Por uma vida melhor

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Por uma vida melhor
Por uma vida melhor
Intelectuais, pesquisadores e educadores falam sobre o livro
VERSÃO FINAL
Maio – junho 2011
Sumário
Entenda o caso .............................................................................................................................................................. 3
Artigos de intelectuais, pesquisadores e educadores favoráveis ao livro ....................................................................... 4
Posicionamento da Associação de Linguística Aplicada do Brasil ..................................................................................... 5
Língua e Ignorância ........................................................................................................................................................... 7
Educação de Jovens e Adultos e Programa Nacional do Livro Didático/ EJA .................................................................... 9
Nota pública ANPED, ANPAE, ANFOPE, CEDES E CNTE ................................................................................................... 10
Pasquale Cipro Neto. O que discutir sobre o polêmico livro? ....................................................................................... 11
Marcos Bagno (Unb). Uma falsa polêmica ..................................................................................................................... 13
Sírio Possenti (Unicamp). Analisar e opinar. Sem ler ..................................................................................................... 14
Maria Alice Setubal e Maurício Ernica. A batalha da língua na guerra das culturas ..................................................... 16
Thaís Nicoleti de Camargo.O senso comum confunde a língua com a norma culta ...................................................... 18
Cristóvão Tezza. O poder do erro ................................................................................................................................... 19
Ana Maria Stahl Zilles (entrevista)“Fala é mais variada que escrita”............................................................................. 20
Carlos Alberto Faraco. Polêmica vazia ........................................................................................................................... 21
Lucia Furtado de Mendonça Cyranka. “Nós pega o peixe” ............................................................................................ 23
Miriam Lemle. Uma nação com variadas línguas ........................................................................................................... 24
José Miguel Wisnik. Dona Norma .................................................................................................................................. 26
José Miguel Wisnik. Analfabetismo funcional ................................................................................................................ 28
Luís Nassif. O escândalo do livro que não existia ........................................................................................................... 30
Affonso Romano. Escandalizado com o escândalo ........................................................................................................ 32
Janice Ascari. Recebendo e prestando esclarecimentos ................................................................................................ 34
Hélio Schwartsman. Uma defesa do "erro" de português ............................................................................................. 36
Eliane Brum. O que “os livro” contam? .......................................................................................................................... 39
Ludmila Thomé de Andrade (UFRJ). Do dialeto da classe educada brasileira, pode-se falar? ...................................... 43
Darcilia Marindir Pinto Simões (UERJ). Um bom momento para refletir sobre o que é ensinar e saber a língua
portuguesa como língua materna ................................................................................................................................... 45
Dante Lucchesi (UFBA).Preconceito linguístico ou ensino democrático e pluralista? ................................................... 47
Sérgio Fausto (IFHC). Educação para o debate ............................................................................................................... 54
Silviano Santiago. Alquimia poética e utopia ................................................................................................................. 56
Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB). Por que toda essa celeuma referente à inclusão de tópicos de variação linguística
em livro didático? ........................................................................................................................................................... 58
Formandos Letras PUC-SP. Desinformação e desrespeito na mídia brasileira .............................................................. 60
Arnaldo Bloch e Hugo Sukman. Um Elogio AO ERRO (Entre aspas) ............................................................................... 64
Clarice Assalim (CUFSA). Quem deve discutir língua é linguista! ................................................................................... 67
Luiz Costa Pereira Junior. Tempestade em copo d´água ..................................................................................... 68
Ricardo Semler. Última flor do laço ................................................................................................................................ 71
Livia Perozim. Língua, que bicho é esse? ........................................................................................................................ 73
Adilson de Carvalho. Por um debate para além do obscurantismo ............................................................................... 76
Livia Perozim.Falsa questão............................................................................................................................................ 78
Paquito. Dois Rossi e a Língua Brasileira ........................................................................................................................ 80
Rodrigo Ratier. O desafio de ensinar a língua para todos .............................................................................................. 82
Maria Amélia Dalvi. Ainda em torno do livro didático ................................................................................................... 84
Bruno Ribeiro. Imprensa, ignorância e o apresentador ................................................................................................. 87
Chico Arruda. Competência textual e norma culta ........................................................................................................ 89
Fábio José Reis de Araujo. Tentativa de censurar livros didáticos ................................................................................. 91
Luciana Romagnolli. Poliglotas da própria língua........................................................................................................... 93
Mariana Mandelli. Principais universidades exigem que candidato diferencie forma oral e culta ............................. 95
Nota pública da Ação Educativa ....................................................................................................................... 97
Nota pública SECADI-MEC ................................................................................................................................ 98
Esclarecimentos sobre o livro “Por uma vida melhor”, para Educação de Jovens e Adultos ..................................... 99
O que dizem os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) ................................................................................ 100
Lista de vídeos e reportagens em áudio disponíveis na internet ......................................................................... 101
2
Entenda o caso
Desde o último 12 de maio de 2011, muitas notícias, debates e artigos foram veiculados pelos
meios de comunicação acerca de um trecho presente em uma página do livro “Por uma vida
melhor” que trata do que se denomina de variação linguística.
Informações incorretas ou imprecisas foram divulgadas com base em uma frase retirada de seu
contexto. Considerando esses equívocos, a Ação Educativa, responsável pela construção da
proposta pedagógica da obra, informa que:
1. O livro é destinado à EJA – Educação de Jovens e Adultos. Ao falar sobre o tema, muitos
veículos omitiram este “detalhe” e a mídia televisiva chegou a ilustrar VTs com salas de
crianças. Nessa modalidade, é necessário levar em consideração a bagagem cultural do
adulto para incentivá-lo a adquirir novos conhecimentos.
2. O capítulo “Escrever é diferente de falar”, como o próprio título indica, propõe, em um
trecho específico, apresentar ao estudante da modalidade de Educação de Jovens e Adultos
(EJA) as diferenças entre a norma culta e as variantes que ele aprendeu até chegar à escola,
ou seja, variantes populares do idioma.
3. Os autores não se furtam a ensinar a norma culta. Pelo contrário, a linguagem formal é
ensinada em todo o livro, inclusive no trecho em questão. No capítulo mencionado, os
autores apresentam trechos inadequados à norma culta para que o estudante os reescreva
e os adeque ao padrão formal, de posse das regras aprendidas. Por isso, é leviana a
afirmação de que o livro “despreza” a norma culta. Ainda mais incorreta é a afirmação de
que o livro “contém erros gramaticais”, ou ainda que “ensina a falar e escrever errado”.
4. O livro “Por uma vida melhor” faz parte do Programa Nacional do Livro Didático e está
plenamente de acordo com o que está proposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais
para a língua portuguesa, publicados em 1997. Por meio do PNLD, o MEC promove a
avaliação de dezenas de obras apresentadas por editoras, submete-as à avaliação de
especialistas e depois oferece as aprovadas para que secretarias de educação e professores
façam suas escolhas. O livro produzido pela Ação Educativa foi submetido a todas essas
regras e escolhido, pois se adequa aos parâmetros curriculares do Ministério e aos mais
avançados parâmetros da educação linguística.
5. A Ação Educativa tem larga experiência no tema, e a coleção Viver, Aprender é um dos
destaques da área. Seus livros já foram utilizados como apoio à escolarização de milhões de
jovens e adultos, antes de ser adotado pelo MEC, em vários estados.
3
Artigos de intelectuais, pesquisadores e
educadores favoráveis ao livro
4
Posicionamento da Associação de Linguística Aplicada do Brasil
Polêmica em relação a erros gramaticais em livro didático de Língua Portuguesa
revela incompreensão da imprensa e população sobre a atuação do estudioso da
linguagem
A divulgação da lista de obras aprovadas pelo Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD)
para o ensino da língua portuguesa na Educação de Jovens e Adultos (EJA) provocou verdadeira
celeuma na imprensa e comunidade acadêmica sobre a aprovação de obras com “erros” de
língua portuguesa.
Frases como “Nós pega o peixe”, “os menino pega o peixe”,
“Mas eu posso falar os livro” e outras que transgridem a
norma culta, publicadas no livro Por uma Vida Melhor,
aprovado pelo PNLD e distribuído em escolas da rede
pública pelo MEC, causaram a indignação de jornalistas,
professores de língua portuguesa e membros da Academia
Brasileira de Letras.
“Ao contrário de
contribuir para uma
agenda partidária de
manutenção da ignorância,
acusação levianamente
imputada ao livro e ao
PNLD, os “erros” em
O grande incômodo, relacionado ao fato do livro
relativizar o uso da norma culta, substituindo a concepção questão, se interpretados
de “certo e errado” por “adequado e inadequado”, retrata a contextualizadamente e
incompreensão da imprensa e população em relação ao
explorados de forma
escopo de atuação de pesquisadores que se ocupam em
interessante em sala de
compreender e analisar os usos situados da linguagem.
aula, contribuem para o
desenvolvimento da
A polêmica em torno deste relativismo, assim como a
interpretação deturpada de pesquisas na área da
consciência linguística,
linguagem, não são novas. Em novembro de 2001, na
mostrando que apesar de
reportagem de capa da Revista Veja, intitulada “Falar e
todas as variedades serem
escrever bem, eis a questão”, Pasquale Cipro Neto dirigiuaceitáveis, o domínio da
se ofensivamente a pesquisadores da área de linguagem
que defendem a integração de outras variedades no ensino norma culta é fundamental
para efetiva participação
de língua portuguesa como uma corrente relativista e
esquerdistas de meia pataca, idealizadores de “tudo o que
nas diversas atividades
é popular – inclusive a ignorância, como se ela fosse
sociais de mais prestígio”
atributo, e não problema, do "povo" (Fonte, Veja Online,
consultada em 20.05.2011).
Mais de uma década após a publicação dos PCN e da
instituição do PNLD de Língua Portuguesa, ambos frutos das pesquisas destes estudiosos
relativistas, a imprensa e população continuam a interpretar de forma deturpada a proposta de
ensino defendida nas diretrizes curriculares e transpostas didaticamente nas coleções
aprovadas no PNLD.
5
Tal deturpação ressalta um problema sério de leitura, muito provavelmente decorrente da
prática cristalizada historicamente de se ensinar a gramática pela gramática, de forma abstrata
e não situada. Pois, ao situar e inscrever as frases incorretas responsáveis por tanto
desconforto no contexto concreto em que foram enunciadas, fica clara a intenção da autora de
mostrar que precisamos adequar a linguagem ao contexto e optar pela variante mais adequada
à situação de comunicação, preceito básico para participação nas diversas práticas letradas em
que nos engajamos no mundo social.
Assim, ao contrário de contribuir para uma agenda partidária de manutenção da ignorância,
acusação levianamente imputada ao livro e ao PNLD (e, portanto, aos estudiosos da linguagem),
os “erros” em questão, se interpretados contextualizadamente e explorados de forma
interessante em sala de aula, contribuem para o desenvolvimento da consciência linguística,
mostrando que apesar de todas as variedades serem aceitáveis, o domínio da norma culta é
fundamental para efetiva participação nas diversas atividades sociais de mais prestígio.
Se, portanto, situarmos a linguagem, não há razão para polêmica ou desconforto e a crítica
daqueles preocupados em garantir o ensino da norma culta torna-se absolutamente nula, sem
sentido. O niilismo desta crítica está claramente estampado no enunciado de Pasquale, citado
naquela reportagem de uma década: "Ninguém defende que o sujeito comece a usar o
português castiço para discutir futebol com os amigos no bar", irrita-se Pasquale. "Falar bem
significa ser poliglota dentro da própria língua. Saber utilizar o registro apropriado em
qualquer situação. É preciso dar a todos a chance de conhecer a norma culta, pois é ela que vai
contar nas situações decisivas, como uma entrevista para um novo trabalho". (Fonte, Veja
Online, consultada em 20.05.2011)
A relativização veementemente criticada parece, por fim, ter sido tomada como verdade no
interior do mesmo enunciado.
Dez anos depois vemos em livros didáticos a possibilidade de formar poliglotas na língua
materna. Isso é, sem dúvida, um progresso. Resta ainda melhorar as leituras da população
sobre os estudos situados da linguagem.
Neste sentido, a Associação de Linguística Aplicada do Brasil expressa seu repúdio à atitude
autoritária e uníssona de vários veículos da imprensa em relação à concepção deturpada de
“erro” e convida seus membros a se posicionarem nestes veículos de forma mais efetiva e
veemente sobre questões relacionadas a ensino de línguas e políticas linguísticas, construindo
leituras mais situadas, persuasivas e plurilíngues.
QUEM É
A Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB) foi fundada em 1990.
6
Língua e Ignorância
Maria José Foltran - Presidente da Abralin
Nas duas últimas semanas, o Brasil acompanhou uma discussão a respeito do livro didático Por
uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro
Didático do MEC. Diante de posicionamentos virulentos externados na mídia, alguns até
histéricos, a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA - ABRALIN - vê a necessidade de vir
a público manifestar-se a respeito, no sentido de endossar o posicionamento dos linguistas,
pouco ouvidos até o momento.
Curiosamente é de se estranhar esse procedimento, uma vez que seria de se esperar que estes
fossem os primeiros a serem consultados em virtude da sua expertise. Para além disso, ainda,
foram muito mal interpretados e mal lidos.
O fato que, inicialmente, chama a atenção foi que os críticos não tiveram sequer o cuidado de
analisar o livro em questão mais atentamente. As críticas se pautaram sempre nas cinco ou seis
linhas largamente citadas. Vale notar que o livro acata orientações dos PCN (Parâmetros
Curriculares Nacionais) em relação à concepção de língua/linguagem, orientações que já estão
em andamento há mais de uma década. Além disso, não somente este, mas outros livros
didáticos englobam a discussão da variação linguística com o intuito de ressaltar o papel e a
importância da norma culta no mundo letrado.
“Os críticos não
tiveram sequer o
cuidado de
analisar o livro em
questão mais
atentamente”
Portanto, em nenhum momento houve ou há a defesa de que a
norma culta não deva ser ensinada. Ao contrário, entende-se
que esse é o papel da escola, garantir o domínio da norma
culta para o acesso efetivo aos bens culturais, ou seja, garantir
o pleno exercício da cidadania. Esta é a única razão que
justifica a existência de uma disciplina que ensine língua
portuguesa a falantes nativos de português.
A linguística se constituiu como ciência há mais de um século.
Como qualquer outra ciência, não trabalha com a dicotomia certo/errado.
Independentemente da inegável repercussão política que isso possa ter, esse é o
posicionamento científico. Esse trabalho investigativo permitiu aos linguistas elaborar outras
constatações que constituem hoje material essencial para a descrição e explicação de qualquer
língua humana.
Uma dessas constatações é o fato de que as línguas mudam no tempo, independentemente do
nível de letramento de seus falantes, do avanço econômico e tecnológico de seu povo, do poder
mais ou menos repressivo das Instituições. As línguas mudam. Isso não significa que ficam
melhores ou piores. Elas simplesmente mudam.
Formas linguísticas podem perder ou ganhar prestígio, podem desaparecer, novas formas
podem ser criadas. Isso sempre foi assim. Podemos ressaltar que muitos dos usos hoje tão
cultuados pelos puristas originaram-se do modo de falar de uma forma alegadamente inferior
do Latim: exemplificando, as formas “noscum” e “voscum”, estigmatizadas por volta do século
7
III, por fazerem parte do chamado “latim vulgar”, originaram respectivamente as formas
“conosco” e “convosco”.
Outra constatação que merece destaque é o fato de que as línguas variam num mesmo
tempo, ou seja, qualquer língua (qualquer uma!) apresenta variedades que são deflagradas por
fatores já bastante estudados, como as diferenças geográficas, sociais, etárias, dentre muitas
outras. Por manter um posicionamento científico, a linguística não faz juízos de valor acerca
dessas variedades, simplesmente as descreve. No entanto, os linguistas, pela sua experiência
como cidadãos, sabem e divulgam isso amplamente, já desde o final da década de sessenta do
século passado, que essas variedades podem ter maior ou menor prestígio. O prestígio das
formas linguísticas está sempre relacionado ao prestígio que têm seus falantes nos diferentes
estratos sociais. Por esse motivo, sabe-se que o desconhecimento da norma de prestígio, ou
norma culta, pode limitar a ascensão social. Essa constatação fundamenta o posicionamento da
linguística sobre o ensino da língua materna.
“entende-se que esse é o papel da escola, garantir o domínio da
norma culta para o acesso efetivo aos bens culturais”
Independentemente da questão didático-pedagógica, a linguística demonstra que não há
nenhum caos linguístico (há sempre regras reguladoras desses usos), que nenhuma língua já foi
ou pode ser “corrompida” ou “assassinada”, que nenhuma língua fica ameaçada quando faz
empréstimos, etc. Independentemente da variedade que usa, qualquer falante fala segundo
regras gramaticais estritas (a ampliação da noção de gramática também foi uma conquista
científica). Os falantes do português brasileiro podem fazer o plural de “o livro” de duas
maneiras: uma formal: os livros; outra informal: os livro. Mas certamente nunca se ouviu
ninguém dizer “o livros”. Assim também, de modo bastante generalizado, não se pronuncia
mais o “r” final de verbos no infinitivo, mas não
se deixa de pronunciar (não de forma generalizada, pelo menos) o “r” final de substantivos.
Qualquer falante, culto ou não, pode dizer (e diz) “vou comprá” para “comprar”, mas apenas
algumas variedades diriam 'dô' para 'dor'. Estas últimas são estigmatizadas socialmente,
porque remetem a falantes de baixa extração social ou de pouca escolaridade. No entanto, a
variação da supressão do final do infinitivo é bastante corriqueira e não marcada socialmente.
Demonstra-se, assim, que falamos obedecendo a regras. A escola precisa estar atenta a esse
fato, porque precisa ensinar que, apesar de falarmos “vou comprá” precisamos escrever “vou
comprar”. E a linguística ao descrever esses fenômenos ajuda a entender melhor o
funcionamento das línguas o que deve repercutir no processo de ensino.
Por outro lado, entendemos que o ensino de língua materna não tem sido bem sucedido, mas
isso não se deve às questões apontadas. Esse é um tópico que demandaria uma outra discussão
muito mais profunda, que não cabe aqui.
Por fim, é importante esclarecer que o uso de formas linguísticas de menor prestígio não é
indício de ignorância ou de qualquer outro atributo que queiramos impingir aos que falam
desse ou daquele modo. A ignorância não está ligada às formas de falar ou ao nível de
letramento. Aliás, pudemos comprovar isso por meio desse debate que se instaurou em relação
ao ensino de língua e à variedade linguística.
QUEM É
A Associação Brasileira de Lingüística foi fundada em 1969. Conta com mais de 1.000 pesquisadores
associados em todo o país. Saiba mais em www.abralin.org.br. Maria José Foltran é professora do
Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal do Paraná, com
doutorado em Lingüística pela USP.
8
Educação de Jovens e Adultos e Programa Nacional do Livro
Didático/ EJA
A cada ano, nos meses de outubro, assistimos a campanhas midiáticas sobre o dia dos
professores. Sobre como a profissão deve ser dignificada, valorizada, e que educação ainda não
é prioridade. Isso, a princípio, demonstra um reconhecimento, por parte da sociedade, acerca
da importância do profissional de educação. Entretanto, nessas últimas semanas, a sua
capacidade discricionária vem sendo posta em xeque.
O livro "Por uma vida melhor", pautado pela imprensa nessas últimas semanas, foi escrito por
professores com experiência em educação de jovens e adultos; sua seleção para o PNLD/ EJA
(Programa Nacional do Livro Didático/ Educação de Jovens e Adultos) foi feita por professores
de universidades públicas; sua escolha, para ser utilizado em escolas públicas, feita por
professores. E a isso, em momento algum, foi atribuída a relevância devida nas notícias
veiculadas.
O estudante de Eja enfrenta diversos obstáculos para continuar seus estudos. Os principais são
a baixa auto-estima causada pela defasagem idade/ série e a necessidade de dividir seu tempo e
sua dedicação com trabalho, escola e família. A escola tem por obrigação ajudá-lo nesse
processo. Reconhecer suas vivências, sua cultura, seu conhecimento, sua linguagem é o
primeiro passo.
Acaso o exemplo do livro, relativo à variante popular da norma culta, fosse "tava" (estava) ou
expressões de cacofonias comumente usadas "lá tinha" ou "por cada", a polêmica seria tão
grande assim?
O controle público deve ser exercido pela comunidade escolar e pela sociedade em geral. É
direito do cidadão. Mas é preciso garantir que os argumentos sejam expostos, lidos,
interpretados sem conceitos preestabelecidos e que não haja manipulação por interesses
políticos ou econômicos o que, sabe-se, é difícil de acontecer em um programa do porte do
PNLD e que envolve o mercado editorial. Sobretudo é preciso reconhecer e respeitar o
protagonismo do professor no processo de ensino-aprendizagem. É ele o profissional
preparado para essa mediação e esse debate.
Brasília, 27 de maio de 2011
CLEUZA RODRIGUES REPULHO
Dirigente Municipal de Educação de São Bernardo do Campo/ SP
Presidenta da Undime
9
Nota pública ANPED, ANPAE, ANFOPE, CEDES E CNTE
A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd); a Associação Nacional
de Política e Administração da Educação (ANPAE); a Associação Nacional pela Formação dos
Profissionais da Educação (ANFOPE), o Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e a
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) vêm a público manifestarem-se
sobre a polêmica instaurada pela imprensa sobre a adoção do livro "Por uma vida melhor", de autoria
de Heloisa Ramos, pelo Ministério da Educação. Consideraram que as críticas que vêm sendo
difundidas pelos meios de comunicação são infundadas, além de contribuírem para o preconceito e a
discriminação social. Diante disso, as referidas entidades assumem o depoimento da pesquisadora
Marlene Carvalho, como expressão de sua posição crítica.
Brasília, 27 de maio de 2011.
Eliza Bartolozzi Ferreira
A fala dos pobres: muito barulho por nada
Trabalho há mais de 20 anos com formação inicial e continuada de professores do ensino
fundamental e tenho procurado discutir com eles sobre a legitimidade dos falares populares, a
necessidade de reconhecer que a língua dos pobres tem regras próprias, expressividade e economia de
recursos. Não é prestigiada socialmente, não tem valor no mercado de empregos de colarinho branco,
não é admitida na Academia, mas, do ponto de vista linguístico, é tão boa quanto o dialeto chamado
padrão. A diferença maior é que os falantes do dialeto padrão têm o poder político, social e
econômico que falta aos pobres. Não cabe à escola ignorar, ou censurar as variantes populares, mas
sim respeitar a fala dos alunos e, ao mesmo tempo, ensinar a todos a empregar também a norma culta
em ocasiões sociais que exigem um registro formal da língua e, principalmente, como usá-la na
escrita. Sobre isso é que interessa discutir agora, e não dar continuidade a esta polêmica estéril sobre
um livro destinado a jovens e adultos que reconhece a existência e a legitimidade de formas verbais
típicas dos dialetos populares. As pessoas que criticaram o livro em questão – que provavelmente não
leram - devem ler o capítulo "Escrever é diferente de falar", para constatar que a autora assume uma
posição equilibrada e academicamente justificada em relação às variações dialetais. Além disso, o
capítulo contém numerosos exercícios de concordância nominal e verbal e pontuação, rigorosamente
de acordo com a gramática da norma culta. Uma ou duas frases, fora do contexto do capítulo, estão
sendo utilizadas para condenar um livro e a posição da autora em favor da língua dos pobres.
Marlene Carvalho, professora aposentada da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e
pesquisadora do Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação (LEDUC) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
10
O que discutir sobre o polêmico livro?
Pasquale Cipro Neto
Em 1988, eleita prefeita de São Paulo, a professora Luiza Erundina nomeou Paulo Freire
secretário da Educação do município. Antes de assumir, o consagrado educador disse mais ou
menos isto: "A criança terá uma escola na qual a sua linguagem seja respeitada (...) Uma escola
em que a criança aprenda a sintaxe dominante, mas sem desprezo pela sua (...) Precisamos
respeitar a sua sintaxe mostrando que sua linguagem é bonita e gostosa, às vezes é mais bonita
que a minha. E, mostrando tudo isso, dizer a ele: "Mas para tua própria vida tu precisas dizer a
gente chegou em vez de dizer a gente cheguemos". Isto é diferente, a abordagem é diferente. É
assim que queremos trabalhar, com abertura, mas dizendo a verdade".
A declaração de Freire causou barulho semelhante ao que causou (e ainda causa) o livro "Por
uma Vida Melhor", em que se mostram fatos relativos às variações linguísticas. Nele, dá-se
como exemplo de norma popular a frase "Os livro ilustrado mais interessante estão
emprestado". Dado o exemplo, explica-se isto: "O fato de haver a palavra os (plural) indica que
se trata de mais de um livro. Na variedade popular, basta que esse primeiro termo esteja no
plural para indicar mais de um referente". O livro prossegue: "Reescrevendo a frase no padrão
culto da língua, teremos: "Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados". Você
pode estar se perguntando: "Mas eu posso falar 'os livro'?" Claro que pode. Mas fique atento
porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico".
Há uma certa contradição na explicação, já que na frase popular a forma verbal ("estão") está
no plural. Nessa variedade, o que se usa é "tá".
O caso abordado no livro é tecnicamente chamado
de "plural redundante". Tradução: na forma culta
("Os livros ilustrados mais interessantes estão
emprestados"), todos os elementos que se referem a
"livros" (núcleo do sujeito) estão no plural (os,
ilustrados, interessantes, estão, emprestados). É
assim que funciona a norma culta do espanhol, do
português, do italiano e do francês, por exemplo. Em francês, o plural redundante se dá
essencialmente na escrita; na fala, singular e plural muitas vezes se igualam.
Definitivamente, não
se pode dizer que o
livro "ensina errado"
Em inglês, pluraliza-se o substantivo; o artigo, o possessivo e o adjetivo são fixos (na escrita e
na fala). Quanto ao verbo, a terceira do singular do presente é diferente das demais pessoas em
99,99% dos casos; no pretérito e no futuro, há apenas uma forma para todas as pessoas.
O fato é que a ausência do plural redundante não se restringe à variedade popular do português
do Brasil. Também é fato que, apesar de algumas afirmações pueris (""Mas eu posso falar "os
livro'?" Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de
ser vítima de preconceito linguístico"), em nenhum momento o livro nega a existência da
norma culta, como também não se nega a mostrá-la e ensiná-la. Há vários exercícios em que se
pede a passagem da norma popular para a culta.
Definitivamente, não se pode dizer que o livro "ensina errado". O cerne da questão é outro. O
que expliquei sobre o exemplo do livro é assunto da linguística, que, grosso modo, pode ser
definida como "estudo da linguagem e dos princípios gerais de funcionamento e evolução das
línguas" ("Aulete"). A linguística não discute como deve ser; discute como é, como funciona. O
11
que parece cabível discutir é se princípios de linguística devem ser abordados num livro que
não se destina a alunos de letras, em que a linguística é disciplina essencial. Esse é o verdadeiro
debate. Não faltam opiniões fortes dos dois lados. É isso.
Pasquale Cipro Neto, 02/06/2011
O último texto (sobre o livro "Por uma Vida Melhor") deu o que falar. Inúmeros leitores me
agradeceram pelas explicações técnicas que dei sobre a questão. Alguns perguntaram por que
não tomei partido.
Tomei. Afirmei que é pueril a passagem do livro sobre o preconceito linguístico. Afirmei
categoricamente que a obra não ensina (o) errado. Disse também que o cerne da questão é a
pertinência ou não da aplicação de princípios da linguística num livro que não se destina a
alunos de letras. Afirmei isso em respeito a colegas sérios que acham descabida essa aplicação.
E também porque a realidade mostra que muita gente ligada ao ensino errou feio (e ainda erra)
na leitura do que se diz na obra (viu as referências à variedade popular como pregação do valetudo). Professores me escreveram para perguntar "sobre as novas regras da gramática". Não
faltaram
jornalistas
querendo
entrevistar-me
sobre
o
mesmo
"tema".
Sou um tanto suspeito para falar da questão toda porque, mutatis mutandis, aplico esses
conceitos há 36 anos, na sala de aula, há 17, na TV Cultura, e há 14, na Folha.
Termino com trechos das mensagens (convergentes) que troquei com o eminente professor
Adilson Rodrigues, coautor, com a não menos eminente professora Magda Soares, de obras
magnas sobre o ensino da língua materna. Diz o Mestre: "A gramática "formal" não pode nem
deve ser uma ditadura da linguagem. Ela tem que ser esclarecedora e não discriminadora. (...) A
questão é aceitar o que ele (o aluno) traz, até como elemento de cultura, e acrescentar a
aprendizagem TAMBÉM da norma culta, até como forma de propiciar a ascensão econômica e
social do aluno". É isso.
QUEM É
Pasquale Cipro Neto é professor de português desde 1975, é também colunista dos jornais
Folha de S.Paulo, O Globo e Diário do Grande ABC, entre outros, e da revista literária Cult. É o
idealizador e apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, transmitido pela Rádio
Cultura (São Paulo) AM e pela TV Cultura, e do programa Letra e Música, transmitido pela
Rádio Cultura AM.
12
Uma falsa polêmica
Marcos Bagno (Unb)
Publicado em 23/05/2011
A discussão em torno do livro didático "Por uma vida melhor" nos revela, para começar, a
patente ignorância que impera nos nossos meios de comunicação a respeito de língua e de
ensino de língua. Ignorância porque o tratamento da variação linguística, como fenômeno
inerente a toda e qualquer língua humana, está presente no currículo educacional há pelo
menos quinze anos, desde que foram publicados, em 1997, os Parâmetros Curriculares
Nacionais, na primeira gestão do professor Paulo Renato à frente do Ministério da Educação.
Esse dado factual já deixa evidente que a acusação de que "isso é coisa de petistas" que querem
"ensinar a falar errado como o Lula" não tem o menor fundamento, a não ser, de novo, a cabal
ignorância dos que a pronunciam. Ao fazer tanto alarde em torno de algo que para os
educadores é uma prática já consolidada, essa falsa polêmica, na verdade, é mero pretexto para
os que se empenham em reunir mais munição para desacreditar o governo da presidente Dilma
Rousseff: os mesmos que, amparados pela grande mídia (comprometida até as entranhas com
os interesses das elites de um país campeão mundial das desigualdades), tornaram a última
campanha presidencial um desfile de mentiras grotescas. Por isso, é melhor procurar em outro
canto, porque aqui a "culpa" não é deste governo, mas vem de muito antes.
O mais chocante nesse caso é a facilidade leviana com que muitas pessoas têm abordado a
questão. Só de terem ouvido falar do caso, elas se acham suficientemente municiadas para fazer
comentários. Muitas deixam evidente que nunca viram a cor do livro didático mencionado e
que falam da boca para fora, inspiradas única e exclusivamente em suas crenças e superstições
sobre o que é uma língua e o que significa ensiná-la. Dizer que o livro "ensina a falar errado" é
uma inverdade sem tamanho. O livro apenas quer fazer o trabalho honesto de apresentar a seus
usuários a realidade do português brasileiro em suas múltiplas variedades. Será que vamos ter
de excluir dos livros de História toda menção à escravidão porque hoje é "errado" promover o
trabalho escravo? Ao abordar a escravidão o livro de História por acaso está "ensinando"
alguém a escravizar outros seres humanos?
Muitos bons resultados têm sido obtidos na educação de jovens e adultos quando, como
preparação do terreno para ensinar a eles as normas prestigiadas de falar e de escrever, lhes
mostramos que seu próprio modo de falar não é absurdo nem ilógico, mas tem uma gramática
própria, segue regras tão racionais quanto as que vêm codificadas pela tradição normativa.
Aliás, as regras das variedades populares são, muitas vezes, bem mais racionais do que as
regras normatizadas. Criando-se assim um ambiente acolhedor e culturalmente sensível, o
aprendizado da tão reverenciada "norma culta" se torna menos traumático do que sempre foi.
O repúdio ao tratamento da variação linguística na sala de aula é, como sempre, o secular
repúdio que nossas elites sempre têm manifestado contra tudo o que "vem de baixo" e contra
todo esforço de democratização efetiva da nossa sociedade.
QUEM É
MARCOS BAGNO é linguista, escritor, tradutor e professor do Instituto de Letras da Universidade de
Brasília.
13
Analisar e opinar. Sem ler
Bateram duro em um livro com base na leitura de apenas uma das páginas de um dos capítulos
Sírio Possenti (Unicamp), 22/05/2011 – Caderno Aliás
Cesse tudo o que a musa antiga canta / que outro valor mais alto se alevanta (...) dai-me uma
fúria grande e sonorosa / e não de agreste avena ou frauta ruda / mas de tuba canora e belicosa
(os lusíadas, canto i)
O jornalismo nativo teve uma semana infeliz. Ilustres colunistas e afamados comentaristas
bateram duro em um livro, com base na leitura de uma das páginas de um dos capítulos.
Houve casos em que nem entrevistado nem entrevistador conheciam o teor da página, mas
apenas uma nota que estava circulando (meninos, eu ouvi). Nem por isso se abstiveram de
"analisar". Só um exemplo, um conselho e uma advertência foram considerados. E dos retalhos
se fez uma leitura enviesada. Se fossem submetidos ao PISA, a classificação do país seria pior do
que a que tem sido.
Disseram que o MEC distribuiu um livro que ensina a falar errado; que defende o erro; que
alimenta o preconceito contra os que falam certo. Mas o que diz o capítulo?
a) que há diferenças entre língua falada e escrita. É só um fato óbvio. Quem não acredita pode
ouvir os próprios críticos do livro em suas intervenções, que estão
“O jornalismo
nos sites (não é uma crítica: eles abonaram a constatação do livro);
b) que cada variedade da língua segue regras diferentes das de
outra variedade. O que também é óbvio. Qualquer um pode
perceber que os livro, as casa, as garrafa seguem uma regra, um
padrão. São regulares: plural marcado só no primeiro elemento.
Consta-se ouvindo ou olhando, como se constata que tucanos têm
bico desproporcional. Ninguém diz que está errado; todos os
tucanos têm bico igual, é seu bico regular, seu bico "certo";
c) que há diferenças entre língua falada e escrita, que não se
restringem à gramática, mas atingem a organização do texto (um
teste é gravar sua fala, e transcrever; quem pensa que fala como
escreve leva sustos);
nativo teve uma
semana infeliz.
Ilustres
colunistas e
afamados
comentaristas
bateram duro em
um livro, com
base na leitura de
uma das páginas
de um dos
capítulos”
d) que na fala e na escrita há níveis diferentes: não se escreve nem
se fala da mesma maneira com amigos e com autoridades (William
Bonner acaba de dizer "vamo lá sortiá a próxima cidade". Houve
outros dados notáveis nos estúdios: "onde fica as leis da concordância?" e "a língua é onde nos
une"...);
e) deve-se aprender as formas cultas da língua: todo o capítulo insiste na tese (é bem
conservador!) e todos os exercícios pedem a conversão de formas faladas ou informais em
formas escritas e formais.
O que mais se pode querer de um livro didático? Então, por que a celeuma? Tentarei
compreender. Foram três as passagens do texto que causaram a reação. O restante não foi
comentado.
14
Uma questão refere-se ao conceito de regra: quem acha que gramática quer dizer gramática
normativa toma o conceito de regra como lei e o de lei como ordem: deve-se
falar / escrever assim ou assado; as outras formas são erradas. Mas o conceito de regra / lei,
nas ciências (em lingüística, no caso), tem outro sentido: refere-se à regularidade (matéria atrai
matéria, verbos novos são da primeira conjugação etc.). Os livro segue uma regra. E uma
gramática é conjunto de regras, também descritivas.
Outro problema foi responder "pode" à pergunta se se pode dizer os livro. "Pode" significa
possibilidade (pode chover), mas também autorização (pode comer buchada). No livro, "pode"
está entre possibilidade e autorização. Foi esta a interpretação que gerou as reações. Além
disso, comentaristas leram "pode" como "deve". E disseram que o livro ensina errado, que o
errado agora é certo (a tese ganhou a defesa de José Sarney!).
A terceira passagem atacada foi a advertência de que quem diz os livro pode ser vítima de
preconceito. Achou-se que não há preconceito linguístico. Mas a celeuma mostra que há, e está
vivíssimo. Uma prova foi a associação da variedade popular ao risco do fim da comunicação. Li
que o português "correto" é efeito da evolução (pobre Darwin!). Ouvi que a escrita (!) separa os
homens dos animais!
Esse discurso quer dizer que "eles" não pensam direito. O curioso é que os comentaristas são
todos letrados, falam várias línguas. Mas não se dão conta de que um inglês diz THE BOOKS, e
que a falta de um plural não constitui problema; que um francês diz LE LIVR(e), para les livres,
e que a falta dos "ss" não impede a veiculação do sentido "mais de um".
Mas pior que a negação do preconceito foi a leitura segundo a qual o livro estimula o
preconceito contra os que falam ""certo"", discurso digno de Bolsonaro, embora em outro
domínio: foi o nobre deputado que entendeu a defesa dos homossexuais como um ataque aos
heterossexuais. Um gênio da hermenêutica!
Mas há um problema ainda mais grave do que todos esses. De fato, ele é sua origem. Eles não
defendem a gramática. Nossos "intelectuais" não conhecem gramáticas. Nunca as leram
inteiras, incluindo as notas e citações, e considerando as discordâncias entre elas (acham que as
adjetivas explicativas "vêm" entre vírgulas!). Eles conhecem manuais do tipo "não erre" (da
redação etc.), que são úteis (tenho vários, para usar, mas também para rir um pouco) como
ferramentas de trabalho em certos ambientes, em especial para defensores da norma culta que
não a dominam.
Mas o suprassumo foi a insinuação de que o livro seria a defesa da fala "errada" de Lula. Ora,
este tipo de estudo se faz há pelo menos 250 anos, desde as gramáticas históricas. Alguns
acharam que estas posições são de esquerda. Não são! Os "esquerdistas" detestam os estudos
variacionistas. Consideram-nos funcionalistas, vale dizer, burgueses. Por que defendê-los,
então? Porque permitem que os estudos de língua cheguem pelo menos à época baconiana
(Bacon é o nome do autor do Novum Organon, um cara do século XVI. Não é toucinho
defumado).
QUEM É
Sírio Possenti é Professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas e autor
de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para
analistas de discurso e Língua na Mídia
15
A batalha da língua na guerra das culturas
Maria Alice Setubal e Maurício Ernica
"O fato de um livro aprovado pelo Ministério da Educação (MEC) afirmar que é legítimo, sim,
usar modos de falar populares reavivou antigas polêmicas. Como de hábito, várias vozes se
levantam, a maioria contrária à posição do livro, e com muita frequência se manifestam com
tom carregado de paixões.
Antes de tudo, antecipamos nosso ponto de vista: a escola deve assegurar aos alunos a
aprendizagem da variante culta da língua portuguesa, que é a variante usada nos principais
debates sobre as questões da vida pública, na produção científica e em grande parte de nossa
produção cultural. No que diz respeito a esse objetivo, não se devem fazer concessões de
espécie alguma.
Isso posto, cabe-nos dizer que o debate embola uma série de questões diferentes e seria
produtivo se pudéssemos ter clareza sobre elas e discuti-las com alguma serenidade.
Primeiro: somos, ainda hoje, culturalmente reféns de uma gramática normativa e de um ideal de
correção linguística muito distanciados da norma culta falada e escrita efetivamente praticada.
Para ficarmos com uma ilustração simples: de acordo com a gramática normativa e os manuais
de redação, deveríamos usar sempre o verbo gostar com a preposição de. Uma pesquisa
realizada pelo linguista Carlos Alberto Faraco, da Universidade Federal do Paraná (UFPR),
mostra, porém, que jornais de grande circulação e peças de publicidade rompem com essa
regra, escrevendo, por exemplo, do jeito que você gosta e não do jeito de que você gosta. Esse é
um exemplo simples, mas usual. Todos temos a lembrança de aulas de gramática que nos
mostravam que falamos uma língua errada. Na verdade, somos reféns de uma gramática
normativa anacrônica e de uma idealização do que seria o modo correto de falar e de escrever,
que não reconhece a validade e a adequação sequer da nossa variante culta escrita, tal como
praticada de fato.
Segundo: não há uma língua portuguesa única, mas várias. A língua varia na história e nos
grupos sociais. As variações não estão apenas no “sotaque” ou no vocabulário das regiões e
grupos, estão também nas construções sintáticas. Muitos dizem os livro; há quem pergunte quer
ficar aqui mais eu?. Os mineiros dizem estou apaixonado com, os cariocas, tu vai e, os paulistas
que alguém aposentou (sem o se). São exemplos simples, mais uma vez. Não estamos falando
dos desvios daquele que está aprendendo a língua e se arrisca em hipóteses equivocadas, mas
sim de formas de longa duração e consagradas pelo uso. No confronto das variações, temos que
o falar de uns é errado segundo as normas de outros. E aqui está um ponto importante: uma
dessas variantes é a variante de prestígio, a variante usada pela imprensa, pela ciência, pelo
Estado, por boa parte das artes; em suma, é a variante das práticas culturais letradas, a variante
culta. A variante culta, mesmo não correspondendo exatamente à norma gramatical, torna-se
medida do erro e do acerto das demais variantes. Ora, tomar o seu universo cultural como
medida para avaliar a cultura do outro é... em linguagem simples, preconceito.
Terceiro: o desenvolvimento das capacidades de pensamento e raciocínio não está ligado às
variantes linguísticas. Bem verdade que a apropriação da língua é o que permite aos seres
humanos o desenvolvimento das funções psicológicas. Contudo, isso pode ser feito em qualquer
variante linguística. Em suma, é possível ser néscio e obtuso em linguagem culta e ser muito
16
inteligente em uma variante popular, com pouco prestígio, e vice-versa. Aliás, filosofar em
alemão, inglês, francês ou russo, por exemplo, só foi possível porque em um dado momento as
“línguas bárbaras” foram tomadas pelos filósofos como línguas para a prática da cultura
letrada, desbancando o monopólio do velho latim.
Quarto: é importante que a escola reconheça a validade relativa das variantes linguísticas e,
igualmente, a existência de uma variante culta. Para muitas crianças originárias dos diversos
segmentos das camadas populares de nosso País, a língua da escola é uma língua estrangeira no
sentido mais estrito do termo: é língua do outro. Ora, se essa variante, culta e prestigiosa,
impõe-se como referência do falar certo, ela exerce, sim, sobre os falantes das outras variantes,
uma forma de violência simbólica que nega a validade e a legitimidade do universo cultural
dessas crianças e de suas famílias. O pacote só é vendido inteiro: negar a validade das variantes
linguísticas é negar a diversidade cultural de nosso País e negar a cultura popular. Contudo,
como afirmamos logo no início, é papel da escola ensinar e assegurar a aprendizagem da
variante culta. Mas isso não precisa ser feito negando as demais. Pode ser feito, simplesmente,
estimulando a existência de cidadãos capazes de falar múltiplas variantes, cidadãos “bilíngues”
em sua própria língua.
QUEM É MARIA ALICE SETUBAL
PRESIDENTE DO CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO, CULTURA E AÇÃO
COMUNITÁRIA (CENPEC)
QUEM É MAURICIO ERNICA
PESQUISADOR DO CENPEC
17
O senso comum confunde a língua com a norma culta
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Publicado em 18/05/2011
A polêmica provocada pela publicação na imprensa de trechos do livro de Heloísa Ramos nasce
da defasagem entre a visão do ensino da língua materna cultivada pelo senso comum e uma
pedagogia desenvolvida com base na linguística.
Na condição de ciência, a linguística tem por objetivo descrever a língua, não prescrever formas
de realização. O trabalho do linguista passa ao largo dos frágeis conceitos de "certo" e "errado".
É fato, porém, que, para os leigos no assunto, o estudo da língua parece se resumir
exatamente a esses conceitos.
A pedagogia que orienta a obra afronta, portanto, o senso comum, que se expressa no temor de
que a escola vá passar a ensinar o "errado".
A ideia é mostrar que mesmo realizações sintáticas como "os livro" ou "nós pega" têm uma
gramática, que, embora diversa da que sustenta a norma de prestígio social, constitui um
sistema introjetado por um vasto grupo social -daí ser possível falar em variante linguística.
Embora goze de maior prestígio social, a norma culta é apenas uma das variantes, não a própria
língua. A visão distorcida do fenômeno linguístico municia o preconceito linguístico, manifesto
na inferiorização social daqueles que não dominam os recursos da variante
culta.
Cabe a uma pedagogia preocupada em promover a inclusão tratar desse tipo de questão e
fomentar entre os estudantes o respeito à forma de expressão de cada um.
Isso não significa, porém, deixar de ensinar a norma culta, que é o código de mediação
necessário numa sociedade complexa e um meio de acesso às referências literárias e culturais
que constituem a nossa tradição e reforçam a nossa identidade.
QUEM É
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO é consultora de língua portuguesa do Grupo Folha-UOL.
18
O poder do erro
Cristóvão Tezza, 24/05/2011
Eu não queria escrever sobre esse tema, por esgotamento. Mas tenho lido tanta bobagem, com
o tom furibundo das ignorâncias sólidas, sobre o livro didático que “ensina errado”, que não
resisto a comentar. É impressionante como observações avulsas, sem contexto, eivadas de um
desconhecimento feroz tanto do livro em si como de seu pressuposto linguístico, podem rolar
pelo país como uma bola de neve, encher linguiça de jornais, revistas e noticiários e até mesmo
estimular o “confisco” do material pela voz de políticos. Instituições de alto coturno, como a
Academia Brasileira de Letras, manifestaram-se contra o horror de um livro didático que
“ensina errado”. Até o presidente do Congresso, o imortal José Sarney, tirou sua casquinha
patriótica. A sensação que fica é de que há uma legião de professores pelo Brasil afora
obrigando alunos a copiar no caderno as formas do dialeto caipira, com o estímulo homicida do
MEC (de qualquer governo – seria o fim da picada politizar o tema). Sim a educação brasileira
vai muito mal, mas estão errando obtusamente o foco.
O que essa cegueira coletiva mostra, antes de tudo, é o fato de que a linguística – a primeira
ciência humana moderna, que se constituiu no final do século 18 com o objetivo de
compreender a evolução das línguas – não entrou no senso comum. As pessoas, letradas ou não,
sabem mais sobre Astronomia do que sobre o funcionamento das línguas, mas imaginam o
contrário. Eis uma cartilha básica, nos limites da crônica: toda língua, em qualquer parte do
mundo e em qualquer ponto da história, é um conjunto de variedades; uma dessas variedades,
em algum momento e em algumas sociedades, ganhou o estatuto da escrita, que se torna
padrão, é defendida pelo Estado e é o veículo de todas informações culturais de prestígio; há
diferenças substanciais entre as formas da oralidade e as formas da escrita (são gramáticas
diferentes, com diferentes graus de distinção); a passagem da oralidade para a escrita é um
processo complexo que nos faz a todos “bilíngues” na própria língua. Pedagogicamente, dar ao
aluno a consciência das diferenças linguísticas e de suas diferentes funções sociais é um passo
fundamental para o enriquecimento da sua formação linguística.
É função da escola promover o domínio da forma padrão da escrita, estimular a leitura e o
acesso ao mundo letrado, e tanto melhor será essa competência quanto mais o aluno
desenvolver a percepção das diferenças gramaticais da oralidade e da vida real da língua. Ora,
todo livro didático de português minimamente atualizado reserva um capítulo ao tópico da
variedade linguística e ao papel da língua padrão dentro do universo das linguagens cotidianas.
Num país de profundos desníveis sociais como o Brasil, o reconhecimento da diferença
linguística é o passo primeiro para o pleno acesso à escrita e sua função social. Será isso tão
difícil de entender?
QUEM É
Doutor em Literatura Brasileira, Cristóvão Tezza é professor de Linguística na Universidade Federal do
Paraná. Ganhou o prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor romance brasileiro de 2004, pelo
seu livro “O fotógrafo”. Foi considerado pela Revista Época um dos 100 brasileiros mais influentes do ano
de 2009.
19
“Fala é mais variada que escrita”
Entrevista/Ana Maria Stahl Zilles
O que pensa sobre a polêmica?
Que não tem fundamento. Ela está estabelecida nas informações do primeiro capítulo do livro,
que é sobre a diferença entre escrever e falar. Ele é muito adequado porque diz que a escrita é
diferente da fala e que na fala existe muito mais variação do que na escrita. Faz a distinção
entre a variedade popular e a variedade culta, e mostra que elas têm sistemas de concordâncias
diferentes. Eles dizem que na variedade popular basta que o primeiro termo esteja no plural
para indicar mais de um referente.
Quando os autores explicam que é possível falar “os peixe”, não estão querendo dizer que esse é
o certo, nem vão ensinar a pessoa a escrever errado. Isso é como as pessoas já falam. A escola
tem é que ensinar a norma culta e o livro faz isso. O objetivo do capítulo é apenas deixar claro
que uma coisa é falar e outra é escrever.
Existe preconceito contra quem fala errado?
Existem pesquisas feitas nos projetos de estudo de variação linguística que entrevistaram as
mesmas pessoas em intervalos de 15 e 20 anos. Observou-se que existe um movimento dos
falantes se aproximando da norma culta. A população brasileira está com acesso universal à
escola e tendo possibilidade de aprender a norma culta. O reconhecimento de que existe
variação é essencial para que ela não se sinta um ser excluído da escola. Se um professor diz
para um aluno que o modo que ele, os pais e os amigos falam está errado, ele vai se sentir entre
dois mundos.
QUEM É
Ana Maria Stahl Zilles é pós-doutora em linguística pela New York University, professora da
UNISINOS – RS
20
Polêmica vazia
Carlos Alberto Faraco
Publicado em 19/05/2011
O desvelamento da nossa cara linguística tem incomodado profundamente certa intelectualidade.
A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão
Corre pela imprensa e pela internet uma polêmica sobre o livro didático Por uma vida melhor,
da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático (do MEC)
para escolas voltadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA). Segundo seus críticos, o livro, ao
abordar a variação linguística, estaria fazendo a apologia do “erro” de português e
desvalorizando, assim, o domínio da chamada norma culta.
O tom geral é de escândalo. A polêmica, no entanto, não tem
qualquer fundamento. Quem a iniciou e quem a está
sustentando pelo lado do escândalo, leu o que não está escrito,
está atirando a esmo, atingindo alvos errados e revelando sua
espantosa ignorância sobre a história e a realidade social e
linguística do Brasil.
Pior ainda: jornalistas respeitáveis e até mesmo um conhecido
gramático manifestam indignação claramente apenas por ouvir
dizer e não com base numa análise criteriosa do material. Não
podemos senão lamentar essa irresponsável atitude de pessoas
que têm a obrigação, ao ocupar o espaço público, de seguir
comezinhos princípios éticos.
Se o fizessem, veriam facilmente que os autores do livro apenas
seguem o que recomenda o bom senso e a boa pedagogia da
língua. O assunto é a concordância verbal e nominal – que, como
sabemos – se realiza, no português do Brasil, de modo diferente
de variedade para variedade da língua. Há significativas
diferenças entre as variedades ditas populares e as variedades
ditas cultas. Essas diferenças decorrem do modo clivado como
se constituiu a sociedade brasileira. Ou seja, a divisão linguística
reflete a divisão econômica e social em que se assentou nossa
sociedade, divisão que não fomos ainda capazes de superar ou,
ao menos, de diminuir substancialmente.
O tom geral é de
escândalo. A polêmica,
no entanto, não tem
qualquer fundamento.
Quem a iniciou e quem
a está sustentando
pelo lado do
escândalo, leu o que
não está escrito, está
atirando a esmo,
atingindo alvos
errados e revelando
sua espantosa
ignorância sobre a
história e a realidade
social e linguística do
Brasil
Muitos de nós acreditamos que a educação é um dos meios de que dispomos para enfrentar
essa nossa profunda clivagem econômica e social. Nós linguistas, por exemplo, defendemos que
o ensino de português crie condições para que todos os alunos alcancem o domínio das
variedades cultas, variedades com que se expressa o mundo da cultura letrada, do saber
escolarizado.
21
Para alcançar esse objetivo, é indispensável informar os alunos sobre o quadro da variação
linguística existente no nosso país e, a partir da comparação das variedades, mostrar-lhes os
pontos críticos que as diferenciam e chamar sua atenção para os efeitos sociais corrosivos de
algumas dessas diferenças (o preconceito linguístico – tão arraigado ainda na nossa sociedade e
que redunda em atitudes de intolerância, humilhação, exclusão e violência simbólica com base
na variedade linguística que se fala). Por fim, é preciso destacar a importância de conhecer essa
realidade tanto para dominar as variedades cultas, quanto para participar da luta contra o
preconceito linguístico.
É isso – e apenas isso – que fazem os autores do livro. E não somente os autores desse livro,
mas dos livros de português que têm sido escritos já há algum tempo. Subjacentes a essa
direção pedagógica estão os estudos descritivos da realidade histórica e social da língua
portuguesa do Brasil, estudos que têm desvelado, com cada vez mais detalhes, a nossa
complexa cara linguística.
Desses estudos nasceu naturalmente a discussão sobre que caminhos precisamos tomar para
adequar o ensino da língua a essa realidade de modo a não reforçar (como fazia a pedagogia
tradicional) o nosso apartheid social e linguístico, mas sim favorecer a democratização do
domínio das variedades cultas e da cultura letrada, domínio que foi sistematicamente negado a
expressivos segmentos de nossa sociedade ao longo da nossa história.
O desvelamento da nossa cara linguística, porém, tem incomodado profundamente certa
intelectualidade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão. Preferem,
então, apegar-se dogmática e raivosamente à simplicidade dos juízos absolutos do certo e do
errado. Mostram-se assim pouco preparados para o debate franco, aberto e desapaixonado que
essas questões exigem.
QUEM É
Carlos Alberto Faraco é um linguista brasileiro, professor de língua portuguesa da
Universidade Federal do Paraná, da qual foi reitor durante os anos de 1990-1994.
22
“Nós pega o peixe”
Lucia Furtado de Mendonça Cyranka
A sociedade brasileira tem participado, nos últimos dias, de um debate incomum: Será mesmo
escandaloso tratar os fatos da língua a partir de metodologia científica? Dizer que “os livro” e
“nós pega o peixe” são estruturas existentes no português do Brasil é proibido? E ainda: Deve
ser também proibido que a escola reconheça essa variedade linguística utilizada pelos alunos
como legítima e os leve a aprender a correspondente da variedade culta, prestigiada?
O mais estarrecedor de toda essa questão é que, enquanto se condena o dialeto de milhões de
brasileiros a ponto de se recomendar que ele continue excluído da reflexão na escola, o que está
sendo dito é que essa significativa porção da sociedade brasileira não tem linguagem, porque
ela,
simplesmente, não existe. Claro! Se nem pode ser reconhecida na escola! Mas o homem não se
constitui pela linguagem? Se sua linguagem não é reconhecida, a que fica ele reduzido? Não será
isso uma violência? Por que o preconceito linguístico, de efeito tão avassalador da autoestima
dos alunos de nossas escolas e mesmo dos que estão fora dela, não é condenado pela
Constituição Brasileira?
Repetimos o que, felizmente, já tem sido dito amplamente, nesse debate: essa variedade
linguística não reconhecida tradicionalmente pela escola tem uma gramática, com estruturas
regulares. São variações que acontecem em toda língua. O nosso português culto, todos
sabemos, veio do latim vulgar, assim como as demais línguas românicas. E esse português culto,
todos também percebemos, continua mudando.
No fundo, o que a atual polêmica revela é o incômodo causado pelo reconhecimento desta
verdade: a variedade culta da língua sempre esteve ligada à dimensão de poder. Tentar
aproximá-la da variedade popular, mesmo que para uma análise comparativa, como propõem
as autoras do livro didático em questão, constitui uma audácia imperdoável!
Felizmente, temos constituída, no Brasil, uma competente comunidade científica para tratar
das prementes questões relativas ao tratamento adequado da linguagem na escola. Esse debate
em pauta mostra que estamos avançando em direção à implementação de uma visão
sociolinguística no trabalho escolar com a linguagem. Pensamos que essa proposta não tem
mais volta...
Como participante deste importante debate nacional, o Grupo de Pesquisa FALE, do
NUPEL/Faculdade de Educação da UFJF, manifesta seu apoio a todas as instituições brasileiras
- entre elas a ABRALIN e a ALAB - e colegas de trabalho que têm se manifestado a favor do
ponto de vista adotado pelas autoras do livro didático “Por uma vida melhor”.
QUEM É
Lucia Furtado de Mendonça Cyranka é coordenadora do Grupo de Pesquisa FALE – Formação
de professores, Alfabetização, Linguagem e Ensino, da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF)/ www.ufjf.br/fale
23
Uma nação com variadas línguas
Miriam Lemle
A rejeição exacerbada que causou a aprovação pelo MEC de um livro didático no qual a
diversidade na fala é legitimada é muito mais estranha do que essa tentativa de legitimação de
falares populares. A observação de que as formas de falar variam tanto entre agrupamentos
feitos em grandes dimensões quanto entre comunidades pequenas e vizinhas não é nada de
novo. Tal como ocorre em todas as nações no mundo letrado, também nós no Brasil divergimos
na prosódia, na pronúncia, no vocabulário e em alguns aspectos da gramática das línguas que
usamos na fala.
Mediante critérios científicos objetivos da ciência da linguagem não há como passar atestados
de qualidade superior para uma forma de falar em detrimento da outra. Valorações sociais
sobre a variação existem, tal como existem valorações sociais para cores de pele e olhos, lisura
de cabelos, formato de narizes, preferências culinárias, artísticas, de parceria sexual, laborial e
tantas outras.
À parte os preconceitos, seria biologicamente impossível atingirmos a uniformidade linguística,
neste ou em qualquer outro país, tendo em vista como acontece o processo de aquisição de
linguagem: ele é baseado na interação entre princípios universais da gramática e parâmetros
de variação que permitem um leque de alternativas para a diversidade na linguagem.
“Na sua parte de língua portuguesa, o livro didático 'Por uma vida
melhor' tem sido lido com descuido e criticado injustificadamente,
pois a autora explicita que os exemplos discutidos de frases de uma
língua que difere da nossa norma culta são provenientes do uso
oral, a fala, e não da norma convencionada para língua escrita”
Os princípios universais são princípios cognitivos inatos inerentes à própria natureza humana,
nossa estrutura neurofisiológica. São princípios arquitetônicos que formatam as gramáticas de
todas as línguas, como juntar peças lexicais, atribuir classes gramaticais, formar grupos
significativos, inserir marcas de concordância entre verbo e sujeito, entre adjetivo e
substantivo e outras mais exóticas, deslocar sintagmas. Aos universais se soma um número
finito de alternativas possíveis para implementar o design da gramática universal. Dentre os
pontos em que podemos ter soluções arquitetônicas alternativas estão as escolhas de tempos
de verbo, conjugações, declinações, concordâncias, ordem das palavras, deslocamentos, modos
de representar comandos, negação, pergunta, exclamação e muita outra coisa que não cabe
neste espaço.
Os pontos que ficam em aberto para a variedade na pronúncia, na gramática e no vocabulário
são muitos, mas cada criança depreende uma gramática a partir de sua análise das falas a que é
exposta. A eclosão da gramática é um dos milagres maravilhosos com que a natureza nos
presenteia. Em menos de três anos, todos os bebês fazem espoucar uma gramática, uma proeza
cognitiva que eles realizam inconscientemente, antes mesmo de serem capazes de jogar
24
dominó, jogo da velha, cara ou coroa ou amarelinha. As gramáticas atingidas pelas crianças de
uma mesma comunidade convergem em grande parte, mas não são idênticas, sem que as
divergências prejudiquem a comunicação.
Dentro deste quadro, que fica no âmbito das ciências naturais, no mundo moderno construímos
nações, comunidades que abrangem milhões de pessoas e de quilômetros quadrados,
politicamente estruturadas, profundamente alicerçadas no letramento. A partir disso,
precisamos estabelecer normas para a língua escrita, normas que obviamente precisam ter uso
unânime. Por isso, todas as nações precisaram selecionar como norma uma das suas variedades
de fala, etapa esta da normativização que sempre resultou em certa dose de competição entre
variedades. Em seguida, é preciso construir um sistema escolar no qual essa variedade,
convencionada como a norma culta, seja ensinada de maneira sistemática, possibilitando aos
alunos o bilinguismo: a língua que falam precisará coexistir com a língua que escreverão. No
ensino escolar, convém que os pontos de contraste entre as gramáticas coexistentes sejam
apontados, descritos e discutidos.
O contrato social que assegura uma norma culta gramaticalmente homogênea precisa ser uma
coerção aceita pela comunidade nacional para seu próprio bom funcionamento, mas basta que
essa coerção seja entendida como dizendo respeito à expressão através da escrita, sem invadir
a expressão oral das pessoas.
Na sua parte de língua portuguesa, o livro didático 'Por uma vida melhor' tem sido lido com
descuido e criticado injustificadamente, pois a autora explicita que os exemplos discutidos de
frases de uma língua que difere da nossa norma culta são provenientes do uso oral, a fala, e não
da norma convencionada para língua escrita. E adverte que o uso de tais formas linguísticas na
modalidade escrita é inadequado.
De onde derivam os numerosos e fortes protestos contra a aceitação da variação nos modos de
falar? Qual a raiz do estrito apego à dicotomia do certo ou errado em matéria de língua falada?
Este é um problema de outra ordem, que surpreende a uma parte diminuta da comunidade
acadêmica à qual pertenço.
QUEM É
Miriam Lemle (Roma, 17 de dezembro de 1937) é uma linguista brasileira. Em 2006 recebeu o
título Professora Emérita da UFRJ. Coordena desde 2003 o Laboratório Clipsen (Computações
Linguísticas: Psicolinguística e Neurofisiologia), que congrega uma equipe interdisciplinar de
professores e alunos dos programas de pós-graduação em Linguística e em Engenharia
Biomédica (LAPIS/COPPE) da UFRJ. Com esse projeto ganharia em 2004 e também em 2006 o
prêmio Cientista do Nosso Estado, da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), bem como o Edital Universal do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) de 2003 e o de 2005. Coordena o Seminário
de Gramática Gerativa e está tentando formalizar um novo grupo de pesquisa sobre a interface
sintaxe-semântica em línguas neolatinas na perspectiva da Morfologia Distribuída
25
Dona Norma
José Miguel Wisnik
Publicado em 21/05/2011
O imbróglio da vez é a discussão sobre o manual de ensino da língua portuguesa distribuído
pelo MEC, chamado "Para uma vida melhor", da autoria de Heloisa Ramos. Li na imprensa, vi
nos blogs e ouvi no rádio do carro vozes, desde sentenciosas a sardônicas e sarcásticas, dizendo
que se tratava de uma descarada proposta de ensino do português pelo método invertido,
preconizando o erro de concordância, o desvio sintático e o assalto à gramática. Criticava-se a
adoção do "lulês" como idioma oficial da escola brasileira. Leio o capítulo do livro em questão e
vejo, no entanto, que a autora se dedica nele, a maior parte do tempo, a mostrar a importância
da pontuação, da concordância e da boa ortografia na língua escrita. Onde está o erro?
Bater em teclas equivocadas é quase uma praxe do debate cultural corrente, com ou sem
rendimento político imediato. Na verdade, o livro assume, para efeitos pedagógicos, uma noção
que se tornou trivial para estudantes de Letras desde pelo menos quando eu entrei no curso,
em
1967. Os estudos linguísticos mostravam que a prática das línguas é sujeita a muitas variantes
regionais, sociais, e que a chamada "norma culta", preconizada pelos gramáticos, é uma entre
outras variantes da língua, não necessariamente a mais, ou a única "correta". Desse ponto de
vista, científico e não normativo, procura-se contemplar a multiplicidade das falas,
reconhecidas na sua eficácia comunicativa, sem privilegiar um padrão verbal ditado pelos
segmentos letrados como único a ser seguido.
Discutirei adiante algumas consequências
“Leio o capítulo do livro
pedagógicas disso. Mas a que me parece
inquestionável, e adotada com propriedade no livro
em questão e vejo, no
de Heloisa Ramos, é a importância de não se
entanto, que a autora se
estigmatizar os usos populares da língua,
dedica nele, a maior parte
reconhecendo em vez disso a validade do seu
funcionamento. É nessa hora que ela dava como
do tempo, a mostrar a
exemplo a famigerada frase "Nós pega o peixe", ou,
importância da pontuação,
então, "Os menino pega o peixe". A autora não diz que
da concordância e da boa
é assim que se deve escrever. Mas também não
deprecia a expressão: preconceitos à parte, é preciso
ortografia na língua
reconhecer que no seu uso comum a frase funciona,
escrita. Onde está o erro?”
porque a marca do plural no pronome ou no artigo é
suficiente para indicar que a ação é exercida por um conjunto de meninos, e não por um só.
Desse ponto de vista, eminentemente pragmático, nenhum erro.
A seguir, no mesmo espírito pragmático, o livro afirma claramente a importância de que a
escola promova o domínio da norma culta, ligado à língua escrita, justificado pela sua
necessidade em situações específicas (aqui virá a minha discordância). Dá exemplos de como
corrigir um texto mal escrito, mostrando, dentro dos melhores critérios, como ele deve ganhar
coesão interna, articulação sintática, clareza nos seus recortes (pontuação) e seguir os critérios
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ortográficos. A grita contra o livro, por aqueles que, imagino, não o leram, é uma estridente
confirmação, em primeiro lugar, daquilo que o próprio livro diz e, em segundo lugar, daquilo
que ele não diz, mas que deveria dizer. Afirmar cegamente, com alarme e com alarde, que o
livro é um atentado, tornado oficial, à língua portuguesa, pelo respeito localizado que ele dá às
variantes populares de fala que não usam extensivamente as flexões, isto é, as normas letradas
de concordância, é um sintoma ignorante e disseminado de que se concebe a língua como um
instrumento de prestígio, de privilégio e de poder.
Mais que isso, a defesa exaltada e capciosa da suposta correção linguística, desconsiderando
todo o resto, é uma desbragada demonstração de ignorância em nome da denúncia da sua
perpetuação. Culta, neste caso, é de uma incultura cavalar. O tom desinformado e espalhafatoso
da denúncia encobre, mal, aquilo de que ele tenta fugir: o nosso analfabetismo crônico, difuso,
contagiante.
Hélio Schwartsman, em compensação, assim como Cristovão Tezza no programa de Monica
Waldvogel, disseram coisas importantes e equilibradas. Hélio lembra que a passagem do latim
às línguas românicas, o português incluído, só se deu graças às províncias que passaram a falar
um latim tecnicamente estropiado, sem as suas declinações clássicas. Sem essa dinâmica e o
correspondente afrouxamento flexional, estaríamos até hoje falando latim e usando as cinco
declinações.
O inglês, por sua vez, é muito menos flexional que o português. A frase "the boys get the fish",
por exemplo, que funciona perfeitamente para marcar o plural, é, do ponto de vista estrutural,
uma espécie de "nós pega o peixe" institucionalizado.
O horizonte do pragmatismo é o que me parece estreito, no entanto, no livro do MEC. O
domínio da norma culta é justificado, nele, para que o falante tenha "mais uma variedade"
linguística à sua disposição, para que não sofra preconceito, para que se desincumba em
situações formais que assim o exigem. É muito pouco. A norma culta não é nem um mero
adereço de classe nem apenas uma variedade à disposição do aluno para ele usar diante de
autoridades ou para preencher requerimentos. A EDUCAÇÃO pela língua não pode ser pensada
apenas como um instrumento de adaptação às contingências. A escrita é um equipamento
universal de apuro lógico, que está embutido na estrutura de uma língua dada. Mergulhar nela
e nas exigências que lhe são inerentes é um processo de autoconsciência e um salto mental de
grandes consequências.
Não se pode fazer por menos. Além de "Para uma vida melhor", tem que ser também "Para uma
vida maior".
Bater em teclas equivocadas é quase uma praxe do debate cultural corrente.
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Analfabetismo funcional
José Miguel Wisnik, 28/05/11
Não resisto a voltar à discussão sobre o livro de Heloísa Ramos, "Para uma vida melhor",
oficializado pela chancela do MEC. Falei dele e da polêmica que ele despertou, na semana
passada, mas os efeitos sintomáticos que o livro desencadeou ainda ficam ressoando demais.
Talvez porque eu tenha sabido da notícia, revoltante em sua miudeza obscurantista, de que o
deputado Átila Nunes, do PSL do Rio, apresentou projeto de lei para que se proíba a
distribuição do livro nas escolas do estado. Suponho que esse Átila não vai conseguir esterilizar
os caminhos por onde passa, como o rei dos hunos que lhe dá nome, mas a sua proposta é cheia
de sinais reveladores. O artigo de José Sarney na "Folha de S. Paulo", invocando Fernando
Pessoa em nome da unidade linguística da pátria, também não me fez bem.
O que dá às reações o seu caráter de sintoma de alguma outra coisa é a desproporção entre o
que se lê em "Para uma vida melhor", dentro do seu contexto próprio, e as afirmações de que
ele convida perigosamente ao abandono da concordância gramatical em nome de uma
permissiva e perversa norma inculta a ser adotada generalizadamente. Como eu já disse aqui, o
capítulo expõe com elegância procedimentos para se escrever com limpidez, justificando-os
pela necessidade de fazê-lo em certos contextos. Extrai esses princípios de coesão, clareza e
propriedade das necessidades do próprio texto que se escreve, balizados pela norma culta, sem
tomá-la como a verdade universal que ela não é. Faz isso tão bem que acaba demonstrando na
prática, em bom português, que a escrita segundo padrões decantados pela tradição, em seu
estado atual e vivo, não deveria ter vergonha de se apresentar aos estudantes e professores
como um instrumento modelar a ser adotado como tal. Afinal, há de ser por algum motivo forte,
maior do que aqueles que ele mesmo apresenta, que o livro pratica o padrão linguístico que ele
relativiza.
Este é o meu reparo filosófico e pedagógico, a meu ver de grandes consequências, a ser
considerado pela autora e pelo MEC: aceitar-se a multiplicidade das falas como um substrato
cultural democrático, sem preconceitos, sim, mas afirmar também a ampla validade, não
meramente circunstancial, dos padrões decantados pela língua escrita como um repertório a
ser atingido, praticado e renovado, pelo seu longo alcance.
Tudo isso que acabo de dizer faz parte de uma conversa esclarecida, sobre um trabalho
pedagógico honesto, que teve o mérito, mesmo que não buscado, de tocar numa questão tabu.
Já a extensão das reações escandalizadas adquire a dimensão do sintoma, a merecer uma
psicanálise coletiva. Por que será que é tão insuportável que se admita com naturalidade as
variantes linguísticas dos falares, e por que se teme com tanta ênfase que a menção desse fato
nas escolas vá nos arrastar irremediavelmente para o pântano do caos linguístico?
Porque esse pântano patina sob os próprios pés de quem fala. Nesse sentido, o projeto de lei do
deputado do PSL é um índice hilariante. O projeto pretende proibir "qualquer livro, didático,
paradidático ou literário com conteúdo contrário à norma culta ou que viole de alguma forma o
ensino correto da gramática de nosso idioma nacional". Querer que a literatura obedeça aos
gramáticos oficiais, sob pena de retirada do mercado, só pode ser o delírio de quem tropeça na
língua portuguesa a cada frase. É o que acontece no projeto de lei do deputado, que estende a
sua justificativa a outros tipos de livro que "acabam fazendo apologia a questões criminais ou
despertam precocemente o libido dos jovens, incentivando conceitos distorcidos da verdade
social".
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"Apologia a questões criminais"? O deputado não é forte em regência nem no apuro semântico
dos termos. "O libido dos jovens"? Será que é isso mesmo que estou lendo? Se for, então esse
Átila é um perigoso devastador da língua portuguesa.
O exemplo folclórico tem valor de sintoma, na sua caricatura. José Sarney, ao afirmar
erradamente que se resolveu no Brasil "criminalizar quem fala corretamente", diz que
"defender a língua é defender a pátria", acrescentando: "eis a origem da famosa frase de
Fernando Pessoa: "A minha pátria é a língua portuguesa"". Mas Fernando Pessoa não está
dizendo nessa frase do "Livro do desassossego", em tom sentencioso, que a língua está a serviço
da defesa da pátria ("a língua portuguesa é a minha pátria"). Está invertendo esse raciocínio e
dizendo que o seu compromisso de escritor é com a língua livre e criadora ("minha pátria é a
língua portuguesa").
É o que se vê nos textos de Pessoa reunidos no livro "A língua portuguesa", onde começa
dizendo abertamente que a palavra falada é democrática e segue os usos. "Se a maioria
pronuncia mal uma palavra, temos que a pronunciar mal. Se a maioria usa de uma construção
errada, da mesma construção teremos que usar." O maior poeta do século não está
preconizando o erro, está constatando que a língua falada é um fenômeno de massa que segue
suas próprias leis, independente de qualquer norma, e arrasta os falantes para os seus usos
coletivos. Não muito diferente do livro distribuído pelo MEC. A palavra escrita, por outro lado,
dizia Pessoa, impõe suas necessidades e tem as suas regras como lastro. O escritor está livre
delas, porque faz com a língua o que quiser. O povo também está livre delas. O Estado, no
entanto, através da escola, deve ensiná-las como algo que nos serve de baliza e adianto.
Não como uma prisão às regras. Para podermos estar mais livres delas.
QUEM É
José Miguel Soares Wisnik é um músico, compositor e ensaísta brasileiro. É também professor
de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo. Graduado em Letras (Português) pela
USP (1970), mestre (1974) e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada (1980), pela
mesma Universidade.
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O escândalo do livro que não existia
Luís Nassif, 25/05/2011
Durante dias e dias o país inteiro discutiu uma miragem, um não-fato, algo que não existia. E na
discussão se leu de tudo, analistas com julgamentos definitivos sobre a questão, acadêmicos
soltando sentenças condenatórias, jornalistas atirando flechas na miragem. E tudo em cima de
uma nuvem, uma sombra, um ectoplasma que nunca existiu.
Poucas vezes na história contemporânea se viu manifestação tão atrasada do que seja opinião
pública latino-americana. Parecia mais um daqueles contos do realismo fantástico de um Garcia
Marques, uma parábola familiar de Julio Cortazar.
Refiro-me a esse episódio sobre o suposto livro que ensinaria as crianças a ler a escrever
errado.
Esse livro, sobre o qual tantas mentes brilhantes despejaram esgoto puro, não existe.
Inventaram um livro com o mesmo nome, com a mesma autora e imputaram a ele um conteúdo
inexistente no livro original.
O livro massacrado não defendia a norma "inculta". Apenas seguia recomendações do
Ministério da Educação, em vigor desde 1997, de não desprezar a fala popular. Era uma
recomendação para que os jovens alfabetizados, que aprendem a falar corretamente, não
desprezem pessoas do seu próprio meio, que não
O livro massacrado não
tiveram acesso à chamada norma culta.
No entanto um país que aspira a ser potência,
conduzido por um tipo de jornalismo típico de países
atrasados, caiu de cabeça na interpretação de que o
livro ensinava a escrever errado. Criado o primeiro
tumulto, personagens ilustres caíram de cabeça na
versão vendida. O país inteiro repetiu a ficção criada,
as melhores cabeças da mídia de massa embarcando
em uma canoa furada, apenas repetindo o que ouviram
falar.
defendia a norma
“inculta”. Apenas
seguia recomendações
do Ministério da
Educação, em vigor
desde 1997, de não
desprezar a fala
popular
Sem que um só tivesse ao menos lido o capítulo, deram
o que lhes era pedido: condenações do livro e da
autora, pela discutível vantagem de saírem em jornais e programas de TV... dizendo bobagens.
De repente, uma professora séria foi achincalhada, ofendida, tornando-se inimigo público,
merecendo longos minutos no Jornal Nacional.
Episódio semelhante ocorreu alguns anos atrás com uma professora de psicologia que fazia
pesquisas sobre "redução de danos" – um tipo de política de saúde visando ensinar os viciados
a não se matarem. Foram apontadas – ela e sua orientadora de 68 anos – como traficantes em
blogs de esgoto de portais de grande visibilidade. Depois, essa acusação leviana repercutida no
Jornal Nacional.
30
Em alguns setores, o país vive momentos de trevas, de um atraso similar ao macartismo
americano dos anos 50, como se toda a racionalidade, lógica, valores da civilização tivessem
sido varridos do mapa. E tudo debaixo do álibi de uma luta política implacável, que ideologiza
tudo, transforma qualquer fato em campo de batalha, escandaliza qualquer coisa, fuzila
qualquer pessoa em nome de uma guerra que já não tem rumo, objetivo. É como um exército de
cruzados voltando das batalhas perdidas e destruindo tudo o que veem à sua frente apenas
porque aprenderam a guerrear, a destruir e, sem guerras pela frente, praticassem o rito da
execução sumária por mero vício.
QUEM É
Luís Nassif é introdutor do jornalismo de serviços e do jornalismo eletrônico no país. Vencedor
do Prêmio de Melhor Jornalista de Economia da Imprensa Escrita do site Comunique-se em
2003, 2005 e 2008, em eleição direta da categoria. Prêmio iBest de Melhor Blog de Política, em
eleição popular e da Academia iBest.
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Escandalizado com o escândalo
Affonso Romano
Publicado em 21/05/2011
Estou escandalizado é com o escândalo que armaram em torno do livro 'POR UMA VIDA
MELHOR" de Heloisa Ramos da coleção "Viver, aprender".
Finalmente tive acesso ao livro, que me foi dado por Cláudio Mendonça- Presidente da
Fundação de Educação de Niterói. Antes havia lido entrevistas em que a autora tentava
explicar seu livro, aos que não a queriam entender. Li também uma série de impropérios
injustos e gracinhas fáceis em torno da obra. Vi gente alarmada dizendo que o mundo tinha
acabado por causa dessa obra maligna. Enfim, apocalipse now.
Fico me indagando de onde é que saiu essa onda de interpretações equivocadas sobre o livro.
Fico pensando nessa expressão esquisita que a imprensa tanto usa "repercutir a notícia".
Parece até que a imprensa é "oral" e não "escrita". Fica repercutindo boatos, o "ouvir dizer".
Isto bate num problema crônico agravado pela modernidade: a cultura auricular (o ouvir
dizer). E dá-lhe boato, que vira calúnia. Vocês se lembram daquela ária -"La Calunia"- da ópera
"Barbeiro de Sevilha" de Rossini? A calúnia começa como uma brisa e acaba virando
tempestade. Nesse caso, "tempestade em copo d'água".
Fico me
indagando de
onde é que saiu
essa onda de
interpretações
equivocadas
sobre o livro. A
calúnia começa
como uma brisa
e acaba virando
tempestade.
Nesse caso,
"tempestade em
copo d'água"
Em síntese: a autora não está fazendo nenhuma apologia do erro,
está mostrando o que qualquer linguista sabe: a diferença entre a
linguagem escrita e a falada. E fez (com uma equipe) um livro muito
interessante para os alunos do EJA (Educação de Jovens e Adultos).
É' bom que as pessoas se informem também sobre o que é o EJA:
cursos para o pessoal que entra tardia (e constrangidamente) em
contato com a cultura formal.
No livro tem textos de Italo Calvino e Juó Bananére, Rubem Braga e
Melville, Daniel Defoe e Adoniran Barbosa. E abrindo o leque, referese tanto a Goya quanto a artistas contemporâneos. Enfim, um painel
da cultura, uma aula de semiologia. Ali, por exemplo, o inglês é
ensinado a partir do que está escrito nas camisetas e na publicidade.
E ensina a esses 40 milhões que saíram da faixa da pobreza a
utilizarem o computador.
Mas disto ninguém falou...
Fico pensando em algo que digo num dos textos de LER O MUNDO
(que chega às livrarias essa semana). As pessoas das comunidades carentes, às vezes, usam
camisetas e nem sabem o que está escrito nelas. Pois bem, muita gente sofisticada se debruça
sobre as letras dos jornais e não consegue desentranhar o significado dos fatos.
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O assunto é mais amplo. Há que analisar a esquizofrenia da cultura contemporânea. Digo algo
sobre isto no OBSERVATORIO DA IMPRENSA ( do combativo Alberto Dines) que irá ao ar na
3a.feira na TV Brasil (antiga TVE).
QUEM É
Affonso Romano é um escritor brasileiro. Nas décadas de 1950 e 1960 participou de
movimentos de vanguarda poética. Em 1962 diplomou-se em letras e três anos depois publica
seu primeiro livro de poesia, "Canto e Palavra". Em 1965 lecionou na Califórnia (Universidade
de Los Angeles - UCLA), e em 1968 participou do Programa Internacional de Escritores da
Universidade de Iowa, que agrupou 40 escritores de todo o mundo. Em 1969 doutorou-se pela
Universidade Federal de Minas Gerais e, um ano depois, montou um curso de pós-graduação
em literatura brasileira na PUC do Rio de Janeiro. Foi Diretor do Departamento de Letras e
Artes da PUC-RJ, de 1973 a 1976. Ministrou cursos na Alemanha (Universidade de Köln),
Estados Unidos (Universidade do Texas, UCLA), Dinamarca (Universidade de Aarhus), Portugal
(Universidade Nova) e França (Universidade de Aix-en-Provence). Foi cronista no Jornal do
Brasil (1984-1988) e do jornal O Globo até 2005. Atualmente escreve para os jornais Estado de
Minas e Correio Brasiliense.
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Recebendo e prestando esclarecimentos
Depoimento da procuradora Janice Ascari
Disponível em: http://janiceascari.blogspot.com/2011/05/recebendo-e-prestandoesclarecimentos.html
Agradeço muito as indicações de textos a respeito do tema (alguns eu já havia lido) e os
esclarecimentos prestados nos comentários ao post anterior, no Twitter e por e-mail.
Descontados alguns argumentos de autoridade e solenemente ignoradas as ironias, grosserias e
deselegâncias de uns poucos, a troca de informações deu-se em alto nível e é sempre saudável.
Devemos, sim, sempre conversar e conviver com a diversidade de ideias.
Recebi ontem no celular um recado da Professora Vera Masagão, coordenadora da ONG "Ação
Educativa", responsável pelo livro e uma de suas autoras, colocando-se à disposição do
Ministério Público para prestar todos os esclarecimentos necessários. Só não retornei a ligação
porque peguei o recado já tarde da noite, mas vou fazê-lo. Agradeço a gentileza e elogio a Profª
Vera pela atitude. A ONG "Ação Educativa" pode ser melhor conhecida aqui:
http://www.acaoeducativa.org.br/portal/
Este blog é pessoal, é desconhecido e pouco acessado. Minha insignificante opinião só ganhou
alguma dimensão por uma matéria do jornal O Globo, ao qual deixei bem claro que estava
falando como mãe e que não havia analisado juridicamente a
questão:http://oglobo.globo.com/educacao/mat/2011/05/16/procuradora-da-republicapreve-acoes-contra-uso-de-livro-com-erros-pelo-mecautora-se-defende-924478530.asp
Pauto-me única e
exclusivamente por minha
Com as leituras e os esclarecimentos recebidos aqui e no
consciência e sei
Twitter, entendi perfeitamente o ponto de vista dos
especialistas em linguística. Isoladamente considerado,
reconhecer um erro, o que
até que faz sentido. Entretanto, penso que há outros
faço aqui, publicamente
aspectos que devem ser considerados, dos pontos de
(...) Expressei-me muito
vista educacional, pedagógico e do ensino da Língua
Portuguesa de acordo com os programas oficiais dos
mal. Crime, no sentido
cursos regulares e das regras para o vestibular. O ensino
técnico-jurídico da palavra,
na vida real é um desafio para educadores e professores
não há.
de todas as matérias e seja qual for a classe social dos
alunos. Minha mãe, hoje aposentada, foi professora da rede estadual a vida inteira. Tenho
outras professoras na família. Não há uma verdade absoluta e, se houver, ninguém é dono dela.
Mantenho minha opinião discordante e não me convenci de que esse é o melhor método de
ensino, por mais que possa estar correto do ponto de vista acadêmico.
Contudo, pauto-me única e exclusivamente por minha consciência e sei reconhecer um erro, o
que faço aqui, publicamente. Assiste total razão ao Professor Doutor Clecio dos Santos Bunzen
Júnior, Mestre e Doutor em Linguística Aplicada pela Unicamp e Professor da Universidade
Federal de São Paulo quando chama a minha atenção para o fato de eu ter dito que isso "era um
crime".
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Expressei-me muito mal. Crime, no sentido técnico-jurídico da palavra, não há. Peço desculpas
ao Prof. Dr. Clecio, aos autores do livro e a quem mais possa ter se sentido ofendido. Utilizei o
termo no sentido leigo, querendo significar um absurdo, algo inaceitável. Por isso, fica aqui a
minha retratação formal e meu esclarecimento, no sentido de que o termo "crime" foi por mim
mal utilizado. Não acusei o MEC nem os autores do livro de nenhuma conduta que, sob o
aspecto estritamente jurídico, possa configurar crime. Como fosse um castigo, a linguagem
vulgar me pregou uma peça.
Por fim, o editorial "A pedadogia da ignorância", do jornal O Estado de São Paulo, edição de hoje
( http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110518/not_imp720732,0.php ), traz uma
informação inverídica. Não lidero nenhum grupo de procuradores e não foi anunciado que o
Ministério Público Federal irá processar o MEC.
Atuo em matéria criminal em segunda instância, perante o Tribunal Regional Federal, apenas. A
atribuição para instaurar procedimentos sobre o tema é dos membros do MP de primeira
instância que integram os ofícios de Tutela Coletiva, ou seja, os que trabalham com a defesa dos
interesses sociais e individuais indisponíveis, a quem compete promover o inquérito civil e a
ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos (como a educação). Somente esses procuradores é que podem
analisar se é o caso de se abrir, ou não, algum procedimento sobre o caso, seja por iniciativa
própria ou por representação.
A mim, como mãe, foi gratificante ter me informado sobre as várias facetas da questão, embora
mantenha minha opinião discordante inicial.
Meus respeitos e grata a todos pelo bom debate.
QUEM É
Janice Ascari é Procuradora Regional da República de São Paulo. Ao saber da notícia pelos
jornais, declarou que o livro era “um crime” contra os jovens. Ao tomar conhecimento da
questão, e após ler o capítulo, publicou esta retratação em seu blog. No entanto, algumas
revistas e jornais continuaram a utilizar sua declaração inicial indevidamente.
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Uma defesa do "erro" de português
Hélio Schwartsman, 16/05/2011
O pessoal pegaram pesado. Da esquerda à direita, passando por vários amigos meus, a
imprensa foi unânime em atacar o livro didático "Por uma Vida Melhor", de Heloísa Ramos. O
suposto pecado da obra, que é distribuída pelo Programa do Livro Didático, do Ministério da
Educação, é afirmar que construções do tipo "nós pega o peixe" ou "os livro ilustrado mais
interessante estão emprestado" não constituem exatamente erros, sendo mais bem descritas
como "inadequadas" em determinados "contextos".
Os mais espevitados já viram aí um plano maligno do governo do PT para pespegar a anarquia
linguística e destruir a educação, pondo todas as crianças do Brasil para falar igualzinho ao
Lula. Outros, mais comedidos, apontaram a temeridade pedagógica de dizer a um aluno que
ignorar a concordância não constitui erro.
Eu mesmo faria coro aos moderados, não fosse o fato de que, do ponto de vista da linguística --e
não o da pedagogia ou da gramática normativa--, a posição da professora Heloísa Ramos é
corretíssima, ainda que a autora possa ter sido inábil ao expô-la.
Acredito mesmo que, excluídos os ataques politicamente motivados, tudo não passa de um
grande mal-entendido. Para tentar compreender melhor o que está por trás dessa confusão, é
importante ressaltar a diferença entre a perspectiva da linguística, ciência que tem por objeto a
linguagem humana em seus múltiplos aspectos, e a da gramática normativa, que arrola as
regras estilísticas abonadas por um determinado grupo de usuários do idioma numa
determinada época (as elites brancas de olhos azuis, se é lícito utilizar a imagem consagrada
pelo ex-governador de São Paulo Claúdio Lembo). Podemos dizer que a segunda está para a
primeira assim como a pesquisa da etiqueta da corte bizantina está para o estudo da História.
Daí não decorre, é claro, que devamos deixar de examinar a etiqueta ou ignorar suas
prescrições, em especial se frequentarmos a corte do "basileus", mas é importante ter em
mente que a diferença de escopo impõe duas lógicas muito diferentes.
“Acredito mesmo que, excluídos os ataques politicamente motivados,
tudo não passa de um grande mal-entendido”
Se, na visão da gramática normativa, deixar de fazer uma flexão plural ou apor uma vírgula
entre o sujeito e o predicado constituem crimes inafiançáveis, na perspectiva da linguística
nada disso faz muito sentido. Mas prossigamos com um pouco mais de vagar. Se os linguistas
não lidam com concordâncias e ortografia o que eles fazem? Seria temerário responder por
todo um ramo do saber que ainda por cima se divide em várias escolas rivais. Mas, assumindo o
ônus de favorecer uma dessas correntes, eu diria que a linguística está preocupada em apontar
os princípios gramaticais comuns a todos os idiomas. Essa ideia não é exatamente nova. Ela
existe pelo menos desde Roger Bacon (c. 1214 - 1294), o "pai" do empirismo e "avô" do método
científico, mas foi modernamente desenvolvida e popularizada pelo linguista norte-americano
Noam Chomsky (1928 -).
Há de fato boas evidências em favor da tese. A mais forte delas é o fato de que a linguagem é um
universal humano. Não há povo sobre a terra que não tenha desenvolvido uma, diferentemente
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da escrita, que foi "criada" de forma independente não mais do que meia dúzia de vezes em
toda a história da humanidade. Também diferentemente da escrita, que precisa ser ensinada,
basta colocar uma criança em contato com um idioma para que ela o adquira quase sozinha.
Mais até, o fenômeno das línguas crioulas mostra que pessoas expostas a pídgins (jargões
comerciais normalmente falados em portos e que misturam vários idiomas) acabam
desenvolvendo, no espaço de uma geração, uma gramática completa para essa nova linguagem.
Outra prova curiosa é a constatação de que bebês surdos-mudos "balbuciam" com as mãos
exatamente como o fazem com a voz as crianças falantes.
O principal argumento lógico usado por Chomsky em favor do inatismo linguístico é o chamado
Pots, sigla inglesa para "pobreza do estímulo" ("poverty of the stimulus"). Em grandes linhas,
ele reza que as línguas naturais apresentam padrões que não poderiam ser aprendidos apenas
por exemplos positivos, isto é, pelas sentenças "corretas" às quais as crianças são expostas.
Para adquirir o domínio sobre o idioma elas teriam também de ser apresentadas a
contraexemplos, ou seja, a frases sem sentido gramatical, o que raramente ocorre. Como é fato
que os pequeninos desenvolvem a fala praticamente sozinhos, Chomsky conclui que já nascem
com uma capacidade inata para o aprendizado linguístico. É a tal da Gramática Universal.
O cientista cognitivo Steven Pinker, ele próprio um ferrenho defensor do inatismo, extrai
algumas consequências interessantes da teoria. Para começar, ele afirma que o instinto da
linguagem é uma capacidade única dos seres humanos. Todas as tentativas de colocar outros
animais, em especial os grandes primatas, para "falar" seja através de sinais ou de teclados de
computador fracassaram. Os bichos não desenvolveram competência para, a partir de um
número limitado de regras, gerar uma quantidade em princípio infinita de sentenças. Para
Pinker, a linguagem (definida nos termos acima) é uma resposta única da evolução para o
problema específico da comunicação entre caçadores-coletores humanos.
Outro ponto importante e que é o que nos interessa aqui diz respeito ao domínio da gramática.
Se ela é inata e todos a possuímos como um item de fábrica, não faz muito sentido classificar
como "pobre" a sintaxe alheia. Na verdade, aquilo que nos habituamos a chamar de gramática,
isto é, as prescrições estilísticas que aprendemos na escola são o que há de menos essencial,
para não dizer aborrecido, no complexo fenômeno da linguagem. Não me parece exagero
afirmar que sua função é precipuamente social, isto é, distinguir dentre aqueles que dominam
ou não um conjunto de normas mais ou menos arbitrárias que se convencionou chamar de
culta. Nada contra o registro formal, do qual, aliás, tiro meu ganha-pão. Mas, sob esse prisma,
não faz mesmo tanta diferença dizer "nós vai" ou "nós vamos". Se a linguagem é a resposta
evolucionária à necessidade de comunicação entre humanos, o único critério possível para
julgar entre o linguisticamente certo e o errado é a compreensão ou não da mensagem
transmitida. Uma frase ambígua seria mais "errada" do que uma que ferisse as caprichosas
regras de colocação pronominal, por exemplo.
Podemos ir ainda mais longe e, como o linguista Derek Bickerton (1925 -), postular que existem
situações em que é a gramática normativa que está "errada". Isso ocorre quando as regras
estilísticas contrariam as normas inatas que nos são acessíveis através das gramáticas das
línguas crioulas. No final acabamos nos acostumando e seguimos os prescricionistas, mas
penamos um pouco na hora de aprender. Estruturas em que as crianças "erram" com maior
frequência (verbos irregulares, dupla negação etc.) são muito provavelmente pontos em que
estilo e conexões neuronais estão em desacordo.
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Mais ainda, elidir flexões, substituindo-as por outros marcadores, como artigos, posição na
frase etc., é um fenômeno arquiconhecido da evolução linguística. Foi, aliás, através dele que os
cidadãos romanos das províncias foram deixando de dizer as declinações do latim clássico, num
processo que acabou resultando no português e em todas as demais línguas românicas.
A depender do zelo idiomático de meus colegas da imprensa, ainda estaríamos todos falando o
mais castiço protoindo-europeu.
Não sei se algum professor da rede pública aproveita o livro de Heloísa Ramos para levar os
alunos a refletir sobre a linguagem, mas me parece uma covardia privá-los dessa possibilidade
apenas para preservar nossas arbitrárias categorias de certo e errado.
QUEM É
Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae
Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a
Folha.com.
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O que “os livro” contam?
Eliane Brum
Li o capítulo do livro “Por uma vida melhor”, que vem causando polêmica há mais de uma
semana na imprensa e na comunidade acadêmica. O livro é distribuído pelo Ministério da
Educação para ser utilizado pelas escolas públicas na Educação de Jovens e Adultos e foi
coordenado pela Ação Educativa – ONG pela qual tenho grande respeito pelo trabalho que
realiza no reconhecimento e ampliação das vozes da cultura, especialmente a das periferias.
Copio o trecho da discórdia aqui – e sugiro que o leitor leia o capítulo inteiro, intitulado “Falar é
diferente de escrever”. É importante ler o texto na fonte para que possamos pensar juntos e
para que cada um possa formar sua própria opinião.
O trecho que gerou a polêmica é este:
“Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado.
Você acha que o autor dessa frase se refere a um livro ou a mais de um livro? Vejamos:
O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro. Na variedade
popular, basta que esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente.
Reescrevendo a frase no padrão da norma culta, teremos:
Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados.
Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar ‘os
livro?’. Claro que pode. Mas fique atento porque,
dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima
de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve
e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras
estabelecidas para a norma culta como padrão de
correção de todas as formas linguísticas. O falante,
portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada
da língua para cada ocasião.”
O livro (...) foi coordenado
pela Ação Educativa –
ONG pela qual tenho
grande respeito pelo
trabalho que realiza no
reconhecimento e
ampliação das vozes da
cultura, especialmente a
das periferias
Ao ler o capítulo inteiro, é fácil perceber que, em
nenhum momento, os autores do livro afirmam que não se deve ensinar e aprender a “norma
culta” da língua. Pelo contrário. Eles se dedicam a ensiná-la. Logo na primeira página, é dito:
“Você, que é falante nativo de português, aprendeu sua língua materna espontaneamente,
ouvindo os adultos falarem ao seu redor. O aprendizado da língua escrita, porém, não foi assim,
pois exige um aprendizado formal. Ele ocorre intencionalmente: alguém se dispõe a ensinar e
alguém se dispõe a aprender”. Mais adiante, os autores estimulam o aluno a ler e a escrever – e
a insistir nisso, mesmo que possa parecer difícil, porque é lendo e escrevendo que se aprende a
ler e a escrever.
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Não há, portanto, nenhum complô contra a língua portuguesa, como algumas intervenções
fizeram parecer. Nem mesmo caberia tanto barulho, não fosse uma ótima oportunidade para
pensarmos sobre a língua. E o debate das ideias sempre vale a pena. É mais interessante,
porém, quando partimos das dúvidas – e não das certezas. Não custa perguntar uma vez por dia
a si mesmo: “Será que eu estou certo?”. Ninguém está velho demais, ou sábio demais, ou tem
diplomas demais que não possa duvidar e aprender. Um professor que pensa que sabe tudo não
é um professor – é um dogma. E dogmas cabem nas religiões e nas ditaduras – e não na escola e
na democracia.
Há algumas afirmações no texto que, em minha opinião, merecem uma reflexão mais atenta. E o
trecho de “Os livro” é apenas uma delas. Em outro momento, os autores dizem o seguinte:
“Em primeiro lugar, não há um único jeito de falar e escrever. A língua portuguesa apresenta
muitas variantes, ou seja, pode se manifestar de diferentes formas. Há variantes regionais,
próprias de cada região do país. (...) Essas variantes também podem ser de origem social. As
classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas
classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio — vale lembrar que a
língua é um instrumento de poder —, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou
norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular.
Ao ler o capítulo inteiro, é fácil perceber que, em nenhum momento, os
autores do livro afirmam que não se deve ensinar e aprender a “norma
culta” da língua. Pelo contrário
Contudo, é importante saber o seguinte: as duas variantes são eficientes como meios de
comunicação. A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à
escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio. Nesse sentido, é comum que se atribua um
preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros. Esse
preconceito não é de razão linguística, mas social. Por isso, um falante deve dominar as
diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana”.
É verdade que a língua pode ser um instrumento de dominação – e foi ao longo da História não
só do Brasil, mas do mundo. O português mesmo é a língua dos colonizadores – e foi sendo
transformado por falantes vindos de geografias e de experiências diversas ao longo dos séculos,
num constante movimento. Assim como a apropriação da palavra escrita e a ampliação do
acesso à escola estão na base de qualquer processo igualitário. Também é verdade que os
pobres sempre foram discriminados por tropeçarem nas palavras e na concordância. Basta
lembrar as piadas que faziam com Lula porque no início de sua carreira política ele falava
“menas” – em vez de menos. A solução para a discriminação, sempre uma indignidade, não foi
afirmar que “menas” também era correto.
O que discordo no capítulo polêmico é exatamente o caminho que o livro propõe para a
inclusão. Primeiro, acho complicado afirmar que usar “a norma culta” ou a “norma popular” é
uma questão de ocasião. Como neste trecho: “A norma culta existe tanto na linguagem escrita
como na linguagem oral, ou seja, quando escrevemos um bilhete a um amigo, podemos ser
informais, porém, quando escrevemos um requerimento, por exemplo, devemos ser formais,
utilizando a norma culta”.
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Aceitar que está correto dizer “Os livro” – ou que basta aprender onde cabe a “norma popular”
e onde é mais apropriada a “culta” – pode significar aceitar a dominação e acolher o
preconceito. Quem fala e escreve “os livro” o faz não por escolha, mas porque lhe foi roubado o
acesso à educação. É verdade que quem assim se expressa supostamente comunica o mesmo
que quem respeita a concordância. E o objetivo maior da língua é permitir a comunicação. Mas,
se você afirma que a concordância ou não é apenas uma questão de ocasião, você corre o risco
de estar acolhendo a discriminação – e não incluindo de fato.
A inclusão real só vai acontecer quando a escola pública oferecer a mesma qualidade de ensino
recebida pelos mais ricos nas melhores escolas privadas. Quando o Estado for capaz de garantir
a mesma base de conhecimento para que cada um desenvolva suas potencialidades. E este é o
problema do país: uma educação pública de péssima qualidade, com adolescentes que chegam
ao ensino médio sem condições de interpretar um texto – e muitas vezes incapazes até mesmo
de ler um texto.
O que os mais pobres precisam não é que alguém lhes diga que expressões como “os livro” é
bom português, mas sim uma escola que ensine de fato – e não que finja ser capaz de ensinar.
Para dizer “os livro” ninguém precisa de escola. É óbvio que a língua, como coisa viva que é,
também é política. Mas a política de inclusão contida no texto do livro pode estar equivocada. E
a discussão sobre o tema, seja de um lado ou de outro, poderia ser mais interessante se fosse
menos sobre política – e mais sobre educação.
Dominar as regras é importante até para poder quebrá-las. É preciso conhecer profundamente
a origem, a estrutura da língua, para poder brincar com ela. Você precisa partir do parâmetro
para reinventá-lo na escrita. Quando o personagem de um romance que se passa na periferia de
uma grande cidade diz “Os livro”, seu autor sabe que a concordância correta é “os livros”.
Quando ele escolhe colocar essa construção na boca do personagem, há uma intenção literária.
Ele está nos dizendo algo muito mais profundo do que uma mera equivalência poderia sugerir.
Se você elimina essa possibilidade, pode estar eliminando a denúncia da dominação ou a
possibilidade do estranhamento. (Ao final do capítulo polêmico, aliás, há um texto bem
interessante sobre a visão de mundo contida na escolha da linguagem escrita, desenvolvido a
partir do poema “Migna terra”, de Juó Bananére.)
Quando alguém é discriminado por dizer “Os livro” não me parece ser “um preconceito
linguístico”, como os autores afirmam, mas um preconceito. Ponto. Ninguém tem o direito de
zombar de outro porque ele não conhece as regras gramaticais – ao contrário, deve ajudá-lo a
encontrar os meios de aprender. E é nesse ponto que me parece que pode existir também um
equívoco na compreensão do que é a linguagem popular.
Não sou linguista, nem gramática, nem professora de português. Estou sempre estudando para
não cometer erros ao escrever, mais ainda agora com a nova ortografia. Mas, mesmo com a
gramática e o dicionário já bem gastos pelo uso, às vezes me acontece de atropelar a língua.
Acho, porém, que entendo um pouco da linguagem das ruas. E nisso tenho algo a dizer.
Percorro o Brasil há mais de 20 anos ouvindo histórias de gente – e muitos dos que escutei
eram analfabetos. Sempre defendo que a principal ferramenta do repórter é a escuta. E é
justamente esta escuta que me ensinou que a linguagem popular é muito variada – e muito,
muito sofisticada mesmo. Seguidas vezes, meu desafio é apenas escutar com redobrada atenção
para reproduzir pela escrita o que foi inventado pela fala. Porque há uma recriação de mundo
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em cada canto, contida nas pessoas a partir de experiências as mais diversas. É essa sofisticação
da linguagem que me abre as portas para o universo que me propus a contar.
Com frequência eu penso, diante de um analfabeto nos confins do Brasil: “Nossa! Isso é
literatura pela boca!”. E é. Guimarães Rosa não reinventou a língua portuguesa apenas porque
era um gênio. Acredito que era um gênio – mas acredito também que ele bebeu em genialidades
orais do sertão do qual se apropriou como poucos.
Então, acreditar que a linguagem popular (ou “variante popular” ou “norma popular”) é dizer
coisas toscas como “os livro” pode significar subestimar a riqueza e a diversidade de expressão
do povo. Sempre lamentei que as pessoas que me contavam suas histórias não tivessem tido
acesso à escola, devido à abissal desigualdade do Brasil, para que não precisassem de mim para
transformar em escrita as belas construções, os achados de linguagem que saíam de sua boca.
Nada a ver com “os livro”. Posso estar errada, mas me arrisco a afirmar que o povo brasileiro é
muito melhor do que isso. Se o Estado algum dia garantir escola pública de qualidade e
professores qualificados, bem pagos e dispostos a ensinar, o português será uma língua muito
mais rica também na expressão escrita – como já é na oral.
QUEM É
Eliane Brum é jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e
internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e
Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua
(Globo). E-mail: [email protected]. Twitter: @brumelianebrum
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Do dialeto da classe educada brasileira, pode-se falar?
Ludmila Thomé de Andrade (UFRJ)
Em alguns meios de comunicação nos últimos dias, vieram à tona opiniões discordantes a
respeito do papel da escola no tratamento dos dialetos sociais da língua brasileira. O barulho
revela o desconhecimento do público em geral a respeito dos impasses da educação e de suas
formas de superação. Em 1986, Magda Soares propunha o multidialetalismo, caminho didático
da consideração de falares sociais diversos. Era a saída para a escola, diante do impasse de
como tratar os modos de falar de crianças e jovens de origem popular. Propunha um ensino de
língua portuguesa que se utilizasse do levantamento, entendimento e apresentação dos dialetos
sociais brasileiros, para atingir o objetivo primordial de apropriação e aprendizagem do dialeto
de prestígio.
Os procedimentos recomendados pela atual pesquisa brasileira, pelo menos em Linguística,
Educação, Didática da Língua Portuguesa e estudos de Letramento, decorrem de uma posição
que dura mais de 25 anos, para a pesquisa e para a formação inicial de professores de nossa
escola básica! Para os educadores propositores deste ideal, considerar o dialeto não prestigiado
em prioridade é um meio para se atingir uma escola pública democrática, que cumpra seu papel
de ensino do português padrão da norma culta, sem reproduzir as discriminações já presentes
na convivência social.
Em prol do desenvolvimento linguístico de todos os cidadãos da escola, recomenda-se o
aprofundamento no conhecimento que já têm da língua. Se todos somos falantes da língua,
então dela somos todos conhecedores. Já nascemos aprendendo-a e o fazemos bem antes da
escola iniciar seus ensinamentos. Para se (re)aprender a língua, o caminho é se sensibilizar com
a sua história, explorar sua diversidade e a variedade de suas possibilidades. Tanto um falante
que transite bem na norma padrão da língua brasileira quanto outros, que se utilizem de outros
padrões, menos prestigiados, serão beneficiados pelo conhecimento de formas de utilização da
língua para além das que já conhece.
Um inspirador autor de conceitos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), Mikhail
Bakhtin, em sua obra, afirma que os gêneros discursivos secundários, a Literatura e a Ciência,
por exemplo, subsidiam-se necessariamente de gêneros primários, que se encontram nas ruas,
nas feiras, nas praças. Assim se produz a língua.
Ainda nos anos 70 no Brasil, muito antes dos PCN trazerem estas ideias, antes da obra de
Soares, a Sociolinguística comparecia como referência na formação inicial de professores de
português e de anos iniciais do ensino fundamental, defendendo uma atitude menos
preconceituosa e mais conceitual diante dos falares nacionais. As diferenças a serem
observadas são de caráter social, regional, etário, sexual, profissional etc. A verdadeira língua
não está guardada cristalizadamente em formas que não nos causam estranhamento, que
passam como padrão. Ao contrário, está na mudança.
Os princípios defendidos servem a todas as partes. Para a massa de ascendência analfabeta que
herda das gerações de períodos históricos em que havia 50 % de analfabetos no país (hoje
“apenas” 9%), o conhecimento do discurso padrão, será de interesse e utilidade. Para os já
nascidos falantes da língua de prestígio, herdeiros, aprender que a língua é constituída deste
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extrato popular vivo, cambiante, sempre adubado e criativo, também seria um conhecimento
que os permitiria relacionar-se melhor com a língua escrita, sua língua, da qual precisam se
apoderar. A fruição dos neologismos rurais de Guimarães Rosa, por exemplo, exige uma
abertura à língua viva. Apreciar a modernidade de Machado de Assis não se faz sem se lidar
com os arcaísmos que enquadram as vozes sociais históricas retratadas. Língua inventada, por
arte, língua rural e língua antiga constituem o conhecimento culto da língua. Porque a língua
popular não o seria também?
O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) é uma política que deve ser valorizada, de
acordo com a qual o MEC se responsabiliza pela avaliação criteriosa, seleção e distribuição a
todas as escolas públicas do país. Entretanto vemos instâncias paralelas desonerarem o valor
desta ação, realizando movimentações que produzem duplicação dos gastos, com vendas de
livros não selecionados, sem este selo de qualidade, a municípios e estados. Muitos livros
produzidos por editoras são propostos ao PNLD e não alcançam a seleção para serem
distribuídos. O livro que gerou este quiprocó foi um dos selecionados e não pode ser tomado
apenas a partir de recortes sensacionalistas, mas por seu conjunto.
QUEM É
Ludmila Thomé de Andrade é professora da Faculdade de Educação da UFRJ e coordenadora
do Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação (LEDUC)
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Um bom momento para refletir sobre o que é ensinar e saber a
língua portuguesa como língua materna
Darcilia Marindir Pinto Simões (UERJ)
Num cenário em que estão na ordem do dia o preconceito e o bulling, mostra-se relevante o
conflito de opiniões provocado por expressões verbais em português na variedade brasileira
presentes em livro didático destinado ao EJA classificadas como erros e interpretadas
descontextualizadamente. É hora de rever e reajustar posições.
É, no mínimo, espantosa a enxurrada de manifestações, açodadas umas, levianas outras, acerca
de uma atitude apoiada no sociovariacionismo cuja estratégia didática tem por meta encorajar
os falantes a enfrentar a riqueza da língua portuguesa, sem que se sinta estigmatizado por sua
fala diferente e decorrente da moldura sociocultural em que se insere.
Como Professora de Português e Linguista Aplicada a um só tempo, não posso deixar de
pronunciar-me. Há muito que os membros do grupo de pesquisa que lidero o SELEPROT, vemse empenhando na produção teórico prática de subsídios para uma aula de português, de fato,
eficiente. Por isso, enquadramo-nos na perspectiva sociovariacionista, quando nos ocupamos
da percepção e descrição das variedades regionais e sociais hodiernas (ao falante comum
interessa a descrição sincrônica) com que o docente deverá lidar em sua prática cotidiana. Por
isso, vimos desenvolvendo um trabalho substancioso com letras de música brasileira (entre
outros gêneros), por meio das quais é possível documentar a riqueza de nossas falas, as quais
são representação icônica da pluralidade e da mestiçagem do povo brasileiro.
No entanto, diferente dos que pensam que o ingresso das falas não padrão na sala de aula
promove a expulsão do ensino normativo, nosso grupo de pesquisa vem tentando mostrar que,
pelo estudo dialógico no qual as falas diferenciadas se entrecruzam, o estudante pode
concretizar a meta de tornar-se um poliglota em sua própria língua, ou em outras palavras,
aprender a manifestar-se nas diversas variedades sincrônicas que circulam na sociedade
envolvente.
Assim sendo, após a oportunidade de manusear as páginas que se tornaram alvo da polêmica
ensinar português certo ou português errado, fiquei feliz em conhecer um trabalho didático que
possibilita, objetivamente, ao aluno do EJA (clientela cujos estigmas sociais já lhe pesam
demasiadamente) constatar que as outras falas, as não padrão, também são reconhecidas
na/pela escola, que não são falas proibidas nem erradas e que, ao adquirir domínio na
variedade padrão oferecida pela escola, esse aluno estará adquirindo mais uma opção
comunicativa que lhe permitirá transitar mais à vontade nos espaços ditos letrados.
Finalizando, cumpre lembrar que o ensino da Língua Portuguesa como Língua Materna exige de
nós, professores, a consciência de que ensinamos essa língua a sujeitos que já a praticam, com
relativa eficiência, desde que começaram a falar. Logo, a justificativa do ensino escolar da
Língua Materna como disciplina é justamente a oportunidade de disciplinar o uso da língua,
propiciando aos falantes a escolha da variedade linguística adequada ao contexto de
comunicação de que então participa.
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Em última análise, a escola deve propiciar o conhecimento do maior número possível de
variedades, validando-as todas, para que o falante se torne competente para determinar o
estilo de sua fala em cada interação sociodiscursiva, sem perder de vista que, por enquanto, a
maioria dos concursos e processos seletivos dele vai exigir a variedade padrão.
Parabéns ao livro Por uma Vida Melhor e aos colegas que o elegeram como livro oficial para o
EJA.
QUEM É
Darcilia Marindir Pinto Simões (www.darciliasimoes.pro.br) é coordenadora do SubGT de LA
Ensino e aprendizagem (no GT de LA da ANPOLL), procientista da UERJ e Pesquisadora do
CNPq. Doutora em Letras Vernáculas (UFRJ); Pós-doutora em Semiótica (PUCSP); Pós-doutora
em Linguística (UFC) e Professora Adjunta de Língua Portuguesa no Instituto de Letras da
UERJ. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Semiótica, Leitura e Produção de Textos SELEPROT
e do Laboratório Multidisciplinar e Multiusuário de Semiótica LABSEM (UERJ-ESDI)
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Preconceito linguístico ou ensino democrático e pluralista?
Dante Lucchesi (UFBA)
Nos últimos tempos, a sociedade brasileira vem aprofundando seu caráter democrático, não
apenas com a distribuição de renda promovida pela ação dos programas sociais do Governo
Federal, como também no reconhecimento da diferença como parte do respeito à dignidade da
pessoa humana. Hoje o racismo é tipificado como crime pelo Código Penal, e está em curso no
Congresso Nacional um projeto de lei contra a homofobia. No plano da cultura, manifestações
de matrizes historicamente marginalizadas, como a africana, estão plenamente integradas,
como os blocos afros no Carnaval da Bahia, a capoeira e o Candomblé. Porém, o preconceito e a
intolerância ainda predominam em um plano essencial da cultura: a língua.
Nada mais revelador a esse respeito do que a comoção provocada pelo livro didático de língua
portuguesa Por uma vida melhor, distribuído pelo Programa Nacional do Livro Didático, do
Ministério da Educação (MEC), para a educação de jovens e adultos. A revolta se concentra em
uma passagem do livro que diz que o aluno poderia dizer algo como “os livro”, em certos
contextos, mas que deveria empregar a forma padrão “os livros”, sobretudo em situações
formais para não ser vítima do preconceito linguístico.
Foi o suficiente para que políticos, jornalistas, intelectuais e
professores manifestassem toda a sua perplexidade e
indignação. Até uma procuradora do Ministério Público
Federal, no melhor estilo udenista da Marcha com Deus pela
Família, ameaçou com processo os responsáveis pela edição
e pela distribuição do livro. Argumentou-se que, sendo a
missão da escola ensinar a “forma correta”, não podia
admitir o uso da “forma errada”; e que à escola cabia
ensinar a norma culta, e não a popular. Chama a atenção, em
primeiro lugar, o açodamento e leviandade de alguns
posicionamentos, que revelaram que seus autores sequer se
deram ao trabalho de ler o livro.
Chama a atenção, em
primeiro lugar, o
açodamento e
leviandade de alguns
posicionamentos, que
revelaram que seus
autores sequer se
deram ao trabalho de
ler o livro.
A obra, da autoria da professora Heloísa Ramos, baseia-se
em princípios racionais e imprescindíveis para um ensino
eficaz da língua materna, tais como o de que “falar é diferente de escrever”. E reconhece que o
português, como qualquer língua humana viva, admite formas diferentes de dizer a mesma
coisa, o que a ciência da linguagem denomina variação linguística. Informa ainda que a variação
linguística reflete a estrutura da sociedade. No caso brasileiro, o
cenário da variação social apresenta uma divisão entre uma norma culta e uma norma. O livro
ainda alerta que, apesar de serem “eficientes como meios de comunicação”, as duas normas
recebem uma avaliação social diferenciada, existindo “um preconceito social em relação à
variante popular, usada pela maioria dos brasileiros”, mas que “esse preconceito não é de razão
linguística, mas social”. Em vista disso, conclui que “o falante tem de ser capaz de usar a
variante adequada da língua para cada ocasião”. Não há nada demais em tais afirmações. Os
gramáticos mais esclarecidos reconhecem que o padrão da correção absoluta deve ser
substituído pelo parâmetro da adequação relativa às diversas situações de uso da língua. É tão
inadequado dizer “me dá menos tarefa” numa reunião formal de trabalho, quanto perguntar
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“poder-me-ia informar o preço desse vegetal?” em uma feira livre. Como diz ainda o
questionado livro, “um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu
lugar na comunicação cotidiana”.
Informar ao aluno que a língua é plural e admite formas variantes de expressão, cada uma
legítima em seu universo cultural específico, não é apenas a forma mais adequada de fazer com
que o aluno conheça a realidade da sua língua, mas um preceito essencial de uma educação
cidadã, fundada nos princípios democráticos, do reconhecimento da diferença como parte
integrante do respeito à dignidade da pessoa humana. A pluralidade é o principal pilar de uma
sociedade democrática, garantindo a diversidade de crenças, de opiniões, de comportamentos,
de opções sexuais etc. Contudo, a diversidade linguística é vista sempre como uma ameaça, sem
que as pessoas se deem conta do autoritarismo que tal visão dissemina.
A aceitação da diversidade linguística não entra em contradição com a necessidade da
aquisição de uma norma padrão para uma melhor inserção em uma sociedade de classes,
dominada pelo letramento. E inclusive o livro em questão se apresenta como um instrumento
adequado desse ensino, com seus exercícios de pontuação, do uso canônico dos pronomes e até
do emprego das sacrossantas regras de concordância, que ousou desafiar, tocando em uma
aspecto nevrálgico da visão discricionária de língua que predomina na sociedade brasileira. O
reconhecimento da diversidade linguística, longe de ser prejudicial, é uma condição sine qua
non para uma escola democrática e inclusiva, que amplia o conhecimento do aluno sem
menosprezar sua bagagem cultural. A imposição de uma única forma de usar a língua,
rechaçando as demais variedades como manifestações de inferioridade mental, é um ato de
violência simbólica e mutilação cultural inaceitável.
Portanto, só a ignorância ou a má-fé podem explicar as manifestações
de indignação e revolta que beiram a histeria, diante da distribuição de
um livro tão pertinente, através do sistema democrático e republicano
do Programa Nacional do Livro Didático do MEC
Outro aspecto que chama atenção é o desconhecimento que predomina na sociedade sobre o
ensino de língua portuguesa. Já há alguns anos que os livros didáticos contemplam a questão da
variação linguística, e muitas escolas têm adotado essa visão mais pluralista e democrática de
ensino de língua portuguesa com resultados muito positivos. Portanto, antes que se diga que a
distribuição do livro é mais um ato de populismo do governo do PT, deve-se esclarecer que essa
visão remonta ao governo FHC, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs), em 1997, que já diziam que “a imagem de uma língua única, mais próxima da
modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar,
dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre ‘o que se deve e o que não se
deve falar e escrever’, não se sustenta na análise empírica dos usos da língua” e alertavam que
“o problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser
enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o
respeito à diferença”.
Portanto, só a ignorância ou a má-fé podem explicar as manifestações de indignação e revolta
que beiram a histeria, diante da distribuição de um livro tão pertinente, através do sistema
democrático e republicano do Programa Nacional do Livro Didático do MEC. Diante disso,
importa saber quais são as razões mais profundas dessas reações. Em primeiro lugar, a língua
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ocupa um posição sui generis na estrutura social. Em outras áreas do comportamento, as leis se
seguem às práticas sociais. Na língua, ao contrário, as disposições governamentais, como no
caso dos PCNs, estão muito à frente da visão dominante na sociedade, que é no geral dogmática
e cheia de mitificações.
O linguista norte-americano William Labov fala do mito da Idade do Ouro, no qual as pessoas
tendem a acreditar que a língua atingiu sua perfeição no passado e desde então só se tem
deteriorado, e se afligem com as inovações que a cada dia ameaçam mais e mais a integridade
do idioma, sendo as mais perigosas as violações perpetradas pela “gente inculta”. Porém, não se
conhece uma única língua cujo funcionamento tenha sido comprometido pelas mudanças que
sofreu ao longo de seu devir histórico. As mudanças que afetaram o chamado latim vulgar da
plebe romana deram origem ao português de Camões, ao espanhol de Cervantes e ao francês de
Flaubert. E as “deteriorações” sofridas pela língua portuguesa desde o tempo de Camões não
impediram que Pessoa escrevesse sua magistral obra poética. Além do que, muitos males que
afligem hoje a língua, para a decepção de muitos, não constituem grande novidade. Os puristas
ficam horrorizados com a linguagem desleixada da Internet, impregnada de abreviaturas. Pois
as abreviaturas abundam nas inscrições romanas e nos manuscritos medievais.
Costuma-se correlacionar também complexidade gramatical com grau de civilização. Porém,
muitas línguas indígenas brasileiras exibem uma morfologia muito mais complexa, inclusive
marcando certas categorias gramaticais, como a evidencialidade (que informa a fonte de
conhecimento do evento verbalizado), absolutamente ausentes na gramática das línguas
europeias. Já muitas línguas africanas, em sua maioria ágrafas (sem escrita), exibem um
sistema morfológico de classificação nominal extremamente complexo. E algumas línguas da
Melanésia, de comunidades tribais, têm mais de cem formas pronominais, contra algumas
poucas dezenas das principais línguas europeias, que têm mais de mil anos de tradição escrita.
Ou seja, complexidade gramatical não tem qualquer correlação com grau de civilização. Nem se
pode pensar que complexidade gramatical implica maior poder de expressão da língua.
Outro grande mito é o da ameaça à unidade linguística: se não houver uma rígida
uniformização, a unidade da língua se perde; se o caos da variação linguística não for detido, a
comunicação verbal ficará irremediavelmente comprometida. Ao contrário, a heterogeneidade
da língua é que garante a sua unidade em uma comunidade socialmente estratificada e
culturalmente diversa. É a flexibilidade conferida pela variação linguística que permite a uma
língua funcionar tanto na feira livre quanto nos tribunais de justiça. Se fosse um código
monolítico e inflexível, como sugerem os puristas, a mesma língua não poderia funcionar em
ambientes tão diversos, o que levaria inexoravelmente à sua fragmentação.
Impressiona o nível de ignorância que se observa em pleno século XXI em relação à língua.
Qualquer pessoa minimamente informada já ouviu falar de Freud, Lévi-Strauss e Max Weber,
tem alguma ideia sobre o que seja o Complexo de Édipo e o Tabu do Incesto e não ousa falar em
raças superiores e inferiores, ou que um criminoso possa ser reconhecido pelo formato do seu
crânio, mas fala com naturalidade de línguas simples e complexas e se refere a formas
linguísticas correntes como aberrações. Aliás, a visão de que a forma superior da língua é
aquela dos escritores clássicos é contemporânea do sistema de Ptolomeu, de que a Terra era o
centro do Universo e, em torno dela, giravam o sol, os planetas e as estrelas. Ou seja, a
Revolução de Copérnico não chegou ainda à língua.
Um exame aprofundado da questão revelará que as motivações históricas para tanto
preconceito e mitificação decorrem exatamente papel político crucial que a língua desempenha
49
nas sociedades de classe. Ao longo dos tempos, a língua tem constituído um poderoso
instrumento de dominação e de construção da hegemonia das classes dominantes. A
construção dos estados nacionais encontrou na uniformização e homogeneização linguística
um dos seus apoios mais eficazes, sobretudo em regimes autoritários e absolutistas. E o
preconceito contra as formas de expressão das classes populares constitui um poderoso
instrumento de legitimação ideológica da exploração desses segmentos. Na medida em que o
preconceito viceja na ignorância, pode-se entender por que é tão importante impedir que uma
visão isenta e cientificamente fundamentada da língua tenha uma grande circulação na
sociedade.
Em um programa televisivo sobre o polêmico livro, um conhecido jornalista inquiriu uma
entrevista alegando que a concordância gramatical seria imprescindível para o raciocínio
lógico. Se fosse assim, os norte-americanos, australianos e ingleses deveriam enfrentar
dificuldades significativas, porque o inglês é uma língua praticamente desprovida de
concordância nominal e verbal.
Ao contrário, a grande maioria dos artigos científicos é escrita na atualidade em inglês, e as
universidades inglesas e norte-americanas figuram entre as melhores do mundo. Em inglês, se
diz: I work, you work, he works, we work, you work, they work. Na linguagem popular do
Brasil, se diz: eu trabalho, tu trabalha, ele trabalha, nós trabalha, vocês trabalha, eles trabalha.
Nas duas variedades linguísticas, só uma pessoa do discurso recebe marca específica, mas o
inglês é a língua da globalização e da modernidade, enquanto o português popular do Brasil é
língua de gente ignorante, que não sabe votar. Fica evidente que o valor das formas linguísticas
não é intrínseco a elas, mas o resultado da avaliação social impingida aos seus usuários.
Ao contrário do que pensa o jornalista, a concordância não é um requisito para o raciocínio
lógico. Até porque as regras de concordância são mecanismos gramaticais que não interferem
na comunicação verbal, tanto que é indiferente dizer “nós pegamos os peixes” ou “nós pegou os
peixe”. A informação veiculada é a mesma. Em função disso, esses mecanismos costumam ser
muito afetados em determinados processos históricos como aqueles por que passaram o inglês,
o português no Brasil e o francês, que, mesmo com a erosão na oralidade de suas marcas de
concordância, não deixou de se tornar a língua de cultura do mundo ocidental no século XIX.
Porém, na recente história política deste país, a concordância teve uma posição de destaque,
quando a imprensa conservadora questionava a capacidade do Presidente Lula, invocando,
entre outras coisas, os seus “erros de português”. O preconceito linguístico nada mais era do
que a expressão de um preconceito mais profundo das elites econômicas que não podiam
admitir que um torneiro mecânico ocupasse o cargo de maior mandatário da República. O
sucesso e as conquistas alcançadas pelo Governo Lula, tanto no plano interno quanto externo,
só vieram a confirmar que, tanto um preconceito quanto outro, não tinham o menor
fundamento.
Mas, vale tudo para desqualificar a linguagem popular, até dizer o disparate de que ela “é
caótica e sem regras”, como afirmou, há alguns anos, uma jornalista da imprensa conservadora.
Desde 1957, com as publicações dos trabalhos do linguista norte-americano Noam Chomsky,
sabe-se que a Faculdade da Linguagem é uma propriedade universal da espécie humana, de
modo que qualquer frase produzida por um falante de qualquer língua natural, seja ele
analfabeto ou erudito, é gerada por um sistema mental de regras tão sofisticado que mesmo o
50
computador mais poderoso já produzido é incapaz de fazer o que qualquer indivíduo faz
trivialmente: falar sua língua nativa.
Nesse contexto, é possível compreender o quanto é subversivo (ou seja, transformador)
distribuir amplamente um livro didático que reconhece a diversidade linguística e a
legitimidade da linguagem popular. É muito revelador o depoimento do eminente gramático
Evanildo Bechara, divulgado no portal UOL, na Internet, em 18/05/2011. Numa crítica à
orientação dos PCNs, que ele considera um "erro de visão", afirma: “Há uma confusão entre o
que se espera de um cientista e de um professor. O cientista estuda a realidade de um objeto
para entendê-lo como ele é. Essa atitude não cabe em sala de aula. O indivíduo vai para a escola
em busca de ascensão social”. É impressionante que se diga que “não cabe em sala de aula”
fornecer elementos para o aluno "compreender [a língua] como [ela] é”. É como dizer que o
darwinismo não cabe em sala de aula, devendo o ensino da biologia ser orientado pelos
princípios do criacionismo. Acenando com a cenoura da “ascensão social”, Bechara quer limpar
o terreno do ensino para os normativistas legislarem arbitrariamente sobre a língua, como têm
feito até então. A visão científica da língua, que reconhece a variação e a diversidade linguística
como propriedades essenciais de qualquer língua viva, deve ficar hermeticamente confinada
aos ambientes científicos. Na escola e na sociedade, deve predominar a visão dogmática e
obscurantista de que existe uma única forma de falar e escrever, enquanto as demais devem ser
vistas como deteriorações produzidas por mentes inferiores.
Os problemas dessa visão dogmática e discriminatória do ensino de língua portuguesa se
agravam com a tensão que existe no país em relação à norma de correção linguística. O
linguista Marcos Bagno tem demonstrado que estruturas como “o jogador custou a chutar” e
outras que os gramáticos tardicionais e midiáticos, como Pasquale Cipro Neto, afirmam não
pertencer à norma culta são recorrentes nos textos de escritores consagrados, como Cecília
Meirelles, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector, ou mesmo de clássicos, como
Machado de Assis e José de Alencar. Isso demonstra que, no Brasil, existe um desacordo
flagrante entre a norma padrão – modelo ideal de língua usado como critério para a correção
linguística – e a norma culta – forma da língua concretamente usada pelas pessoas
consideradas cultas, advogados, jornalistas, escritores etc. Ao empregar as duas expressões
como sinônimas, Pasquale e os normativistas buscam dar às suas prescrições uma legitimidade
que elas não têm, porque se apoiam numa equivalência que está longe de existir.
A tensão entre a norma padrão e a norma culta é normal em qualquer sociedade letrada, na
medida em que a norma padrão constitui uma forma fixa e idealizada de língua a partir da
tradição literária, enquanto a norma culta, constituída pelas formas linguísticas efetivamente
em uso está sempre se renovando. Porém, no Brasil o desacordo entre as duas é grave desde as
origens do estado brasileiro. A independência política do Brasil, ocorrida em 1822,
desencadeou uma série de manifestações e movimentos nacionalistas, que tinham no índio tupi
o grande símbolo da nacionalidade. Contudo, escritores que abraçaram a temática indigenista e
nacionalista que tentaram adequar a linguagem portuguesa à nova realidade cultural do Brasil,
como José de Alencar, foram alvo de virulentas críticas provenientes do purismo gramatical.
Mais uma vez, a língua se descolou dos demais aspectos da cultura. Se os elementos
representativos da brasilidade deveriam ser adotados, derrubando os símbolos da velha ordem
colonial, a linguagem brasileira era vista como imprópria e corrompida, devendo continuar a
prevalecer a língua da antiga Metrópole portuguesa. A vitória dos puristas representou a vitória
de um projeto elitista e excludente na formação do estado brasileiro. E a base racista desse
projeto fica clara neste trecho do discurso de Joaquim Nabuco, na sessão de instalação da
51
Academia Brasileira de Letras, em 1897: A raça portuguesa, entretanto, como raça pura, tem
maior resistência e guarda assim melhor o seu idioma; para essa uniformidade de língua escrita
devemos tender. Devemos opor um embaraço à deformação que é mais rápida entre nós;
devemos reconhecer que eles são os donos das fontes, que as nossas empobrecem mais
depressa e que é preciso renová-las indo a eles. (...) Nesse ponto tudo devemos empenhar para
secundar o esforço e acompanhar os trabalhos dos que se consagrarem em Portugal à pureza
do nosso idioma, a conservar as formas genuínas, características, lapidárias, da sua grande
época (...) Nesse sentido nunca virá o dia em que Herculano ou Garrett e os seus sucessores
deixem de ter toda a vassalagem brasileira.
A vassalagem linguística à ex-metropole implicou a adoção do modelo da língua de Portugal na
normatização linguística no país, com graves conseqüências, como o generalizado sentimento
de insegurança linguística que aflige todos segmentos da sociedade brasileira, mesmo os mais
escolarizados. É comum ouvir afirmações do tipo “o português é uma língua complexa”, ou “o
brasileiro não sabe falar português”. E não poderia ser diferente porque a tradição gramatical
brasileira exige que os brasileiros escrevam, ou até mesmo falem, com a sintaxe portuguesa, o
que é impraticável, porque a língua não parou de mudar, tanto em Portugal quanto no Brasil,
em um processo que, por vezes, assume direções distintas, ou mesmo contrárias, em cada um
dos lados do Oceano Atlântico.
Uma das mais notáveis dessas mudanças foi a violenta redução das vogais átonas da língua em
Portugal, fazendo com que os portugueses pronunciem telefone como tlefone, o que confere ao
português europeu contemporâneo uma sonoridade, que é menos românica do que germânica,
ou mesmo eslava. Já no Brasil pronuncia-se téléfoni ou têlêfoni (consoante a região), tendo
ocorrido o inverso: o fortalecimento das vogais pretônicas. Essa mudança acabou por
repercutir em outros níveis da estrutura da língua, de modo que em Portugal se generalizou o
uso da ênclise, até nos casos em que, na língua clássica, era obrigatório o uso da próclise (e.g., O
João disse que feriu-se; Não chegou-se a um acordo), enquanto no Brasil emprega-se
normalmente a próclise até nos contextos vedados pela tradição (e.g., Me parece que ela não
veio).
Para além da insegurança linguística, a adoção de uma norma adventícia no Brasil produz
também verdadeiros absurdos pedagógicos. Toda gramática normativa brasileira tem um
capítulo dedicado à colocação pronominal, que se inicia invariavelmente com a afirmação “a
colocação normal do pronome átono é a ênclise”; ao que se seguem mais de vinte regras
indicando onde se deve usar a próclise (em orações subordinadas, depois de palavras
negativas, após alguns advérbios etc). Tal gramática serve a um estudante português, que usa
normalmente a ênclise e pode aprender quais são os contextos excepcionais onde a tradição
recomenda o uso da próclise, mas não tem a menor serventia para um estudante brasileiro, que
já usa normalmente a próclise. Para ter algum valor pedagógico, o texto da gramática brasileira
deveria ter a seguinte feição: “a colocação normal do pronome átono no Brasil é a próclise;
entretanto, para se adequar à tradição, deve-se evitar essa colocação em início de período e
após uma pausa”.
Esses equívocos se exacerbam dentro da visão tradicional que restringe o ensino de língua
portuguesa à prescrição do uso de formas anacrônicas, quando o ensino da língua deve ser
muito mais amplo que isso, concentrando-se em práticas criativas que capacitem o aluno a
produzir e interpretar textos, dominar os diversos gêneros textuais e identificar os mais
variados sentidos e valores ideológicos que as produções verbais assumem em cada situação
específica; ao que se deve somar uma informação propedêutica acerca da diversidade da língua.
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Pode-se entender, assim, porque uma entidade conservadora e anacrônica, como a Academia
Brasileira de Letras (ABL), se juntou às vozes recalcitrantes, criticando o livro de português do
MEC em uma nota oficial, na qual afirma: “Todas as feições sociais do nosso idioma constituem
objeto de disciplinas científicas, mas bem diferente é a tarefa do professor de língua
portuguesa, que espera encontrar no livro didático o respaldo dos usos da língua padrão que
ministra a seus discípulos”. Mais uma vez, a ladainha de que a escola e a sociedade devem ser
privadas de uma visão científica (ou seja, realista) da língua, ficando à mercê de toda a
arbitrariedade normativista, inclusive aquela que impõe uma norma de correção adventícia e
absolutamente estranha à realidade linguística do país.
Fica evidente também que essa virulenta reação ao livro de português do MEC não se justifica
como defesa de um ensino mais eficaz de língua portuguesa. Um modelo antiquado, que
privilegia a imposição de formas linguísticas adventícias e/ou anacrônicas, está longe de ser o
mais eficaz. Não é a correção de “assistir o espetáculo” por “assistir ao espetáculo” que vai fazer
o aluno escrever melhor. Um ensino eficaz de língua materna incorpora a bagagem cultural do
aluno, promovendo uma ampla prática de leitura e produção de textos nas mais variadas
situações de comunicação, desenvolvendo também sua capacidade de reconhecer os diversos
sentidos e valores ideológicos que a língua veicula em cada situação. Nesse ensino, é
imprescindível promover a consciência acerca da diversidade linguística como reflexo
inexorável da variedade cultural. E esta formação cidadã para o respeito à diferença não entra
em contradição com o ensino da norma culta, que deve permanecer. O que está em jogo, na
verdade, é a opção por um ensino discriminatório e arbitrário, baseado no preconceito e no
dogma, ou por um ensino crítico e pluralista, baseado no conhecimento científico acumulado
até os dias de hoje, como ocorre na física, na matemática, na geografia, etc. Por que se deve
privar os alunos do conhecimento científico da língua, reduzindo a disciplina língua portuguesa
a um mero curso de etiqueta gramatical?
Se o projeto purista venceu no século XIX, com as nefastas consequências que hoje se
descortinam, resta saber se, no limiar do século XXI, a sociedade brasileira perpetuará o velho
projeto arbitrário e conservador, ou encampará um projeto democrático e pluralista para o
ensino de língua portuguesa, em consonância com que o corre em outros planos da cultura.
Será que mais uma vez a língua restará isolada, como terreno do dogma e do preconceito?
QUEM É
Dante Lucchesi: Professor Associado de Língua Portuguesa da Universidade Federal da Bahia,
Pesquisador 1-C do CNPq, autor do livro Sistema, Mudança e Linguagem (Parábola,
2004), organizador do livro O Português Afro-Brasileiro (EDUFBA, 2009) e Coordenador
do Projeto Vertentes do Português Popular do Estado da Bahia
(http://www.vertentes.ufba.br/).
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Educação para o debate
Sérgio Fausto (IFHC ), 29 de maio de 2011
Disseram que o livro Por uma Vida Melhor estaria autorizando o desrespeito generalizado às
regras da concordância e abolindo a diferença entre o certo e o errado no emprego da língua
portuguesa. Tudo isso com o beneplácito do MEC.
A celeuma ganhou os jornais nas últimas semanas. Foi motivada por um trecho no qual se
afirma que o aluno pode dizer "os livro". Parece a senha para um vale-tudo na utilização da
língua. Não é, mas assim foi lido.
Não conheço a autora nem sou educador, embora vínculos de família me tenham feito conviver
com educadoras desde sempre. Escolhi comentar o caso não apenas porque se refere a um
tema importante, mas também porque exemplifica um fenômeno frequente no debate público.
Tão frequente quanto perigoso.
O procedimento consiste na desqualificação de ideias sem o mínimo esforço prévio de
compreendê-las. Funciona assim: diante de mero indício de convicções contrárias às minhas,
detectados em leitura de viés ou simples ouvir dizer, passo ao ataque para desmoralizar o
argumento em questão e os seus autores. É a técnica de atirar primeiro e perguntar depois. A
vítima é a qualidade do debate público.
Existem expressões, e mesmo palavras, que têm o condão de desencadear essa reação de
ataque reflexo. Há setores da opinião pública para os quais a simples menção à privatização é
motivo para levar a mão ao coldre. No caso em pauta, o gatilho da celeuma foi a expressão
"preconceito linguístico" para qualificar a atitude de quem estigmatiza o "falar errado" da
linguagem popular. Houve quem aventasse a hipótese de que o livro visasse à justificação
oficial dos erros gramaticais do ex-presidente Lula. Um despropósito.
Dei-me ao trabalho de ler o capítulo de onde foram extraídas as "provas" do suposto crime
contra a língua portuguesa. Chama-se Escrever é diferente de falar, título que já antecipa uma
preocupação com o bom emprego da língua no registro formal, típico da escrita. São algumas
páginas. Nada que um leitor treinado não possa enfrentar em cerca de 10 ou 15 minutos de
leitura atenta. Se a fizer sem prevenção, constatará que o livro não aceita a sobreposição da
linguagem oral sobre a linguagem escrita em qualquer circunstância, como chegou a ser escrito.
Ao contrário, no capítulo em questão, a autora busca justamente marcar a diferença entre a
norma culta, indispensável na escrita formal, e as variantes populares da língua, admissíveis na
linguagem oral. Não se exime ela do ensino das regras. Mas, em vez de recitá-las, vale-se da
técnica da reescrita. Há uma seção particularmente interessante sobre o uso da pontuação. Vale
a pena citar uma passagem: "(...) uma cuidadosa divisão em períodos é decisiva para a clareza
dos textos escritos. A língua oral conta com gestos, expressões, entonação de voz, enquanto a
língua escrita precisa contar com outros elementos. A pontuação é um deles".
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Noves fora um certo ranço ideológico, aqui e ali, o livro é de bom nível. Trabalho de gente séria,
que merece crédito. E um pouco mais de respeito. Fica o testemunho: a ONG responsável pela
obra tem entre seus dirigentes, se a memória não me trai, profissionais responsáveis, no
passado, por um dos melhores cursos de Educação para Jovens e Adultos da cidade de São
Paulo, o supletivo do Colégio Santa Cruz.
É justamente a esse público que o livro se dirige. Ele é formado por alunos que estão travando
contato com a norma culta da língua mais tarde em sua vida. Nesse contato tardio,
frequentemente se envergonham do seu falar. Emudecem. Reconhecer a legitimidade do
repertório linguístico que carregam é condição para que possam aprender. Não se trata de
proteger esse repertório das convenções da norma culta, para supostamente preservar a
autenticidade da linguagem popular. Isso, sim, seria celebração da ignorância. E populismo. O
livro não ingressa nesse terreno pantanoso.
O que está dito acima se aplica também às crianças quando iniciam o processo de alfabetização.
Sabe-se que o primeiro contato com a norma culta da língua é crucial para o desempenho
futuro do aluno como leitor e escritor. Sabe-se igualmente que a absorção da norma culta é um
longo processo. O maior risco é o de bloqueá-lo logo ao início, marcando com o estigma do
fracasso escolar os primeiros passos do aprendizado. No início dos anos 1980, mais de 60% dos
alunos eram reprovados na primeira série do ensino fundamental, o que se refletia em altas
taxas de evasão escolar. Embatucavam no contato com as primeiras letras (e as primeiras
operações aritméticas). Melhoramos desde então? Sim, as taxas de repetência, defasagem
idade/série e evasão escolar diminuíram. Parte da melhora se deve à adoção da progressão
continuada, outra presa fácil da distorção deliberada, pois passível de ser confundida com a
aprovação automática.
Não aprendemos, ainda, porém, como assegurar a qualidade desejada no aprendizado da
língua. Mas há sinais de vida. O desempenho dos alunos em Português vem melhorando, em
especial no primeiro ciclo do ensino fundamental, conforme indicam avaliações nacionais e
internacionais, ainda que mais lentamente do que seria desejável e necessário. A verdade é que
o desafio é enorme: não faz muitos anos que as portas da educação fundamental se abriram
para todos e a escola passou a ter de ensinar ao "filho do pobre" - dezenas de milhões de
crianças - a norma culta da língua, que seus pais não dominam.
Há muita discussão e aprendizado a serem feitos para vencer esse desafio. É ótimo que todos
queiram participar. Mas é preciso educar-se para o debate. Isso implica desde logo dar-se ao
trabalho de conhecer o tema em pauta e ter a disposição de entender o ponto de vista alheio
antes de desqualificá-lo. Sem querer ser pedante, é o que dizia Voltaire, séculos atrás: "Aprendi
a respeitar as ideias alheias, a compreender antes de discutir, a discutir antes de condenar".
Todo mundo ganha com isso.
QUEM É
Sérgio Fausto é DIRETOR EXECUTIVO DO IFHC, É MEMBRO DO GACINT-USP
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Alquimia poética e utopia
Silviano Santiago, 28/05/2011
São admiráveis estes quatro versos de Fernando Pessoa: "O poeta é um fingidor, / finge tão
completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente". O paradoxo desconfia
da lógica da razão e diz que, ao mascarar a dor autenticamente sentida com o fingimento
poético, a voz do poeta se cola à verdade. Esta não tem o percurso pavimentado pela
espontaneidade do sujeito e, sim, pela sua predisposição salutar ao fingimento retórico, que
escreve a boa poesia. Ao divergir do senso comum, o poeta distorce a emoção da dor sentida
para guardá-la no coração e fingi-la com letras na página em branco. Ali a sente mais
realisticamente, revela-a e a transmite ao leitor. Alquimia da arte.
O escritor modernista brasileiro também tem o fingimento como alicerce da poesia. No entanto,
de Fernando Pessoa se distancia por colocar como epicentro da escrita poética não a distorção
da dor sentida, mas a desconfiança em relação ao nível de exigência formal requerido do adulto
no uso da língua nacional e da linguagem poética. Em rebeldia contra o saber escolar que o
constituiu como cidadão e contra a tradição literária eurocêntrica que o constituía como artista
da palavra, o modernista finge observar o mundo com olhos de criança e finge imitá-la na
redação. Contraditória e autenticamente, estaria escrevendo poesia de e para cidadão adulto
brasileiro. Leia-se o livro Primeiro Caderno do Alumno de Poesia Oswald de Andrade (1927),
ou entenda-se a docência às avessas no poema 3 de Maio: "Aprendi com meu filho de dez anos /
Que a poesia é a descoberta / Das coisas que nunca vi".
Ao distorcer o saber proporcionado pela formação educacional em vigor e ao rejeitar o ouvido
poético afinado pela métrica e a rima, ao fingir-se de criança e escrever como ela, o poema
modernista se cola ao autenticamente pensado e vivido. O fingimento evita que a escrita
poética caia em outro e nefasto sistema de fingimento - o do artista comprometido com o
artesanato de ourives e o da retórica, com a estética parnasiana.
O caderno do aluno Oswald não se assemelha ao carnê em que o viajante europeu anotou
observações e pensamentos à espera da versão apurada e definitiva. Tampouco é metáfora para
versos que traduzem a experiência subjetiva da desigualdade negra sentida pelo martinicano
Aimé Césaire em terras metropolitanas (Cahier d"Un Retour au Pays Natal, 1939). O caderno
escolar de Oswald tem em comum com os dois exemplos o trato com o desconhecido, que se
expressa pelo desejo de "ver com olhos livres" e de sentir a "alegria dos que não sabem e
descobrem" (como está no Manifesto da poesia pau-brasil). Bem acabada, a linguagem poética
do caderno de Oswald é, no entanto, mal torneada por ser fingidamente inocente e ingênua,
decidida a desconcertar o leitor pela varinha de condão do humor e da surpresa. O poeta não
está onde você acredita que ele deveria estar.
O poema se arrisca quando acopla ao artista da palavra a voz crítica do intelectual. Unidos,
escancaram em escrita o jogo político-social e econômico dominante na jovem nação. O povo
brasileiro abre alas na poesia e pede passagem. Pelo seu tosco e autêntico modo de sentir e de
pensar e pelo seu linguajar precário, é semelhante à criança. Um denominador comum sela o
encontro - "a contribuição milionária de todos os erros". O dado e tido como certo para o Brasil
é errado. O dado e tido como errado é certo. O adulto poeta finge ser criança e o intelectual
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maduro finge ser povo. Ao apadrinhar (to patronise, em inglês) criança e povo, o poema se quer
força de resgate da nova geração e da nova cidadania. Desenha utopias verde-amarelas. O
paradoxo poético de Pessoa se expressa pelo erro correto, moeda que, desvalorizada pelo senso
comum europeizado, financia a futura e boa cidadania brasileira. Leia-se Pronominais: "Dê-me
um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro
e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um
cigarro".
No cenário poético da infância, Manuel Bandeira sobrepõe ao erro correto o sabor e o saber da
experiência proporcionada ao cidadão brasileiro pelo linguajar do povo. Lê-se na Evocação do
Recife: "A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na
língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do
Brasil". Na mesma cena infantil do sabor/saber popular, Carlos Drummond afina pelo afeto a
voz da empregada doméstica e, acertada e contraditoriamente, a situa em etnia e classe
diferentes. Leiamos trecho do poema intitulado Infância: "No meio-dia branco de luz uma voz
que aprendeu / A ninar nos longes da senzala - e nunca se esquece / Chamava para o café. /
Café preto que nem a preta velha / Café gostoso / Café bom".
Em todos os poemas citados a (quase total) ausência de pontuação reitera a necessidade de a
sintaxe modernista ser fonética. Em Pontuação e Poesia, Drummond observa: "A pontuação
regular, iluminando igualmente todos os ângulos da superfície poética, impede que se destaque
algum de seus acidentes mais característicos". Em outro texto da época, Drummond afirma que
"o preconceituoso procura o acessório, que não interessa e foi removido".
A alquimia poética do Modernismo é nitidamente pós-colonial, fingida e
realisticamente utópica. Deveria ter sido relegada à década de 1920 em
virtude das várias etapas de modernização política, social e econômica
por que passou a nação brasileira depois dos anos 1930. A polêmica em
torno do livro Por Uma Vida Melhor, de Heloísa Ramos, demonstra que,
no Brasil, a educação das massas ainda é uma utopia verde-amarela.
Diz o mundo e lamenta o projeto do pré-sal.
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Por que toda essa celeuma referente à inclusão de tópicos de
variação linguística em livro didático?
Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB)
Eu poderia, como Shakespeare, dizer que se trata de muito barulho por nada, mas prefiro me
ater a analisar o ‘barulho’. Nunca os órgãos de imprensa, inclusive os mais poderosos,
dedicaram tanto espaço para discutir um conteúdo de livro didático, como aconteceu nas
últimas semanas em relação ao tratamento de regras linguísticas variáveis em livro destinado à
educação de jovens e adultos. Não me deterei nos fatos, sobejamente conhecidos. Observo
apenas que, por um lado, tivemos jornalistas ilustres criticando veementemente o tratamento
que o livro deu às variantes de regras de concordância nominal e verbal, com o objetivo de
ensinar que há diferenças entre as modalidades oral e escrita da língua. Argumentavam os
jornalistas que a escola estaria fugindo a sua função precípua, que é ensinar alunos de todos os
estratos sociais a usar com competência a nossa língua materna. Gostaria de incluir aqui a
refutação a essa interpretação equivocada da imprensa, mas resisto à tentação e deixo isso para
um próximo texto.
Por outro lado, tivemos manifestações esmeradas de linguistas nacionais, inclusive da
Associação Brasileira de Linguística – ABRALIN, mostrando que toda a Linguística brasileira
está comprometida com o ensino competente da língua portuguesa nas escolas. Retomarei
também esse ponto em breve.
O que quero agora é refletir sobre o impacto que fatos, geralmente circunscritos à atenção
apenas de professores e dos responsáveis pelas políticas públicas de educação, tiveram sobre a
sociedade, a julgar pela importância que a grande imprensa lhes conferiu. É possível também
que, ao pautar a matéria, a mídia tivesse intenções políticas, mas deixo essa
análise aos especialistas em política. Restrinjo-me ao acervo de conhecimentos acumulados na
área de Sociolinguística, com os quais convivo há mais de 30 anos.
Um conceito seminal na Sociolinguística, que preside a toda a contribuição que essa disciplina
tem feito à Educação é o de competência comunicativa, avançado por Dell Hymes em 1967 e
retomado em 1972. Para sua postulação, esse sociolinguista de formação antropológica buscou
subsídios na teoria sintática de Noam Chomsky e na antropologia funcionalista de Ward H.
Goodenough [1] . Caudatária dessas duas influências, a competência comunicativa de Hymes
tem na adequação dos atos de fala seu principal componente, ou seja, um ato de fala é adequado
se atende às exigências do contexto em que é produzido e, principalmente, se leva em conta as
expectativas do ouvinte. Assim posta, a adequação que é parte essencial da competência
comunicativa emana diretamente da definição que Goodenough fornece para cultura: “a cultura
de uma sociedade consiste de tudo aquilo que as pessoas têm de conhecer e tudo em que têm
de acreditar a fim de operarem de uma maneira aceitável pelos membros dessa sociedade”. Ele
vai além, ao associar cultura aos modelos que as pessoas têm em mente para perceber,
relacionar e interpretar o que as cerca. A aceitabilidade, Goodenough enfatiza, depende ainda
em grande parte de critérios estéticos, que alguns cientistas denominam “elegância”.
A noção de aceitabilidade, coletiva, como propõe o antropólogo, nos ajuda muito a entender
como nas sociedades que desenvolveram a escrita, a literatura e as tecnologias elegem uma
determinada variedade linguística como a mais correta, mais lógica, mais desejável, em
detrimento das demais. Essa escolha não é aleatória, depende de fatores sócio-históricos e
está intimamente associada ao prestígio dos usuários de cada variedade.
No começo do século XX, o Círculo Linguístico de Praga dedicou atenção ao processo de
padronização das línguas, que as transforma em línguas nacionais de uso suprarregional.
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Enfatizava o Círculo dois componentes desse processo: a padronização, via elaboração de
gramáticas, construção de dicionários, fundação de academias de belas letras, e a legitimação,
que consiste no apreço que os falantes têm pela variedade padronizada e no valor que lhe
conferem.
No caso do nosso português, a variedade de prestígio, usada na literatura, na burocracia estatal
e no culto religioso, chegou nas caravelas. A língua lusitana já estava em processo de
padronização quando seus usuários chegaram ao Novo Mundo. Desde então, vem sendo
cultuada e reverenciada e se transformou no principal passaporte para a ascensão social em um
país de mestiços, ansiosos por se assemelharem aos europeus.
O que assistimos nas últimas semanas foi à manifestação desse apreço pela língua padronizada,
temperado pelo temor (naturalmente infundado) de que pudéssemos perder um patrimônio
linguístico cultivado nos cinco séculos de nossa curta história e nos séculos que a antecederam,
na Península Ibérica. Quando os jornalistas bradam contra a teoria sociolinguística que
recomenda a discussão na escola dos nossos modos de falar e de escrever, estão ecoando
valores muito arraigados. Nós, os sociolinguistas, que por obrigação de ofício, temos de nos ater
aos princípios em que nos formamos e nos deter em análises de cunho científico, devemos
encontrar o tom certo do discurso para explicar à sociedade e aos seus porta-vozes que nós
brasileiros somos uma comunidade de fala marcada por ampla heterogeneidade. Temos de
convencê-los de que a descrição da variação linguística ajuda a coibir a discriminação odiosa
contra os falantes das variedades de pouco prestígio e, mais que tudo, facilita, aos nossos
alunos, a aprendizagem dos modos prestigiosos de falar e de escrever indispensáveis à vida
urbana, plasmada pela cultura letrada.
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Desinformação e desrespeito na mídia brasileira
Por alguma razão escondida dentro de cada um de nós que escrevemos esse texto tivemos
como escolha profissional o ensino de língua (materna ou estrangeira). Por algum motivo
desconhecido, resolvemos abraçar uma das profissões mais mal pagas do nosso país. Não
quisemos nos tornar médicos, advogados ou jornalistas. Quisemos virar professores. E para
fazê-lo, tivemos que estudar.
Estudar, para alguém que quer ensinar, tem uma dimensão profunda. Foi estudando que
abandonamos muitas visões simplistas do mundo e muito dos nossos preconceitos.
Durante anos debatemos a condição da educação no Brasil; cotidianamente aprofundamo-nos
sobre a realidade do país e sobre uma das expressões culturais mais íntimas de seus
habitantes: a sua língua. Em várias dessas discussões utilizamos reportagens, notícias, ou fatos
trazidos pelos jornais.
Crescemos ouvindo que jovem não lê jornal e que a cada dia o brasileiro lê menos. A julgar por
nosso cotidiano, isso não é verdade. Tanto é que muitos de nós, já indignados com o tratamento
dado pelo Jornal Nacional à questão do material Por uma vida melhor, perdemos o domingo ao,
pela manhã, lermos as palavras de um dos mais respeitados jornalistas do país criticando, na
Folha de S. Paulo, a valorização dada pelo material ao ensino das diferentes possibilidades do
falar brasileiro. E ficamos ainda mais indignados durante a semana com tantas reportagens e
artigos de opinião cheios de ideias equivocadas, ofensivas, violentas e irresponsáveis. Lemos
textos assim também no Estado de São Paulo e nas revistas semanais Veja e IstoÉ.
Vimos o Jornal Nacional colocar uma das autoras do material em posição humilhante de ter que
se justificar por ter conseguido fazer uma transposição didática de um assunto já debatido há
tempos pelos grandes nomes da Linguística do país – nossos mestres, aliás. O jornalista Clovis
Rossi afirmou que a língua que ele julga correta é uma “evolução para que as pessoas pudessem
se comunicar de uma maneira que umas entendam perfeitamente as outras” e que os professores
têm o baixo salário justificado por “preguiça de ensinar”. Uma semana depois, vimos Amauri
Segalla e Bruna Cavalcanti narrarem um drama em que um aluno teria aprendido uma
construção errada de sua língua, e afirmarem que o material “vai condenar esses jovens a uma
escuridão cultural sem precedentes”. Também esses dois últimos jornalistas tentam negar a voz
contrária aos seus julgamentos, dizendo que pouquíssimos foram os que se manifestaram, e
que as ideias expressas no material podem ter sucesso somente entre alguns professores “mais
moderninhos”. Já no Estado de São Paulo vimos um economista fazendo represálias brutas a
esse material didático. Acreditamos que o senhor Sardenberg entenda muito sobre jornalismo e
economia, porém fica nítida a fragilidade de suas concepções sobre ensino da língua. A mesma
desinformação e irresponsabilidade revelou o cineasta Arnaldo Jabor, em seu violento
comentário na rádio CBN.
Ficamos todos perplexos pela falta de informação desses jornalistas, pela inversão de realidade
a que procederam, e, sobretudo, pelo preconceito que despejaram sem pudor sobre seus
espectadores, ouvintes e leitores, alimentando uma visão reduzida ao senso comum equivocado
quanto ao ensino da língua. A versão trazida pelos jornais sobre a defesa do "erro" em livros
didáticos, e mais especificamente no livro Por uma vida melhor, é uma ofensa a todo trabalho
desenvolvido pelos linguistas e educadores de nosso país no que diz respeito ao ensino de
Língua Portuguesa.
A pergunta inquietante que tivemos foi: será que esses jornalistas ao menos se deram o
trabalho de ler ou meramente consultar o referido livro didático antes de tornar públicas tão
caluniosas opiniões? Sabemos que não. Pois, se o tivessem feito, veriam que tal livro de forma
alguma defende o ato de falar "errado", mas sim busca desmistificar a noção de erro,
substituindo-a pela de adequação/inadequação. Isso porque, a Linguística, bem como qualquer
60
outra ciência humana, não pode admitir a superioridade de uma expressão cultural sobre outra.
Ao dizer que a população com baixo grau de escolaridade fala “errado”, o que está-se dizendo é
que a expressão cultural da maior parte da população brasileira é errada, ou inferior à das
classes dominantes. Isso não pode ser concebido, nem publicado deliberadamente como foi nos
meios de comunicação. É esse ensinamento básico que o material propõe, didaticamente, aos
alunos que participam da Educação de Jovens e Adultos. Mais apropriado, impossível. Paulo
Freire ficaria orgulhoso. Os jornalistas, porém, condenam.
Sabemos que os veículos de comunicação possuem uma influência poderosa sobre a visão de
mundo das pessoas, atuam como formadores de opinião, por isso consideramos um retrocesso
estigmatizar certos usos da língua e, com isso, o trabalho de profissionais que, todos os dias,
estão em sala de aula tentando ir além do que a mera repetição dos exercícios gramaticais
mecânicos, chamando atenção para o caráter multifacetado e plural do português brasileiro e
sua relação intrínseca com os mais diversos contextos sociais.
A preocupação dos senhores jornalistas, porém, ainda é comum. Na base de suas críticas
aparecem, sobretudo, o medo da escola não cumprir com seu papel de ensinar a norma culta
aos falantes. Entretanto, se tivessem lido o referido material, esse medo teria facilmente se
esvaído. Como todo linguista contemporâneo, os autores deixam claro, na página 12, que “Como
a linguagem possibilita acesso a muitas situações sociais, a escola deve se preocupar em
apresentar a norma culta aos estudantes, para que eles tenham mais uma variedade à sua
disposição, a fim de empregá-la quando for necessário”. Dessa forma, sem deixar de valorizar a
norma escrita culta – necessária para atuar nas esferas profissional e cultural, e logo,
determinante para a ascensão econômica e social de seus usuários, embora não suficiente – o
material consegue promover o debate sobre a diversidade linguística brasileira. Esse feito, do
ponto de vista de todos que produzimos e utilizamos materiais didáticos, é fundamental.
Sobre os conteúdos errôneos que foram publicados pelos jornais e revistas, foi possível ver que,
após uma semana, as respostas dadas pelos educadores, estudiosos da linguagem e, sobretudo,
da variação linguística, já foram bastante elucidativas para informar esses profissionais do
jornalismo. Infelizmente alguns jornalistas não os leram. Mas ainda dá tempo de aprender com
esses textos. Leiam as respostas de linguistas tais como Luis Carlos Cagliari, Marcos Bagno,
Carlos Alberto Faraco, Sírio Possenti, e de educadores tais como Maria Alice Setubal e Maurício
Ernica, entre outros, publicadas em diversas fontes, como elucidativas e representativas do que
temos a dizer. Aliás, muito nos orgulha a paciência desses autores – foram verdadeiras aulas
para alunos que parecem ter que começar do zero. Admirável foram essas respostas calmas,
respeitosas e informativas, verdadeiras lições de Linguística, de Educação - e de atitude cidadã,
diga-se de passagem - para “formadores de opinião” que, sem o domínio do assunto,
resolveram palpitar, julgar e até incriminar práticas e as ideias solidamente construídas em
pesquisas científicas sobre a língua ao longo de toda a vida acadêmica de vários intelectuais
brasileiros respeitados, ideias essas que começam, aos poucos, a chegar à realidade das escolas.
Ao final de anos de luta para podermos virar professores, ao invés de vermos nossos
pensadores, acadêmicos, e professores valorizados, vimos a humilhação violenta que eles
sofreram. Vimos, com isso, a humilhação que a academia e que os estudos sérios e profundos
podem sofrer pela mídia desavisada (ou maldosa). O poder da mídia foi assustador. Para os
alunos mais dispersos, algumas concepções que levaram anos para serem construídas foram
quebradas em instantes. Felizmente, esses são poucos. Para grande parte de nossos colegas
estudantes de Letras o que aconteceu foi um descontentamento geral e uma descrença coletiva
nos meios de comunicação.
A descrença na profissão de professor, que era a mais provável de ocorrer após tamanha
violência e irresponsabilidade da mídia, essa não aconteceu – somente por conta daquele nosso
motivo interno ao qual nos referimos antes. Nossa crença de que a educação é a solução de
muitos problemas – como esse, por exemplo – e que é uma das profissões mais satisfatórias do
61
mundo continua firme. Sabemos que vamos receber baixos salários, que nossa rotina será mais
complicada do que a de muitos outros profissionais, e de todas as outras dificuldades que todos
sabem que um professor enfrenta. O que não sabíamos é que não tínhamos o apoio da mídia, e
que, pior que isso, ela se voltaria contra nós, dizendo que o baixo salário está justificado, e que
não podemos reclamar porque não cumprimos nosso dever direito.
Gostaríamos de deixar claro que não, ensinar gramática tradicional não é difícil. Não temos
preguiça disso. Facilmente podemos ler a respeito da questão da colocação pronominal, passar
na lousa como os pronomes devem ser usados e dizer para o aluno que está errado dizer “me
dá uma borracha”. Isso é muito simples de fazer. Tão simples que os senhores jornalistas, que
não são professores, já corrigiram o material Por uma vida melhor sobre a questão do plural dos
substantivos. Não precisa ser professor para fazer isso. Dizer o que está errado, aliás, é o que
muitos fazem de melhor.
Difícil, sabemos, é ter professores formados para conseguir promover, simultaneamente, o
debate e o ensino do uso dos diversos recursos linguísticos e expressivos do português
brasileiro que sejam adequados às diferentes situações de comunicação e próprios dos
inúmeros gêneros do discurso orais e escritos que utilizamos. Esse professor deve ter muito
conhecimento sobre a linguagem e sobre a língua, nas suas dimensões linguísticas, textuais e
discursivas, sobre o povo que a usa, sobre as diferentes regiões do nosso país, e sobre as
relações intrínsecas entre linguagem e cultura.
Esse professor deve ter a cabeça aberta o suficiente para saber que nenhuma forma de usar a
língua é “superior” a outra, mas que há situações que exigem uma aproximação maior da norma
culta e outras em que isso não é necessário; que o “correto” não é falar apenas como paulistas e
cariocas, usando o globês; que nenhum aluno pode sair da escola achando que fala “melhor” que
outro, mas sim ciente da necessidade de escolher a forma mais adequada de usar a língua
conforme exige a situação e, é claro, com o domínio da norma culta para as ocasiões em que ela
é requerida. Esse professor tem que ter noções sobre identidade e alteridade, tem que valorizar
o outro, a diferença, e respeitar o que conhece e o que não conhece.
Também esse professor tem que ter muito orgulho de ser brasileiro: é ele que vai dizer ao
garoto, ao ensinar o uso adequado da língua nas situações formais e públicas de comunicação,
que não é porque a mãe desse garoto não usa esse tipo de variedade lingüística, a norma culta,
não conjuga os verbos, nem usa o plural de acordo com uma gramática pautada no português
europeu, que ela é ignorante ou não sabe pensar. Ele vai dizer ao garoto que ele não precisa se
envergonhar de sua mãe só porque aprendeu outras formas de usar o português na escola, e ela
não. Ele vai ensinar o garoto a valorizar os falares regionais, e ser orgulhoso de sua família, de
sua cultura, de sua região de origem, de seu país e das diferenças que existem dentro dele e, ao
mesmo tempo, a ampliar, pelo domínio da norma culta, as suas possibilidades de participação
na sociedade e na cultura letrada. O Brasil precisa justamente desse professor que esses
jornalistas tanto incriminaram.
Formar um professor com esse potencial é o que fazem muitos dos intelectuais que foram
ofendidos. Para eles, pedimos que esses jornalistas se desculpem. E os agradeçam. E, sobretudo,
antes de os julgarem novamente, leiam suas publicações. Ironicamente, pedimos para a mídia
se informar.
Nós somos a primeira turma a entrar no mercado de trabalho após esse triste ocorrido da
imprensa. Somos muito conscientes da luta que temos pela frente e das possibilidades de
mudança que nosso trabalho promove. Para isso, estudamos e trabalhamos duro durante anos.
A nós, pedimos também que se desculpem. E esperamos que um dia possam nos agradecer.
Reafirmamos a necessidade de os veículos de comunicação respeitarem os nossos objetos de
estudo e trabalho — a linguagem e o língua portuguesa usada no Brasil —, pois muitos
estudantes e profissionais de outras áreas podem não perceber tamanha desinformação e
manipulação irresponsável de informação, e podem vir a reproduzir tais concepções simplistas
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e equivocadas sobre a realidade da língua em uso, fomentando com isso preconceitos difíceis
de serem extintos.
Sabemos que sozinhos os professores não mudam o mundo. Como disse a Professora Amanda
Gurgel, em audiência pública no Rio Grande do Norte, não podemos salvar o país apenas com
um giz e uma lousa. Precisamos de ajuda. Uma das maiores ajudas com as quais contamos é a
dos jornalistas. Pedimos que procurem conhecer as teorias atuais da Educação, do ensino de
língua portuguesa e da prática que vem sendo proposta cotidianamente no Brasil. Pedimos que
leiam muito, informem-se. Visitem escolas públicas e particulares antes de se proporem a
emitir opinião sobre o que deve ser feito lá. Promovam acima de tudo o debate de ideias e não
procedam à condenação sumária de autores e obras que mal leram. Critiquem as assessorias
internacionais que são contratadas reiteradamente. Incentivem o profissional da educação. E
nunca mais tratem os professores como trataram dessa vez. O poder de vocês é muito grande –
a responsabilidade para usá-lo deve ser também.
Alecsandro Diniz Garcia, Ana Amália Alves da Silva, Ana Lúcia Ferreira
Alves, Anderson Mizael, Jeferson Cipriano de Araújo, Laerte Centini Neto,
Larissa Arrais, Larissa C. Martins, Laura Baggio, Lívia Oyagi, Lucas Grosso,
Maria Laura Gándara Junqueira Parreira, Maria Vitória Paula Munhoz,
Nathalia Melati, Nayara Moreira Santos, Sabrina Alvarenga de Souza e
Yuki Agari Jorgensen Ramos – formandos 2011 em Letras da PUC-SP,
futuros professores de Língua Portuguesa e Língua Inglesa.
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Um Elogio AO ERRO (Entre aspas)
Arnaldo Bloch e Hugo Sukman, 28/05/2011
Na literatura, na linguística, na pedagogia, no teatro, na música, no latim, na Bíblia,
normas culta e inculta, faladas e escritas, já fizeram as pazes há muito tempo.
A questão já estava resolvida pela literatura, pelo povo e pela ciência linguística. De repente,
chegou o famigerado LIVRO DO MEC (“Por uma vida melhor”, para turmas de alunos jovens e
adultos que retornam à sala de aula) e acordou o fantasma adormecido. Sua autora, Heloísa
Ramos, usou um approach (como se diz em português...) ideológico e exemplos antiestéticos
para, contudo, apenas repetir o consagrado e ululante: há diferenças entre a língua falada e a
língua escrita; ambas se intercomunicam, negam-se ou convergem; essa dinâmica se reflete na
vida em sociedade; o errado de hoje pode ser o certo de amanhã; não é proibido pelo Código
Penal falar ou escrever o que quer que seja; mas há uma norma culta a seguir, cujos efeitos para
quem não a conhece nem utiliza podem ser fatais numa entrevista de emprego, numa prova, na
vida.
Isso em alguns parágrafos. Pois, no restante, dedica-se a ensinar que, em sala de aula, a norma
culta é a norma e ponto final. Sociolinguistas como Sílvio Possenti, da Unicamp, consideram o
livro até conservador por insistir demais nisso. No Manifesto Pau Brasil, de 1922, marco do
modernismo, Oswald de Andrade proclama: “Uma língua sem arcaísmos, sem erudição.
Natural e neológica.
A contribuição milionária de todos os erros”. O modernismo, aliás, do qual NELSON
RODRIGUES é um prócer, é isso: a incorporação do atual, do cotidiano, da fala da rua. Nessa
linha Nelson explicava o porquê da modernidade da peça “Vestido de noiva” .
'Meu teatro trouxe a língua da rua, do botequim para os palcos até então lisboetas do
Brasil' Isso, no nosso mundo neolatino, vem pelo menos desde São Jerônimo, com a sua
Vulgata, a primeira versão em latim da Bíblia, que usa o falar cotidiano de Roma e das
províncias latinizadas, pois ninguém entendia o latim culto, elegante, de Cícero. Nesse processo,
o bom Jerônimo é obrigado a criar, na língua escrita, cerca de 600 neologismos no livro que
seria base não apenas da propagação da fé cristã (antes coisa de doutor) como de todas as
línguas neolatinas. A Bíblia de Gutenberg é uma versão revisada da Vulgata. Ou seja, as línguas
neolatinas — como o português — já são degenerescências do latim, são latim “errado”, línguas
do vulgo, da gentalha, da ralé. O que não é nenhuma vergonha, muito pelo contrário: é motivo
de orgulho! Pelo menos para o velho BILAC, o Olavo: o homem que de trato tão refinado com a
língua invejava o ourives quando escrevia:
'Última flor do Lácio, inculta e bela' Dissecando o citadíssimo verso de Bilac: “Última”, a mais
jovem (rebelde?) ou mais remota (a mais distante do Lácio, rumo ao Ocidente, a partir de
Portugal e derraman-se literalmente no mar); “flor do Lácio”, a filha bastarda, degenerada, do
latim; “inculta”, popular, torta, vadia por natureza; e, mesmo assim, ou pour cause, bela. Como
uma língua definida dessa forma pelo seu esteta supremo, severo devoto do Parnaso, pode
almejar ou mesmo admitir ser dominada apenas por uma norma culta? Nessa esteira, os
paradoxos vão desfilando com um jeito de piada, num cordel surrealista.
Machado de Assis, por exemplo, usa “o pessoal gostaram”. Está na norma culta, mas, por soar
errado, não faltarão pretensiosos desavisados achando que é erro. A literatura e a música
brasileiras sempre trataram essa questão de maneira rica e divertida, com toda a delicadeza
que a língua portuguesa, nossa pátria (no grande achado de Pessoa), merece. Nessa seara, o
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Brasil já resolveu esse dilema entre a norma culta e as variantes há tempos. NOEL ROSA
ensinou: 'Mulata vou contá as minhas mágoa/Meu amô não tem erre/Mas é amô debaixo
d’água'
As críticas ao livro e a reação às críticas ressuscitaram uma dicotomia certo errado que já
estava enterrada também pela pedagogia: há 150 anos praticamente toda ela, de Piaget a
Freinet ou Paulo Freire, gira em torno da ideia de que não se podem desprezar os saberes de
cada indivíduo que entra em sala de aula. O analfabeto no caixa do armazém pode não ter ido à
escola, não saber escrever, mas ele se comunica. E seguramente sabe matemática. Isso não pode
ser desprezado, como se ele estivesse começando do zero. E certas particularidades de seu
raciocínio adquirido no armazém serão, eventualmente, também aprendidas pelo professor e
compartilhadas. PAULO FREIRE, o educador por excelência, dizia: 'Um mestre é aquela
pessoa que, de repente, aprende'
O debate que envolve, além dos jornais e dos linguistas, também juristas, políticos e artistas
ampliou-se, mas deixou a impressão de que se resumiu aos espectros esquerdadireita/ pobresricos/elites-povo, noção já superada há muito tempo pelos mais aguerridos defensores da
língua. O modernista de direita MANUEL BANDEIRA, por exemplo, exalta todas as palavras,
“sobretudo os barbarismos universais”, enquanto o modernista de esquerda OSWALD DE
ANDRADE observa: 'Dê-me um cigarro, diz a gramática/do professor e do aluno/e do
mulato
sabido/mas o bom negro e o bom branco/da nação brasileira/dizem todos os dias/deixa
disso,camarada/me dá um cigarro'
O grande CARTOLA foi até ridicularizado quando escreveu, no lindo samba “Fiz por você o que
pude”:
'Perdoa me a comparação/Mas fiz uma transfusão/Eis que Jesus me premeia/Surge
outro compositor/Jovem de grande valor/Com o mesmo
sangue na veia' O premeia, no lugar do convencional “premia”, era um artifício do poeta para a
rima com veia, claro. Mas o compositor que escrevia versos como “queixo-me às rosas” (com
todas as ênclises e crases devidas) foi contrariado pelos cultos de plantão. Ele insistia, contudo,
no premeia, dizendo que estava certo, e assim gravou e consagrou a música, para deboche geral
em relação ao “erro”. E não é que mais tarde estudiosos encontram o premeia em texto de
ninguém menos do que PADRE ANTÓNIO VIEIRA, um dos maiores criadores da língua
portuguesa?
'Assim castiga, ou premeia Deus'
Na última mudança ortográfica a palavra consta com essa variante, por ser usada em vários
países que falam a língua de Camões. Ou seja, tentaram usar a norma culta para mudar Cartola,
mas seu verso sobreviveu, corroborado por Vieira e pela língua falada. É claro que a norma
culta confere poder e deve ser “distribuída” democraticamente para que todos tenham as
mesmas oportunidades. Mas, a depender de como isso é feito e de o quanto se têm em conta os
diversos falares, os efeitos colaterais podem ser graves e derivar para uma Síndrome de LADY
KATE, personagem interpretada pela genial Katiuscia Canoro: na certeza de “falar errado”, ela
tenta falar certo e acaba misturando os canais. O resultado é o bordão:
'Grana eu tenho, só me falta-me o glamour'
As histórias “bem contadas” que o cineasta Eduardo Coutinho foi buscar no sertão paraibano
para fazer “O fim e o princípio” (2005) são narrativas de velhos analfabetos, bem construídas e
até cultas (no sentido não só de seguir regras análogas à norma, mas da harmonia advinda da
invenção poética da tradição oral). Além disso, a não consciência do erro e o isolamento dos
meios urbanos “educados” produzem, nesses indivíduos, uma verve e uma segurança que
afetam a expressividade do discurso. Em contrapartida, tem muito bacharel por aí (ops,
Drummond, tinha uma pedra no meio do caminho...), que, do alto de seu nível superior, fala
português confuso, escreve errado e tem dificuldades de compreender um raciocínio mais
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complexo. Alheio a isso, desde o século retrasado o povo brasileiro resiste a fazer o plural
aparentemente correto para o “real” quando ele é moeda. Antes era o mil “réis”, e agora o dez
real, o cem real, assim mesmo, sem concordância. O real, para o brasileiro, só é plural quando
significa novas realidades possíveis, realidades alternativas, reais, enfim.
Afinal, como dizia GUIMARÃES ROSA, que inventou o que já fora desinventado,
'O senhor sabe: pão ou pães é uma questão de opiniães.'
Nessa discussão puramente ideológica, desconfiou-se de que o MEC quisesse impingir aos
pobres alunos uma gramática, digamos, lulista. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
decerto é um grande e inventivo orador, não há dúvida, e na sua fala até resgata vocábulos
populares esquecidos, como maracutaia. Isso, é claro, não dá direito a Lula de menosprezar a
educação formal, como fez (e faz) diversas vezes. Mas seus “erros” de português
também não dão aos seus detratores o argumento para desqualificação do seu discurso. O
medo do vulgar e do errado mesmo quando ele é porta-voz de boa expressão tem na anedota
que segue uma mostra de como pode atingir e devastar mesmo o texto correto. Pois consta que
uma das esposas de VINICIUS DE MORAIS implicou com os “beijinhos” e os “peixinhos” de
“Chega de saudade”, achando-os por demais pedestres. “Pô, Vinicius, beijinho e peixinho é
demais...” Um dos maiores sonetistas da língua brasileira se deu ao trabalho de responder à
patrulha:
— Ah, deixa de ser sofisticada... Resultado: nasceu uma peça revolucionária, das mais radicais
da arte brasileira, transformadora de toda a forma de fazer letra e música, sem deixar de ser
extremamente popular, no sentido da criação e no da difusão. A vulgar “Chega de saudade” é
hoje um clássico. Vejam que coisa.
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Quem deve discutir língua é linguista!
Clarice Assalim, 02/06/2011
Você já ouviu um biólogo dizer que uma maçã está errada, ou um astrônomo dizer que o sol não
existe? Mas já ouviu que determinada forma de falar está errada, ou não existe, mesmo que
você já a tenha lido e ouvido várias vezes. Sol e maçãs existem, mesmo eu não gostando deles.
Então não tomo sol e como outras frutas, mas não posso julgar aqueles que se bronzeiam ou
comem maçãs!
O mesmo se dá com os fatos linguísticos. "Nóis pega o pexe" é um fato, goste dele ou não. Como
qualquer cientista, um linguista jamais dirá que um fato é errado ou feio.
A imprensa tem feito verdadeiro estardalhaço a respeito do livro Por uma Vida Melhor,
indicado pelo Programa Nacional do Livro Didático. Jornais e revistas de circulação nacional se
manifestaram contra o livro (e, por extensão, contra o MEC e o ministro Haddad), abrindo
espaço para a opinião de vários ‘especialistas': integrantes da ABL, jornalistas, escritores,
autores de manuais de redação e estilo... Curiosamente, nenhum linguista foi chamado por
esses mesmos canais de comunicação para dizer o que pensa. O livro de Heloísa Ramos, isento
de preconceitos, descreve maneira de falar que permite aos estudantes oriundos das ‘classes
populares' se reconhecerem no material didático e perceberem que o modo como falam não é
errado ou feio, mas diferente daquilo que a tradição normativa tenta preservar.
Em nenhum momento a autora propõe que se saia falando "nóis pega o
pexe". O que ela faz, com muita lucidez, é defender o respeito à
variedade linguística, deixando claro que o falante tem o direito de,
conhecendo as várias formas de manifestação linguística, escolher a
que achar mais adequada a determinada situação, arcando com os
julgamentos sociais que isso acarreta.
Ela, como nós, jamais defendeu a ideia de que os usuários das variedades linguísticas
estigmatizadas continuem excluídos do acesso às variedades cultas; ao contrário, todos
concordamos que a escola tem o dever de inserir o estudante no mundo da cultura letrada e
dos discursos que ela aciona. A escola precisa ensinar aquilo que ele não sabe, mas não pode
desprezar o que ele conhece e, às vezes, prefere. É por isso que, apesar de não gostar, eu sei que
sol e maçãs fazem bem à saúde. Os cientistas, via escola, me ensinaram isso. Então, quando
preciso e quero tomar sol ou comer maças, sei como, onde, quando e por que fazê-lo.
QUEM É
Clarice Assalim é doutora em Filologia e Linguística Histórica e docente do Centro Universitário
Fundação Santo André.
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Tempestade em copo d´água
Luiz Costa Pereira Junior
Revista Língua Portuguesa, Junho/2011
Polêmica com livro didático mostra que há muito chão até que a
linguagem deixe de ser vista apenas como instrumento de distinção
social.
O governo federal descartou o recolhimento do livro didático Por uma Vida Melhor das 4.236
escolas públicas de educação para jovens e adultos que o receberam este ano. A medida é uma
resposta ao mal-entendido ocorrido no mês passado, que fez da obra o pivô de um debate
sobre o ensino das variedades do idioma adequadas a cada situação comunicativa.
Evidentemente que não [será recolhido]. Já foi esclarecido que as pessoas que acusaram esse
livro não o tinham lido - afirma à Língua o ministro da Educação Fernando Haddad.
O alarde foi provocado por uma reportagem de um portal da internet, no começo de maio, que
ganhou repercussão "vital" e atingiu até o Jornal Nacional, da rede Globo. A tônica em todos os
meios foi uma só: o Programa Nacional do Livro Didático, do MEC, teria distribuído a cerca de
485 mil estudantes uma publicação que faz a defesa da variante popular, e incorreta, do idioma.
A polêmica com o livro da coleção "Viver, aprender", organizado pela ONG Ação Educativa e
publicado pela editora Global, destacou trechos de uma única página:
"Posso falar 'os livro'! Claro que pode, mas dependendo da situação, a pessoa pode ser vítima
de preconceito linguístico".
Foi o bastante para uma saraivada de ataques de diversos setores, da Academia Brasileira de
Letras a ex-ministros da Educação, políticos da oposição e editoriais de grandes veículos.
O copo d'água ganhava sua tempestade.
Adequação
O livro de Heloisa Ramos, Cláudio Bazzoni e Mirella Laruccia Cleto defende o uso da norma
culta, nas situações em que ela seja exigida, e de outras variantes, até da popular, de acordo
com seu contexto específico. Língua teve acesso à obra e constatou que ela não diz que é
correto falar errado, como foi propagado, mas que cada padrão exigido numa situação
comunicativa tem formas adequadas e inadequadas de expressão do idioma.
- Quando há conhecimento das muitas variedades da língua, é possível escolher a que melhor se
encaixa ao contexto. Não se aprende a norma de prestígio decorando regras ou procurando
significado de palavras no dicionário, mas praticando-a constante e intensamente - afirma.
Parâmetros
A obra foi destinada a 4,2 milhões de adultos e jovens em alfabetização, uma parcela dos 31
milhões de alunos do ensino fundamental, segundo o censo escolar 2010.
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Um aluno com características próprias, a que se deve ensinar o padrão do idioma sem
intimidar, esclarece Vera Masagão, coordenadora executiva da Ação Educativa.
- Acreditamos que, se o aluno toma consciência do modo como ele fala, tem melhores
condições de se apropriar da regra e usá-Ia quando for apropriado. Talvez, quando for falar
com seus avós lá na roça, não precisará flexionar todas as palavras, mas quando for pedir um
emprego, deverá se esforçar para falar de acordo com a norma, para mostrar ao empregador
que a domina.
Pela primeira vez neste ano, esses alunos de EJA (educação de jovens e adultos) receberam
obras do PNLD. Com o programa, o MEC submete livros didá ticos a especialistas e só então
oferece os títulos selecionados a professores e secretarias de Educação, para que façam suas
escolhas. – Maria José Foltran, presidente da Abralin (Associação Brasileira de Linguística),
divulgou nota pública em que considera o caso como marcado por posicionamentos
"virulentos" e "até histéricos", apesar de o livro seguir os PCNs (Parâmetros Curriculares
Nacionais), de 1997.
- Não somente este, mas outros livros didáticos englobam a discussão da variação linguística
com o intuito de ressaltar o papel e a importância da norma culta no mundo letrado. Portanto,
em nenhum momento houve ou há a defesa de que a norma culta não deva ser ensinada.
Para ela, o fato de o aprendizado ser ou não bem-sucedido não se deve ao ensino de variedades
linguísticas.
- O uso de formas linguísticas de menor prestígio não é indício de ignorância ou de qualquer
outro atributo que queiramos impingir aos que falam desse ou daquele modo. A ignorância não
está ligada às formas de falar ou ao nível de letramento.
Contexto
Um dos desafios do aprendizado de português tem sido a dificuldade de saber qual linguagem
usar em determinadas situações e de identificar os diferentes níveis de formalidade, que por
sua vez exigem usos específicos do idioma. As pessoas saem da escola sem saber interpretar
textos e sem jogo de cintura para expressar-se fora das situações a que estão acostumadas. Isso
acontece não só porque a escola ensina mal o padrão, dizem os linguistas. Mas porque o padrão
é ensinado como se fosse uma verdade inabalável.
A noção de erro, assim, ganha outra dimensão. É antes usar uma variedade em vez de outra
numa situação de comunicação em que a coletividade envolvida desaprova. É usar uma
construção sintática que não soaria natural ao idioma ou não seria entendida. Uma dada forma
tem regularidade na língua porque adequada à transmissão de uma informação específica num
dado contexto. Daí surgirem as regras de uso para cada ocasião. O erro é sempre social e
relacionado a quem se destina a mensagem.
Para o linguista Sírio Possenti, professor da Unicamp e colunista de Língua, a celeu-ma com o
livro foi fruto da descontextualização. Uma página da obra teria sido "sistematicamente mal
lida" pelos comentaristas.
- O problema foi destacar trechos isolados do livro e dar-lhes uma interpretação que pode até
ser considerada possível, mas não cabia, considerado o texto inteiro – diz.
Repercussão
Duas passagens foram alvo dessa estratégia, afirma o linguista. Uma foi aquela em que o livro
responde "pode" à pergunta se se pode dizer "Os menino pegam o peixe".
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- "Pode" foi lida como se a forma devesseser ensinada na escola (quando é apenas apresentada
e analisada brevemente na obra); poderia ser lida como uma constatação (se os autores
escrevessem "muitos dizem" talvez o livro não tivesse sido lido tão grosseiramente); além do
mais, está escrito que a escola deve ensinar a norma culta: essa passagem às vezes foi
"esquecida" pela imprensa - responde Possenti.
O outro trecho que provocou confusão, aponta o professor, foi o aviso de que, dependendo da
circunstância, poderia ser objeto de preconceito.
- O trecho foi lido como uma defesado "erro". Mas toda essa grita mostra que há mesmo
preconceito ...
O linguista divertiu-se com muitas declarações de quem viu no livro uma defesa do erro. Vários
analistas, diz Possenti, produziram formas que condenariam, como "Quando eu tava na escola";
"A língua é onde nos une" e "Onde fica as leis de concordância?".
- Uma leitura mais desapaixonada por parte dos leigos em linguística (ou uma leitura técnica de
especialistas) mostraria que o livro trata só da comparação entre duas formas, uma padrão e
outra popular, de concordância de gênero e de verbo com sujeito. Um fato absolutamente banal
e corriqueiro - afirma ele.
O gramático Ataliba de Castilho, da USP, diz que leituras desfocadas são
comuns ante obras do gênero.
- Outro dia li na internet um cara me desancando porque em minha Nova Gramática do
Português Brasileiro menciono a variante popular, e o cara entendeu que eu estava dizendo que
tudo aquilo
agora é "norma" – lembra.
Abordagem
Ataliba considera que, dada a facilidade com que o tema tende a ser mal-interpretado, os
linguistas devem redobrar o cuidado na abordagem.
- Talvez a confusão venha do uso, por linguistas, da expressão "norma vernácula", para remeter
à língua familiar, não interessando qual o nível sociocultural da família. Como entre nós
"norma"
tem um sentido muito preciso, arma-se a confusão. Que terá suas vantagens, pois será sempre
oportunidade para esclarecer as coisas – diz.
Se quisessem blindar o livro de ataques abaixo da cintura, os autores nem teriam tanto trabalho
para reformular a redação, avaliam os especialistas. A resposta à pergunta "Mas posso dizer 'os
livro'?" poderia não ser "É claro que pode", mas "Pode, dependendo do tipo de texto que você
estiver escrevendo". Do jeito que está a resposta, se tirada do contexto (como foi), pode-se
inferir que os autores dizem que a exigência da norma culta é sempre preconceituosa, o que
não é verdade nem foi escrito.
Contra a ignorância e o mal-entendido, todo cuidado é pouco.
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Última flor do laço
Ricardo Semler, 06/06/2011
Exigir o domínio da língua culta, desenvolvida por, e para, as elites, é fator formador de castas
NA EXPOSIÇÃO "6 Bilhões de Outros", no Masp, em São Paulo, há o depoimento de um soldado
americano, que passou semanas conversando com dois afegãos, pai e filho -sem idioma comum,
mas com alta compreensão mútua.
Na moral -sabe q tem dicionário irado com essas parada aí neles- demorô! "Irado" e "demorô"
constam do Caldas Aulete. E tá prvdo q n prcsa de tds as ltrs pa entdr qq frse.
Conclui-se que a questão antropológica de comunicação não está em jogo quando um livro,
como o "Por uma Vida Melhor", é assediado pelo patrulhamento multi-ideológico.
Evanildo Bechara, da embolorada ABL, defende, na "Veja", que a norma culta da língua continue
cobrando pedágio de acesso ao mundo superior. Sem dúvida, negar o aprendizado da língua
culta é inaceitável.
Caberia só discutir o que é suficiente.
Convém lembrar que a quantidade de unidades lexicais do português demandaria o
aprendizado de 350 delas por dia letivo, por cinco anos -são 350 mil no total !
Por outro lado, exigir o domínio da língua culta, desenvolvida a esse alto nível por, e para, as
elites, é fator formador de castas. É assim na Inglaterra, onde o "Queen's English" é ensinado
nos internatos, na Alemanha, com seu "Hoch Deutsch" e, naturalmente, na Índia, onde só os
brâmanes "falam direito".
É só observar como os médicos se protegem com um linguajar intransponível, os advogados
começam frases com "priscas eras" e os engenheiros falam em "senoidal" para descrever um
arco. Ninguém penetra nesses clubinhos sem passar na prova de compatibilidade tribal -e tem
elitismo sim.
Li o livro aprovado pelo MEC e o achei bom-que exista e seja
distribuído. Os alunos contemporâneos têm que discutir como se faz a
adaptação de uma linguagem para que seja acessível e democrática,
como os EUA fizeram com o inglês, que tem apenas 25 mil palavras
cotidianamente usadas, contra 49 mil empregadas na Inglaterra.
O livro "Por uma Vida Melhor" aceita a concordância "errada", mas
defende a norma culta e explica que o significado é compreensível
mesmo com "equívocos".
Se nóis falemo errado, não é só questão de exigir melhores professores e policiamento
intelectual; é também preciso reduzir as regras e as complicações para flexibilizar a língua. Isso
permitiria maior acesso às profissões, bem como ascensão social, sem o preconceito do uso da
linguagem exata.
Em vez de ficar em mãos de eruditos empoeirados, as novas normas linguísticas deveriam ser
editadas por comissões paritárias do país.
Nada impede que os interessados continuem levando as preciosidades a patamares olímpicos,
como forma de arte ou mesmo por masturbação mental.
O Mussolini era torcedor da Lazio, que é a região da Itália de onde saiu a última flor do latim a
que o Bilac se refere, o português.
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Como sabemos desde Mussolini e Stálin, sabedoria e norma culta não têm quase nada em
comum. Isso seria bem lembrado nos chás das academias de vosmecês.
QUEM É
RICARDO SEMLER, 51, é empresário. Foi scholar da Harvard Law School e professor de MBA no MIT, ambos nos
EUA. Escreveu dois livros ("Virando a Própria Mesa" e "Você Está Louco") que venderam juntos 2 milhões de
cópias em 34 línguas.
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Língua, que bicho é esse?
Livia Perozim, 03/06/2011
Pesquisador da Unicamp Sírio Possenti explica as diferenças entre variação linguística e
gramática que geram tantas polêmicas
Mais uma vez um livro didático causa polêmica. Em maio, a mídia reverberou, acriticamente,
que o Ministério da Educação orientava os alunos “a falar errado” (detalhes do imbróglio aqui).
A confusão não é recente: linguistas e normatistas têm querelas antigas. Quem está certo?
Como fica o ensino da língua portuguesa diante do fato de que uns consideram errado o que
outros consideram correto? Nesta entrevista, feita por e-mail, o professor do departamento de
linguística da Unicamp esclarece algumas dúvidas sobre as diferenças entre a variação
linguística e a gramática, explica como as línguas se organizam e provoca: “O que consolida o
desconhecimento da norma culta é continuar fazendo o que se faz, considerar ‘errados’ os que
só falam diferente, ensinar uma gramática precária”.
Carta Fundamental: Em maio, a mídia condenou o livro Por Uma Vida Melhor, seus autores e o
próprio ministério por admitirem o “português errado”, sob o pretexto de alertar para o
“preconceito linguístico”. No seu entendimento, tal conclusão é correta?
Sírio Possenti: O preconceito linguístico consistiria em discriminar alguém pelo fato de falar de
maneira diferente. Pode acontecer em situações diversas. Por exemplo, não contratar um
trabalhador pelo fato de ele ter um sotaque marcado – do interior paulista ou baiano, por
exemplo – ou porque não usa variantes sintáticas cultas, mas apenas as populares (empregar
concordâncias verbais ou nominais como “eles foi” ou “10 real”). Sendo bem conservador, diria
que, em certos casos, uma decisão como essa seria mais compreensível do que em outros. Acho
o fim do mundo que um contador ou um trabalhador braçal seja dispensado por tais critérios,
mas compreenderia que uma empresa regional preferisse “relações-públicas” que se
caracterizassem como “do lugar”. A questão pode ser diferente também na escola. Não se pode
exigir nos primeiros anos de falantes oriundos de grupos populares que dominem formas de
falar com as quais têm pouquíssimo contato e, principalmente, que dominem a escrita-padrão.
Mas, se a escola for competente e os alunos tiverem interesse, deve-se exigir progressivamente
o domínio do padrão. Uma pessoa pode ser vítima de preconceito também por razões
“teóricas”. Por exemplo, ser considerada incapaz de pensar “direito” pelo fato de seguir outra
gramática. Se isso fosse verdade, as pessoas só poderiam pensar em uma língua… Em resumo, o
preconceito pode, sim, vitimar falantes “diferentes”. E os vitima todos os dias…
CF: O que propõem os linguistas quando afirmam que não existe o “português mais certo ou mais
errado”?
SP: Os linguistas separam uma avaliação de fatos linguísticos considerando apenas as regras
que regem qualquer variedade de qualquer língua e uma avaliação que a “sociedade” faz de
cada uma dessas variedades. O exemplo do livro debatido é bom: considerando apenas os fatos,
o que se ouve, verifica-se que formas como os livro e 10 real seguem uma regra, isto é, são
construções regulares: esta gramática marca com o “s” de plural apenas o primeiro elemento(se -forem três ou quatro, isso dependerá de quais eles são: os meus livro é bem mais provável
do que os meu livro; mas meus livro verde é previsível). O linguista também sabe que há outra
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gramática do português, que segue outra regra: marca com “s” todos os elementos da
sequência: os livros, os meus livros, meus livros verdes. Para um linguista, o conceito de certo e
errado não tem sentido (seria como um botânico achar que uma planta está errada). Para ele, a
questão é quais são as regras em cada caso. E ele pode comparar esses dados com os de outras
línguas. Verificará, por exemplo, que o inglês segue uma regra diferente, marcando apenas o
nome, não importa o lugar dele na sequência: the books ou the green and blue books (cuja
“tradução” literal seria os verde e azul livros). Em nenhuma variedade do português se diz o
ovos ou o livros. Mas o linguista também sabe que a sociedade em que se fala esta língua faz
uma avaliação das diferentes formas. Considera algumas delas erradas (e até feias) e outras
corretas. Ele tentará compreender a que se deve essa avaliação. Quase sempre há uma
explicação ligada aos grupos sociais (capital, cidade importante culturalmente, sede da corte
etc.) ou aos campos em que se fala ou escreve. A literatura aceita mais variedades do que a
ciência. Os jornais aceitarão mais ou menos variedades, conforme se pretendam mais ou menos
populares. As noções de certo e errado têm origem na sociedade, não na estrutura da língua. É
certo o que uma comunidade considera certo. E essa avaliação muda historicamente.
CF: É papel da escola ensinar as diferenças do discurso oral e do escrito?
SP: É papel da escola, em algum momento, chamar a atenção para o fato de que há diferenças
entre as diversas formas de falar e o que elas significam: pessoas urbanas não falam como as
rurais, jovens não falam como idosos, mulheres não falam como homens. Um modo de
apresentar-se como jovem é falar como um jovem. Outro, vestir-se como tal. Mas a escola não
precisa ensinar algumas das formas de falar, porque as pessoas as aprendem ao natural. O que
a escola precisa ensinar é fundamentalmente a escrita. O que ela faz pouco, a meu ver. Ensinase de verdade a gramática da língua culta lendo e escrevendo, “corrigindo”. O livro que está na
berlinda fala em adequação: escrever tem muito a ver com adequar a linguagem a cada tipo de
texto. Num trabalho de biologia, não só se usa um léxico do campo, como o texto se estrutura de
forma específica, que é diferente da de uma narração, de um convite, de uma propaganda. O
padrão é uma exigência da sociedade, em muitos casos, e a escola deve incluir práticas que
levam o aluno a escrever como se espera em cada campo. Mas, para fazer isso, não é necessário
tachar outras maneiras de falar de erradas ou de feias. Aliás, esse comportamento, mais do que
revelar preconceito, revela ignorância do que seja uma língua.
CF: A maioria das pessoas entende a língua como a que a escola ensina ou a dos manuais do tipo
“não erre mais”, que considera as variantes como erros. No caso da língua portuguesa, esse
conceito se sustenta diante das mudanças pelas quais ela já passou?
SP: Manuais do tipo “não erre mais” são úteis, especialmente se os que vão escrever têm as
dúvidas corretas. O problema é que, para ter dúvidas, uma pessoa, precisa desenvolver uma
intuição um pouco refinada, conhecer um pouco do assunto (eu não tenho nenhuma dúvida
sobre energia nuclear e células pluripotentes; nem sobre tucanos, na verdade). Assim, esses
manuais não podem ser os substitutos das gramáticas ou dos ensaios que relatam pesquisas.
Seria como alguém achar que sabe botânica porque tem rúcula e cebolinha na horta. Conhecer
só esses manuais leva os “defensores” da língua que chamam de culta a cometerem os mesmos
“erros” que estão criticando. Alexandre Garcia começou um comentário quase irado sobre o
livro em questão assim: “quando eu TAVA na escola…”. Ou seja, ele abonou o livro que estava
criticando. Só que, provavelmente, ele acha que falou “estava”.
CF: Quais são hoje os principais pontos de discordância em relação ao registro e à forma de a
escola tratar essas duas línguas?
SP: Acho que há alguma confusão, que não precisaria existir. Bastaria que se aceitasse que as
línguas não são uniformes, o que é um fato notório. Bastaria às pessoas se ouvirem. Em seguida,
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que se aceitasse que as diversas formas de falar não são erradas, são apenas diferentes, como
se fossem outras línguas. Depois, é preciso decidir o que fazer com esses fatos. Há duas coisas
que parecem óbvias. Se quisermos uma escola mais bem-sucedida, não é necessário ensinar as
formas populares orais aos alunos. Eles já as conhecem. Diante dessas variedades, a gente
deveria aprender a se maravilhar, o que aconteceria se soubéssemos analisá-las, como se
aprende a analisar plantas ou animais. Deve-se ensinar a -escrita-padrão da única forma que
funciona: conseguir que o aluno produza um texto e, a partir dele, por mais precário que seja ou
pareça, reescrever até que ele fique adequado, correto e, se possível, elegante.
CF: Ao propor que ensinar que o modo como aprendizes e professores falam não é feio ou errado
consolida-se o desconhecimento da norma culta?
SP: O que consolida o desconhecimento da norma culta é continuar fazendo o que se faz:
considerar “errados” os que só falam diferente, ensinar uma gramática precária. E fazer
exercícios que não fazem sentido. O que ensina é ler e escrever analisando o que se lê e se
escreve. É fácil. E é barato.
CF: Afinal, deve-se ou não ensinar gramática na escola?
SP: Depende de como se ensina. Ensinar só faz sentido para conhecer que tipo de “bichos” são
as línguas, como elas se organizam de fato, e não como deveriam se organizar; isso é etiqueta.
Em cada ano se poderia eleger um (ou alguns) tipo de estrutura e dar atenção privilegiada a ela.
Os alunos deveriam aprender a coletar dados, classificar, encontrar regularidades. Pode-se
estudar a gramática da fala da região em que a escola está. Os professores poderiam ser
linguistas curiosos: levar em conta como se fala na região em que são professores – até para
saber o que “falta” ensinar. Se é para ensinar gramática apenas para que a conclusão dos alunos
seja que eles não sabem português, confundindo, aliás, língua e gramática, seria melhor nem
incluir no currículo.
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Por um debate para além do obscurantismo
Adilson de Carvalho, 25/05/2011
Há muita desinformação, má fé e preconceito na polêmica criada em torno do livro Uma vida
melhor, da professora Heloísa Ramos. O livro faz parte do Programa Nacional do Livro Didático,
do Ministério da Educação, e vem sendo execrado por diversos jornalistas e outros moralistas,
sob a acusação de que a obra orientaria professores a ensinarem o “português errado” a seus
alunos, em detrimento do que consideram o “bom e correto” uso da língua.
Não vou analisar a obra, até porque não li o livro, como não o fizeram 90% dos que o criticam.
Considero mais importante, como requisito mínimo para esta e outras discussões sobre língua
portuguesa, que as noções fundamentais sobre o funcionamento da língua e o seu ensino sejam
esclarecidas.
Em primeiro lugar, é preciso superar a visão arcaica, distorcida, preconceituosa e anticientífica
de que existe uma língua certa e elegante e outra errada e grosseira, como se a língua fosse algo
semelhante a um código de etiqueta.
Essa forma de entender o funcionamento das línguas teve o seu lugar na tradição ocidental no
fim da Idade Média em que o Império decadente insistia em barrar a “contaminação” do latim
clássico pela pujante e vivaz ascensão das línguas nacionais. Hoje não faz o menor sentido
pensar assim.
Já está muito bem esclarecido, por mais de 100 anos de pesquisa lingüística, que as línguas são
fenômenos sociais dinâmicos e que toda e qualquer língua varia no tempo e no espaço. Isso é o
que explica que a fala do brasileiro do século 21 seja muito diferente daquela dos primeiros
portugueses que aqui desembarcaram, ou que a língua dos estadunidenses tenha diferenças
abissais daquela dos ingleses, ou que os moradores de Belo Horizonte tenham hábitos
lingüísticos distintos daqueles dos moradores dos morros do Rio de Janeiro, e assim por diante.
Essas constatações são óbvias. Mas admitir isso é também admitir que não adianta gastar
energia na vã ilusão de que se vai padronizar o uso oral da língua. Queiram os puritanos ou não,
admitam os conservadores ou não, continuaremos aqui e em qualquer lugar a ter diversas
variantes lingüísticas, de acordo com o espaço, o tempo e a classe social, entre outros fatores.
Então não faz qualquer sentido a discussão que se paute sobre o que seja ou não seja permitido
no uso da língua oral. A língua não tem dono, é produto de todos os falantes da comunidade,
mesmo que os charlatões vendedores de cursos de boas maneiras lingüísticas ou os insossos e
empoeirados membros da ABL resistam em admitir. Portanto, falta legitimidade a quem quer
que seja para dizer o que é certo ou errado na fala das pessoas.
Isso, por mais óbvio que seja, não é compreendido pelos dogmáticos da língua, que continuam a
bradar que é um absurdo permitir que nossas criancinhas sejam incitadas ao erro ou que se
formos permitir qualquer coisa estaremos corrompendo a língua e bla, bla, bla. Desconhecem
esses missionários das trevas que, independentemente dos seus discursos raivosos e
moralistas, a língua segue o seu curso.
Agora, outra coisa, bem diferente do universo em que acontece a língua falada, e isso também é
uma premissa básica para qualquer discussão sobre o ensino português, é a língua escrita. Já
está suficientemente demonstrado por inúmeros estudos que língua escrita é muito diferente
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da modalidade falada. Fala, qualquer que seja a variante, aprende-se naturalmente com a
simples imersão do aprendiz no ambiente. É assim que as crianças aprendem. Essa
compreensão básica também foi muito bem assimilada pelos cursos de idioma estrangeiro, que
deixaram de se concentrar no ensino de gramática normativa, porque compreenderam que isso
tinha pouco ou nada a ver com o uso do idioma, e passaram a simplesmente criar situações de
imersão orientada dos aprendizes em ambientes reais de uso da língua.
O aprendizado de língua escrita, portanto, é algo bem diferente do uso da língua falada. Requer
estudo sistemático e muito treino. Se os alunos não forem estimulados a ler e a produzir textos
escritos, naturalmente não vão dominar essa técnica. E esse é, aliás, a meu ver, o principal papel
da escola: ensinar aos alunos o que eles não sabem e o que é possível ensinar, e não tentar
controlar a fala deles ou incutir noções preconceituosas que lhes diminui a autoestima e roubalhes a oportunidade de uma reflexão crítica sobre as relações sociais e políticas que envolvem o
uso da língua.
Se a escola se concentrar em orientar os alunos na reflexão sobre a língua e na produção e
compreensão de textos orais e escritos nos mais diversos gêneros, como cartas, crônicas,
notícias de jornal, atos normativos, debates televisivos, entrevistas e outros tantas situações
reais de produção lingüística, creio que avançaremos em direção a uma educação de muito
melhor qualidade.
Insistir no modelo defendido pelos que fazem parte da cruzada moralista, que defende a
doutrinação dogmática para um modelo de língua que não existe no mundo real, é optar pelo
duplo fracasso. Nem os alunos aprenderão as regras da gramática normativa, uma vez que ela é
um compêndio de explicações com quase nenhum fundamento científico, nem aprenderão o
básico, o necessário e fundamental para os desafios que encontrarão na vida prática, que é a
habilidade para ler e escrever os textos que circulam no mundo real.
Essas diretrizes não são objeto de minha própria reflexão sobre o
ensino de português, embora as considere adequadas. São, em síntese,
o que recomendam a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
que é de 1996, e os Parâmetros Curriculares Nacionais, editados logo
em seguida, ambos resultado de intenso debate social e de longa e
fundamentada reflexão de estudiosos do assunto.
Até onde pude compreender sobre a intensa discussão criada em torno do livro Uma vida
melhor, a autora simplesmente adota as concepções sobre língua acumuladas pela pesquisa e
referendadas pela LDB e pelos PCNs. Além disso, ao contrário do que levianamente alegam os
que querem censurar o livro, a publicação foi aprovada não pelo MEC, mas por um longo e
democrático processo de avaliação. Por incrível que possa parecer, é exatamente isso que vem
irritando alguns jornalistas e pseudointelectuais.
Que eles continuem esbravejando suas bobagens de cunho preconceituoso e conservador, tudo
bem, têm lá seus interesses e têm direito de defendê-los. Que essa seja a única, ou quase única,
voz nessa discussão tão importante, isso sim é preocupante.
QUEM É
Adilson de Carvalho é formado em letras pela UnB e Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental.
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Falsa questão
Lívia Perozim, 20/05/2011
Mais uma vez um livro didático foi alvo de polêmica. Uma notícia divulgada pelo portal IG, por
meio do blog Poder On Line, afirmou: o MEC comprou e distribuiu um livro que “ensina a falar
errado”. Em jornais, emissoras de tevê e meios eletrônicos o livro, seus autores e o próprio MEC
foram crucificados. Colunistas renomados esbravejaram. É um livro “criminoso”, atestou Clóvis
Rossi, na Folha de S. Paulo. Dora Kramer, no Estadão de terça-feira, aproveitou para atacar Lula:
“Tal deformação tem origem na plena aceitação do uso impróprio do idioma por parte do expresidente Lula, cujos erros de português se tornaram inimputáveis, por supostamente
simbolizarem a mobilidade social brasileira.” Poderíamos nos perguntar o que Glorinha Kalil
pensa do assunto, mas vamos nos ater aos fatos.
O livro em questão é o Por Uma Vida Melhor e faz parte da coleção Viver, Aprender, organizada
pela Ação Educativa, uma ONG que há 16 anos promove debates e atua em projeto de melhoria
educação e políticas para a juventude. Foi distribuído para 4.236 escolas e é destinado, frise,
para alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) – mais para frente ficará claro o porquê.
Seus autores são Heloísa Ramos, Cláudio Bazzoni e Mirella Cleto. Os três, professores de língua
portuguesa, autores de livros didáticos e estudiosos do tema variação linguística.
A polêmica midiática partiu da reprodução de trechos como: “Você pode estar se perguntando:
‘Mas eu posso falar os livro?’. Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da
situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico”.
Reproduzidos assim, descolados de um contexto, parece mesmo que a
orientação era mandar às favas a língua portuguesa. Mas não é bem
isso. Faltou uma leitura mais atenta, ou, pior, faltou ler a obra. O
capítulo em questão, ao menos (clique aqui para ler).
Tanto é que foram repercutidas as mesmas poucas frases, retiradas de 1 dos 16 capítulos do
livro. Embora o título seja auto-explicativo, Escrever é diferente de falar, vale reproduzir a
proposta descrita na introdução: “Neste capítulo, vamos exercitar algumas características da
linguagem escrita. Além disso, vamos estudar uma variedade da língua portuguesa: a norma
culta. Para entender o que ela é e a sua importância, é preciso conhecer alguns conceitos.” Os
trechos pescados pela imprensa estavam no tópico: “A concordância das palavras”. Ali, discutese a existência de variedades do português falado que admitem que o primeiro termo de um
grupo nominal indique se a frase é singular ou plural. O exemplo: “Os livro ilustrado mais
interessante estão emprestado.” Em seguida, reescreve-se a frase na norma culta: “Os livros
ilustrados mais interessantes estão emprestados”.
Ou seja, os autores do livro mostram aos alunos do EJA, adultos que já carregam uma bagagem
cultural construída pela vivência e por suas experiências educativas, que este modo de falar é
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correto linguisticamente, por se fazer comunicar, mas não é aceito gramaticalmente. Explica-se:
a linguística é uma ciência em busca de conhecimentos sobre a língua. A gramática não é
cientifica, é um conjunto de normas. É, portanto, uma parte importante, mas não representa
todo o saber da língua.
A confusão está, em parte, no fato de se pretender apartar a teoria linguística do ensino da
língua, como se a escola devesse parar no tempo e não deixar entrar nenhum avanço científico
relativo à língua materna. “Isso sim é uma irresponsabilidade, um crime”, devolve Cláudio
Bazzoni, um dos autores do livro.
Não se fala aqui de uma ciência inventada ontem. Com base em estudos antigos, os linguistas
mostram que a língua é um sistema complexo, muito maior do que um conjunto de normas, que
muda pela história e é determinada por práticas sociais. Sírio Possenti, professor do
departamento de lingüística da Unicamp, explica: “Para um linguista, o conceito de certo e
errado não tem sentido. Seria como um botânico achar que uma planta está errada. Para ele, a
questão é quais são as regras em cada caso”. Posto que as noções de certo e errado têm origem
na sociedade, não na estrutura da língua, ele completa: “É certo o que uma comunidade
considera certo. E essa avaliação muda historicamente. Um exemplo: a passiva antiga do
português se fazia com de: ‘será de mim mui bem servida’. Está na Carta de Caminha. Hoje, se
faz com por.”.
A sociedade, no caso, os jornalistas – até mais que os normatistas – condenaram um tipo de
conteúdo, a variação linguística, que faz parte há mais de quinze anos dos livros didáticos de
língua portuguesa disponíveis no mercado, avaliados e aprovados pelo MEC. Estão, portanto,
mal informados. Como ressalta o professor da Universidade de Brasília Marcos Bagno, em
artigo publicado no site de Carta Capital: “Nenhum linguista sério, brasileiro ou estrangeiro,
jamais disse ou escreveu que os estudantes usuários de variedades linguísticas mais distantes
das normas urbanas de prestígio deveriam permanecer ali, fechados em sua comunidade, em
sua cultura e em sua língua… Defender o respeito à variedade linguística dos estudantes não
significa que não cabe à escola introduzi-los ao mundo da cultura letrada e aos discursos que
ela aciona. Cabe à escola ensinar aos alunos o que eles não sabem! Parece óbvio, mas é preciso
repetir isso a todo momento”.
Pelo visto, nem tudo que parece é óbvio. Possenti resume bem o imbróglio: “Bastaria que se
aceitasse que as línguas não são uniformes, o que é um fato notório, bastaria as pessoas se
ouvirem”. Fica aí a dica para quem, como o jornalista Alexandre Garcia, em comentário irado
sobre o livro que “ensina a falar errado”, começou a frase com “Quando eu TAVA na escola”…
79
Dois Rossi e a Língua Brasileira
Paquito - De Salvador (BA)
Começou, salvo engano, com Clóvis Rossi, articulista da Folha de São Paulo, uma discussão
envolvendo um livro didático do MEC que reconhece o preconceito linguístico sofrido pelos
falantes do português que não seguem a norma culta. A virulência do artigo é tanta que o seu
título é Inguinorança e compara "erro de português" a crime de assassinato: "Tal como matar
alguém viola uma norma, matar o idioma viola outra". Ruy Castro, também na mesma Folha,
liberou os artistas para serem criativos com a língua, mas chamou os linguistas de "meros
funcionários" da mesma, como se estes quisessem modificá-la.
Linguistas responderam ao artigo: Sírio Possenti, colega aqui de Terra Magazine, provou que o
livro do MEC não é resultado de uma conspiração comunista, e Marcos Bagno demonstrou que
a "inguinorança" foi mesmo de Rossi e Castro, que desconhecem a natureza científica da
Linguística e não diferenciam língua escrita de falada, apenas pra começo de conversa.
Pra começo de conversa, não sou linguista, mas, como bem diria Didi Mocó, no seu cearense
peculiar, também dou "minhas cacetada". Cursei Letras na Universidade Federal da Bahia e me
lembrei da primeira aula a que assisti, ministrada por um outro Rossi, o professor Nelson Rossi,
já na época uma sumidade nesses assuntos (*), e que, naquele ano de 1982, escolheu pegar uma
turma de calouros que não tinha ideia do que aquele homem representava. Ele iniciou a aula
esclarecendo que falava baixo por estar com problemas na garganta, mas, mesmo em condições
normais, não aumentaria o volume da voz.
Calvo, de óculos e barba longa, sempre de branco, o professor colecionava idiossincrasias como,
em feriados facultativos - quando se escolhia ir ou não ao trabalho, mas, na verdade, se fechava
o Instituto de Letras -, pular o muro da Faculdade para não ser impedido de trabalhar. Foi o que
ele me disse, tempos mais tarde, numa conversa no pátio do instituto. Outra de suas opiniões
era a de que o vestibular tinha que ser realizado por sorteio, e a literatura não era para ser
estudada, só tendo razão de existir para o nosso deleite.
O que me marcou, no entanto, naquela primeira aula - e acredito, a muitos outros que a
assistiam -, foi um pequeno pedaço de papel, distribuído a todos por Rossi, que continha apenas
uma frase numa língua desconhecida pra nós. A língua, nos foi revelado pelo professor, era um
dialeto do português chamado, se bem me lembro, de Aljamia , o que demonstrava "a unidade
na diversidade e a diversidade na unidade" da nossa língua. Entrávamos na universidade com o
pé direito, as provas de Rossi eram à base de consultas, com questões que nós mesmos
elaborávamos, e, a partir daquele momento, não estávamos ali apenas pra aprender a
gramática normativa, mas, sim, para também criticá-la em nas matérias da disciplina Língua
Portuguesa e, ainda, de Linguística.
Aprendemos que havia várias normas convivendo na mesma língua. Se, por exemplo, a
população da cidade de Jequié - minha terra natal - comumente não utilizava "você", preferindo
o "tu", sem flexionar o verbo na segunda pessoa - "tu vai" -, não era errado. Era apenas a norma
daquela região, diferentemente da de Salvador, a capital, onde se usava o "você". Quando
cheguei, com dez anos de idade, à Cidade da Bahia, fui vítima de preconceito linguístico por
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falar "tu vai" e acabei me acostumando com o "você vai", mas, até hoje, com pessoas da minha
cidade e do meu afeto, utilizo o "tu", afirmando minha identidade "jequietcong".
Ao ler o texto de Clóvis Rossi, que não se conformava com a defesa, no livro do MEC, da forma
"os livro", revi meus professores, que diziam que o falante de "os livro" estava sendo até mais
econômico. Se, no artigo "os", já tem a marca de plural, colocá-la também no nome "livro" não
deixa de ser uma redundância. A gramática normativa, com suas regras de antanho, tentava
fazer crer aos falantes que a língua é estacionária, quando, na verdade, os próprios falantes, e
não o texto gramatical, é que a constroem, criativa, viva e mutante, no dia-a-dia, no bate-papo e
afins. A norma culta é considerada "culta" por razões extralinguísticas, de ordem política, social
e econômica.
Nem por isso, deixei de escrever, como neste texto, na norma culta, ainda que informalmente.
Mas estar atento para o que está por trás do naturalizado me fez mais forte e menos ignorante,
ao contrário do que pensa Clóvis Rossi. Reconheço, no entanto, a dificuldade da maioria - que se
considera culta - para aceitar o que parece estar fora do senso comum, o que é uma mostra de
como é importante, desde cedo, informar aos alunos de que há vários falares, legítimos e
criativos.
Não é preciso ser especialista pra saber. Noel Rosa, gênio da raça, no samba Não tem tradução,
cantou "tudo aquilo que o malandro pronuncia/ com voz macia, é brasileiro/ já passou de
português", antecipando uma corrente de linguistas que defende a existência mesmo de uma
língua brasileira, distinta não apenas no léxico, mas em vários aspectos de outros níveis
estruturais, da mãe lusa. Segundo o cartunista e compositor Nássara, para Orestes Barbosa,
letrista do Chão de estrelas, Noel era o maior poeta popular do Brasil, só por conta dos versos
citados acima.
Quanto ao professor Nelson Rossi, após ter se aposentado, fiel aos seus princípios, não pisou
mais no Instituto de Letras e se recusa a falar desses assuntos. Reza a lenda que ele se dedica à
natação e ao violão. Professor, antes de frequentar suas aulas, eu já tocava violão, e dou minhas
braçadas diariamente, ao encontro de Iemanjá, na praia do Porto da Barra. Qualquer coisa,
tamos aí.
(*) Em 1963, Nelson Rossi e outros publicam o "Atlas Prévio dos Falares Baianos", primeiro
estudo a tratar de forma sistemática a variação horizontal ou geográfica do português
brasileiro; em1969 , Nelson Rossi, da UFBA, e pesquisadores de mais quatro
universidades dão início ao "Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta do
Brasil", primeiro grande projeto a investigar a variação vertical ou sociolinguística do
português brasileiro. - as informações desta nota foram prestadas por Tânia Lobo, que
também assistiu à aula de Rossi de que fala o texto, e tornou-se doutora na área de Língua
Portuguesa.
QUEM É
Paquito é músico e produtor.
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O desafio de ensinar a língua para todos
A polêmica sobre o "falar popular" revela a necessidade de dialogar com os alunos não
familiarizados com a norma-padrão
Rodrigo Ratier
- Qué apanhá sordado?
- O quê?
- Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada.
É óbvio: o célebre poema O Capoeira, de Oswald de Andrade (1890-1954), está quase
integralmente em desacordo com a norma-padrão da Língua Portuguesa. Isso não impede,
entretanto, que Pau Brasil, o livro de 1925 em que o texto está incluído, seja estudado nas
escolas e frequente as listas de leitura obrigatória das mais concorridas universidades do país.
Do regionalismo de Jorge Amado à prosa contemporânea da literatura marginal, passando pelo
modernismo de Mário de Andrade e Guimarães Rosa, refletir sobre as variedades populares da
língua, típicas da fala, tem sido uma maneira eficaz de levar os alunos a compreender as formas
de expressão de diferentes grupos sociais, a diversidade linguística de nosso país e a
constatação de que a língua é dinâmica e se reinventa dia a dia.
A discussão, porém, tomou um caminho diferente no caso do livro Por Uma Vida Melhor,
volume de Língua Portuguesa destinado às séries finais na Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Um excerto do capítulo "Escrever É Diferente de Falar" foi entendido como uma defesa do "falar
errado". Muitas pessoas expressaram o temor de que isso representasse uma tentativa de
desqualificar o ensino das regras gramaticais e ortográficas que regem a Língua Portuguesa. De
fato, não se pode discutir que o papel da escola é (e deve continuar sendo) ensinar a norma
culta da língua.
Conhecer e dominar a comunicação segundo o padrão formal representa, sem dúvida, um
caminho poderoso para a ascensão econômica e social de indivíduos e grupos. Acima de tudo, é
uma das maneiras mais eficazes por meio das quais a escola realiza a inclusão social: permitir o
acesso a jornais, revistas e livros é abrir as portas para todo o conhecimento científico e
filosófico que a humanidade acumulou desde que a escrita foi inventada.
Mas, afinal, do ponto de vista da prática pedagógica, está correto contemplar nas aulas a
reflexão sobre as variantes populares da língua? A resposta é sim. A questão ganhou relevância
com a universalização do ensino nas três últimas décadas. Com a democratização do acesso à
Educação, a escola passou a receber populações não familiarizadas com a norma-padrão. Nesse
percurso, surgiu a tese de que falar "errado" representava um impedimento para aprender a
escrever "certo". Pesquisas na área de didática mostraram exatamente o contrário: o contato
82
com a norma culta da escrita impacta a oralidade. Ao escrever do jeito previsto pelas
gramáticas, o aluno tende a incorporar à fala as estruturas e expressões que aprendeu.
Contemplar as variantes da língua exige preparo docente
Não custa enfatizar, entretanto, que o respeito às variedades linguísticas por meio das quais os
estudantes se expressam ao chegar à escola não significa que o professor deva abrir mão do
ensino da norma culta. Ao contrário. O que se pretende é que a reflexão sobre as relações entre
oralidade e escrita leve os estudantes a compreender a linguagem como uma atividade
discursiva. Ou seja, um processo de interação verbal por meio do qual as pessoas se
comunicam.
Pensar a fala e a escrita como discurso não é pouca coisa: exige competência para planejar a
expressão de acordo com o lugar em que ela vai circular (uma conferência acadêmica? Uma
conversa no jantar?), levando em conta seus interlocutores (uma autoridade? Um grupo de
amigos?) e a finalidade da comunicação (expor um argumento? Relembrar uma lista de
compras?). Dessa perspectiva, os gêneros escritos continuam com espaço cativo. A diferença
(para melhor) é que você, professor, deve ocupar-se também das situações formais de uso da
linguagem oral (seminários, entrevistas, apresentações etc.), igualmente fundamentais para o
exercício da cidadania.
Cabe lembrar, ainda, que valorizar os modos de expressão coloquiais é uma opção
especialmente válida na EJA. As experiências indicam com clareza que iniciar o trabalho
mostrando a utilidade daquilo que os estudantes conhecem é um dos pontos de partida mais
eficazes para mobilizar o público dessa etapa de ensino - adolescentes e adultos com trajetórias
escolares marcadas pela falta de oportunidades, o abandono e a multirrepetência, vários
empurrados para fora das salas por um ensino excessivamente apegado à repetição de
nomenclaturas e à memorização de regras estruturais.
Por trás da crítica ao diálogo da escola com os saberes populares está a defesa, muitas vezes
inadvertida, de um sistema educacional campeão em evasão, reprovação e analfabetismo
funcional. Como o que construímos até hoje.
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Ainda em torno do livro didático
Por Maria Amélia Dalvi em 07/06/2011 na edição 645
Espanta-me que a polêmica em torno do livro didático Por uma vida melhor ainda renda artigos
de opinião em jornais diários, como aconteceu segunda-feira (30/5/2011) no capixaba A
Gazeta. Talvez porque “o hábito do cachimbo deixe a boca torta”, eu esteja acostumada a ver
temas controversos serem tratados com superficialidade e, logo depois, serem relegados ao
esquecimento. Mas, como minha expectativa inicial quanto à não longevidade dos debates
mostrou-se equivocada, o tema persiste e requer um posicionamento por escrito de quem,
como eu, tem entrado “de cabeça” na polêmica, seja em sala de aula, seja nas conversas
cotidianas, seja nos e-mails e nas redes sociais.
É esquisito que o professor de ética Carlos Alberto Di Franco, autor do artigo “MEC não quer
ensinar”, publicado n´A Gazeta, sinta-se confortável em usar os argumentos que usou para
sustentar seu ponto de vista. Seu ponto de partida é no mínimo discutível. E não sou eu apenas
quem pensa assim: a Associação Brasileira de Linguística, a Associação Brasileira de Linguística
Aplicada e pesquisadores de renome internacional (como Carlos Alberto Faraco, Edwiges
Zaccur, Luiz Carlos Cagliari, Magda Soares, Marcos Bagno, Sírio Possenti e muitos outros)
manifestaram-se em defesa do livro didático Por uma vida melhor e do posicionamento do
Ministério da Educação no que tange ao assunto.
Realidades linguísticas
O artigo do professor Di Franco afirma que “para evitar discriminações, o MEC quer renunciar
ao dever de ensinar”. Desafio o professor a provar seu ponto de vista a partir do livro didático
que enseja a polêmica ou a partir dos documentos oficiais produzidos e divulgados pelo
Ministério; lembro apenas, de saída, que o MEC está fomentando o ensino na educação básica
de coisas diferentes das que tradicionalmente se ensinava, o que é muito diferente de ser
omisso ou de renunciar ao cumprimento de um dever. Da mesma forma, desafio o professor a
comprovar sua afirmação de que o MEC “entende que pode promover o preconceito a
explicação em sala de aula de que a concordância entre artigo e substantivo é uma norma da
língua portuguesa”: o livro didático criticado, que o professor parece desconhecer, logo depois
de mostrar como ocorre a concordância na fala coloquial, traz um quadro em destaque
mostrando como ocorre a concordância na norma padrão; em seguida, o livro reitera a
abertura do capítulo em pauta, lembrando que é importante conhecer e usar a norma padrão
nas situações em que isso é o esperado.
Na sequência de sua argumentação, Di Franco escreve: “o MEC nos diz: na busca por um
`mundo mais justo´ (sem preconceitos) pode ser aconselhável dizer algumas mentiras”.
Gostaria que o autor tivesse mostrado em seu texto quais são as mentiras do MEC quanto ao
tema aqui abordado porque toda a discussão realizada no livro didático Por uma vida melhor é
baseada nas sérias pesquisas sociolinguísticas (em torno da fala brasileira) implementadas em
nossas melhores universidades públicas e privadas, como comprova uma farta bibliografia
especializada, que o professor também parece desconhecer.
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Gostaria, também, que o autor tivesse mostrado por que razões entende que “na lógica
ministerial, o conhecimento é munição para discriminação”. Como leitora atenta dos
documentos emanados do MEC no que concerne ao ensino de língua portuguesa, não vejo
nenhum sentido na afirmação, já que os documentos oficiais produzidos e divulgados pelo MEC
(como os Parâmetros Curriculares Nacionais e os guias para escolha dos livros didáticos, por
exemplo) defendem exatamente o oposto: que é necessário conhecer e analisar as realidades
linguísticas brasileiras, por comparação, a fim de minorar o preconceito linguístico e de
potencializar a fala, a leitura e a escrita como práticas de um cidadão escolarizado.
“Corrompido e inadequado”
Mostrar e comparar as realidades linguísticas brasileiras é exatamente o que o livro didático
criticado faz. O ponto que causou a discordância fomentada pela mídia e pelas redes sociais tem
em vista, justamente, ensinar as diferenças entre a concordância em textos produzidos nas
situações informais e em textos produzidos nas situações que requerem a norma padrão
(sendo que, antes e depois, o livro ensina tópicos como uso da pontuação, divisão de parágrafos
etc. – o que, mais uma vez, desmente a ideia de que “o MEC não quer ensinar” e derruba as
afirmações sensacionalistas que foram veiculadas por diversos dias seguidos, em diferentes
espaços).
Causa-me espanto, por fim, que o professor Di Franco atribua a postura do MEC a um incômodo
em lidar com o conceito de “verdade”. Diz ele, a seguir, como corolário de seu artigo, que “o
MEC – de fato – entende assim: numa sociedade plural, não se poderia ter apenas uma única
norma culta para a língua portuguesa. Deixemos nossos alunos `livres´ para escolherem as
diversas versões”. Pergunto: de que outra forma o MEC, os livros didáticos e os professores de
Língua Portuguesa poderiam agir, senão dizendo que as pessoas são livres para escolher entre
as muitas possibilidades linguísticas existentes? Seria tentando restringir os usos da língua que,
segundo uma perspectiva normativa, seriam “errados”? Sinto muito, mas, além de ser algo
semelhante a “enxugar gelo” – porque impossível de ser feito –, essa postura se assemelharia a
algo que foi feito durante períodos fascistas da história recente do mundo, em que, inclusive em
relação às práticas linguísticas, se tentou promover uma “higienização” do que era considerado
corrompido e inadequado tendo em vista o padrão almejado.
Ventos democráticos
Outros pontos de esclarecimento, quanto ao tema, são os seguintes: 1) o livro didático
contestado não apresenta “erros”, mas usos específicos da língua portuguesa, em situações
específicas que estão claramente diferenciadas daquelas em que o uso do chamado padrão
culto é requerido. Tais usos são recorrentes em milhares de situações vividas por milhões de
falantes da língua portuguesa; 2) o livro não defende a generalização desses usos específicos
para todas as situações, mas, corajosamente, aborda sua existência, ao contrário da posição
tradicional que faz de conta que eles não existem e que são aberrações. Eles existem e são
corriqueiros. Mais do que corriqueiros, são legítimos; 3) o livro também aborda e didatiza o
ensino da chamada norma urbana padrão (ou culta) e o faz enfaticamente, mostrando sua
importância social, política, econômica etc. O livro não proscreve o ensino da norma urbana
padrão (ou culta), mas confronta variedades, buscando sua sistematização, tendo em vista os
gêneros do discurso; 4) o livro, antes de ser apresentado como possibilidade para o professor
das redes públicas, é avaliado por dezenas de especialistas, afinados às pesquisas existentes no
país e mesmo fora dele sobre o assunto; com todo o respeito pela sempre legítima discordância,
há que se levar esse dado em conta antes de se achincalhar na base do “achismo” um trabalho
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comprometido com políticas públicas da área de educação e, especificamente, de educação
linguística.
Por fim, retomo aqui a fala do saudoso José Saramago (mais do que escritor consagrado,
militante pela distribuição igualitária das riquezas materiais e imateriais do mundo): “Não há
uma língua portuguesa, há línguas em português.” Oxalá daqui por diante nenhuma fala seja
desqualificada como fala de pobre e ignorante: todas sejam erigidas à condição de legítimas e,
portanto, dignas de serem consideradas nas escolas como objeto de comparação respeitosa
com as demais falas que compõem a belíssima trama de um mundo muito maior que aquele
engendrado por um único ponto de vista: o de quem acha que a verdade, o certo e o bom é
perpétuo, imutável, atemporal e, portanto, se sente agredido quando os ventos democráticos
ameaçam fazer desmoronar seus castelos de areia.
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Imprensa, ignorância e o apresentador
Por Bruno Ribeiro em 07/06/2011 na edição 645
Zapeando o YouTube (sim, internet hoje em dia se zapeia igualzinho a TV. E o verbo zapear foi
roubado do professor Sírio Possenti), achei um vídeo de Alexandre Garcia comentando a
polêmica do livro didático Por uma vida melhor. A apresentadora do telejornal, Renata
Vasconcellos, começa informando que o MEC distribuiu “um novo livro de português que,
digamos assim, defende um novo conceito da língua”. Não sei o que ela entende por “novo”, mas
a ciência linguística é mais velha que andar pra frente. Quando o Padre Anchieta, por exemplo,
procurou escrever uma nova gramática das línguas indígenas, ele não recorreu aos clássicos,
mas ouviu como o índio fazia uso de sua língua. Daí, ele escreveu uma gramática (coisa que não
aconteceu com nossa língua, já que nossa gramática é baseada no modo de falar de Portugal, e
não do Brasil). E isso foi há mais ou menos 500 anos (nessa época todo mundo andava pra
frente). Fora isso, faz mais de 15 anos que os livros de português disponíveis no mercado
abordam a variação linguística e seu tratamento na sala de aula. Mas tudo bem. Esse tipo de
erro crasso na imprensa chega a ser normal (infelizmente), quando se desconhece do que se
está falando.
Depois disso, ela esclareceu que o MEC vai exigir a norma culta da língua nas provas e redações
do Enem. Traduzindo: eles não tinham a mínima ideia do que estavam comentando. O ridículo
(mas infelizmente necessário) esclarecimento do MEC deixou isso bem claro. Renata passou a
bola para Alexandre Garcia, que começou falando que “quando eu tava no primeiro ano e a
gente falava errado a professora nos corrigia porque ela estava nos preparando para vencer na
vida” (juro como ele disse tava!). Não sei quais eram os “erros” do Alexandre Garcia, mas parece
que ele não aprendeu a lição da professora. Tava não existe no dicionário. É uma variação do
verbo estava. Ah... (como diria Arnaldo Jabor, com aquele ar de “caiu a ficha”), mas Alexandre
Garcia domina a língua culta. Quem domina pode. Quem não domina se pode para não falar
“errado”. Traduzindo: ele abonou a tese do livro que estava criticando. Chega a ser engraçado.
Arrogância e deboche
Mas não parou por aí. Continuou falando que o conhecimento liberta, que ajuda a desenvolver
um país, entre outras frases de efeito. Estava (olha o “correto”, seu Alexandre) cativando o
leitor, ganhando-o para seu grand finale. “E a raiz de tudo”, continuou ele, “está na capacidade
de se comunicar. A linguagem escrita que transmite, difunde o conhecimento... diferencia o
animal homem dos outros animais.” Traduzindo: a língua é a ortografia. É a ortografia que nos
diferencia dos animais. Falar uma bobagem dessas é o mesmo que dizer que você é a sua foto e
ponto. E quem acha o contrário (que a foto não é você, mas apenas sua representação), está
preso, uma vez que a educação liberta.
E isso (não a foto, mas a ortografia) tornaria a vida melhor. Não sei em que sentido. Se o
conhecimento das normas da gramática fosse instrumento de ascensão social, Lula não teria
sido nosso presidente, Tiririca não seria nosso deputado e os professores de português seriam
os mais bem pagos do mundo. Mas tudo bem. Esse tipo de raciocínio lógico dá trabalho,
segundo as palavras do próprio Alexandre Garcia.
Aí, quando você pensa que escutou de tudo, o ser humano tem o dom de se superar (claro,
sempre tem a cereja do bolo). Garcia afirma que “aqui no Brasil, alunos analfabetos passam
automaticamente de ano para não serem constrangidos” (ele falou isso com aquele ar de
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arrogância e pitadas de deboche, superioridade e sarcasmo). Frase típica de quem não tem o
mínimo conhecimento dos problemas educacionais existentes no país. Afinal, até parece que
essa é a questão em torno da reprovação.
E assim caminha a humanidade...
Lembro-me das oficinas que ministrei em escolas públicas. Lembro-me de uma menina que não
parava quieta, não demonstrava interesse, não merecia ser aprovada. Lembro-me que
perguntei à diretora o porquê dela ser assim. Lembro-me que a diretora me falou que o pai dela
tinha matado a mãe. Agora, aqui entre nós (já que se eu escrevesse “cá entre nós” me acusariam
de internetês), você acha que o problema dessa menina era por que ela não queria aprender?
Tinha preguiça? Você teria coragem de reprová-la? E sobre os alunos que andavam três
quilômetros para chegar à escola? Chegam suados. Cansados. “Mas se eles não aprendem”, diria
Alexandre Garcia, “é porque não querem, porque aprender dá trabalho.” Mas tudo bem, esse
tipo de ignorância é normal para alguém que desconhece o dia-a-dia da educação pública.
A questão da reprovação é estrutural. O problema não é a falta de aplicação de uma educação
rígida, mas do sistema. E o MEC tem consciência disso. O raciocínio é simples: quando um ou
dois alunos não aprendem nada, ok. A culpa é do aluno. Mas quando a maioria sai da escola sem
dominar contas elementares, a culpa já parece não ser do estudante, correto? E um aluno que é
reprovado, é desestimulado a continuar os estudos (sem contar que ele vai voltar a refazer uma
série do qual dificilmente vai aprender o que deixou de aprender no ano anterior). Claro, não é
passar por passar. Mas é entender as limitações do nosso sistema educacional e procurar tapar
os buracos aos poucos. Coisa que o MEC vem fazendo (com todas suas limitações, mas vem). E é
pensando dentro desse contexto que o MEC desestimula a reprovação.
Alexandre Garcia finalizou seu belíssimo comentário afirmando que no Brasil “se dá uma
chancela para ignorância que infelicita”. O que de fato acontece. Para a linguística moderna,
reconhecer a variedade não significa combater a norma padrão ou culta. Algo que todos os
linguistas cansam de repetir. Mas que com essa “chancela para ignorância” dada pela mídia a
comentários de pessoas que estão totalmente alheias aos problemas estruturais de nossa
educação, parece que não adiantar falar isso. Ou nisso. Ou disso. Provavelmente, ele acha que
fala certinho, dizendo tava no lugar de estava. Não se dá conta do que acontece com a língua
dele mesmo. Mas ele pode. Quem não pode é o aluno da escola pública. E assim caminha a
humanidade (e nossa imprensa preconceituosa e desinformada).
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Competência textual e norma culta
Por Chico Arruda em 07/06/2011 na edição 645
Depois de tanto alarde sobre o livro Por uma vida melhor, do ensinar “errado”, dos absurdos
que a mídia fez questão de propagar e que disseminou nas redes sociais numa linguagem
também “errada” – triste paradoxo da imprensa – fica a pergunta: o que fazer para formar
alunos com competência textual? E, se somente a gramática normativa dá conta desta tarefa?
Nosso meio de mudança e interação social no mundo é a linguagem. Dominá-la exige interdiscurso com as diversas camadas sócio-linguísticas. Isto não é tarefa fácil, porém é possível
por meio de práticas de produção textual em que a relação com a linguagem não seja,
unicamente, situada no campo sintático visando a uma normatização da língua, que ela vá alem
disso e alcance o campo social no texto, trabalhando também o que está fora das normas.
O desenvolvimento da prática de produção textual tem como metas ampliar a capacidade da
competência textual, incentivar à leitura e ao estudo gramatical, ação reflexiva da língua e
desenvolver a expressividade de alunos. Estas são algumas das contribuições que a produção
textual pode trazer para dentro da sala de aula, sendo desenvolvida por meio, principalmente,
da realidade escolar e, posteriormente, passar para um campo linguístico mais amplo.
A perspectiva da intertextualidade
A competência textual provém da prática de produção textual. Entretanto, deve-se levar em
consideração a leitura. A leitura não é só um momento dedicado à percepção da escrita; muito
mais que isso, ela é oralidade em suas mais diversas manifestações. A oralidade, que perdeu
campo para a escrita na escola contemporânea, é a primeira tarefa a ser trabalhada dentro da
escola para alcançar a competência textual desejada, um trabalho que exige tempo e esforço de
alunos, professores, escola e das autoridades.
Na construção de alunos competentes na produção textual, não podemos nos esquecer do
espaço multicultural dentro da escola. Este espaço pode ser trabalhado na perspectiva do aluno
extrair, dessas culturas distintas, conhecimentos de mundo diversos e internalizá-los, podendo
ser trabalhado isto na escrita demonstrando domínio de linguagem nos diversos gêneros.
A linguagem, como entidade metafísica, cria o meio social que é expresso pela língua, meio em
que surge a necessidade da comunicação, oral ou escrita, para autenticar e fazer troca de
discursos. Neste ponto, situamos a produção textual como o método coletivo que melhor
atende à comunicação.
Temos inserido nessa perspectiva a ideia de que sociedade (social) e linguagem devem ser
trabalhadas na escola juntas para construção da competência textual. É papel da escola
compreender a relação entre social e linguagem na produção de textos, já que língua é uma
ferramenta revestida de características sociais, pois a atividade linguística é feita pelo próprio
falante.
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Aspectos psicológicos, sociais, culturais e históricos não devem ser desprezados na prática
textual. Podem ser trabalhados, nos alunos, na perspectiva da intertextualidade, fato tão
presente na contemporaneidade em que o homem não se prende mais a uma verdade absoluta,
a necessidade de diversos pontos de vista é essencial para construção de sentidos.
Linguagem não é normatização, mas adequação
Como a linguagem traz ancorada os aspectos citados acima, a escola pode partir desse ponto
para que alunos façam uma reflexão crítica da língua. E talvez seja aqui um dos objetivos do
livro da professora Heloisa Ramos. Sendo assim podemos também tratar da produção de textos
em diversos gêneros, tais como carta, e-mail, reportagem jornalística, outdoor, resenha e assim
por diante.
Os gêneros textuais, sobretudo os de ordem tecnológica, por serem mais presentes no universo
de alunos, são excelentes bases para o trabalho de desenvolvimento da escrita. Nestes gêneros
estão presentes aspectos tanto gramaticais como agramaticais, que podem ser estudados como
diversos considerando os aspectos sociais e culturais de quem escreveu. Os aspectos culturais
têm sido de grande relevância para o estudo da nossa contemporaneidade, tanto na literatura
como na crítica, e não é diferente para o caminho da competência textual em que se requer
cada vez mais capacidade de escritas diversas como forma de interagir, questionar e discutir as
práticas sociais.
No desenvolvimento da competência textual, é importante que professores deixem claro que a
linguagem é como roupa. Existem aquelas que são usadas somente em determinadas festas,
outras que podem circular por cenários diferentes sem problema. Enfim, que se ressalte que
linguagem não é normatização, objetivando distinguir certo e errado, mas que é adequação e o
domínio do registro informal é tão importante quanto o do formal.
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Tentativa de censurar livros didáticos
Por Fábio José Reis de Araujo em 07/06/2011 na edição 645
A cada terça-feira que passa ratifico a minha convicção de que devemos, todos nós que temos o
mínimo de inquietação com o quadro há muito desenhado da educação brasileira, dedicar
alguns momentos do nosso dia para assistirmos às reuniões da Comissão de Educação, Cultura
e Esporte – CE do Senado Federal. Não se trata de uma campanha para aumentar a audiência da
TV Senado, mas é que tal comissão vem ambientando instigantes debates, ao menos para
aqueles que se interessam pelos temas da referida comissão. Há algumas semanas, o atual
presidente da CE, senador Roberto Requião, convidou alguns presidentes de clubes para
debater a questão das vendas do direito de transmissão de jogos para emissoras televisivas. Em
poucas audiências públicas foi possível observar a promiscuidade que rodeia todo este
processo.
Na últimas terça (31/5), a audiência pública foi para debater a questão da escolha por parte do
MEC de alguns livros didáticos para o ensino fundamental. Para quem não está por dentro do
debate, é o seguinte: há algumas semanas a Folha de S.Paulo (não é mera coincidência) noticiou
que o MEC distribui livro didático que “defende errar concordância”. A reportagem se referia ao
livro Por uma vida melhor, da coleção Viver, Aprender, lançado pela editora Global e produzido
pela ONG Ação Educativa. O referido livro é destinado ao segundo segmento do ensino
fundamental da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e traz no primeiro capítulo uma instigante
e nada tradicional discussão sobre variantes da língua portuguesa. Na página 15, para
exemplificar a discussão de que muitos de nós participamos em nosso ensino fundamental
sobre norma culta e norma popular, os autores defendem que o leitor pode, na variante
linguística popular, falar “os livro”.
Um pequeno exercício de leitura
Pronto. Era o que faltava para que setores da grande mídia e alguns intelectuais de plantão
vociferassem aos quatro cantos que o MEC está distribuindo livros didáticos que preconizam
erros gramaticais. E, como que seguindo a inexorável lógica da natureza, os tucano-pefelistas
do Congresso trataram de levantar esta questão como bandeira política da semana e foram
para cima do ministro Haddad com gosto de gás, como dizemos aqui no nordeste.
Além de acusar o MEC de estar agora querendo disseminar as formas de expressão do expresidente Lula – subtenda-se, aquele linguajar baixo, vil, de nordestino semi-analfabeto que
sequer pisou em uma universidade, olimpo dos intelectuais, os tucanos-pefelistas (muito mais
os tucanos, é verdade, pois estes parecem ser mais afeitos à leitura que aqueles) –, acusam o
MEC de escolher livros enviesados ideológica e politicamente, que elogiam o governo do expresidente Lula e criticam o governo do ex-presidente FHC.
Mais uma vez, setores da mídia e parte da oposição tentam, através de factoides, “sangrar” o
governo. Factoides, sim, pois bastava que os ilustres senadores tucano-pefelistas e todos
aqueles que acusam o MEC de disponibilizar livros didáticos que defendem erros gramaticais,
lessem o primeiro capítulo por completo do livro Por uma vida melhor, ou se não
91
conseguissem, por conta do grande volume deste capítulo que chega a 27 páginas, lessem
apenas da página 11 até a página 16. Se tivessem realizado este pequeno exercício de leitura, os
nobres compreenderiam, acredito, a contextualização do livro, que busca naquele início de
capítulo discutir características da língua portuguesa e a importância da norma culta para o
universo letrado. Sobre tal fato, vale ressaltar que a Associação Brasileira de Linguística
(Abralin) e a Associação Brasileira de Linguística Aplicada do Brasil (Alab) já manifestaram
apoio à obra em debate.
Pressão da direita
No tocante á acusação de que o MEC está permitindo a ideologização dos livros didáticos de
História do ensino fundamental público, não passa de mais uma tentativa, destes que sempre
fizeram parte do grupo dos donos do poder e que contaram e escreveram a história como lhes
convinham, de registrar nos anais da história o que lhes interessa. Independente de qual o
espaço do governo Lula ou do governo FHC nos livros didáticos, penso ser absurdo renegar a
análise dos últimos dezesseis anos da nossa história, como sugerido por alguns senadores.
Além do que, esquecem-se os nobres parlamentares de colocar em pauta algo muito importante
nesta discussão, qual seja, o funcionamento do programa Nacional do Livro Didático, que
estabelece que cabe ao (a) professor(a) a escolha do livro que utilizará para ministrar suas
aulas.
A postura do ministro Haddad na audiência que debateu toda esta temática foi positiva, e
poderia demonstrá-la transcrevendo uma parte do debate. Trata-se do momento em que o
senador Álvaro Dias (PSDB-PR) questionou o ministro sobre os livros disponibilizados para o
ensino fundamental e disse: “Até o ditador soviético Josef Stalin defendia a língua em sua forma
mais culta durante o regime soviético.” Respondeu de pronto o ministro Haddad, que fez sua
dissertação de mestrado sobre o sistema sócio-econômico soviético: “Há uma diferença entre
Hitler e Stalin que precisa ser devidamente registrada. Ambos fuzilavam seus inimigos, mas
Stalin lia os livros antes de fuzilá-los. Estamos vivendo, portanto, uma pequena involução,
estamos saindo de uma situação stalinista e agora adotando uma postura mais de viés fascista,
que é criticar um livro sem ler.”Referia-se o ministro a alguns que criticaram o livro sem o ler.
O que se espera, de fato, é que o MEC mantenha essa postura e não se curve à pressão da direita
fascista, como em 2007, quando retirou o livro Nova História Crítica de Mário Schmit por conta
da investida destes mesmos que agora tentam censurar novamente livros escolhidos por
aqueles que de fato leem e conhecem cada obra, os professores do ensino público brasileiro.
92
Poliglotas da própria língua
Luciana Romagnolli
Nas últimas semanas, a língua portuguesa se viu no centro de uma polêmica midiática que poderia ter
se encaminhado para um debate esclarecedor sobre o campo de poder que é a língua, a riqueza de
suas variantes e os preconceitos que delas se originam.
Em vez disso, o que mais se viu foi a defesa exaltada de puristas que sentiram ameaçado o seu
domínio da língua culta. Tudo isso porque o Ministério da Educação adotou o livro "Por uma Vida
Melhor", no qual a professora Heloísa Ramos, depois de ensinar a forma culta da frase "os livros",
afirma que o aluno pode, sim, falar "os livro".
"Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito
linguístico. (...) O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada
ocasião", ela explica.
Para os linguistas que saem em defesa do livro, a leitura apressada da obra fez com que equívocos
fossem ditos por quem não percebeu que o livro não pretende desestimular o aprendizado da norma
culta, e sim reconhecer que a variante que o aluno usa funciona em uns contextos e não em outros.
Segundo eles, faltou aos detratores o conhecimento de que a língua é um organismo vivo (não um
sistema de regras) e que se manifesta em variantes: as regionais (o "tu" do gaúcho, o ‘vou não’ do
baiano), etárias (gírias) e sociais, terreno de maior preconceito.
Até o poeta Ferreira Gullar, no artigo "Verdade e Preconceito", confundiu as ideias ao supor que,
para os linguistas, "tanto faz dizer ‘problema’ como ‘pobrema’ que está certo". Ele se ateve ao
maniqueísmo do certo ou errado, justamente aquele parâmetro que foi superado nas últimas décadas,
em favor da noção de a língua comportar a variedade padrão e outras não padrão. Só crê que fala
perfeitamente a língua culta quem nunca parou para se ouvir.
Atraso. "É chocante quando ouvimos poetas membros da Academia Brasileira de Letras e
professores adotarem esse discurso. Eles estão pelo menos 30 anos atrasados na pesquisa linguística",
afirma Eduardo Calbucci, um dos curadores da exposição "Menas", que ocupou no ano passado o
Museu da Língua Portuguesa e pode ser vista no site da instituição.
Na prática, o livro e a exposição defendem ideias afins. "Chamamos a atenção para as diversas
variantes do português brasileiro, reconhecendo que a variedade do padrão culto costuma ser
privilegiada em determinados contextos de comunicação e que as outras variedades são importantes
na língua viva", diz o curador. "A escola tem o dever, sim, de ensinar o padrão culto da língua, isso
ninguém discute", completa.
Essa perspectiva linguística está mais interessada em descrever os fenômenos da língua do que em
prescrever regras, o que bate de frente com a postura dos gramáticos tradicionais. "Para eles, não
interessa a realidade, e sim o que queriam que fosse a norma culta da língua", diz Calbucci.
Uma instalação da exposição, "Erros Nossos de Cada Dia", mapeou expressões corriqueiras que não
atendem à norma culta. "Muitas pessoas não reconheciam que certas frases estavam no padrão
popular", relata o curador. Caso de "vamos se ver amanhã?", em vez de "vamos nos ver amanhã?".
"Quem não fala isso com naturalidade?", questiona.
93
Depende do contexto. É uma questão de se tornar "poliglota da própria língua". "Quanto mais
variantes você conhece, mais eficiente é sua capacidade de comunicação, porque escolhe a adequada
a cada situação", ele argumenta.
Exemplo é o verso de "Asa Branca" (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira): "Pra mim vortar pro meu
sertão". "Engraçado como as pessoas se incomodam e cantam ‘pra eu voltar’. Quem está cantando é
um retirante fugindo da seca, que usa o padrão popular da língua", destaca o curador.
A língua como território de disputa de poder
Mais do que uma mera questão de certo ou errado, toda discussão em torno do ensino da língua
portuguesa ressalta, para os linguistas, a noção de que a língua é um fenômeno social, vinculado a
grupos e variantes, e de que o domínio da língua é um poder.
"Nessa estreita relação com a sociedade, o que atribui preconceito é o caráter social, não linguístico",
distingue a coordenadora da Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da UFMG, Maria Antonieta
Amarante Cohen.
Só isso explica por que a expressão "as menina vai" causa mais calafrios do que "vamos se
encontrar". A segunda é amplamente usada por diversas classes sociais, já a primeira tem uso restrito
entre grupos com menos poder aquisitivo e tempo de estudo. "Pensar a língua em si, desvinculada da
sociedade, é irreal. Por que uma forma linguística é estigmatizada socialmente e outra não? A questão
é social", responde a professora.
Para deixar mais claro, Maria Antonieta recorda que, na história das línguas latinas, "as menina" é
um fenômeno comum na fala oral. No francês, por exemplo, há séculos o segundo plural caiu da fala
(escreve-se "les enfants", mas diz-se "les enfant"). "Na língua portuguesa, esse fenômeno está em
variação e é estigmatizado", constata.
O mesmo vale para o "r" "caipira" ou retroflexo. "O que ele tem de pior ou melhor em relação a outro
‘r’? Nada, mas a sociedade atribui à língua valores de inferioridade", diz a professora. O contraponto
pode vir do inglês norte-americano, língua de alto status social e na qual se usa o "r" retroflexo ao
dizer "world", por exemplo.
Complexo. Para continuar no inglês, vale lembrar que aquela língua só marca plural uma vez: "the
book, the books". "Existe uma crença generalizada do público leigo de que a língua popular não tem
complexidade, mas tem. O ‘s’ marcado só no artigo em ‘as menina’ é complexo, porque só o artigo já
garante a ideia de plural", esclarece Maria Antonieta.
A importância de dominar a norma culta, portanto, residiria sobretudo no fator de promoção social a
ela associado.
Humilhação. No calor do debate que o tema provocou, o escritor Cristóvão Tezza ("O Filho Eterno")
foi um dos que se manteve firme contra o preconceito linguístico.
Em entrevista a Mônica Waldvogel, ele disse que mostrar aos alunos que a língua é um conjunto de
variedades pode inclusive ser uma maneira de trabalhar com as diferenças existentes e ensinar a
importância de aprender a norma culta.
"O que não precisa é humilhar ninguém para fazer isso. É um processo esmagador, a escola tem
muito poder. O aluno chega lá, só fala a variedade dele e o professor diz: “olha, você é burro, senta
ali no milho....” Vamos trabalhar de outra forma. É uma questão didática", diz Tezza.
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/Vida
Principais universidades exigem que candidato diferencie forma
oral e culta
13 de junho de
Mariana Mandelli - O Estado de S.Paulo
Praticamente todos os anos, os vestibulandos encontram em suas provas ao menos uma questão
que, a partir de uma tirinha em quadrinhos, de um poema ou de um trecho de um texto, aborda
um tema que vem provocando polêmica há um mês: as variantes linguísticas.
Em maio, um livro de língua portuguesa adotado pelo Ministério da Educação (MEC) causou
polêmica por defender o uso da linguagem coloquial (leia mais abaixo) e suscitou um debate em
torno do chamado preconceito linguístico. A Ação Educativa, organização que é a responsável
pedagógica pela obra, fez um levantamento que mostra que os maiores vestibulares do País
vêm cobrando esse tema em questões nos últimos dez anos.
Os exercícios abordam as diferenças linguísticas de diversas formas: pedindo para o candidato
verificar onde está aplicada a linguagem coloquial; identificar marcas de coloquialidade nos
textos; responder o nome correto da variedade linguística usada em determinada expressão e
transformar um trecho de linguagem oral na norma culta.
"O aluno precisa conhecer a linguagem popular para saber o quão distante ele está da norma
culta", diz coordenadora-geral da Ação Educativa, Vera Masagão Ribeiro. "As variedades
linguísticas já são um tema consolidado, que é cobrado nos exames."
Os coordenadores de três dos maiores vestibulares do País concordam que o conteúdo deve ser
cobrado, mas sempre tendo em vista a avaliação do aprendizado que o candidato tem em
relação à norma culta. "As variantes linguísticas constam no programa do nosso vestibular",
afirma Maria Thereza Fraga Rocco, da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest),
responsável pelo exame da Universidade de São Paulo (USP). "E não só no nosso: praticamente
todos eles cobram."
Renato Pedrosa, coordenador da Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp
(Comvest), destaca que a universidade está sempre em busca dos melhores candidatos, o que
inclui expressar-se corretamente na escrita. "A Unicamp espera que o aluno tenha esse
domínio, aprendido na escola", explica.
Para os coordenadores, a cobrança é um reflexo daquilo que é ensinado em sala de aula. "O
vestibular presume que o aluno saiba distinguir os diferentes tipos de linguagem" diz Rogério
Chociay, assessor da diretoria acadêmica da Fundação para o Vestibular da Universidade
Estadual Paulista (Vunesp).
Preparo. Para os cursinhos e colégios, o ensino da norma culta é indispensável e é encarado
como uma das principais missões da escola. Mas os professores encaram as variantes
95
linguísticas como um tema que passa por um viés cultural, demonstrando as diferenças de
costumes entre pontos distantes do País, como os regionalismos dos sotaques e vocabulários.
"Penso que o assunto deva ser tratado pelos professores sem obscurantismo, elitista ou
populista, nem moralismo, de uma perspectiva linguística e com sensibilidade para diferenças
sociais e culturais", diz Francisco Achcar, professor aposentado da Unicamp e coordenador de
língua portuguesa do Objetivo.
Francisco Platão Savioli, professor da USP e supervisor de língua portuguesa do Anglo, destaca
que os estudantes chegam à escola dominando uma linguagem - como a utilizada entre os
jovens nas redes sociais, por exemplo - que se afasta em menor ou maior grau da norma culta.
"Na escola, o aluno vai saber em que situação ela (a norma culta) vai ser necessária,
aprendendo a avaliar a adequação de uma linguagem", explica.
"Jogar fora as variantes é jogar fora a riqueza da língua. Ensiná-las não tem nada a ver com
ensinar errado."
Debate. Algumas escolas discutiram o livro do MEC em sala de aula. No colégio Santa Amália,
em São Paulo, os alunos tiveram uma proposta de redação baseada em diversos textos
publicados nas últimas semanas - tanto os que apoiavam quanto os que acusavam a obra.
No Augusto Laranja, na zona sul paulistana, os estudantes se debruçaram sobre os artigos que
saíram em diversos veículos de comunicação - a escola já costuma tratar o assunto a partir dos
diversos gêneros textuais. "Para trabalhar o conceito de adequação de linguagem utilizamos os
mais diversos tipos de padrão de texto", diz a professora Rosane de Luiz Cesari.
Rute Possebom, que leciona língua portuguesa no Santa Amália, reforça que os alunos precisam
entender que é o domínio da norma culta que vai aprová-los no vestibular. "E também ajudá-los
a conquistar uma vaga no mercado de trabalho", afirma.
PARA LEMBRAR
Livro iniciou polêmica
O livro Por uma Vida Melhor, da Coleção Viver, Aprender, foi distribuído pelo Programa
Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) a 484.195 alunos de
4.236 escolas.
O conteúdo sugere que o uso da língua popular - ainda que com erros gramaticais - é válido.
Expressões como "Nós pega o peixe" ou "os menino pega o peixe" aparecem como exemplos. Os
autores lembram que, caso deixem a norma culta, os alunos podem sofrer "preconceito
linguístico".
Em nota enviada na época, a autora Heloisa Ramos disse que "o importante é chamar a atenção
para o fato de que a ideia de correto e incorreto no uso da língua deve ser substituída pela ideia
de uso da língua adequado e inadequado, dependendo da situação comunicativa".
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Nota pública da Ação Educativa
Posicionamento institucional da Ação Educativa sobre a
polêmica envolvendo livro distribuído pelo MEC.
Uma frase retirada da obra Por uma vida melhor, cuja responsabilidade pedagógica é da Ação
Educativa, vem gerando enorme repercussão na mídia. A obra é destinada à Educação de
Jovens e Adultos, modalidade que, pela primeira vez neste ano, teve a oportunidade de receber
livros do Programa Nacional do Livro Didático. Por meio dele, o Ministério da Educação
promove a avaliação de dezenas de obras apresentadas por editoras, submete-as à avaliação de
especialistas e depois oferece as aprovadas para que secretarias de educação e professores
façam suas escolhas.
O trecho que gerou tantas polêmicas faz parte do capítulo “Escrever é diferente de falar”. No
tópico denominado “concordância entre palavras”, os autores discutem a existência de
variedades do português falado que admitem que substantivo e adjetivo não sejam flexionados
para concordar com um artigo no plural. Na mesma página, os autores completam a
explanação: “na norma culta, o verbo concorda, ao mesmo tempo, em número (singular –
plural) e em pessoa (1ª –2ª – 3ª) com o ser envolvido na ação que ele indica”. Afirmam
também: “a norma culta existe tanto na linguagem escrita como na oral, ou seja, quando
escrevemos um bilhete a um amigo, podemos ser informais, porém, quando escrevemos um
requerimento, por exemplo, devemos ser formais, utilizando a norma culta”.
Pode-se constatar, portanto, que os autores não estão se furtando a ensinar a norma culta,
apenas indicam que existem outras variedades diferentes dessa. A abordagem é adequada, pois
diversos especialistas em ensino de língua, assim como as orientações oficiais para a área,
afirmam que tomar consciência da variante linguística que se usa e entender como a sociedade
valoriza desigualmente as diferentes variantes pode ajudar na apropriação da norma culta.
Uma escola democrática deve ensinar as regras gramaticais a todos os alunos sem menosprezar
a cultura em que estão inseridos e sem destituir a língua que falam de sua gramática, ainda que
esta não esteja codificada por escrito nem seja socialmente prestigiada. Defendemos a
abordagem da obra por considerar que cabe à escola ensinar regras, mas sua função mais
nobre é disseminar conhecimentos científicos e senso crítico, para que as pessoas possam
saber por que e quando usá-las.
O debate público é fundamental para promover a qualidade e equidade na educação. É preciso,
entretanto, tomar cuidado com a divulgação de matérias com intuitos políticos pouco
educativos e afirmações desrespeitosas em relação aos educadores. A Ação Educativa está
disposta a promover um debate qualificado que possa efetivamente resultar em
democratização da educação e da cultura. Vale lembrar que polêmicas como essa ocupam a
imprensa desde que o Modernismo brasileiro em 1922 incorporou a linguagem popular à
literatura. Felizmente, desde então, o país mudou bastante. Muitas pessoas têm consciência de
que não se deve discriminar ninguém pela forma como fala ou pelo lugar de onde veio. Tais
mudanças são possíveis, sem dúvida, porque cada vez mais brasileiros podem ir à escola tanto
para aprender regras como para desenvolver o senso crítico.
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Nota pública SECADI-MEC
Lidar com as diferenças é uma das maiores dificuldades do ser humano. Ao se descobrir a
diversidade, em muitas ocasiões, manifesta-se a tensão, a intolerância e, principalmente, o
preconceito, que se define como uma postura negativa, sem fundamentos, para com as
diferenças manifestadas nas várias dimensões da vida humana. Uma forma de preconceito
particularmente sutil é a que se volta contra a identidade linguística do indivíduo e que, mesmo
sendo combatido, no Brasil, por estudiosos da sociolinguística continua a ser relevado pela
sociedade em geral, inclusive na escola.
O reconhecimento da variação linguística é condição necessária para que os professores
compreendam o seu papel de formar cidadãos capazes de usar a língua com flexibilidade, de
acordo com as exigências da vida e da sociedade. Isso só pode ser feito mediante a explicitação
da realidade na sala de aula.
Todas as línguas mudam com o passar do tempo e variam geográfica e socialmente. A respeito
da língua, dois fatos devem ser levados em conta: a) não existe nenhuma sociedade na qual
todos falem da mesma forma; b) a variedade linguística é o reflexo da variedade social e, como
em todas as sociedades existe alguma diferença de status, essas diferenças se refletem na
língua.
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Esclarecimentos sobre o livro “Por uma vida melhor”, para
Educação de Jovens e Adultos
Uma frase retirada de seu contexto na obra Por uma vida melhor, cuja responsabilidade
pedagógica é da Ação Educativa, vem gerando intensa repercussão na mídia. Diante da enorme
quantidade de informações incorretas ou imprecisas que foram divulgadas, a Ação Educativa se
coloca à disposição dos órgãos de imprensa para promover um debate mais qualificado, e
esclarece:
1. “Escrever é diferente de falar”. Como o próprio nome do capítulo indica, os autores se
propõem, em um trecho específico do livro, a apresentar ao estudante da modalidade de
Educação de Jovens e Adultos (EJA) as diferenças entre a norma culta e as variantes que ele
aprendeu até chegar à escola, ou seja, variantes populares do idioma.
2. Os autores não se furtam, com isso, a ensinar a norma culta. Pelo contrário, a linguagem
formal é ensinada em todo o livro, inclusive no trecho em questão. No capítulo mencionado,
os autores apresentam trechos inadequados à norma culta para que o estudante os
reescreva e os adeque ao padrão formal, de posse das regras aprendidas. Por isso, é leviana
a afirmação de que o livro “despreza” a norma culta. Ainda mais incorreta é a afirmação de
que o livro “contém erros gramaticais”.
3. Para que possa aprender a utilizar a norma culta nas mais diversas situações, o estudante
precisa ter consciência da maneira como fala. A partir de então, poderá escolher a melhor
forma de se expressar. Saberá, assim, que no diálogo com uma autoridade ou em um
concurso público, por exemplo, deve usar a variante culta da língua. Mas não quer dizer que
deva abandoná-la ao falar com os amigos, ou outras situações informais.
4. É importante frisar que o livro é destinado à EJA – Educação de Jovens e Adultos. Ao falar
sobre o tema, muitos veículos omitiram este “detalhe” e a mídia televisiva chegou a ilustrar
VTs com salas de crianças. Nessa modalidade, é necessário levar em consideração a
bagagem cultural do adulto, construída por suas vivências e biografias educativas.
5. O livro “Por uma vida melhor” faz parte do Programa Nacional do Livro Didático. Por meio
dele, o MEC promove a avaliação de dezenas de obras apresentadas por editoras, submeteas à avaliação de especialistas e depois oferece as aprovadas para que secretarias de
educação e professores façam suas escolhas. O livro produzido pela Ação Educativa foi
submetido a todas essas regras e escolhido, pois se adequa aos parâmetros curriculares do
Ministério e aos mais avançados parâmetros da educação linguística.
6. A Ação Educativa tem larga experiência no tema, e a coleção Viver, Aprender é um dos
destaques da área. Seus livros já foram utilizados como apoio à escolarização de milhões de
jovens e adultos, antes de ser adotado pelo MEC, em vários estados.
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O que dizem os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)
Que fala cabe à escola ensinar
A Língua Portuguesa, no Brasil, possui muitas variedades dialetais Identificam-se geográfica .e
socialmente as pessoas pela forma como falam. Mas há muitos preconceitos decorrentes do
valor social relativo que é atribuído aos diferentes modos de falar: é muito comum se
considerarem as variedades linguísticas de menor prestígio como inferiores ou erradas.
O problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser
enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o
respeito à diferença. Para isso, e também para poder ensinar Língua Portuguesa, a escola
precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma “certa” de falar — a que se
parece com a escrita — e o de que a escrita é o espelho da fala — e, sendo assim, seria preciso
“consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. Essas duas crenças produziram
uma prática de mutilação cultural que, além de desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando
sua comunidade como se fosse formada por incapazes, denota desconhecimento de que a
escrita de uma língua não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos, por mais
prestígio que um deles tenha em um dado momento histórico.
A questão não é falar certo ou errado, mas saber qual forma de fala utilizar, considerando as
características do contexto de comunicação, ou seja, saber adequar o registro às diferentes
situações comunicativas. É saber coordenar satisfatoriamente o que falar e como fazê-lo,
considerando a quem e por que se diz determinada coisa. É saber, portanto, quais variedades e
registros da língua oral são pertinentes em função da intenção comunicativa, do contexto e dos
interlocutores a quem o texto se dirige. A questão não é de correção da forma, mas de sua
adequação às circunstâncias de uso, ou seja, de utilização eficaz da linguagem: falar bem é falar
adequadamente, é produzir o efeito pretendido.
As instituições sociais fazem diferentes usos da linguagem oral: um cientista, um político, um
professor, um religioso, um feirante, um repórter, um radialista, enfim, todos aqueles que
tomam a palavra para falar em voz alta, utilizam diferentes registros em razão das também
diferentes instâncias nas quais essa prática se realiza. A própria condição de aluno exige o
domínio de determinados usos da linguagem oral.
Cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral nas diversas situações comunicativas,
especialmente nas mais formais: planejamento e realização de entrevistas, debates,
seminários, diálogos com autoridades, dramatizações, etc. Trata-se de propor situações
didáticas nas quais essas atividades façam sentido de fato, pois seria descabido “treinar” o uso
mais formal da fala.
A aprendizagem de procedimentos eficazes tanto de fala como de escuta, em contextos mais
formais, dificilmente ocorrerá se a escola não tomar para si a tarefa de promovê-la.
Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental – Língua Portuguesa. Brasília:
MEC, 1997, p. 26-27. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf.
100
Lista de vídeos e reportagens em áudio disponíveis na internet
•
Entrevista com o professor Ataliba Castilho sobre o livro "Por uma Vida Melhor"
http://www.youtube.com/watch?v=DROHTF4iaiQ
•
José Luiz Fiorin (USP) fala da polêmica sobre o livro didático "Por uma Vida Melhor"
http://youtu.be/o7OlNhxLrOg
•
Cesar Callegari, do CNE, fala da polêmica sobre o livro "Por uma Vida Melhor"
http://youtu.be/7Wio5rAj1Mc
Bom dia Espírito Santo: entrevista com a professora Cleonara Schwartz (UFES)
http://youtu.be/zf6jxbMTDUI
•
•
Observatório da Imprensa debate a polêmica em torno do livro "Por uma Vida Melhor" - com
Marcos Bagno, Maria do Pilar Lacerda, Heloísa Ramos
http://youtu.be/M4367cC9Cjo
•
Entre Aspas da Globonews: Escritores debatem a falsa polêmica dos erros no livro didático - com
Cristóvão Tezza e Marcelino Freire.
http://youtu.be/a7SSJc25Jvc
•
Convidados debatem sobre as polêmicas da língua portuguesa - com Maria do Pilar Lacerda e
Cristóvam Buarque
http://g1.globo.com/videos/globo-news/espaco-aberto-alexandre-garcia/v/convidados-debatem-sobreas-polemicas-da-lingua-portuguesa/1512976/
•
Participação Popular discute o ensino de Língua Portuguesa e os livros distribuídos pelo MEC
http://www2.camara.gov.br/tv/materias/PARTICIPACAO-POPULAR/198914-PARTICIPACAO-POPULARDISCUTE-O-ENSINO-DE-LINGUA-PORTUGUESA-E-OS-LIVROS-DISTRIBUIDOS-PELO-MEC.html
Reportagens e entrevistas em áudio:
•
Entrevista com Vera Masagão Ribeiro, doutora em educação, coordenadora geral da ONG Ação
Educativa
http://www.cbn.com.br/programas/cbn-total/2011/05/17/ERROS-EM-LIVRO-DE-PORTUGUESSERVEM-PARA-LEVAR-ALUNOS-DO-COLOQUIAL-A-NORMA-CULTA.htm
•
Entrevista com Fernando Haddad, ministro da Educação
http://cbn.globoradio.globo.com/programas/cbn-brasil/2011/05/17/HADDAD-EXIME-MINISTERIO-DAEDUCACAO-DA-ADOCAO-DO-LIVRO-POR-UMA-VIDA-MELHOR.htm
•
Vera Masagão responde às críticas na Band News.
http://bandnewsfm.band.com.br/conteudo.asp?id=488961
•
Entrevista com Egon Rangel, professor da PUC-SP e representante da área de Língua Portuguesa na
comissão técnica do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) da Secretaria de Educação
Básica do MEC
http://cbn.globoradio.globo.com/programas/jornal-da-cbn/2011/06/13/QUALIDADE-DA-AVALIACAODOS-LIVROS-FEITA-PELO-MEC-E-BOA-DIZ-PROFESSOR.htm
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