fundamentos filosófico-jurídico-médicos da ortotanásia

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fundamentos filosófico-jurídico-médicos da ortotanásia
FUNDAMENTOS FILOSÓFICO-JURÍDICO-MÉDICOS DA ORTOTANÁSIA:
uma análise interdisciplinar
HILDELIZA LACERDA TINOCO BOECHAT CABRAL
CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ
JULHO – 2015
FUNDAMENTOS FILOSÓFICO-JURÍDICO-MÉDICOS DA ORTOTANÁSIA:
uma análise interdisciplinar
HILDELIZA LACERDA TINOCO BOECHAT CABRAL
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Cognição e Linguagem
do Centro de Ciências do Homem, da
Universidade Estadual do Norte Fluminense,
como parte das exigências para obtenção do
título de Mestre em Cognição e Linguagem.
Orientador: Professor Doutor
Henrique Medeiros de Souza
CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ
JULHO – 2015
Carlos
FUNDAMENTOS FILOSÓFICO-JURÍDICO-MÉDICOS DA ORTOTANÁSIA:
uma análise interdisciplinar
HILDELIZA LACERDA TINOCO BOECHAT CABRAL
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Cognição e Linguagem
do Centro de Ciências do Homem, da
Universidade Estadual do Norte Fluminense,
como parte das exigências para obtenção do
título de Mestre em Cognição e Linguagem.
APROVADA: ___/___/_____.
BANCA EXAMINADORA:
Profª Dra. Margareth Vetis Zaganelli (Direito – UFMG)
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
__________________________________________________________________
Profª Dra. Fernanda de Castro Manhães (Educação UAA)
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF
Profª. Dra. Rosalee Santos Crespo Istoe (FIOCRUZ - RJ)
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF
___________________________________________________________________
Profª. Dra. Shirlena Campos de Souza Amaral (Sociologia e Direito – UFF)
Universidade Estadual do Note Fluminense Darcy Ribeiro - UENF
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Henrique Medeiros de Souza (Comunicação – UFRJ)
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Orientador)
Dedico este trabalho ao meu Deus e Pai, aos meus
pais, meu marido e minhas filhas.
À minha mãe, Vasti, mulher que demonstra saber
que a oração é a chave do coração do Senhor. Na
flor de seus 81 anos, num ato de extrema fé, optou
pela cirurgia arriscada e consequente excesso
terapêutico, sacrificando-se para permanecer mais
tempo entre nós.
Ao meu pai, Norberto, homem de fé e coragem, que
aos 84 nos não se curvou ante o diagnóstico de
câncer, enfrentando com fé, firmeza e disciplina
todas as consequências dessa decisão da qual
resultou cura.
Ao meu marido, Artur, por todos os motivos! E ainda
às minhas filhas Vívian, Rachel e Liz por
constituírem meu sólido núcleo afetivo – minha base
emocional.
AGRADECIMENTOS
Ao Senhor Deus, criador e autor do plano de salvação da humanidade, que
mediante extraordinária adoção, nos fez Seus filhos, coerdeiros com Cristo Jesus,
nosso Senhor e Salvador. Sem o mover sobrenatural do Senhor, estou certa de que
nada do que foi feito se faria. A Ele, toda honra e glória!
Ao Dr. Carlos Henrique Medeiros de Souza, meu querido orientador, um
profissional visionário e empreendedor, que assumiu comigo o desafio de trazer ao
âmbito acadêmico um tema polêmico, pouco debatido, de escassa literatura, mas
prospectivo e tendente a se efetivar na medida em que a sociedade descobrir que
promover a morte digna é coroar de êxito o final da existência e dar à vida digna um
sentido novo quando a finitude chegar. A você, Professor, meu reconhecimento,
admiração e carinho.
Ao meu marido, Artur, pelo apoio, participação e incentivo aos meus projetos
de vida; sem sua colaboração e abnegação, este trabalho não seria concretizado.
Obrigada pelas bênçãos que alcanço através de sua vida, pela cumplicidade, pelo
afeto expressado no toque e pelo amor que vence as lutas e os desafios da rotina de
quase 29 anos de casamento.
Às minhas filhas Vívian, Rachel e Liz herança preciosa do Senhor, cada uma
com sua natureza peculiar que amo e admiro, mas qualidades que as assemelham e
as aproximam: fé, independência, coragem, determinação, personalidade forte e
foco. Minha admiração! Guilherme, meu genro, mais um filho que integra a família,
obrigada pelo bom relacionamento que desenvolvemos. Matheus, que vem
chegando, obrigada pelo afeto.
Aos meus pais, Vasti e Norberto, pessoas especiais a quem amo e admiro,
que me ensinaram desde tenra idade: que a fé remove montanhas; a oração vence
todos os obstáculos; silêncio nem sempre é omissão; disciplina é o segredo do êxito;
experiência conduz à tolerância. Somente a orientação dos meus lindos
octogenários poderia inculcar-me certos valores e vivenciar situações que sem a
sabedoria deles eu jamais experenciaria! Obrigada por existirem em minha vida,
pela alegria que sinto ao revê-los e por orarem incansavelmente por mim e meu lar!
Aos meus irmãos, Beto, Tiza, Ieda e Leila, por termos aprendido juntos a
construir pontes sobre os abismos, vencer lutas e adversidades, compatibilizar
diferenças sem perder a unidade e compartilhar muitas vitórias e alegrias que esta
grande família tem conquistado. Obrigada por suas orações, apoio e carinho! Vocês,
meus sobrinhos, cunhados e Gracinha são especiais.
À Ieda, irmã de sangue e aspirações acadêmicas! Meu reconhecimento de
que sem sua presença nesta jornada a caminhada seria mais árdua! Muito obrigada
por me ouvir, pelos conselhos e as experiências que trocamos. A você, meu afeto!
Ao Reverendo Eldon Coutinho e aos irmãos da III Igreja Presbiteriana em
Itaperuna, pelas orações e por fazerem parte de minha vida, tornando-a melhor e
mais solidária.
Aos Professores do Laboratório de Cognição e Linguagem da UENF, em
especial ao Dr Júlio Esteves, pelas reflexões compartilhadas; à Dra. Fernanda
Manhães, pela diligência e preciosas lições metodológicas ministradas a todo o
tempo; à Dra. Analice Martins, pelo entusiasmo e euforia – sim, euforia! – com que
conduz seus alunos a viagens por um mundo novo e fascinante aos que nele
ingressam por suas mãos! Orgulha-me constatar que existem professores
fascinados e comprometidos com a arte de ensinar-aprender-construir-ressignificar!
Aos meus colegas da UENF, em especial, à Ieda e à Raquel Veggi, parceiras
de congressos e publicações; às companheiras Inessa e Viviane, presentes desde
longa data; à Karine Castelano, pelas dúvidas sanadas, acolhida e peculiar atenção
e carinho todas as vezes que solicitada.
Às funcionárias da UENF Silvana, Neyla e Amair, por cuidarem das questões
administrativas indispensáveis aos registros
que formalizam
as atividades
acadêmicas.
À competente e dedicada Dra. Dulce Helena Pontes Ribeiro, que com
brilhantismo realizou a revisão deste texto. Parabéns pela habilidade e maestria que
lhe são peculiares, por seus atentos olhos, dos quais nem uma vírgula escapa!
Momentos de preciosas lições que ministra sob forma de entusiasmado diálogo na
arte de lapidar! Muito obrigada, Dulcinha, minha amiga pessoal e colega de muitos
anos, pela diligência, carinho e atenção, sempre.
Aos meus colegas da Doctum Carangola e da Universidade Iguaçu, campus
Itaperuna, pela colaboração e carinho nesta fase e ao coordenador do Curso de
Direito, Professor Leandro Costa, pela compreensão.
À Banca examinadora, composta por meu diligente Orientador, Professoras
Dras Margareth Vetis Zaganelli, Fernanda de Castro Manhães, Rosalee Santos
Crespo Istoe e Shirlena Campos de Souza Amaral, por suas valiosas contribuições.
“Entre dois limites opostos, de um lado a convicção
profunda de não abreviar intencionalmente a vida
(eutanásia) e de outro a visão de não implementar
um tratamento fútil e inútil, prolongando o sofrimento
e adiando a morte inevitável (distanásia), entre o não
abreviar e o não prolongar está o cuidar com arte,
humanidade e ternura do ser que está para partir
(ortotanásia). Como fomos cuidados para nascer,
precisamos também ser cuidados ao nos
despedirmos da vida. Cuidar é um desafio que une
competência tecnocientífica e ternura humana, sem
esquecer que “a chave para morrer bem está no
bem viver!” (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p.
453).
RESUMO
CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat. Fundamentos filosófico-jurídicomédicos da ortotanásia: uma análise interdisciplinar. Campos dos Goytacazes, RJ:
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF, 2015.
Ortotanásia é tema atual e polêmico, embora pouco debatido no âmbito acadêmico,
médico e jurídico, tampouco no contexto da sociedade. O problema reside na forma
pela qual a Ortotanásia no Brasil, em seus fundamentos filosófico-jurídico-médicos,
pode ser considerada ética, lícita e medicamente aprovável. O presente trabalho
objetivou analisar os aspectos da Ortotanásia no Brasil em seus fundamentos
filosófico-jurídico-médicos, reafirmando a efetividade da autodeterminação da
pessoa que decide morrer sem submissão ao excesso terapêutico outrora praticado,
cumprindo os ideais ditados pela dignidade da pessoa humana como valor supremo
da vigente Constituição Democrática. Utilizou-se metodologia qualitativa, por meio
de pesquisa bibliográfica em autores como Cristiano Chaves de Farias e Nelson
Rosenvald, Eduardo Luiz Santos Cabette, Elisabeth Kübler-Ross, Letícia Ludwig
Möller, Leo Pessini, Leo Pessini e Christian Barchifontaine, Luciano de Freitas
Santoro, Maria Celina Bodin de Moraes, Mônica Silveira Vieira e Norbert Elias, bem
como em artigos científicos contemporâneos e recentes jurisprudências. Conclui-se
por um procedimento lícito e legal, já reconhecido pelo ordenamento jurídico
brasileiro, que, entendendo a morte como parte da existência humana, pretende
torná-la digna, em consequência do direito à vida digna. Considera-se também uma
prática ética do ponto de vista da Filosofia, que admite a autonomia da pessoa e
ainda aprovada pela deontologia médica a partir da Resolução Nº 1805/06 do
Conselho Federal de Medicina, que a normatiza, indicando requisitos como a
capacidade do doente para autodeterminação, doença grave em estado terminal e
adoção de cuidados paliativos, que minimizam a dor e asseguram a dignidade da
pessoa enferma.
Palavras-chave: Ortotanásia; autodeterminação; aspectos filosófico-jurídicomédicos; tratamentos paliativos; efetividade da vontade do enfermo.
ABSTRACT
CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat. Medical-Legal-Philosophical Rationale
of the Orthotonasia: an interdisciplinary analysis. Campos dos Goytacazes, RJ:
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF, 2015.
Orthotonasia is a recent and controversial subject, although not much discussed in
the academic, medical and legal scope, nor in the social context. The problem is in
the way in which the Orthotonasia in Brazil, in its medical-legal-philosophical
rationale, can be considered ethical, licit and medical eligible. The present article
aimed to analyze the aspects of Orthotonasia in Brazil in its medical-legalphilosophical rationale, restating the effectiveness of the person self-determination
who decides to die without submission of therapeutic excess that was practiced
earlier, meeting the ideals dictated by human dignity as a supreme value of the
Democratic Constitution in force. It was used a qualitative methodology, through
bibliographic research in authors such as Cristiano Chaves de Farias and Nelson
Rosenvald, Eduardo Luiz Santos Cabette, Elisabeth Kübler-Ross, Letícia Ludwig
Möller, Leo Pessini, Leo Pessini and Christian Barchifontaine, Luciano de Freitas
Santoro, Maria Celina Bodin de Moraes, Mônica Silveira Vieira and Norbert Elias, as
well as contemporary scientific articles and recent case laws. It was concluded for a
licit and legal procedure, already recognized by Brazilian legal order, which,
understanding the death as part of the human existence, aims to make it decent, in
consequence of the decent life rights. It is also considered an ethical practice from
the philosophical point of view, that allows the person‟s autonomy and yet approved
by the medical conduct based on the Resolution No. 1805/06 of the Federal Council
of Medicine, which regulates it, indicating requirements such as the patient ability for
self-determination, severe disease in terminal stage and adoption of palliative care,
which reduces the pain and guarantees the dignity of the ill person.
Keywords: Orthotonasia; self-determination; medical-legal-philosophical aspects;
palliative treatments; effectiveness of the ill person desire.
10
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ....................................................................................12
1 ORTOTANÁSIA E EXPRESSÕES AFINS............................................................. 15
1.1 Conceito e breve histórico ............................................................................ 15
1.2 Casos concretos ............................................................................................ 19
1.3 Eutanásia: pontuando distinções ................................................................. 22
1.4 Distanásia: desrespeito à dignidade da pessoa enferma ........................... 27
1.5 Mistanásia: a eutanásia social ...................................................................... 30
2 SOBRE A MORTE E O MORRER DA PESSOA HUMANA .................................. 34
2.1 Religião: vida, morte e dignidade ................................................................. 34
2.2 A Morte: mistérios e eufemismos ................................................................. 37
2.3 Enfrentamento: a morte como parte da existência humana ...................... 39
2.4 Direito: a morte como fim da existência humana........................................ 42
2.5 Medicina: o critério da morte cerebral ......................................................... 44
3 ORTOTANÁSIA COMO TEMA INTERDISCILINAR .............................................. 46
3.1 Interdisciplinaridade da Ortotanásia: um tema multifacetado ................... 46
3.2 A proposta de uma abordagem interdisciplinar da Ortotanásia ................ 50
4 ASPECTOS FILOSÓFICOS DA ORTOTANÁSIA ................................................. 51
4.1 Bioética: a ética na hora da morte ................................................................ 51
4.1.1 Conceito ..................................................................................................... 51
4.1.2 Paradigmas ............................................................................................... 55
4.1.2 Princípios .................................................................................................. 55
4.2 A Teoria utilitarista e a Ortotanásia .............................................................. 57
5 FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA ORTOTANÁSIA .............................................. 59
5.1 Ortotanásia sob o viés do Direito ................................................................. 59
5.2 Respeito aos direitos existenciais como paradigma do Direito ................ 61
5.2.1 Direitos Existenciais: conceito e expansionismo ........................................ 61
5.2.2 Consentimento como direito existencial..................................................... 63
5.3 Princípios norteadores da Ortotanásia ........................................................ 64
5.3.1 Dignidade da pessoa humana ................................................................... 64
5.3.2 Direito à liberdade e à autodeterminação .................................................. 66
5.3.3 Relativa Disposição dos Direitos de Personalidade ................................... 68
5.3.4 Direito a não sofrer .................................................................................... 70
5.4 A Ortotanásia na perspectiva do Direito Civil-Constitucional ................... 71
5.4.1 Constitucionalização do Direito Civil .......................................................... 72
5.4.2 Direito à morte digna: corolário da vida digna ............................................ 73
5.5 À luz do Direito Criminal ............................................................................... 76
5.6 Tendência jurisprudencial ............................................................................. 77
6 ORTOTANÁSIA NA PERSPECTIVA DA CIÊNCIA MÉDICA ................................ 80
6.1 O Fenômeno da humanização da Medicina ................................................. 80
6.1.1 Releitura do juramento hipocrático ............................................................ 82
Juramento de Hipócrates ........................................................................................... 82
6.1.2 Importância do consentimento para a Medicina do terceiro milênio ......... 85
11
6.2 Legislação afeta à deontologia médica ....................................................... 86
6.2.1 Disposições do Código de Ética Médica .................................................... 86
6.2.2 Ortotanásia à luz da Resolução Nº 1805 de 2006 do CFM ....................... 87
6.2.3 Lei Estadual Nº 10.241 /1999 do Estado de São Paulo ............................. 89
6.2.4 Adoção de Cuidados Paliativos e o Projeto de Lei Nº 524/2009................ 90
7 A ORTOTANÁSIA NO BRASIL ............................................................................. 94
7.1 Requisitos médicos e a Ortotanásiano Brasil ............................................. 94
7.1.1 Constatação do estado de terminalidade ................................................... 94
7.1.2 Consentimento da pessoa enferma ........................................................... 96
7.1.3 Adoção de cuidados paliativos .................................................................. 97
7.2 Efetividade da vontade do titular do bem jurídico “vida” .......................... 98
7.2.1 Registros no prontuário médico ................................................................. 99
7.2.2 Manifestação de vontade perante a família e amigos .............................. 101
7.2.3 Diretivas antecipadas de vontade ............................................................ 101
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 105
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 110
ANEXO 1 – CASOS CONCRETOS ....................................................................... 116
ANEXO 2 – LEI ESTADUAL Nº 10.241 /1999 DO ESTADO DE SÃO PAULO ..... 121
ANEXO 3 DETH CAFE SAMPA ............................................................................ 135
ANEXO 4 – AJALR Nº 70042509562 2011/CÍVEL ................................................ 137
ANEXO 5 – APELAÇÃO CÍVEL Nº 70054988266 – TJRS .................................... 139
ANEXO 6 – RESOLUÇÃO Nº 1.805/2006 DO CFM ............................................... 121
ANEXO 7 – PROJETO DE LEI DO SENADO nº 524/09 ....................................... 116
ANEXO 8 – RESOLUÇÃO Nº 1.995/2012 DO CFM................................................139
12
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Ortotanásia, objeto deste trabalho, é entendida como morte digna, no
“tempo certo”, sem agruras, preservando a autonomia e a dignidade da pessoa
enferma. Trata-se de um conceito relativamente novo (1950) e quase não debatido
no âmbito acadêmico, nem da sociedade, que tenta, a despeito dos mistérios e
mitos que envolvem a morte, promovê-la de forma humanizada e mais confortável
possível. Assim, o termo Ortotanásia não pode ser tomado como sinônimo de
Eutanásia (antecipação da morte), Distanásia (morte tardia e dolorosa), tampouco
de Mistanásia (morte miserável, por abandono). A Ortotonásia não provoca a morte
de imediato, nem tem objetivo de encurtar a vida, visando, porém, não prolongar o
processo de morte quando o estado de terminalidade da pessoa aponta para o seu
inexorável fim.
O tema do presente trabalho consiste na análise da Ortotanásia, observandose o recorte dos fundamentos filosófico-jurídico-médicos no Brasil, ou seja, não
pretende abordar as questões religiosas, nem esgotar o tema estudando qualquer
outro paralelo como a eutanásia e conceitos afins. Embora esses apareçam
subjacentes no decorrer do texto, surgirão sempre com o fim específico de
esclarecer os limites da ortotanásia. Trata-se de assunto multifacetado, analisado
em suas interfaces com algumas Ciências Humanas e da Saúde, às quais ele se
encontra interdisciplinarmente ligado: um estudo à luz da Bioética, do Biodireito e da
Biomedicina, buscando-se compreender os diferentes aspectos desta abordagem,
como a eticidade, a legalidade e os requisitos para aplicabilidade. Esta análise
aprecia a legalidade e a aplicabilidade da Ortotanásia para então compreender os
motivos pelos quais ela está absolutamente em consonância com os princípios
norteadores da Constituição Cidadã (expressão inaugurada por Ulysses Guimarães,
presidente daquela Assembleia Constituinte para designar a Constituição de 1988),
com a principiologia do Direito Civil e Criminal e ainda com o exercício consciente da
Medicina.
O trabalho apresenta o seguinte problema: a Ortotanásia no Brasil, em seus
fundamentos filosófico-jurídico-médicos, pode ser considerada uma prática ética,
lícita e medicamente aprovável? É importante verificar se a prática está em
conformidade com a lei e se atende aos padrões éticos ditados pelo Código de Ética
Médica e pela sociedade contemporânea.
13
A hipótese levantada concebe a Ortotanásia como prática ética, lícita e não
reprovável, do ponto de vista da Medicina, desde que resguarde a dignidade da
pessoa e seu direito à autodeterminação por meio de seu desejo ou consentimento
para a aplicação. Pouco estudadas, as questões filosóficas e jurídicas a respeito da
Ortotanásia caminham rumo à consagração da legalidade, em consonância com a
Medicina que a admite desde 2009, a partir do vigente Código de Ética Médica
(doravante CEM) e reafirmada pela Resolução Nº 1805/2006, que disciplinou a
conduta médica Ortotanásica.
A justificativa da temática em análise é a necessidade – no âmbito acadêmico
e também no da sociedade – de proporcionar conhecimento sobre a Ortotanásia e a
distinção entre as expressões Ortotanásia e Eutanásia (e ainda outras expressões
afins), além de conscientizar a comunidade acadêmica sobre os requisitos para a
Ortotanásia no Brasil. Ademais, a despeito de raramente debatido na sociedade, a
interdisciplinaridade é um imperativo do Programa Cognição e Linguagem, que
demonstra a convergência de ciências já existentes para originar novas áreas de
conhecimento que delas derivam. Apresentam-se aspectos interdisciplinares da
Ortotanásia: a Bioética (questões éticas referentes à vida) e o Biodireito (questões
de direito afetas à vida) – em suas interfaces com o Direito e a Medicina, buscando
analisar em que contextos se relacionam e dialogam. Isso porque a morte, como fim
da existência humana, traz inúmeros questionamentos, ansiedades e inseguranças,
pois, ante o desconhecido, o ser humano se vê desprovido de recursos capazes de
fazê-lo vencer seus próprios medos e tratar com objetividade o rumo para o qual
seguem todos os seres humanos, a cada dia – a morte.
A presente dissertação tem por objetivo geral analisar os aspectos da
Ortotanásia no Brasil em seus fundamentos filosófico-jurídico-médicos. Como
objetivos específicos, procura-se conceituar Ortotanásia, discutir a legalidade e
identificar requisitos para a aplicabilidade; traçar a interdisciplinaridade entre a
Filosofia, o Direito e a Medicina; identificar de que forma o consentimento do
enfermo e a adoção de cuidados paliativos refletem na Ortotanásia.
Emprega-se a metodologia qualitativa quanto ao problema; descritiva quanto
aos objetivos; pesquisa bibliográfica, quanto aos procedimentos, com base no aporte
teórico fornecido por autores tais como Cecília Lôbo Marreiro (2014), Cristiano
Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2015), Eduardo Luiz Santos Cabette (2013),
Elisabeth Kübler-Ross (2012), Leo Pessini (2007), Leo Pessini e Christian de P.
14
Barchifontaine (2014), Letícia Ludwig Möller (2012), Luciana Dadalto (2015), Luciano
de Freitas Santoro (2012), Maria Celina Bodin de Moraes (2009), Maria de Fátima
Freire de Sá e Diogo Luna Moureira (2012), Mônica Silveira Vieira (2012), Nelson
Rosenvald (2007), Norbert Elias (2001), bem como em jurisprudências e artigos
científicos contemporâneos.
Visando melhor compreensão do trabalho, dividiu-se seu desenvolvimento em
seções. A primeira seção conceitua Ortotanásia, alguns casos concretos e
expressões afins. Em seguida, aborda-se a interdisciplinaridade do tema. A terceira
seção aborda a morte do ser humano: mitos, mistérios e enfrentamento, em seus
aspectos médicos e jurídicos. A quarta seção é dedicada aos Aspectos Filosóficos da
Ortotanásia, seguida da quinta que discute os fundamentos jurídicos e da sexta que
aborda o tema em sua perspectiva médica. Finaliza-se, com a sétima seção, na qual
são apresentados os requisitos médicos para a Ortotanásia no Brasil e a efetividade
da vontade.
15
1 ORTOTANÁSIA E EXPRESSÕES AFINS
A presente seção, além de conceituar Ortotanásia e apresentar uma breve
trajetória até o ponto em que se distancia da Eutanásia, examina conceitos como
Distanásia e Mistanásia, que são pouco explorados, entretanto atuais e
indispensáveis à melhor compreensão da temática.
1.1 Conceito e Breve Histórico
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que
no Brasil houve aumento significativo da população com idade superior a 65 anos:
4,1% em 1991 para 7,4% em 2010 (KOVÁSC, 2014, p. 96). A população se torna
mais velha a cada dia no mundo. A expectativa de vida cresce e os idosos
conquistam novos espaços, causando uma alteração na configuração da saúde
pública.
O envelhecimento populacional cresce exponencialmente e,
atualmente, o número de idosos excede o de crianças. Em 2030,
uma em cada oito pessoas terá mais de 65 anos e em 2050 5% das
pessoas terão mais de 85 anos. A longevidade aumenta a incidência
de doenças complexas, de alto custo. Enfermidades que tinham
desfecho agudo tornam-se crônicas. Cresce o número de pessoas de
90-100 anos. Cuidados especializados são oferecidos a pacientes
com câncer nas suas várias modalidades, também em programas de
cuidados paliativos (KOVÁCS, 2014, p. 96).
O fenômeno do envelhecimento da população aliado ao avanço tecnológico e
científico levou o homem à contínua atualização, passando a utilizar-se de meios
mais avançados possíveis para superar situações antes invencíveis. Essa
perspectiva se verificou notadamente na saúde no que tange à manutenção da vida
humana. Os hospitais passaram a disponibilizar serviços e aparelhos modernos,
com avançada tecnologia aos pacientes: suporte artificial de última geração,
contribuindo para que a pessoa possa ser mantida viva de forma artificial por um
lapso temporal cada vez mais extenso. Nesse sentido, constata Diana Agrest:
Desde el punto de vista de la medicina como práctica y como
institución, las nuevas tecnologías de alta complejidad modificaron
nuestra relación con la vida, pero también con la muerte, dado que
16
lograron transformar enfermedades terminales en crónicas. Las
posibilidades que ofrece hoy la terapia intensiva en el fin de la vida
eran inimaginables un tiempo atrás. Cuando aún resta un soplo de
vida biológica, es posible reemplazar la función de los riñones,
bombear la sangre al corazón o respirar artificialmente, sustituyendo
las diversas funciones vitales del organismo de manera tal que hoy
es posible prolongar casi indefinidamente la vida de un enfermo
terminal que, sólo un par de generaciones antes, habría fallecido
irremisiblemente en contados días (AGREST, 2007, p. 18-19).
No mesmo senso,
O desenvolvimento de novas tecnologias, medicamentos e técnicas
cirúrgicas fizeram com que houvesse surpreendente melhora no
aumento da expectativa de vida da população. Atualmente, diversas
doenças intratáveis apresentam tratamentos com boa evolução e
bons prognósticos. Essas mudanças foram determinantes para criar
o dogma de que sempre deve ser alcançada a cura do paciente ou o
prolongamento máximo da vida do indivíduo (CRUZ; OLIVEIRA,
citados por SILVA et al., 2014, p. 359).
A partir das considerações trazidas por Silva et al., infere-se que da evolução
tecnológica verificada na Medicina emerge um juízo de valor, ponderando-se até que
ponto a vida deve ser mantida artificialmente e qual será o limite ético da dor. Até
que ponto deve ser suportada? Será que a vida deve ser mantida a qualquer preço?
Será que é a vida mais importante do que a dignidade do enfermo? É lícito proteger
a vida até o ponto em que essa conduta passa a constituir franca violação ao direito
constitucional da dignidade da pessoa humana? É preciso repensar a prática médica
e a condição humana do paciente, enxergando além da obstinação de salvar a vida
e mantê-la a qualquer preço. Urge compreender a Ortotanásia, para então adotá-la,
se a enfermidade é irreversível, de cura inviável e a pessoa não mais deseja ser
submetida ao excesso terapêutico. Ou será que suportar a vida, mesmo à custa de
intensa dor e sofrimento, não retira do doente sua dignidade?
Leo Pessini distingue dor de sofrimento, o que certamente ajuda a
compreender a dimensão das angústias por que passa o enfermo: “A dor geralmente
está associada à dimensão físico-orgânico-corporal e o sofrimento ao todo da
pessoa” (PESSINI, 2004, p. 176). Assim, pode-se perceber que uma intensa dor
(que é de ordem fisiológica) conduz, por via de consequência, ao sofrimento que
provoca na pessoa um estado de depressão, comprometendo sua felicidade por
completo, uma vez que o sofrimento atinge a pessoa em sua unidade.
17
Ortotanásia é uma expressão atribuída a Jacques Roskam, da Universidade
de Liege, Bélgica, utilizada no Primeiro Congresso Internacional de Gerontologia, em
1950, quando
[...] teria concluído que entre encurtar a vida humana através da
eutanásia e a sua prolongação pela obstinação terapêutica existiria
uma morte correta, justa, isto é, aquela ocorrida no seu tempo
oportuno; por isso a utilização dos termos gregos “orthos” (correto) e
“thanatus” (morte) (SANTORO, 2012, p. 132).
Então, entre abreviar a vida e postergá-la para além do tempo certo, existe
um estágio intermediário que corresponde ao “tempo certo”, ao momento em que
naturalmente o curso da vida seria interrompido: o exato instante em que a morte
ocorreria. Essa oportunidade ideal – nem antes nem depois do que seria a morte
natural – é o ponto de equilíbrio, a “hora certa”, fruto da ponderação a que Jackes
Roskam denominou Ortotanásia, conforme mencionado.
Jacques Roskam “opõe-se aos atos de encurtamento ou prolongamento da
vida humana, este último caracterizado ainda pelo intenso sofrimento a que se
submete inutilmente o paciente, já que seu quadro mórbido não será revertido”
(SANTORO, 2012, p. 132). Maria Julia Kovásc explica a relação existente entre a
Ortotanásia e a dignidade da pessoa enferma:
[...] a ortotanásia busca a morte com dignidade no momento correto,
com controle da dor e sintomas físicos, psíquicos, bem como
questões relativas às dimensões sociais e espirituais. Por seu caráter
multidisciplinar, busca oferecer apoio à família na elaboração do luto
antecipatório e no pós-óbito. A ortotanásia é, portanto, atitude de
profundo respeito à dignidade do paciente (KOVÁSC, 2014, p. 98).
Gerson Camata adverte que “Defender o direito de morrer dignamente não se
trata de defender qualquer procedimento que cause a morte do paciente, mas de
reconhecer sua liberdade e sua autodeterminação” (CAMATA In PEREIRA;
MENEZES; BARBOZA, 2010, p. 138). Não se pode confundir o direito à morte digna
por meio da Ortotanásia com a aceitação de formas de abreviação da vida. É
necessário que se perceba a Ortotanásia como uma forma humanizada de morrer.
A proposta da Ortotanásia é a humanização do processo de morte, visando
auxiliar a pessoa no momento em que atravessa uma fase delicada da vida – o final
da existência humana –, necessitando de companhia e suporte emocional para que
18
a morte ocorra de forma serena e o mais naturalmente possível. Santoro elucida: “A
ortotanásia, em verdade, seria a verdadeira boa morte, já que o paciente poderá
morrer com dignidade, no momento correto, sem encurtar ou prolongar a sua vida. A
morte não pode ser vista como um fracasso, como um inimigo a vencer”
(SANTORO, 2012, p. 134). No mesmo sentido, complementando esse juízo:
No tocante aos médicos, formados para salvar e curar, a morte
associa-se à sensação de fracasso ou erro. Diversos estudos
mostram que o médico deve reconhecer a terminalidade e modificar
sua conduta, passando da luta pela vida para a provisão do conforto
(MORITZ, R.D., citado por SILVA et al., 2014, p. 359).
Longe de ser assunto pacífico, a adoção da Ortotanásia ainda é discutida.
Roxana Borges comenta a existência de objeções por parte da doutrina:
O principal argumento contrário é o de que, com o intenso
desenvolvimento do conhecimento médico, a determinação da
irreversibilidade de um quadro de saúde pode ser falha. Além disso,
há casos em que a determinação da morte como já ocorrida é falha
[...] Na verdade, a discussão é muito mais ampla que a licitude ou a
ilicitude da ortotanásia. Trata-se da indagação sobre os limites ou
possibilidades do conhecimento científico em determinado momento
(BORGES, 2007, p. 237).
Por sua vez, Diaulas Costa Ribeiro analisa a licitude da suspensão do esforço
terapêutico:
No Brasil, não há autorização legal para a eutanásia nem para o
suicídio assistido. Mas, a suspensão de esforço terapêutico,
encontra-se na Constituição Federal (art. 1º, III, e art. 5º, III – que
reconhece a dignidade humana como fundamento do estado
democrático brasileiro e diz expressamente: ninguém será submetido
a tortura nem a tratamento desumano ou degradante –, no Novo
Código Civil (art. 15) – que autoriza o paciente a recusar
determinados procedimentos médicos –, na Lei Orgânica da Saúde
(Lei 8.080/90, art. 7º, III) que reconhece o direito à autonomia do
paciente – e no Código de Ética Médica – que proíbe o médico de
realizar procedimentos terapêuticos contra a vontade do paciente,
fora de um quadro de emergência médica de salvação, o que não é o
caso do paciente com quadro irreversível, sem nenhuma resposta a
qualquer tipo de tratamento (RIBEIRO, in PEREIRA, 2006, p. 281).
Assinala Eduardo Cabette que “Em outros países a questão da Ortotanásia já
foi enfrentada na seara jurídica, sendo exemplo a Holanda que legalizou
19
pioneiramente a prática no ano de 2001, seguida pela Bélgica em 2002. Também no
Estado de Oregon, nos Estados Unidos, a Ortotanásia é permitida legalmente
(TRANSFERETTI citado por CABETTE, 2013) e ainda Estados Unidos, Itália,
Canadá, França, Inglaterra, Japão e Brasil (GÓIS, 2007). No Brasil, a Resolução Nº
1805/2006 do Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentou a prática médica
da Ortotanásia, que envolve o cumprimento de certos requisitos como: doença grave
em
estado
terminal,
consentimento
do
enfermo
(se
consciente
–
ou
excepcionalmente da família) e adoção de cuidados paliativos, que serão analisados
em momento oportuno.
1.2 Casos concretos
Apesar da importância da dignidade da pessoa humana, reconhecida como
axioma norteador do ordenamento jurídico, ainda não se conta com muitos casos de
Ortotanásia conhecidos. Os mais comuns não são os referentes a doentes em
estado vegetativo, sobre o qual ainda pairam opiniões controvertidas, conforme a
que expressam Pessini e Barchifontaine:
[...] um estado de não reação, atualmente definido como uma
condição caracterizada pelo estado de vigilância, alternância de
ciclos sono/vigília, ausência aparente da consciência de si e do
ambiente circunstante, falta de respostas comportamentais aos
estímulos ambientais, conservação das funções autônomas e de
outras funções cerebrais (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p.
451).
Comentam os autores supra que, além de não se tratar de estado terminal, no
estado vegetativo o doente não necessita de apoio tecnológico para as funções
vitais, podendo permanecer estáveis por longa data, além de não ser possível prever
se ele se restabelecerá um dia. A Ortotanásia tem lugar para os casos de doenças
em fase terminal, conforme se verá adiante na penúltima seção desta dissertação.
Diaulas Costa Ribeiro comenta a suspensão do esforço terapêutico (a que ele
denomina SET):
Nela, pacientes em estado vegetativo persistente ou em fase terminal
de doenças incuráveis autorizam a suspensão de tratamentos fúteis
que visam apenas adiar a morte, em vez de manter a vida. A SET
20
põe fim à obstinação terapêutica, à distanásia, à insistência
tecnológica em se adiar a morte, como se isso fosse bom e possível
para sempre. Com a evolução das tecnologias médicas, a cada dia
há mais meios para se manter esse encarniçamento terapêutico,
como dizem os espanhóis, que não pode ser visto como tratamento
porque não cura. Apenas dá suporte a atividades vitais primárias e
pode deixar vivo, por anos, e à custa de grande sofrimento e recurso
de toda ordem, alguém que está clinicamente terminado. Com a
SET, o paciente não morre de uma overdose de cianureto de
potássio, de adrenalina ou de heroína; morre da própria doença, da
falência da vida que só é eterna na prosa, na poesia e na visão
perspectiva de algumas religiões (RIBEIRO IN PEREIRA, 2006, p.
280).
O Diretor do CFM, o cardiologista Roberto D‟Ávila, um dos responsáveis pelo
texto da Resolução 1.805/2006 que disciplina a Ortotanásia, disse em entrevista ao
Jornal O Globo, naquela época, que “os médicos são treinados para vencer a morte
a qualquer custo” e o mais importante é que os médicos se preocupem mais com o
paciente e menos com a morte (D‟ÁVILA citado por CABETTE, 2013).
O primeiro caso de Ortotanásia de que se teve notícia de forma ainda tímida e
não classificado à época como tal, foi o do Papa João Paulo II (Cf. ANEXO 1 – A).
“Comunicado oficial do Vaticano informa que o sumo pontífice morreu às 21h37
[16h37 de Brasília] do dia 2 de abril de 2005 em seus aposentos no Palácio
Apostólico” (FELTRIN, Folha Online, 2005). Conta D‟Ávila que o Papa optou por não
permanecer internado em unidades de terapia intensiva, escolhendo passar seus
últimos dias em quartos comuns, se valendo apenas de cuidados paliativos
(D‟ÁVILA citado por CABETTE, 2013).
No Brasil, o caso do ex-governador do Estado de São Paulo Mário Covas,
embora pouco comentado, deve ser mencionado. Alexandre Magno Fernandes
Moreira Aguiar aponta a Lei Estadual Nº 10.241/99 de São Paulo (Cf. íntegra
ANEXO 2), reguladora do sistema de saúde, como precedente da Resolução Nº
1.805/2006, pois já permitia a recusa de tratamento doloroso ou extraordinário
objetivando prolongamento da vida pelo doente. Segundo ele, o Governador Mário
Covas sancionou a lei “como político e paciente”, já sabedor de estar acometido de
câncer; e dela se utilizou mais tarde quando paciente terminal para afastar o
“prolongamento artificial da vida” (AGUIAR citado por CABETTE, 2013, p. 36).
Outro caso a merecer destaque foi o da norteamericana Nancy Cruzan, de 25
anos, que capotou o carro em 1983, permaneceu por cerca de 10 a 12 minutos sem
oxigenação cerebral, ficando em coma por três semanas. Dez meses depois,
21
frustradas todas as tentativas de reabilitação, os pais (que juntamente com o marido
eram representantes legais), solicitaram a suspensão da nutrição e hidratação
assistidas, procedimentos antes autorizados pelo marido. O hospital não suspendeu
os procedimentos sem autorização judicial. Em 1990, após 17 anos de demanda
judicial, conseguiram autorização para a suspensão do suporte vital, quando então
veio a falecer (Cf. ANEXO 1 – B).
Terri Schiavo, outra situação, após rigorosa dieta entrou em estado
vegetativo. O marido enfrentou demanda judicial em face dos pais durante quinze
anos, findos os quais, em 2005, obteve autorização judicial para a retirada do
suporte vital (Cf. ANEXO 1 – C).
Casos como esses começam a surgir e, tendentes a se tornarem cada vez
mais comuns, que a mídia classifica como eutanásia – fato que provoca discussões
e divide opiniões, principalmente entre os países que não a adotam. Trata-se de
casos de Ortototanásia, o que é legítimo, principalmente se o doente manifestou
intenção de autodeterminar-se por documento próprio ou perante a família e/ou
amigos.
Diaulas Costa Ribeiro aponta esses, como exemplos de muitos outros casos,
“um entre milhares que ocorrem todos os anos no mundo, inclusive no Brasil”
(RIBEIRO in PEREIRA, 2006, p. 276). O referido autor comenta o caso Terri Schiavo
como um “espetáculo”, um “episódio que tomou a mídia por razões políticas, não por
sua natureza clínica” servindo-se do precedente de Nancy Cruzan, que garantiu o
direito à autonomia. Conclui o autor pela inadequação de se usar eutanásia para
designar a conduta autorizada por decisão judicial:
Lamentável, contudo, que se tenha classificado como eutanásia esse
procedimento clínico que não foi uma verdadeira eutanásia. Como o
espetáculo não podia morrer, a catarse do fundamentalismo
necessitava de tempo para criar, na comunidade em geral, um
sentimento de oposição ao Judiciário e à forma de tratamento dado à
silenciosa vítima. Vítima de um modelo de inconveniências e
hipocrisia, muitas delas nascidas de concepções religiosas, segundo
as quais, viver, sofrer e morrer são etapas inevitáveis –
compulsórias, portanto – da existência humana (RIBEIRO in
PEREIRA, 2006, p. 277).
Para Claus Roxin, se a pessoa recusa internação em unidade de terapia
intensiva ou cirurgia que salvaria sua vida, o médico deve deixá-la morrer – decisão
22
corretamente deduzida de sua autonomia (ROXIN citado por RIBEIRO in PEREIRA,
2006, p. 277). Conclui Ribeiro:
Nesse contexto, cabe a nós, candidatos a esses ritos de passagem,
adotar medidas que assegurem a cada um, no exercício do direito
sobre o próprio corpo, a escolha da morte oportuna. Não respeitar
esse direito à autonomia é constrangimento ilegal, podendo até ser
entendido como abuso de poder e lesão corporal (RIBEIRO in
PEREIRA, 2006, p. 277).
O Caso Vincent Lambert, por sua vez, foi um marco na União Europeia: o
Tribunal Europeu de Direitos Humanos autorizou o desligamento dos aparelhos que
alimentavam Vincent Lambert – decisão que dividiu a família do paciente. Ele ficou
tetraplégico em razão de um acidente de carro ocorrido em 2008 e entrou em coma
(Cf. ANEXO 1 – D).
1.3 Eutanásia: pontuando distinções
Embora ambas as condutas se caracterizem por compaixão, promovendo a
morte de forma serena e sem dor, é necessário que se estabeleça distinção entre
essas expressões, por apresentarem sensível diferença, conforme se demonstrará
adiante. Então, para a compreensão da Ortotanásia, é conveniente que se
apresente antes a Eutanásia e a evolução desse conceito.
Comenta Cecília Marreiro que “a conduta de tirar a vida daqueles que sofrem
é tão antiga quanto à própria humanidade” (MARREIRO, 2014, p. 145). E salienta
que essa prática além de objetivar o fim do sofrimento físico ou psíquico do enfermo,
visava também retirar da sociedade as pessoas inaptas para a vida, narrando como
na Grécia eram eliminados os recém-nascidos “defeituosos” e idosos (MARREIRO,
2014). Antes de ser considerada uma antecipação da morte, a Eutanásia visava
apenas amenizar o sofrimento daqueles que se encontravam em estado terminal. É
o que explica Roxana Brasileiro Borges elucidando a acepção original da expressão
eutanásia:
[...] na verdade, conforme o sentido originário da expressão, seriam
medidas eutanásicas não a morte, mas os cuidados paliativos do
sofrimento, como o acompanhamento psicológico do doente e outros
meios de controle da dor. Também seria uma medida eutanásica a
interrupção de tratamentos inúteis ou que prolongassem a agonia.
Ou seja: a eutanásia não visaria à morte, mas a deixar que esta
23
ocorra da forma menos dolorosa possível. A intenção da eutanásia,
em sua origem, não era causar a morte, mesmo que fosse para fazer
cessar os sofrimentos da pessoa (BORGES, 2007, p. 234).
A expressão Eutanásia foi cunhada em 1623 por Francis Bacon, filósofo
inglês, em sua obra Historia vitae et mortis, referindo-se à prática que deveria ser
aplicada pelos médicos a fim de produzir morte serena às pessoas que agonizavam
com doenças incuráveis (FRISO citada por MARREIRO, 2014). Leo Pessini e
Christian Barchifontaine apresentam uma evolução semântica do conceito de
Eutanásia, iniciando pelo sentido etimológico: “[...] (do grego eu, „boa‟, e thanatus,
„morte‟)”, significando “morte boa, sem dores e angústias”, que para o estoicismo
indicava que “o sábio podia e devia assumir sua própria morte quando a vida não
tivesse mais sentido para ele”. Mais tarde, no século XVII, a expressão assume o
sentido de pôr fim à vida de uma pessoa enferma (PESSINI; BARCHIFONTAINE,
2014, p. 408; 409).
A seguir, apresentam o conceito clássico: “tirar a vida do ser humano por
considerações „humanitárias‟ para a pessoa ou para a sociedade (deficientes,
anciãos, enfermos incuráveis etc.)” (PESSINI; BARCHIFONTSINE, 2014). Com o
passar dos anos, o conceito de Eutanásia foi-se distanciando dessa ideia e
aproximando-se, cada vez mais, da prática através da qual se implementam
intervenções objetivando a abreviação da vida. Hubert Lepargneur conceituou
Eutanásia da seguinte forma: “emprego ou abstenção de procedimentos que
permitem apressar ou provocar o óbito de um doente incurável, a fim de livrá-lo dos
extremos sofrimentos que o assaltam ou em razão de outro motivo de ordem ética”
(LEPARGNEUR citado por VIEIRA, 2012).
Leo Pessini e Christian Barchifontaine comentam que
Somente no Século XX passou a ter conotação pejorativa e, pouco a
pouco, a representar um mero eufemismo para significar a supressão
indolor da vida voluntariamente provocada de quem sofre ou poderia vir a
sofrer de modo insuportável (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p. 409).
Mesmo ante a existência de relevante valor moral da conduta, é inegável que
a Eutanásia abrevia a vida de forma planejada, premeditada e antes do que seria o
momento próprio, natural – provocando a morte – o que é uma conduta eticamente
reprovável no Brasil pelo Direito e pela Medicina. Inclusive, o vigente Código de
24
Ética Médica (CEM) – a Resolução Nº 1.931 do Conselho Federal de Medicina
(CFM) – no seu art. 49, proíbe a prática de abreviar a vida, ainda que a pedido do
paciente, conforme se verá em seção futura (6.2.1 Disposições do Código de Ética
Médica).
A Eutanásia pode ser ativa e passiva. Enquanto na ativa, a morte resulta da
interferência direta de terceiro (mediante aplicação ou ingestão de drogas letais, por
exemplo), na passiva, de uma conduta omissiva de supressão ou interrupção dos
cuidados médicos que mantêm a vida (SANTORO, 2012), provocando a morte. Leo
Pessini e Christian Barchifontaine identificam também as espécies ativa e passiva da
Eutanásia, embora a essas não se restrinjam, já que admitem duas outras definições
que não se aplicam ao doente grave, conforme se apresentará, ainda nesta seção:
Distingue-se entre eutanásia ativa (positiva ou direta), de um lado, e
passiva, de outro. No primeiro caso trata-se de uma ação médica
pela qual se põe fim à vida de uma pessoa enferma, por um pedido
do paciente ou a sua revelia. O exemplo típico seria a administração
de uma superdose de morfina com a intencionalidade de pôr fim à
vida do enfermo. É também chamada de morte piedosa ou suicídio
assistido. A eutanásia passiva ou negativa não consistiria numa ação
médica, mas na omissão, isto é, na não aplicação de uma terapia
médica com a qual se poderia prolongar a vida da pessoa enferma.
Por exemplo, a não aplicação ou a desconexão do respirador num
paciente terminal sem esperanças de vida. Essa distinção parece
não ser a mais adequada para se abordar hoje o problema da
eutanásia. Sob a qualificação de eutanásia negativa, que pode dar a
impressão de ser sempre lícita moralmente, temos situações muito
distintas: a do recém-nascido com determinadas anomalias físicas ou
mentais que se deixa morrer sem aplicar medidas terapêuticas, as
quais se aplicariam se o bebê fosse “normal”, e a de um adulto ao
qual não se aplica, quaisquer que sejam as razões, uma terapia
médica, habitual, existindo possibilidade de sobrevivência (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2014, p. 409).
O conceito de Eutanásia Passiva não pode ser confundido com o de Suicídio
Assistido, conforme sugerem os autores acima. Se por um lado, na Eutanásia
Passiva o autor mata por omissão, não praticando conduta para evitar a morte,
quando deveria agir (CABETTE, 2013); por outro, no Suicídio Assistido a pessoa
enferma necessita de outra para colocar a substância letal ao seu alcance, como o
“caso Ramon Sampedro”, que permaneceu tetraplégico por quase 30 anos,
encontrando uma rede de pessoas que decidiram prestar-lhe auxílio ao suicídio,
culminando com a ingestão de cianureto de potássio diante de uma câmera
25
filmadora, com o simples gesto de virar o pescoço para alcançar o canudo posto em
um copo, à cabeceira da cama (RIBEIRO, 2006). A distinção feita por Martin é
bastante esclarecedora:
Na eutanásia, o médico age ou omite-se. Dessa ação ou omissão
surge, diretamente, a morte. No suicídio assistido, a morte não
depende diretamente da ação de terceiro. Ela é consequência de
uma ação do próprio paciente, que pode ter sido orientado, auxiliado
ou apenas observado por esse terceiro (MARTIN, 1988, p. 171).
Hoje não mais se confunde a Ortotanásia com a Eutanásia, uma vez que a
Eutanásia abrevia a vida, enquanto a Ortotanásia não a abrevia, nem a posterga:
apenas permite que ela ocorra naturalmente, no seu tempo certo. Ademais, somente
se pode falar em Ortotanásia em face de ineficácia de uma intervenção médica ou
mesmo uma inutilidade de tratamentos, porque o processo de morte já se iniciou,
cabendo apenas a adoção de cuidados paliativos capazes de diminuir a dor e causar
bem-estar, promovendo a morte serena. Explica Santoro que Ortotanásia opõe-se à
noção de Eutanásia e de Distanásia. Ou seja, é pressuposto da Ortotanásia o
estado de terminalidade do enfermo – constatação do irremediável processo de
morte (SANTORO, 2012).
Vieira explica que “autores e médicos costumam confundir ortotanásia com
eutanásia passiva, expressões que, bem compreendidas, guardam sentidos
absolutamente diversos, ou mesmo opostos” (VIEIRA, 2012, p. 247-249). Oportuno,
então, diferenciar-se Ortotanásia de Eutanásia Passiva. Esclarece Santoro que
embora ambas venham convergir para uma ação por compaixão, propiciando morte
sem dor através da omissão na prestação ou na continuidade do tratamento,
divergem no ponto de vista fundamental: no momento do início da morte. Na
Ortotanásia, a morte já se iniciou; na Eutanásia Passiva esta omissão é que causará
a morte (SANTORO, 2012, p. 138).
No mesmo senso, Márcio Palins Horta comenta: “a atitude de deixar morrer,
permitir que a vida chegue ao seu fim natural, decorrente da aceitação da finitude
humana, é muito diferente da supressão de terapêuticas que resulta diretamente na
abreviação da vida do doente” (HORTA citado por VIEIRA, 2012, p. 248). Nesse
mesmo sentido, Luis Guillermo Blanco explica: “eticamente „fazer morrer‟, por ação
ou omissão – eutanásia – é diferente de „deixar morrer‟, verdadeira ortotanásia,
26
ressaltando que a diferença primordial se encontra na intenção dos agentes, ainda
que as consequências sejam as mesmas, isto é, o fim da vida do paciente”
(BLANCO citado por VIEIRA, 2012, p. 248).
Corrobora ainda essa diferença a lição de Leo Pessini e Christian
Barchifontaine que distingue eutanásia de “deixar morrer em paz”:
Tendo em vista a complexidade da questão, alguns autores, entre os
quais o eticista Javier Gafo (Espanha), propõe discutir a questão em
torno dos termos “deixar morrer em paz” e “eutanásia”. Deixar morrer
em paz seriam “aquelas situações em que se toma a decisão de
continuar mantendo a vida, suprimindo determinadas terapias ou não
as aplicando a um enfermo em que ao existem possibilidades de
sobrevivência, porque ele próprio expressou sua vontade
explicitamente ou porque se pode pressupor” (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2014, p. 409).
Nessa linha de intelecção, a Eutanásia assume a acepção de antecipação da
morte, enquanto a hipótese do “deixar morrer em paz” corresponde à Ortotanásia.
Entretanto, os autores não utilizaram essa expressão para designar o processo de
permitir que a morte siga seu curso natural, que é a adoção do procedimento
ortotanásico. Os referidos autores comentam ainda as espécies de eutanásia
neonatal e social:
Uma é a das crianças que nascem com defeitos congênitos das
quais se subtrai o alimento para evitar o sofrimento do sujeito e um
peso para a sociedade. Fala-se aqui da eutanásia neonatal. A outra
acepção é a chamada eutanásia social em que não se trata de opção
da pessoa, mas da sociedade, em consequência do fato de se
recusar investir em casos de custos elevadíssimos no caso de
doentes com enfermidades prolongadas. Os recursos econômicos
seriam reservados aos doentes em condições de voltar sadios à vida
produtiva (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p. 410).
A Eutanásia Neonatal, já explicada pelos autores supra, é caracterizada pela
antecipação da morte de bebês que possuem anomalias. Já a Eutanásia Social – ou
Mistanásia – é resultante do descumprimento do Poder Público quanto à promoção
da saúde pública e da vida digna, espécie que será apresentada com maiores
detalhes nesta mesma seção, no tópico 1.5.
É necessário frisar que somente cabe aplicação da Ortotanásia quando já
iniciado o processo de morte, enquanto na Eutanásia a abreviação da vida pode
27
ocorrer diante da notícia de uma doença incurável. Nessa linha de intelecção não se
deve compreender a Ortotanásia como antecipação da morte, mas sim como meio
de permitir que o fim da vida humana aconteça naturalmente, abstendo-se de
tratamentos fúteis, valendo-se tão somente dos denominados cuidados paliativos
necessários, capazes de amenizar o sofrimento e conduzir à morte serena e sem
dor, já que inevitável.
1.4 Distanásia: desrespeito à dignidade da pessoa enferma
Para introduzir o tema, traz-se uma reflexão de Leo Pessini em obra dedicada
ao estudo da Distanásia:
A questão de fundo é definir quando uma determinada intervenção
médica não mais beneficia o doente em estado crítico, terminal, em
estado vegetativo persistente, ou o neonato concebido com
seríssimas deficiências congênitas, e torna-se, portanto, fútil e inútil.
A insistência em implementá-la vai resultar numa situação que
caracterizamos como distanásica (PESSINI, 2007, p. 163).
A Distanásia – ao contrário da Ortotanásia, que busca a morte no seu tempo
certo – ocorre quando a pessoa enferma é vítima da obstinação terapêutica, levada
ao sofrimento extremo, devido ao excesso de medicamentos e procedimentos a que
é submetida, pondo-lhe a dignidade em risco, ou mesmo chegando a ter um final
indigno, em razão das agruras que suporta.
Não somos nem vítimas, nem doentes de morte. É saudável ser
peregrinos. Podemos ser sim curados de uma doença classificada
como mortal, mas não de nossa mortalidade. Quando esquecemos
disso, acabamos caindo na tecnolatria e na absolutização da vida
biológica pura e simplesmente. É a obstinação terapêutica adiando o
inevitável, que acrescenta somente sofrimento e vida quantitativa,
sacrificando a dignidade (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2012, p.
455).
Consoante menção dos autores supra, longe de promover a morte digna, a
Distanásia configura desrespeito à pessoa, instrumentalizando-a, quer pela vontade
dos familiares, quer pela conduta obstinada da equipe médica que reputa a morte
um fracasso da Medicina. Letícia Ludwig Möller, reconhecendo a luta para se aceitar
28
a morte, explica a razão pela qual as pessoas normalmente optam pelo excesso
terapêutico:
A dificuldade de enfrentar a finitude humana, aliada aos crescentes
avanços tecnológicos no âmbito das ciências da saúde, que
propiciam tantos e tão variados tipos de intervenções, procedimentos
e tratamentos, resulta em nossos dias numa tendência à prática da
obstinação terapêutica, de modo a evitar ou adiar a morte – nossa
grande inimiga – ao máximo (MÖLLER, 2012, p. 24).
Ao perceberem que o estado de saúde se agrava e que o fim do doente se
aproxima, médicos e familiares dão início a uma avalanche de procedimentos e
medicamentos que poderão “salvar” a pessoa. E não o fazem com má intenção. Ao
contrário, a interpretação tradicional do juramento de Hipócrates torna o
comportamento dos médicos totalmente voltado para a luta contra a morte e,
movidos pela ânsia de salvar a vida a qualquer custo, praticam a obstinação
terapêutica, a Distanásia, sendo essa prática comum e corriqueira que, na quase
totalidade dos casos, conta com a aprovação da família. “Há, por assim dizer, uma
busca insensata pela imortalidade humana” (MARREIRO, 2014, p. 47).
A Distanásia, segundo os juristas Cristiano Chaves de Farias e Nelson
Rosenvald,
[...] é o prolongamento artificial do processo (natural) de morte, ainda
que à custa do sofrimento do paciente. É a continuação, por
intervenção da Medicina, da agonia, mesmo sabendo que, naquele
momento, não há chance conhecida de cura. Enfim, é uma
verdadeira obstinação pela pesquisa científica, pela tecnologia e
tratamento médico, olvidando o direito do paciente à sua dignidade
intangível, mesmo no momento da morte (FARIAS; ROSENVALD,
2015, p. 314-315).
Renato Sertã comenta que talvez o conceito mais atual de distanásia seja
“„tratamento médico fútil‟, quando ministrado em pacientes portadores de graves
moléstias, para as quais não há solução facilmente identificável pela ciência médica”
(SERTÃ, 2005, p. 32). Nesse contexto, a futilidade do tratamento se explica por sua
absoluta desnecessidade, sendo certo de que nada adiantará para modificar o
quadro do paciente, portanto irrelevante qualquer atuação, procedimento ou
medicamento que possa promover cura. Leo Pessini, abordando o tratamento fútil,
explica que
29
Os tratamentos têm sido categorizados como fúteis quando não
atingem os objetivos de adiar a morte; prolongar a vida; melhorar,
manter ou restaurar a qualidade de vida; beneficiar o paciente;
beneficiar o paciente como um todo; melhorar o prognóstico;
melhorar o conforto do paciente, bem-estar ou estado geral de
saúde; atingir determinados efeitos fisiológicos; restaurar a
consciência; terminar a dependência de cuidados médicos
intensivos; prevenir ou curar a doença; aliviar o sofrimento; aliviar os
sintomas; restaurar determinada função; e assim por diante
(PESSINI, 2007, p. 62).
O denominado tratamento fútil é aquele que não apresenta nenhuma
utilidade, não traz benefício ao enfermo ou à sua família, não produz qualquer efeito,
sendo seu resultado indiferente para o quadro clínico ou para o bem-estar do
paciente. Encontra-se presente também na lição de Luciano Santoro para quem a
Distanásia
[...] caracteriza-se por um excesso de medidas terapêuticas que não
levam à cura e/ou salvação do paciente, mas que lhe impõe
sofrimento e dor. Trata-se, pois, de um tratamento fútil, caracterizado
por não conseguir reverter o distúrbio fisiológico que levará o
paciente à morte (SANTORO, 2012, p. 130).
Já Luis Guillermo Blanco se refere à Distanásia como “encarniçamento
terapêutico” (BLANCO, 1997, p. 31), valendo-se de expressão extremista para
designar o estado de quase-morte em que se encontra o paciente terminal quando
submetido à obstinação terapêutica.
A Distanásia se justifica em tese pela dificuldade que tem o ser humano para
o enfrentamento da própria morte. Corresponde à obstinação terapêutica, à busca
pela manutenção da vida a qualquer custo, sem se ponderar o melhor interesse do
doente. Ocorre, segundo Möller, porque
A dificuldade de enfrentar a finitude humana, aliada aos crescentes
avanços tecnológicos no âmbito das ciências da saúde, que
propiciam tantos e tão variados tipos de intervenções, procedimentos
e tratamentos, resulta em nossos dias numa tendência à prática da
obstinação terapêutica, de modo a evitar ou adiar a morte – nossa
grande inimiga – ao máximo (MÖLLER, 2012, p. 24).
Nesse caso, há preterição da dignidade da pessoa humana em detrimento da
luta pela infalibilidade da ciência, submetendo o paciente a um nível extremo de dor
30
e sofrimento, conforme alerta Mônica Silveira Vieira: “atenta contra a dignidade da
pessoa humana” (VIEIRA, 2012, p. 233).
A Distanásia é uma conduta que precisa ser revista, fruto da ação médica
movida por equivocada interpretação do juramento hipocrático (que a vida deve ser
mantida a todo custo, mediante qualquer sacrifício, o que não se coaduna com a
dignidade da pessoa humana, valor máximo do ordenamento jurídico) e ainda da
vontade da família que insiste na manutenção da vida da pessoa enferma, sem se
preocupar com as dores profundas que lhe causam o excesso terapêutico,
diminuindo-lhe a dignidade e aumentando-lhe o suplício, em um ambiente hospitalar
frio e impessoal, que só lhe causa tristeza, angústia e extremo desconforto.
1.5 Mistanásia: a Eutanásia Social
O vocábulo Mistanásia possui etimologia grega: mis, que significa infeliz,
miserável e thanatus, que significa morte. Denominada ainda Cacotanásia ou
Eutanásia Social, seria uma forma de morte sofrida, antes e fora da hora, lenta, cruel
e miserável, tendo como causa a desigualdade social e econômica. Na maioria das
vezes ocorre pelo descaso do poder público em relação à classe pobre da
sociedade, surgindo dessa noção, a expressão Eutanásia Social.
O estudo da Mistanásia se torna importante pelo fato de a atual perspectiva
dos direitos da personalidade reclamar por uma “morte digna” e menos dolorosa. “É
neste sentido que a bioética latinoamericana começou a se preocupar com outro tipo
de eutanásia: a eutanásia social. Esta eutanásia social, denominada mistanásia [...]”
(PAOLO; RIBAS; PEREIRA, 2006, p. 274-275). Explicam as mencionadas autoras
que a distinção entre eutanásia e mistanásia está no resultado, sendo que uma
provoca uma morte suave e sem dor e a outra uma morte dolorosa e miserável,
respectivamente.
Um dos grandes contrapontos entre a mistanásia e a eutanásia é o
resultado. Enquanto a mistanásia provoca a morte antes da hora, de
maneira dolorosa e miserável, a eutanásia provoca a morte antes da
hora, de maneira suave e sem dor. É justamente este resultado que
torna a eutanásia tão atraente para tantas pessoas e a mistanásia
invisível para outras. A perplexidade nasce quando nos defrontamos
com a realidade onde uma mesma sociedade oferece a mais alta
tecnologia para o “bem morrer” e nega o indispensável para o “bem
viver” (PAOLO; RIBAS; PEREIRA, 2006, p. 274-275).
31
A eutanásia social acontece por falta de investimento no tratamento de
doentes que necessitam de tratamento prolongado, portanto um tratamento que
apresenta alto custo desestimula o poder público a despender recursos econômicos
para que estes enfermos voltem a ter uma vida produtiva. Cristiano Chaves de
Farias e Nelson Rosenvald (2015) exemplificam a mistanásia citando o exemplo de
um médico que, em caso de acidente, tem que decidir qual das vítimas terá
atendimento em detrimento da outra. Nesse mesmo viés de raciocínio, outra
situação no cotidiano dos hospitais públicos: dois acidentados em estado grave
chegam de ambulância, ambos necessitando de respirador artificial. Até existem
dois médicos de plantão, mas não há dois aparelhos de oxigênio disponíveis (devido
à carência de aparelhamento, que pode ser pela inexistência de outros ou pela falta
de manutenção daqueles existentes, que se encontram com defeito). O médico terá
que escolher dentre dois pacientes qual deles será beneficiado com o atendimento
em detrimento do outro, que poderá vir a óbito. O médico é obrigado a estabelecer
critérios para o atendimento e opta pelo que possui mais chance de cura, deixando
morrer o paciente que se encontra em estado de saúde menos viável. E essa
conduta, não rara nos hospitais públicos do Brasil, tende a se repetir cada vez mais.
Mistanásia é a morte ocasionada em decorrência do abandono do doente
pelo Poder Público, uma situação degradante, na qual a pessoa morre à míngua,
sem mesmo ter sido atendida pelos hospitais públicos, antes mesmo de obter o
status de “paciente”, ou até por abandono no próprio leito hospitalar, por erro médico
ou carência de medicamentos ou aparelhamento (suporte vital) que os hospitais
públicos deveriam oferecer, mas não o fazem. Podem-se destacar, conforme lição
de Luciano de Freitas Santoro, três hipóteses de ocorrência da Mistanásia.
No primeiro grupo, estão as pessoas que sequer chegam a se tornar
“pacientes”, ocorrência mais comum entre os países emergentes ou pouco
desenvolvidos. Os doentes não conseguem ingressar no sistema de saúde vigente
devido a fatores geográficos, políticos e sociais como, por exemplo, os moradores
de rua, ficam à margem da sociedade, caracterizando assim uma omissão de
socorro por parte do Estado (SANTORO, 2012).
No segundo grupo, as pessoas que conseguem encontrar uma unidade
pública de tratamento, porém, devido ao grande número de pacientes e à falta de
estrutura adequada, não alcançam atendimento, desistindo do tratamento ou vindo a
32
óbito nos corredores ou fila de espera do Sistema Único de Saúde do país. Ou às
vezes são até atendidas, mas o número insuficiente de leitos ou de aparelhos
disponíveis obriga os profissionais da saúde a escolherem por atender aos pacientes
que em tese possuem melhores condições de sobrevida em detrimento de outros.
Isso ocorre quando só existe um aparelho ou um só atendimento. Ainda, quando as
pessoas são vítimas de erro médico por erro no diagnóstico, prescrição de
medicamento sem prévio exame, inobservância do dever de cautela involuntário por
parte do médico e unidade de saúde (SANTORO, 2012).
No último grupo, figuram os cidadãos que, embora tenham sido atendidos,
vêm a óbito em consequência de prática médica desidiosa, que submete
intencionalmente a pessoa à morte, menosprezando sua dignidade. Ocorre em
razão do não atendimento adequado aos idosos e pacientes terminais, submetendoos à retirada de órgãos para fins de transplantes antes do diagnóstico de morte
encefálica ou incentivando o pedido de alta com a finalidade de liberar vaga no leito
do hospital (SANTORO, 2012, p. 128). Enfatiza Eduardo Cabette a existência de
uma hipocrisia em relação à promoção da morte digna:
Realmente há uma certa hipocrisia cruel e perigosa na suposta
preocupação com a oferta de uma “morte digna” quando muito pouco
se faz para propiciar o respeito pela dignidade humana dos viventes.
Deve-se tomar sérios cuidados para que não se enverede por um
caminho seletivo em que a alguns seja mantida e assegurada sua
vida digna, reservando a outros, na falta de melhor opção e para que
não atrapalhem o bem-estar dos demais, uma “morte piedosa”
(CABETTE, 2013, p. 32).
A Mistanásia demonstra o desrespeito do poder público pela dignidade da
pessoa humana, uma vez que deveria propiciar não somente a “morde digna”, mas a
vida com qualidade, bem-estar e saúde. Assim, a mistanásia está relacionada à
ausência de políticas públicas de saúde, à má qualidade de vida e inexistência de
programas sociais adequados à população, importantes quesitos que deviam ser
parte integrante do planejamento do governo em busca do cumprimento dos ideias
de cidadania, do princípio da solidariedade e promoção de justiça social.
Maria Helena Diniz a define como “a morte do miserável, fora e antes de seu
tempo, que nada tem de boa ou indolor” (DINIZ, 2007, p. 352). Leo Pessini
apresenta outra hipótese dessa espécie:
33
Em uma sociedade que marginaliza os doentes crônicos e
irrecuperáveis em prol dos agudos e recuperáveis, cujas famílias não
são capazes de cuidar de seus idosos e enfermos, ocorre uma
“morte social”, muito antes do advento da “morte física”, ocorrência
tão grave que Pessini chega a taxar de “eutanásia social”, muitas
vezes pior do que a própria morte. Segundo o eticista, é em virtude
desse abandono, da solidão e do esquecimento que os doentes e
idosos comumente pedem para morrer, quando, na verdade, o que
realmente querem é viver de um modo diferente e melhor. Assim, por
trás do pedido de que seja praticada a eutanásia, “há sempre uma
grave acusação ao corpo social, incapaz de cumprir seus mais
elementares deveres de justiça” (PESSINI citado por VIEIRA, 2012,
p. 256-257).
Na dicção de Pessini, supramencionada, mostra-se a eutanásia social
praticada por pessoas pertencentes ao ambiente doméstico, não pelo Poder Público,
mas pela família do enfermo.
34
2 SOBRE A MORTE E O MORRER DA PESSOA HUMANA
Esta seção apresenta a morte humana, breve abordagem sobre a relação
com a religião, seus mistérios ante o desconhecido e os eufemismos utilizados na
tentativa de torná-la natural. Apresenta ainda as dificuldades de enfrentamento, pois
o homem é o único ser que possui consciência da própria morte, um dos fatos que o
distingue dos demais viventes. Aborda ainda a morte na acepção jurídica e os
critérios de determinação do fim da existência humana segundo os parâmetros da
Medicina.
2.1 Religião: vida, morte e dignidade
Embora a Religião não seja objeto do presente trabalho, conforme
mencionado na Introdução, não se pode deixar de considerá-la, pois, com a
proximidade da morte, a pessoa se preocupa com questões espirituais tais como se
recebeu perdão de Deus, o que ocorrerá após a morte e questionamentos sobre o
sentido da vida (KOVÁSC citada por MARREIRO, 2014). A morte sempre trará
questões a serem enfrentadas, mas,
De maneira geral, o evento morte é complexo e foco de dilemas
éticos, bioéticos e profissionais, no qual emoções precisam ser
trabalhadas e discutidas a partir de princípios bioéticos que podem
ser resumidos por pequena palavra, que importa muito ao paciente
terminal: dignidade (SILVA et al., 2014, p. 359).
Ademais, a morte é uma questão complexa que envolve aspectos fisiológicos,
filosóficos e também religiosos:
Do ponto de vista fisiológico, a morte representa a cessação do
funcionamento dos órgãos vitais, o fim de um processo físicobiológico. No campo espiritual-religioso, adquire a conotação de uma
“passagem” para a imortalidade ou renascimento do ser. Sob a ótica
filosófica, expressa uma condição inerente ao ser, da qual se extrai a
única certeza da existência humana (MARREIRO, 2014, p. 27).
A mesma autora destaca que no início da Era Antiga a medicina e a religião
estavam ligadas de forma que os valores religiosos se sobrepunham aos valores
morais propriamente médicos (MONTE citado por MARREIRO, 2014). Mas com o
35
advento do Código de Hamurabi, no século XV a.C., as diretrizes médicas
começaram a se desvincular da religião (MARREIRO, 2014).
É necessário compreender que há dois discursos em defesa da vida. Embora
um defenda sua sacralidade, outro se atém à autodeterminação, conforme lição de
Pessini e Barchifontaine, que formulam a seguinte indagação: “Qual é o discurso
mais adequado para defender a vida em sua integralidade?” E os apresentam: “No
debate hodierno a questão se polarizou em dois campos, ou seja, os que se definem
pró-vida (pro life), que defendem a sacralidade da vida, e os pró-liberdade de
escolha (pro choice), que empunham a bandeira da qualidade de vida” (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2012, p. 444). Comentam os referidos autores que a
secularização levou à dessacralização da vida e que a inviolabilidade da vida aponta
para uma visão sagrada. Para eles,
O moderno pensamento teológico defende que o próprio Deus
delega o governo da vida à autodeterminação do ser humano e isso
não fere e muito menos se traduz numa afronta a sua soberania.
Dispor da vida humana e intervir nela não fere o senhorio de Deus,
se essa ação não for arbitrária. A perspectiva é responsabilizar o ser
humano de uma maneira mais forte diante da qualidade de vida.
(PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2012, p. 444).
A seguir, apresenta-se uma breve análise sobre como as maiores religiões
reconhecidas no mundo entendem a supressão do excesso terapêutico.
Sob a ótica dos cristãos, a vida é sagrada e não pode ter fim a não ser pelo
próprio Deus, mas sob certas condições, pode-se aceitar a supressão de recursos
médicos aos doentes em irreversível processo de morte se o prolongamento da vida
causar mais danos que benefícios a ele, à família e à comunidade (HURTADO
OLIVER citado por VIEIRA, 2012).
Sendo o Cristianismo a doutrina mais difundida no mundo, possui o maior
número de documentos sobre a Ortotanásia. A posição da Igreja Católica, com base
na Declaração da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, condena todos os
crimes contra a vida, que é um dom divino: “A Declaração se mostra favorável ao
uso de medicamentos capazes de aliviar ou suprimir a dor, mesmo se estes
puderem ter como efeito colateral um estado de semiconsciência ou a redução da
lucidez” (VIEIRA, 2012, p. 154). Em 1980, a Declaração conceituou a eutanásia e a
condenou por ser uma violação à Lei Divina, salientando a proteção à dignidade da
36
pessoa e o conceito cristão de vida contra a denominada “atitude tecnológica que
pode se tornar um abuso” (manifestando-se contra a prática da distanásia). Defende
“o direito a morrer em paz, preservando a dignidade humana e cristã” (VIEIRA, 2012,
p. 154), não o direito de procurar a morte, por meio de atitude própria ou de terceiro.
Em 1995, o Papa João Paulo II, através da Carta Encíclica Evangelium Vitae,
condenou a distanásia, afirmando ser o excesso terapêutico inadequado à situação
prática e real do paciente. Afirma-se, portanto, que a Igreja Católica condena a
prática da eutanásia e da distanásia, todavia, pressupõe-se a admissão da
ortotanásia.
Citando outras religiões cristãs, Leo Pessini explicita a posição da Igreja
Batista, que condena a eutanásia ativa por violar a santidade da vida e defende “o
direito de o indivíduo tomar suas próprias decisões em relação às medidas ou
tratamentos que prolongam a vida” (PESSINI citado por VIEIRA, 2012, p. 156). Já as
Testemunhas de Jeová entendem que, em face de morte inevitável, não se deve
usar meios extraordinários que retardem o processo de morte e que a eutanásia é
assassinato, que viola a santidade da vida (PESSINI citado por VIEIRA, 2012, p.
157).
O Judaísmo, por seu turno, enfrenta a morte, no sentido de que o último
período da doença deve ser encarado como o momento em que paciente deve ser
assistido, consolado e encorajado (SÁ, 2005). Enquanto a eutanásia é ilícita
segundo o ordenamento jurídico dos judeus, a ortotanásia não é considerada prática
ilícita. O Judaísmo permite suspender terapia inútil para que ocorra a morte,
admitindo uso de drogas capazes de controlar o sofrimento, ainda que desse
tratamento resulte abreviação da vida. Já para o Budismo, que não concebe um ser
supremo, criador, a vida não é considerada divina e
[...] a religião não vê a morte como o fim da vida, mas como
transição. O Budismo reconhece o direito das pessoas de determinar
quando deveriam passar desta existência para a seguinte. O
importante não é se o corpo vive ou morre, mas se a mente pode
permanecer em paz e em harmonia consigo mesma (PESSINI, 2002,
p. 266).
O Islamismo, por sua vez, acredita que os direitos humanos emanam de Alá,
e com base no Corão a pessoa humana é o ser mais nobre e digno de honra; proíbe
o homicídio, o suicídio e a eutanásia; entretanto o médico pode obedecer aos limites
37
da vida, sendo injustificável manter o paciente em estado vegetativo ou manter a
vida artificialmente (PESSINI citado por VIEIRA, 2012). Para o Islamismo, no que
tange à ética médica, o Código Islâmico de Ética Médica dispõe que o médico jura
proteger a vida humana em todos os estágios e sob quaisquer circunstâncias,
fazendo o máximo para libertá-la da morte, doença, dor e ansiedade. Depreende-se
que a ortotanásia seja admitida pela religião islâmica. Para Maria de Fátima Freire
de Sá,
[...] torna-se imperioso concluir que o islamismo condena o suicídio e
a eutanásia ativa. Contudo, traz certa simpatia em relação à
ortotanásia, uma vez que condena a adoção de medidas heroicas
para manter, a todo custo, a vida de alguém com morte iminente (SÁ,
2005, p. 70).
Exceto o Budismo, as demais religiões mundialmente reconhecidas são
unânimes em considerar a vida humana como preciosa e sagrada e não adotam a
Eutanásia como uma conduta legítima. Antes a condenam, atribuindo-lhe o mesmo
tratamento dos demais atos cometidos contra a vida, como o homicídio, o suicídio e
o aborto. Entretanto, todas as que foram mencionadas possuem um entendimento
que lhes é comum: a preservação da dignidade e o entendimento de que, quando a
morte se mostra inevitável, não se deve prolongar a vida por meio da utilização de
tratamentos inúteis e de recursos artificiais.
Assim, muitas são as religiões que discutem a vida e a morte, que são
inerentes a todo ser humano, prestigiando a autodeterminação, o que justifica a
reivindicação pela legalidade da prática da Ortotanásia, com fundamento no direito
de morrer dignamente, como extensão do princípio da dignidade da pessoa humana,
que é respeitado unanimemente pelas diferentes religiões.
2.2 A Morte: mistérios e eufemismos
Desde os primórdios dos tempos a morte sempre se apresenta envolta em um
contexto de mistério e ansiedade. Uma série de dúvidas e até mesmo mitos, pois se
trata de uma fase ainda não vivenciada pelas pessoas que acompanham o enfermo.
A morte, como tudo o que é desconhecido, causa insegurança, principalmente
quando se trata da morte da própria pessoa. Elucidando essa noção, Elisabeth
Kübler-Ross comenta:
38
Quando retrocedemos no tempo e estudamos culturas e povos
antigos, temos a impressão de que o homem sempre abominou a
morte, e, provavelmente, sempre a repelirá. Do ponto de vista
psiquiátrico, isto é bastante compreensível e talvez se explique
melhor pela noção básica de que, em nosso inconsciente, a morte
nunca é possível quando se trata de nós mesmos. É inconcebível
para o consciente imaginar um fim real para nossa vida na terra e, se
a vida tiver um fim, este será sempre atribuído a uma intervenção
maligna fora do nosso alcance. Explicando melhor, em nosso
inconsciente, só podemos ser mortos; é inconcebível morrer de
causa natural ou de idade avançada. Portanto, a morte em si está
ligada a uma noção má, a um acontecimento medonho, a algo que
em si clama por recompensa ou castigo (KÜBLER-ROSS, 2012, p.
7).
Kübler-Ross comenta que se recorre a eufemismos para amenizar o impacto,
de modo que o morto pareça adormecido e, como forma de proteger as crianças, os
adultos as impedem que elas vejam o morto, até mesmo que visitem os pais em
estado grave (KÜBLER-ROSS, 2012). Tanto é assim que hesitam em contar às
crianças que a pessoa faleceu, preferindo dizer que o ente querido foi para o céu,
que virou estrelinha e inventam até que um dia voltará. A verdade é que há uma
fuga da realidade, tenta-se não admitir a morte como fato real inerente à vida e à
condição humanas. Parece que quanto mais a ciência evolui, mais se evita conceber
a morte. É o que constata a referida autora: “Quanto mais avançamos na ciência,
mais parece que tememos e negamos a realidade da morte” (KÜBLER-ROSS, 2012,
p. 11). E acrescenta a autora:
Há muitas razões para se fugir de encarar a morte calmamente. Uma
das mais importantes é que, hoje em dia, morrer é triste demais sob
vários aspectos, sobretudo é muito solitário, muito mecânico e
desumano. Às vezes é até mesmo difícil determinar tecnicamente a
hora exata em que se deu a morte. Morrer se torna um ato solitário e
impessoal porque o paciente não raro é removido de seu ambiente
familiar e levado às pressas para uma sala de emergência. [...] Só
quem sobreviveu a isto é que pode aquilatar o desconforto e a fria
necessidade deste transporte, começo apenas de uma longa
provação, dura de suportar quando se está bem, difícil de traduzir em
palavras quando o barulho, a luz, as sondas e as vozes se tornam
insuportáveis (KÜBLER-ROSS, 2012, p. 11-12).
A utilização de eufemismos impede que as novas gerações aprendam a
conviver com a realidade da morte de forma leve e natural.
39
Norbert Elias aborda outra questão que é o progressivo afastamento das
pessoas a partir da enfermidade até a morte:
O afastamento dos vivos em relação aos moribundos e o silêncio que
gradualmente os envolve continuam depois que chega o fim. Isso
pode ser visto, por exemplo, no tratamento dos cadáveres e no
cuidado com as sepulturas. As duas atividades saíram das mãos da
família, parentes e amigos e passaram para especialistas
remunerados (ELIAS, 2001, p. 37).
Neste novo milênio se tornou natural a família terceirizar o preparo do cadáver
para o velório e os cuidados em relação à sepultura, entretanto o autor destaca que
esse distanciamento começa a ocorrer em vida, na fase em que a pessoa apresenta
maior fragilidade, que é o final da vida. Assim, no momento mais delicado da
existência, quando a pessoa já se encontra fragilizada pelas questões emocionais
somadas àquelas advindas do mau estado de saúde, resta-lhe o ambiente frio,
impessoal e até desumano. Cercada de aparelhos por todos os lados, atendida em
suas necessidades por pessoas que lhe são estranhas, vê-se numa ilha, isolada da
família, das pessoas a quem ama, de seus objetos pessoais e distante do ambiente
aconchegante que lhe é familiar. “Pouco a pouco, e inevitavelmente, [o paciente]
começa a ser tratado como um objeto. Deixou de ser uma pessoa. Decisões são
tomadas sem o seu parecer” (KÜBLER-ROSS, 2012, p. 13). Por esse motivo, desde
a consagração da dignidade, a Medicina começa a caminhar rumo à humanização,
buscando oferecer melhores condições de vida e de morte às pessoas.
2.3 Enfrentamento: a morte como parte da existência humana
Dentre os seres viventes, o homem é o único que possui consciência de que,
desde o momento que nasce, caminha para a morte e, por este motivo, salienta
Norbert Elias, “a morte constitui um problema só para os seres humanos” (ELIAS,
2001, p, 10). Comenta ainda o referido autor:
Embora [os seres humanos] compartilhem o nascimento, a doença, a
juventude, a maturidade, a velhice e a morte com os animais, apenas
eles, dentre todos os vivos sabem que morrerão; apenas eles podem
prever seu próprio fim, estando cientes de que pode ocorrer a
qualquer momento e tomando precauções especiais – como
indivíduos e como grupos – para proteger-se contra a ameaça da
aniquilação (ELIAS, 2001, p. 10).
40
Na mesma linha de intelecção, Cecília Lôbo Marreiro adverte: “O homem é o
único ser, dentre outro animais, que tem consciência da sua morte e, como tal,
chega a temê-la, haja vista associá-la com a perda de sua individualidade”
(MARREIRO, 2014, p. 27). Sem dúvida, a consciência de que a morte é certa, aliada
ao fato de não se saber quando e como ocorrerá, traz uma série de incertezas,
inseguranças e até medo, pois a morte foi e sempre será um momento cercado por
muitas dúvidas, exatamente porque quem a experimentou fica impossibilitado de
compartilhar suas experiências com aqueles que permanecem vivos, na certeza de
que irão vivenciá-la um dia. Diana Agrest constata que “[...] sólo el ser humano es
capaz d reflexionar sobre su propia existencia y tomar la decisión de prolongarla o
de ponerle un punto final” (AGREST, 2007, p. 18).
É indispensável o enfrentamento objetivo dessa fase pelo enfermo e sua
família e a consciência das pessoas de que a morte é parte da vida humana, uma
fase pela qual todos hão de passar. Necessário então buscar formas de enfrentá-la
assertivamente, com a máxima naturalidade possível, escolhendo aquilo que
proporciona maior bem-estar e tranquilidade para esse momento que é tão
significativo quanto todas as outras fases da existência humana.
A Ortotanásia visa erradicar, ou pelo menos minimizar, o sentimento
desumano das UTIs e dos frios ambientes hospitalares. Trata-se do fenômeno da
humanização da morte, que busca oferecer ao enfermo condições psicossociais e
de saúde capazes de promover uma morte tranquila e sem dor ou, pelo menos, com
um mínimo de dor, por meio da adoção de cuidados paliativos que visam somente
trazer bem-estar ao doente, atenuando-lhe as dores e o sofrimento. Norbert Elias
ressalta que é preciso ajustar condutas para esse enfrentamento da morte:
Finalmente, podemos encarar a morte como um fato de nossa
existência; podemos ajustar nossas vidas, e particularmente nosso
comportamento em relação às outras pessoas, à duração limitada de
cada vida. Podemos considerar parte de nossa tarefa fazer com que
o fim, a despedida dos seres humanos, quando chegar, seja tão fácil
e agradável quanto possível para os outros e para nós mesmos; e
podemos nos colocar o problema de como realizar essa tarefa.
Atualmente, essa é uma pergunta que só é feita de maneira clara por
alguns médicos – no debate mais amplo da sociedade, a questão
raramente se coloca (ELIAS, 2001, p. 8).
41
Aqui, o autor Norbert Elias (2001) alude à necessidade de se promover um
ambiente saudável e confortável para o momento da morte e enfatiza a inexistência
de debates na sociedade sobre a morte humana, em que condições ela deve
ocorrer, os cuidados a serem adotados, as preferências e as necessidades do
doente. Essas discussões necessitam ocorrer primeiro no âmbito acadêmico, no
qual são despertados os questionamentos científicos para, a partir de então, ganhar
espaço aos poucos, até atingir os demais segmentos da sociedade brasileira.
Inclusive, em São Paulo, já se verifica essa preocupação – uma das formas efetivas
de enfrentamento da morte. Um segmento da sociedade se reúne na Pousada Ziláh,
nos Jardins, zona oeste para discutir questões relativas à morte, conforme texto de
Camila Appel na Folha Online, em reportagem veiculada no dia 25/04/2015 (Cf.
ANEXO 3):
Mulheres e homens de 30 a 75 anos aos poucos se aconchegam na
pousada Ziláh, nos Jardins (zona oeste de São Paulo), para falar
sobre um assunto incomum e, à primeira vista, obscuro: a morte.
É a quarta reunião do Death Cafe Sampa, primeiro representante no
Brasil da organização mundial de "cafés da morte".
O modelo foi elaborado a partir dos conceitos de Bernard Crettaz, um
sociólogo e antropólogo suíço, pioneiro na ideia de formar espaços
para falar sobre a morte. Desde setembro de 2011, já foram
oferecidos 1.774 encontros pelo mundo. Qualquer pessoa pode abrir
um em sua cidade, ou seja, organizar um grupo de discussão sem
agenda específica, utilizando o nome, a metodologia e os meios de
divulgação da franquia (APPEL, 2015).
Essa iniciativa demonstra que as pessoas começam a pensar no
enfrentamento objetivo e realista, procurando se preparar para lidar com a morte da
forma mais natural e equilibrada, visando tranquilidade para os seus derradeiros
dias. A classe médica começa a pensar em como participar efetivamente para a
promoção da morte de forma objetiva, transpondo a luta pela vida para alcançar
conforto: “Para que isso ocorra, faz-se essencial que seja ministrado o ensino sobre
a morte e o morrer na formação acadêmica e o debate constante do tema durante a
atuação profissional” (SILVA et al., 2014, p. 359). É necessário que todos os
segmentos da sociedade se preocupem em debater formas de enfrentamento da
morte com objetividade, a fim de proporcionar segurança, conforto e bem-estar
àquele que caminha para o final da existência.
42
A compreensão da morte como fase da existência humana precisa ser
enfrentada com naturalidade desde a infância. Nesse sentido, adverte Klüber-Ross
que desde criança as pessoas devem conviver com a realidade da morte. Permitirlhes interagir de forma consciente e solidária com os doentes que lhe são queridos
irá trazer-lhes benefícios para ambas as partes: para o doente, que se sente amado,
e para elas próprias. Inclusive, o fato de vivenciarem uma dor compartilhada trazlhes a consciência de que não estão sozinhas no momento de perda, segundo lição
de Klüber-Ross:
O fato de permitirem que as crianças continuem em casa, onde
ocorreu uma desgraça, e participem da conversa, das discussões e
dos temores, faz com que não se sintam sozinhas na dor, dando-lhes
o conforto de uma responsabilidade e luto compartilhados. É uma
preparação gradual, um incentivo para que encarem a morte como
parte da vida, uma experiência que pode ajudá-las a crescer e
amadurecer (KÜBLER-ROSS, 2012, p. 10).
É necessário que se busquem formas de enfrentamento da morte como
realidade, como fase da existência humana, cabendo à família e à sociedade, numa
tomada de consciência e consequente mudança de postura, promoverem debates,
discussões ou mesmo conversas informais sobre a temática. Isso objetivando
atravessar de forma mais leve o momento de passarem por situações de doença
grave seguida de perda de alguém da família, fazendo-se suporte uns para os
outros, vivenciando a dor compartilhada. Não mais enxergando a morte como
derrota, desespero e mitos, condutas que em nada contribuem para tornar esse
momento uma etapa a ser vencida com objetividade e serenidade, oferecendo,
inclusive, ao doente apoio emocional para que se sinta amado.
2.4 Direito: a morte como fim da existência humana
O vigente Código Civil Brasileiro (CCB) estabelece que se inicia a
personalidade civil da pessoa a partir do seu nascimento com vida, ressalvados os
direitos do nascituro (ser humano que está por nascer), a partir da concepção (art.
2º). Desde o momento em que a pessoa adquire personalidade civil, todo ser
humano torna-se, para a ciência jurídica, uma pessoa natural, capaz de adquirir
direitos, de contrair obrigações e assumir deveres (art. 1º do vigente Código Civil).
43
No outro extremo, está a morte: fase da vida que marca o final da existência
humana. Os civilistas Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald asseveram
que “A morte completa o ciclo vital da pessoa humana. É o fim da existência
humana” (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 305).
A morte encerra a existência humana e produz uma série de efeitos jurídicos
cujo principal deles é extinguir a personalidade humana. A ocorrência da morte
pressupõe existência de vida, somente a pessoa viva pode morrer. O Código Civil
apresenta a morte real (art. 6º do CCB) e a presumida (art. 7º do CCB). Enquanto a
morte real ocorre em situações nas quais se tem materialidade (corpo), a morte
presumida pode ser decretada judicialmente sem materialidade (em situações
específicas em que se possa presumi-la pelas circunstâncias extraordinárias em que
ocorrem, como explosões, acidentes aéreos e outras).
A morte real, a que particularmente interessa à análise da Ortotanásia, se dá
com o diagnóstico de paralisação das atividades encefálicas (artigo 3º, da Lei nº
9.434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano
para fins de transplante e tratamento). A morte então é atestada por um médico para
que juridicamente possa produzir os efeitos pretendidos. Assim,
[...] o acolhimento do critério de morte encefálica impõe a
participação direta do médico para a comprovação do óbito, o que
não está, a toda evidência, ao alcance da ciência do Direito, dizendo
respeito aos domínios da Medicina. Assim, somente após a
declaração médica é que será possível lavrar a certidão de óbito, no
cartório do registro civil competente (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p.
307).
Entre o nascimento e a morte se desenvolvem as diversas situações de vida,
as manifestações da personalidade, a aquisição de direitos, a assunção de
obrigações e a forma como o ser humano irá lidar com as questões fundamentais de
sua existência – como objetivos, escolhas, decisões e, inclusive, o modo como irá
encarar o viver e o morrer. Entre os direitos de que goza a pessoa humana, está a
autodeterminação. Nesse contexto, surge a reflexão acerca da adoção da
Ortotanásia, uma escolha consciente da forma como se vai enfrentar a morte no
tempo certo, com dignidade e em paz. Interessa à presente abordagem, não a morte
em relação a seus efeitos, mas os momentos que a antecedem, as reflexões do
44
paciente que passa por uma doença em fase de terminalidade, sua percepção da
vida e a busca por uma morte serena.
2.5 Medicina: o critério da morte cerebral
Na Antiguidade, o coração era considerado como principal órgão vital, o
último a morrer. O cérebro não era conservado no processo de mumificação, não
sendo contemplado como parte nobre do corpo humano (PITA; CARMONA citados
por MARREIRO, 2014). Em 1628, a descrição do sistema circulatório de William
Harvey era determinante para a morte clínica, como consequência da paralisação
dos batimentos cardíacos, mas a necropsia era proibida pela Igreja, o que dificultava
inovações médicas quanto à determinação da morte (KOVÁSC citada por
MARREIRO, 2014). Até o século XVIII não havia participação médica na detecção
do óbito; a confirmação da morte era realizada pela família, a partir da constatação
da parada cardiorrespiratória (MARREIRO, 2014). No século XIX a definição de Atria
Mortis levava em conta o coração, os pulmões e o cérebro como órgãos nobres, e a
irreversibilidade da função de qualquer desses órgãos importaria falência do
organismo e consequente morte.
Contemporaneamente, busca-se a imortalidade humana, um ideal de
postergação irracional da morte que encontrou respaldo na biotecnologia
(MARREIRO, 2014). Ao final dos anos 80, foram desenvolvidos sofisticados
equipamentos de recuperação e preservação de funções vitais, uma revolução
tecnológica e científica destinada às doenças graves, agudas e crônicas (OLIVEIRA
citado por MARREIRO, 2014). Estabelece-se um novo conceito de morte e a
concepção de vida passa a ser determinada pela atividade dos neurônios no
encéfalo, que, lesionado de forma irremediável e irreversível, conduzirá ao
diagnóstico de morte encefálica e morte clínica, legal e social.
Entretanto, surgiu a partir do primeiro transplante cardíaco (em 1967,
realizado na Cidade do Cabo, África do Sul, por Chistian Barnard) a necessidade de
redirecionar o conceito de morte para o âmbito cerebral. O conceito de morte foi
então redefinido no Harvard Ad Hoc Committee (nos EUA, 1968), constituído por dez
médicos da Harvard University, um teólogo, um jurista e um historiador (MARREIRO,
2014, p. 49). Em 1983 a 35ª Assembleia Mundial Médica (Veneza, Itália) emendou a
Declaração de Sidney da 22ª Assembleia Mundial Médica (Austrália, 1968),
45
determinando que o critério definidor do momento da morte é a morte encefálica,
com a consequente suspensão de ressuscitação, consoante expõem Leo Pessini e
Christian Barchifontaine, citando a referida Declaração:
[...]
4. É essencial determinar a cessação de todas as funções, de todo o
cérebro, o bulbo raquiano. Essa determinação se baseará no juízo
clínico suplementado, se for necessário, por certo número de
diagnósticos. Sem dúvida, nenhum critério tecnológico é totalmente
satisfatório no estado atual da medicina, como tampouco nenhum
procedimento tecnológico pode substituir o juízo geral do médico. No
caso de transplante de um órgão, o estado de morte deve ser
determinado por dois ou mais médicos, os quais não devem ter
relacionamento ou pertencer à mesma equipe que realiza o
transplante.
5. A determinação do estado de morte de uma pessoa permite, do
ponto de vista ético, suspender as tentativas de ressuscitação e, em
países onde a lei permite, extrair órgãos do cadáver sempre que se
tenham cumprido os requisitos legais de consentimento (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2012, p. 386).
No
Brasil,
aduz Marreiro
(2014)
que
a
Lei
Federal
Nº
9434/97,
supramencionada, que regula os transplantes, delegou ao Conselho Federal de
Medicina a normatização do diagnóstico de morte, originando a Resolução Nº
1.480/97 do CFM, que dispõe:
Art. 1º. A morte encefálica será caracterizada através da realização
de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo
variáveis, próprios para determinadas faixas etárias.
Art. 2º. Os dados clínicos e complementares observados quando da
caracterização da morte encefálica deverão ser registrados no "termo
de declaração de morte encefálica".
Parágrafo único. As instituições hospitalares poderão fazer
acréscimos ao presente termo, que deverão ser aprovados pelos
Conselhos Regionais de Medicina da sua jurisdição, sendo vedada a
supressão de qualquer de seus itens (BRASIL. CFM. PORTAL
MÉDICO, 1997).
A partir de então, as referidas resoluções, que regem as condutas médicas,
passaram a adotar a morte cerebral como critério de determinação do momento da
morte.
46
3 ORTOTANÁSIA COMO TEMA INTERDISCILINAR
Esta seção apresenta o aspecto interdisciplinar da Ortotanásia em suas
interfaces com a Filosofia, o Direito e a Medicina, o que se coaduna com a proposta
interdisciplinar
do
Laboratório
de
Cognição
e
Linguagem,
abordando
a
interdisciplinaridade do tema, os diálogos que se estabelecem em torno da
Ortotanásia e as questões que envolvem a morte humana.
3.1 Interdisciplinaridade da Ortotanásia: um tema multifacetado
A Ortotanásia é um tema interdisciplinar em essência, por implicar diversas
ciências de naturezas diferentes como a Bioética (questões éticas referentes à vida),
o Biodireito (questões de direito afetas à vida) e a Biomedicina (questões atinentes à
Medicina) em suas interfaces, buscando analisar em que contextos se relacionam e
dialogam. Justifica-se o viés dessa abordagem pela forma como as ciências
interagem com a temática, tendo em vista que a Ortotanásia, por si só, já apresenta
caráter interdisciplinar pelo fato de seu objeto ser fruto de duas ciências que se
fundem de modo a originar terceiras – Bioética, Biodireito e Medicina.
Traça-se a interdisciplinaridade na medida em que se viabiliza estabelecer
diálogo entre duas ciências para formar uma terceira. Assim, quando se tece a
interdisciplinaridade entre a Ortotanásia e a Ética, é possível vislumbrar uma nova
ciência, a Bioética. Quando esse diálogo se perfaz entre Ortotanásia e Direito, terse-á o Biodireito. De igual modo, quando a Ortotanásia é estudada à luz das
interfaces com a Medicina, o resultado é a Biomedicina. Somam-se ciências com
características novas e conceitos ressignificados para atender às peculiaridades de
uma temática específica.
O conceito de interdisciplinaridade chega ao Brasil a partir de 1960, buscando
respostas às dicotomias da ciência moderna ou clássica, apresentando-se como um
modo inovador de produção de conhecimento, ao mesmo tempo como alternativa e
complemento do modo disciplinar do pensamento (ALVARENGA, 2011).
Salienta Hilton Japiassu que
[...] o papel específico da atividade interdisciplinar consiste,
primordialmente, em lançar uma ponte para ligar as fronteiras que
haviam sido estabelecidas anteriormente entre as disciplinas com o
47
objetivo preciso de assegurar a cada uma seu caráter propriamente
positivo, segundo modos particulares e com resultados específicos
(JAPIASSU, 1976, p. 75).
Seguindo essa linha de intelecção, passou-se a buscar a comunicação e os
pontos convergentes entre as disciplinas, combinando-as de forma a se construírem
novos conhecimentos a partir daqueles já conhecidos no âmbito das disciplinas que
originam uma nova disciplina, essa ampliação do saber. Começam a ruir assim as
ideias segmentadas, fragmentadas, que cedem lugar a uma nova concepção de
saberes obtidos por meio de intercâmbio, de combinações e de complementaridade.
Necessário, primeiramente, explicar como se perfaz a interdisciplinaridade,
que não se faz mediante simples soma de diferentes saberes segmentados, mas
conforme explica Japiassu,
[...] o espaço do interdisciplinar, quer dizer, seu verdadeiro horizonte
epistemológico, não pode ser outro senão o campo unitário do
conhecimento. Jamais esse espaço poderá ser constituído pela
simples adição de todas as especialidades nem tampouco por uma
síntese de ordem filosófica dos saberes especializados (JAPIASSU,
1976, p. 74).
Já não é mais possível viver em um mundo globalizado conservando
conhecimentos que se manifestam de forma estanque. Entendeu a CAPES que a
interdisciplinaridade é “onde se faz a relação entre os saberes, o encontro entre o
teórico e o prático, o filosófico e o científico, a ciência e a tecnologia, apresentandose, assim, como um saber que responde aos desafios de um saber complexo”
(CAPES, 2008, p. 2, citada por ALVARENGA, 2011). Assim, autores
[...] avançaram além das fronteiras disciplinares, articulando,
transpondo e gerando conceitos, teorias e métodos, ultrapassando
os limites do conhecimento disciplinar e dele se distinguindo, por
estabelecer pontes entre diferentes níveis de realidade, diferentes
lógicas e diferentes formas de produção do conhecimento (CAPES,
2008, citada por ALVARENGA, 2011, p. 25).
Gusdorf propõe com a interdisciplinaridade “integrar o conhecimento e
humanizar a ciência, tendo como princípio básico considerar o homem como ponto
de partida e ponto de chegada do conhecimento científico” (GUSDORF citado por
ALVARENGA, 2011, p. 20). Visão esta cujo fio condutor passa pela noção do
48
respeito à dignidade da pessoa humana, um assunto interdisciplinar, de direitos
humanos, em franco expansionismo, a partir do momento em que a Declaração
Universal dos Direitos Humanos estabeleceu em seu artigo 1º a liberdade, a
igualdade e a dignidade como princípios vetores.
A Ortotanásia, assunto de natureza interdisciplinar por excelência, conforme
já destacado, tem provocado debates concernentes às questões éticas e à
legalidade em face do Biodireito, da Bioética e da Biomedicina – interdisciplinares
por si sós. Faz-se necessário compreender a pertinência da Ortotanásia com o
Biodireito, que estuda as dimensões legais das ciências da vida e da saúde num
contexto interdisciplinar com o Direito. Importa aos estudos centralizarem a pessoa
humana em dois momentos cruciais, em conformidade com o que ensina Pegoraro,
“o ser humano especialmente considerado em dois momentos: o nascimento e a
morte” (PEGORARO citado por VIEIRA, 2012).
Segundo Santoro, o Biodireito apresenta função decisiva para a incorporação
dos princípios fundamentais da Bioética ao ordenamento jurídico pátrio, como o
princípio da autonomia, da beneficência, da não maleficência e da justiça
(SANTORO, 2012). O Biodireito desempenha papel fundamental na percepção da
Ortotanásia como técnica adequada ao paciente terminal, capaz de minimizar seus
dramas, por viabilizar melhores e mais adequadas respostas da Medicina às
questões enfrentadas na circunstância da morte iminente. Qualquer que seja a
decisão a ser tomada deve-se buscar a solução capaz de produzir maior bem-estar:
o que não prejudica, o que respeita a autonomia e o que é justo.
Na década de 50, nasce a Biomedicina, na segunda reunião anual da
Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência, realizada em Curitiba. O professor
Leal Prado ditou as noções básicas que deveriam nortear os cursos de graduação e
pós-graduação em Ciências Biomédicas:
De acordo com o Conselho Regional de Biomedicina, o objetivo de
uma faculdade de Biomedicina deve ser: “apresentar biomédicos
com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, para atuar
em todos os níveis de atenção à saúde, com base no rigor científico
e intelectual, capacitado ao exercício de atividades referentes às
análises clínicas, citologia oncótica, análises hematológicas, análises
bromatológicas, análises moleculares, produção e análise de
bioderivados, análises ambientais, bioengenharia e análises por
imagem, pautado em princípios éticos e na compreensão da
realidade cultural, social e econômica do seu meio, dirigindo sua
atuação para a transformação da realidade em benefício da
49
sociedade”. Enfim, o estudante de biomedicina precisa ter sempre
em mente a noção de que para toda pergunta deve existir uma
resposta. E, em ciência, essa resposta só será solucionada se ele
tiver uma base sólida o suficiente, tanto em teoria científica quanto
em prática laboratorial (BRASIL. CONSELHO FEDERAL DE
BIOMEDICINA, acesso em 05/05/2015).
Assim, a Biomedicina veio ocupar um segmento do mercado da saúde que
trata das questões médicas afetas às diversas atividades laboratoriais que dizem
respeito à vida humana. Constitui-se uma ciência, surgida a partir de duas outras,
com novos objetivos e perspectivas destinada à compreensão e ao estudo de novas
transformações que visam beneficiar a sociedade.
O progresso humano na área social, de saúde, filosófica e tecnológica trouxe
expressivos avanços para as ciências, principalmente para a médica e a jurídica. E,
a partir do momento em que o princípio da dignidade da pessoa humana ganhou
relevo com o Estado Social, sobretudo, no Brasil, com a Constituição Cidadã de
1988, o ser humano passa a ser visto como um ser complexo. Agora, considera-se o
homem em sua essência, o que implica protegê-lo em sua dignidade, enxergando-o
no momento da morte por uma perspectiva contemporânea. Uma visão não mais
conservadora de cega proteção à vida em que se justificava todo tipo de tratamento,
inclusive aqueles extremamente dolorosos, degradantes e fúteis, buscando agora
promover a morte em condições de dignidade.
O primeiro conceito de Bioética adveio dos estudos de Van Rensselder Potter,
em 1971, no livro, Bioethics: a bridge to the future. Para ele, “[...] a bioética seria
uma nova disciplina que permitiria a participação do ser humano na evolução
biológica e preservação da harmonia universal através do recurso às ciências
biológicas, melhorando a sua qualidade de vida”. O autor corrobora a noção de que
“a bioética apresenta um conteúdo interdisciplinar” (SANTORO, 2012, p. 99; 100).
Jean Piaget salienta a noção de interdisciplinaridade apresentada por
Santomé: “a finalidade de recompor ou reorganizar os âmbitos do saber, através de
uma série de intercâmbios que na verdade consistem de recombinações
construtivas que superam as limitações que impedem o avanço científico” (JEAN
PIAGET citado por ALVARENGA, 2011, p. 37).
Por esse raciocínio, é possível combinar os conteúdos referentes à
Ortotanásia com aqueles relativos à Ética, que, por sua vez, constituem objeto de
estudo da Bioética, que trata das questões morais relativas à vida. E assim,
50
sucessivamente, se recompondo com novos conteúdos em novas dimensões que
originam o Biodireito e a Biomedicina.
3.2 A proposta de uma abordagem interdisciplinar da Ortotanásia
No que tange à Bioética, tem-se uma discussão sobre a ética de se optar por
morrer de forma livre de medicamentos, somente com tratamentos paliativos,
capazes de minorar a dor e melhorar a qualidade de vida do paciente terminal.
Elegeu-se a teoria utilitarista para justificar a prática de se buscarem resultados
capazes de maximizar a felicidade.
No âmbito do Biodireito, se, por um lado, considerável parte da doutrina civil
opina favoravelmente à aplicação da Ortotanásia, com base no respeito à pessoa,
sua dignidade e liberdade de autodeterminação; por outro, parte minoritária da
doutrina criminal entende pela ilicitude, vislumbrando nessa conduta uma hipótese
de crime contra a vida. Há ainda a abordagem de cunho constitucional que tange
aos direitos fundamentais, em defesa da dignidade da pessoa humana – mais que
um princípio, o axioma do ordenamento jurídico.
No aspecto da Medicina, destacam-se as disposições das Resoluções do
Código de Ética Médica e outras do Conselho Federal de Medicina que caminham
no sentido de legitimar a prática da Ortotanásia, sempre com fundamento no
respeito à pessoa, às suas escolhas e à sua vontade manifestada de forma livre e
consciente (suas decisões).
51
4 ASPECTOS FILOSÓFICOS DA ORTOTANÁSIA
As questões filosóficas da Ortotanásia são apresentadas nesta seção. Para
tanto, será feita breve abordagem da Bioética, passando pelo conceito, os princípios
a ela referentes, paradigmas e a teoria utilitarista, que preconiza como ato bom
aquele que por suas consequências produz mais felicidade, ou seja, otimiza a
felicidade.
4.1 Bioética: a ética na hora da morte
Marconi de Ó Catão comenta que a palavra Ética se origina do grego Ethos,
sendo a “primeira denominação do correto proceder, tanto assim que toda profissão
regulamentada tem seu Código de Ética” (CATÃO, 2004, p. 30). A Ética expressa
uma atitude da pessoa para consigo mesma, para com os outros e para com o
mundo, vai além da moralidade e da justiça (CATÃO, 2004).
O mesmo autor inicia a noção de princípios da Bioética com a seguinte
reflexão:
Desde os primórdios, pensou-se a Bioética como fonte de normas,
regras gerais e princípios, cujo objeto principal seria o de disciplinar
eticamente o trabalho de investigação científica e o de aplicação de
seus
resultados,
protegendo
a
biologia
das
ameaças
desumanizadoras (CATÃO, 2004, p. 38).
Pode se inferir a partir de Catão a existência de uma preocupação latente da
Bioética em relação à humanização – fenômeno este que não pode se restringir à
vida, mas deve alcançar também o momento da morte.
4.1.1 Conceito
A expressão Bioética, segundo Callioli (citado por NAMBA, 2009, p. 8), surgiu
em 1971 na obra Bioethics: bridge to the future, de Van Renssealaer Potter, para
quem a finalidade da Bioética “é auxiliar a humanidade no sentido de participação
racional no processo de evolução biológica e cultural. O meio ambiente seria o cerne
da pesquisa” (NAMBA, 2009, p. 8). Potter, oncologista norte-americano, cunhou o
52
neologismo Bioethics, em 1970, tendo sido chamado de “pai da bioética” (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2014, p. 35). Pessini e Barchifontaine afirmam que
Potter pensa a bioética como uma ponte entre a ciência biológica e a
ética. Sua intuição consistiu em pensar que a sobrevivência de
grande parte da espécie humana, numa civilização decente e
sustentável, dependia do desenvolvimento e manutenção de um
sistema ético (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p. 37).
Para Potter, a Bioética “é a ponte entre as ciências e as humanidades”
(POTTER citado por NAMBA, 2009, p. 8). Portter entende a Bioética como uma
ciência que estabelece conexões ente as ciências de forma ampla e as ciências que
estudam diferentes aspectos da vida humana, como é o caso do nascimento e da
morte da pessoa. A bioética no início dos anos 70 objetivou encorajar a reflexão
pública e profissional em questões de urgência como: “1) responsabilidade em
manter a ecologia generativa do planeta, da qual depende a vida e a vida humana; e
2) as futuras implicações dos rápidos avanços nas ciências da vida em relação a
potenciais
modificações
de
uma
natureza
humana
maleável”
(PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2014, p. 40).
Em seu livro pioneiro, intitulado Bioetichs: bridge to the future,
publicado em 1971, Potter discorreu sobre a biologia evolutiva, uma
habilidade humana crescente de alterar a natureza e a natureza
humana, bem como sobre as implicações de seu poder para nosso
futuro global. Outros cientistas da vida naquele momento, como
Bentley Glass, Paul Bert e Paul Ehrlich, estavam entre os muitos
interessados em refletir sobre a revolução biológica em relação à
eugenia, a engenharia de novas formas de vida e ética da população.
A bioética surge a partir de preocupações dos biólogos, que se
sentiram obrigados a refletir sobre o significado moral da biosfera e
sobre as implicações fantásticas de suas descobertas e inovações
tecnológicas (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p. 40).
Segundo Marconi de Ó Catão,
[...] é a Bioética ramo da ética filosófica, fruto de um tempo, de uma
cultura e uma civilização. E, como é notório, a Bioética tornou-se o
campo mais dinâmico do renascimento da ética e um dos setores
mais sugestivos da reflexão filosófica (CATÃO, 2004, p. 33).
53
Para o autor supramencionado a fusão da ética com a ciência da vida originou
a Bioética, associando a cultura humanística à tecnocientífica das ciências naturais,
um “estudo multidisciplinar, preocupado com os reflexos do comportamento humano
ante o avanço das ciências biológicas (CATÃO, 2004, p. 48). A partir dessa noção, a
Bioética começa a se preocupar com a relação médico-paciente, consoante lição de
Pessini e Barchifontaine:
Ao lado da bioética como um momento intelectual entre os cientistas
da vida, emergiu o campo da ética médica, que era velho e novo ao
mesmo tempo. Era velho no sentido que os médicos desde sempre
refletiram sobre os seus deveres profissionais com seus pares. Era
no novo sentido de que esta reflexão estava ocorrendo num diálogo
aberto com teólogos e filósofos, e muito atento com a preocupação
pública maior sobre direitos civis e “o declínio da autoridade”. A
discussão emergente rapidamente envolveu todas as profissões da
saúde (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p. 40).
Em 1978 Reich ensinava a Bioética como “estudo sistemático da conduta
humana na área da vida e da atenção à saúde, enquanto que esta conduta é
examinada à luz dos princípios e valores morais” (REICH citado por NAMBA, 1978,
p. 9). Sob o olhar de Reich a Bioética se ocupa especificamente da saúde sob a
ótica dos valores morais da sociedade e por este motivo estuda as questões
referentes à reprodução humana medicamente assistida.
No início da década de 80, o movimento da bioética ganhava espaço, sendo
criados cursos para professores em escolas médicas e muitos profissionais da
saúde passaram a fazer parte de comitês hospitalares de ética, participando de
cursos e seminários. A bioética foi concebida como resposta às novas tecnologias
em medicina, gestada em cultura sensível a dimensões éticas, em especial, ao
direito dos indivíduos e ao abuso das instituições poderosas, em defesa vigorosa
das necessidades e preferências dos pacientes (PESSINI; BARCHIFONTAINE,
2012).
Para se compreender o conceito de Bioética, recomendam Pessini e
Barchifontaine, é fundamental consultar a obra Encyclopedia of Bioethics
(Enciclopédia de Bioética), lançada nos Estados Unidos em três edições distintas:
1978, 1995 e 2004, segundo a qual a bioética se desenvolveu a partir de duas
questões centrais trazidas pelos cientistas da vida e as questões que surgiram a
partir dos avanços da medicina. A obra apresenta os cuidados de saúde e ética
54
médica, além das inquietações dos anos 70 ligadas ao meio ambiente e à saúde
pública (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014).
A pioneira edição (1978) entende bioética como estudo sistemático da
conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, à luz dos valores e
princípios morais, abarcando a ética médica sem a ela se limitar, constituindo
conceito amplo, com quatro importantes aspectos: problemas relativos aos valores
que surgem em todas as profissões de saúde; pesquisas biomédicas e
comportamentais; questões sociais relacionadas com a saúde ocupacional e
internacional e com a ética no controle de natalidade; compreende questões
relativas
à
vida
dos
seres
viventes,
animais
e
das
plantas
(PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2014).
A segunda edição (1995) define a Bioética como estudo das dimensões
morais (visão, decisão, conduta e normas morais) das ciências da vida e da saúde
no contexto interdisciplinar, incluindo novas questões, dentre outras: relação
profissional-paciente, bioética e ciências sociais, cuidados em saúde, fertilidade e
reprodução humana, pesquisa biomédica e comportamental, saúde mental e
questões de comportamento, sexualidade e gênero, sobre a morte e o morrer,
doação e transplante de órgãos, bem-estar e tratamento dos animais, meio ambiente
e inúmeras diretrizes éticas de organismos nacionais e internacionais (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2014).
A terceira edição (2004), quando a Bioética já tem reconhecimento científico e
público, contando com mais de quatro décadas de história, a Enciclopédia passou
por nova revisão e atualização. Apresenta uma ampliação com 110 novos verbetes e
quase o mesmo número de novos artigos, apresentados sob os antigos títulos,
sendo completamente nova metade desta edição (PESSINI; BARCHIFONTAINE,
2014). Nessa edição foi incluída uma gama de novos assuntos tais como:
bioterrorismo, holocausto, imigração, saúde humana, nutrição e hidratação artificiais,
questões éticas de diagnóstico e tratamento em oncologia, demência, diálise renal,
não reanimação, artigos sobre clonagem e pediatria, tópicos sobre reprodução,
fertilidade, transplantes, morte e morrer, políticas públicas e saúde mental, entre
outras, (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014). Os autores destacam as questões
sobre a morte e morrer, que originam novas inquietações no campo da bioética,
indicativas da existência dos rudimentos das preocupações objeto da Ortotanásia.
55
4.1.2 Paradigmas
Os paradigmas são os modelos de análise teórica utilizados principalmente
nos Estados Unidos, onde há maior sistematização em comparação com outras
nações. O paradigma primeiro, o Principialista, propõe quatro princípios orientadores
da ação: beneficência, não maleficência, justiça e autonomia: sem hierarquia entre
si. O segundo paradigma, o Libertário, apresenta como valor central o da autonomia
e do indivíduo; a ideia de pessoa não inclui embriões e fetos, por não serem
detentores de consciência. O terceiro, das Virtudes, reage ao modelo individualista,
apresentando o modelo da “virtude”, defendido por Edmund Pellegrino e David
Thomasma,
baseado
na
ética
das
virtudes
aristotélica
(PESSINI;
BARCHIFONTAINE).
O quarto paradigma, o Casuístico incentiva a análise de cada caso, num
plano analógico examinado em suas características paradigmáticas, estabelecendose comparações e analogias em relação a outros casos.
O quinto, o
Fenomenológico e Hermenêutico, destaca a necessidade de reconhecimento de que
toda experiência se sujeita à interpretação, e que em toda situação existem duas
dimensões: objetiva e subjetiva (PESSINI; BARCHIFONTAINE).
Narrativo, o sexto paradigma, é aquele segundo o qual as pessoas adquirem
identidade e intimidade ao contar e seguir histórias, culturas definem seus valores e
sentido de pertença por meio do mito e do épico.
O sétimo paradigma, Cuidado, partindo da psicologia evolutiva, propõe o
cuidado como noção fundamental para o desenvolvimento moral. Para o oitavo,
Direito Natural, existem alguns bens fundamentais em si mesmos, que não
apresentam hierarquia entre si: o conhecimento, a vida, a vida estética, a vida lúcida,
a racionalidade prática, a religiosidade, a amizade. O nono, Contratualista, denuncia
insuficiências da ética hipocrática e defende triplo contato: entre médicos e
pacientes, médicos e sociedade e com os princípios orientadores da relação médicopaciente (PESSINI; BARCHIFONTAINE).
Para o décimo paradigma, o Antropológico Personalista, não se pode fazer
bioética séria sem fundamentação antropológica. Trata-se de uma antropologia
filosófica, como conhecimento do homem em sua globalidade, uma filosofia
humanista que anseia entender o homem em todas as suas diferentes dimensões;
56
não
tem
natureza
descritiva
nem
propõe
normas
de
ação
(PESSINI;
BARCHIFONTAINE).
4.1.3 Princípios
Retomando o paradigma Principialista, tem-se a existência de quatro
princípios, igualmente válidos e que não apresentam hierarquia entre si, devendo o
conflito entre eles ser decidido no caso concreto o que terá primazia, de acordo com
as circunstâncias de cada caso (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014).
O primeiro princípio, a beneficência, consiste na obrigação de não causar
dano, de extremar os benefícios, minimizando riscos (NAMBA, 2009, p. 11). Assim,
uma pessoa que zele por outra, que dela dependa, deve tomar decisões com vistas
ao atendimento de seus interesses (SÁ; MOUREIRA, 2012). Esse princípio
reconhece o valor moral do outro, entendendo que maximizar o bem ao outro
importa diminuir-lhe o mal (NAMBA, 2009). Originou-se da tradição da Medicina
Ocidental, segundo a qual, o médico deve visar ao bem-estar do paciente, acima de
tudo (CATÃO, 2004).
O segundo, não maleficência, acrescentado pela obra Principles of biomedical
ethics, de Tom L. Beauchamp e James F. Childress (New York, Oxford University,
1979). Não se deve causar mal ao semelhante, diferenciando-se do princípio da
beneficência, que importa condutas positivas, não havendo distinção significante
entre um e outro princípios (NAMBA, 2009).
O terceiro, da justiça (ou imparcialidade na distribuição dos riscos e dos
benefícios), assegura tratamento igualitário às pessoas que não possuem diferenças
relevantes entre si (NAMBA, 2009). Assegura a distribuição justa, equitativa e
universal dos benefícios advindos dos serviços de saúde; segundo este princípio, o
poder de decisão médica deve aliar-se à justiça (CATÃO, 2004).
O quarto, autonomia (ou respeito às pessoas por suas opiniões e escolhas),
segundo seus valores e crenças (NAMBA, 2009, p. 11), “direito ou aptidão que têm
as pessoas de conduzirem suas vidas como melhor convier ao entendimento de
cada uma delas” (SÁ; MOUREIRA, 2012, p. 145); estabelece relação com o valor
mais abrangente da dignidade humana, correspondendo à afirmação moral de que a
liberdade da pessoa deve ser resguardada (NAMBA, 2009). Por este princípio, é
necessário que o médico respeite a vontade do paciente (ou de seu representante
57
legal), bem como seus valores morais e crenças; o exercício da autonomia
pressupõe conhecimento e informação para decidir. O consentimento esclarecido é
parte da essência da autonomia, devendo ser emitido em face de todas as condutas
que possam afetar a integridade física da pessoa (CATÃO, 2004).
Estes princípios norteiam as condutas médicas não somente em relação aos
tratamentos devidos à pessoa ao nascer, mas durante toda a sua vida, o que inclui
os derradeiros dias, a finitude da vida, que também deve ser objeto de cuidado, zelo
e proteção, conforme lecionam Leo Pessini e Christian Barchifontaine: cuidados para
nascer; cuidados ao nos despedirmos (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014).
4.2 A Teoria utilitarista e a Ortotanásia
Analisando o utilitarismo e a Bioética, Leo Pessini e Christian Barchifontaine
aduzem que o utilitarismo preconiza a liberdade absoluta do cientista com a
obrigação única de manter-se fiel ao sistema da ciência quanto à formulação e
verificação de hipóteses com o maior rigor. O utilitarismo sustenta ainda que a
ciência pode fazer qualquer tipo de experiência sem limitação extracientífica, isto é,
sem interferência da filosofia, da ética, da religião ou da política (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2014).
Cabe destacar que para se compreender a Ortotanásia é necessário que
sejam desvinculadas as questões religiosas, estudando a temática à luz da Filosofia,
do Direito e da Medicina, simplesmente para analisar as questões de forma
autônoma. Não pelo mesmo motivo apontado por Vieira (2012) ao comentar que
Engelhardt e Peter Singer adotam esse argumento para defenderem uma teoria de
cunho racionalista, que consiste em superar a moralidade de fundo religioso que
estaria supostamente ultrapassada, mas com a finalidade de se buscar um olhar
imparcial, porque as convicções religiosas impõem análises tendenciosas, que
influenciam a conduta, definindo a forma de se conceber determinada realidade.
Vieira ressalta sobre Peter Singer: “o autor assume expressamente que sua postura
é essencialmente utilitarista, e que a avaliação de que se algum ato é moral ou não,
depende principalmente do resultado a que conduz” (VIEIRA, 2012, p. 37).
A doutrina filosófica utilitarista, conforme explica Will Kymlicka, “na sua
formulação mais simples, afirma que o ato ou procedimento moralmente correto é
58
aquele que produz a maior felicidade para os membros da sociedade” (KYMLICKA,
2006, p. 11). Michael Sandel, apresenta Bentham, que comunga dessa teoria:
Bentham, filósofo moral e estudioso das leis, fundou a doutrina
utilitarista. Sua ideia central é formulada de maneira simples e tem
apelo intuitivo: o mais elevado objetivo da moral é maximizar a
felicidade, assegurando a hegemonia do prazer sobre a dor. De
acordo com Bentham, a coisa certa a fazer é aquela que maximizará
a utilidade. Como “utilidade” ele define qualquer coisa que produza
prazer ou felicidade e que evite a dor ou o sofrimento (SANDEL,
2013, p. 48).
Para Bentham, o ser humano é governado pelos sentimentos de prazer e dor,
sendo eles “mestres soberanos”, que governam tudo o que se faz e determinam o
que se deve fazer, de onde advêm os conceitos de certo e errado (SANDEL, 2013,
p. 48). No mesmo sentido, esclarece Kymlicka sobre o utilitarismo: “o bem que ele
busca promover – a felicidade, a prosperidade, ou o bem-estar – é algo que todos
buscamos na nossa vida e na vida dos que amamos” (KYMLICKA, 2006, p. 12).
Ainda complementa Sandel: “Todos gostamos do prazer e não gostamos da dor. A
filosofia utilitarista reconhece esse fato e faz dele a base da vida moral e política”
(SANDEL, 2013, p. 48).
Origina-se o consequencialismo utilitarista, pelo qual um ato é considerado
bom pelas consequências que dele resulta. Se há uma proteção à dignidade da
pessoa doente, ao optar pela “morte no tempo certo”, ela obtém um resultado capaz
de justificar a adoção da ortotanásia. Assim, o utilitarismo se mostra uma doutrina
filosófica que busca a felicidade e o bem-estar da pessoa. Parece ser ela a doutrina
à qual a prática da Ortotanásia melhor se amolda.
59
5 FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA ORTOTANÁSIA
Esta seção aborda a Ortotanásia sob a ótica do Direito. Na esfera do direito
civil constitucional, é necessário que se compreenda o direito à autodeterminação,
como aquele que faculta a pessoa a optar por uma forma de morte digna e serena,
como direito de personalidade. Essa gama de direitos inerentes à personalidade
humana é denominada direitos existenciais, uma categoria de direitos que se amplia
quantitativa e qualitativamente a cada dia, à medida que surgem novas hipóteses e
novas emanações desses direitos, nas relações interpessoais ou jurídicas que se
estabelecem no cotidiano. No que se refere ao direito criminal, a tendência é a
descriminalização da conduta ortotanásica, conforme se demonstrará nesta seção.
5.1 Ortotanásia sob o viés do Direito
A partir da regulamentação da Ortotanásia por meio da Resolução Nº
1.805/2006 do CFM, tem-se um referencial no âmbito jurídico. Sabe-se que as
Resoluções do Conselho Federal de Medicina possuem objetivo de regulamentar a
prática deontológica da classe médica, entretanto, a partir dessa normativa, passase a dispor de um indicador ético capaz de levar à concepção da licitude da prática,
embora não seja a referida Resolução o único parâmetro. O artigo 4º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro (BRASIL. LINDB) prevê que, na lacuna
da lei, o juiz deve analisar o fato concreto de acordo com a analogia, os costumes e
os princípios gerais do direito (BRASIL. LINDB, art. 4º), devendo assim proceder
também os demais operadores do direito. Ademais, está-se num estado de direito
permeado pela principiologia constitucional que deve ser obrigatoriamente
observada, impondo que toda situação seja interpretada à luz dos vigentes
princípios constitucionais.
A adoção do Direito Civil Constitucional está intimamente relacionada à
valorização da pessoa e dos direitos de personalidade na perspectiva adotada a
partir da Constituição de 1988, visão segundo a qual cabe ponderar que a vida não
deve mais ser entendida como um direito absoluto. Quando a CF/88 garante a
inviolabilidade do direito à vida (caput do artigo 5º), quer apenas proteger esse
direito contra toda ação ou omissão injusta por parte de terceiro, e jamais criar uma
obrigação de viver, conforme fundamentação do Desembargador Irineu Mariani em
60
julgado do TJRS: “3. o direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado
com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 1º, iii, ambos da CF, isto é,
vida com dignidade ou razoável qualidade. A constituição institui o direito à vida, não
o dever à vida [...] (BRASIL. TJRS. MARIANI, APELAÇÃO CÍVEL, TJRS, Nº
70054988266 0223453-79.2013.8.21.7000, 2013).
A partir dessa noção, a Ortotanásia ressignifica o direito à vida e relativiza-o,
ao compreendê-lo como uma oportunidade de promover a morte com dignidade,
como consequência da vida digna. Nessa esteira, a dignidade da pessoa humana,
como valor jurídico maior que o direito à vida, passa a ser protegida e resguardada,
e ainda colocada a salvo de qualquer lesão aos direitos existenciais. A legalidade da
Ortotanásia na ciência jurídica está intrinsecamente relacionada à aplicação e à
efetividade da principiologia constitucional que resguarda a pessoa e a proteção aos
direitos de personalidade.
A partir da proposta apresentada pelo Projeto de Lei Nº 236 do Senado
Federal (BRASIL. PL SENADO Nº 236) que visa alterar o Código Penal, retirando a
tipicidade da conduta do agente (médico) que suspende o esforço terapêutico do
paciente terminal, tem-se uma permissão do ordenamento jurídico para a prática da
Ortotanásia, partindo de um ramo do direito que protege a vida enfaticamente.
Percebe-se que a prática somente encontra reservas por parte de estudiosos
conservadores. Luiz Flávio Gomes se posicionou no sentido de reconhecer a licitude
da Ortotanásia, evidenciando a inexistência de crime na conduta de promoção da
morte digna (GOMES, 2011). Ademais, a principiologia adotada para a proteção da
dignidade da pessoa humana, que será tratada em tópico específico (5.3 Princípios
Norteadores da Ortotanásia) passou a influenciar opiniões e decisões na seara
jurídica, a partir da compreensão da dignidade como valor do ordenamento jurídico,
conforme entendimento de Pietro Perlingieri: “A personalidade é, portanto, não um
direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma
série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessante mutável
exigência de tutela” (PERLINGIERI, 2007, p. 155-156).
Tem-se então a licitude da adoção da Ortotanásia, à luz do direito criminal e
da principiologia civil-constitucional, que regem o ordenamento jurídico nesta
segunda década do século XXI.
61
5.2 Respeito aos direitos existenciais como paradigma do Direito
Desde a consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento
deste estado democrático, no artigo 1º da CF/88, tem-se o respeito aos direitos
existenciais como uma norma de natureza principiológica capaz de influenciar toda
conduta em sociedade, atribuindo-lhes importância e força normativa, de obrigatória
observância.
5.2.1 Direitos existenciais: conceito e expansionismo
Direitos existenciais são todos aqueles inerentes à personalidade humana,
decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana, inserto no art. 1º, III da
CF. Judith Martins-Costa analisa a dimensão existencial da dignidade:
A personalidade humana não é redutível, nem mesmo por ficção
jurídica, apenas à sua esfera patrimonial, possuindo dimensão
existencial valorada juridicamente à medida que a pessoa,
considerada em si e em (por) sua humanidade, constitui o “valorfonte” que anima e justifica a própria existência de um ordenamento
jurídico (MARTINS-COSTA citada por ROSENVALD, 2007, p. 22).
Nelson Rosenvald salienta que “há um dever jurídico geral de abstenção de
qualquer ato capaz de lesar ditos direitos apenas com limites nos direitos dos outros”
(ROSENVALD, 2007, p. 23). Esse dever de respeitar os direitos existenciais de seus
semelhantes, não praticando atos que possam causar lesão aos seus iguais, realça
a importância dos direitos dessa natureza, que impõe respeito por parte de toda a
sociedade, de forma imperativa. Direitos existenciais correspondem àqueles
inerentes à pessoa humana (SCHREIBER, 2013), compreendendo o universo de
interesses relativos à pessoa e à sua dignidade. Assim, a expressão refere-se a todo
o espectro de direitos inerentes ao ser humano, que, protegidos pela Constituição,
passam a merecer, sob o foco da visão constitucional do direito civil, especial tutela
da legislação, sendo a sua proteção imperativa, obrigatória.
Sérgio Cavalieri Filho enuncia que “direitos à honra, ao nome, à intimidade, à
privacidade e à liberdade estão englobados no direito à dignidade, verdadeiro
fundamento e essência de cada preceito constitucional relativo aos direitos da
pessoa humana” (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 80). São direitos existenciais e todos
62
os atos atentatórios ou lesivos a eles, praticados por outras pessoas acarretam a
responsabilidade civil, ou seja, é necessário reparar o dano causado. Por isso,
crescem as situações de reparação em “uma extensa ampliação do rol de hipóteses
de dano moral reconhecidas jurisprudencialmente” (MORAES, 2009, p. 165). Assim,
complementa a autora, o rol de direitos existenciais cresce a cada dia:
Na verdade, ampliando-se desmesuradamente o rol dos direitos da
personalidade ou adotando-se a tese que vê na personalidade um
valor e reconhecendo, em consequência, tutela às suas
manifestações, independentemente de serem ou não consideradas
direitos subjetivos, todas as vezes que se tentar enumerar as novas
espécies de danos, a empreitada não pode senão falhar: sempre
haverá uma nova hipótese sendo criada (MORAES, 2009, p. 166).
Anderson Schreiber, no mesmo sentido, corroborando esse raciocínio,
constata uma expansão quantitativa e qualitativa de situações que passam a ser
contempladas como dano à pessoa, a partir do fenômeno da Constitucionalização
do Direito Civil, que é uma releitura dos já conhecidos e consagrados institutos de
direito civil, à luz dos princípios constitucionais (SCHREIBER, 2013). Passa-se a
interpretar o Direito Civil conforme os ideais insculpidos nas cláusulas gerais do
texto constitucional. Ideais que têm por escopo oferecer a máxima proteção aos
atributos psicofísicos da pessoa, sua vida, seus direitos. Inclusive, seus sonhos,
projetos e reais expectativas, caminhando no sentido de resguardar o ser humano
de toda e qualquer conduta atentatória à sua dignidade. Assim, passam os direitos
dessa natureza a gozar de importância e a reclamar por tutela cada vez mais ampla.
A expressão “novos danos”, parece tratar de lesão a bens jurídicos diversos
daqueles já tutelados pelo ordenamento. Na verdade, compreendem o universo de
situações oriundas do desdobramento de lesões a direitos da personalidade, que
antes não eram tratadas como tais, dada a sua peculiaridade. Isso porque a
liberdade, a honra, a intimidade e a privacidade já eram bens jurídicos tutelados pelo
ordenamento jurídico, mas em relação às suas diferentes manifestações, não eram
apreciadas de forma a efetivar esses direitos existenciais agasalhados na cláusula
geral da tutela da personalidade, que encontra fundamento no art. 1º, III da
Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL. CF, 1988).
O fenômeno da constitucionalização do direito civil refletiu-se,
portanto, também na responsabilidade civil, e de forma notável. Um
63
novo universo de interesses merecedores de tutela veio dar margem,
diante da sua violação, a danos que até então sequer eram
considerados juridicamente como tais, tendo, de forma direta ou
indireta, negada a sua ressarcibilidade (SCHREIBER, 2013, p. 91).
São então “novos danos” aqueles que, partindo de direitos existentes e já
consagrados, ramificam-se em extensão e profundidade, trazendo a julgamento
pelos juízes e tribunais questões nunca antes discutidas como fatos a ensejar
reparação, em franco expansionismo:
Esta avalanche de novos danos, se, por um lado, revela maior
sensibilidade dos tribunais à tutela de aspectos existenciais da
personalidade, por outro, faz nascer, em toda parte, um certo temor –
antevisto por Stefano Rodatà – de que “a multiplicação de novas
figuras de dano venha a ter como únicos limites a criatividade do
intérprete e a flexibilidade da jurisprudência” (SCHREIBER, 2013, p.
96).
A reflexão de Schreiber aponta para a dupla dimensão do reconhecimento de
novos danos: se por um lado, resguarda mais a pessoa, por outro, percebe-se que a
preocupação quanto ao reconhecimento inesgotável de hipóteses de danos deixe o
direito do cidadão à mercê da jurisprudência.
5.2.2 Consentimento como direito existencial
Para que a atuação médica seja legítima, é imprescindível que a pessoa
enferma preste consentimento para todo procedimento em sua esfera psicofísica.
Sob a luz do direito personalíssimo, e em razão do disposto no caput do o art. 5º da
vigente CF, a pessoa possui o direito à inviolabilidade da vida e da liberdade, entre
outros: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]‟‟ (BRASIL.
CF, 1988). Desta gama de direitos, infere-se o de disposição do próprio corpo que
pressupõe liberdade e autonomia de vontade, previstos pelo ordenamento jurídico,
desde que não seja contrário à lei, aos bons costumes ou à ordem pública. Salientase que sem o consentimento da pessoa enferma qualquer atuação no seu corpo ou
mente será considerada desrespeito à sua autonomia e aos seus direitos
existenciais.
64
5.3 Princípios norteadores da Ortotanásia
Embora muitos princípios constitucionais e infraconstitucionais tutelem a
prática da Ortotanásia, alguns autores mencionam como merecedores de destaque
a dignidade da pessoa humana, a autodeterminação, a relativa disposição dos
direitos de personalidade e o direito ao não sofrimento.
5.3.1 Dignidade da pessoa humana
O movimento de valorização por que passou a humanidade, e que posicionou
o homem e sua dignidade no ápice do ordenamento jurídico, veio ocorrendo através
dos tempos, sobretudo em três fases históricas, segundo aponta Ana Paula de
Barcellos. Teve início na Era Cristã, quando Jesus pregava a solidariedade e a
piedade, ensinando a amar aos semelhantes como a si mesmo. Ganhou importância
a partir do movimento Iluminista-Humanista e das obras de Immanuel Kant, que
colocavam o homem em evidência, deferindo crescente proteção aos seus direitos.
Mas teve seu apogeu no pós-guerra, tempo marcado pelas atrocidades cometidas
contra a pessoa e sua dignidade, que culminou com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (BARCELLOS, 2008).
Então, a partir do momento em que a dignidade da pessoa humana se
consagrou logo no art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948,
“Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos [...]”, alcançou
status de direito fundamental, passando a ser considerada como um axioma, o valor
maior do estado democrático, atribuindo aos direitos inerentes à dignidade, o mais
elevado grau de importância no ordenamento jurídico. Esse momento foi
determinante para a garantia dos direitos de personalidade, dentre eles, a autonomia
existencial ou autodeterminação – direito ao cumprimento da própria vontade,
podendo a pessoa decidir os rumos de sua vida e que alcança as decisões sobre a
própria morte, consoante salienta Borges:
Liga-se à possibilidade de a pessoa conduzir sua vida e realizar sua
personalidade conforme sua própria consciência, desde que não
sejam afetados direitos de terceiros, esse poder de autonomia e os
correspondentes direitos da personalidade também alcançam os
momentos finais de sua vida (BORGES, 2007, p. 230).
65
A dignidade da pessoa humana é alçada à categoria de princípio
fundamental, com natureza de direitos humanos. Em seguida, a dignidade e os
direitos inerentes à personalidade passam a integrar uma categoria de direitos não
mais como princípio, mas como um axioma – o valor máximo do ordenamento
jurídico (PERLINGIERI, 2007), conforme já mencionado, desde a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, quando a maioria das constituições ocidentais pósmodernas inseriram em seus textos a dignidade da pessoa humana, como foi o caso
do Brasil, tendo a Constituição Federal de 1988 consagrado a dignidade como
fundamento do Estado Democrático de Direito. A vigente CF dispôs a dignidade logo
no art. 1º, inciso III, o que lhe confere precedência não só topográfica, mas
interpretativa, devendo ser analisada com primazia sobre os demais princípios
(ROSENVALD, 2007). Elevou-a à categoria de valor, inaugurando uma cláusula
aberta: “A dignidade atuaria como cláusula aberta, legitimando a construção de
direitos não expressos na Lei Maior, mas com ela compatíveis em razão de sua linha
axiológica e principiológica” (ROSENVALD, 2007, p. 51-52).
Trata-se de uma estrutura firmada sobre direitos fundamentais, direitos
humanos, que passa a influenciar não só o Direito, mas sobretudo a Medicina, que
inicia um progressivo reconhecimento dos direitos do paciente na especial qualidade
de “pessoa”. Maria Celina Bodin de Moraes concebe a cláusula geral de tutela à
pessoa humana como direito fundamental, que visa proteger a pessoa em suas
múltiplas características, naquilo “que lhe é próprio” (MORAES, 2009, p. 128).
Assim, os direitos de personalidade se constituem universo inesgotável de
emanações que, sendo inerente à pessoa humana, merece proteção legal. A
interpretação sistemática da perspectiva dos direitos de personalidade na vigente
ordem jurídica leva ao reconhecimento da supremacia dos direitos existenciais e sua
importância principiológica, uma proteção que origina uma fonte de novos direitos,
conforme analisa Anderson Schreiber:
O problema mais atual reside no fato de que a dignidade não se
limita, nem poderia se limitar, como cláusula geral que é, aos
interesses existenciais acima mencionados. O seu conteúdo inclui
aspectos diversos da pessoa humana que vêm se enriquecendo,
articulando e diferenciando sempre mais (SCHREIBER, 2013, p. 92).
Leciona Heloisa Helena Barboza que
66
A autonomia privada, enquanto exercício da liberdade, constitui
instrumento de expressão e concretização da dignidade humana. [...]
No momento em que é exaltado o papel fundamental da pessoa
humana na ordem jurídica, não parece razoável entender sua
autonomia como uma concessão ou atribuição do Estado, mas sim
como o reconhecimento do poder do sujeito privado de se autoregular, nos limites da lei, aqui entendida em seu sentido amplo, e
que tem na Constituição da República sua expressão maior
(BABOZA, 2010, p. 36).
No diapasão de Barboza (2010), com o crescente movimento de
humanização das ciências, o Direito e a Medicina passaram a adotar como princípio
o respeito à pessoa e à sua dignidade, conduta que refletiu nas decisões em adotar
novas tendências na legislação brasileira. Não somente o Direito, mas a Medicina
passa a demonstrar preocupação com os momentos finais da vida humana. Em
consequência desse raciocínio, passa-se a buscar a dignidade no momento da
morte, ganhando relevo a humanização da morte, reconhecida agora como fase da
vida humana merecedora de cuidados e proteção à dignidade, os cuidados com o
enfermo terminal e a consequente adoção de cuidados paliativos que foram
definidos pela OMS em 2012, como aqueles que visam minimizar a dor e promover
bem-estar do doente.
5.3.2 Direito à liberdade e à autodeterminação
O segundo princípio em análise é a autodeterminação – intrinsecamente
ligado à liberdade, direito fundamental por excelência. Explicando a liberdade,
comenta Maria Celina Bodin de Moraes:
O princípio da liberdade individual se consubstancia, hoje, numa
perspectiva de privacidade, de intimidade, de livre exercício da vida
privada. Liberdade significa, cada vez mais, poder realizar, sem
interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais,
mais, o próprio projeto de vida, exercendo-o como melhor convier
(MORAES, 2006, p. 43).
A vontade da pessoa – como direito fundamental, consequência do valor
maior do ordenamento jurídico (dignidade da pessoa humana) – ganha importância,
conforme explica Roxana Borges (2007), que na dignidade da pessoa humana
insere-se o poder de decisão a respeito de si mesma e de sua própria vida. A
67
referida autora enriquece o debate, trazendo a lição de Elimar Szaniawski acerca da
autodeterminação:
Este direito consiste no poder que todo ser humano possuiu de
autodeterminar-se, de decidir por si mesmo o que é melhor para si. O
poder de autodeterminação diz respeito à possibilidade que cada
indivíduo tem de determinação do sentido de sua evolução e da
formação de seu próprio tipo de personalidade. Esta capacidade é
outorgada pela própria ordem jurídica, ao reconhecer, no âmbito da
tutela de um direito geral de personalidade, a existência da
autonomia da vontade e de uma soberana capacidade de exercício.
Ressalte-se que o bem jurídico da personalidade constitui-se, em
princípio, como bem indisponível nas relações do sujeito com outros
indivíduos. No entanto, este fato não é impeditivo de que, no âmbito
da esfera pessoal de cada indivíduo, ocorram mutações
juridicamente tuteláveis, oriundas do poder de autodeterminação do
ser humano (SZANIAWSKI citado por BORGES, 2007, p. 149).
Maria Zeneida Oliveira e Stela Barbas comentam sobre a autonomia:
A palavra autonomia deriva de dois termos gregos – auto (próprio) e
nomos (lei, regra, norma) – que conjugados, querem dizer
autodeterminação da pessoa para tomar decisões que afetem sua
vida, saúde, integridade física e psíquica, bem como suas relações
sociais, O princípio da autonomia, portanto, refere-se à capacidade
que tem o ser humano sobre o que é bom ou o que é seu bem-estar.
A pessoa é autônoma quando tem liberdade de pensamento, livre de
coações internas ou externas para optar entre as propostas que lhe
são apresentadas (OLIVEIRA; BARBAS, 2013, p. 329).
Segundo Diaulas Costa Ribeiro, a autonomia será o grande direito da
personalidade do Século XXI, e adverte: “Mas, a autonomia não dispensa a
capacidade” (RIBEIRO, 2006, p. 275). No mesmo diapasão, “Considera-se
autonomia, ou direito à autonomia, a capacidade ou aptidão que têm as pessoas de
conduzirem suas vidas como melhor convier ao entendimento de cada uma delas”
(SÁ; MOUREIRA, 2012). O conceito de autodeterminação deve ser entendido como
expressão da autonomia existencial, que significa a capacidade de autogovernar-se,
de expressar a própria vontade, um direito de escolha, objetivando privilegiar a
decisão e respeitar os mais íntimos desejos da pessoa, no caso específico da
Ortotanásia, aquela que deseja não sofrer nos derradeiros momentos da vida. Sobre
o direito à autodeterminação, salienta Maria Celina Bodin de Moraes que,
68
Na área da biomedicina, é o interesse, o ponto de vista do indivíduo,
que deve prevalecer quando se trata de sua saúde, física e psíquica,
ou de sua participação em qualquer experiência científica. A regra
expressa o conceito da não instrumentalização do ser humano,
significando que este jamais poderá ser considerado objeto de
intervenções e experiências, sempre sujeito de seu destino e de suas
próprias escolhas (MORAES, 2009, p. 98).
No mesmo senso, salienta Diaulas Costa Ribeiro que a pessoa pode decidir
pela não utilização de suporte artificial para respirar ou não ser mantida em vida
vegetativa com o auxílio de aparelhos que somente são capazes de retardar o
processo de morte, adiando-a para além do tempo normal, promovendo verdadeiro
infortúnio ao doente. Na atual perspectiva dos direitos de personalidade, a pessoa
enferma goza de autodeterminação, autonomia para decidir, discernimento, ainda
que de forma compartilhada com o médico, mas autogovernar-se, ser sujeito de sua
vida e não objeto da medicina ou da vontade da família. Nesse sentido, salienta
Luciana Dadalto que a capacidade concebida como discernimento, é fundamental
para validar o consentimento (DADALTO, 2015). Se lhe falta discernimento, então, a
pessoa não terá condições de escolher o que é melhor para si mesma.
5.3.3 Relativa disposição dos direitos de personalidade
O exercício da autodeterminação, embora encontre rigidez legislativa em
certos aspectos, permite que a pessoa disponha de seu corpo e de outros direitos de
personalidade, como por exemplo, a doação de órgãos e tecidos nos termos da Lei
Federal nº 9.434/97, que permite, em vida, doar órgãos dúplices ou regeneráveis,
vedando, entretanto, a disposição em relação àqueles cujo ato dispositivo inviabilize
a vida do doador ou mesmo ofereça risco desproporcional à sua vida ou à sua
saúde. Com a ampliação da proteção aos direitos existenciais, entendidos como
aqueles que dizem respeito à personalidade humana, emerge a cláusula geral da
dignidade que abarca a gama de direitos atinentes ao desenvolvimento da pessoa
humana, mesmo sem expressa previsão legal, sendo lei aqui tomada no seu
sentindo amplo. Infere-se da atual perspectiva dos direitos existenciais que a
importância deles excede a condição de simples direitos para assumir caráter de
direito fundamental, aos quais não se pode impor restrição que desnature sua
essência, sob pena de provocar um retrocesso social e jurídico.
69
Na seara dos novos direitos é possível identificar o dano provocado pelas
agruras de uma morte lenta, dolorosa e angustiante, sem esperança e sem conforto.
Afastar-se desse entendimento é uma ameaça à dignidade da pessoa humana, valor
fundamental do ordenamento jurídico pátrio, conforme já mencionado. É exatamente
nessa circunstância que se afirma o direito de morrer em paz, com dignidade,
quando as condições exigidas para se manter a vida se mostram tão maléficas, a
ponto de retirar-lhe a dignidade, concluindo-se que o melhor seja deixar que a morte
ocorra no seu devido tempo, “na hora certa”.
Francisco Amaral, ao tratar do direito ao corpo, admite a hipótese de se
exercer o direito de disposição sobre as partes que podem ser destacadas,
ratificando que a pessoa juridicamente capaz pode dispor de forma gratuita de
partes do corpo vivo, órgãos e tecidos para fins terapêuticos ou de transplantes
(AMARAL citado por BORGES, 2007, p. 117). Outros autores como Capelo de
Sousa, Mônica Aguiar, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Carlos
Alberto Bittar, Marcos de Campos Ludwig e Alexandre dos Santos Cunha, no
mesmo sentido, corroboram a tese da disponibilidade dos direitos da personalidade
sob certas condições (BORGES, 2007, p. 117-120). Esses estudiosos defendem a
transmissibilidade limitada dos direitos da personalidade a partir do respeito à
liberdade de disposição dentro dos parâmetros impostos pelo direito. Roxana
Cardoso conclui sobre a relativa disponibilidade dos direitos de personalidade:
Se a dignidade da pessoa humana e, portanto, os direitos de
personalidade forem considerados apenas em seu aspecto negativo,
como faz o direito penal, a tutela dos direitos de personalidade não
estará completa. Na verdade, é preciso valorizar a possibilidade e a
presença da autonomia privada no âmbito dos direitos de
personalidade, reconhecendo seu aspecto positivo, ligado à
liberdade jurídica, vinculado à autonomia privada e à relativa
disponibilidade de tais interesses (BORGES, 2007, p. 123).
Entretanto, a disponibilidade encontra limites bem delineados por lei e
jurisprudência, a fim de que não extrapole a legalidade e a eticidade. Fatores
igualmente importantes para fundamentar o cerceamento da disponibilidade são o
respeito à ordem pública e os bons costumes que fundamentam a vigente
organização social. Com a mesma função encontra-se a não lesão a direito de
70
terceiros. Tem-se dessa forma delineado um âmbito seguro para a relativização do
direito da personalidade, fora do qual seria inseguro prosseguir.
Por todo o exposto, há permissão jurídica para se dispor da própria vida
quando é chegado o tempo da morte, quando a dignidade da pessoa já se mostra
ameaçada e o estado de terminalidade da doença, longe de ser uma esperança de
cura, somente submete o enfermo a sofrimentos, configurando lesão à dignidade da
pessoa doente.
5.3.4 Direito a não sofrer
Os direitos existenciais, uma categoria nobre e constitucionalmente garantida,
incluem o direito a não sofrer, que é o último princípio a ser tratado. Ninguém em
plena capacidade e em sã consciência optaria por uma morte angustiante, dolorosa,
lenta e tardia; se tivessem oportunidade escolheriam morrer com dignidade e no
momento certo, sem postergação, já que a dor e o sofrimento passam a ser
refutados, conforme explica Anderson Röhe:
A dor e o sofrimento tornaram-se desvalores rejeitados por uma
sociedade adoradora do corpo e da perfeição. Daí a necessidade de
uma medicina operante que assegure aos homens o seu bem-estar
físico e mental, proporcionando uma boa morte, mais humana e
capaz de ser compreendida (RÖHE, 2004, p. 123).
Nesse diapasão, é natural que a pessoa busque seu bem-estar, procurando
afastar-se da dor e das angústias. As pessoas capazes devem ter o direito à
autodeterminação, à possibilidade de decidir sobre sua vida e sua morte, inclusive
devem ter a faculdade de afastarem possíveis situações de risco de sofrimento, pois
algumas pessoas submetidas a tratamentos dolorosos e sob infortúnios, se
soubessem que poderiam optar, certamente não elegeriam um final degradante para
suas próprias vidas, se lhes fosse dado o direito à opção. Consoante já se comentou
no tópico dedicado à autodeterminação
(5.3.2 Direito à Liberdade e à
Autodeterminação), a pessoa pode decidir pela não utilização de suporte vital que
somente concorre para postergar o processo de morte, submetendo a pessoa a
dores que lhe retiram a alegria, o conforto e a própria dignidade. Essa é a expressão
do atendimento ao direito a não sofrer: a pessoa não ser obrigada a passar por
71
procedimentos cruéis, que lhe causam dores a limites quase insuportáveis, se
podem passar pelos derradeiros dias com mais serenidade, sem sofrimentos
excessivos. Evidentemente, esses princípios são básicos, fundamentais e devem ser
observados para que a Ortotanásia seja aplicada de forma legítima.
5.4 A Ortotanásia na perspectiva do Direito Civil-Constitucional
Maria Julia Kovács afirma que
A morte pode se tornar evento solitário, sem espaço para a
expressão do sofrimento e para rituais. A caricatura que a representa
é o paciente que não consegue morrer, com tubos em orifícios do
corpo, tendo por companhia ponteiros e ruídos de máquinas,
expropriado de sua morte. O silêncio impera, tornando penosa a
atividade dos profissionais com pacientes gravemente enfermos. O
prolongamento da vida e da doença amplia o convívio entre
pacientes, familiares e equipes de cuidados, com estresse e risco de
colapso (KOVÁCS, 2014, p. 95).
O morrer tem sido expropriado de seu titular, tornando-se evento solitário e
desumano; há um movimento no sentido de humanização e reapropriação da morte:
“Hoje se reivindica a reapropriação da morte pelo próprio doente. Há uma
preocupação sobre a salvaguarda da qualidade de vida da pessoa, mesmo na hora
da morte”, argumenta Borges (2007, p. 231), referindo-se ao direito de morrer
dignamente.
Uma lei bem à frente nesse debate, a Lei Estadual do Estado de São Paulo
Nº 10.241/1999 (SÃO PAULO. LEI ESTADUAL Nº 10.241/1999) (Cf. ANEXO 2),
permite aos usuários dos serviços de saúde em estado terminal o direito de
recusarem tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida.
Mário Covas, Governador do Estado à época, disse que sancionava a lei como
político e como paciente (acometido de câncer já diagnosticado). Dois anos depois,
estando em fase terminal, dela se utilizou, ao recusar o prolongamento artificial da
vida, conforme relata Cabette (2013).
72
5.4.1 Constitucionalização do Direito Civil
O movimento internacional de valorização da pessoa humana passa a
envolver a comunidade internacional no sentido de criar mecanismos capazes não
somente de reconhecer, mas de efetivar os direitos inerentes à pessoa, nessa
qualidade. Reforçam-se ainda certos direitos indisponíveis, como a liberdade, a
igualdade e outros destes decorrentes. Inicia-se, então, um movimento de
constitucionalização das relações privadas, promovendo uma releitura dos clássicos
institutos de Direito Civil à luz dos princípios constitucionais, através de uma
interpretação conforme a axiologia da CRFB (BRASIL. CF, 1988), submetendo toda
e qualquer conduta humana à principiologia dos direitos fundamentais nela
inseridos. A Alemanha foi o primeiro país de tradição continental a seguir o caminho
da constitucionalização do Direito Civil (MORAES, 2009, p. 4), passando a valorizar
a pessoa humana em sua dignidade, como sujeito de direitos, respeitando-a em sua
honra e estimando-a em relação à sua autonomia existencial. Esse atributo inerente
com exclusividade à espécie humana diz respeito à autodeterminação que cada um
tem à possibilidade de eleger o que melhor o atenda, à capacidade de se tomar a
vida nas próprias mãos e, no exercício da liberdade, escolher seu próprio futuro. Em
última análise, seria um aspecto que remonta ao livre arbítrio, contido nas Escrituras
Sagradas em Deuteronômio 30: 15 (ALMEIDA, 1993), princípio segundo o qual as
pessoas são livres para escolherem seu próprio destino.
Assim, após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a exemplo de
outros Estados Democráticos de Direito, o Brasil insere em seu texto constitucional,
a Dignidade da Pessoa Humana. Esse princípio, ao ser elencado entre os
fundamentos desta República Federativa, passa a gozar de especial tutela,
resguardando todos os direitos dela decorrentes, abrangendo todo o universo de
manifestações da personalidade humana.
O legislador constituinte elencou a Dignidade da Pessoa Humana como
fundamento da República Federativa do Brasil, elevando-a à categoria de valor de
extrema grandeza, dispondo-a logo no artigo 1º, inciso III. Evidentemente, ao dispor
a dignidade de maneira tão elevada, o legislador dispôs a personalidade e suas
emanações como valor de inigualável importância. Ao atribuir tratamento de
tamanha primazia à personalidade e aos direitos a ela inerentes, a Constituição
demonstra especial preocupação com a pessoa humana e a tutela de seus direitos.
73
A
visão
constitucional
do
Direito
Civil
acarretou
consequências,
com
desdobramentos na responsabilidade civil a partir da proteção à personalidade e aos
direitos a ela inerentes, originando um universo de interesses merecedores de tutela,
reconhecendo como danos, que sequer eram considerados juridicamente como tais.
Essa proteção permite a não aplicação da lei quando afronta os interesses
existenciais. Nesse sentido, salienta Perlingieri que alguns juristas não aplicam a lei
quando esta desrespeita a pessoa humana:
O jurista é aquele que interpreta, individua e aplica as leis: no
momento em que as desaplica, exerce uma atividade, às vezes,
historicamente louvável, mas diversa daquela de jurista. Entretanto,
mesmo esta argumentação tem naturalmente os seus limites. Basta
considerar a não sujeição de alguns juristas ao Poder Legislativo
quando este não atendeu ao essencial e mínimo respeito à pessoa
humana. (PERLINGIERI, 2007, p. 3).
A tutela dos direitos existenciais tem influenciado a responsabilidade civil:
O fenômeno da constitucionalização do direito civil refletiu-se,
portanto, também na responsabilidade civil, e de forma notável. Um
novo universo de interesses merecedores de tutela veio dar margem,
diante de sua violação, a danos que até então sequer eram
considerados juridicamente como tais, tendo de forma direta ou
indireta, negada sua ressarcibilidade (SCHREIBER, 2013, p. 91).
5.4.2 Direito à morte digna: corolário da vida digna
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald explicam a relação existente
entre a vida digna e a morte digna: “Se a morte é o corolário, a consequência lógica,
da vida, nada é mais natural do que asseverar que o direito à vida digna (CF, art. 1º,
III) traz consigo a reboque, o direito a uma morte igualmente digna” (FARIAS;
ROSENVALD, 2015, p. 310). Verdadeiramente, não teria sentido preservar a
dignidade da pessoa humana durante a vida, tutelando os direitos de personalidade
a ela inerentes, para desprezá-la no momento em que se encontra mais debilitada,
enferma, prestes a falecer. Salientam ainda os referidos autores:
O que se exige é uma cuidadosa reflexão, liberta das influências
pessoais (de ordem religiosa, ética...) para estabelecer as latitudes
do direito à morte digna. Mais do que isso, seja qual for o
posicionamento a prevalecer, é imperioso se reconhecer que o único
74
ponto indelével (e insubstituível) nessa discussão é o
reconhecimento de que a dignidade da pessoa humana também se
projeta na morte (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 310).
O ordenamento jurídico cuida garantir a todas as pessoas a existência digna.
A dignidade da pessoa humana, estruturada através da cláusula geral de tutela dos
direitos de personalidade, toma para si a garantia integral das pessoas em face dos
abusos do Estado, quando se fala na eficácia vertical daqueles direitos, e dos
demais particulares, quando então se observa a eficácia horizontal deles. Soma-se o
acesso ao Poder Judiciário, através do direito de ação, para a materialização desses
direitos, reforçando a proteção. Destaca-se o avanço da ciência jurídica, que
emoldura uma sociedade em constante busca pela ampliação e a proteção aos
cidadãos em relação à qualidade de vida e à consequente garantia de morte digna –
uma questão complexa a ser preenchida pelos valores sociais, interpretada à luz dos
valores predominantes na sociedade brasileira e do verdadeiro conteúdo do princípio
da dignidade humana. Trata-se de uma nova perspectiva pela qual se deve rejeitar o
sentido atribuído à expressão “morte digna” significando eutanásia, para dar nova
nuance, que é a morte aceita de forma tranquila, esperada, paciente, no seio dos
entes queridos, suprindo o enfermo de amor e de carinho, pois a morte faz parte da
vida, e a ela dá sentido.
Destarte, a morte digna é a culminância de uma vida digna, em que o enfermo
ainda é detentor de seus direitos, podendo gozar em seus momentos finais as
mesmas prerrogativas que o fizeram chegar até ali. Como sujeito de direitos pode
escolher como, onde e ao lado de quem cumprirá sua caminhada. É, portanto,
indissociável uma ideia da outra: não há vida digna sem morte digna, porquanto ao
se transformar o ser humano em objeto da ciência médica, mero corpo sem alma, ao
desconsiderar a dimensão espiritual e psicológica que o compõem, esvazia-se
essência do princípio da dignidade humana. No conteúdo do princípio fundamental
da dignidade da pessoa humana encontra-se a proteção da morte digna.
O direito à morte digna não significa buscar o direito de morrer de forma
simplória e irracional. Contextualizando essa discussão, é necessário distinguir o
direito à morte digna do direito a decidir pela própria morte em determinadas
situações. Enquanto o direito de morrer é entendido como eutanásia ou auxílio ao
suicídio, mediante intervenções que visam provocar o resultado morte, o direito de
morrer dignamente se refere ao desejo de buscar a morte de forma natural,
75
humanizada, sem adoção de tratamentos ou procedimentos fúteis que prolonguem
inutilmente a vida, conforme explica Borges:
O direito de morrer dignamente não deve ser confundido com o
direito à morte. O direito de morrer dignamente é a reivindicação por
vários direitos, como a dignidade da pessoa, a liberdade, a
autonomia, a consciência; refere-se ao desejo de ter uma morte
humana, sem o prolongamento da agonia por parte de um tratamento
inútil. Isso não se confunde com o direito de morrer. Este tem sido
reivindicado como sinônimo de eutanásia ou auxílio a suicídio, que
são intervenções que causam a morte. Não se trata de defender
qualquer procedimento que cause a morte do paciente, mas de
reconhecer sua liberdade e sua autodeterminação (BORGES, 2007,
p. 232).
Percebe-se que vários direitos estão albergados no bojo do direito à morte
digna: além do respeito à dignidade da pessoa, a proteção à liberdade e à
autonomia, a não submissão a tratamentos fúteis – distanásia – e outros insertos na
cláusula geral de dignidade da pessoa humana, encontrada no art. 1º, III da vigente
CF. A dignidade da pessoa humana, como valor máximo do ordenamento jurídico,
requer uma tutela cada vez mais exigente. Implica uma série de cuidados que
passam a ser exigidos, devendo-se colocar a pessoa a salvo de qualquer lesão ou
ameaça aos direitos relativos à sua dignidade. A dignidade do enfermo exige
cuidado e é de obrigatória proteção não somente por parte da família e dos médicos,
mas também do Poder Público, consoante adverte Ingo Wolfgang Sarlet invocando
lição de Adalbert Podlech:
Como tarefa (prestação) imposta ao Estado, a dignidade da pessoa
reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a
dignidade existente, quanto objetivando a promoção da dignidade,
sendo portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitária, já
que é de perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele
próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais
básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da
comunidade [...] (PODLECH citado por SARLET, 2009, p. 33).
A partir desse raciocínio, a dignidade da pessoa deve ser observada desde o
nascimento, durante a vida, alcançando os momentos finais da existência, a morte,
que também deve ser permeada pela noção de dignidade e de cuidados.
76
5.5 À luz do Direito Criminal
A intenção de se retirar a ilicitude da prática da Ortotanásia se justifica pelo
relevante sentimento de amor que compele alguém a diminuir o sofrimento daquele
que está em fase terminal. Trata-se de uma tendência nada recente, anterior à
promulgação da CF/88, segundo constata Borges:
Em 1984, junto com a proposta de reforma da Parte Geral do Código
Penal, havia também um anteprojeto para modificação da Parte
Especial. A modificação da Parte Especial não ocorreu. Esse
anteprojeto da Parte especial do Código Penal brasileiro previa
expressamente a ortotanásia, no art. 121, § 4º: “Não constitui crime
deixar de manter a vida de alguém, por meio artificial, se previamente
atestada, por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e
desde que haja consentimento do doente ou, na sua impossibilidade,
de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão” (BORGES, 2007, p.
237).
O Projeto de Lei do Senado, o PLS nº 116, de 2000, de autoria do senador
Gerson Camata, objetivando excluir a ilicitude da prática da Ortotanásia, foi
apresentado em 20 de abril de 2000, propondo:
Art. 1º Acrescentam-se os §§ 6º e 7º ao art. 121 do Código Penal
(Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), com a seguinte
redação:
Exclusão de ilicitude
§ 6º Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio
artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como
iminente e inevitável, desde que haja consentimento do paciente ou,
em sua impossibilidade, de cônjuge, companheiro, ascendente,
descendente ou irmão.
§ 7º A exclusão de ilicitude a que se refere o parágrafo anterior faz
referência à renúncia ao excesso terapêutico, e não se aplica se
houver omissão de meios terapêuticos ordinários ou dos cuidados
normais devidos a um doente, com o fim de causar-lhe a morte.
Ainda no âmbito do Direito Criminal, o Projeto de Lei nº 236 de 2012, de
autoria do Senador José Sarney, que trata da reforma do Código Penal Brasileiro,
prevê a inexistência de crime para o médico quando deixar de fazer uso de meios
extraordinários, mediante adoção de cuidados paliativos e atestado de morte
iminente por dois médicos – prevendo a atipicidade da conduta do médico, cabe
ressaltar a relevância de que o estado de terminalidade (caracterizado pelas
expressões morte iminente, inevitável e doença irreversível) seja atestado por dois
77
médicos, o que conduz a uma segurança maior a respeito do quadro clínico do
enfermo que se valerá da Ortotanásia.
Os fatos aduzidos se constituem argumentos favoráveis à admissibilidade e
legalidade da Ortotanásia no Brasil, sob a ótica do Direito Criminal, demonstrando a
evolução no sentido da disciplina jurídica da Ortotanásia no Brasil.
5.6 Tendência jurisprudencial
O direito à Ortotanásia chega ao Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul,
não havendo até o momento julgados submetidos aos tribunais superiores –
Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF) –; entretanto,
pode-se afirmar que há tendência dos Tribunais em legitimar a prática da
Ortotanásia, pelo que se constata da observação e atenta leitura dos julgados que
seguem.
Apresenta-se em primeiro lugar o seguinte julgado (Cf. íntegra no ANEXO 4):
AJALR Nº 70042509562 2011/CÍVEL
CONSTITUCIONAL.
MANTENÇA
ARTIFICIAL
DE
VIDA.
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PACIENTE, ATUALMENTE,
SEM CONDIÇÕES DE MANIFESTAR SUA VONTADE. RESPEITO
AO DESEJO ANTES MANIFESTADO. Há de se dar valor ao
enunciado constitucional da dignidade humana, que, aliás, sobrepõese, até, aos textos normativos, seja qual for sua hierarquia. O desejo
de ter a “morte no seu tempo certo”, evitados sofrimentos inúteis, não
pode ser ignorado, notadamente em face de meros interesses
econômicos atrelados a eventual responsabilidade indenizatória. No
caso dos autos, a vontade da paciente em não se submeter à
hemodiálise, de resultados altamente duvidosos, afora o sofrimento
que impõe, traduzida na declaração do filho, há de ser respeitada,
notadamente quando a ela se contrapõe a já referida preocupação
patrimonial da entidade hospitalar que, assim se colocando, não
dispõe nem de legitimação, muito menos de interesse de agir.
O desembargador relator do recurso, em seu voto, declara sobre a petição:
[...] reflete a disputa entre a ortotanásia e a distanásia, corresponde a
primeira o assegurar às pessoas uma morte natural, sem
interferência da ciência, evitando sofrimentos inúteis, assim como
dando respaldo à dignidade do ser humano, ao passo que a segunda
implica prolongamento da vida, mediante meios artificiais e
desproporcionais, adjetivando-a de “obstinação terapêutica”, na
Europa, senão de “futilidade médica”, nos Estados Unidos.
78
Decide, então pelo atendimento à vontade da paciente, pela não realização
do procedimento com risco de vida e pelo direito ao não sofrimento – direito a ter
suas dores minoradas, bem como resguarda o direito pela “morte no tempo certo”:
Ortotanásia.
Outro importante julgado é a Apelação Cível Nº 70054988266 do TJRS, em
que os desembargadores, por unanimidade, não acataram a petição do promotor de
justiça de amputar o pé do paciente sujeito à gangrena contra sua vontade. Em
recente decisão, de 20.11.2013, o relator, Des. Irineu Mariani, entendeu pela
prevalência da vontade do enfermo quanto à decisão de não amputar o membro
ainda que com objetivo de salvar-lhe a vida (Cf. íntegra no ANEXO 5).
APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO.
ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL.
1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à
amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para
“aliviar o sofrimento”; e, conforme laudo psiquiátrico, se encontra em
pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu
corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo
que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida.
2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da
ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem
prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o
processo natural.
3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado
com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III,
ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A
Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela
qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a
tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na
esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento
médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer
dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida,
a pessoa pode ser constrangida a tal.
4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual
acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta
nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na
Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina.
5. Apelação desprovida.
O relator destaca que o paciente idoso estava lúcido, vendo a morte como
alívio do sofrimento. Salientou se tratar de um caso que se insere na dimensão da
Ortotanásia. E se o paciente se recusa ao ato cirúrgico mutilatório, conclui o relator,
invocando o princípio da dignidade da pessoa humana: em relação ao seu titular, o
79
direito à vida não é absoluto e nem pode ele ser obrigado a se submeter à cirurgia
com risco (art. 15 CCB). Não acatou o pedido do promotor de justiça para que fosse
realizada a cirurgia mutilatória sem consentimento do enfermo.
Com base na doutrina e nas jurisprudências supramencionadas, a
Ortotanásia parece caminhar no sentido de assumir seu papel precípuo, qual seja,
tutelar a autodeterminação da pessoa enferma, bastando para isso que tenha ela
capacidade, apresente estado de terminalidade e manifeste vontade de forma livre
(consentimento). A orientação dessa decisão poderá se tornar referência e
precedente para julgamentos de muitas outras situações concretas para a
consecução de efetividade da autodeterminação da pessoa enferma.
80
6 ORTOTANÁSIA NA PERSPECTIVA DA CIÊNCIA MÉDICA
Pela leitura realizada em Eduardo Luiz Santos Cabette (2013, p. 13), infere-se
que o Conselho Federal de Medicina tenha consagrado a aprovação deontológica
em relação à prática da Ortotanásia, ao aprovar a Resolução nº 1.805/06, que
permite aos médicos a interrupção de tratamentos que visam prolongar inutilmente a
vida de pessoas em estado terminal, irreversível e sem possibilidade de cura, que
disciplina:
Art. 1º. Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é
permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos ou
tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os
cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao
sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a
vontade do paciente ou de seu representante legal (BRASIL.
RESOLUÇÃO No 1805/06, CFM – Cf. ANEXO 6).
Em análise à referida Resolução do CFM, declara Cabette:
O Conselho Federal de Medicina tem procurado deixar claro que não
está convalidando a prática da eutanásia, mas sim da ortotanásia, de
modo a apenas antecipar uma morte inevitável, sem nem mesmo
causá-la por ação ou omissão. Ademais, a decisão sobre a adoção
do procedimento não é arbitrariamente conferida ao profissional da
medicina. As responsabilidades pela decisão são compartilhadas
entre o médico e o doente ou seus representantes legais (CABETTE,
2013, p. 35).
6.1 O Fenômeno da humanização da Medicina
Pessini e Barchifontaine dedicam um tópico do livro Problemas atuais de
Bioética à humanização sob a epígrafe “Uma exigência fundamental: Todo ser
humano deve ser tratado humanamente” (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p.
133). Advertem que, embora entre as religiões haja muitas diferenças e que elas não
conseguem resolver os problemas sociais, ambientais, políticos e econômicos da
terra, elas podem fornecer
[...] uma mudança na orientação interna de toda uma mentalidade, do
“coração” dos povos e a conversão de um caminho falso para uma
nova vida. A humanidade precisa urgentemente de reformas sociais
81
e ecológicas, mas também precisa de uma renovação espiritual
(PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p. 133).
Os autores supramencionados ressaltam que homens e mulheres são
desrespeitados no mundo todo, são roubados em sua liberdade e têm seus direitos
humanos pisoteados, “mas a força não faz o direito” (PESSINI; BARCHIFONTAINE,
2014, p. 134) e que precisam ser tratados humanamente, todos os seres humanos,
sem distinção de raça, cor, idade, sexo, capacidade, língua, religião: todos possuem
uma dignidade inalienável e intocável. Ninguém está acima do bem e do mal, “todo
ser humano é obrigado a se comportar de maneira genuinamente humana, fazer o
bem e evitar o mal!” (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p. 134).
Comentam os autores:
Há um princípio comum a muitas tradições religiosas e éticas da
humanidade: O que você não quer que lhe façam, não faça aos
outros. Ou em termos positivos: O que você quer que lhe façam, faça
aos outros! Essa há de ser a norma irrevogável, incondicional para
todas as áreas da vida, para famílias e comunidades, para raças,
nações e religiões (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p. 134).
Trata-se de princípio universal, aplicável a toda sociedade em qualquer
tempo. Assim também deve ser a Medicina: buscar proteger a dignidade da pessoa
que está sob cuidados médicos. Em sua prática cotidiana, em meados do século XX,
a Medicina era marcada por uma característica: o médico era quem sabia o melhor
para o paciente, agia conforme sua consciência profissional no sentido de salvar a
vida, sem se preocupar com a vontade do paciente, que, longe de ser agente de sua
vida, era tratado como um ser sem vontade própria, aquele que devia aceitar
resignadamente as imposições médicas, o que não modificou muito através dos
anos, mesmo com a normativa do CFM. A Medicina se tornou fria, tratando o
paciente mecanicamente, conforme expressa Kübler-Ross:
Quais os fatores, se é que existem, que contribuem para a crescente
ansiedade diante da morte? O que acontece num campo da medicina
em evolução em que nos perguntamos se ela continuará sendo uma
profissão humanitária e respeitada ou uma nova, mas
despersonalizada ciência, cuja finalidade é prolongar a vida em vez
de mitigar o sofrimento humano? [...] O que acontece numa
sociedade que valoriza o QI e os padrões de classe mais do que a
82
simples questão do tato, da sensibilidade, da percepção, do bom
senso no contato com os que sofrem? (KÜBLER-ROSS, 2012, p. 15).
“A morte humanizada é abordada por Kübler-Ross e Saunders, que
escreveram sobre cuidados aos pacientes e familiares na aproximação da morte,
acolhendo o sofrimento. O paciente volta a ser centro da ação, resgatando seu
processo de morrer” (ARIÈS e KOVÁCS citados por KOVÁCS, 2014, p. 45). Essa
humanização da Medicina, buscada, mas ainda não efetivada, tem sido alvo de
estudos, que envolvem a Ortotanásia – a morte em paz, serena e sob cuidados.
6.1.1 Releitura do juramento hipocrático
Inicialmente, apresenta-se o Juramento de Hipócrates na íntegra para
introduzir as reflexões a ele concernentes:
Juramento de Hipócrates
Eu juro, por Apolo médico, por Esculápio, Hígia e Panacea, e tomo
por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir,
segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue:
Estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte;
fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens;
ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se
eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem
compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de
todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os
discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só
a estes.
Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e
entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém.
A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um
conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma
mulher uma substância abortiva.
Conservarei imaculada minha vida e minha arte.
Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado;
deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam.
Em toda casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me
longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução, sobretudo dos
prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou
escravizados.
Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no
convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso
divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.
Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado
gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre
entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário
aconteça (BRASIL: CREMESP, 2015).
83
O juramento de Hipócrates, o pai da Medicina, ainda tem sido interpretado de
forma radical e extremista, levando a crer que salvar a vida é um ato que não
comporta relativização, tampouco considera a dignidade do enfermo. Isso porque as
pessoas negam a morte, não conseguem conceber a finitude da vida humana sem o
sentido de aniquilação ou perda (RINPOCHE citado por CABETTE, 2013, p. 48)
Explica Cabette:
Nesse contexto surge a tendência do homem moderno a dar ênfase
à capacidade de superação e reconstrução da natureza, inclusive a
humana, através da ciência e da tecnologia. Um dos grandes
objetivos certamente é a superação da finitude representada pela
morte, levando a um apego desmedido à manutenção da vida a
qualquer custo, adiando a grande frustração do fim implacável
(CABETTE, 2013, p. 48).
Entretanto, o Código de Ética Médica (vigente a partir de 2010) realizou
adequações que atendem à atual perspectiva dos direitos da personalidade, ou seja,
valoriza a vontade do enfermo, prima pela autodeterminação, pelo consentimento e
pela sadia relação médico-paciente. É nesse contexto que se faz necessária a
releitura do juramento que os médicos fazem no momento da formatura; é crucial
que o juramento seja entendido pelo viés da dignidade da pessoa humana e do
respeito ao enfermo. Nesse sentido, se manifestou o Edson de Oliveira Andrade,
presidente do CFM quando a Resolução Nº 1805/06 foi editada: “a medicina não
pode ser algo arrogante que acha que pode superar os limites da natureza”
(ANDRADE citado por CABETTE, 2013, p. 36).
É necessária a releitura desse juramento, à luz da dignidade da pessoa
humana, dos princípios da Bioética que norteiam a atuação médica neste novo
milênio, consoante ensina Ligiera, que reconhece a importância da autonomia do
enfermo:
Na defesa do princípio da beneficência tem o médico de se precaver
contra a obstinação terapêutica, não mobilizando meios
tecnologicamente avançados quando é previsível, sob o ponto de
vista científico, que não se vão obter os benefícios esperados. Assim,
e particularizando nos doentes terminais, as atitudes terapêuticas
deverão estar subordinadas à autonomia, à dignificação da morte e
ao grau de sofrimento do doente (LIGIERA, 2005, p. 410).
84
O atuar médico deve estar sujeito à autonomia, à autodeterminação da
pessoa enferma, contextualizado às disposições do CEM que se encontram em
plena sintonia com a atual perspectiva dos direitos de personalidade – a proteção à
dignidade da pessoa humana. Até porque, em sua inspiração, Hipócrates
reconheceu a possibilidade de recusa a tratamentos fúteis, como se pode observar
em Oliveira e Barbas, ao trazerem a seguinte reflexão:
Historicamente, Hipócrates concebeu três objetivos para a medicina:
aliviar o sofrimento do doente, diminuir a agressividade da doença e
recusar fazer o tratamento nos quais a medicina reconhece que não
pode mais contribuir. Na Antiguidade, se um médico tentasse
prolongar a vida de uma pessoa estaria sendo considerado antiético
– pensamento este que chegou até a Idade Média (AMUNDSEN DW
citado por OLIVEIRA; BARBAS, 2013, p. 330).
A partir dessa assertiva, percebe-se que, ao idealizar as práticas médicas
éticas, Hipócrates expressava uma tônica de cuidado em relação ao paciente, que ia
desde o alívio ao sofrimento até a recusa a tratamentos. Importante considerar que
ainda não havia a tecnologia de hoje – capaz de prolongar a vida por anos a fio,
sendo o prolongamento, à época, por um tempo quase inexpressivo, se comparado
aos dias atuais. E prosseguem os autores:
Os escritos hipocráticos informam que o médico deve conhecer os
limites de sua arte e deve evitar a arrogância. No final do século XVI,
Francis Bacon, o pai da ciência moderna, considerou três finalidades
para a medicina: preservação da saúde, a cura das doenças e o
prolongamento da vida. Insistia que era necessário encontrar meios
que tornassem a morte menos desagradável (JECKER citado por
OLIVEIRA; BARBAS, 2013, p. 330).
Tem-se então um referencial já manifesto de que o juramento hipocrático em
sua essência não pretendeu a obstinação terapêutica, ao contrário, desde sua
inspiração previa a recusa de tratamentos inúteis, o que está em consonância com a
vigente legislação e com o regramento das resoluções do CFM.
85
6.1.2 Importância do consentimento para a Medicina do terceiro milênio
O Código de Ética Médica (Resolução Nº 1931 do CFM) dispõe sobre o
respeito à vontade e o consentimento da pessoa em vários artigos, fato esse que
ratifica a importância dos direitos de personalidade a partir da concepção do
enfermo como agente ou sujeito de suas escolhas, e não mais como paciente ou
objeto da medicina. É o que se constatou, em outra oportunidade:
O vigente CEM (Código e Ética Médica), que é a deontologia da
Medicina, espelha os valores éticos do exercício dessa atividade de
relevante valor social, demonstra sua preocupação com a proteção
aos direitos da personalidade, com a vontade da pessoa e
principalmente no que tange ao seu consentimento para intervenções
em sua própria esfera psicofísica, exigindo respeito à livre decisão do
paciente, agora agente consciente de suas escolhas e decisões
(CABRAL, 2011, p. 56).
O artigo 22 do vigente Código de Ética Médica (CEM) preconiza: “É vedado
ao médico: Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu
representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo
em caso de risco iminente de morte”. Sobre esse artigo, comentou-se:
Observe-se que o artigo 22 do Código de Ética supramencionado
veda ao médico efetuar qualquer procedimento sem o
esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu
responsável legal, salvo em iminente perigo de morte. Seria
despiciendo alargar comentários no sentido de que em caso de
emergência, estará o médico livre para proceder consoante seu
prudente arbítrio e a consciência do dever profissional, estando
desobrigado de consentimento para agir. Não resta dúvida de que da
interpretação dos artigos em comento, infere-se que o CEM prestigia
o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o da Boa-fé Objetiva,
estando em plena sintonia com as exigências impostas pelo
ordenamento jurídico no que tange ao respeito à pessoa (CABRAL,
2011, p. 58).
Além desse, o art. 31 prevê uma importante vedação: “Desrespeitar o direito
do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de
práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”.
Significa dizer que o médico somente poderá agir sem consentimento se houver
risco de morte, do contrário, deverão prevalecer a autonomia e a decisão do
paciente.
86
6.2 Legislação afeta à deontologia médica
A normativa reguladora da atividade médica no Brasil está contida nas
resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM), sendo uma das mais
importantes, a Resolução nº 1.931 do CFM, o Código de Ética Médica (CEM), de 17
de setembro de 2009, estatuto básico da deontologia médica. O CEM e a Resolução
nº 1.805 do CFM, de 09 de novembro de 2006, são os textos normativos em vigor
mais avançados em relação à disciplina da Ortotanásia.
6.2.1 Disposições do Código de Ética Médica
A Resolução nº 1.931 do Conselho Federal de Medicina (CFM), o Código de
Ética Médica (CEM), de 17 de setembro de 2009, estatuto básico da deontologia
médica, trata inclusive da garantia fundamental da vedação a tratamento desumano
ou degradante (artigo 5º, III, CF) e traz, segundo Pessini e Barchifontaine (2014, p.
452), como uma das grandes novidades, a aprovação da Ortotanásia, apontando,
dentre os princípios fundamentais, os incisos VI e XXII como importantes sobre o
tema. Eis a redação:
Inciso VI – O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e
atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus
conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o
extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa
contra sua dignidade e integridade.
[...]
XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico
evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos
desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os
cuidados paliativos apropriados (BRASIL: RESOLUÇÃO Nº
1931/2009).
Ambos dizem respeito à prevenção de sofrimento, proteção do doente e
preservação de sua dignidade. E ainda quanto ao consentimento da pessoa para a
prática da Ortotanásia, encontram-se os seguintes artigos:
É vedado ao médico:
Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu
representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser
realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.
87
Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração,
desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou
sob qualquer pretexto.
Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de
decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como
exercer sua autoridade para limitá-lo.
Art. 25. Deixar de denunciar prática de tortura ou de procedimentos
degradantes, desumanos ou cruéis, praticá-las, bem como ser
conivente com quem as realize ou fornecer meios, instrumentos,
substâncias ou conhecimentos que as facilitem.
Importante observar ainda as vedações contidas no art. 88:
Art. 88. Negar, ao paciente, acesso a seu prontuário, deixar de lhe
fornecer cópia quando solicitada, bem como deixar de lhe dar
explicações necessárias à sua compreensão, salvo quando
ocasionarem riscos ao próprio paciente ou a terceiros.
Todas essas disposições atestam a proteção à vontade e aos demais direitos
de personalidade do paciente.
6.2.2 Ortotanásia à luz da Resolução Nº 1805 de 2006 do CFM
Visando auxiliar os médicos em relação às decisões a serem tomadas quanto
às doenças crônicas incuráveis, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução
1805/06, que autoriza os médicos a limitarem ou suspenderem procedimentos e
tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal de enfermidade
grave e incurável, desde que respeitada a vontade da pessoa enferma ou de seu
representante legal. A Resolução deve apresentar repercussões nas práticas
profissionais em relação aos doentes terminais (SILVA et al., 2014).
Visando atender ao clamor por uma morte digna e humanizada, a partir de
2006, então, a Ortotanásia passou a ser autorizada pelo CFM, pois a Resolução Nº
1805 torna lícita a prática médica prevista no artigo 1º, conforme se observa na
redação original:
Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e
tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de
enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou
de seu representante legal.
88
A Resolução 1805 (Cf. íntegra ANEXO 5) teve efeitos suspensos
temporariamente por ação do Ministério Público, ao entender que o CFM estava
disciplinando matéria Penal, o que não é de sua competência para legislar. O MP
alegou que suspensão ou limitação de tratamento seria um abreviamento da vida,
fato que corresponderia à eutanásia passiva. Porém, em 2010, o impedimento por
ele apontado foi julgado improcedente pela 14ª Vara Federal, ao argumentar que o
CFM tem competência para normatizar essa matéria, que versa sobre ética médica e
consequências disciplinares, não sobre direito penal. Além disso, tramita no
Congresso Nacional o projeto de lei sob o número 6715/09, que pretende retirar do
Código Penal a proibição quanto à limitação de tratamento para pacientes com
doenças incuráveis e sem possibilidades de cura. (SANCHEZ Y SANCHES; SEIDL,
2013).
Estudos têm sido realizados com médicos a fim de se verificar os efeitos da
Resolução 1.805/06. Em artigo que entrevistou cem médicos que trabalhavam em
Unidades de Terapia Intensiva, em São Paulo, constatou-se que 49% deles
desconheciam a Resolução. Houve consenso entre os entrevistados em relação à
obrigação de o médico esclarecer ao paciente ou seu representante legal sobre as
modalidades terapêuticas adequadas para cada situação; e ainda que o paciente
deve receber os cuidados necessários ao alívio dos sintomas que levam ao
sofrimento, sendo-lhe assegurado o conforto físico e a assistência integral, inclusive
o direito à alta hospitalar, para morrer no seio da família. (VANE; POSSO, 2011).
Dessa forma, constatou-se que a classe médica possui pouco conhecimento a
respeito da aplicação da Ortotonásia.
No mesmo sentido, pesquisa realizada na Região Noroeste Fluminense em
2014 apontou que as pessoas não sabem o que é Ortotanásia, a classe médica
possui conhecimento teórico e os profissionais do direito conhecem melhor as
questões referentes à responsabilidade civil:
Pode-se observar que a classe médica, na maioria dos municípios,
teve uma resposta favorável, apresentando conhecimento teórico
sobre o tema, por se tratar de uma situação frequente do cotidiano
médico. Já a classe dos operadores do direito analisaram a temática
com uma outra ótica, sendo o referido assunto abordado com mais
frequência nas hipóteses de ameaça e/ou violação ao direito à vida e
à dignidade da pessoa humana, necessitando, por conseguinte, de
ajuizamento de ações para garantir tais direitos. No que tange a
classe popular verificou-se que muitos desconhecem a Ortotanásia,
89
bem como confundem a mesma com a Eutanásia e a Distanásia, não
sabendo diferenciá-las e nem o seu real significado perante a
sociedade pós-moderna. (CHAVES FILHO, 2015, p. 252).
É necessário realçar que a Resolução em comento não se restringiu a admitir
a limitação terapêutica, mas teve o cuidado de estabelecer no art. 2º a adoção de
cuidados capazes de diminuir a dor e evitar o sofrimento, buscando o bem-estar do
enfermo terminal. E o fez em defesa da dignidade da pessoa humana, da proteção
do enfermo em estado terminal e da busca pelo seu bem-estar. É o que se infere da
exposição de motivos no preâmbulo da Resolução 1805/06 (Cf. ANEXO 6).
Cabette ressalta que a referida Resolução, por si só, não pode solucionar a
questão da aplicação da Ortotanásia no Brasil, mas deve ser considerada sua
utilidade para os debates que se ampliam, atentando-se para a humanização da
medicina quanto ao reconhecimento de seus limites e à prioridade ao ser humano e
não às técnicas e tratamentos (CABETTE, 2013, p. 39) e ainda que o CFM
esclarece não convalidando a prática da eutanásia, mas da Ortotanásia, sem causar
a morte por ação ou omissão (CABETTE, 2013, p. 36).
6.2.3 Lei Estadual Nº 10.241 /1999 do Estado de São Paulo (Cf. íntegra ANEXO 2)
Embora não utilize em seu texto a expressão Ortotanásia, a Lei Estadual Nº
10.241/99 de São Paulo (Cf. ANEXO 2), promulgada quase sete anos antes da
Resolução 1.805/06 do CFM, traz a noção dos procedimentos ortotanásicos,
regulando os direitos dos usuários do sistema de saúde e permitindo aos doentes
recusarem “tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida”. O
Governador Mário Covas sancionou a lei “como político e como paciente”, já com
diagnóstico de câncer, e dela se utilizou visando afastar o “prolongamento artificial
da vida” (AGUIAR citado por CABETTE, 2013, p. 36).
A Lei “dispõe sobre os direitos dos usuários dos serviços e das ações de
saúde e dá outras providências” (Cf. ANEXO 2). Ainda garante ao usuário ou
representante legal o direito de recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários
que objetivam prolongar a vida. Possui dois artigos e 24 incisos, de cunho
humanista. Visa colocar o paciente no centro dos cuidados de saúde, evitando a
desumanização das instituições de saúde que tratam o doente como objeto passivo
de cuidados. O inciso XXIII diz respeito ao paciente terminal, fora de possibilidades
90
terapêuticas; o XXIV, à escolha do local onde deseja morrer. A lei impõe respeito à
autodeterminação e à autonomia da pessoa, não cabendo práticas paternalistas
concernentes ao princípio da beneficência, nem no momento da morte (PESSINI,
2007, p. 193-194).
6.2.4 Adoção de cuidados paliativos e o Projeto de Lei Nº 524/2009
A expressão paliativo se originou do vocábulo pallium, palavra latina que
significa capa (ou manto) e que representa uma metáfora para designar os cuidados
paliativos: um manto protetor e acolhedor, que ocultaria o que está subjacente; no
caso, os sintomas que emergem da progressão da doença (MELLO, 2009). A
adoção de cuidados paliativos aponta para a criação e implementação dos hospices.
Explica Léo Pessini que a medicina paliativa se desenvolveu em grande parte como
resultado da visão e inspiração de Cicely Saunders, Hospice Londres, 1967; a
palavra hospício foi utilizada por longos anos para indicar lugar de repouso para
viajantes, e sobreviveu associada a hospitais e asilos. Para Saunders, essa
expressão significaria uma forma de cuidado em que se agrega a hospitalidade e
calor de uma pousada às habilidades de um estabelecimento hospitalar. A medicina
paliativa se desenvolve como reação à medicina tecnificada da atualidade (PESSINI,
2007, p. 211). Ampliando as informações sobre o tema, esclarece Andréa Von-Held
que, a partir dos hospices, iniciou-se
[...] um novo conceito de cuidar, e não só curar, focado no paciente
até o final de sua vida. Diante desse momento, um novo campo foi
criado, o da medicina paliativa, incorporando a essa filosofia equipes
de saúde especializadas no controle da dor e no alívio de sintomas.
Utilizando-se de uma abordagem multidisciplinar, compreende o
paciente, a família e a comunidade. Muitos aspectos desses
cuidados são aplicáveis durante todo o curso da doença, visando
reduzir o sofrimento, oferecendo cuidado em todos os aspectos,
como também aliviar as expectativas e necessidades físicas,
psicológicas, sociais e espirituais, integrando os valores culturais,
religiosos, crenças e práticas. (VON-HELD, 2015, p. 160).
A medicina paliativa – embora descrita como “de baixa tecnologia e de alto
contato humano” –, não se opõe à tecnologia médica, mas busca no amor e não na
ciência a força para sustentar o cuidado do paciente (TWYCROSS citado por
PESSINI, 2007, p. 211). Nesse sentido, foi tomada a iniciativa do Projeto de Lei nº
91
524, de 2009, de autoria do Senador Gerson Camata, que versa sobre os direitos
das pessoas em fase terminal de doença, principalmente no que tange os
procedimentos terapêuticos, paliativos e mitigadores do sofrimento. Alerta no art. 2º
para o fato de que o paciente naquele estado tem direito aos cuidados paliativos e
mitigadores do sofrimento, proporcionais e adequados à sua situação. No mesmo
sentido, o artigo 4º determina que os profissionais responsáveis pelo cuidado às
pessoas com doença em fase terminal devem procurar o alívio da dor e do
sofrimento, sem comprometimento da lucidez ou da capacidade de percepção, com
objetivo de conservar os laços afetivos e a interação, evitando-se a morte social.
Complementa o art. 5ª do Projeto de Lei que é direito do paciente com doença
terminal receber toda a informação sobre possibilidades terapêuticas, paliativas do
sofrimento, adequadas e proporcionais à sua situação. O §1º garante que, caso o
paciente esteja incapaz de avaliar e compreender as mencionadas informações, elas
deverão ser fornecidas aos familiares ou ao representante legal, podendo solicitar
uma segunda opinião médica. O art. 5º permite ainda ao médico assistente limitar ou
suspender os tratamentos extraordinários ou desproporcionais destinados à
manutenção artificial da vida, garantida a possibilidade de obter um segundo
posicionamento médico a respeito do caso. Entretanto, o art. 6º preconiza que, se o
paciente
lúcido
tiver
manifestado
expressamente
pela
continuidade
dos
procedimentos e tratamentos, deverá o médico respeitar essa decisão. Isso porque
a grande questão da aplicação da Ortotanásia, concernente à Medicina e ao Direito,
reside no aspecto do consentimento do paciente, mediante explicação mais clara e
completa, fornecida pelo profissional da saúde à pessoa – que é alçada da
qualidade de paciente a agente de suas decisões – e, em pleno gozo da
capacidade, decide a que tratamento prefere se submeter (ou não), restringindo-se à
decisão da família somente os casos em que o próprio doente apresente ausência
ou redução de discernimento. Em consonância com essa perspectiva do Direito, a
Medicina inaugura uma era permeada pela humanização, que passa a valorizar mais
a pessoa e os direitos inerentes à personalidade como o direito à informação, ao
consentimento e à autodeterminação – o exercício de escolhas livres e conscientes.
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), em
livro intitulado “Cuidados Paliativos” (2008), sustentou que a técnica do cuidado
paliativo, em crescente importância no Brasil, traz em seu contexto dois pilares: olhar
para o enfermo como um todo, e não como o objeto a ser estudado, ou um ser
92
segmentado; e reconhecer a importância de um trabalho harmonioso em grupo com
outros profissionais da área de saúde. Parte ainda da premissa de que em qualquer
estágio de saúde em que se encontrar o paciente há o que ser feito para ampará-lo
e manter sua vida digna. Segundo a Organização Mundial de Saúde (2002),
Cuidado Paliativo é a abordagem que promove qualidade de vida de
pacientes e seus familiares diante de doenças que ameaçam a
continuidade da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento.
Requer a identificação precoce, avaliação e tratamento impecável da
dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual
(OMS citada por CUIDADO PALIATIVO, CREMESP, 2008).
Importante destacar, na esteira do entendimento do CREMESP, que só há
cuidados paliativos quando realizados por equipe multiprofissional em trabalho
harmônico e direcionado. O foco da intervenção não é a doença a ser enfrentada, é,
todavia, o doente, entendido com um ser único, ativo, com direito à informação e à
autonomia plena para as decisões a respeito de seu tratamento. A prática correta
dos Cuidados Paliativos prioriza a atenção individualizada ao doente e à sua família
e busca êxito no controle de todos os sintomas e prevenção do sofrimento. Nesse
ponto, destaca-se a sintonia entre a Ortotanásia e os cuidados paliativos, visando
que a morte se dê de forma natural, no tempo certo, amparada e com o mínimo de
dor e sofrimento. Por fim, cabe ressaltar os princípios que norteiam os cuidados
paliativos enunciados pela Organização Mundial de Saúde em 2002:
a) promove o alívio da dor e de outros sintomas estressantes;
b) reafirma a vida e vê a morte como um processo natural;
c) não pretende antecipar e nem postergar a morte;
d) integra aspectos psicossociais e espirituais ao cuidado;
e) oferece um sistema de suporte que auxilie o paciente a viver tão
ativamente quanto possível, até sua morte;
f) oferece um sistema de suporte que auxilie a família e entes
queridos a sentirem-se amparados durante todo o processo da
doença;
g) deve ser iniciado o mais precocemente possível, junto a outras
medidas de prolongamento de vida, como a quimioterapia e a
radioterapia, e incluir todas as investigações necessárias para melhor
compreensão e manejo dos sintomas (PESSINI; BERTACHINI,
2005).
O Projeto de Lei nº 524/2009 (Cf. ANEXO 7) do Senado Federal traz
oportunas definições de procedimentos paliativos, cuidados básicos, tratamentos
93
desproporcionais e extraordinários nos incisos II a VI do seu artigo 3º, que abaixo se
colaciona:
II – procedimentos paliativos e mitigadores do sofrimento:
procedimentos que promovam a qualidade de vida do paciente e de
seus familiares, mediante prevenção e tratamento para o alívio de
dor e de sofrimento de natureza física, psíquica, social e espiritual;
III – cuidados básicos, normais e ordinários: procedimentos
necessários e indispensáveis à manutenção da vida e da dignidade
da pessoa, entre os quais se inserem a ventilação não invasiva, a
alimentação, a hidratação, garantidas as quotas básicas de líquidos,
eletrólitos e nutrientes, os cuidados higiênicos, o tratamento da dor e
de outros sintomas de sofrimento.
IV – procedimentos proporcionais: procedimentos terapêuticos,
paliativos ou mitigadores do sofrimento que respeitem a
proporcionalidade entre o investimento de recursos materiais,
instrumentais e humanos e os resultados previsíveis e que resultem
em melhor qualidade de vida do paciente e cujas técnicas não
imponham sofrimentos em desproporção com os benefícios que
delas decorram;
V – procedimentos desproporcionais: procedimentos terapêuticos,
paliativos ou mitigadores do sofrimento que não preencham, em cada
caso concreto, os critérios de proporcionalidade a que se refere o
inciso IV;
VI – procedimentos extraordinários: procedimentos terapêuticos,
ainda que em fase experimental, cuja aplicação comporte riscos
(BRASIL. Projeto de Lei nº 524/2009).
Tendo em vista os parâmetros dos cuidados paliativos e do tratamento
proporcional, cabe à equipe médica diagnosticar as condições de sobrevida, optar
pelos tratamentos que minorem o sofrimento e promovam a dignidade humana, sem
deixar de suprir o paciente e a sua família de todas as informações e ferramentas
para que ele continue decidindo os rumos de sua própria vida.
94
7 A ORTOTANÁSIA NO BRASIL
A aplicabilidade da conduta médica em relação à Resolução Nº 1805/06 deve
atender ao paradigma “curar às vezes, aliviar muito frequentemente e confortar
sempre” (MARREIRO, 2014, p. 140). Aplicar a Ortotanásia implica obrigatória
observância dos requisitos implícitos na Resolução, quais sejam: constatação do
estado de terminalidade da doença; consentimento do enfermo (subsidiária e
excepcionalmente o do representante legal ou da família); e adoção de cuidados
paliativos. É o que se aborda no presente capítulo, além da efetividade da
autodetrminação da pessoa enferma, isto é, as providências aptas a resguardarem o
cumprimento de sua vontade em relação à aplicação da Ortotanásia.
7.1 Requisitos médicos e a Ortotanásia no Brasil
A aplicação da Ortotanásia está em consonância com o Direito no que diz
respeito aos princípios constitucionais, em especial, a dignidade da pessoa humana,
a liberdade, o direito à autodeterminação e ao não sofrimento. Também atende à
deontologia médica, tendo em vista expressa autorização do CFM, por meio de
Resolução própria, disciplinando a conduta no âmbito médico. Apontam-se os
requisitos do estado de terminalidade da doença, consentimento e cuidados
paliativos para a aplicação ética do procedimento ortotanásico.
7.1.1 Constatação do estado de terminalidade
Antes de se adentrar ao tema da terminalidade, vale esclarecer que, embora
a expressão doente terminal esteja consagrada na literatura pertinente, alguns
autores como Preliliana Barreto Moraes, contestam a literalidade desse teor, ao
argumento de que a terminalidade refere-se à doença, não ao enfermo, a fim de se
evitar descaso em relação à pessoa do paciente, passando a impressão de restar
nada a fazer em seu benefício (MORAIS citada por MARREIRO, 2014). Por esse
motivo, adotar-se-á a expressão doença terminal, e não enfermo ou doente terminal.
Há certos tratamentos para doenças graves que podem manter o paciente
vivo por muitos anos, mas que, em algum momento da evolução da doença, podem
deixar de ser efetivos, o que transforma o paciente grave em paciente terminal.
95
Doença grave e doença terminal não se confundem, uma vez que doenças graves
podem ser reversíveis mediante utilização de recursos terapêuticos apropriados
(TAKITO et al., 2004). Estabelece-se essa diferença, pois doença grave não significa
doença terminal; no caso desta, o organismo do paciente já não responde aos
medicamentos, as funções vitais caminham para a paralisação – a denominada
falência múltipla de órgãos –; enquanto naquela existe uma doença que está sob
controle de medicamentos e procedimentos adequados.
O avanço tecnocientífico deste novo milênio a serviço da saúde, conforme já
comentado, ampliou o tempo de duração da vida humana, mas trouxe a reboque o
processo de medicalização da morte, acarretando aumento quantitativo de vida,
entretanto, preocupante do ponto de vista qualitativo, no caminho inverso ao que se
tem buscado, que é a qualidade de vida do doente. Não se pode dizer que uma
doença esteja em fase terminal sem cauteloso exame, sendo necessário observar
os critérios definidores do estado de terminalidade de uma doença. Suzana Braga
enumera as principais características para a identificação do estado terminal:
a) presença de uma doença em fase avançada, progressiva e
incurável;
b) falta de possibilidades razoáveis de resposta ao tratamento
específico;
c) grande impacto emocional relacionado à presença ou
possibilidade incontestável da morte;
d) prognóstico de vida reduzido em dias e no máximo alguns meses
(BRAGA, 2008, p. 159).
Importante observar que no estado terminal a doença incurável progride; além
disso, a resposta aos tratamentos não é razoável e há instabilidade emocional pela
aproximação da morte (que pode ser inclusive medo), restando ao paciente alguns
dias ou meses de vida. A angústia dos últimos dias é comentada por Léo Pessini,
que aponta algumas atitudes a serem implementadas no sentido de aprender a lidar
com a angústia, salvaguardando a consciência e promoção de bem-estar do
paciente por meio da assistência:
A angústia terminal não é causada por mau funcionamento orgânico
ou dano, mas pela própria percepção e compreensão da situação.
Por exemplo, existem pacientes que podem pensar que sua condição
é inaceitável ou indigna por causa da dependência e da falta de
controle físico, ou sem esperança por causa da memória dolorosa de
experiências conflitivas de relacionamento com os outros, memórias
96
que agora incomodam. O desafio é lidar com esta angústia mental,
não pelo caminho da supressão da consciência mediante sedação,
mas por meio de aconselhamento e assistência espiritual (PESSINI,
2007, p. 210-211).
Comenta Marreiro que caracterizar o estado terminal é complexo, pois é
necessário que sejam considerados, além das questões clínicas e objetivas
referentes à doença, a externalidade psicoespiritual do enfermo em face do
processo de morte (MARREIRO, 2014). Assim, é importante a equipe que assiste
atentar para a pessoa, seus sentimentos, suas expectativas, estado depressivo para
auxiliá-la a sentir-se em paz e com o mínimo de mal-estar possível.
7.1.2 Consentimento da pessoa enferma
Para a prática da Ortotanásia, é indispensável a conjugação de alguns
requisitos como a constatação do estado de terminalidade, o consentimento do
enfermo e a adoção de cuidados paliativos. A atual perspectiva do Direito e da
Medicina faz ruir a clássica interpretação do juramento hipocrático que mantinha o
médico refém da obrigação de “salvar a vida” em qualquer circunstância. Agora,
várias disposições legais enunciam a liberdade de a pessoa somente se submeter a
certos tratamentos se optar por eles, devendo o médico, pelas razões insculpidas no
Código de Ética Médica, respeitar a vontade e a decisão da pessoa. No mesmo
sentido, o Código Civil Brasileiro (CCB) no art. 15 prevê a inexigibilidade de alguém
ser submetido a tratamento ou cirurgia com risco de vida. Há que se considerar,
nesse contexto, o cumprimento do dever de informação pelo médico, que nada mais
é do que o consentimento informado (uma questão de Biodireito). Explicam Cristiano
Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que
O profissional da medicina tem de atuar em conjunto com o paciente,
orientando sem coagir e sem menosprezar a vontade. É o chamado
consentimento informado – que por sinal, traz a reboque a
necessidade de o médico advertir, expressamente, o seu paciente
para todo e qualquer efeito conhecido previamente do procedimento
a ser adotado, permitindo-lhe exercer, com amplitude, a sua
autonomia. Até porque o paciente é sujeito e não objeto do
tratamento médico (FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 214).
No mesmo sentido, esclareceu-se, em outra oportunidade:
97
O Consentimento Informado, então, reveste-se de capital
importância, já que se torna o canal em que se estabelece um
diálogo, através do qual, o médico cientifica a pessoa sobre detalhes
do tratamento a ser realizado, vantagens, possíveis desvantagens,
eventuais consequências e, principalmente, os riscos aos quais irá se
submeter (CABRAL, 2011, p. 26).
Esse diálogo é exatamente o ponto de convergência entre a Ética, a Medicina
e o Direito: a Medicina no que diz respeito aos procedimentos a serem adotados e
suas consequências (uma passagem da teoria à prática que aproxima médico e
paciente); o Biodireito (direito do paciente) no que tange ao cumprimento do dever
de informação; a Bioética quanto às condutas morais que devem ser praticadas em
relação ao enfermo, respeitando-o como pessoa. Para qualquer atuação na esfera
psicofísica do enfermo, é indispensável o seu consentimento ou, subsidiariamente, o
da família. Por isso se diz que os direitos de personalidade ou existenciais (aqueles
decorrentes da dignidade da pessoa humana) são fundamentais a partir da
consagração da dignidade da pessoa humana como axioma, o valor fundamental do
ordenamento jurídico.
É importante frisar que o consentimento deve advir diretamente do enfermo,
pois é ele o sujeito de direitos, o titular da vida, que deve autorizar qualquer
intervenção ou procedimento no seu próprio corpo, em respeito à sua qualidade de
pessoa, à sua dignidade e ao direito de autodeterminar-se; e, somente
subsidiariamente, conforme se mencionou, como por exemplo na hipótese de
incapacidade do enfermo, deve o direito de consentir ser deferido à sua família ou
ao seu representante legal.
7.1.3 Adoção de cuidados paliativos
A medicina paliativa, segundo Léo Pessini, enumera cinco princípios
importantes na atenção do doente terminal: veracidade (fundamento do princípio da
confiança, consistente em comunicar a verdade à pessoa enferma e seus
familiares); proporcionalidade terapêutica (empregar todas as medidas terapêuticas
que sejam proporcionais aos resultados); duplo efeito (refere-se aos efeitos positivos
e negativos consequentes de um mesmo procedimento); prevenção (previsão de
possíveis complicações e/ou sintomas e prevenção e aconselhamento capazes de
98
evitar sofrimentos desnecessários); não abandono (permanência junto ao paciente,
estabelecendo comunicação empática a fim de auxiliar o paciente em suas
decisões) (PESSINI, 2007).
Alguns princípios norteadores do cuidado paliativo são enunciados pela
Organização Mundial de Saúde em 2002 e apontados por Pessini; Bertachini: alívio
de dor e estresse; vida como processo natural; não antecipação nem postergação
da morte; suporte e auxílio ao paciente e à família até a morte; início ao tratamento o
mais rápido possível (PESSINI; BERTACHINI, 2005).
O Projeto de Lei nº 524/2009 do Senado Federal (Cf. ANEXO 4) define
procedimentos paliativos como cuidados básicos e explica o que seriam tratamentos
desproporcionais e extraordinários, nos incisos II a VI do seu artigo 3º. Os cuidados
paliativos seriam tratamento proporcional ao estado terminal, cabendo à equipe
médica diagnosticar as condições de sobrevida, optar pelos tratamentos que
minorem o sofrimento e promovam a dignidade humana, sem deixar de suprir o
paciente e a sua família de todas as informações e ferramentas para que o enfermo
continue decidindo os rumos de sua própria vida.
Leo Pessini e Christian Barchifontaine explicam que o paradigma de curar se
tornou refém do domínio tecnológico; já o paradigma do cuidado aceita “o declínio e
a morte como parte da condição do ser humano, uma vez que todos sofremos de
uma condição que não pode ser „curada‟, isto é, somos criaturas mortais” (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2014). Essa é a perspectiva dos denominados cuidados
paliativos: entendendo que a finitude se aproxima, evitar a dor e promover o bemestar, produzindo morte serena.
7.2 Efetividade da vontade do titular do bem jurídico “vida”
O que é efetividade? Explica Luís Roberto Barroso:
A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o
desempenho concreto de sua função social. Ela representa a
materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza
a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser
normativo e o ser da realidade social (BARROSO, 2009, p. 82-83).
Efetividade significa o processo de a norma sair das páginas dos códigos e se
materializar na vida do cidadão, cumprir o papel para o qual ela foi inspirada. Então,
99
no caso específico da Ortotanásia, efetividade consiste em fazer cumprir a vontade
da pessoa, em relação ao seu direito à autodeterminação; é, pois, a concretização
de um direito fundamental. Vale salientar a importância das garantias para a
efetividade dos direitos constitucionais:
Para que as diversas situações jurídicas subjetivas criadas pela
Constituição possam efetivamente realizar-se, é preciso que sejam
dotadas de garantias políticas, sociais e jurídicas. Vale dizer: são
imprescindíveis instituições, atitudes e procedimentos aptos a fazer
atuar, concretamente, o comando abstrato da norma (BARROSO,
2009, p. 87).
Ou seja, quando a norma disciplina uma matéria, dita comandos em abstrato
para situações concretas de vida que surgirão. Então, para que a lei se concretize, é
necessário – além de providências legislativas que trazem a disciplina ao mundo
jurídico – atitudes ante a ocorrência dos casos concretos, para que na vida das
pessoas, as normas sejam executadas, materializadas, passando os seus efeitos a
serem reais para aquele caso específico de determinada pessoa. Ou seja, se a
pessoa quer se valer da Ortotanásia, além da norma lhe permitir essa faculdade, é
necessário que as pessoas que a cercam tomem certas decisões no sentido de
implementar essa vontade para que de fato ela se concretize e venha a morrer da
forma como escolheu, emprestando efetividade à normativa referente à Ortotanásia.
Vale esclarecer que, embora o prontuário médico e a declaração de vontade
manifestada perante família e amigos sejam entendidas como diretivas antecipadas
de vontade (temas dos subtópicos desta seção), serão abordadas em tópicos
autônomos de forma a especificá-los em suas peculiaridades.
7.2.1 Registros no prontuário médico
O prontuário médico é o documento em que são lançadas pelo médico ou
equipe médica que assiste um paciente todas as informações referentes a consultas,
internações, procedimentos clínicos e cirúrgicos a que fora submetido o paciente,
além dos medicamentos prescritos. Recomenda o CEM a necessidade de o
prontuário conter anotações fidedignas, registradas de forma legível e compatíveis
com a realidade dos fatos e procedimentos adotados. Vedado ao médico:
100
Art. 87. Deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente.
§ 1º O prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a
boa condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em
ordem cronológica com data, hora, assinatura e número de registro
do médico no Conselho Regional de Medicina.
§ 2º O prontuário estará sob a guarda do médico ou da instituição
que assiste o paciente (BRASIL. Código de Ética Médica).
Segundo a Resolução Nº 1.995/12 do CFM (Cf. ANEXO 8), art. 2º § 4º, “O
médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram
diretamente comunicadas pelo paciente”, que é a normativa do CFM sobre a adoção
das diretivas antecipadas de vontade, conforme se comentará nesta mesma seção.
O prontuário é um documento em que o médico pode e deve arquivar a
declaração de vontade do paciente sobre os procedimentos aos quais deseja ou não
que seja submetido. Em caso de prontuário virtual, o documento pode ser anexado
em versão digitalizada; se físico, poderá anexar inclusive uma declaração de
vontade escrita, pormenorizada, que é mais segura do ponto de vista probatório;
entretanto, nada impede que o paciente faça a manifestação de forma oral e o
médico a reduza a termo no prontuário. Destacou-se em obra sobre consentimento:
Importante ressaltar que o prontuário poderá ser um excelente meio
de prova, quando requisitado judicialmente em face de uma
demanda, situação na qual o médico deve fornecer os dados
solicitados, inclusive cópias, que poderão inocentá-lo de eventuais
acusações (CABRAL, 2011, p. 59).
Nesse sentido, dispõe o CEM, a seguinte vedação ao médico:
Art. 89. Liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando
autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou
para a sua própria defesa.
§ 1º Quando requisitado judicialmente, o prontuário será
disponibilizado ao perito médico nomeado pelo juiz.
§ 2º Quando o prontuário for apresentado em sua própria defesa, o
médico deverá solicitar que seja observado o sigilo profissional.
Percebe-se pela redação do artigo supramencionado que o médico, ao
registrar a vontade do paciente em optar pelo procedimento ortotanásico ou
qualquer outro, garante sua própria defesa não somente em face de familiares mas
em juízo, caso seja acionado por este motivo.
101
7.2.2 Manifestação de vontade perante a família e amigos
Diaulas Costa Ribeiro faz menção ao paciente “que não teve oportunidade de
elaborar diretivas antecipadas mas que declarou a amigos, familiares etc. sua
rejeição ao esforço terapêutico nos casos de estado vegetativo ou de doença
terminal” (RIBEIRO, 2006, p. 281). Suas manifestações são válidas, devendo a
família atender à vontade manifestada de acordo com a declaração testemunhal
dessas pessoas.
Dessa forma, são válidas as manifestações de vontade realizadas perante
familiares e amigos, até porque o CCB, no artigo 107, prescreve: “A validade da
declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei
expressamente a exigir”. A partir dessa disposição legal, pode-se afirmar que a
declaração oral realizada pela pessoa é válida, pois independe de assinatura e
forma escrita para que lhe seja conferida validade, fato que deixa livre o titular para
realizar
sua
manifestação
de
vontade
de
forma
oral
sem
prejuízo
ou
comprometimento quanto à sua validade e produção de efeitos e efetividade. A
própria família poderá proceder ao cumprimento da vontade que era notória no
âmbito familiar.
7.2.3 Diretivas antecipadas de vontade
As diretivas antecipadas de vontade – também denominadas testamento vital
– se consubstanciam em um documento em que a pessoa, em estado de
consciência, declara os tratamentos a que deseja ou não submeter-se, com
produção de efeitos futuros, quando já não for capaz de manifestar sua vontade nem
exercer escolhas livres e conscientes. O ordenamento jurídico dispõe de princípios
implícitos; entretanto, somente com o Enunciado Nº 403 do Conselho de Justiça
Federal, aprovado na V Jornada de Direito Civil, realizada nos dias 8 a 10 de
dezembro de 2011, regulamentou as disposições do art. 15 do CCB, determinando:
403 – Art. 15: O Direito à inviolabilidade de consciência e de crença,
previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à
pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de
sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da
falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a)
capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou
102
assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada;
e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do
declarante (AGUIAR, 2012, p. 61).
A mesma jornada de Direito Civil que permitiu ao paciente a recusa de
tratamento médico consagrou a validade do testamento vital no Enunciado Nº 528
(ou diretivas antecipadas de vontade), que até então não possuía regulamentação
legal:
528 – Arts. 1.729, parágrafo único, e 1.857: É válida a declaração de
vontade expressa em documento autêntico, também chamado
“testamento vital”, em que a pessoa estabelece disposições sobre o
tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso
de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade
(AGUIAR, 2012, p. 73).
Um passo determinante para a validação e consequente adoção das diretivas
antecipadas de vontade pela classe médica foi a Resolução Nº 1995/12 (Cf. íntegra
ANEXO 8), com o seguinte teor:
CONSIDERANDO o decidido em reunião plenária de 9 de agosto de
2012, RESOLVE:
Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de
desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre
cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em
que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua
vontade.
Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que
se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de
maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em
consideração suas diretivas antecipadas de vontade (BRASIL:
Resolução Nº 1995 do CFM).
A partir da referida Resolução do CFM, os médicos gozam da prerrogativa de
não mais submeter o paciente à obstinação terapêutica, pois o CFM, em
consonância com a atual perspectiva dos direitos existenciais, trouxe à existência a
mencionada Resolução, que disciplina a atuação ética médica em face da
autodeterminação da pessoa que deseja refutar tratamentos aos quais não queira se
submeter e ainda prevê a observância às diretivas antecipadas de vontade quando o
enfermo não puder decidir por se encontrar em estado de incapacidade.
103
As diretivas antecipadas de vontade visam assegurar a efetividade do titular
do bem jurídico vida, ou seja, o cumprimento da vontade do enfermo sobre a
aplicação da Ortotanásia e outros procedimentos que deseja ou não lhe sejam
aplicados. A grande questão da aplicação desse procedimento reside no
atendimento a essa vontade da pessoa, que deve ser atendida, no momento da
terminalidade da vida, ou seja, a efetividade do cumprimento dessa vontade, pois de
nada adiantaria à pessoa desejar a Ortotanásia se não houvesse instrumentos aptos
a fazer valer sua vontade. Visando à efetividade da autodeterminação da pessoa,
existe hoje a possibilidade das diretivas antecipadas de vontade, também
conhecidas como testamento vital. Trata-se de uma manifestação de vontade por
meio da qual a pessoa consciente declara o que deve ser feito em momento futuro,
quando já não estiver mais em condições de se manifestar de forma livre e racional,
conforme lição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
[...] o paciente terminal que, no pleno gozo de sua faculdade mental,
declarou a sua vontade, deve ter a sua autonomia privada
respeitada, a fim de que se efetive a sua dignidade na plenitude.
Agora, com o advento da Resolução CFM nº 1.995/12, é válida e
eficaz a declaração prévia de vontade em face da premente
necessidade de respeitar a autonomia privada do paciente terminal, a
partir de preceitos éticos e jurídicos e da terminalidade inexorável da
vida humana (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 311).
Este é o cerne da questão da efetivação da Ortotanásia: como se garante o
cumprimento da vontade expressa nas diretivas antecipadas de vontade? Como
efetivar a manifestação de vontade declarada nas diretivas antecipadas de vontade
ou testamento vital?
Esta seria a forma de efetivá-lo: fazendo valer as suas disposições
conforme vontade expressa de forma livre e consciente por seu titular
em momento de plena lucidez. Esse fato imprimiria efetividade ao
direito fundamental à escolha, à autodeterminação e à dignidade da
pessoa que se preocupa em deixar um Testamento Vital, por
entender que certos tratamentos lhe serão absolutamente fúteis,
desnecessários e lhe diminuirão a dignidade em uma fase da vida
que deve ser tão prestigiada quanto as demais. Se o nascimento –
que marca o início da vida – é cercado de tantas cautelas, não seria
razoável, nem justo, deixar de privilegiar o momento derradeiro da
existência humana – a hora da morte –, ceifando da pessoa seu
poder de escolha e sua possibilidade de decisão em relação ao
direito de morrer com dignidade e sem sofrimentos (CABRAL, 2013,
p. 173).
104
É importante esclarecer que a pessoa deve ser respeitada em sua vontade e
que é titular do direito à autodeterminação, mas para que sua declaração de vontade
seja válida, é necessário que se trate de pessoa capaz, pois, conforme adverte
Diaulas Costa Ribeiro, “[...] a autonomia não dispensa a capacidade” (RIBEIRO,
2006, p. 273).
105
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema da presente dissertação consistiu em analisar a Ortotanásia no Brasil,
observando-se o recorte dos fundamentos filosófico-jurídico-médicos, não se
pretendendo aprofundar quanto aos aspectos religiosos, nem esgotar o tema em
relação aos conceitos afins, que consistiu no problema deste trabalho, que foi
tratado de forma adequada à proposta. Foram investigadas a eticidade e a licitude
da Ortotanásia no Brasil, constatando-se que o procedimento ortotanásico está em
conformidade com a lei e atende aos padrões éticos ditados pelo Código de Ética
Médica e pela sociedade no contexto desta segunda década do terceiro milênio.
O objetivo geral foi analisar os aspectos da Ortotanásia no Brasil, análise que
demandou cautelosa pesquisa a fim de se verificar se a Ortotanásia é considerada
ética e não reprovável do ponto de vista filosófico; lícita no aspecto jurídico; admitida
pela deontologia médica. Constatou-se que se trata de conduta não reprovável, lícita
e de prática autorizada pelo CFM, mediante normativa própria – a Resolução Nº
1.805/06. Os objetivos específicos dispostos na introdução deste trabalho foram
atendidos na medida em que se conceituou Ortotanásia como a morte no tempo
certo, nem antecipada pela eutanásia, tampouco postergada pela distanásia;
discutiu-se a legalidade, analisando-a à luz do Direito Civil-constitucional, que a
admite, com base na principiologia e no Direito Criminal, que entende pela licitude
da prática, uma vez que pretende descriminalizar a conduta por meio da reforma do
Código Penal Brasileiro, já em tramitação – Projeto de Lei Nº 236/12; identificaramse os requisitos para a aplicabilidade, a saber: existência de doença grave em
estado terminal, consentimento (autodeterminação da pessoa enferma) e adoção de
cuidados paliativos; traçou-se a interdisciplinaridade entre a Filosofia, o Direito e a
Medicina, demonstrando que essas ciências originam outras como a Bioética e o
Biodireito, além de possuir objetivo comum, qual seja, a proteção da vida e da
saúde, além da preservação da dignidade do doente; identificou-se de que forma o
consentimento do enfermo e a adoção de cuidados paliativos refletem na aplicação
ética da Ortotanásia. Deste último objetivo, inferiu-se que a Ortotanásia somente
será lícita e ética se aplicada em conformidade com a anuência do enfermo,
mediante implementação de todos os cuidados paliativos necessários à promoção
de seu bem-estar físico e emocional.
106
Os resultados obtidos foram os esperados, no sentido da legalidade e da
eticidade da adoção do procedimento ortotanásico. Além de estar em sintonia com a
perspectiva dos direitos de personalidade, colocando a dignidade da pessoa
enferma em primeiro plano, concluiu pela eticidade da conduta, não somente
aprovada por algumas correntes filosóficas, que entendem pela consagração da
autonomia da pessoa, mas com respaldo do ordenamento jurídico, tanto em relação
à principiologia do Direito Civil-constitucional como do Criminal, além de no âmbito
da medicina contar com normativa específica da Resolução Nº 1.805 do CFM.
A partir da segunda metade do Século XX o desenvolvimento tecnológico e
científico e o progresso dos meios de comunicação passaram a determinar
substanciais alterações na sociedade, sobretudo no que tange à adoção de novas
tecnologias. Essas tecnologias aplicadas a serviço da saúde passaram a prolongar a
vida humana por um lapso temporal cada vez maior, que começou a preocupar a
comunidade científica, pois protelar a morte tornou-se uma prática usual, a despeito
dos sofrimentos e agruras do paciente em fase terminal de doença apresentando
quantitativamente uma melhoria, um considerável acréscimo aos dias, meses e até
anos de sobrevida.
Nesse contexto, Jacques Roskam, estudioso do tema na Universidade de
Liege (Bélgica), preocupado em reduzir a dor e o sofrimento dos pacientes com
doenças incuráveis e inviáveis do ponto de vista de possível reversão do quadro,
cunhou no I Congresso de Geriatria e Gerontologia, na Bélgica, em 1950, a
expressão Ortotanásia, formada pelos vocábulos gregos ortho (certa) e thanatus
(morte), explicando que, entre a eutanásia (abreviação da vida e a distanásia
(prolongamento excessivo do processo de morte), havia um meio termo, que é a
morte justa e correta, “no tempo certo” – a Ortotanásia.
Ocorre que o conceito de Ortotanásia foi incompreendido, pelo fato de muitos
confundirem-no com o de Eutanásia, que no Século XX assumiu uma conotação
negativa. Foi necessário o movimento de humanização das ciências ganhar relevo
para que a Ortotanásia começasse a ser compreendida em sua essência. Essa
mudança de paradigma se deu na legislação brasileira sobretudo a partir da nova
ordem constitucional, a vigente Constituição Federal de 1988, que inseriu a
dignidade da pessoa humana logo no seu artigo inaugural, entre os fundamentos da
República Federativa do Brasil, demonstrando que os direitos de personalidade se
transformaram em um axioma. Mais que princípio, a dignidade da pessoa humana
107
passou a ser uma fonte de onde emana, não somente a legislação, mas a tutela da
pessoa e a orientação ética e humana de todas as condutas no estado democrático
de direito, tornando de obrigatória observância a proteção e a intangibilidade dos
direitos existenciais – aqueles inerentes à dignidade da pessoa humana. Desde
então, o movimento de constitucionalização do Direito Civil obriga uma visão
humanizada e obediência à principiologia ditada pela constituição, e, principalmente
os direitos existenciais sejam interpretados à luz da principiologia constitucional,
impondo a releitura das relações pelo viés constitucional da dignidade, da
solidariedade e da liberdade, entre outros princípios constitucionais. Foi outorgada
pela vigente CF uma tutela que passa a permear todas as questões relativas à
existência humana e suas emanações, passando o respeito à pessoa e aos direitos
existenciais a ser o viés, o fio condutor de todas as condutas em sociedade.
Nesse contexto, a Ortotanásia vem sendo estudada no Brasil de forma ainda
incipiente, com muitas restrições por parte da Filosofia e alguns questionamentos
sobre a legalidade da aplicação em relação aos fundamentos jurídicos, sendo a
conduta avaliada e aprovada à luz da principiologia, sem normativa específica. É
necessário destacar que no aspecto médico se tem verificado maior avanço do
reconhecimento da Ortatanásia como tutela da dignidade da pessoa humana e como
fundamento da morte digna em consequência de uma vida igualmente digna –
grande aspiração da constituição cidadã. Desde que o movimento de humanização
atingiu as ciências da saúde, a Medicina começou a ser impactada pela necessidade
de se tratar a pessoa enferma com humanidade e afetividade, oferecendo-lhe alívio
para a dor e bem-estar emocional, tanto que, em 2006, a Resolução Nº 1805 do
CFM disciplinou a conduta médica ortotanásica objetivando minorar a dor e
proporcionar bem-estar ao doente.
Nessa linha de intelecção, a preocupação com a existência humana passou a
preocupar os estudiosos não mais estritamente quanto à vida, mas em relação ao
final da existência humana, no que respeita a morte e o morrer. Então, a Ortotanásia
passa a ser entendida como proteção à pessoa, a ser estudada como um tema
multifacetado e interdisciplinar, que apresenta interfaces com aspectos inerentes a
várias ciências, como Medicina, Direito, Bioética, Biodireito, Psicologia e
Biomedicina. São ciências cujo cerne é a proteção da pessoa e sua dignidade, não
uma proteção míope à vida, nos moldes concebidos no período antecedente às
reflexões sobre direitos humanos, inspiradas pela Declaração Universal dos Direitos
108
Humanos (“todos os homens livres e iguais em direitos e dignidade”) no pós-guerra
em resposta às atrocidades que a humanidade cometeu contra seus iguais naquele
momento histórico. Mas uma nova perspectiva que leva à concepção de um direito à
vida relativo analisado em cotejo com os princípios constitucionais, sopesado com
os demais direitos da personalidade, alçando a dignidade a um plano mais elevado
que a vida como bem jurídico tutelado.
Vive-se então, neste novo milênio, uma era de direitos relativos, não havendo
mais lugar para direitos absolutos e estanques, e todos os demais direitos devem
estar a serviço da proteção da dignidade da pessoa humana – axioma do
ordenamento jurídico e da medicina contemporâneos. Começa a ruir o paternalismo
ditado pelo princípio da beneficência que regeu a Bioética na primeira metade do
século passado, que movia o médico a agir independentemente da vontade do
paciente e em seu benefício, sendo ele quem detinha poder decisório. Além disso, a
obstinação terapêutica outrora praticada e justificada por uma interpretação
equivocada do juramento hipocrático passa a ser repensada, assumindo o médico
uma postura de respeito à pessoa e à sua autodeterminação, sua capacidade de
autogovernar-se, de exercer escolhas livres e conscientes sobre sua vida, sua saúde
e seu futuro – uma verdadeira ressignificação da Medicina ante a pessoa humana e
sua dignidade.
A Ortotanásia não consiste em deixar morrer simploriamente, mas deve ser
aplicada mediante a presença de três pressupostos, requisitos objetivos, sem os
quais não deverá ser aplicada sob pena de se ferir os parâmetros éticos:
constatação de estado de terminalidade da pessoa enferma, consentimento livre e
consciente e adoção de cuidados paliativos.
A efetividade é a grande questão da aplicação da Ortotanásia. Efetivar a
vontade é torná-la real no mundo fático, é cumprir a decisão da pessoa que
livremente optou por essa forma de morrer. Se a pessoa faz a opção por uma morte
serena e digna e no momento de promovê-la, a família opta pelo excesso
terapêutico, já que o paciente não pode mais manifestar vontade, frustra os objetivos
e cerceia seu direito de escolha, comprometendo o cumprimento da vontade da
pessoa que escolheu morrer de forma humana e serena. Na tentativa de minimizar
as ocorrências desses fatos e imprimir efetividade à vontade do titular da vida,
recomenda-se a anotação da opção pela Ortotanásia no prontuário médico,
comentários com pessoas da família e amigos (a fim de dar notoriedade à decisão
109
quanto à decisão) e elaboração de diretivas antecipadas de vontade em documento
escrito, datado e assinado, em que essa escolha se torne clara e apta ao
cumprimento. É necessário que a família do enfermo se empenhe em respeitar sua
vontade manifestada quando ainda possuía capacidade para fazê-lo.
A morte do ser humano é assunto delicado, pois o homem é o único ser
consciente de que esse dia chegará; por isso a morte apresenta uma face quase
mística, conta com poucos estudos sistemáticos, porque as pessoas sentem medo e
preferem não falar no assunto, escolhendo tacitamente deixar que a vida aconteça e
que a morte chegue sem planejamento. Entretanto, é chegada a hora do
enfrentamento, de se entender a morte como processo natural de finitude da vida e
a terminalidade começa a ser objeto de preocupação de pessoas que formam
grupos de debates e reflexões pensando em programar-se para morrer com
dignidade – é o caso do Death Cofe comentado neste trabalho, que começa a
influenciar o Brasil.
Urge que debates sejam abertos na academia – lócus em que nascem os
grandes questionamentos – e na sociedade – onde se desenvolvem e são (ou não)
respondidos –, mas importantes senão determinantes na medida em que influenciam
uma postura nova e humana, consciente e objetiva, escolhida e determinada para
enfrentar com planejamento, cuidado e serenidade a morte – o final da existência
humana, o fim da personalidade –, uma fase tão nobre e frágil como os primeiros
dias de vida de um ser humano.
Conclui-se a presente exposição remetendo-se à fecunda lição de que o
cuidado é o maior desafio deste novo milênio em que a população se torna
progressivamente idosa. Cuidado para o momento do início e também para o da
finitude da vida humana – uma arte que combina habilidade tecnocientífica e ternura
– destacando que a arte do viver bem é a chave para o bem morrer.
110
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116
ANEXO 1 – CASOS CONCRETOS DE ORTOTANÁSIA
ANEXO 1 A – CASO PAPA JOÃO PAULO II
Papa João Paulo 2º morre aos 84 anos em Roma
(02/04/2005)
RICARDO FELTRIN
Enviado especial da Folha Online a Roma
Karol Josef Wojtyla, o papa João Paulo 2º, morreu neste sábado, aos 84 anos em
Roma, após dois dias de agonia. Comunicado oficial do Vaticano informa que o
sumo pontífice morreu às 21h37 [16h37 de Brasília] do dia 2 de abril de 2005 em
seus aposentos no Palácio Apostólico.
Reuters
Sua morte encerra 26 anos do terceiro maior pontificadoda
história da Igreja Católica Apostólica Romana, período marcado
por intensa atuação política, viagens aos cinco continentes,
defesa da paz e dos direitos humanos, mas também
de conservadorismo moral.
João Paulo 2º visitou 129 países, fez campanha contra a
Guerra Fria, aproximou sua igreja de outras religiões e culturas,
desculpou-se pela inquisição, defendeu as liberdades
individuais, mas condenou o uso de preservativos numa época
Karol Josef Wojtyla,
após a primeira comunhão
que viu surgir a Aids.
Mesmo acometido pelo mal de Parkinson, o pontífice pouco reduziu o ritmo das
viagens e sempre procurou deixar clara a posição do Vaticano em relação aos
principais acontecimentos internacionais. Somente o agravamento de seu estado de
saúde, no último mês de fevereiro, parou o papa. Internado duas vezes, foi
submetido a traqueostomia [intervenção cirúrgica para facilitar a respiração] e
praticamente perdeu a capacidade de falar. Há dois dias, seu estado foi declarado
irreversível, provocando comoção no mundo. Seguidores de todos os credos oraram
por ele.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/papa.shtml Acesso em 10.jul.20
ANEXO 1 B – CASO NANCY CRUZAN
José Roberto Goldim
Em 11 de janeiro de 1983, Nancy Cruzan, de 25 anos, casada, perdeu o controle de
seu carro quando viajava no interior do estado de MIssouri;EUA. O carro capotou e
ela foi encontrada voltada com rosto para baixo em um córrego, sem respiração ou
batimento cardíaco detectável. Os profissionais de emergência que a atenderam
foram capazes de recuperar as funções respiratória e cardíaca, sendo a paciente
transportada inconsciente para o hospital. Um neurocirurgião diagnosticou a
possibilidade de dano cerebral permanente devido a falta de oxigênio. O período de
tempo de anóxia foi estimado em 10 a 12 minutos. Em média se estima que ocorram
danos cerebrais permanentes com anóxia de 6 minutos ou mais.
117
A paciente ficou em coma por três semanas. O quadro evoluiu para um estado de
inconsciência onde a paciente podia se alimentar parcialmente por via oral. Com a
finalidade de facilitar a sua alimentação, foi introduzida uma sonda de alimentação.
O seu marido autorizou este procedimento. Em outubro de 1983, ou seja, dez
meses após o acidente, ela foi internada em um hospital público. Todas as tentativas
de reabilitação foram mal sucedidas, demonstrando que ela não teria possibilidade
de recuperar a vida de relação. Os seus pais, que também eram considerados como
seus representantes legais, em conjunto com o esposo, solicitaram ao hospital que
retirassem os procedimentos de nutrição e hidratação assistida, ou seja a sonda que
havia sido colocada. Os médicos e a instituição se negaram a atender esta demanda
sem autorização judicial.
Os pais entraram na justiça do estado do Missouri solicitando esta autorização em
junho de 1989. Um representante legal foi indicado para atuar durante o julgamento.
O tribunal, em junho de 1990, após realizar audiências, ordenou à instituição que
atendesse a demanda da família. Esta decisão se baseou em três argumentos
básicos: no diagnóstico, na previsão legal desta demanda e na manifestação prévia
da vontade pessoal da paciente. O diagnóstico de dano cerebral permanente e
irreversível, em conseqüência do longo período de anóxia, foi confirmado e não
questionado. A lei do estado do Missouri e da Constituição norte-americana
permitem que uma pessoa no estado da paciente pode recusar ou solicitar a retirada
de "procedimentos que prolonguem a morte". considerando que ela, aos vinte anos,
tinha manifestado em uma conversa séria com uma colega de quarto, que se
estivesse doente ou ferida, ela não gostaria de ser mantida viva, salvo que pudesse
ter pelo menos metade de suas capacidades normais. Esta posição sugeriu que ela
não estaria de acordo com a manutenção da hidratação e da nutrição nas suas
condições atuais.
No túmulo de Nancy Cruzan consta a seguinte indicação:
Nascida em 20 de julho de 1957
Partiu em 11 de janeiro de 1983
Em paz em 26 de dezembro de 1990
Nancy Cruzan sofreu um grave acidente de automóvel em 1983, com 25 anos de
idade. Entrou em coma vegetativo permanente. O seu caso foi discutido nos
tribunais durante alguns anos, dada a sua convicção de realizar a eutanásia. Os
118
juízes acabaram por deliberar a sua morte, desligando, deste modo, as máquinas
que a mantinham viva, em 1990.
Fonte: http://www.ufrgs.br/bioetica/nancy.htm Acesso em 7 jul.2015
ANEXO 1 C – CASO TERRI SCHIAVO
Terri Schiavo era uma adolescente obesa que iniciou uma dieta rigorosa, que se
prolongou por alguns anos. Terri emagreceu de tal maneira que acabou por
desfalecer. A dieta provocou, assim, uma tal desordem alimentar que conduziu a
uma desregulação dos níveis de potássio no organismo, entrando num estado
vegetativo permanente, necessitando do auxílio de um tubo para ser alimentada. O
seu marido enfrentou judicialmente os pais de Terri para por fim ao estado
deplorável em que a mesma se encontrava, o que foi autorizado cerca de 15 anos
depois, em 2005, ano em que morreu.
FONTE: http://eutanasia-ap.weebly.com/casos-reais.html Acesso em 7 jul.2015
ANEXO 1 D – VINCENT LAMBERT

CORTE EUROPEIA AUTORIZA EUTANÁSIA PASSIVA DE FRANCÊS
Decisão permite que médicos desliguem aparelhos que alimentam Vincent
Lambert, que ficou tetraplégico e entrou em coma após acidente de carro. Caso
dividiu família e pode estabelecer marco jurídico na UE. Data 05.06.2015
119
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos autorizou nesta sexta-feira (05/06) que a
França deixe morrer um homem tetraplégico, em estado vegetativo, numa decisão
que põe fim a uma longa batalha judicial que dividiu a família do paciente e pode
influenciar a forma como a Justiça de países da União Europeia lida com a
eutanásia.
A decisão do máximo tribunal europeu não pode ser contestada. Ela permite que os
médicos desliguem os aparelhos que alimentam Vincent Lambert, de 38 anos. Ele
foi vítima de um acidente de carro em 2008 e, desde então, está em coma e
tetraplégico.
Segundo a corte, a legislação francesa é suficientemente clara, e desligar os
aparelhos de Lambert não viola a Convenção Europeia de Direitos Humanos: "Os
países-membros do Conselho Europeu não têm consenso sobre a retirada de
aparelhos que mantêm os pacientes vivos. Cabe a cada Estado decidir sobre o
procedimento."
A batalha legal dividiu a família do paciente. De um lado, estão os pais dele e dois
de seus irmãos, contrários a eutanásia passiva, sob o argumento de que Lambert
ainda tem algum sinal de consciência. Do outro, a esposa Rachel e outros cinco
irmãos, favoráveis ao desligamento dos aparelhos.
A esposa de Lambert iniciou o processo na Justiça francesa para conseguir a
eutanásia do marido logo após o acidente, recorrendo à chamada Lei de Leonetti,
que permite a retirada de aparelhos em determinadas condições.
Em junho de 2014, ela conseguiu o direito de deixar seu marido morrer. Os pais do
paciente, no entanto, entraram com recurso e levaram o caso ao tribunal europeu.
Dos 17 juízes da corte, 12 decidiram nesta sexta-feira a favor da eutanásia.
"Vamos deixar o senhor Lambert ser assassinado?", questionou o advogado dos
pais, ambos descritos como cristãos fervorosos. "Que sociedade bárbara é essa?
Ela [Raquel] abandonou seu marido e foi para a Bélgica."
120
Já o advogado de Rachel e de cinco irmãos de Lambert disse esperar que a decisão
do tribunal europeu possa ter influência sobre a Justiça de outros países do bloco
europeu.
RPR/afp/rtr
Fonte: http://www.dw.com/pt/corte-europeia-autoriza-eutan%C3%A1sia-passiva-defranc%C3%AAs/a-18498480 Acesso em 7 jul.2015.
121
ANEXO 2 – LEI ESTADUAL Nº 10.241 /1999 DO ESTADO DE SÃO PAULO
LEI Nº 10.241, DE 17 DE MARÇO DE 1999
(Projeto de lei nº 546/97, do deputado Roberto Gouveia - PT)
Dispõe sobre os direitos dos usuários dos serviços e das ações de saúde no
Estado
O GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO:
Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo a seguinte lei:
Artigo 1º - A prestação dos serviços e ações de saúde aos usuários, de qualquer
natureza ou condição, no âmbito do Estado de São Paulo, será universal e
igualitária, nos termos do artigo 2º da Lei Complementar n. 791, de 9 de março de
1995.
Artigo 2º - São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São
Paulo:
I - ter um atendimento digno, atencioso e respeitoso;
II - ser identificado e tratado pelo seu nome ou sobrenome;
III - não ser identificado ou tratado por:
a) números;
b) códigos; ou
c) de modo genérico, desrespeitoso, ou preconceituoso;
IV - ter resguardado o segredo sobre seus dados pessoais, através da manutenção
do sigilo profissional, desde que não acarrete riscos a terceiros ou à saúde pública;
V - poder identificar as pessoas responsáveis direta e indiretamente por sua
assistência, através de crachás visíveis, legíveis e que contenham:
a) nome completo;
b) função;
c) cargo; e
d) nome da instituição;
VI - receber informações claras, objetivas e compreensíveis sobre:
a) hipóteses diagnósticas;
b) diagnósticos realizados;
c) exames solicitados;
d) ações terapêuticas;
e) riscos, benefícios e inconvenientes das medidas diagnósticas e terapêuticas
propostas;
f) duração prevista do tratamento proposto;
g) no caso de procedimentos de diagnósticos e terapêuticos invasivos, a
necessidade ou não de anestesia, o tipo de anestesia a ser aplicada, o instrumental
a ser utilizado, as partes do corpo afetadas, os efeitos colaterais, os riscos e
conseqüências indesejáveis e a duração esperada do procedimento;
h) exames e condutas a que será submetido;
i) a finalidade dos materiais coletados para exame;
j) alternativas de diagnósticos e terapêuticas existentes, no serviço de atendimento
ou em outros serviços; e
l) o que julgar necessário;
VII - consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada
informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados;
VIII - acessar, a qualquer momento, o seu prontuário médico, nos termos do artigo 3.
122
da Lei Complementar n. 791, de 9 de março de 1995;
IX - receber por escrito o diagnóstico e o tratamento indicado, com a identificação do
nome do profissional e o seu número de registro no órgão de regulamentação e
controle da profissão;
X - vetado:
a) vetado;
b) vetado;
c) vetado;
d) vetado;
e) vetado; e
f) vetado;
XI - receber as receitas:
a) com o nome genérico das substâncias prescritas;
b) datilografadas ou em caligrafia legível;
c) sem a utilização de códigos ou abreviaturas;
d) com o nome do profissional e seu número de registro no órgão de controle e
regulamentação da profissão; e
e) com assinatura do profissional;
XII - conhecer a procedência do sangue e dos hemoderivados e poder verificar,
antes de recebê-los, os carimbos que atestaram a origem, sorologias efetuadas e
prazo de validade;
XIII - ter anotado em seu prontuário, principalmente se inconsciente durante o
atendimento:
a) todas as medicações, com suas dosagens, utilizadas; e
b) registro da quantidade de sangue recebida e dos dados que permitam identificar a
sua origem, sorologias efetuadas e prazo de validade;
XIV - ter assegurado, durante as consultas, internações, procedimentos diagnósticos
e terapêuticos e na satisfação de suas necessidades fisiológicas:
a) a sua integridade física;
b) a privacidade;
c) a individualidade;
d) o respeito aos seus valores éticos e culturais;
e) a confidencialidade de toda e qualquer informação pessoal; e
f) a segurança do procedimento;
XV - ser acompanhado, se assim o desejar, nas consultas e internações por pessoa
por ele indicada;
XVI - ter a presença do pai nos exames pré-natais e no momento do parto;
XVII - vetado;
XVIII - receber do profissional adequado, presente no local, auxílio imediato e
oportuno para a melhoria do conforto e bem estar;
XIX - ter um local digno e adequado para o atendimento;
XX - receber ou recusar assistência moral, psicológica, social ou religiosa;
XXI - ser prévia e expressamente informado quando o tratamento proposto for
experimental ou fizer parte de pesquisa;
XXII - receber anestesia em todas as situações indicadas;
XXIII - recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida;
e
XXIV - optar pelo local de morte.
§ 1º - A criança, ao ser internada, terá em seu prontuário a relação das pessoas que
poderão acompanhá-la integralmente durante o período de internação.
123
§ 2º - A internação psiquiátrica observará o disposto na Seção III do Capítulo IV do
Título I da Segunda Parte da Lei Complementar n. 791, de 9 de março de 1995.
Artigo 3º - Vetado:
I - vetado;
II - vetado; e
III - vetado.
Parágrafo único - Vetado.
Artigo 4º - Vetado:
I - vetado; e
II - vetado.
Parágrafo único - Vetado.
Artigo 5º - Vetado.
Parágrafo único - Vetado.
Artigo 6º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.
Palácio dos Bandeirantes, 17 de março de 1999.
MÁRIO COVAS
José da Silva Guedes
Secretário da Saúde
Celino Cardoso
Secretário-Chefe da Casa Civil
Antonio Angarita
Secretário do Governo e Gestão Estratégica
Publicada na Assessoria Técnico - Legislativa, aos 17 de março de 1999.
124
ANEXO 3 – DEATH CAFE SAMPA
Iniciativa mundial, encontros para falar de morte ganham espaço em SP
CAMILA APPEL
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
25/04/2015 02h00
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É sábado à tarde. Mulheres e homens de 30 a 75 anos aos poucos se aconchegam
na pousada Ziláh, nos Jardins (zona oeste de São Paulo), para falar sobre um
assunto incomum e, à primeira vista, obscuro: a morte.
É a quarta reunião do Death Cafe Sampa, primeiro representante no Brasil da
organização mundial de "cafés da morte".
O modelo foi elaborado a partir dos conceitos de Bernard Crettaz, um sociólogo e
antropólogo suíço, pioneiro na ideia de formar espaços para falar sobre a morte.
Desde setembro de 2011, já foram oferecidos 1.774 encontros pelo mundo.
Qualquer pessoa pode abrir um em sua cidade, ou seja, organizar um grupo de
discussão sem agenda específica, utilizando o nome, a metodologia e os meios de
divulgação da franquia.
Karime Xavier/Folhapress
Elca Rubinstein conheceu os 'cafés da morte' nos Estados Unidos e trouxe a iniciativa para o Brasil
"Como pré-requisitos, colocam a necessidade de ser uma atividade não lucrativa,
não 'vender ideias', não ser filiado a instituições e não se apresentar como um
125
espaço de terapia", afirma Elca Rubinstein, economista que trabalhou 18 anos no
Banco Mundial, em Washington, onde conheceu a iniciativa e resolveu trazê-la ao
Brasil, em dezembro de 2014.
Uma recomendação é servir bolo ou algo doce para contribuir para um clima
informal, indicado ao se falar de tópicos pesados.
No momento, a organização se prepara para abrir uma unidade física em Londres.
Por enquanto, os grupos se encontram em cafés ou outros espaços como pousadas,
que cedem o local, preparam chá, café, quitutes e cobram apenas os alimentos.
"Venho ao Death Cafe porque entendi que vou morrer e estou curtindo a ideia de
que essa consciência me possibilita planejar o futuro e, assim, viver melhor", diz
Elca.
MEDO
O Death Cafe Sampa se reúne uma vez por mês. Em março, o grupo de 27 pessoas
foi dividido em dois, o dos iniciantes e o dos veteranos.
No dos iniciantes, mais do que o medo da morte, o tema predominante foi o desejo
de não ficar incapacitado antes dela. "Me assusta o sofrimento, não a morte", disse
um dos participantes, que pediu para não ser identificado.
"Nós humanos somos incapazes de aprender a perder", afirmou um homem por
volta dos 70 anos.
"Acho difícil ter que tomar a decisão pela minha mãe, de suspender ou manter
tratamentos, caso ela fique incapacitada de tomar essa decisão", disse uma mulher
de 54 anos.
O principal motivo ouvido pela Folha para participar de um Death Cafe foi poder
falar de forma leve sobre um tema tabu. "Desmitificar a morte" e "ter um espaço para
uma conversa que não se pode ter em casa" foram algumas das justificativas
citadas.
ACEITAÇÃO
Uma participante disse que não conta para a família ou amigos que está indo para
um Death Cafe, porque eles achariam perda de tempo. "As pessoas associam morte
com mau agouro. Mas lidar com a realidade não é negativo, é necessário e
produtivo."
Os participantes apontaram, como resultado do encontro, uma maior liberdade em
relação à vida, aceitação da morte, do envelhecimento e de doenças. "Morte é algo
natural, quem coloca o peso somos nós", disse um homem de 40 anos.
126
ANEXO 4 – AJALR Nº 70042509562 2011/CÍVEL
AJALR Nº 70042509562 2011/CÍVEL
CONSTITUCIONAL. MANTENÇA ARTIFICIAL DE VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA. PACIENTE, ATUALMENTE, SEM CONDIÇÕES DE MANIFESTAR SUA
VONTADE. RESPEITO AO DESEJO ANTES MANIFESTADO. Há de se dar valor ao
enunciado constitucional da dignidade humana, que, aliás, sobrepõe-se, até, aos
textos normativos, seja qual for sua hierarquia. O desejo de ter a “morte no seu
tempo certo”, evitados sofrimentos inúteis, não pode ser ignorado, notadamente em
face de meros interesses econômicos atrelados a eventual responsabilidade
indenizatória. No caso dos autos, a vontade da paciente em não se submeter à
hemodiálise, de resultados altamente duvidosos, afora o sofrimento que impõe,
traduzida na declaração do filho, há de ser respeitada, notadamente quando a ela se
contrapõe a já referida preocupação patrimonial da entidade hospitalar que, assim
se colocando, não dispõe nem de legitimação, muito menos de interesse de agir.
APELAÇÃO CÍVEL
VIGÉSIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL
Nº 70042509562 PORTO ALEGRE
ASSOCIAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS DO ERGS – AFPERGS APELANTE
GILBERTO OLIVEIRA DE FREITAS APELADO GUILHERME DA SILVA BENITES APELADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Vigésima Primeira Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento à apelação.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores
DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH E DES. MARCO AURÉLIO HEINZ.
Porto Alegre, 01 de junho de 2011.
DES. ARMINIO JOSÉ ABREU LIMA DA ROSA,
Presidente e Relator.
RELATÓRIO
DES. ARMINIO JOSÉ ABREU LIMA DA ROSA (PRESIDENTE E RELATOR) –
Trata-se de apelação veiculada pela ASSOCIAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS
PÚBLICOS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – AFPERGS quanto à
sentença de indeferimento da petição inicial, por ilegitimidade ativa, na ação
cautelar de suprimento de vontade movida em face de GUILHERME DA SILVA
BENITES e GILBERTO DE OLIVEIRA DE FREITAS, neto e filho,
respectivamente, de Irene Oliveira de Freitas.
Em suma, como entidade mantenedora do Hospital Ernesto Dornelles, em que
internada Irene, em data de 05.12.2010, por quadro de descompensação secundária
a insuficiência renal, pré-edema agudo de pulmão, apresentando-se como
responsável o neto Guilherme, havendo indicação expressa dos médicos quanto à
realização de hemodiálise.
127
Entretanto, o filho Gilberto, já agora invocando ser sua a condição de responsável
pela mãe, não autoriza o tratamento, de que decorrem riscos de vida, argumentando
cumprir desejo materno.
Por isso, descrevendo o quadro de uremia que assola a enferma, pretende seja
suprida a vontade de quem for o responsável, autorizados os médicos a procederem
o tratamento indispensável.
Pleiteou e obteve gratuidade de justiça.
Manifestou-se o Ministério Público pelo deferimento da liminar, ao que sobreveio
sentença de indeferimento da inicial.
No apelo, a entidade autora, invocando responsabilidade objetiva, nos termos do art.
14, CDC, sustenta sua legitimidade ativa, aduzindo pretender respaldo judicial
“frente à divergência familiar no tocante a aderência ou não da paciente ao
tratamento proposto, principalmente diante das circunstâncias que norteiam as
decisões baseadas na ortotanásia.”
Embora reconheça ser a vontade da paciente, assim como de seu filho, de não
realizar o tratamento de hemodiálise, “o que realmente é compreensível diante do
sofrimento maior que tal procedimento ainda pode causar ao enfermo e aos seus
familiares, sem garantia de que o tratamento proposto outorgará melhor qualidade
de vida, pois a doença que a comete não tem cura”, em atenção a sua eventual
responsabilização, insiste no provimento judicial autorizar de sua realização.
Nesta instância, o parecer do Dr. Procurador de Justiça é pela negativa de
provimento.
É o relatório.
VOTOS
DES. ARMINIO JOSÉ ABREU LIMA DA ROSA (PRESIDENTE E RELATOR) – A
pretensão recursal não prospera.
O presente processo, ultima ratio, reflete a disputa entre a ortotanásia e a distanásia,
corresponde a primeira o assegurar às pessoas uma morte natural, sem
interferência da ciência, evitando sofrimentos inúteis, assim como dando respaldo à
dignidade do ser humano, ao passo que a segunda implica prolongamento da vida,
mediante meios artificiais e desproporcionais, adjetivando-a de “obstinação
terapêutica”, na Europa, senão de “futilidade médica”, nos Estados Unidos.
LIA FEHLBERG, professora e doutora, em artigo denominado “A Ortotanásia no
Projeto do Código Penal”, assim discorre:
“Distanásia seria, portanto, a morte dolorosa, com sofrimento, conforme se observa
nos pacientes terminais de AIDS, câncer, doenças incuráveis e outras. O
prolongamento da vida para estes indivíduos, seja por meio de terapêuticas ou
aparelhos, nada mais representaria do que uma batalha inútil e perdida contra a
morte.
Jean Robert Debray foi o responsável pela introdução na linguagem médica
francesa da expressão “obstinação terapêutica”, que tinha o significado de
“comportamento médico que consiste em utilizar processos terapêuticos, cujo efeito
é mais nocivo do que os efeitos do mal a curar, por inútil, porque a cura é impossível
ou o benefício esperado é menor que os inconvenientes previsíveis”.
Conceituando-se a ortotanásia como a morte natural, do grego orthós: normal e
thanatos: morte, ou eutanásia passiva na qual se age por omissão, ao contrário da
eutanásia onde existe um ato comissivo com real induzimento ao suicídio. A
ortotanásia, também seria a manifestação da morte boa, desejável.
128
Na busca de precisão conceitual, existem muitos bioeticistas, entre os quais GAFO
(Espanha) que utilizam o termo ortotanásia para falar da “morte no seu tempo certo”.
Quiçá seja este um dos embates filosóficos de maior dimensão em termos de
definição humana, por estar embainhada pela percepção individual quanto ao
sentido da vida.
Particularmente no âmbito da atuação dos médicos, o tratamento decorrente dos
termos do art. 57, Código de Ética Médica, que veda ao médico “Deixar de utilizar
todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento a seu alcance em favor do
paciente”, veio a receber considerável giro em seu alcance, quando o Conselho
Federal de Medicina baixou a Resolução CFM n° 1.805/2006.
Vale destacar artigo eletrônico de ALEXANDRE MAGNO FERNANDES MOREIRA,
noticiando a legislação do Estado de São Paulo, claro, relativa aos serviços médicos
disponibilizados pelo Poder Público Estadual, e a especialíssima circunstância a ela
atrelada, por envolver saudoso personagem da vida nacional:
“Aliás, já existe lei estadual dispondo expressamente em sentido contrário. Em São
Paulo, a Lei Estadual 10.241/1999, que regula sobre os direitos dos usuários dos
serviços de saúde, assegura ao paciente terminal o direito de recusar tratamentos
dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida. Mário Covas, governador
do Estado à época, afirmou que sancionava a lei como político e como paciente, já
que seu câncer já havia sido diagnosticado. Dois anos depois, estando em fase
terminal, se utilizou dela, ao recusar o prolongamento artificial da vida.”
Mesmo autor que lembra projeto de reforma do Código Penal e a introdução do § 4º
ao art. 121:
“§ 4º - Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se
previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde
que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, de ascendente,
descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.”
A evolução sociológica e jurídica, percebe-se, quanto à questão filosófica, tende a
fazer respeito aos sentimentos pessoais, notadamente naquilo em que se remetem à
preservação da dignidade da pessoa humana, permitindo-lhe banir recursos
científicos para manter artificial existência, notadamente quando impregnados
aqueles de sofrimento.
Pois bem, o impasse levado ao Hospital está em que o filho Gilberto, parente mais
próximo e que se atribui a condição de responsável pela mãe, transmitiu ao corpo
médico responsável o desejo de Irene de não se submeter à hemodiálise (fl. 240),
enquanto o neto Guilherme, responsável pela internação, fl. 173, teria manifestado
vontade diversa.
Daí ter vindo a juízo e postulado provimento judicial substitutivo da vontade de um e
outro (quanto ao neto, na verdade, o pleito estaria na busca de comando judicial que
respaldasse sua manifestação, conferindo-lhe superioridade em face daquela
externada pelo filho).
A hipótese dos autos faz lembrar o célebre caso da americana Terri Schiavo,
falecida em 31.03.2005, após ter sido mantida em vida vegetativa por mais de
quinze anos, quando a Justiça norte-americana terminou por fazer prevalecer a
vontade externada pelo marido, contraposta à dos pais.
Desde logo registro não poder eventual responsabilidade indenizatória servir de
mote à assunção, pela recorrente, quanto a vontade e desígnio que não são seus,
pela óbvia razão de o interesse patrimonial não poder se sobrepor a algo tão
relevante como a saúde e, mais, a própria vida.
129
Fosse a pretensão assente na indeclinabilidade do tratamento como conditio sine
qua non para assegurar uma sobrevida à paciente, outro o enfoque, maior a
preocupação gerada pela pretensão trazida a juízo.
Mas, como está visto, é na primeira órbita de interesses em que se situa a pretensão
dita cautelar (na realidade, tutela satisfativa, com pleito antecipatório).
Por isso, até, bem se poderia resolver o pedido posto em juízo naquilo que diz com o
interesse de agir.
Penso ter a sentença da Dr.ª LAURA DE BORBA MACIEL FLECK raciocinado com
correção, merecendo transcrição na sua essência decisória.
“A Constituição Federal, bem como o Estatuto do Idoso, elevam o direito à vida
como garantia fundamental de primeira ordem. O idoso merece especial atenção por
sua natural hipossuficiência física, o que legitima algumas pessoas à sua proteção,
inclusive para interesses individuais, o Ministério Público, quando indisponíveis.
No caso em tela, a solução da questão passa pela análise da disponibilidade do
direito à saúde e à vida, o que implica na necessária análise da legitimidade ativa.
Fundamenta-se.
A paciente, por estar acometida de séria doença, não pode expressar aos médicos,
empregados do autor, a sua vontade, o que levou à negativa de autorização à
realização do tratamento de hemodiálise pelo seu filho, imediato responsável por
ela, dentro do Hospital. Referiu o autor que lá também se encontra o neto da
paciente, o qual teria opinião contrária, por autorizar o tratamento.
Ora, sem poder expressar a sua vontade, e não havendo notícia de lá se encontrar o
cônjuge da paciente, responde por ela, em primeiro lugar, o seu descendente mais
próximo, no caso o filho.
A justificativa dada pelo descendente, para negar autorização para o tratamento, foi
de que seria esta a última vontade de Irene Freitas, o que é factível, uma vez que é
de conhecimento comum que o procedimento da hemodiálise é muito desgastante.
Constantes são as desistências pelas dificuldade decorrentes e pela intensidade e
tempo que o paciente fica atrelado ao equipamento. Em época na qual é crescente a
discussão sobre a necessidade de ponderar-se o direito à vida, confrontando-o com
o direito à dignidade da pessoa, o qual também se deve entender como a
possibilidade de viver com dignidade e sem sofrimento, tais tipos de tratamentos e
doenças, por serem muito gravosos, muitas vezes são, de forma consentida,
rechaçados.
Decisão recente do Juiz Federal Substituto da 14ª Vara/DF ROBERTO LUIS LUCHI
DEMO, no processo n° 2007.34.00.014809-3, reconheceu a legitimidade da
Resolução n° 1.805/2006 do CFM, que liberou os médicos para a realização de
ortotanásia, nos seguintes termos:
“Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar
ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente,
garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao
sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do
paciente ou de seu representante legal.”
Trata-se de análise da questão pela ótica do autor, Hospital, que pretende isentar-se
de responsabilidade pelo tratamento. Não somente pela decisão acima, ainda
passível de reforma, mas pelo privilégio da dignidade da pessoa, podem os médicos
aceitar a negativa de tratamento ao paciente nessas condições. O caso em tela
enquadra-se nesse contexto. O filho pretende, negando autorização, realizar o
último desejo de sua mãe.
130
Dado o exposto, com mais razão, não há que se aceitar que a paciente não poderia
dispor de sua saúde, se quando ainda possuía discernimento, optou por não mais
submeter-se à hemodiálise. No documento de fl. 238, os médicos responsáveis
atestam que o tratamento possui risco de levar a paciente a óbito, o que vem a
confirmar a alegação do filho, réu, de que não pretendia mais prosseguir lutando
contra a doença. Além disso, não é a hemodiálise a solução do quadro de saúde da
paciente, que sofre, também, de descompensação cardíaca secundária à
insuficiência renal e pré-edema agudo de pulmão.
Com relação à alegação de que o neto da paciente é favorável à realização do
tratamento, tal não corrobora com a pretensão do autor, pois que em primeiro lugar,
responde por ela o filho. Ademais, não há nos autos motivo para retirar a
legitimidade do fundamento do filho, quando se nega a autorizar a hemodiálise.
Teria toda a legitimidade, o neto, para pleitear o suprimento da vontade, provando
especial fato para alterar a vontade.
Desse modo, concluindo-se que os médicos podem deixar de prescrever tratamento
nos casos específicos dispostos acima, no qual se enquadra a paciente, e
concluindo-se que é aceitável que a própria paciente rejeite tratamento para doença
que acaba com a sua saúde, tenho que a vontade expressada pelo filho deve ser
acolhida, nada podendo fazer o Hospital a respeito.
Havendo qualquer motivo para afastamento da responsabilidade do filho, deverá
quem tenha relação legal ou de afeto com a paciente, insurgir-se. Ao hospital, como
prestador de serviço, cabe acautelar-se de eventual alegação de responsabilidade,
como o fez, tomando a declaração do filho, inclusive autenticada, de que não a
submeterá ao tratamento (fl. 240).
131
ANEXO 5 – APELAÇÃO CÍVEL Nº 70054988266 – TJRS
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
IM Nº 70054988266 (N° CNJ: 0223453-79.2013.8.21.7000)
2013/CÍVEL
APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO
VITAL.
1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme
laudo psicológico, morrer para “aliviar o sofrimento”; e, conforme laudo psiquiátrico, se
encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e
realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de
salvar sua vida.
2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a
morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o
processo natural.
3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade
da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável
qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se
admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando
mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento
médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo
risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal.
4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se
que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura
na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina.
5. Apelação desprovida.
APELAÇÃO CÍVEL
Nº 70054988266
(N° CNJ: 0223453-79.2013.8.21.7000)
MINISTERIO PUBLICO
JOAO CARLOS FERREIRA
PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL
COMARCA DE VIAMÃO
APELANTE
APELADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
IM Nº 70054988266 (N° CNJ: 0223453-79.2013.8.21.7000)
2013/CÍVEL
Acordam os Desembargadores integrantes da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado, à unanimidade, em desprover a apelação.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores DES. CARLOS
ROBERTO LOFEGO CANÍBAL E DES. LUIZ FELIPE SILVEIRA DIFINI.
Porto Alegre, 20 de novembro de 2013.
DES. IRINEU MARIANI,
Relator.
RELATÓRIO
DES. IRINEU MARIANI (RELATOR)
O MINISTÉRIO PÚBLICO ingressa com pedido de alvará judicial para suprimento da vontade
do idoso JOÃO CARLOS FERREIRA, “usuário-morador do Hospital Colônia Itapuã e exhanseniano” (fl. 2).
Sustenta que o idoso está em processo de necrose do pé esquerdo, resultante de uma lesão, desde
novembro de 2011, que vem se agravando, inclusive com emagrecimento progressivo e anemia
132
acentuada resultante do direcionamento da corrente sanguínea para a lesão tumoral, motivo pelo
qual necessita amputar o membro inferior, sob pena de morte por infecção generalizada. Ressalta
que o “paciente está em estado depressivo, conforme laudo da psicóloga Heláde Schroeder, que
ainda atesta que o paciente está desistindo da própria vida vendo a morte como alívio do sofrimento.”
(fl. 2). Ressalva que, conforme laudos médicos, o idoso não apresenta sinais de demência. Assim,
pugna pelo deferimento do pedido para “suprir a vontade do idoso JOÃO CARLOS FERREIRA, RG
5007145898, expedindo-se alvará ao Hospital Colônia Itapuã autorizando ampute o pé esquerdo do
paciente.” (fl. 3).
O juízo singular indefere o pedido, argumentando que “não se trata de doença recente e o paciente é
pessoa capaz, tendo livre escolha para agir e, provavelmente, consciência das eventuais
consequências, não cabendo ao Estado tal interferência, ainda que porventura possa vir a ocorrer o
resultado morte.” (fl. 16).
O Ministério Público apresenta apelação (fls. 17-9), enfatizando que o idoso corre risco de morrer em
virtude de infecção generalizada caso não realize a amputação. Advoga que ele não tem condições
psíquicas de recusar validamente o procedimento cirúrgico, porquanto apresenta um quadro
depressivo, conforme os laudos médicos juntados aos autos. Reforça a ideia de que “deve-se
reconhecer a prevalência do direito à vida, indisponível e inviolável em face da Constituição Federal,
a justificar a realização do procedimento cirúrgico, mesmo que se contraponha ao desejo do paciente,
uma vez que reflete o próprio direito à sua sobrevivência frente à doença grave que enfrenta, bem
porque não possui ele condições psicológicas de decidir, validamente, não realizar a cirurgia, ante o
quadro depressivo que o acomete.” (fl. 18v.). Assim, pede o provimento (fls. 17-9).
O Ministério Público junta documentos a fim de suprir a carência documental suscitada pelo
magistrado na sentença (fls. 21-8).
A douta Procuradoria de Justiça opina pelo desprovimento do recurso (fls. 31-4).
É o relatório.
VOTOS
DES. IRINEU MARIANI (RELATOR)
Eminentes colegas, temos um caso bastante singular. O Sr. João Carlos Ferreira, nascido em 4-51934, portanto, com 79 anos, usuário-morador do Hospital Colônia Itapuã e ex-hanseniano, está com
um processo de necrose no pé esquerdo e, segundo o médico, a solução é amputá-lo, sob pena de o
processo infeccioso avançar e provocar a morte.
Considerando que, conforme laudo psicológico, o paciente se opõe à amputação e “está desistindo
da própria vida, vendo a morte como alívio do sofrimento”; considerando que, conforme laudo
psiquiátrico, “continua lúcido, sem sinais de demência”, o médico buscou auxílio do Ministério Público,
no sentido de fazer a cirurgia mutilatória mediante autorização judicial, a fim de salvar a vida do
paciente; e considerando que o pedido do Ministério Público foi indeferido de plano, vem a apelação.
Com efeito, dentro do que se está a desingnar de Biodireito, temos:
(a) a eutanásia, também chamada “boa morte”, “morte apropriada”, suicídio assistido, crime
caritativo, morte piedosa, assim entendida aquela em que o paciente, sabendo que a doença é
incurável ou ostenta situação que o levará a não ter condições mínimas de uma vida digna, solicita ao
médico ou a terceiro que o mate, com o objetivo de evitar os sofrimentos e dores físicas e
psicológicas que lhe trarão com o desenvolvimento da moléstia, o que, embora todas as discussões a
favor e contra, a legislação brasileira não permite;
(b) a ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar o sofrimento, morte
sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural, o que vem sendo
entendido como possível pela legislação brasileira, quer dizer, o médico não é obrigado a submeter o
paciente à distanásia para tentar salvar a vida;
(c) a distanásia, também chamada “obstinação terapêutica” (L’archement thérapeutique) e “futilidade
médica” (medical futility), pela qual tudo deve ser feito, mesmo que o tratamento seja inútil e cause
sofrimento atroz ao paciente terminal, quer dizer, na realidade não objetiva prolongar a vida, mas o
processo de morte, e por isso também é chamada de “morte lenta”, motivo pelo qual admite-se que o
médico suspenda procedimentos e tratamentos, garantindo apenas os cuidados necessários para
aliviar as dores, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de
seu representante legal.
Pois bem.
O caso sub judice se insere na dimensão da ortotanásia. Em suma, se o paciente se recusa ao ato
cirúrgico mutilatório, o Estado não pode invadir essa esfera e procedê-lo contra a sua vontade,
mesmo que o seja com o objetivo nobre de salvar sua vida.
133
Com efeito, o Papa João Paulo II, ao promulgar, em 1995, a Encíclica Evangelium Vitae, condenou
apenas a eutanásia e a distanásia, silenciando quanto à ortotanásia. Isso é interpretado como
implícita a sua admissão pela Igreja Católica, que é, como sabemos, bastante ortodoxa nos temas
relativos à defesa da vida.
Sem adentrar na disciplina dada a esses temas pela Resolução nº 1.805/2006, do Conselho Federal
de Medicina, e ficando no âmbito constitucional e infraconstitucional, pode-se dizer que existe
razoável doutrina especializada no sentido da previsão da ortotanásia, por exemplo, o Artigo
ANÁLISE CONSTITUCIONAL DA ORTOTANÁSIA: O DIREITO DE MORRER COM DIGNIDADE, de
autoria do Dr. Thiago Vieira Bomtempo, disponóvel no seu portal jurídico na Internet.
Resumindo, o direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da
dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável
qualidade. Em relação ao seu titular, o direito à vida não é absoluto. Noutras palavras, não existe a
obrigação constitucional de viver, haja vista que, por exemplo, o Código Penal não criminaliza a
tentativa de suicídio. Ninguém pode ser processado criminalmente por tentar suicídio.
Nessa ordem de idéias, a Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual
não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a cirurgia ou tratamento.
Conforme o Artigo acima citado, o entendimento de que “não se admite que o paciente seja obrigado
a se submeter a tratamento, embora haja o dever estatal de que os melhores tratamentos médicos
estejam à sua disposição”, é também defendido por Roxana Cardoso Brasileiro Borges. Acrescenta
que o desrespeito pelo médico à liberdade do paciente, devidamente esclarecido, em relação à
recusa do tratamento, “pode caracterizar cárcere privado, constrangimento ilegal e até lesões
corporais, conforme o caso. O paciente tem o direito de, após ter recebido a informação do médico e
ter esclarecidas as perspectivas da terapia, decidir se vai se submeter ao tratamento ou, tendo esse
já iniciado, se vai continuar com ele.”
No final do Artigo, Nota nº 8, o Dr. Thiago Vieira Bomtempo, reproduz mais uma passagem do
entendimento da Drª Roxana Borges, a qual reproduzo: “O consentimento esclarecido é um direito do
paciente, direito à informação, garantia constitucional, prevista no art. 5º, XIV, da Constituição, e no
Cap. IV, art. 22, do Código de Ética Médica. Segundo Roxana Borges, o paciente tem o direito de,
após ter recebido a informação do médico e ter esclarecidas as perspectivas da terapia, decidir se vai
se submeter ao tratamento ou, já o tendo iniciado, se vai continuar com ele. Estas informações
devem ser prévias, completas e em linguagem acessível, ou seja, em termos que sejam
compreensíveis para o paciente, sobre o tratamento, a terapia empregada, os resultados esperados,
o risco e o sofrimento a que se pode submeter o paciente. Esclarece a autora, ainda, que para a
segurança do médico, o consentimento deve ser escrito.”
Por coincidência, eminentes colegas, a Revista SUPERINTERESSANTE, nº 324, do corrente mês de
outubro/2013, publica matéria sob o título COMO SERÁ SEU FIM? Nas páginas 83-4, fala justamente
da ortotanásia e a possibilidade de o paciente detalhar quais procedimentos médicos quer usar para
prolongar a vida, como diálise, respiradores artificiais, ressuscitação com desfibrilador, tubo de
alimentação, mas também pode deixar claro que não quer retardar sua morte.
Tal manifestação de vontade, que vem sendo chamada de TESTAMENTO VITAL, figura na
Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina, na qual consta que “Não se justifica
prolongar um sofrimento desnecessário, em detrimento à qualidade de vida do ser humano” e prevê,
então, a possibilidade de a pessoa se manifestar a respeito, mediante três requisitos: (1) a decisão do
paciente deve ser feita antecipadamente, isto é, antes da fase crítica; (2) o paciente deve estar
plenamente consciente; e (3) deve constar que a sua manifestação de vontade deve prevalecer sobre
a vontade dos parentes e dos médicos que o assistem.
Ademais, no âmbito infraconstitucional, especificamente o Código Civil, dispõe o art. 15: “Ninguém
pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção
cirúrgica.”
O fato de o dispositivo proibir quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo, a pessoa
pode ser constrangida a tratamento ou intervenção cirúrgica, máxime quando mutilatória de seu
organismo.
Por fim, se por um lado muito louvável a preocupação da ilustre Promotora de Justiça que subscreve
a inicial e o recurso, bem assim do profissional da medicina que assiste o autor, por outro não se
pode desconsiderar o trauma da amputação, causando-lhe sofrimento moral, de sorte que a sua
opção não é desmotivada.
Apenas que, eminentes colegas, nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual
acusação de terceiros, tenho que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o seu testamento vital
no sentido de não se submeter à amputação, com os riscos inerentes à recusa.
Nesses termos, e com o registro final, desprovejo a apelação.
134
DES. CARLOS ROBERTO LOFEGO CANÍBAL (REVISOR) - De acordo com o(a) Relator(a).
DES. LUIZ FELIPE SILVEIRA DIFINI - De acordo com o(a) Relator(a).
DES. IRINEU MARIANI - Presidente - Apelação Cível nº 70054988266, Comarca de Viamão: "À
UNANIMIDADE, DESPROVERAM."
Julgador(a) de 1º Grau: GIULIANO VIERO GIULIATO.
135
ANEXO 6 – RESOLUÇÃO Nº 1.805/2006 DO CFM
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
RESOLUÇÃO CFM Nº 1.805/2006
(Publicada no D.O.U., 28 nov. 2006, Seção I, pg. 169)
Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao
médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem
a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os
sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência
integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.
O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições conferidas pela
Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, alterada pela Lei nº 11.000, de
15 de dezembro de 2004, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de
julho de 1958, e
CONSIDERANDO que os Conselhos de Medicina são ao mesmo
tempo julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes
zelar e trabalhar, por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito
desempenho ético da Medicina e pelo prestígio e bom conceito da
profissão e dos que a exerçam legalmente;
CONSIDERANDO o art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, que
elegeu o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil;
CONSIDERANDO o art. 5º, inciso III, da Constituição Federal, que
estabelece que “ninguém será submetido a tortura nem a
tratamento desumano ou degradante”;
CONSIDERANDO que cabe ao médico zelar pelo bem-estar dos
pacientes;
CONSIDERANDO que o art. 1° da Resolução CFM n° 1.493, de
20.5.98, determina ao diretor clínico adotar as providências cabíveis
para que todo paciente hospitalizado tenha o seu médico assistente
responsável, desde a internação até a alta;
CONSIDERANDO que incumbe ao médico diagnosticar o doente
como portador de enfermidade em fase terminal;
CONSIDERANDO, finalmente, o decidido em reunião plenária de
9/11/2006,
RESOLVE:
Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e
tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de
enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou
de seu representante legal.
136
§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu
representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para
cada situação.
§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e
registrada no prontuário.
§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito
de solicitar uma segunda opinião médica.
Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados
necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento,
assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social
e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.
Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação,
revogando-se as disposições em contrário.
Brasília, 9 de novembro de 2006.
EDSON DE OLIVEIRA ANDRADE - Presidente
LÍVIA BARROS GARÇÃO – Secretária Geral
Fonte: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2006/1805_2006.htm Acesso
em 12.dez.2014.
137
ANEXO 7 – PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 524/09
ORTOTANÁSIA – Projeto de Lei do Senado nº 524/09
Dispõe sobre os direitos da pessoa em fase terminal de doença
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre os direitos da pessoa que se encontre em fase terminal
de doença , no que diz respeito à tomada de decisões sobre a instituição, a limitação
ou a suspensão de procedimentos terapêuticos, paliativos e mitigadores do
sofrimento.
Art. 2º A pessoa em fase terminal de doença tem direito, sem prejuízo de outros
procedimentos terapêuticos que se mostrarem cabíveis, a cuidados paliativos e
mitigadores do sofrimento, proporcionais e adequados à sua situação.
Art. 3º Para os efeitos desta Lei, são adotadas as seguintes definições:
I – pessoa em fase terminal de doença: pessoa portadora de doença incurável,
progressiva e em estágio avançado com prognóstico de ocorrência de morte
próxima e inevitável sem perspectiva de melhora do quadro clínico mediante a
instituição de procedimentos terapêuticos proporcionais;
II – procedimentos paliativos e mitigadores do sofrimento: procedimentos que
promovam a qualidade de vida do paciente e de seus familiares, mediante
prevenção e tratamento para o alívio de dor e de sofrimento de natureza física,
psíquica, social e espiritual;
III – cuidados básicos, normais e ordinários: procedimentos necessários e
indispensáveis à manutenção da vida e da dignidade da pessoa, entre os quais se
inserem a ventilação não invasiva, a alimentação, a hidratação, garantidas as quotas
básicas de líquidos, eletrólitos e nutrientes, os cuidados higiênicos, o tratamento da
dor e de outros sintomas de sofrimento.
IV – procedimentos proporcionais: procedimentos terapêuticos, paliativos ou
mitigadores do sofrimento que respeitem a proporcionalidade entre o investimento
de recursos materiais, instrumentais e humanos e os resultados previsíveis e que
resultem em melhor qualidade de vida do paciente e cujas técnicas não imponham
sofrimentos em desproporção com os benefícios que delas decorram;
V – procedimentos desproporcionais: procedimentos terapêuticos, paliativos ou
mitigadores do sofrimento que não preencham, em cada caso concreto, os critérios
de proporcionalidade a que se refere o inciso IV;
VI – procedimentos extraordinários: procedimentos terapêuticos, ainda que em fase
experimental, cuja aplicação comporte riscos.
Art. 4º Na aplicação do disposto nesta Lei, os profissionais responsáveis pela
atenção à pessoa em fase terminal de doença deverão promover o alívio da dor e do
sofrimento, com preservação, sempre que possível, da lucidez do paciente, de modo
a permitir-lhe o convívio familiar e social.
Art. 5º É direito da pessoa em fase terminal de doença ou acometida de grave e
irreversível dano à saúde de ser informada sobre as possibilidades terapêuticas,
paliativas ou mitigadoras do sofrimento, adequadas e proporcionais à sua situação.
138
§ 1º Quando, em decorrência de doença mental ou outra situação que altere o seu
estado de consciência, a pessoa em fase terminal de doença estiver incapacitada de
receber, avaliar ou compreender a informação a que se refere o caput, esta deverá
ser prestada aos seus familiares ou ao seu representante legal.
§ 2º É assegurado à pessoa em fase terminal de doença, aos seus familiares ou ao
seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.
Art. 6º Se houver manifestação favorável da pessoa em fase terminal de doença ou,
na impossibilidade de que ela se manifeste em razão das condições a que se refere
o § 1º do art. 5º, da sua família ou do seu representante legal, é permitida,
respeitado o disposto no § 2º, a limitação ou a suspensão, pelo médico assistente,
de procedimentos desproporcionais ou extraordinários destinados a prolongar
artificialmente
a
vida.
§ 1º Na hipótese de impossibilidade superveniente de manifestação de vontade do
paciente e caso este tenha, anteriormente, enquanto lúcido, se pronunciado
contrariamente à limitação e suspensão de procedimentos de que trata o caput,
deverá ser respeitada tal manifestação.
2º. A limitação ou a suspensão a que se refere o caput deverá ser fundamentada e
registrada no prontuário do paciente e será submetida a análise médica revisora,
definida em regulamento.
Art. 7º Mesmo nos casos em que houver a manifestação pela limitação ou
suspensão de procedimentos a que se refere o art. 6º, a pessoa em fase terminal de
doença continuará a receber todos os cuidados básicos, normais ou ordinários
necessários à manutenção da sua vida e da sua dignidade, bem como os
procedimentos proporcionais terapêuticos, paliativos ou mitigadores do sofrimento,
assegurados o conforto físico, psíquico, social e espiritual e o direito à alta
hospitalar.
Art. 8º Esta Lei entra em vigor após decorridos noventa dias da data da sua
publicação.
Sala das Sessões,
Senador GERSON CAMATA
Disponível em
http://direitomedico.blogspot.com.br/2010/04/ortotanasia-projeto-de-lei-do-senadon.html
Acesso em 04.06.2015.
139
ANEXO 8 – RESOLUÇÃO Nº 1.995/2012 DO CFM
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
(Publicada no D.O.U. de 31 de agosto de 2012, Seção I, p.269-70) Dispõe sobre as
diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.
O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, no uso das atribuições conferidas pela Lei
nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19
de julho de 1958, e pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004, e
CONSIDERANDO a necessidade, bem como a inexistência de regulamentação
sobre diretivas antecipadas de vontade do paciente no contexto da ética médica
brasileira;
CONSIDERANDO a necessidade de disciplinar a conduta do médico em face das
mesmas;
CONSIDERANDO a atual relevância da questão da autonomia do paciente no
contexto da relação médico-paciente, bem como sua interface com as diretivas
antecipadas de vontade;
CONSIDERANDO que, na prática profissional, os médicos podem defrontar-se com
esta situação de ordem ética ainda não prevista nos atuais dispositivos éticos
nacionais;
CONSIDERANDO que os novos recursos tecnológicos permitem a adoção de
medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do paciente em estado
terminal, sem trazer benefícios, e que essas medidas podem ter sido
antecipadamente rejeitadas pelo mesmo;
CONSIDERANDO o decidido em reunião plenária de 9 de agosto de 2012,
RESOLVE:
Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e
expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer,
ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e
autonomamente, sua vontade.
Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram
incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas
vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.
§ 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas
informações serão levadas em consideração pelo médico.
§ 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de
vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo
com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.
§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer
não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.
§ 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que
lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.
§ 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem
havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre
140
estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na
falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e
Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando
entender esta medida necessária e conveniente.
Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília-DF, 9 de agosto de 2012
ROBERTO LUIZ D‟AVILA - Presidente
HENRIQUE BATISTA E SILVA - Secretário-geral
http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf
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