do livro ao filme
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do livro ao filme
Eliana Maria Simoncelli Lalucci DA ESTAÇÃO CARANDIRU A CARANDIRU (do livro ao filme): LIBERDADE INTERDITADA A INSUSTENTÁVEL DUREZA DO SER MARÍLIA 2009 Eliana Maria Simoncelli Lalucci DA ESTAÇÃO CARANDIRU A CARANDIRU (do livro ao filme): LIBERDADE INTERDITADA A INSUSTENTÁVEL DUREZA DO SER Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Comunicação da Universidade de Marília, campus de Marília, para a obtenção do título de Mestre em Comunicação – Área de Concentração: Mídia e Cultura. Orientadora: Professora. Dra. Elêusis Mirian Camocardi. MARÍLIA 2009 Lalucci, Eliana Maria Simoncelli Da Estação Carandiru a Carandiru(do livro ao filme)- Liberdade interditada a insustentável dureza do ser./Eliana Maria Simoncelli Lalucci -- Marília: UNIMAR, 2009. 97f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Curso de Comunicação da Universidade de Marília, Marília, 2009. 1. Comunicação- Mídia 2. Estação Carandiru 3. Filme- Denuncia I. Lalucci, Eliana Maria Simoncelli CDD -- 302.2 Eliana Maria Simoncelli Lalucci DA ESTAÇÃO CARANDIRU A CARANDIRU (do livro ao filme): LIBERDADE INTERDITADA A INSUSTENTÁVEL DUREZA DO SER BANCA EXAMINADORA Orientadora: Drª Elêusis Miriam Camocardi Examinador: ________________________________________________________________ Examinador: ________________________________________________________________ Examinador: ________________________________________________________________ Marília, 16 de dezembro de 2009. Este trabalho é dedicado aos meus filhos e a minha neta, porque tiveram que conviver com minha ausência, mesmo presente, durante esses anos de estudo. AGRADECIMENTOS Neste momento de conclusão e de realização, quero agradecer a Móveis Ricre nas pessoas de Ana Cláudia Ribeiro (Diretora Executiva) e José Carlos Ribeiro (Diretor Presidente), empreendedores com os pés no chão e a cabeça no futuro, que muito contribuíram para que eu pudesse chegar até aqui. A vocês, muito obrigada pela confiança que em mim depositam e por toda a força que venho recebendo ao longo desses anos de trabalho e amizade. Tenho muito que agradecer à minha orientadora, pessoa cuja generosidade ao me acompanhar durante esta jornada foi da maior importância. A ela agradeço o carinho amoroso com que me conduziu, o respeito com as minhas limitações, tanto as físicas e geográficas como as intelectuais, e principalmente a consideração e a paciência em todos os momentos ao longo desses nossos anos de convívio. A você Elêusis, mais que uma orientadora, uma fada madrinha, meus sinceros e calorosos agradecimentos. LALUCCI, E. M. S. DA ESTAÇÃO CARANDIRU A CARANDIRU (do livro ao filme): LIBERDADE INTERDITADA A INSUSTENTÁVEL DUREZA DO SER. Marília, 2009, f. 97. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Marília, campus de Marília, para a obtenção do título de Mestre em Comunicação – Área de Concentração: Mídia e Cultura. RESUMO O objetivo desta pesquisa é realizar uma análise interpretativa do texto Estação Carandiru, de Dráuzio Varella (1999), um texto do estilo jornalístico literário, e do processo de Transcodificação do mesmo texto para a mídia cinema, cujo título é Carandiru, de Babenco et al (2003), observando as convergência e divergências no processo. A análise norteia-se pelo método hipotético-dedutivo e pela abordagem comparativa do texto verbal e sua adaptação cinematográfica, observando o contexto sócio-cultural em que se sustenta a sociedade brasileira contemporânea, e também pela compreensão do trânsito entre o real, o imaginário e o simbólico, sua interação e/ou influência no cotidiano, avaliando a existência de uma tensão entre a linguagem textual e a língua viva retratada no filme. Por estas vias, pode-se afirmar que o livro Estação Carandiru é um livro-reportagem e Carandiru é um filme-denúncia. Palavras-chave: Estação Carandiru. Livro-reportagem. Carandiru. Filme-denúncia. Adaptação cinematográfica. Transcodificação. Realidade. Ficção. Comunicação. Mídia. ABSTRACT The objective of this research is to perform an interpretive analysis of text Carandiru Station, by Dráuzio Varella (1999), a text style literary journalism, and the transcoding process of the same text to the media film, whose title is Carandiru, by Babenco et al (2003), noting the convergence and divergence in the process. The analysis is guided by the hypothetical-deductive method and the comparative approach of verbal text and its film adaptation, noting the socio-cultural context which supports the contemporary Brazilian society, and also by understanding the traffic between the real and the imaginary symbolic interaction and / or influence in daily life, assessing the existence of a tension between the textual language and the language being portrayed in the movie. For these routes, it can be said that the book Carandiru Station is a book-entry and Carandiru is a film-complaint. Keywords: Station Carandiru. Book-entry. Carandiru. Film-complaint. Film adaptation. Transcoding. Reality. Fiction. Communication. Media. Lista de Ilustrações Figura 01 - Capa do livro Estação Carandiru ....................................................................... 11 Figura 02- Capa do filme Carandiru em DVD.......................................................................11 Figura 03- Ilustração nº 6 no jornal Folha online – Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/carandiru/, 28mar2008............................ 19 Figura 04- Preso confecciona barco – Ilustração nº 40 – do livro Estação Carandiru............ 23 Figura 05- Foto Pavilhão Quatro da Casa de detenção – Ilustração nº 23 do livro Estação Carandiru.................................................................................................................................. 25 Figura 06- O cano que serve de chuveiro em cela coletiva do pavilhão oito – Ilustração nº 8 do livro Estação Carandiru.............................................................................................. 27 Figura 07- O banheiro de xadrez – Ilustração nº 6 do livro Estação Carandiru.................. 31 Figura 08- Interior de cela – Ilustração nº 1 do livro Estação Carandiru............................ 33 Figura 09- Privada do tipo Francês, tapada com saco de areia. Ilustração nº 7 do livro Estação Carandiru .............................................................................................. 35 Figura 10- Localização da Casa de Detenção – Ilustração do Livro Estação Carandiru, p.08 ........................................................................................................................ 37 Figura 11- Pátio interno da Casa de Detenção – Ilustração nº 27 do livro Estação Carandiru. ................................................................................................................................ 38 Figura 12- Casa de Detenção vista do alto – Ilustração nº 24 do livro Estação Carandiru.................................................................................................................................. 38 Figura 13- Ilustração da capa do filme em DVD – Carandiru................................................ 54 Figura 14- Cena do Filme Carandiru retratando a chegada do médico a Casa de Detenção................................................................................................................................... 57 Figura 15- Cena do filme em que o personagem seu Chico que confecciona balões solta o balão no pátio da casa de detenção............................................................................... 60 Figura 16- Cena do filme onde acontece o show da artista Rita Cadillac.............................. 81 Figura 17- Detentos assistindo ao show de Rita Cadillac....................................................... 82 Figura 18- Detentos em cena após o massacre ocorrido na Casa de Detenção...................... 83 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12 CAPÍTULO 1 1.1 Próxima parada – Estação Carandiru ............................................................................... 24 1.2 O casarão ........................................................................................................................... 27 1.3 Os pavilhões ...................................................................................................................... 28 1.3.1 Pavilhão dois .................................................................................................................. 28 1.3.2 Pavilhão quatro .............................................................................................................. 29 1.3.3 Pavilhão cinco ................................................................................................................ 30 1.3.4 Pavilhão seis ................................................................................................................... 31 1.3.5 Pavilhão sete .................................................................................................................. 32 1.3.6 Pavilhão oito .................................................................................................................. 33 1.3.7 Pavilhão nove ................................................................................................................. 34 1.4 O Barraco .......................................................................................................................... 35 CAPÍTULO 2 2.1 Olhar o passado para interpretar o futuro .......................................................................... 39 2.2 Teoria da Comunicação: Definições e Conceitos ............................................................. 39 2.3 Do olhar e narrar ao ouvir e ver, uma trajetória contundente ........................................... 42 2.4 Do humano sensível .......................................................................................................... 44 2.5 A construção social da marginalidade .............................................................................. 46 CAPÍTULO 3 3.1 Próxima parada – Estação Carandiru: uma grande reportagem ....................................... 50 3.1.1 Livro Reportagem Estação Carandiru..............................................................................50 3.2 Carandiru (o filme): uma grande denúncia ...................................................................... 54 3.3 Ficha técnica do filme e elenco ......................................................................................... 55 3.4 Tradução do Real .............................................................................................................. 57 3.4.1 O reencontro: laços afetivos entre os muros penitenciários ........................................... 59 3.4.2 Plataformas transitórias .................................................................................................. 60 3.4.3 O nem sempre vil metal ................................................................................................. 62 3.4.4 O espaço: um espelho mental ......................................................................................... 64 CAPÍTULO 4 Arte e vida se confundem e se completam .............................................................................. 69 4.1 A sétima arte em Carandiru: fantástico retrato da realidade ............................................ 70 4.2 A montagem como voz para o discurso imagético ........................................................... 71 4.3 A fotografia e a linguagem cinematográfica ..................................................................... 71 4.4 Onde ficção e realidade transparecem nos gêneros do cinema comercial ........................ 72 CAPÍTULO 5 5.1 Transcodificações: Estação Carandiru e Carandiru ........................................................ 77 5.2 Livro reportagem X obra cinematográfica ........................................................................ 78 5.3 O levante, o ataque e o rescaldo ........................................................................................ 84 5.4 Arte e superação da dor mental ......................................................................................... 86 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 88 REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 95 Figura 01 – Capa do livro Estação Carandiru Figura 02 - Capa do filme Carandiru em DVD 12 INTRODUÇÃO A vida humana, como a vivemos e entendemos, é possível, graças ao acúmulo das experiências daqueles que nos precederam. Ao vivermos cada dia, acrescentamos nelas as nossas experiências atuais. Centenas de gerações pretéritas contribuíram para o nível de conhecimento ou grau de domínio do ambiente que hoje desfrutamos, principalmente por meio da linguagem e de sua evolução (LÉVY, 2000). Podemos afirmar que a linguagem é indispensável à vida humana e que estamos imersos num mundo de comunicações. Desde as primeiras ferramentas ou do grito de alarme do homem primitivo até a última pesquisa científica ou notícia veiculada na Internet, a linguagem é o fenômeno indispensável à cooperação cultural e intelectual, e esta se constitui no grande princípio da vida humana (LÉVY, 2000). No entanto, o homem contemporâneo vêse tentado a acreditar que a competição seja o princípio que rege a vida humana, porque parece que a vida é uma luta individual, que somente os mais aptos sobreviverão (LASCH, 1983). Apesar dessa competição de superfície, há um grande substrato de cooperação, que é aceito, admitido e praticado dentre os humanos, cuja convergência impulsiona o mundo para a evolução. Cabe ressaltar que a coordenação de esforços humanos geradores de cooperação para resultados significativos e indispensáveis ao bom relacionamento da sociedade advém da comunicação (FOUCAULT, 1987). Ao contrário dos outros animais, os homens conferem significados e sentidos às palavras e aos fenômenos do cotidiano. Dentre os sistemas de comunicação, os símbolos lingüísticos são os mais importantes, seguidos das artes (GENETTE, 1970). O comportamento simbólico de cada grupo humano é assimilado e transmitido de forma que as experiências de apenas um membro podem servir àquela sociedade. Da mesma 13 forma que a linguagem, as expressões artísticas fazem parte de um sistema simbólico, cujos símbolos, abstrações e idéias juntam-se para, por meio da obra de arte, expressar o conteúdo da própria cultura (GENETTE, 1970). A evolução e o progresso nos trouxeram ao terceiro milênio. A sensação é de que não há precedentes para o que vivemos hoje na História. O passado remotíssimo dos homens em condição de homo habilis até chegar a homo sapiens parece mágico, mas a verdade é que existiram civilizações sucessivas que se irromperam, lançando-se à invenção da Terra, dos deuses, e de um mundo infinito de significações, bem antes de nós, e não foi por meio de mágica que o fizeram. Um dos adventos mais importantes criados pelos homens foi a comunicação escrita. Toda a história dos homens e das humanidades pôde ser contada por ela. O livro, que antes do século XV era destinado aos poucos da classe dominante, com o advento da Imprensa percorreu longas distâncias, chegando às mãos dos homens a história de sua humanidade. Esta foi uma grande contribuição da tecnologia para a comunicação. Mas os adventos tecnológicos prosseguiram em sua marcha de progresso, culminando na representação por meio de imagens. Primeiro, o cinema, depois, a televisão: ambos trouxeram a representação das letras em contextos reais, publicitários e ficcionais. Os homens passaram a criar textos específicos para o cinema, e depois, à televisão, mas também faziam e fazem adaptações de textos escritos especialmente ao livro para esses novos veículos de comunicação. Assim, surgiu um novo leitor, uma nova modalidade de leitura (OLIVEIRA, 1998). Depois, os homens inventaram máquinas de jogos com imagens, os videogames. Nova modalidade textual surge, adaptada a um novo leitor, que interage na trama por meio de competências físicas e pessoais (CAÑIZAL, 2004; BATESON, 1990). 14 A escrita e a leitura tornaram-se também multimídia. O atual curso dos acontecimentos converge para a constituição de novos meios de comunicação, de pensamento e de trabalho para as sociedades humanas. Neste trabalho pretendemos focar o livro Estação Carandiru, de Dráuzio Varella, publicado pela Companhia das Letras, em 1999, e o filme Carandiru, dirigido por Hector Babenco (BABENCO et al, 2002) e apresentado ao público nacional e internacional em 2003. O filme foi uma adaptação livre do livro e ambos produzidos na atualidade, com códigos culturais reconhecidos, mas em linguagens diferentes. Para se vislumbrar o quanto as leituras de Estação Carandiru (VARELLA, 1999) e Carandiru (BABENCO et al, 2002) estiveram presentes na vida dos brasileiros, na época do lançamento de ambos os textos, informamos que o livro ficou na lista dos mais vendidos durante 168 semanas, segundo a revista Veja, e foram vendidos mais de 350.000 exemplares até aquela data, e no dia da estréia do filme, em circuito nacional, 468.293 pessoas assistiramno (FERREIRA. 27mar2008; http://jornal.valeparaibano.com.br/2003/04/15/viv01/carandir.html, FERREIRA. http://pt.shvoong.com/books/non-fiction/249587- esta%C3%A7%C3%A3o-carandiru/27mar2008). Foi recorde histórico de público para um filme brasileiro (http://www.webcine.com.br/notaspro/npcarand.htm, 28mar2008). E ainda, o filme, durante a temporada de exibição nos cinemas brasileiros, foi visto por 4,6 milhões de pessoas (http://www.sobrecarga.com.br/node/view/8038, 28mar2008). O livro Estação Carandiru (VARELLA, 1999), na Bienal de 2.000 realizada no Rio de Janeiro, organizada pela Câmara Brasileira do Livro, onde mais de 800 editoras expuseram mais de 110.000 títulos, esteve entre os três mais vendidos pela editora que o publicou (BETTING. http://www2.uol.com.br/JC/_2000/2804/job2804.htm,28mar2008;http://www1.folha.uol.com. br/folha/ilustrada/ult90u33455.shtml, 28mar2008). Somando-se, obtemos 4.950.000 pessoas 15 em contato com as leituras, mas nos lembremos de que os livros circulam até hoje, como o filme continua assistido via DVD. O Brasil possui 186 milhões de pessoas, segundo o censo do IBGE realizado em 2006 (http://pt.wikipedia.org/wiki/Demografia_do_Brasil, 28mar2008). Assim, entre 1999 e 2003, 2,66% da população brasileira esteve em contato direto com as leituras do livro de Varella (1999) ou do filme de Babenco et al (2002), ou com ambos. Sem contar os multiplicadores até a atualidade, haja vista que o produto desta operação matemática não se pode calcular. A área da Comunicação seja ela impressa ou cinematográfica é o assunto de nossa dissertação. Neste trabalho, propomos a realização de uma análise interpretativa de um livro reportagem e seu processo de Transcodificação para o cinema. Desenvolveremos uma análise do texto Estação Carandiru, de Dráuzio Varella, demonstrando que sua narrativa é realizada nos moldes textuais surgidos durante o período do “Novo Jornalismo” americano, o qual introduziu a „Grande Reportagem‟ na literatura. Em seguida, analisaremos o filme, uma adaptação livre do mesmo livro, que apresenta todas as características de um cinema-denúncia e, para finalizar, faremos uma exposição das convergências e divergências observadas na Transcodificação de uma mídia à outra. Aqui, penetraremos no universo de Carandiru, filme dirigido e produzido por Hector Babenco, cujo roteiro foi escrito por Hector Babenco, Victor Navas e Fernando Bonassi (www.revistadecinema.com.br). O roteiro é uma adaptação da obra referida no parágrafo anterior, para o cinema, realizando uma análise reflexiva sobre o espaço cênico e as marcas reveladoras da voz dos excluídos sociais em confinamento penitenciário. Acreditamos que a marginalidade em contexto e a vida reclusa revelarão como a comunicação humana afeta as relações e como se estabelece a partir dos modelos de desenvolvimento implantados pela sociedade capitalista. 16 Este estudo apresenta como proposta analisar a influência da ficção, embora o livro esteja classificado como „não-ficção‟, na mídia cinema, em uma sociedade contemporânea, que vive num período de destruição criativa de tudo que existe, ou seja, há um esforço para desmontar toda a estrutura vigente e recriar algo novo. Assim, pretendemos decodificar o universo simbólico das personagens apresentadas no livro e no filme, ressaltando as transcodificações e intertextualidades, procurando signos e códigos comuns às duas mídias. Nesta análise, visamos à compreensão do trânsito entre real, imaginário e simbólico, sua interação e ou influência no cotidiano, avaliando a existência de uma tensão entre a linguagem textual e a língua viva retratada no filme. O uso das gírias tanto no livro e no filme remete a um vocabulário próprio dos detentos, à linguagem falada por eles após um tempo na carceragem, transpõe os muros penitenciários e ganha as ruas, fazendo parte do vocabulário dos que convivem com os presos e de outras pessoas. Enfim, buscamos por meio dos recursos de comunicação como ciência, refletir sobre a função da mídia nas relações humanas, compreendendo sua inserção na sociedade capitalista. Esta pesquisa foi conduzida pelo método hipotético-dedutivo e uma abordagem comparativa do texto verbal e sua adaptação cinematográfica, focando o contexto sóciocultural em que se sustenta a sociedade brasileira contemporânea (CHANLAT, 1992). Como meios para se realizar este trabalho analítico, fizemos pesquisa bibliográfica e documental, acreditando que estas nos permitiriam obter informações importantes para a base de dados que sustentam nossos apontamentos e conclusões. Pretendemos inserir um procedimento que investigue os dois tipos de mídia – impressa e audiovisual – como expressão da realidade, uma vez que esta realidade é provocadora de uma dicotomia epistemológica básica, entre subjetividade e objetividade, tendo em vista que o 17 sujeito e o objeto são afirmados em sua importância e de maneira contraditória, sendo ambos independentes entre si (LACAN, 1993). As expressões dessa dicotomia são o empirismo e o racionalismo, os quais manifestam a contraposição entre razão e realidade. Apesar disso, ambas buscam o mesmo objetivo: a sistematização do real (LACAN, 1993). O primeiro a buscar a superação desta dicotomia foi Kant. Este filósofo postula que a razão organiza os conhecimentos objetivos, utilizando categorias a priori, ou seja, subjetivas. No entanto, apesar de seu brilhantismo, Kant ainda mantém a dicotomia sujeitoobjeto, pois para ele o objeto real e pleno é impossível se alcançar pelas limitadas capacidades da razão, portanto, está fora do sujeito e longe de ser atingido por ele (LACAN, 1993). O livro Estação Carandiru, de Dráuzio Varella, publicado em 1999 pela editora Companhia das Letras, recebeu o Premio Jabuti, em 2000, como „livro do ano de não ficção‟. Nele, o autor narra a própria convivência com mais de 7000 presos, como médico da Casa de Detenção de São Paulo, localizada no bairro Carandiru, o maior presídio da América Latina até então. Nesse espaço, em 1989, o médico Dráuzio Varella foi desenvolver um trabalho voluntário de prevenção à AIDS com os detentos, que o fez durante doze anos consecutivos, semanalmente. Ao narrar, o médico faz uso da crônica (subgênero narrativo, com caráter de narrativa curta) sobre a sua convivência pessoal com os detentos e funcionários do local, evidenciando a confiança que os presos depositaram nele ao longo do tempo. O espaço onde se desenvolvem as crônicas foi construído na década de 1920. Era um complexo arquitetônico com sete pavilhões, onde os detentos conviviam soltos durante o dia e encarcerados nas respectivas celas durante a noite. Durante duas décadas, esse presídio foi considerado como padrão de referência pelas autoridades jurídicas, por outras autoridades nacionais e internacionais, estudiosos de filosofia e sociologia, entre outros. Nele, os detentos trabalhavam durante o dia. Eles mesmos produziam o pão e os legumes que consumiam, 18 preparavam remédios, lavavam e passavam suas roupas, faziam atividades lúdicas e de aprendizado escolar. A partir da década de 1940, a lotação ficou exagerada e os grandes problemas surgiram. Embora o presídio tivesse passado por uma reforma em 1956, a fim de melhorar as acomodações, o problema não foi resolvido porque mais e mais detentos foram enviados, confirmando, ao longo do período, a superlotação. Os problemas, tanto para os internos, visualizando o espaço dividido entre os detentos, como aos externos, aqui considerados os pertinentes aos administradores da casa de detenção, aumentavam à medida que crescia a já superlotação (E:\Estação Carandiru (3). htm, 28mar2008). Para se visualizar o caráter dos problemas, citamos que os detentos ocupavam celas conforme seus status econômicos ou sociais. Cada preso tinha que “comprar” o espaço com subterfúgios. Assim, os detentos mais antigos determinavam onde os recém-chegados deveriam residir. O preço do aluguel variava conforme as benfeitorias feitas na cela pelo dono dela (Varella, 1999). Muitas rebeliões aconteceram. A última, em 1992, culminou no massacre de 111 detentos, praticado pelos policiais militares, embora fotos da época denunciem mais de 200 mortos, lembrando que no local residiam mais de 7.000 pessoas reclusas (E:\Estação Carandiru (3).htm, 28mar2008). 19 Figura 03 – Ilustração nº 6 no jornal Folha online – Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/carandiru/, 28mar2008. Todos no Carandiru eram condenados, mas para o médico Dráuzio Varella, eles eram seus pacientes. Ao narrar os episódios em seu livro, envolvendo os condenados, o autor, além dos fatos, descreve o espaço notadamente degradante e as leis internas estabelecidas pelos próprios detentos para a convivência no local. É importante lembrar que o trabalho desenvolvido pelo médico ocorreu em tempos de superlotação carcerária. O leitor encontra no livro um narrador heterodiegético e extradiegético. Este narrador, que não é personagem, adentra um espaço que não era o seu, mas ali foi porque estava autorizado pela sua profissão e pelo caráter do trabalho a realizar, e assim as portas dos pavilhões foram-lhe abertas, como também as „portas das memórias‟ dos detentos que lhe confiavam sua vida antes e durante a 20 prisão. Tais histórias são contadas, não por um médico, mas por um contador de „causos‟, como um cronista daquele cotidiano odioso. Ao alinhar as histórias ouvidas e vividas em um livro-reportagem, o médicoescritor cria um painel trágico-cômico, revelador de uma grandiosidade humana que conduz o leitor a territórios emocionais distantes das crônicas de medo e violência que impregnam a maioria dos textos sobre as pessoas encarceradas e seus respectivos cárceres. As crônicas são produtos do respeito e confiança que detentos e funcionários depositaram no médico, revelando-lhe seus segredos e como a vida ali era estruturada. A diegese em Estação Carandiru (VARELLA, 1999) é marcada pela tensão existente entre os conceitos de disciplina e os de desvio, destacados em Foucault (1987), e observados no ambiente das memórias de cada detento em cada história narrada pelo narrador. Contudo, o narrador não se compromete com a veracidade dos relatos, o que pode ser uma maneira mais suave de tornar a dura realidade impregnada de ficção e fantasia. A história do filme Carandiru é uma livre adaptação do livro Estação Carandiru. Ela se desenvolve por meio da personagem, que representa o médico Dráuzio Varella, que fora realizar um trabalho de prevenção à AIDS entre os prisioneiros do maior presídio da América Latina, a Casa de Detenção de São Paulo. Ao contar as histórias de cada um, ele vai apresentando o quadro de violência nesse espaço, a superlotação carcerária, as instalações precárias, a falta de assistências diversas, enfim, as faltas. Ao narrar, as denúncias ocorrem cristalizadas nas imagens de um “inferno na Terra”, testemunhadas por ele com solidariedade, organização e grande disposição para viver. Narrados com uma linguagem que confere voz às personagens, tanto o livro como o filme vão retratando a diversidade humana através do ponto de vista do narrador que, por meio de depoimentos de presos sobreviventes, narra o massacre ocorrido no local a Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, em 1992. 21 As personagens e seus destinos são apresentados no filme: o diretor Pires, aquele que “pisa em ovos” para administrar o presídio; Nego Preto, líder da massa encarcerada e juiz das desavenças entre a coletividade reclusa; o Velho Chico, construtor de balões e prestes a ganhar a liberdade; o bígamo Majestade, vivendo entre mulheres e assaltos; o filósofo Sem Chance e seu romance com o travesti Lady Di. Esses são os principais personagens, mas é importante destacar que o espaço, esse lugar aterrador, deve ser considerado o protagonista, e que o ponto de vista apresentado, segundo o diretor do filme, é o dos detentos. O enredo do filme foi montado como um “mosaico”; contudo, uma história se conecta à outra, formando um grande caleidoscópio de uma das tragédias brasileiras, que é o sistema de detenção penitenciária. Para a composição do raciocínio que conduzirá o desenvolvimento deste trabalho, expusemos o conteúdo dos objetos de estudo: Estação Carandiru e Carandiru, em dois raciocínios distintos, mas convergentes. No capítulo I apresentamos o espaço, que é o presídio, e seu funcionamento, porque nesta narrativa ele é o elemento fulcral do enredo. No capítulo II apresentamos os discursos teóricos e breves considerações sobre seus conceitos, os quais sustentam as análises contidas neste trabalho e a metalinguagem de suas composições. No Capítulo III caracterizamos o gênero textual e a apresentação do meio em que tal gênero surgiu, como também uma análise das estratégias do autor para envolver o leitor e atingir seus objetivos. Salientamos o contraponto das estratégias dos autores do livro e do filme para a composição de suas obras. Observamos os principais recursos utilizados pelo cinema na produção de um filme, inserindo aspectos observados na realização de Carandiru. 22 No Capítulo IV apresentamos as semelhanças, igualdades e diferenças entre os conteúdos do livro de Varella (1999) e do filme de Babenco et al (2002) no processo de Transcodificação. No Capítulo V desenvolvemos algumas reflexões oriundas do processo de recepção das leituras aqui traduzidas em objetos de estudo. 23 Figura 04 - Preso confecciona barco – Ilustração nº 40 – do livro Estação Carandiru 24 CAPÍTULO 1 1.1 Próxima parada – Estação Carandiru A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás; mas só pode ser vivida olhando-se para frente. Soren Kierkegaard A atual situação do sistema penitenciário é crítica e calamitosa. Essa realidade incita considerações, posto que se trata de fato público e notório. São exemplos dessa trágica realidade a superlotação dos presídios; a corrupção dos agentes carcerários; as faltas de recursos com a reeducação do detento, da profissionalização do preso, de funcionários especializados, não há separação dos reeducandos por grau de periculosidade; faltam recursos no presídio; necessita-se de melhor remuneração para os funcionários, dentre outros fatores. O aumento da criminalidade implica em aumento populacional nas prisões, penitenciárias e casas de detenção, evidenciando a falência do sistema carcerário e a dificuldade do Estado em atingir os objetivos atribuídos à pena, principalmente quanto à reintegração do indivíduo no meio social. A Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, foi construída em 1956 para abrigar 3.250 presos. Nos seus últimos anos de existência abrigava mais de 7000 detentos. Em dezembro de 2002, quase todo o espaço foi implodido e transformado em uma área esportiva. Situada no bairro do Carandiru, zona norte de São Paulo, a Casa de Detenção abrigava todos os tipos de criminosos: assassinos, assaltantes, ladrões, golpistas, estupradores, justiceiros, estelionatários, traficantes, entre outros. 25 “Cadeia é um lugar povoado de maldade”. (VARELLA, 1999, p. 13) Figura 05 – Pavilhão Quatro da Casa de detenção – Ilustração nº 23 do livro Estação Carandiru. O conjunto presidiário era formado por nove pavilhões, cada um com cinco andares, celas de portas maciças onde só se sabia o que se passava atrás delas ao abri-las. O leitor adentra a Casa de Detenção pelo olhar do narrador, que o leva a um passeio para conhecer a situação geográfica desta cidade-presídio. Ele nos convida a entrar, passo a passo, ala a ala, e enquanto adentramos pelo portãozinho verde aberto para pedestres e seguimos até à Administração, somos orientados pelos referenciais de cores e texturas, como se estivéssemos olhando com os próprios olhos. 26 Como o próprio narrador nos explica – “A narrativa será interrompida pelos interlocutores, para que o leitor possa apreciar-lhes a fluência da linguagem, as figuras de estilo e as gírias que mais tarde ganham as ruas” (VARELLA, 1999, p.11). Voltemos então à geográfica arquitetura dessa cidadela. O portão da rua leva ao pátio do estacionamento e dali se vai à Ratoeira, um átrio gradeado com guichês de identificação dos visitantes. Entre os guichês sai o corredor de acesso à sala do diretor geral “ampla e cheia de luz” (VARELLA, 1999, p.14). Da Ratoeira, um portão interno se abria para a Divinéia, pátio em forma de funil, onde, na parte estreita, está a sala de revista corporal, do seu lado fica a copa da diretoria. A Divinéia era o ponto final dos camburões que traziam e levavam os presos e também tudo que entrava ou saia da cadeia. O trabalho de carga e descarga na Divinéia ficava por conta dos detentos, que eram facilmente reconhecidos pela calça de cor bege. Somente esta peça do vestuário era de uso obrigatório. Os cabelos deviam ser curtos, mas camisetas e camisas eram de livre escolha. Proibia-se o uso de paletó assim como andar descalço, de peito nu ou sem se barbear. Para os presos, a camiseta era soberana, mas não poderia ser vestida nenhuma camiseta com propaganda de político, pois “pega mal no ambiente”. (VARELLA, 1999, p.16). Na parte ampla do funil, que era a Divinéia, um paredão a fechava desenhado por sonhos, atrás do qual se erguiam os andares superiores do pavilhão Seis, o central. Em seu lado esquerdo existia um bosque, com um caminho que levava aos pavilhões Dois, Cinco e Oito. Em oposição, ao lado da copa da diretoria, existia um canteiro de flores e uma pequena fonte desativada. Desse lado encontrava-se o acesso aos pavilhões do lado direito. O da frente era o pavilhão Quatro, seguido do Sete e do Nove. A enfermaria ficava no último andar do pavilhão Quatro. 27 1.2 O casarão “A detenção é um presídio velho e mal conservado. Os pavilhões são prédios cinzentos de cinco andares (contando o térreo como primeiro), quadrados, com o pátio interno central, e a área externa com a quadra e o campinho de futebol.” (VARELLA, 1999, p.16). Figura 06 - O cano que serve de chuveiro em cela coletiva do pavilhão oito – Ilustração nº 8 do livro Estação Carandiru. As celas de ambos os lados eram separadas pela Galeria um corredor ao derredor no andar. Assim, as celas da parte interna apresentavam janelas para o pátio interno e as da parte externa, janelas para o lado. E, na face externa do prédio, os pavilhões são separados por paredões e ligados pela Radial, um caminho amplo e asfaltado. A entrada do pavilhão era coberta por grades em forma de gaiola, formada pelas portas externas e internas que bloqueavam o acesso à escada e à galeria do térreo. Esse 28 procedimento era utilizado na entrada de todos os andares e pavilhões. Não existiam portas elétricas. O sistema era controlado manualmente. Poderíamos citar, como exemplo disso, a folclórica Rua Dez, que era apenas uma parte da galeria em oposição à entrada. Os guardas não possuíam visão do que estava acontecendo na entrada, por isso precisavam percorrer todo o caminho para lá chegar. A Rua Dez era famosa porque nela ocorriam as disputas internas. No térreo dos pavilhões ficavam os setores de apoio, tais como o de eletricidade, de hidráulica, uma sala de atendimento médico, a carceragem com o arquivo dos presos, a escolinha e as igrejas. (VARELLA, 1999, p.20). 1.3 Os Pavilhões 1.3.1 Pavilhão Dois – O mais tranqüilo “Embora a arquitetura externa dos pavilhões seja semelhante, suas divisões internas e a geografia humana são bem diferentes”. (VARELLA, 1999, p.21). No pavilhão Dois a entrada da cadeia viviam os presos que cuidavam da Administração: chefia, carceragem, serviço de som e refeitório dos funcionários. Os presidiários, além de trabalharem nos setores de apoio do térreo, também exerciam atividades na alfaiataria, na barbearia, no departamento de fotografia, na rouparia e na laborterapia. Importante lembrar que a cada três dias trabalhados, o detento ganhava um dia de remissão da pena. (VARELLA, 1999, p.21). Nesse pavilhão, fazia-se a recepção do preso. Este, ao chegar à casa, era recebido para o controle geral: o detento era registrado, fotografado e determinavam em que pavilhão „residiria‟, além de trocar a sua roupa pela calça bege obrigatória e uma camiseta, e ter seus cabelos cortados. 29 Depois de despersonalizado, o detento era recolhido na Triagem Um, uma cela de 32m². Às vezes estava lotada, dependendo do número de detentos recebidos no dia. Eles passavam para a Triagem Dois no dia seguinte, porque precisavam aguardar a determinação do local onde ficariam. Esses locais às vezes abrigavam mais de duzentas pessoas, as quais, na maioria das vezes, eram transferidas de uma só vez. Esse pavilhão era mais tranqüilo, porque detentos que se apresentavam com disponibilidade para o trabalho pediam para habitar ali mesmo. 1.3.2 Pavilhão Quatro – Até eu queria morar ali ou Ali, ninguém sabe quem é, e quem não é. (VARELLA, 1999, p.23). Fica do lado oposto, simétrico ao Dois, contém menos de quatrocentos presos, alojados em celas individuais, caso único na detenção; é o único pavilhão com elevador funcionando. Inicialmente fora construído para ser utilizado como Departamento de Saúde e, de fato, foi lá que funcionou a enfermaria geral no último andar, e as celas dos tuberculosos no térreo. No térreo também ficava a Masmorra*, guardada por uma porta maciça, com uma placa proibindo terminantemente a entrada de qualquer pessoa não autorizada. O local foi criado para a proteção dos marcados para morrer. Eram oito celas de um lado da galeria escura e seis do outro, úmidas e superlotadas. O ambiente é lúgubre, infestado de sarna, muquiranas e baratas. Durante a noite, ratos cinzentos passeavam pela galeria deserta. A janela era lacrada por uma placa de ferro, impedindo a entrada de luz. O local não tinha ventilação e um cheiro forte de aglomeração mantinha-se estagnado. Os homens mofavam em vida, à espera de uma transferência para outro presídio. (*) Transcrevemos como aparece no livro 30 Nesse pavilhão, em dias de sol no pátio, os paraplégicos podiam ser vistos em suas precárias cadeiras de roda. No segundo andar existiam celas identificadas pela sigla DM, destinadas aos doentes mentais, cuja rotulação era imprecisa, pois não existia serviço de psiquiatria na Casa. 1.3.3 Pavilhão Cinco – “É a fábrica de faca da cadeia” ou “Artigo 213 – para onde vão os estupradores”. (VARELLA, 1999, p.29). O Cinco é o pavilhão vizinho do Dois e ficava do lado oposto do Quatro. Apresentava o pior estado de conservação. As escadas possuíam degraus quebrados, deteriorados, com fiação elétrica à mostra, percebiam-se nas paredes infiltrações devido aos vazamentos e à água empoçada nos cabeçotes das lâmpadas que viviam queimadas. Nas janelas eram hasteados mastros, e neles os detentos secavam suas roupas, fato que conferia ao espaço aspecto de cortiço. Este era o pavilhão mais lotado, com cerca de 1600 homens. (VARELLA, 1999, p.27). No primeiro andar ficava a carceragem, a enfermaria, a sala de aula com uma biblioteca muito pequena. Nesse espaço ficava também a Isolada, um conjunto de vinte celas onde instalavam os presos capturados em contravenções locais, como porte de arma, de bebida alcoólica, tráfico de drogas, desrespeito a funcionários ou planejamento de fuga. Eles cumpriam trinta dias nesse lugar abafado, com as janelas lacradas como as da Masmorra, com tranca dura e permanente, e nunca viam a luz do sol. O segundo andar era habitado pelos presos integrantes da faxina, que eram encarregados da limpeza geral e da distribuição das refeições; e mais os que trabalhavam nos patronatos, no judiciário e entregando as sacolas de alimentos trazidas pelas famílias dos colegas, durante a semana. Nem todos possuíam família que os visitasse. 31 O terceiro andar era conhecido como o dos estupradores e justiceiros, também chamados “pés-de-pato”. Uniam esses dois grupos com objetivo de protegê-los contra possíveis vinganças da massa carcerária. No quarto andar moravam os que não conseguiram lugar melhor, junto de outros que foram expulsos dos pavilhões devido a mau procedimento. Esse local existia grande grupo de travestis. No último andar, à direita, ficava a ala da Assembléia de Deus, o grupo evangélico de presença mais forte na Casa. Vizinho dos crentes à esquerda, ficava o Amarelo, um conjunto de segurança fechado 24 horas, para onde iam os detentos ameaçados de morte e alguns que não tinham onde morar. Esse era o pavilhão dos sem-família, dos sem-teto e dos “humildes”, por isso era o pavilhão mais „armado‟ da penitenciária. 1.3.4 Pavilhão Seis – “Uma alternativa para o Amarelo”. (VARELLA, 1999, p.30). Figura 07– O banheiro de xadrez – Ilustração nº 6 do livro Estação Carandiru. 32 O pavilhão Seis era o único em posição central, pois ficava entre o Dois e o Quatro. No térreo funcionava a Cozinha Geral, que fora desativada em 1995. O serviço passou a ser terceirizado. As refeições eram servidas em marmitas descartáveis, conhecidas como “quentinhas”. Mas as instalações permaneceram com suas enormes panelas de pressão, azulejos quebrados e goteiras. No segundo andar existia um auditório com capacidade para mais de mil pessoas, onde funcionava um cinema que fora destruído em uma das rebeliões. Dele restou apenas um grande salão com um palco de madeira elevado. Nesse andar e no terceiro funcionavam as salas destinadas à Administração, com os serviços de vigilância e controle de disciplina, os pertinentes ao departamento de esportes, as atividades do judiciário e uma diretoria de valorização humana. No quarto andar havia celas e no quinto existia um setor chamado MPS - medida preventiva de segurança -, criado como alternativa para a superlotação do Amarelo. Então, nesse quinto andar do pavilhão Seis ficavam alojados os nigerianos que faziam parte da conexão do tráfico de cocaína, detidos no País e obrigados a cumprir pena. 1.3.5 Pavilhão Sete – “A fábrica de túneis”. (VARELLA, 1999, p.32). Na Divinéia, em frente do pavilhão Seis, central, à direita, encontrava-se o pavilhão Sete, vizinho do Quatro. Neste local ficava a maioria dos presos que trabalhavam. No térreo, como em outros pavilhões, funcionava a burocracia: os setores do patronato e o de manutenção, cujas tarefas manuais eram executadas pelos detentos. No segundo andar moravam os detentos responsáveis pela faxina e nos demais andares os outros habitantes. No quinto andar os que cumprem castigo. 33 No pátio havia uma quadra de esportes e dois campinhos de futebol. Neste, quase não existia grama, mas era lugar para diversos campeonatos entre os detentos. O pavilhão fora construído para ser utilizado para o trabalho, e as ocupações, os esportes e a relativa ausência de superlotação manteriam o pavilhão em certa calmaria não fosse pela proximidade da muralha, cujo subterrâneo era utilizado para possíveis fugas. 1.3.6 Pavilhão Oito – “Não age, reagem, só dão o bote quando pisam nele”. (VARELLA, 1999, p.34). Figura 08 - Interior de cela – Ilustração nº 1 do livro Estação Carandiru. O pavilhão Oito fazia parte do problemático „fundão‟, que era a união dos pavilhões Oito e Nove. O pavilhão era quadrado como os outros, porém, enorme. As galerias chegavam a ter quase cem metros de comprimento. No segundo andar ficavam as celas dos faxineiros; nos andares de cima, as celas chamadas de xadrez, que convergiam para o pátio 34 interno. Cada cela abrigava cerca de seis homens. As que se voltavam para a fachada externa do pavilhão podiam ser semicoletivas, albergando, cada uma, dois ou três homens. No quinto andar havia oito celas de Castigo. No térreo, além das seções burocráticas existia uma capela Católica, os templos da igreja Assembléia de Deus, da Igreja Universal, da Deus é Amor e o Centro de Umbanda. No pátio do Oito havia uma quadra esportiva e o maior campo de futebol da cadeia, onde se disputavam campeonatos internos e com convidados visitantes, que são muito respeitados nessa ocasião. Neste pavilhão havia “duchas”, lugares reservados para banho coletivo, e eram considerados, por muitos detentos desafortunados como as suas „casas‟, porque não podiam comprar seu espaço lá dentro. A principal característica do pavilhão Oito era a paisagem humana. Nele coabitavam reincidentes, aqueles que já saíram, mas voltaram para o complexo penitenciário. Eram os mais conhecedores das leis da cadeia, por isso caracterizam esse pavilhão como a segunda fase da educação, após o jardim-de-infância, pois era espaço daqueles cuja ficha criminal era grande. 1.3.7 Pavilhão Nove – “São tudo cabeça de bagre, doutor. São os primários”. (VARELLA, 1999, p.35). O pavilhão Nove encontrava-se no fundo do complexo, fazendo parte do fundão problemático e de sua estrutura arquitetônica. Embora fosse igual ao pavilhão Oito, no Nove existiam duas celas de triagem com um número de presos que podia chegar a trinta em cada. Eles dormiam „espremidos‟, com cuidado para não encostarem o rosto nos pés dos outros. 35 Havia poucas chances de eles encontrarem moradia melhor, pois o direito de posse era dos detentos mais antigos. Os beliches de madeira que existiam nas celas foram substituídos por camas de concreto, também chamadas de “pedra”. Quando chegavam os detentos em triagem para o conhecimento do local, todos os outros desciam para verificar se havia conhecidos para abrigarem ou desafetos para jurarem de morte. Os funcionários consideravam o pavilhão Nove como o „pavilhão do encontro‟. Podemos citar um paralelo feito por um detento, que cumpria pena há mais de vinte anos, em relação aos pavilhões Oito e Nove: “Em nenhum dos dois pode pisar no ovo, só que no Oito é você mesmo que coloca o ovo. No Nove, são os outros, e ainda espalham sabonete no chão para escorregar”. (VARELLA, 1999, p.35). 1.4 O Barraco – “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão, mas quando a gente pega é problema”. (VARELLA, 1999, p.43). Figura 09 – Privada do tipo Francês, tapada com saco de areia. Ilustração nº 7 do livro Estação Carandiru. 36 O „barraco‟ era a denominação de uma cela ou xadrez, cujas dimensões variavam, como descreve o narrador, entre algumas espaçosas individuais e outras onde se „espremem‟ sete, oito, vinte ou, como nas de triagem, sessenta homens. A direção da Casa não tinha domínio sobre os “barracos” nos pavilhões maiores, porque eram propriedades dos presos mais antigos. Estes o comercializavam conforme a categoria, com valores que variavam de R$150,00 a R$200,00. Toda cela tem um vaso sanitário velho, o “boi”, que termina em um buraco seco por onde corre a descarga; alguns detentos jogavam água fervendo após o último utilizá-lo, à noite; outros tampavam o buraco com plástico para evitar os cheiros ruins, baratas e ratos. Na cela havia também uma pia e um chuveiro, ou um cano com saída de água. Os beliches eram de alvenaria, denominados “pedra”, ou de madeira. O que ficava acima de todos era chamado de “galhada”. Em todos os xadrezes havia um fogareiro, de grande valia, pois muitos presos refaziam a comida que recebiam procedimento chamado de “recorte”. 37 Figura 10 – Localização da Casa de Detenção – Ilustração do Livro Estação Carandiru, p.08 38 Figura 11 – Pátio interno da Casa de Detenção – Ilustração nº 27 do livro Estação Carandiru. Figura 12 – Casa de Detenção vista do alto – Ilustração nº 24 do livro Estação Carandiru. 39 CAPÍTULO 2 2 Olhar o passado para interpretar o futuro Alguns filósofos tinham imaginado que para começar uma inquirição era apenas necessário formular uma questão ou escrevê-la num papel, e recomendaram-nos mesmo que iniciássemos os nossos estudos questionando tudo. Mas o mero fato de colocar uma proposição na forma interrogativa não estimula a mente para que se afadigue em busca da crença. Deve existir uma dúvida real e viva, e sem ela toda a discussão é ociosa. (PIERCE, Charles Sanders. A fixação da crença. Popular Science Monthly 12 November 1877, p. 1-15) Quando nos propusemos a analisar a Transcodificação da narrativa impressa Estação Carandiru para a mídia cinematográfica Carandiru, tivemos a intenção de efetuar uma análise do comportamento humano e o processo de comunicação, pois acreditamos como muitos estudiosos do comportamento humano, que um e outro são inseparáveis, indissolúveis. Um gera o outro. Sem comunicação, o comportamento social não existe. Uma comunicação deficiente ou fragmentada torna deficiente e fragmenta o comportamento numa relação direta e proporcional. O que isso significa? Significa que a comunicação é fundamental para a preservação e aprimoramento do comportamento humano. Sendo assim, a mídia é poderosíssimo instrumento para ditar normas e conceitos que norteiam a vida em sociedade. 2.1 Teoria da comunicação: definição e conceitos Jean Cloutier (1975) afirma que, “Para Colin Cherry, comunicação significa "compartilhar elementos de comportamento ou modos de vida, pela existência de um conjunto de regras"”. Já Berlo entende o processo de comunicação "como o processo pelo qual um indivíduo suscita uma resposta num outro indivíduo, ou seja, dirige um estímulo que visa 40 favorecer uma alteração no receptor para suscitar uma resposta". Por sua vez, Abraham Moles define comunicação "como o processo de fazer participar um indivíduo, um grupo de indivíduos ou um organismo, situados numa dada época e lugar, nas experiências de outro, utilizando elementos comuns". (Texto transcrito do livro "A era de EMEREC" de Jean Cloutier, Ministério da Educação e Investigação Científica - Instituto de tecnologia Educativa, 1975). Em comum entre esses autores encontramos a idéia de um processo interativo, no qual os agentes buscam respostas diretas ou a participação direta de um indivíduo. Podemos conceituar Comunicação sob vários aspectos: conceito biológico, sociológico, antropológico. O vocábulo Comunicação vem do latim communis, que significa comum, o que nos conduz à idéia de comunidade. Assim, podemos dizer que comunicação é o processo pelo qual as pessoas podem compreender umas as outras, fazendo-se entender pela expressão do pensamento, gerando, assim, um senso comum e a própria comunidade. Como o próprio nome revela, o conceito biológico preza a parte física do processo de comunicação, definindo-se por excelência pela atividade sensorial e nervosa do ser humano, ou seja: a linguagem – em todas as suas formas de manifestação – é fruto do que se passa no sistema nervoso do ser humano e sua expressão maior. Sob esta ótica, têm-se a idéia da supremacia do ser humano sobre os demais seres vivos, uma vez que, enquanto algumas espécies têm a necessidade de trocar informações apenas para garantir a sobrevivência da espécie, retransmitir seus genes e assegurar sua supremacia sobre o território escolhido, como exemplo garantindo fontes de água, alimento e abrigo; o homem busca a comunicação intensa com seus semelhantes porque necessita participar ativamente da sua própria evolução biológica. Embora seja considerado um conceito parcial, temos, aqui, delineado, o esboço da teoria da Inteligência Emocional, uma vez que o processo de comunicação não se resume em 41 impulsos e estímulos nervosos, mas se alia a outros componentes, como o emocional. Assim, a comunicação alimenta emoções e as emoções podem ser interpretadas como reações biológicas, já que provocam alterações físicas no organismo humano. E essas alterações podem alterar a percepção da informação e, assim, determinar novos rumos para a comunicação. Pelo conceito sociológico afirma-se define que o papel da comunicação é o de transmitir os significados entre pessoas para a sua integração na organização social. Assim, podemos afirmar que o ser humano se vale da comunicação como forma de mediar sua interação social, pois se vale dela para se manter em constante relação com o mundo, utilizando códigos compreensíveis para todos aqueles que o rodeiam em sua comunidade. E ressaltam os sociólogos: quanto mais intrincada a organização social do Homem, mais fundamental se torna a comunicação para o bom funcionamento da comunidade. Pelo conceito antropológico analisa-se a comunicação como veículo de transmissão de cultura ou como formador da bagagem cultural de cada indivíduo. Esse é um assunto de grande importância, haja vista o surgimento da cultura de massa no século XX, transformando as formas de convivência do homem moderno. Os antropólogos e comunicólogos não devem se esquecer de que sem o desenvolvimento da comunicação não se poderia estudar o homem em suas origens. Todos os conceitos abordados foram e são de extrema importância para um trabalho que pretende analisar uma reportagem e um filme sobre um espaço que abriga centenas de pessoas, privando-as do convívio social externo. Chegamos ao ponto em que estabelecemos nossa fonte de origem: a linguagem escrita adotada por Varella (1999) para traçar a trajetória de sua vivência dentro do então maior presídio da América Latina, e a linguagem audiovisual, adotada por Babenco, para transpor para o cinema a linguagem escrita de Varella (1999). 42 Surge, então, nossa primeira grande questão em busca do entendimento dos efeitos da ficção na mídia, aqui, leia-se cinema: a transposição do signo da linguagem escrita para a linguagem áudio-visual pode se isentar parcial ou totalmente da ação do autor da obra no realizar a transposição? Ou o cineasta, ao adaptar um livro para as telas, tem o direito de agir sobre a obra original em ponto de lhe alterar o conteúdo? Antes de responder prontamente a tal questionamento, necessário se faz reacendermos em nossa memória outros conceitos essenciais ao entendimento final que buscamos. No mundo globalizado em que vivemos, a comunicação é essencial à vida. Talvez não seja possível compará-la à importância das primeiras tentativas de comunicação nas origens da humanidade, mas em ambos os casos a comunicação significa sobrevivência. No passado e no presente, comunicar-se é sobreviver. [...]Procuro mostrar que a perda da liberdade e a restrição do espaço físico não conduzem à barbárie, ao contrário do que muitos pensam. Em cativeiro, os homens, como os demais grandes primatas, criam novas regras com o objetivo de preservar a integridade do grupo. (VARELLA, Dráuzio, Estação Carandiru, p.10) 2.2 Do olhar e narrar ao olhar e ouvir: uma trajetória contundente Varella (1999) nos alerta para olhar um mundo pouco conhecido, ou mesmo ignorado pela maioria da população. Sabia-se da existência desse mundo paralelo, imaginavase como seria, mas não há certeza sobre como funcionava e nem de que modo agiam seus habitantes. Tal espaço foi apresentado ao leitor em crônicas sucessivas. Como estratégia de composição do livro, Varella optou pelo discurso objetivo possibilitando ao leitor mais tempo para absorver as informações contidas em Estação 43 Carandiru (1999). E não se pense em pouco esforço do leitor – mesmo que a estrutura do livro esteja organizada em capítulos de rápida leitura. Neles há fragmentos da realidade atual dos prisioneiros e flashbacks, apresentando verdadeiros mosaicos que formam um grande caleidoscópio em planos simultâneos. Importante destacar que essa simultaneidade certamente facilita a Transcodificação do texto em prosa para o roteiro de cinema. Embora aparentemente fáceis de serem lidos, tais capítulos carregam a complexidade das personagens retratadas. Varella (1999) optou por apresentar as personagens que povoavam esse mundo paralelo chamado sistema prisional, cujo maior representante foi justamente o presídio do Carandiru – o maior da América Latina, enquanto esteve em atividade. Um mundo paralelo, de hierarquia rígida, regras pétreas que puniam severamente seus infratores. As páginas escritas por Varella (1999) ganham, em função de tal desconhecimento generalizado, contornos de relato histórico, mesmo que não seja esta a pretensão do autor. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que Varella (1999) descerrou cortinas que mantinham o Carandiru apenas nos limites da imaginação. Ao descrever as personagens com quem conviveu durante os doze anos de trabalho médico no interior do presídio, Varella acendeu o lume sobre os subterrâneos de nossa própria sociedade, desvendando o mistério do destino reservado àqueles que não compartilham de nossa convivência, mas estão fundados nas leis de convivência social. Os sutis laços que unem nosso mundo ao interior dos presídios foram percebidos. O sistema e seus agentes diretos foram expostos, entendendo-se, aqui, o sistema de comunicação interna, que cria dentro do presídio uma sociedade similar à nossa, mas cercada por grades e muros. Tal como aqui, lá existe a hierarquia: aqueles que mandam e os que obedecem. Tal como aqui, as tarefas são divididas e executadas, ainda que sob o peso de 44 ordens, muitas vezes, de aparência desumana. Observa-se que mesmo o caráter desumano ganha outros contornos. O mundo que existia dentro dos muros e celas de um presídio é diferente do mundo feito de casas, lojas, apartamentos, ruas e avenidas. As esquinas de nosso mundo podem ser movimentadas ou ermas, tranqüilas ou perigosas. As esquinas do mundo de um presídio são rotineiramente ameaçadoras e guardam surpresas até mesmo nos dias mais tranqüilos. O narrador se abstém de comentários e de julgar as personagens. Além de descrever, ele dialogava com os habitantes daquele mundo, e por isso pôde revelar suas fraquezas, seus crimes, seus temores, mergulhando nos mistérios da capacidade humana de se reorganizar em um sistema funcional, sustentado por novos códigos de comunicação e novas regras de comportamento. O narrador leva ao leitor as informações que nele foram injetadas pelas personagens com quem conviveu. O seu olhar é aquele do médico para o paciente: analítico, sem julgamentos, observador acima de tudo. O julgamento é realizado pelo leitor, o receptor da mensagem, o que decodifica o signo feito palavra. A história fica registrada e a interpretação é a de quem a lê. 2.3 Do humano sensível Deste ponto, parte-se para o que podemos designar de individualidade do escritor, a partir do qual o autor abre caminho para a arte, pois que partindo de seu individualismo a escrita vai alcançando o espírito e a alma humana e criando identificação com outros homens. Como escreve Mendonça (1996): 45 [...] A atividade humana gera uma série de atos que, por serem comuns a muitos indivíduos, perdem a filiação, e de simples manifestações individuais se convertem em manifestações coletivas, impessoais, acabando por adquirir um automatismo que lhe retira toda qualidade vital. São estes atos que, depositados no fundo das consciências, lhe transmitem esse perfil... Ora é neste poder natural de contínuo renascimento, nesta mocidade insuperável, que reside a virtude universalista das almas individuais. (1996, p. 36). Em sua narrativa - depoimento jornalístico, o narrador de Estação Carandiru (VARELLA, 1999) vai revelando personagens e histórias de vida, convidando o leitor a mergulhar em aventuras de tecidos variados, que permitem entrever a alma humana em seus heroísmos e abjeções, evidenciando a verdade dos impulsos que não permanecem aprisionados nem escondidos. Mediante um realismo enriquecido de simplicidade e sinceridade, descortinam-se ao leitor as perspectivas das emoções e raciocínios de cada personagem nas suas sinceras psicoses. Entrevemos, através das narrativas múltiplas e paradoxais, expressões de emoção e sentimento que se universalizam no enriquecimento das experiências humanas, mesmo em face de todas as dissidências e divergências humanísticas. Comandado por razão e emoção, como tudo na vida, o narrador foi recriando o mundo através do filtro da sua individualidade, sem exacerbar as aberrações, as monstruosidades ou mesmo a vulgaridade do cotidiano. Podemos perceber no enquadramento literário o processo estilístico do autor, que se mostra simples, limpo, despido de fraseologias de efeito e fiel à linguagem dos personagens revelados, não desviando o leitor do jogo dramático de cada história narrada. O desajuste permanente, a inaptidão para viver no mundo e a violência das situações são suficientes para abdicar de efeitos que não os autênticos que a vida aí impõe. A narrativa despida de adornos recria o cotidiano vulgar, quando a relação humana não se ajusta à sintonia pacífica de convívio; o diálogo retratado entre as personagens 46 aponta a existência da incompatibilidade. Necessário se faz o retorno a Mendonça (1996): [...] o certo é que não nos compreendemos: nem a nós nem aos outros. Tudo porque estamos neste mundo. [...] porque é no mais agudo sentimento da humilhação extrema; ou ao cabo das experiências da devassidão; ou nos irredutíveis conflitos das mais opostas, violentas, complexas solicitações; ou nos mais delirantes momentos de terror insondável; [...] ou no auge de certos estados anteriores e posteriores a um crime; ou nas mais obscuras manifestações da chamada loucura lúcida..., em suma é porque é naquilo a que os pobres homens chamam doença – que o outro mundo se nos abre. (1966, p. 55) A narrativa de Varella (1999) apresenta vidas cheias de situações ignóbeis, em que a prostituição, os roubos e a loucura se fundem para produzir uma substância rica de verdade e de vida. Ele escreve reproduzindo espantosas situações de pessoas desnudas, que revelam a alma humana no que têm de maravilhoso e terrificante, com peculiar simplicidade em seu processo estilístico enquadrando os problemas abrigados entre os muros daquela cidade-presídio. 2.4 A construção social da marginalidade A desagregação familiar, um lar com pais bêbados, a fome e a miséria, constroem um ser marginal? Nós construímos a marginalidade? Ou o homem, isolando-se da família, do ambiente de trabalho, do grupo social a que pertence busca caminhos diferentes, aventuras que se transformam em desventuras que o levam à marginalidade? Por que um homem se torna marginal? À ditadura do consumo juntam-se, em coro, as ditaduras econômica e política, construindo uma realidade ameaçadora e caótica, em que status e identidade adquirem a mesma dimensão e o ser se traduz pelo ter, provocando uma transformação completa na vida 47 das pessoas e das sociedades, delimitando e determinando os interesses culturais. Com o desenvolvimento industrial e a concentração dos valores e do poder econômico nas mãos da elite as classes trabalhadoras e todos os cidadãos de baixo poder aquisitivo, tiveram a vez e a voz garroteadas. Nesse sentido, a narrativa de Varella (1999) está orientada para o campo dos grupos escancarando os processos e as singularizações, liberando novos territórios existenciais para nos instigar a pensar. Hoje, há uma produção de subjetividade hegemônica capitalista que propõe um sujeito consumidor ocupado e o tempo todo submetido ao ideal do que deveria ser, há uma potência instituinte em todo sujeito que também se vê capturado pelos códigos que são dados. Impossível não entrar num mundo pronto, sem sermos marcados por isso. Quando prisioneiros contam sua história, aí já se configura a “construção da marginalidade” de cada um – seja filme, ou seja, livro. O homem faz parte da natureza, é um animal, com a diferença específica da racionalidade, e uma das principais questões atuais é a de como ultrapassar a cisão sujeito racional-objeto tão determinante do nosso modo de ser. Habitamos em um espaço diferenciado como espécie animal, uma vez que alteramos e transformamos a natureza em função da nossa sobrevivência. O rompimento com a sucessão natural está na raiz da condição humana; o homem é capaz de arbitrar sobre seus atos por causa de um espaço e de uma liberdade que lhe são próprios. Jung (1971) já afirmava, há mais de cinqüenta anos, que a desordem é prerrogativa exclusiva do homem, cuja consciência e livre arbítrio podem se desligar de sua natureza e raízes animais. Nesta particularidade está a base de toda cultura e também da doença psíquica. Assim como o neo-realismo na literatura portuguesa exibe a realidade miserável 48 dos grupos desfavorecidos e esmagados pelos mais favorecidos, como afirma Mendonça “a verdade pungente do suor alugado”. (1996) A narrativa de Varella exibe um mal social dolorosamente humano, expondo problemas humanos com lirismo e audácia, revelando a história da miséria humana, provocando simpatia e sentimento de compreensão no leitor. A realidade sombria dilui-se em momentos de sonho, de coragem e de verdades narradas, convergindo para uma variedade de tipos sócio-psicológicos identificados nas personagens que habitam o presídio. Com a fidelidade à linguagem das personagens, o autor vai revelando a gênese emocional e a realidade das relações humanas, em sua profundidade, como linha mediatriz condutora do processo dialético das relações, e que, pouco a pouco, revela a imensa solidão do homem. A narrativa caminha o tempo todo pelo tênue fio da realidade, mas de uma realidade que não é a nossa, que explicita um modo de viver que não coincide com o nosso. É a que passa na rua ao lado, que não é alheia, embora possamos permanecer surdos a esse clamor porque tememos ouvi-lo. No jogo narrativo, a originalidade descritiva e a sinceridade retrataram as personagens em suas intimidades, conferindo-lhes vida e verdade à obra. Varella (1999) sintetiza nessa narrativa, em estilo claro e objetivo, de código lingüístico comum, as complexidades do humano e seus problemas, penetrando no desconhecido espaço interior do ser, onde se entrelaçam o bem e o mal. A simplicidade do estilo reforça a simplicidade da vida cotidiana, cuja diegese encerra uma problemática profundamente humana, que na maioria das vezes é insolúvel. Desta forma, reconhecemos a narrativa literária de Varella (1999) para descrever as experiências pelas quais passou em sua atividade na Penitenciária do Carandiru: o teor acentuadamente ideológico transformado e preocupado com a comunicação de uma 49 mensagem. E os ciclos da vida, no presente, recriam constantemente o passado. 50 CAPÍTULO 3 3.1 Próxima parada - Estação Carandiru: uma grande reportagem "Triste Época! Mais fácil desintegrar um átomo que um preconceito". Albert Einstein O espaço descrito é o foco central do livro-reportagem, Estação Carandiru, que conta os relatos de dez anos de convivência do médico Dráuzio Varella com os ocupantes do presídio. São histórias contadas para um médico oncologista, que desenvolveu um trabalho voluntário de prevenção à AIDS no Presídio, registradas no livro Estação Carandiru e adaptadas para cinema no filme Carandiru, uma produção que mobilizou, sob direção de Hector Babenco, atores e técnicos, que se tornou sucesso de bilheteria por todo o Brasil. Foi por meio desse livro-reportagem e da sua adaptação para o cinema que o sistema carcerário e os problemas para os quais as autoridades não encontraram soluções que, a sociedade pôde conhecer esse mundo abjeto e implodido, cujo espaço se transformou em área de lazer e desportos. 3.1.1 Livro-reportagem Estação Carandiru Um livro-reportagem é um produto cultural contemporâneo. Ele penetra em campos desprezados ou superficialmente tratados pelos veículos jornalísticos periódicos, recuperando para o leitor alguns elementos não encontrados nesses meios de comunicação. O livro-reportagem avança as fronteiras do jornalismo, extrapolando os limites convencionais que ele próprio se impõe. De abordagem diferenciada, esse veículo revitaliza a forma da 51 produção jornalística cotidiana, principalmente quando apresenta, com todo seu arsenal de possibilidades, a grande reportagem. (LIMA, 1993) O jornalista Edvaldo Pereira Lima O que é livro-reportagem – (1993) explica que esse veículo exerce uma função recicladora da prática jornalística, porque ousa incorporar contribuições conceituais e técnicas provenientes de áreas como a literatura e a história. O livro-reportagem surge da necessidade de um aprofundamento maior dos acontecimentos. (LIMA, 1993) O jornalismo contemporâneo reveste-se da função de relatar os fatos e acontecimentos que têm repercussão pública e de divulgar, de forma noticiosa, informações à população para que ela tenha conhecimento do que ocorre à sua volta. Em alguns casos, o relato avança para tentar explicar a causa ou as causas da ocorrência focalizada em cada mensagem jornalística ou, ainda, ousa sugerir os desdobramentos futuros, ou seja, as conseqüências ou desdobramentos dos acontecimentos. (LIMA, 1993) O autor-narrador nos envolve com sua obra, onde ficção e realidade se misturam, produzindo no leitor-receptor uma variada gama de emoções que vão desde a indignação com as situações que os personagens vivem até a simpatia pelas histórias relatadas. Em síntese, é para isso que serve basicamente o livro-reportagem: para estender o papel do jornalismo contemporâneo, fazendo avançar as baterias de explicações para além do terreno que estaciona a grande reportagem na imprensa convencional. Mais ainda, o livro-reportagem transcende as concepções norteadoras do jornalismo atual. Tem potencial para assumir posturas experimentais. Tem pique suficiente, se trabalhado de forma adequada, para fazer nascer a vanguarda de um jornalismo realmente afinado com as tendências mais avançadas do conhecimento humano contemporâneo. Em outras palavras, o livro-reportagem poderá ser a ponta-de-lança para o desenvolvimento de um jornalismo holístico, que busca uma abordagem contextual e dinâmica da realidade. (LIMA, 1993,p.57) 52 A grande reportagem em forma de livro surgiu com o new journalism (manifestação de um momento do Jornalismo Literário), que apresenta um instrumental de expressão sofisticado e um elevado potencial de captação do real. O new journalism nasce nos Estados Unidos por volta das décadas de 1960 e 1970 para satisfazer uma necessidade de muitos jornalistas: o sonho de escrever um grande romance. Assim Tom Wolfe (1976) explica no livro El Nuevo Periodismo, acrescentando que havia uma espécie de hierarquia na literatura, cujo status de romancista era o objetivo maior a se atingir. Embora não seja reconhecido como um movimento literário pelos próprios protagonistas, foi assim que o new journalism entrou para a história. Uma vez batizado e reconhecido como fenômeno, o new journalism adquiriu um caráter de legitimidade e, portanto, passou a ser pesquisado e conceituado por diversos autores, tais como Tom Wolfe (1976) e Edvaldo Pereira Lima (1993). Além disso, essa manifestação do jornalismo abriu espaço para as publicações periódicas e livro-reportagem, resgatando a tradição do jornalismo literário. No livro Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura, (LIMA, 2004) coloca três fatores que distinguem o livro-reportagem das demais publicações classificadas como livro. São elas: a) Quanto ao conteúdo, o objeto de abordagem de que trata o livro-reportagem corresponde ao real, ao factual. A veracidade e a verossimilhança são fundamentais. b) Quanto ao tratamento, compreendendo a linguagem, a montagem e a edição do texto, o livro-reportagem apresenta-se como eminentemente jornalístico. c) Quanto à função, o livro-reportagem pode servir a distintas finalidades típicas do jornalismo, que se desdobram desde o objetivo fundamental de informar, orientar e explicar. (LIMA, 2004, p.137) 53 Como podemos perceber, o livro-reportagem trabalha sua narrativa de uma maneira extensiva, defendendo um conjunto de princípios ou exercendo a abordagem multiangular de uma questão, à procura de sua variedade de causas e conseqüências, e de distintos pontos de vista a respeito. Permitindo várias formas de abordagens, um livroreportagem dá ao autor a escolha da forma e do assunto que quer abordar, oferecendo-lhe liberdade. Portanto, o livro-reportagem nasce da inquietude do jornalista que tem algo a dizer, com profundidade, e que não encontra espaço para fazê-lo no seu âmbito regular de trabalho, isto é, na imprensa cotidiana. Estação Carandiru, foi escrito em linguagem objetiva, clara, sóbria e elegante apesar de seu caráter de denúncia social. Seu status é de livro-reportagem, porque reporta à vida dos detentos que se abrigavam no maior presídio do País, a Casa de Detenção de São Paulo, incluindo o real e a verdade, aquilo que o jornalismo atual tanto busca, enfatizando o cotidiano de vida miserável e o grau de subsistência dos que viveram ali. A grandeza do livro está na temática que liberou as vozes existentes atrás dos muros do presídio. Após o conhecido massacre de 1992, a Casa de Detenção gritava através de seu concreto. O livro possibilitou aos que ficam do lado de fora dos muros ouvir as vozes das pessoas detidas. No presídio existiam normas criadas pelos detentos que deviam ser rigorosamente cumpridas. Qualquer transgressão era castigada com espancamento e, dependendo do caso, até com a pena de morte, tornando–se os prisioneiros seus próprios juízes e algozes, tendo como base as próprias leis. O narrador relata o seu relacionamento com presos e funcionários, e como médico dispõe-se a tratá-los individualmente, mesmo em condições pouco propícias. Na obra são 54 abordados mais os aspectos sociológicos e as nuances psicológicas que os problemas ligados à área médica. Sua pesquisa de prevenção à AIDS trouxe-lhe a oportunidade de conhecer um lugar habitado por aqueles que praticaram algum tipo de maldade, onde não se conhece, na maioria das vezes, a verdade. A vida nessa penitenciária caracterizava–se como um mundo diferente no contexto de mundo dos cidadãos livres. 3.2 “Carandiru” (filme): uma grande denúncia Figura 13 – Ilustração da capa do filme em DVD – Carandiru 55 3.3 Ficha técnica do filme e elenco As informações foram retiradas do site: http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/carandiru/carandiru.as, em 11 de abril de 2008. Título original Carandiru Gênero Drama Duração 146 minutos Lançamento no Brasil 2002 Distribuição Sony Pictures Classics / Columbia Tristar do Brasil Direção Hector Babenco Roteiro Hector Babenco, Fernando Bonassi e Victor Navas Produção HB Filmes, Globo Filmes e Columbia Tristar do Brasil Co-produtores Flávio R. Tambellini e Fabiano Gullane Direção de produção Caio Gullane Produtor associado Daniel Filho Coordenação de pós-produção Alessandra Casolari Música André Abujamra Som direto Romeu Quinto Edição de som Elisa Paley e Miriam Biderman Fotografia Walter Carvalho – ABC Direção de arte Clóvis Bueno Figurino Cristina Camargo Edição Mauro Alice Maquiagem Gabi Moraes Casting Vivian Golombek Site www.carandiru.com.br 56 Elenco Nome do ator ou atriz Luiz Carlos Vasconcelos Milton Gonçalves Ailton Graça Maria Luísa Mendonça Aída Lerner Rodrigo Santoro Genaro Camilo Floriano Peixoto Ricardo Blat Vanessa Gerbelli Leona Cavalli Wagner Moura Caio Blat Júlia Ianina Sabrina Greve Lázaro Ramos Gabriel Braga Nunes Ivan de Almeida Milhem Cortaz Dionísio Neto Antônio Grassi Rita Cadillac Enrique Diaz Robson Nunes Bukassa André Ceccato José de Paiva Luís Miranda Marcelo Palmares Nill Marcondes Regis Santos Roberto Áudio Sabotage Sérgio Loraza Sílvio Roberto Val Pires Walter Breda Maurício Marques Oscar Magrini Marcelo Escorel Luciano Quirino Emboscada Vera Mancini Ângela Corrêa Nome da personagem Médico Chico Majestade Dalva Rosirene Lady Di Sem Chance Antônio Carlos Claudioniro Célia Dina Zico Deusdete Francineide Catarina Ezequiel Sérgio Nego Preto Pereira Lula Seu Pires Ela mesma Gilson Dadá Detento locutor Barba Charuto Paulo Boca Coelho Pimenta Mário Cachorro Escovão Fuinha Gordo Baiano Furabolo Antônio Namorado de Dalva Homem 2 Homem 1 Guarda Valdir 17 (não especificado no site) (não especificado no site) 57 Figura 14 - Cena do Filme Carandiru retratando a chegada do médico a Casa de Detenção 3.4 Tradução do Real Babenco et al (2002), ao adaptar a obra de Varella (1999) da mídia escrita para a mídia cinema, elaborou a transposição inserindo uma linguagem na outra, transpõe os signos subjetivamente. Recebeu a mensagem escrita de Varella e retransmitiu-a sob a forma de signos audiovisuais. Nessa Transcodificação, muito das qualidades dos signos originais foram abandonados a fim de transmitir as várias histórias na linguagem e tempo do cinema. No livro o narrador apresentava as personagens de forma distanciada, com pouco envolvimento emocional, não os classificando conforme o crime cometido e que os conduziu ao Carandiru, a direção no filme foi incisiva na „romantização‟ das personagens, especialmente quando obrigados a fundir mais de uma personagem como forma de “encaixar” a obra de Varella no “tempo padrão” da linguagem cinematográfica. Se um livro pode ser lido em semanas, um filme deve ser visto em um tempo médio de duas horas de projeção. 58 Possivelmente esteja nisso a essência da „romantização‟, fato que, em alguns momentos, apresenta-se como uma Transcodificação não totalmente fiel ao livro, tal como ocorre com a personagem “Lady Di”, interpretada pelo ator Rodrigo Santoro. Esta personagem inexiste no livro, mas foi inspirada em Veronique, que existe no presídio em foco. A essência da obra de Varella (1999) é mantida pelo cineasta, mas os detalhes que constroem o filme podem ser questionados quanto à fidelidade. Existe preocupação em retratar o mais fielmente possível o cenário e as situações narradas pelo médico. É nisso que reside o impacto visual da obra de Babenco. Cenas como a lavagem das escadarias internas, com sua enxurrada de detritos, causa um misto de espanto e repugnância, visto que superam aquilo que se pode imaginar quando da leitura dos capítulos que relatam o levante, o ataque e o rescaldo. As próprias cenas do massacre, quando 111 detentos foram executados, aproximam-se de uma reconstituição histórica ou um documentário sobre o episódio que chocou a sociedade brasileira. No entanto, o texto de Varella (1999) não tem a pretensão de fazer uma transcrição dos fatos. O narrador descreve os acontecimentos sob a ótica de quem os viveu do lado de fora. Varella narra o que ouviu, pois não presenciou a invasão. Seu relato baseia-se na experiência vivida pelas personagens com as quais conversou após o episódio, ou seja, nos acontecimentos narrados pelos presos. Babenco (2002) reinterpreta visualmente aquilo que Varella contou que lhe contaram. Já é um terceiro foco sobre o mesmo fato. A „romantização‟ é perceptível, porque o filme foi feito décadas depois do massacre. Não há como negar que o cineasta agiu sob o impacto emocional de recriar uma realidade cruel. Ao transpor o livro de Varella para a linguagem audiovisual, Babenco permitiu-se 59 reinterpretar a obra do médico. Criou signos reinterpretando signos. 3.4.1 O reencontro: laços afetivos entre os muros penitenciários Buscamos reconhecer os valores ideológicos que norteiam as relações sociais, em que as forças do inconsciente, além dos fatores econômicos, emotivos e racionais, expressam os fatos simbólicos da vida nessa sociedade. Escolhemos como corpus deste estudo um olhar sobre a iconografia e analisar apenas as simbologias contidas na cena em que seu Chico, um detento, recebe a visita de seus filhos (contada no capítulo do livro com o subtítulo de Reencontro). Nesta cena os objetos e sua disposição no espaço cênico formam ícones que incitam à construção de vínculos produtores de sentido, levando o espectador a um mundo interior de nostalgia e reminiscências, e a atmosfera semântica remete a uma dimensão paradoxalmente oposta àquela encerrada entre os muros penitenciários. Ao fixarmos o olhar no espaço que se define pela determinação dos objetos, encontramos um hipertexto onde se produz uma narrativa cujos signos são referenciais de um ambiente familiar que ultrapassa os limites, sugerindo algo que enternece a fria realidade dos confinados, um punctum – “como uma espécie de extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver”, preenchendo todo o espaço semiótico que envolve a cena, como nos aponta Barthes, (2001, p. 51). Podemos perceber os elementos intermediários que se articulam e que provêm de contextos sócio-culturais extremamente distintos, como signos, cujos significados fragmentam o sujeito/espectador, remetendo-o a um contexto cuja significância invade tanto a memória individual quanto a coletiva, que compreende a distinção entre conjuntos de códigos como perspectivas de citações e uma miragem de estrutura, está claro em Cañizal (2004, p.29): 60 Nesse feixe de ressonâncias simbólicas, não me parece descabido, portanto, que cada uma das partes em que se fragmentam os sujeitos das enunciações enunciados se vincule, tanto no ato de escritura quanto de leitura, a significados diferentes. Atrai-me a idéia, de que a pluralidade de vozes forma, quando estes se entrelaçam, um texto, um tecido cujas urdiduras possibilitam a identificação de significantes-chaves. O entendimento da palavra “voz” pode ser não só ressonância, mas algum fragmento imagético. Dialogar também se refere a quando os enunciados de um signo ressuscitam outros enunciados de signos que a ele subjazem. Nesse contexto, as imagens responsáveis pela mediação também dialogam com o telespectador, trazendo-lhe à memória imagens cujo colorido e simplicidade ressoam nessa cena de Carandiru, como se denunciassem a presença de algo que falta. 3.4.2 Plataformas transitórias Figura 15 – Cena do filme em que o personagem seu Chico que confecciona balões solta o balão no pátio da casa de detenção. O que a câmera capta é a representação do movimento se intrometendo entre o 61 mundo tido como real e aquele das aparências, que denotam as reminiscências do real, tanto quanto as ideologias do inconsciente. Enveredando pelas trilhas onde cinema e literatura se aproximam, entrelaçando as mãos, as narrativas no livro Estação Carandiru (VARELLA, 1999) são planos a serem montados em filme e que formam, por si, uma totalidade significativa. Os vários planos narrativos nessa reportagem caracterizam a vida dessa gente que habita o presídio, e o capítulo do livro sobre o reencontro sustenta nosso olhar reflexivo sobre esta cena no filme. Enquanto na reportagem o autor descreve sucintamente a cena, a inventividade do diretor no filme vai enriquecendo, com detalhes, as cenas. De uma cena estática, em plano geral, surge a ação e seus elementos que se revelam aos poucos no passeio panorâmico da câmera, acrescentando novos elementos na medida em que o enquadramento vai compondo toda a paisagem do local, de maneira que compõe um todo significativo. No discurso cinematográfico, as narrativas se enriquecem com o jogo de câmera e com a montagem que utiliza a elipse, fazendo surgir, com os cortes em flashbacks, a história do sujeito, fato que possibilita ao espectador penetrar no universo subjetivo de cada personagem. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.12). No primeiro encontro marcado, os filhos de seu Chico não aparecem. Isso levou o carcereiro a fazer um comentário, fato que provocou a ira de seu Chico, que reagiu com agressividade. Ato contínuo ocorre. Então, o corte espaço-temporal e a continuidade mostram seu Chico sendo colocado em cela solitária. A elipse verificada encurta o caminho. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.12). Sabemos que todos os elementos que constituem um plano são reunidos a partir da intenção do diretor, nada ocorre por acaso e neste foi dirigido para propor uma leitura 62 ideológica ao espectador, muitas vezes reforçada não apenas pelo enquadramento da câmera, como também pela elipse. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.15). Os planos, as seqüências e a montagem mostram a realidade, mas, ao fazê-lo, conferem-lhe uma significação. Com isso queremos dizer que a montagem articula três etapas distintas, a saber: o roteiro, a realização e a organização dos planos. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.15). Por meio deles, o cineasta apresenta a sua visão subjetiva e objetiva de mundo. 3.4.3 O nem sempre vil metal O cinema é rico manancial didático, cujas potencialidades ainda não foram exploradas em toda a sua extensão e valor. Essa mídia é hoje uma comunicadora de mitos, a mais ágil e, talvez, aquela que tenha uma linguagem mais próxima das representações pictóricas da vida mental, tanto no plano da vigília como no da vida onírica. Por definição os mitos estão para a coletividade como os sonhos para o indivíduo. Ainda que se mantendo virtual nos filmes, a imagem ganha objetivação e um certo grau de realidade. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.16). Uma observação mais acurada permitirá estabelecer certas conexões entre os mitos que sustentaram a cultura de uma época e o êxito de certas películas (embora essa comparação não pertença a nosso objeto de estudo), nas quais algumas tragédias modernas ganharam maior transparência, filmes estes que deixam marcas por que exprimem e esgrimem temas da história. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.12). Ao longo da história da humanidade, o aparecimento do dinheiro introduz uma ruptura no mercado da troca direta de objetos – o escambo. Torna-se o instrumento universal das trocas comerciais e sofre uma nova transformação, passando de meio a fim, tornando-se 63 tão presente no cotidiano de nossas vidas que perdemos a noção de seus limites. Depois de se transformar em mercadoria, o dinheiro converte quem o possui em mercadoria ou o deseja para acumulação e posse. (ENRIQUEZ, 1990). Não são apenas as experiências de gratificações da sensorialidade que produzem o momento estético. As manifestações da inteligência e da criatividade levam também a esse tipo de encantamento estético, fundamental na existência humana na determinação do aplauso, da opção e do desejo de desfrutar e possuir. (ENRIQUEZ, 1990). A posse de dinheiro confere outros limites críticos conhecidos, tais como o de acrescentar o temor às perdas e o de aumentar a desconfiança nos relacionamentos, pois existe uma suspeita constante de que o outro possa ser um interesseiro. (ENRIQUEZ, 1990). Um outro aspecto é o da degradação, o dinheiro avilta a qualidade da relação humana quando pretende se tornar capaz de substituir o sentimento amoroso em seu mais amplo sentido. (ENRIQUEZ, 1990). Fizemos alguns apontamentos sobre a questão social e do papel do dinheiro na sociedade porque ele está claramente presente nos aspectos que revelam a tramas dos personagens tanto no livro quanto no filme. O filme Carandiru (BABENCO et al, 2002), a cada cena, torna mais clara a transgressão do respeito pela condição humana, de onde um sistemático e engenhoso processo de demolição da dignidade se apresenta junto da informação dos crimes e delitos que constituem a história das personagens. Enfim o reencontro de seu Chico com os filhos acontece, monta-se o cenário e ele recebe-os no pátio externo do presídio. Um corte da câmera e percebemos a sensibilidade do encarregado e do diretor do presídio que permitem que esse encontro avance na tarde, como nos mostra a câmera, envolvendo em seu passeio o percurso do sol rumo ao poente. 64 O enredo, no filme, está construído em dois tempos: presente e passado. No tempo presente, o médico-autor conta os episódios vistos por ele em contato com os presos. Ele é um autor homodiegético sem ser autodiegético, pois apenas ouve os presos, assim, narra como primeira pessoa testemunha do objeto narrado. Estas crônicas são narradas intramuros na casa de detenção. No tempo passado, o tempo das memórias, as personagens marram suas histórias extramuros em flashbacks. Os episódios do passado delas é narrado conforme a individualização do sujeito, que opta pelas recordações de um tempo que é só dele e no contexto histórico em que vive. Mas observamos que as duas histórias são narradas em tempo cronológico no instante em que se fixam. Observamos que, na essência, as histórias se assemelham e se mesclam em diferentes momentos de sua tessitura dramática. 3.4.4 O Espaço: um espelho mental “A disjunção entre o espaço e o tempo preparou o caminho para uma outra transformação, estreitamente relacionada com o desenvolvimento da telecomunicação: a descoberta da simultaneidade não espacial. [...] Em períodos históricos mais antigos a experiência da simultaneidade – isto é, de eventos que ocorrem “ao mesmo tempo” – pressupunha uma localização específica onde os eventos simultâneos podiam ser experimentados. Simultaneidade pressupunha localidade: “o mesmo tempo” exigia “o mesmo lugar”. Com o advento da disjunção entre espaço e tempo trazida pela telecomunicação, a experiência da simultaneidade separou-se de seu condicionamento espacial. Tornou-se possível experimentar eventos simultâneos, apesar de acontecerem em lugares completamente distintos. Em contraste com a concretude do aqui e agora, emergiu um sentido de “agora” não mais ligado a um determinado lugar. A simultaneidade ganhou mais espaço e se tornou finalmente global em alcance. (THOMPSON, 2002, p.36 – 37) Em épocas passadas, a compreensão que as pessoas tinham de lugares distantes e do passado era baseada na troca de conteúdos simbólicos nas interações pessoais. Atualmente, a difusão dos produtos e situações cotidianas na mídia não eliminou a função das tradições orais e diretas de comunicação, mas superou-a em eficácia e eficiência. Thompson (2002) 65 apresenta isso assim: O desenvolvimento dos meios de comunicação criou assim o que agora descrevemos como uma “historicidade mediada”: nosso sentido do passado e de como ele nos alcança se torna cada vez mais dependente da expansão crescente de um reservatório de formas simbólicas mediadas. A tradução oral e a interação face a face continuam a desempenhar um papel importante na elaboração de nossa compreensão do passado, mas elas operam em conjunto com um processo de compreensão que se serve cada vez mais do conteúdo simbólico presente nos produtos das indústrias da mídia. (THOMPSON, 2002 – p.38) Influindo nessa compreensão do lugar e do passado, a mídia altera a percepção dos grupos e das comunidades, dificulta a manutenção do sentimento de partilha de uma história, já que altera nossa capacidade de compartilhar de uma trajetória comum no espaço e no tempo. Nas sociedades primitivas a maioria dos indivíduos dependia da terra para a sua sobrevivência. Nas modernas, o sistema fabril e urbano modificou o espaço e até mesmo a sincronização do tempo. O progresso concebido pelas teorias sociais de evolução está criando um enorme vazio entre os horizontes constantemente em mudanças e as expectativas quanto ao futuro. (LEVI – STRAUSS, 1976) Sob a influência da Semiótica, muitas reflexões transformaram-se em críticas culturais, demonstrando preocupações em relação aos “textos”, não apenas aos literários, mas também quanto aos filmes, programas de TV, anúncios e outros produtos midiáticos. (LEVI – STRAUSS, 1976) Os produtos da mídia são recebidos por indivíduos que estão sempre situados em contextos sócio-históricos específicos e que se caracterizam por meio das relações de poder, até certo ponto estáveis, e com acessos diferentes aos diversos recursos disponíveis, ao interpretar as formas simbólicas, os indivíduos as incorporam na compreensão que têm de si mesmos e dos outros, apropriando-se de uma mensagem, assimilando-a e incorporando-a na 66 própria vida. É trazer a mensagem aos contextos e circunstâncias em que a vivemos e que geralmente são bem diferentes daqueles em que a mensagem foi produzida (FOUCAULT, 1987). Em Carandiru (BABENCO et all, 2002), evidencia-se a subjetividade e a onipresença do diretor no texto cinematográfico. A interação com o receptor se processa na descrição do espaço e das personagens, principalmente com seu Chico. A realidade e a ficção estão tão intimamente ligadas que somos compelidos a sentir as dores e contentamentos que as personagens experimentam. Quando se trata do sistema de signos que compõe a mídia cinema, (FLORY, 2005) em seu estudo sobre o filme Lisbela e o prisioneiro, afirma que: “Cada filmagem cria um produto próprio com características próprias, como um conjunto de notas que dão forma à sinfonia, o trabalho da câmera, os planos tanto gerais quanto de profundidade, a montagem dos eventos e a edição do filme é que constituem o produto final como resultado de um trabalho de equipe que integra as diversas visões deste grupo numa só partitura”. Configurando-se a diegese, o filme subverte o texto literário, já que nele se inclui uma cena de agressão: seu Chico agride o carcereiro que zomba de sua frustração quando do primeiro reencontro com a família e esta não comparece. A indisciplina e o desrespeito levaram-no à cela solitária, um cubículo apertado e escuro. No texto literário narra-se que o detento volta com o carcereiro ao pavilhão, sem trocar palavras. A descrição que o filme faz deste personagem, seu Chico, mostra-nos um senhor quieto, que constrói balões coloridos e cuja aparência nem de longe se assemelha à de um matador ou bandido cruel. Desta forma, vemos confirmada a proposição de que o homem é um ser dialético, que se desenvolve a partir de antagonismos e contradições, portanto, o conflito é o espelho da sua vida nas relações consigo mesmo, com os outros e com o mundo. (LACAN, 1993) 67 O que vemos na cena do reencontro com a família é a interferência do cineasta, reconstituindo, na tela, um espaço com a clara intenção de nos sensibilizar para aquele drama humano, motivando o espectador à compreensão e identificação de seus cuidados de pai zeloso, faz-se o uso de signos arbitrários para ativar o que Roland Barthes denomina de consciência simbólica (1981). Configura-se, então, uma dialética de linguagem e espaço que constroem uma mesma fala. O espaço cênico ultrapassa as origens estéticas e ou psicológicas e entra na ordem semiológica, assumindo ora o papel do significado ora o do significante (LACAN, 1993). O corte e a montagem na representação do espaço tornam-se sua voz, como nos aponta Genette: “As metáforas espaciais constituem, pois, um discurso de alcance quase universal, já que delas nos servimos para falar de tudo, literatura, política, música, e é o espaço que constitui sua forma, nisto que lhe fornece mesmo os termos de sua linguagem. Existe então um significado que é o objetivo variável do discurso, e um significante, que é o termo espacial. (...) Trata-se pois, aqui, de um espaço conotado, manifestado mais que designado, falante mais que falado, que se trai na metáfora como o inconsciente se revela num sonho ou num lapsus. (GENETTE, 1970, p.101) Isso só é possível quando focamos o problema da significação, tanto na literatura quanto no cinema, seguindo o pensamento do próprio Barthes descrito em Genette: “Homo significans: o homem fabricador de signos, liberdade que os homens têm de tornar as coisas significantes, o processo propriamente humano pelo qual os homens dão sentido às coisas” (GENETTE, 1970, p.182). Quando trabalha a espacialidade, tanto diretor quanto roteirista criam relações virtuais, porém, estas fazem parte de um nível estrutural lógico e, portanto, mantêm uma equivalência em sua construção imagética. De posse do texto, o diretor direciona-se para a criação do espetáculo, ou seja, a „geografia cinematográfica‟, (LEONE & MOURÃO, 1993, p.23). definida por eles como resultante da combinação de planos, a estrutura das personagens no espaço do cenário é 68 complexa e se compões de diversas necessidades para a fluência narrativa No embricamento das artes a tela se torna o espaço plástico que será o suporte formal da narrativa. 69 CAPÍTULO 4 4.1 Arte e vida se confundem e se completam O mais importante da vida não é a situação em que estamos, mas a direção para a qual nos movemos. Oliver W. Holmes O cinema tem sua origem na França, em 1895, quando os irmãos Lumière apresentaram para um pequeno público um aparelho que permitia a obtenção de fotografias animadas, que chamaram de cinematógrafo. O Dicionário de Comunicação define cinema como: “Registro e impressão de imagens em movimento. Conjunto dos métodos e técnicas empregados para este fim, a cinematografia”. (RABAÇA; BARBOSA, 1987). “Salles (1992) afirma sobre isso que: Tratava-se, portanto, de um processo mecânico e não se podia, de forma alguma, falar em arte a propósito do resultado obtido”. Nos primórdios, usava-se o cinema para registro de peças teatrais e documentários. O que se estabelecia não era somente a arte do cinema, mas a possibilidade extraordinária das suas aplicações a quase todos os campos das outras artes. Com a implantação da fala, o cinema desenvolveu-se de modo que originou sua própria linguagem. Entre muitas descobertas e invenções, tais como os efeitos de câmera e aperfeiçoamento da linguagem cinematográfica, na segunda década do século XX, consolidou-se a indústria do cinema nos Estados Unidos, dando espaço a grandes atores, que logo depois se tornariam “estrelas”. A indústria do cinema se estabeleceu no início dos anos 20, pensando o filme como uma mercadoria. O estrelismo foi uma das armas mais fortes das grandes empresas cinematográficas, servindo também para o enriquecimento da linguagem tanto na sofisticação fotográfica dos closes das estrelas, quanto no apelo do erotismo de atores e atrizes. (TUNER,1997). 70 O cinema, ao longo dos anos, ganhou uma visão mais direta e imediata da realidade, a linguagem tornou-se mais coloquial e espontânea. Já na década de 1960, o realismo leva ao filme documentário e ao cinema verdade, possibilitando uma relação direta do espectador com o real, como se a personagem olhasse nos olhos do espectador. Foram tão grandes a evolução tecnológica cinematográfica e sua industrialização que o cinema ganhou efeitos cada vez mais requintados de computador. E nos dias atuais, a cinematografia busca a produção de filmes que estabeleça uma integração da platéia com o conteúdo e com a própria realidade. “O cinema de hoje parece apontar um caminho de renovação. A estória é deixada em segundo plano, dá-se mais importância a um enfoque complexo dos problemas do homem no mundo. A relação do filme com a platéia pode ser conseguida até mesmo pelo incômodo provocado pela duração da ação que não faz evoluir o enredo. Os progressos técnicos podem aumentar as possibilidades de se dizer as coisas” (BRIGGS e BRUKE, 2004). 4.2 A sétima arte em Carandiru: fantástico retrato da realidade O cinema traz para a grande tela o diálogo das ruas, das pessoas comuns, apropriando-se dos cortes, das elipses, dos flashbacks, produzindo ações simultâneas em tempos diferentes. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.30). Dentre os elementos da linguagem cinematográfica que podemos ver no trabalho produzido por Babenco (2002), como diretor do filme, é a marcação de cenas, a passagem de um plano a outro nas relações entre personagens no quadro, ou de um enquadramento a outro, as cenas curtas, determinando mudanças de plano, ritmos e seqüências, ressaltando em seus recursos narrativos a violência num discurso imagético que evidencia a montagem, a direção e a fotografia de um cinema denúncia. 71 4.3 A montagem como voz para o discurso imagético Compreende-se a montagem como narrativa essencialmente cinematográfica, seja em sua concepção tradicional ou nas diferentes formas que sua evolução concebe. Nela, permite-se a fidelidade entre roteiro e realidade, o uso e o abuso de recursos estilísticos, a fragmentação desconstrutiva de uma narrativa perpassada por trucagens de ciclo narrativo ou inversões de tempo. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.36). O cinema comercial contemporâneo usa a montagem como a forma de ordenar o material captado, trabalhando cada momento do roteiro a seu gosto, de modo pode reestruturar um texto com propriedades despercebidas no material escrito que motivou o filme. Uma cena de um filme pode marcar na mente do espectador com força eternizadora. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.37). Em outros momentos, a montagem descreve, em discurso analéptico, os acontecimentos sucessivos que levaram os personagens a habitar o presídio. Dessa forma, a montagem é a referência para a concepção visual do mundo cinematográfico. 4.4 A fotografia e a linguagem cinematográfica A fotografia pode ser trabalhada como meio de criar o discurso imagético, possibilitando uma identidade para o discurso fílmico, mesmo que ela ocorra em função do filme. A união da fotografia e da montagem é que cria o universo imagético. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.64). A conotação só aparece pela intervenção humana por meio de efeitos fotográficos, de iluminação e ou incidência angular. No cinema se faz presente e necessária uma 72 semiologia da denotação, pois um filme é feito com muitas e diferentes fotografias. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.65). Um filme começa com uma idéia ou um argumento, que se transforma num roteiro. Este é a parte escrita que contém as cenas e os diálogos, e assim, como no texto literário, o roteiro vai conduzindo as cenas, as seqüências, os diálogos e as personagens que fazem parte da história que se quer contar. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.15). Uma grande parte do valor e da mensagem de um filme está na forma como a história é contada, na escolha dos atores e da equipe técnica, como também dos recursos materiais e financeiros que se tem para a produção. No trabalho captado pela câmera percebese a magia do cinema. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.15). Dessa forma, a arte cinematográfica tornou-se uma linguagem utilizada como meio de relatar e veicular idéias, adquirindo um caráter sintáxico e se firmando como meio de comunicação, informação e denúncia. O cinema, graças a sua natureza específica, distingue-se dos outros meios de expressão culturais pelo seu enorme poder de retratar fotograficamente a realidade. As pessoas, situações e coisas atingem diretamente a imaginação e a representação que expressa o significante, reproduz exatamente a informação conceitual que veicula, cunhando, assim, o significado e recriando no espectador as três instâncias psíquicas que constroem a realidade: o real, o imaginário e o simbólico. (GENETTE, 1970, p.101) 4.5 Onde ficção e realidade transparecem nos gêneros do cinema comercial O cinema comercial está classificado em gêneros como forma de organizar estruturalmente o leque de ações dos personagens e o desenvolvimento do roteiro. Podemos identificar os gêneros como Drama, Comédia, Aventura e Suspense. Cada um desses gêneros 73 necessita de recursos técnicos apropriados, como imagens definidas, movimentos de câmera, trilha sonora e efeitos especiais, dentre outros, que colaborem à comunicação da trama e atinjam o espectador, produzindo reações sensoriais. Considerada a base da linguagem cinematográfica, a imagem reproduz a realidade que lhe é apresentada e constitui uma percepção objetiva, suscitando, no espectador, um sentimento de realidade, mesmo que esteja captando apenas um determinado aspecto da visão de seu realizador. A imagem oferece uma visão artística da realidade, cuja aceitação e interpretação dependem do contexto criado pela montagem fílmica para transmitir sentido associado à concepção mental do espectador. Esta é determinada pelo seu contexto sócio-históricocultural. É importante que se atente para o comportamento adotado pela câmera em relação aos personagens da trama, ainda que ela pareça estar silenciosa, pois que os modos como a câmera dispõe para qualificar a realidade são múltiplos e nem sempre imediatamente compreensíveis. Isso nos aponta para o papel criador da câmera como agente de registro da realidade e de criadora da realidade fílmica. A evolução da técnica cinematográfica liberou a câmera de se manter num ponto fixo, modificando, assim, o ponto de vista de uma mesma cena. A câmera tornou-se tão móvel como o olhar do ser humano. Em verdade, ela tornou-se um narrador. Por meio dela o diretor apresenta e impõe os mais diversos pontos de vista e em diferentes posições. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.66). O americano David W. Griffith foi o primeiro a utilizar close, a montagem paralela, o suspense e os movimentos de câmera. Estes vários recursos, assim como os enquadramentos, os diversos tipos de planos e os ângulos de filmagem criam e condicionam a expressividade da câmera em seu papel criador de imagens. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.35). 74 Os enquadramentos constituem o primeiro aspecto da função criadora da câmera em seu registro da realidade. É a composição do conteúdo da imagem na maneira como o diretor organiza o que o espectador assiste na tela. Em Carandiru, na cena do massacre, o enquadramento vai, devagar, configurando a narrativa de um cinema-denúncia, modificando o ponto de vista do espectador. Há uma perspectiva de enquadramento do espaço que produzirá os efeitos dramáticos de compaixão e indignação em qualquer ser humano diante do horror que a câmera revela. O plano consiste nas tomadas de cena, na extensão compreendida entre dois cortes. Os planos têm como objetivo corroborar com a percepção e a clareza da narrativa. Através dos diferentes planos, os segmentos de imagem vão focalizando ora os cenários e atores à distância, ou seja, um plano de conjunto ou panorâmico; ou atores e objetos mais próximos; ou enfatizando o rosto, um pormenor, isto é, quando uma parte do corpo ou do objeto é mostrada a distância curtíssima; e todos esses elementos são de grande importância para enfatizar aspectos psicológicos das personagens e aspectos narrativos do filme. (LEONE & MOURÃO, 1993, p.18). Os ângulos de filmagem intensificam as ações e reações das personagens, assim, podemos ver o uso da plongée e da contra-plongée, além do enquadramento inclinado. Em nosso objeto de estudo, o filme, podemos ver a filmagem de cima para baixo. Esta tende a diminuir o indivíduo, podendo provocar sensação de esmagamento, opressão, aumentando a percepção e a tensão dramática na atribuição de sentido psicológico, o plongée. A contraplongée também intensifica as reações diante da situação dramática, mas ocorre quando o tema é filmado de baixo para cima, provocando sensação de superioridade, exaltação e aumentando a visão do indivíduo. Ainda na categoria de ângulos, o enquadramento inclinado é o efeito que mostra o ponto de vista de alguém que não está na posição vertical, o que leva o espectador a acreditar que a personagem sobe por uma escada ou caminho muito íngreme, 75 levando algo muito pesado, e sugere também uma impressão sentida pelo personagem como inquietação ou desequilíbrio. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.67) Outra categoria de análise é obtida dos movimentos da câmera: Referência – de onde tirei essas classificações? a) Panorâmica, cujos movimentos se dão em rotação vertical, horizontal ou obliqua, que podem chegar a 360º; b) Travelling, movimentos para frente, para trás e para as laterais com a câmera colocada sobre um suporte móvel; c) Dolly ou Grua, câmera colocada na extremidade de um braço móvel sustentado por uma plataforma de rodas ou ajustável num veículo, que pode executar movimentos muitos fluídos em diferentes posições; d) Câmera na mão, que é a movimentação da câmera através de deslocamentos do operador, sem ajuda de instrumentos de suporte; e a e) Steadycam, câmera fixada ao corpo do operador mediante uma armação, sendo ao mesmo tempo isolada por um sistema de amortecedores que permite o máximo de mobilidade. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p. 67-68) Os movimentos da câmera provocam sensações e reações no espectador, restituindo-lhe parte do papel de agente participativo do enredo e permite a cada indivíduo acompanhar o desenrolar da trama. As descrições e imagens realçam elementos materiais e psicológicos da narrativa. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.69) Existem outros elementos fílmicos não específicos que participam da criação da imagem e do universo da filmagem, mesmo sem pertencer exclusivamente ao cinema. Com o avanço da tecnologia, a iluminação passou a ser utilizada e explorada em todos os estilos de filme, produzindo efeitos mágicos, trágicos e mesmo mirabolantes. A cor pode proporcionar à cena um considerável valor psicológico e dramático, sua utilização bem compreendida pode 76 significar não apenas a reprodução da realidade na tela, mas ocupar uma função expressiva e metafórica. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.69) O figurino é um outro elemento que faz parte do manancial de recursos expressivos dessa fábrica de sonhos chamada cinema. Sua utilização pela sétima arte é identificada como: realista, quando compatível com a realidade histórica; para-realista, se inspirado na moda da época, mas estilizado; e simbólico, cuja intenção é traduzir caracteres, tipos sociais e ou estados de alma. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.70) O cenário cinematográfico contém tanto as paisagens naturais quanto as construídas e sua função é contextualizar a tonalidade moral ou psicológica da ação. A elipse constitui-se num importante elemento na produção do cinema. Seu uso sugere um acontecimento ou uma ação. Esse é um dos recursos mais impressionantes de poder do cinema: a sugestão. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.70) As metáforas e símbolos são recursos muito utilizados no cinema. Há sentido para tudo que é mostrado na tela, explícito e implícito. Na maioria das vezes as figuras de linguagem apontam a uma significação por meio das reflexões do receptor, provocando uma relação dialética entre ele o filme. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.71). A música e o som são elementos incorporados no cinema. Eles são, na atualidade, componentes essenciais às produções cinematográficas em função de seu valor dramático e forte apelo emocional exercidos no espectador. Além disso, evidenciam lugares e acontecimentos. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.71) A montagem constitui o fundamento mais específico da linguagem fílmica: é a ordenação dos planos do filme em uma combinação de ordem e duração. O filme Carandiru começa pelo conteúdo que está apresentado na metade da narração em relação ao livro, e vai nos revelando, através do jogo de câmeras, o presente e o passado em flashbacks ou analepses. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.74) 77 CAPÍTULO 5 5.1 Transcodificações: De Estação Carandiru a Carandiru Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda. Cecília Meireles O filme Carandiru (BABENCO et al, 2002) é uma livre adaptação do livroreportagem Estação Carandiru, de Dráuzio Varella (1999). É uma produção brasileira que retrata a vida dos detentos no maior presídio da América Latina, também chamado de Carandiru, que já foi desativado. A obra foi adaptada ao cinema. A produção do filme mobilizou, sob direção do cineasta Hector Babenco, atores e técnicos de primeira linha, transformando-se em sucesso de bilheteria por todo o Brasil. Embora no filme se procure a fidelidade aos fatos narrados no livro-reportagem, é preciso destacar que foram utilizados elementos próprios do cinema, estabelecendo uma nova linguagem e visão sobre o assunto. No decorrer da história, o narrador tece nas vozes das personagens muitas reflexões, tais como a importância do uso de preservativos nas relações sexuais, sobre o tráfico de drogas dentro e fora do presídio, as relações humanas existentes intramuros de um presídio. Assim, ele mostra que o visto em Carandiru é o enredo de histórias verídicas, que infelizmente são realidade no Brasil. O roteiro do filme se mantém quase fiel ao livro, apresentando algumas características importantes, mas destacamos a linguagem: as principais “falas” das personagens são adaptações de trechos descritos pelos presos. 78 No filme, o cineasta adicionou ficção às pequenas narrativas das reportagens, recurso que pode ter sido utilizado para dar ritmo à trama e histórias que são contadas através de imagens. Mesmo que o cinema tenha características e linguagens completamente diferentes da obra literária, a trama dos dois textos aqui objetos de estudo evidencia a necessidade de prevenção quanto a AIDS e os relatos sobre o massacre de 1992. 5.2 Livro-reportagem X obra cinematográfica O livro-reportagem começa apresentado uma noção de tempo e espaço para o leitor se situar e entender como e onde se localiza o Carandiru. Já o filme começa in médiares, mostrando uma briga entre os detentos, momento em que o líder dos presos e o diretor do presídio são apresentados. Na obra escrita, foi realizada a apresentação da infra-estrutura do presídio Carandiru, descrevendo os pavilhões, os moradores de cada um deles e também as funções de cada setor do local, a fim de aguçar o imaginário do leitor. A obra cinematográfica também apresenta essas características do Carandiru, mas de forma superficial, já que o telespectador vê as cenas. Varella (1999) apresenta algumas histórias que lhe foram contadas pelos presos. Ele as conta detalhando o cotidiano de cada um e contando como cada personagem foi parar atrás das grades. Já no filme (BABENCO ET AL, 2003), algumas histórias foram agrupadas, fugindo um pouco do enredo do livro. Com isso a trama ganhou ritmo e, de acordo com suas características, foi realizada a adaptação por meio das imagens. As histórias são simuladas e o foco da câmera incide sobre os detentos que contam as próprias versões dos fatos. 79 O livro Estação Carandiru, em alguns capítulos, destaca um problema de saúde pública existente em espaços de reclusão, como um presídio, que é a AIDS. Como também destaca a necessidade de um trabalho de prevenção dessa doença sexualmente transmissível. Lembramos que esse era o motivo principal da presença do médico, Dráuzio Varella, no presídio. Um desses capítulos é dedicado a Rita Cadillac, que foi escolhida a musa dos detentos mediante uma votação interna. Por meio dessa personagem Varella explora a questão da sexualidade e da prevenção contra o vírus HIV. O filme Carandiru utilizou duas formas para dar destaque à questão da AIDS no presídio: 1) utilizou-se do carisma de um ator de renome, Rodrigo Santoro, para interpretar uma travesti, para sensibilizar o telespectador e dar destaque à campanha contra AIDS. 2) adaptou o capítulo sobre a Rita Cadillac, dando ênfase às relações sexuais dos presos, ao uso de drogas e troca constante de parceiros, usando para isso a figura da artista, um símbolo sexual para os detentos. O desfecho, tanto jornalístico como cinematográfico, aparece da mesma forma: o massacre de detentos pela Polícia Militar de São Paulo. A diferença ocorre apenas em função do formato das mídias: o livro-reportagem descreve o massacre, no qual morreram 111 detentos. Já o filme, através das imagens, faz a simulação do que ocorreu em 2 de outubro de 1992 na Casa de Detenção. Lembramos que ambas as obras narram o massacre sob o ponto de vista dos presos sobreviventes e de seus relatos sobre o episódio trágico. Assim, observamos que as diferenças existentes acontecem pelo modo inerente de cada obra se narrar. No filme, as histórias são narradas pelas personagens, encadeadas pela narração do médico, mas de forma romanceada. No livro, a narração e a descrição são feitas pelo narrador homodiegético, disfarçado de heterodiegético e extradiegético, porque ele, explicitamente, não faz parte da narrativa como personagem protagonista. Mas isso é uma representação de um narrador implicitamente intradiegético, homodiegético e autodiegético. Portanto, ele é intradiegético 80 porque está na história de vida dos presidiários na atualidade e não está alheio ao tempo presente deles nem ao passado, e podemos afirmar que está na história dos presos como estes estão em sua no tempo presente. Ele também é autodiegético, pois para narrar as memórias dos outros foi preciso ter contato direto com os detentos, ou seja, a história é a dele, pelo menos nos dias em que trabalhava em prol dos presidiários; e ainda, o trabalho que ele desenvolvia no presídio é algo próximo da condição de herói épico. Ele, um sujeito livre de culpas, estava num ambiente impróprio, para o objetivo sublime de livrar aquela sociedade carcerária de uma doença que dizima o ser humano. E homodiegético porque ele escreveu a própria história ao narrar as crônicas dos presos. Então, ele era o ser humano no lugar errado, mas respeitado por todos os que, de certo modo, não respeitaram a sociedade, e ainda assim estavam assistidos por alguém que cuidava da saúde deles, respeitando-os, sem censurá-los. Por isso esse narrador reveste-se de herói, de protagonista. Ele cedeu a voz às personagens, e sobre isso não nos esqueçamos de o autor está onipresente naquilo que escreve, que representa. (GENETTE, 1970 E BAKHTIN, 1997) Mas, em verdade, sob o ponto de vista figurativo e da representação num plano maior, lembramos que o espaço é o grande astro na teia de construção dessa narrativa, tanto no livro como no filme. Ele é aterrador, aterrorizante em muitas das vezes. Em relação à representação do real, o cinema conferiu mais dinâmica à história, desviando-se parcialmente do enredo do livro, mas trouxe, por meio de imagens concretas, uma descrição mais realista, mesmo que um pouco „romanceada‟, da vida humana no presídio. Já no livro-reportagem, o autor pretendeu ser fiel aos fatos, com o objetivo de retratar a realidade, mas se considerarmos que a narrativa passa pelos olhos do narrador, não podemos afirmar que seja fiel aos fatos. Outro poderia contá-la bem diferente! 81 Estabelecemos, aqui, uma comparação entre as duas obras (livro e filme), apontando o processo de criação dos enredos por meio de algumas personagens, consideradas importantes por nós, visualizando as semelhanças e as diferenças quanto à história delas: Charuto: o livro descreve o amor avassalador de um malandro, o Charuto, por uma prostituta; o filme faz a junção de duas histórias para adaptar essa parte. No cinema, o nome do malandro é Majestade, que é casado com duas mulheres. Uma delas é a prostituta referida no livro. Nego-Preto: era um dos líderes dentro da cadeia. Foi preso por roubar uma joalheria e logo em seguida matar o parceiro do assalto. Em relação a este o filme é fiel ao livro, e ainda utiliza as “falas” dos detentos para dar ritmo à história. Figura 16 – Cena do filme onde acontece o show da artista Rita Cadillac Lula: ladrão de longa carreira. Chegou ao presídio por roubar bancos e por usar drogas. Dentro da prisão era um dos chefes que comandavam o tráfico. Lula usava principalmente crack e morreu de overdose. A história de Lula se altera no filme: aqui ele aparece como assassino e traficante. No desenrolar da trama, Lula começa a freqüentar uma igreja evangélica, sofre de problemas mentais e se suicida. 82 Seu Chico: era assassino. Pai de três filhos, abandonado pela mulher. Cumpre quinze anos de uma pena de quarenta e quatro anos. No filme, seu Chico é um velho apaixonado por balões. Deusdete e Mané: Os dois cresceram juntos. Mané de baixo, como é chamado no livro, envolveu-se com o crime e foi preso, e Deusdete era um rapaz esforçado e trabalhador. Foi preso por defender-se e vingar sua irmã que havia sido molestada por dois rapazes, matou-os e foi preso. Na prisão os dois se reencontraram e moravam na mesma cela. Mane, certo dia, cansado de ouvir sermões de Deusdete, assassinou o amigo cruelmente enquanto dormia, despejando-lhe uma panela de água fervendo. Um grupo de presos que ficou revoltado com esse ato de Mane e o assassinou. O filme conta a história da mesma forma, dando ênfase à descrição contida no livro: do assassino bom, Deusdete, que foi parar nessa vida por culpa do acaso, e o malandro, Mané, que se envolve com o crime por opção. Figura 17 – Detentos assistindo ao show de Rita Cadillac. Rita Cadillac: foi realizado um concurso de cartazes de prevenção a AIDS, e como prêmio seriam pagos mil dólares convertidos em maços de cigarro, a moeda local. Rita Cadillac, eleita pelos presos como “musa” do Carandiru, foi, em uma tarde de festa, entregar o 83 prêmio aos vencedores. Foi uma balburdia só, mas nesse evento aproveitou-se para fazer uma campanha de prevenção a Aids dentro da penitenciária. No filme foi preparada uma grande festa, que contou com a presença de Rita Cadillac. Durante a comemoração ela dançou e arrancou suspiros dos detentos. E ainda, utilizou uma garrafa para ensinar os presos a colocarem camisinha. Nesse evento foi realizada a campanha de prevenção à Aids. Os travestis: A trajetória deles é marginal, vêm todos da camada mais pobre, são identificados como perigosos, independente do que tenham feito para estarei detidos. No presídio ficam, geralmente, em celas especiais, mas há travestis espalhados pela penitenciária. Essa temática é tratada no filme de forma diferenciada pelo diretor Hector Babenco. A história contada no filme é de um travesti, de nome Lady Dy, interpretada por Rodrigo Santoro, que além de apoiar a campanha de prevenção a AIDS, casa-se com um dos detentos, o Sem-chance. Figura 18 – Detentos em cena após o massacre ocorrido na Casa de Detenção. Sem-Chance: Dizia que não era ladrão, mas foi condenado em doze anos e oito meses de prisão por crime de latrocínio. O filme mostra o presidiário “Sem-Chance” de uma 84 outra forma. Rapaz novo, bom moço, e em “Carandiru” era o ajudante de Dráuzio Varella na enfermaria. No desenrolar da trama casa-se com o travesti Lady Dy. E durante o filme utiliza um jargão que justifica seu apelido, “Comigo é Sem-Chance”. Sobre as visitas íntimas: começaram nos anos de 1980. Os presos improvisavam barracas nos pátios dos pavilhões nos dias de visitas. Nessa parte do livro os detentos contam como funcionam essas visitas e o respeito de cada companheiro para com a esposa, amasiada ou namorada do outro. O filme trata o assunto das visitas íntimas de forma superficial, ou melhor, mostra a festa que é realizada em um dia de visita no presídio. 5.3 O levante, o Ataque e o Rescaldo Era uma tarde de futebol, enfrentavam-se os times Furacão 2000 e o Burgo Paulista, uma disputa pelo campeonato interno. Durante a partida, dois presos brigaram em um dos pavilhões. O motivo da briga ninguém sabe. Tantas são as teses defendidas que por isso se desconhece o real motivo da briga. Esse tumulto foi crescendo e gerou uma grande confusão dentro do presídio. Os detentos colocaram fogo em colchões, quebraram o que podiam e fizeram alguns companheiros de reféns. A tropa de choque da Polícia Militar foi acionada. Ela entrou no presídio atirando indiscriminadamente. Mais tarde, isso ficaria conhecido como o massacre do Carandiru, no qual morreram 111 presos, no dia 2 de outubro de 1992. O filme conta a mesma versão dos fatos. A única diferença está no formato, no qual o livro descreve aguçando a imaginação do leitor e o cinema usa imagens como representação do real. O livro-reportagem de Varella (1999) e o filme de Babenco et al (2002) contam a história do Carandiru apresentando suas particularidades no formato, conteúdo e na linguagem. Por isso o filme Carandiru, em diversas razões, aborda algumas questões 85 apresentadas no desenrolar da trama de maneira diferente do livro-reportagem. Pode-se justificar as mudanças pelo formato, porque a linguagem do cinema apresenta várias diferenças em relação ao livro reportagem. Mesmo assim, as duas obras abriram os portões da Casa de Detenção de São Paulo para as pessoas que estavam trancadas no lado de fora. Todas puderam entrever um pouco mais desse universo desconhecido pela sociedade, podendo visitar os corredores, as celas e as pessoas que fizeram o Carandiru funcionar durante anos. Esse sofrimento poderia ser minorado ou evitado se fossem outras as circunstâncias sociais, econômicas, políticas, culturais, e se a evolução global da mente humana o permitisse. Mas, como cavaleiros do apocalipse, os problemas permanecem a nos desafiar, se apresentando como catástrofes aterradoras que varrem a superfície do planeta. Eles não são fenômenos naturais, mas provocados pelos desvios do próprio processo de formação e organização do mundo humano. Isso podemos atribuir, sem erro, à nossa imaturidade, irresponsabilidade, incompetência ou gosto pela destruição. De fato, o panorama se mostra estarrecedor: violência, criminalidade, selvageria, escravidão e extermínio, pobreza e fome, guerras e corridas armamentistas, destruição do meio ambiente, analfabetismo, exclusão social, desperdício de recursos naturais, poder exorbitante da mídia, manipulação da mente, corrupção, terrorismo, fanatismo religioso, colonialismo interno das nações, desumanização do trabalho, uso antiético da ciência e da tecnologia, desemprego e recessão, perda da identidade humana pessoal e cultural, miséria espiritual, enfim, uma deterioração geral da qualidade de vida. Isso também se faz presente nas artes, e o chamado cinema-denúncia nos leva ao contato catártico com esta realidade tão concreta quanto dolorosa. É o que Carandiru (BABENCO et al, 2002) nos traz: a visão dos excluídos e marginalizados naquilo que os torna pessoas comuns, ou seja, todos nós sentimos, sonhamos, sofremos, lutamos, carregamos 86 alegrias e tristezas. Mobilidade psíquica é a fluidez e a versatilidade dos movimentos da mente vividos como experiência emocional. É a experiência consciente de que há uma disposição fluida na mente, que pode ser descrita como um estado em que, longe de saturar seus processos anímicos conscientes, a pessoa permite que eles ocorram de modo flutuante, abandonando-se à experiência, deixando-se levar por ela. Assim, dizemos que a mente se encontra desprendida, solta e livre. Essa leveza e liberdade normalmente se contrapõem à sensorialidade da mente. Como sensorialidade entendemos a mente se prendendo a padrões mais ou menos definidos de experiências, reagindo em conformidade com um filtro conhecido de antemão e que determina de modo condicionado a relação com a realidade externa e com a psíquica. Tal filtro é constituído de experiências acumuladas que se configuram em verdadeiro substrato de continuidade e se interpõem às novas experiências. A pessoa passa a ser uma prisioneira efetiva das representações congeladas da realidade, em vez de estabelecer um contato real. Nesse estado, a mente se acha saturada por seu próprio sistema de representações. 5.4 Arte e superação da dor mental Por meio da arte podemos vivenciar nossos conflitos internos: nas personagens nossas dores e lutas são mais fáceis de encarar, nosso cotidiano torna-se mais leve quando sabemos que acontece na vida como acontece na arte. O cinema nos possibilita a catarse e a superação da dor mental, porque sabemos que não somos os únicos que sofrem, que nossos dramas são compartilhados e por vezes são menores que os de outrem. O momento atual desaparece no mesmo instante em que é vivido. Somos o 87 homem de sempre que caminha solitário nas brumas dos séculos. O presente de nossa existência inscreve-se nesse imenso caminhar, nada é tão fugaz nem tão cheio de vida. Se a mente é permeável à dimensão da realidade, revelando-se intuitivamente, então podemos dizer que a verdade do homem está no coração da eternidade e no fundo de nós mesmos dormita um ser que anseia pela luz de cada coisa. Nada é mais essencial a uma sociedade que a classificação de suas linguagens (BARTHES, 1970, p.209). Como conceito a tradução vem sendo efetuada desde tempos remotos, e durante muito tempo, foi avaliada de forma muito rígida e dualista, em termos de certo ou errado, fiel ou livre, literal ou criativa. Hoje se considera a tradução como uma transformação, conferindo-lhe ainda o estatuto de criação. (DINIZ, 1999, p.27). De acordo com (DINIZ, 1999, p.149), o estudo de adaptações ou traduções exige a análise de sua função dentro do contexto. É necessário verificar se o filme se apresenta explicitamente como tradução/adaptação de texto anterior ou se é avaliado, pelos críticos e pelo público, pelos seus méritos como um bom filme ou apenas pelo rótulo de adaptação de determinada obra ou autor. 88 CONSIDERAÇÕES FINAIS O livro conta a história de um médico que trabalhou durante 14 anos no maior presídio do Brasil, o filme retrata numa livre adaptação essa mesma história. Um longo caminho foi percorrido em dois sistemas semióticos diferentes, que são essas duas mídias, o texto escrito e cinematográfico. As conclusões alcançadas nos mostram que o elemento a ser transposto de um texto para outro é a cultura, em todos os aspectos que a modificam: tempo, espaço físico, histórias, correntes artísticas. (DINIZ, 1999, p.166). Ninguém escreve, adapta ou traduz, sem reformular o assunto. (DINIZ, 1999, p.167), assim podemos auferir que na Transcodificação do livro Estação Carandiru para o filme Carandiru uma nova história se faz, apreendida e conduzida pelas mãos do cineasta, que a busca a partir da descrição do narrador-escritor. O que é o homem? Muitos se fazem esta pergunta e procuram a resposta percorrendo diferentes caminhos. Um destes é a trilha da ciência, mas ao se depararem com a chegada no ponto crucial, recuam, porque é vereda tortuosa, inóspita e exaustiva. Contanto, esta trilha, algumas vezes, por recompensa, concede ao viajante uma paisagem clara e serena. Isso é um estímulo para prosseguir nesta jornada. Nossa decisão de realizar uma pesquisa sobre a tradução de uma mídia e mais precisamente sobre a obra de ficção transposta para a mídia cinema, por meio de análise das transcodificações e transposições delas, surgiu ao conhecer os textos de Dráuzio Varella (1999) e do produtor e diretor de cinema, Hector Babenco (2002), sobre a Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru. 89 As pessoas tendem a ver o mundo de maneira antropomórfica, ou seja, projetando suas próprias qualidades, sentimentos e desejos a seres e objetos, compreendendo o mundo através de suas vivências, fantasias e imaginação. A observação avalia e valida a compreensão e assim surge a ação. Cabeça e coração têm papel fundamental neste processo. A palavra e o pensamento são importantíssimos à compreensão. Segundo Lacan (1993), “A elucidação falada é a mola do progresso”. O conhecimento é construído por meio de uma colagem que liga as peças, as quais, se isoladas, não fazem sentido. A emoção desempenha a função de juntar as partes nessa construção. O universo emocional encontra o racional. O mundo espiritual e o mundo do pensamento são feitos de razão, sentimento e vontade. A linguagem serve como órgão do pensamento, da consciência e da reflexão. Somente ela permite instituir ordem no mundo e operar os atos de reflexão e de consciência sobre o mundo e as impressões sensíveis. A palavra é presença e ausência da coisa, ela designa a coisa e a coloca em sua ordem de realidade, servindo de ponto de apoio, um ponto de referência possível. Resumindo, a linguagem RE-PRODUZ a realidade. “É pela linguagem e nela que o homem se constitui como sujeito, porque a consciência de si só é possível se ela se provar em contraste com o Tu. Esta é a dialética eu-tu, definindo os sujeitos pela oposição mútua, que funda a subjetividade. É a condição da tomada de consciência de si como entidade distinta. Portanto, a linguagem, atualizando a relação das pessoas, permite o retorno sobre si como individualidade distinta e possibilita, então, a comunicação inter-humana”. (LEMAIRE, 1979) 90 Ainda, segundo Lacan (1993), o humano não adquire sua individualidade, sua singularidade senão sob condição de se inserir na ordem simbólica que governa e especifica a humanidade. Para a Psicanálise, o desenvolvimento e a conseqüente saúde mental se processa na articulação de três instancias: o Real, o Imaginário e o Simbólico. O real é o corpo, o inseparável. O Imaginário é a consciência, a ponte entre o real e o simbólico, onde se mantêm os conteúdos trabalhados e em condições de serem acessados. O Simbólico é o inconsciente, onde permanecem os conteúdos ainda não elaborados. O homem, como descobriu Lacan, está sujeito às leis da ordem simbólica. O simbólico é a ordem que faz a grandeza do homem e dá supremacia sobre o animal, podendo também ser a causa da alienação humana. A alienação é o fato de ceder uma parte de si mesmo a outro si, isto é, tornar-se estranho a si mesmo, cativo de outro. O alienado vive fora de si, prisioneiro da imagem de seu ego ou da imagem do ideal. Vive do olhar do outro sobre si e o ignora. O desconhecimento é obnubilação da imagem de si e do outro. Nosso estudo teve como objetivo analisar as transcodificações entre texto literário e filme. Nesse processo houve crescimento e autotransformação, mas também perda e fragmentação dos referenciais, tal como descreve Berman (2000, p.15): “Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria [...] transformação das coisas ao redor mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos”. No começo do século XXI, as pessoas partilham a sensação de viver uma era de inovações e rupturas que as levará a algo novo. Na passagem do século XX para o XXI as transformações estão consolidadas e abarcam todo o mundo, espalhando-se e se fragmentando em diferentes linguagens. 91 A desestruturação, destrutividade e fragmentação são as características mais marcantes da contemporaneidade, que representa apenas uma parte do modernismo. Segundo Baudelaire (apud HARVEY, 1992, p. 22): “A modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente; é uma metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutável”. A pós-modernidade ficou apenas com o transitório e fugidio, deixando de lado o imutável. O tema da opressão que se presentifica num espaço de confinamento onde seres humanos lutam para preservar sua vida física e mental, onde morte e loucura se insinuam como perspectiva para todos, onde despersonalização e desumanização reduzem o homem a bicho, impele a busca de se compreender as contradições presentes no processo de comunicação humana. Buscamos decodificar o universo simbólico dos personagens apresentados no livro e no filme, ressaltando as transcodificações e intertextualidades, procurando signos e códigos comuns às duas mídias. Buscamos compreender o trânsito entre real, imaginário e simbólico, sua interação e/ou influência no cotidiano, avaliando a existência de uma tensão entre a linguagem textual e a língua viva retratada no filme. A busca que se empreendeu foi a de, através dos recursos da comunicação como ciência, encontrar as divergências e convergências entre as obras estudadas, bem como compreender o papel dos meios de comunicação de massas neste processo. Esta básica entre realidade é subjetividade provocadora e de objetividade, uma dicotomia tendo em epistemológica vista que tanto o sujeito quanto o objeto são afirmados em sua importância e de maneira contraditória, tendo ambos independência entre si. As expressões desta dicotomia são o empirismo e o racionalismo que manifestam a contraposição entre razão e realidade. Apesar da oposição 92 existente entre estas posturas, ambas buscam o mesmo objetivo: a sistematização do real. A interpretação dos conteúdos manifestos realizada por nós foi apresentada nos capítulos da dissertação, entretanto, aqui reforçamos as considerações sobre os signos analisados conforme a compreensão que tivemos: o livro de Dráuzio Varella (1999), Estação Carandiru, a nós sugere se tratar de uma grande reportagem e o filme Carandiru, de Hector Babenco et al (2002) nos revela um cinema-denúncia. Mesmo pertencendo a sistemas semióticos diferentes, as duas linguagens trazem em comum em seus signos a pluralidade e a ambigüidade; os dois textos são submetidos à criatividade e à subjetividade de seus autores-narradores. Remete o leitor a um mundo imaginário que, por sua vez, obedece ao contexto histórico, social e cultural vivido por ele. O enredo e os personagens são a força que movimentam o texto, estabelecendo entre todos os elementos constituintes da obra uma inextricável interação, compondo uma só entidade. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.117). O discurso fílmico decorre de uma série de procedimentos técnicos como enquadramentos, ângulos, definições de planos, sonorização e montagem, que é o procedimento que seleciona e articula os planos, definindo toda a narrativa. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.118). Na Transcodificação, o diretor acrescenta algumas cenas e situações não descritas pelo autor, embora tenha mantido a idéia central, a maioria dos personagens e das indicações cênicas. O ritmo, configurado pela montagem, sofreu variações em função da intensidade dramática das cenas, o que resultou em fator positivo, visto que ele dá a tônica da tensão ou relaxamento ao espectador. 93 O uso da elipse foi uma constante durante todo o transcorrer do filme, de forma evidente e eficiente, não deixando nenhum detalhe sem continuidade, sendo possível ao espectador entender tudo o que aconteceu, ainda que não tenha sido apresentado na tela. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.119). As mudanças temporais e espaciais foram elucidadas com a montagem seqüencial dos planos e da movimentação da câmera, alternando planos gerais, primeiros planos e tomadas nas variadas direções dinamizando o filme. (ANTONELLI, C. & CAMOCARDI, E. 2006, p.119). Tanto uma como a outra mídia permitem cada um vivenciar as histórias, o leitor do texto escrito pode visualizar Estação Carandiru da maneira que quiser, enquanto no filme, a história aparece de forma definida. 94 Há vários caminhos para se chegar ao coração. Alguns são tão difíceis que nos transformam em criaturas pequenas, fracas, covardes. Outros são perigosos, nos deixando ansiosos, desequilibrados, doentes. Há caminhos ilusórios, que nos esvaziam o peito a cada passo dado. Há caminhos ideais, que vão revelando nossa impotência durante o trajeto. Seguindo estas trilhas, podemos recolher constatações, conclusões e talvez o mais importante, uma visão global do itinerário pessoal. Apesar então, dos caminhos mágicos que se tornam trágicos, dos caminhos especiais, que não duram mais, das experiências decepcionantes, que nos mostram como éramos melhores antes, vamos reconhecendo e compreendendo a verdadeira rota que leva ao coração de cada um de nós! Eliana M. S. 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