade que choca o leitor: O desejo do qual ela estava faminta desde o tempo em que era uma jovem mãe ainda desabrochando, foi finalmente realizado – finalmente, quando seus cabelos já estavam cinza, e seu rosto parecia amargo, inquieto e sem prazer, como sua vida. A notícia da morte de seu filho imbecil. Agora, Harold era o herdeiro da família (p.100). Harold era seu filho ilegítimo, filho amado de sua “paixão de juventude”, por quem “ela havia pecado”(p.101). Este terrível segredo não é o único que a Sra. Transome guarda consigo: Esther, e não Harold, é a herdeira legítima das imensas propriedades da família que esta mulher viril e conservadora administra; seus extensos monólogos sobre sua condição de mulher às vezes ecoam as palavras de Lady Macbeth: “unsex me”. Sem precisarmos des-sexualizar as mulheres, é necessário, entretanto, que mudem os papéis de gênero para elas prescritos. Esther aproxima-se ainda mais de seu pai adotivo, ao saber por este da identidade de seu pai biológico – o que a tornaria herdeira das extensas propriedades da família Transome. Dividida entre os valores da aristocracia (à qual ela subitamente tem acesso pela revelação de sua verdadeira identidade) e os ideais trabalhistas e de dignidade, personificados por Felix Holt e Rufus Lyon, Esther rejeita a proposta de casamento de Harold Transome e a herança à qual tinha direito. Sua opção corajosa pelo mundo e sentimentos não comercializáveis de seu pai adotivo e 160 de seu futuro esposo, a torna, a meu ver, a personagem mais importante do romance, assim como a Sra. Transome. Apesar do título dado ao personagem masculino, Daniel Deronda (1876) também nos fornece uma variada galeria de personagens femininas, em torno das quais se desenvolvem o que me parece ser a temática central do romance: o complexo processo de crescimento interior da Gwendolen Harleth, em meio às injustas limitações impostas ao sexo feminino. Forçada a casar com o rico Grancourt como única alternativa à pobreza após a morte do pai, Gwendolen, viúva e sem filhos ao final, dedica parte de sua vida a ajudar os filhos ilegítimos que Grancourt tivera com Lydia Glasher – outra mulher corajosa que abandona o marido por amor, apesar de sua escolha infeliz ter sido o egoísta Grancourt. A angelical jovem judia Mirah Lapidoth foge corajosamente de outro pai tirano em busca de sua mãe, sem saber que ela já está morta; é recompensada pela sua bondade e pureza com o casamento com Daniel, o qual descobre sua identidade judia no final do romance. Este script aparentemente convencional tem ricas e complexas implicações que não objetivamos explorar neste trabalho. Daniel Deronda é comparado por alguns críticos com Moisés. Criado como um verdadeiro gentleman inglês pelo seu pai adotivo (Sir Hugo Mallinger), involuntariamente Daniel descobre sua identidade judia, processo que toma toda a narrativa deste longo e intricado romance. Sua mãe (Contessa Maria Alcharisi), filha de um rabino ilustre, havia aceitado casar com seu primo sem amor, pois ele a deixa exercer seu talento notável de atriz e cantora de ópera; com ele, tem o filho Daniel. Após a morte do esposo, Alcharisi entrega seu filho ao apaixonado Sir Hugo para adoção e segue sua carreira de sucesso, a qual abandona posteriormente quando a voz já não é mais a mesma; converte-se então ao cristianismo e casa-se com um nobre russo. Perto da morte, decide encontrar Daniel e confessar sua ancestralidade. Em um romance estruturado em livros com títulos sugestivos como “Revelação”,“Fruto e Semente”, é no livro intitulado “A Mãe e o Filho” que Alcharisi explica para Deronda, sem sentimentos de culpa, que não é um monstro pelo fato de ter escolhido sua carreira artística e não o papel de mãe. As palavras dirigidas ao filho com firmeza não são as que a mariologia ocidental normalmente espera de uma mãe: “Não sou tola de pensar que você me ama só porque sou sua mãe. . Não tinha muito afeto para lhe dar. . Não queria seu afeto. Sentia-me sufocada com isto. Queria viver a vida que sentia dentro de mim, e não ser limitada por outras vidas”(p.688) Caracterizada como Melusina pel@ narrador/a onisciente, Alcharisi conversa com o filho, a quem se dirige com um olhar de fascinação e admiração, mas não com 161 prazer e amor convencionalmente caracterizado como maternal - às vezes com distanciamento e até com um certo desprezo e sarcasmo, como quando responde sobre as razões de seu comportamento transgressor: Quando você for tão velho quanto eu, perceberá que não temos respostas simples sobre nossas motivações. . Não sou um monstro, mas não sinto exatamente o que as outras mulheres sentem – ou dizem que sentem, por temerem ser consideradas diferentes das outras. Você não é uma mulher. Você pode tentar – mas jamais conseguirá imaginar como é sentir a força de uma genialidade masculina dentro de você e ter que sofrer a escravidão de ser uma mulher (p.694) Personagem (talvez estrategicamente) secundária, Alcharisi é mais uma das personagens de Eliot que evidenciam um amor materno não instintivo, mas contingente. Sua motivação para o abandono do filho e da função maternal é radicalmente diferente do que estabelece o discurso religioso e científico da época e as práticas sócio-culturais consequentes; reflete, de uma certa forma, o pensamento de Eliot que já mencionamos brevemente neste trabalho. Sua subjetividade e suas ambições falam mais alto, e contrariam a conduta maternal dita universal - e necessária para o patriarcado, como reforçado exaustivamente, lembra-nos Badinter, citando a descrição da Larousse de 1971 sobre o instinto materno: “uma tendência primordial que cria em toda mulher normal um desejo de maternidade e que, uma vez satisfeito esse desejo, incita a mulher a zelar pela proteção física e moral dos filhos”(BADINTER, 1985:11. Grifo no original) Middlemarch (1871) é um brilhante estudo sociológico sobre a Inglaterra provinciana das primeiras décadas do século XIX. Laurence Lerner comentou com bastante propriedade sobre este romance: “praticamente todas as áreas que produzem discursos sérios são articuladas neste romance, mas não sentimos incongruência entre essa dimensão e a natureza ficcional da obra” (LERNER,1983:18). Caracterizada por Gilbert & Gubar como “épica doméstica” (GILBERT & GUBAR, 1979:531), a obra nos fornece uma acurada etnografia da vida provinciana na Inglaterra dos anos 1830s, numa orgânica tecitura de várias narrativas paralelas e uma rica galeria de personagens igualmente importantes que exploram aspectos econômicos, educacionais, políticos, além de questões de classe e gênero. Nessa complexa arquitetura narrativa construída em mais de 900 páginas, selecionamos apenas três personagens femininas para uma brevíssima análise em torno da temática escolhida para este trabalho. Rosamond é uma jovem bela, narcisista e superficial, que casa com Dr. Lydgate, motivada principalmente pela posição aristocrática deste jovem médico idealista. Com temperamentos bem diferentes, o casamento transforma-se em uma 162 infeliz e resignada união, sem filhos, já que Rosamond parece ter escolhido perder o filho quando, grávida, decide cavalgar perigosamente. Isto parece não ter afetado esta personagem, uma mulher fútil que continua suas atividades sociais medíocres sem nenhuma frustração. Em contraste com Rosamond, Celia Brooke é a jovem e bela esposa de Sr. James Chettam, feliz e realizada em suas funções de mãe e esposa, em perfeita harmonia com os valores patriarcais da Inglaterra Vitoriana. Entretanto, a personagem mais complexa do romance é uma outra mulher: Dorothea, uma jovem idealista, cheia de energia e amor ao próximo. Decepciona-se com seu esposo Casaubon logo após o casamento, ao perceber a superficialidade, inutilidade e egoísmo de sua vida intelectual e social. Após a morte do esposo, Dorothea renuncia à fortuna de Casaubon para casar com o primo dele, o jovem Ladislaw; talentoso e idealista, Ladislaw era um jovem sem posses, pois sua avó havia sido deserdada por ter desafiado a família por amor, casando-se com um músico polonês. Dorothea e seu esposo mudam-se para Londres, onde vivem felizes e modestamente. Como a alguns dos romances de Eliot, Middlemarch é ambíguo na construção de suas personagens femininas, no sentido de que pode ser visto como uma crítica às limitações impostas à mulher e ao mesmo tempo uma lamentável aceitação dos valores conservadores da época. Dorothea é associada com imagens de Madonna, algumas vezes de forma direta; chega a ser descrita pelo pintor Naumann como “mais perfeita jovem Madonna que ele já viu” (p. 847). Dorothea é também objeto da análise superficial e equivocada de seu marido, que caracteriza com superioridade complacente o “entusiasmo quixotesco”(p. 458) de sua esposa, a quem também define como “uma jovem e modesta mulher com habilidades meramente apreciativas e sem ambição, essas qualidades naturais do seu sexo” (p.12). Ao mesmo tempo, Dorothea é comparada à Santa Tereza de Ávila, uma energética e empreendedora figura da hagiografia cristã. Essas imagens contraditórias não são conciliadas no desenvolvimento dessa complexa personagem; aparentemente, ela parece ceder gradualmente à ideologia dominante da mulher altruísta, dedicando (ou gastando?) sua energia inteiramente ao lar e ao filho – um filho homem, cujo parto quase lhe custou a vida, fato que tem implicações simbólicas evidentes. Entretanto, Dorothea muitas vezes permanece impenetrável, até para @ narrador/a onisciente, que poucas vezes transforma esta complexa personagem em sujeito de sua própria narrativa; sentimos que um discurso em terceira pessoa é uma estratégia que objetiva mostrar ao leitor a impossibilidade de ter acesso direto ao que realmente sente essa personagem. 163 É curioso observar que este fato de importância considerável na vida de uma mulher – o nascimento de uma criança e os perigos do parto – e suas implicações simbólicas para a vida de Dorothea, chegam ao leitor de forma bastante distanciada, através de uma carta que ela escreve para sua irmã. Não temos a descrição da gravidez ou do parto, nem o relato direto desta experiência que por tanto tempo definiu a mulher; apenas o relato indireto desta carta que Celia transmite para seu esposo. No último capítulo, Dorothea está mais uma vez silenciosa, transformada em objeto das palavras do narrador e de outros personagens: “Muitos que a conheciam, lamentavam que uma criatura tão substantiva e rara tenha sido absorvida pela vida de outra pessoa, sendo conhecida apenas em alguns círculos como esposa e mãe” (p.894) Sentimos uma nostálgica e realista tristeza nas palavras d@ narrador/a ao final do livro, ao descrever a transformação do potencial criativo de Dorothea simplesmente em capacidade reprodutiva, maternal, enquanto que para o marido está reservada uma participação ativa nas realizações de uma época efervescente de reformas, nas quais este “ardoroso homem público” (p.894) se envolve: Não existe criatura cujo ser interior seja tão forte que não seja em grande parte determinado pelo mundo exterior. Uma nova Tereza raramente terá a oportunidade de reformar a vida de um convento, nem uma nova Antígona gastará sua piedade heróica para desafiar todos pelo enterro de um irmão: o meio no qual essas ações ardentes se materializaram desapareceu para sempre. Entretanto, nós seres insignificantes com nossas palavras e ações diárias estamos preparando as vidas de muitas Dorotheas, algumas das quais podem apresentar um sacrifício muito mais penoso do que este da Dorothea cuja história conhecemos (p.896) O romance parece aceitar esta separação entre as esferas privada e pública, entre as energias reprodutivas femininas e as realizações produtivas reservadas ao homem, que ainda hoje reforçam papéis de gênero diferentes para homens e mulheres. Seria este narrador onisciente o alterego da escritora, que não seguiu esta prescrição para mulher como um ser naturalmente, absolutamente, devotado ao seu 'sacerdócio'? Frustração? Decepção? Resignação apenas aparente? Não sabemos ao certo o que sente Dorothea, movida pelas forças de sua inteligência apaixonada e seus deveres de esposa que ama. Como bem sugere o título do romance - Middlemarch, ao final deste romance de mais de 900 páginas, a jornada de autoconhecimento, auto-realização de Dorothea parece estar ainda no meio do caminho. Adam Bede (1859) é o primeiro romance de Eliot; aborda o tema da maternidade ilegítima e infanticídio. Segundo a autora, este romance foi inspirado em uma história verdadeira (MATUS, 1995:168). O caso da jovem Mary Voce, executada 164 em 1802 pelo assassinato de seu filho, parece adequado à poética sociológica de Eliot, que transfere para o mundo ficcional as preocupações com estatísticas alarmantes de infanticídio nos anos de 1850, e as preocupações com o declínio do instinto maternal, como ilustram os jornais da época: “Nos ombros [de uma mãe] está a maior parte da culpa [da mortalidade infantil] (…) Matamos nossas crianças com nosso mau gerenciamento”(The British Mothers´Journal (June, 1858, in McKNIGHT, 1997:8). Um outro artigo, publicado no Saturday Review (em 1866) com o título “Sedução e Infanticídio”, que também aponta para causa desses horrores de forma assustadoramente misoginista, ao responsabilizar “a tão elogiada extensão da educação às mulheres . pois possibilitaram para elas a leitura de romances e inutilizou-as para as tarefas domésticas”(MATUS,1995:167). Arthur Leared, por sua vez, atribui toda a depravação ao fato de as mulheres trabalharem fora de casa (MATUS,1995:164); em sintonia com o pensamento de Herbert Spencer que citamos anteriormente, o médico inglês não acredita na necessidade que leva as mulheres a acrescentar às inúmeras tarefas domésticas, a dura jornada de trabalho desigualmente remunerado na fábrica. Os formadores de opinião não pensavam sob a perspectiva da mulher, obrigada a “conceber sem pecado”, arriscando a vida em gravidez frequente, partos dolorosos; assim, elas assimilavam, sem alternativas, conselhos inadequados que muitas vezes levavam a uma exacerbação do sentimento de culpa, por não sentirem, na sua dura realidade, esses impulsos ditos 'naturais', exaustivamente descritos/prescritos sobre a maternidade. No estudo histórico de Walter E. Houghton – Victorian Frame of Mind87 - o verbete 'mãe' aponta para outros verbetes: “ver também Família, Lar, Casamento, Pureza”(DENVER, 1998:10). Adam Bede foi classificado por Laurence Lerner como “um estudo sobre puro egoísmo” (1978: 273). O crítico não percebe a variedade de figuras maternas contraditórias que o romance nos apresenta. A corajosa representação da gravidez de Hetty, algo inédito na ficção inglesa, como já mencionamos, foi considerada ofensiva e seu comportamento, uma aberração; esta condenação confortável formulada pelo patriarcado burguês não condenou o comportamento imoral do capitão Arthur, o jovem e rico herdeiro da família Donnithorne, sedutor que engravida a jovem órfã e a abandona, embora com profundo remorso, juntando-se ao seu regimento. Não considerou a fragilidade de Hetty, jovem vítima seduzida que, apesar de grávida de Arthur, aceita a oferta de casamento do apaixonado Adam Bede, um 87 Trad. A mentalidade Vitoriana 165 bondoso e talentoso carpinteiro da pequena comunidade rural, onde a maior parte das ações do romance se desenvolvem. Hetty percebe a impossibilidade de esconder a “terrível realidade” de sua condição e foge em busca de Arthur, sem sucesso. Sem dinheiro e nenhuma forma de proteção, abandona seu filho logo ao nascer, o qual morre em virtude de sua exposição. Quando Hetty está sendo julgada por esse “crime horrendo”, o recurso narrativo usado por Eliot é bastante revelador do longo e cruel processo de silenciamento/desempoderamento sofrido pela mulher ao longo dos séculos, sobretudo das mulheres das camadas mais baixas da sociedade. Hetty recusa-se a falar e não se declara culpada ou inocente, quando solicitada; temos então a oportunidade de interpretações complexas e polifônicas, sobretudo se desenvolvermos uma leitura 'gendrada' desse silêncio: -”Mas ela não é tão culpada quanto eles dizem, é? Você não acredita que ela é, acredita? Ele não pode ter feito isto.” - “Talvez jamais teremos certeza sobre isto, Adam. . Nesses casos, nós formamos nosso julgamento com o que parece ser evidência forte; entretanto, por desconhecimento de um pequeno detalhe, nosso julgamento é errado. Mas suponha o pior: você não tem o direito de dizer que a culpa do crime dela está nele [Arthur, o sedutor], e que ele é que deveria ser punido. Não cabe a nós homens atribuir parcela de culpa moral e sua retribuição. Achamos impossível evitar erros até mesmo em simplesmente determinar quem cometeu um único ato criminoso; estabelecer até que ponto esta pessoa pode ser considerada responsável pelas consequências imprevisíveis de seu crime é um problema que nos faz tremer. É tão terrível pensar nos efeitos maléficos que estão escondidos em um único ato de indulgência egoísta, que certamente deveria despertar sentimentos menos presunçosos do que um desejo apressado de punir”(406) O narrador passa então a reconstituir os fatos de forma fragmentada, através apenas da narrativa das testemunhas. Quando Hetty finalmente confessa para a doce e maternal prima Dinah Morris (também órfã), sua narrativa dá ao leitor uma visão completamente diferente daquela construída no 'tribunal dos justos': não mais um “monstro”, Hetty nos faz perceber que a impotência da mulher é uma causa decisiva que foi negligenciada nos debates sobre o infanticídio e instinto maternal: Eu fiz isto, Dinah . Eu o enterrei na floresta . meu pequeno bebê . e ele chorou. . Mas pensei que ele não morreria – alguém poderia encontrá-lo. Não o matei . . Aconteceu porque eu sentia-me tão miserável, Dinah . Não sabia para onde ir . tentei me matar, mas não tive coragem. Tentei afogarme no lago, mas não consegui. . Tentei encontrá-lo [Arthur} para que ele tomasse conta de mim, mas ele havia desaparecido; então, não sabia o que fazer. . .Não sei como me sentia sobre o bebê. Parecia odiá-lo – era um peso para mim em volta do meu pescoço ” (p. 434/5) Em outras circunstâncias (que envolvem questões de gênero e classe), talvez Hetty tivesse administrado de outra forma sua condição de mãe solteira. É tentador imaginar a voz autoral implicada na voz narrativa, que às vezes parece convencionalmente moralizante, às vezes demonstra compaixão e revolta contra a opressão da mulher. O comentário de autora, que repetimos abaixo, nos parece 166 bastante revelador dos sentimentos que devem ter impulsionado sua brilhante produção ficcional: “se houvessem espíritos miseráveis que nós pudéssemos ajudar – então penso que deveríamos fazer uma pausa e sermos mais pacientes com essas mentes triviais”(apud GILBERT & GUBAR, 445) O romance tem inúmeras descrições que desaceleram esta trágica narrativa e exploram, de forma inovadora, a subjetividade de uma mãe considerada monstruosa, e as circunstâncias que a tornaram assim; embora às vezes percebemos na confissão de Hetty que há uma ligação natural entre mãe e filho, não há defesa inequívoca de que o amor materno é um sentimento nato, universal. O 'instinto' maternal precisa na verdade de responsabilidade conscientemente assumida, pois a maternidade não torna a mulher naturalmente mais humana, como nos lembra Badinter. O texto não abraça o ideal mariano tão confortável para o homem; ao contrário, mostra-nos que o componente biológico da maternidade, sem as condições adequadas que a sociedade patriarcal da Inglaterra Vitoriana não possibilita a uma grande parcela da população feminina, não garante a responsabilidade e sentimentos maternais adequados; afinal, como pode um amor expressar-se em circunstâncias catastróficas? Assim, infanticídio jamais deveria ser visto simplesmente como prova de indiferença e monstruosidade. Antes de meados do século XIX, muitos dos dilemas da condição humana não eram visibilisados na ficção, apesar de este discurso pretender-se mimético desde Aristóteles. Em sua 'poética sociológica', Eliot foi bastante inclusiva e acurada; seus romances exploram de maneira admirável, entre tantos outros aspectos relevantes da sociedade Vitoriana, a natureza das aspirações e desejos da mulher e as injustas limitações sócio-culturais que impedem a sua realização. Admiradora fiel desta escritora, percebi de repente que sua obra apresentava uma rica e complexa variedade de personagens-mãe e relações maternas, elaboradas por uma mulher que desafiadoramente optou por não ter filhos, além de suportar com coragem e dignidade uma espécie de alienação voluntária da sociedade que rejeitava sua relação com Lewes; Não são muitas as mulheres que, como Eliot, não se deixaram aprisionar pelas tradicionais categorias de gênero, como brevemente apresentamos neste trabalho. Talvez seu distanciamento desta experiência tenha possibilitado à autora analisar com mais objetividade as enormes distâncias entre a imagem idealizada e as complexidades e ambiguidades que envolvem esta complexa condição em situações concretas. Kaplan retoma a questão de Kristeva - “por que essa representação (do maternal patriarcal, cristão) não leva em conta o que a mulher poderia dizer ou 167 querer da maternidade?” (1992: 4), explicando que esta prgunta não tem resposta fácil, dada a sua complexidade. George Eliot dá apenas a sua, não a única possível; uma voz andrógina - ou uma voz feminina que recusa as definições tradicionais desta palavra. Uma voz construída por um narrador distanciado e onisciente, de quem sentimos uma espécie de ceticismo tolerante ao construir as vidas de tantas personagens que tentam reagir – muitas vezes sem sucesso - contra a internalização de uma tradição que ela reconhece ser limitadora para as mulheres. Caracterizada muitas vezes como conservadora, outras vezes como radical, ela é proteana: “Eliot permanece indecifrável porque ela pode ser decifrada infinitamente” (GILBERT & GUBAR, 526. grifo meu) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ATWOOD, M. Negociando com os mortos. Trad. Lia Wyler. 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É membro do grupo de pesquisa Vozes Femininas do departamento de Literária e Literaturas, programa de pós-graduação em Teoria Literária da Universidade de Brasília. Antonio Donizeti da Cruz RESGATE DE VOZES FEMININAS Antonio Donizeti da Cruz é professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Ministra aulas de Teoria da Literatura, na graduação em Letras, Campus de Marechal Cândido Rondon e de Lírica e Sociedade e, também, Literatura Comparada, no Programa de Pós-Graduação em Letras, área de concentração em Linguagem e Sociedade, da UNIOESTE, Campus de Cascavel. Com graduação em Letras Português Inglês pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Palmas (1985); Especialização em Literatura Brasileira e Lingüística, pela Universidade Federal do Paraná; Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), sob orientação do Prof. Dr. Antonio João Silvestre Mottin; Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com tese intitulada O universo imaginário e o fazer poético de Helena Kolody; sob orientação da Profª Drª Ana Maria Lisboa de Mello; e com Pós-doutoramento em Letras – Estudos da Literatura, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), sob orientação do Professor Dr. Gilberto Mendonça Teles, sobre a obra poética de Lília A. Pereira da Silva. É membro efetivo das seguintes associações: ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada); GT - Teoria do texto poético (ANPOLL); IASA – Associação Internacional de Estudos Americanos. Participa do Grupo de pesquisa LER: Literatura, Educação e Recepção - Núcleo LER -, sob coordenação da Profª Drª Hilda Orquídea Hartmann Lontra. Clarice Braatz Schmid Neukirchen OS RITUAIS SIMBÓLICOS NA LÍRICA Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Docente Colaboradora do curso de Letras da Unioeste, campus de Cascavel, e do curso de Letras da Unipar, Campus de Cascavel. Cristina Maria Teixeira Stevens A MULHER ESCRITA: A ESCRITA-MULHER? e “SOCIOLOGICAL POETICS” Doutora em Literatura Inglesa (Universidade de São Paulo,1987), Pós doutorado no Center for Interdisciplinary Gender Studies da Univesity of Leeds ((Inglaterra, 2003). Professora de Literatura Inglesa (curso de Letras e Letras/Tradução) e de Teoria e Crítica Literária Feminista (Programa de Pós Graduação em Literatura) da UnB. Publicações (livros, periódicos nacionais e internacionais) e orientação (mestrado e doutorado) na área de estudos feministas e estudos interculturais. 180 Eliane T. Amaral Campello A CRÍTICA LITERÁRIA DE SAIA JUSTA Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É professora colaboradora da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), atuando no Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado em História da Literatura., na área de estudos de gênero. Pertence ao grupo de pesquisa “Vozes femininas”. Publicou O Künstlerroman de autoria feminina: a poética da artista em Atwood, Tyler, Piñon e Valenzuela (2003) e, em co-autoria com Núbia Hanciau e Eloína Santos, organizou A voz da crítica canadense no feminino (2001), além de possuir diversos ensaios críticos publicados em revistas especializadas. Janaina Gomes Fontes EDUCAÇÃO DA MULHER: RUPTURA E TRADIÇÃO Mestre em literatura e doutoranda na mesma área pela Universidade de Brasília – UnB. Marcos de Jesus Oliveira DESEJO E HOMOEROTISMO Graduado em Letras pela Universidade de Brasília (2006). Mestre em Literatura pela Universidade de Brasília (2008). Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília, desenvolvendo pesquisa sobre os usos sociais da diferença sexual na contemporaneidade. Principais áreas de interesse: gênero/sexualidade em interface com a psicanálise e o pensamento social contemporâneo. Maria da Glória de Castro Azevedo LITERATURA LESBIANA CONTEMPORÊNEA Professora do curso de Letras na Universidade Federal do Tocantins/ UFT. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília/ UnB e Doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília/ UnB, com pesquisa sobre Cassandra Rios e a literatura de temática lesbiana brasileira. Publicou em 2008 os artigos “O interdito no ideal de nação: a lesbiana existe para a literatura brasileira?” Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea; “Literatura Lesbiana: o gênero demarca o lugar de exclusão”, no livro Representação de gênero e sexualidades, (Universidade Estadual da Paraíba). Em 2007: “O outro me transgride: deve a literatura sair do centro?”, Intercâmbio, - X Congresso Internacional de Humanidades Palavra e Cultura da América latina, Universidade de Brasília. Marly Jean de A. P. Vieira A REPRESENTAÇÃO DA MATERNIDADE Professora da Rede Pública de Ensino do Distrito Federal, com mestrado em Literatura Brasileira (UnB, 2003). Pesquisadora das áreas de estudos feministas e de gênero e literatura de minorias. Integrante do grupo de pesquisa Vozes Femininas Atualmente pesquisa o gênero narrativo conhecido como romance de formação (Bildungsroman). Wiliam Alves Biserra O CASTELO INTERIOR DE SANTA TERESA D´ÁVILA Mestre e doutorando em literatura pela Universidade de Brasília (UnB). É pesquisador bolsista do CNPQ e membro do grupo VOZES FEMININAS. Pesquisa e 181 publicações nas áreas de literaturas de expressão inglesa, questões de gênero, estudos de religião e estudos historiográficos: