romaria dos mártires da caminhada romaria dos mártires da

Transcrição

romaria dos mártires da caminhada romaria dos mártires da
Povo Bororo não pode viver
em terra homologada
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Página 12
ISSN 0102-0625
Orçamento cresce, mas verba
para demarcações diminui
Minervina e Marilene Pataxó Hã Hã Hãe, mãe e irmã de Galdino, assassinado em 1997 – Foto: Priscila D. Carvalho
Ano XXVII •• N00 287 •• Brasília-DF •• Agosto-2006
R$ 3,00
ROMARIA DOS
MÁRTIRES DA CAMINHADA
CELEBRAÇÃO LEMBRA AQUELES QUE MORRERAM DEFENDENDO A VIDA
pág. 8 e 9
Opinião
Porantinadas
Declaração da ONU sobre os
direitos dos povos indígenas
A
recente decisão do Conselho
de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas de
aprovar a Declaração sobre os
Direitos dos Povos Indígenas representa
um fato relevante no debate internacional sobre a afirmação dos direitos dos
povos indígenas.
O Conselho acolheu a proposta do
Grupo de Trabalho da Comissão de
Direitos Humanos, que foi encarregado,
em 1994, de elaborar um projeto de
declaração.
O texto, que deve ser submetido à
apreciação da Assembléia Geral da ONU,
projeta no cenário normativo internacional parâmetros que a Organização
Internacional do Trabalho já consagrara
na Convenção n° 169, de 1989, que foi
incorporada ao nosso ordenamento
jurídico, em 2004.
Em seus 43 artigos, a Declaração
projeta o reconhecimento mundial em
relação aos direitos específicos e à diferença étnica e cultural dos povos indígenas. Ela estabelece que ao exercerem seus direitos à livre determinação,
estes povos têm direito à autonomia ou
ao autogoverno nas questões relacionadas aos seus assuntos internos, assim
como, aos meios para financiar suas funções autônomas.
Além do direito a tratamento pelos
Estados como povos distintos, rejeitando quaisquer formas discriminatórias ou
integracionistas, a Declaração reconhece o direito dos povos e dos indivíduos
de pertencer a uma comunidade ou nação indígenas, conforme suas tradições.
Os sistemas próprios nas áreas educacional, de informação, de atendimento à saúde são reconhecidos como direitos, cabendo aos Estados assegurar meios para o seu desenvolvimento. Os direitos a terra e recursos que possuam em
razão de propriedade ou uso tradicional
também são reconhecidos, cabendo aos
Estados garantir a proteção jurídica, respeitando-se os costumes e os sistemas
de posse da terra pelos povos indígenas.
No que se refere às formas de relação
destes povos com o Estado, o texto se destaca pela convergência com o que eles vêm
reivindicando. Trata-se do direito de “participar na adoção de decisões nas questões que afetem a seus direitos, vidas e
destinos, por intermédio de representantes eleitos por eles” e a previsão de que
“os Estados celebrarão consultas e cooperarão de boa fé com os povos indíge-
Melhor mudar de canal
nas interessados, por meio de suas instituições representativas para obter seu
consentimento prévio, livre e informado
antes de adotar e aplicar medidas
legislativas e administrativas que os afetem”, ou “antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e
outros recursos, particularmente em relação com o desenvolvimento, a utilização
ou a exploração de recursos minerais,
hídricos ou de outro tipo”.
Garantias desta natureza são fundamentais como referência para a administração dos interesses desenvolvimentistas e o respeito às especificidades
étnicas e culturais dos povos indígenas.
A aprovação pela ONU de Declaração
com este conteúdo significará importante balizamento na regulação dos direitos constitucionais no Brasil, expressos
na elaboração do novo Estatuto dos Povos Indígenas, que se espera venha a ser
definitivamente aprovado pelos deputados federais e senadores e promulgado
pelo Presidente da República, na próxima legislatura, que resultará das eleições
de outubro.
Paulo Machado Guimarães e
Cláudio Luiz dos Santos Beirão
Advogados e Ass. Jurídicos do Cimi
MARIOSAN
As grandes empresas de telecomunicação pediram e o governo atendeu: o padrão
da TV digital brasileira será japonês. Em troca da promessa cumprida, o presidente Lula
pediu o apoio das emissoras de TV para
criar um canal com uma programação que
mostre o Brasil “bonito”. As emissoras cederiam produções que mostram as belezas
naturais e a cultura brasileira (como costuma fazer o “Globo Repórter”) que seria transmitida internacionalmente com o intuito de
limpar a imagem nacional lá fora.
Dizem que Lula acha muito ruim viajar
pelo exterior e ver na TV tantos problemas
recorrentes em seu país, como a violência,
o desrespeito ao meio ambiente e os direitos indígenas.
Taí uma boa solução para os problemas
do Brasil... mudar de canal!
Magnata quer comprar
a Amazônia
Trata-se de uma piada antiga, mas de vez
em quando retorna. Agora foi a vez do magnata, Johan Elliach, presidente de uma empresa sueca de materiais esportivos propor
a compra da Amazônia para proteger a floresta e a natureza.
A proposta, no mínimo absurda, foi
apresentada em Londres em um simpósio
sobre mudanças climáticas promovido por
uma empresa de seguros. Johan, que já é proprietário de 160 mil hectares da floresta
amazônica, acredita que com cerca 39 bilhões de reais é possível levar a floresta inteira ... a pergunta é: com ou sem seus habitantes?
Devastação na Amazônia
ISSN 0102-0625
Os satélites do Sistema de Proteção da
Amazônia (Sipam) confirmaram o que
ambientalistas e indigenistas vêm denunciando insistentemente nos últimos anos:
4% (cerca de 546 Km²) das áreas de proteção
ambiental da fronteira sul das florestas do
estado do Amazonas foram devastadas
pelos interesses econômicos predatórios.
Um detalhe importante apontado pelo
estudo é que as terras indígenas, que teoricamente deveriam ser protegidas pelo poder público, são as mais afetadas na região.
Edição fechada em 01/08/2006
Publicação do Conselho Indigenista
Missionário (Cimi), organismo vinculado à
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB).
APOIADORES
UNIÃO EUROPÉIA
Agosto - 2006
2
Na língua da nação indígena
Sateré-Mawé, PORANTIM
significa remo, arma, memória.
Priscila D
D.. Carvalho
EDITORA
RP 4604/02 DF
Dom Gianfranco Masserdotti
PRESIDENTE
CONSELHO DE RED
AÇÃO
REDAÇÃO
Antônio C. Queiroz
Benedito Prezia
Egon Heck
Nello Ruffaldi
Paulo Guimarães
Paulo Maldos
Paulo Suess
Paulo Maldos
ASSESSOR POLÍTICO
Marcy Picanço
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Conjuntura
A transformação do cidadão em consumidor
Enquanto o país mantém prioridades de estado mínimo e reduz investimentos sociais, movimentos
enfrentam ideologia individualista que dificulta mobilização, mas seguem tentando crescer
Ivo Lesbaupin (* )
Sociólogo
competência. E este é só um dos muitos
exemplos.
O desemprego desestrutura uma
das bases da organização dos trabalhadores, os sindicatos. Para sobreviver, as
pessoas têm de trabalhar muito mais
(tanto os empregados como, sobretudo, os
desempregados) e, com isso, o tempo para
a mobilização parece escassear.
Também as motivações para a luta diminuem, pois elas vinham da crença de que
os seres são sujeitos de direitos, que podem lutar unidos pela dignidade. Se não
há mais direito, ou se direito é privilégio,
lutar em nome de quê? O que fazer se querer salário melhor é provocar o aumento
da inflação? Na ideologia neoliberal, esta
situação é apresentada como inevitável,
como conseqüência do progresso, da globalização: esconde-se que ela é produzida
pelo ser humano, que é injusta.
O
mundo vem sendo transformado
drasticamente nos últimos 25
anos pela hegemonia das políticas neoliberais, que se materializam na redução dos investimentos sociais,
no foco dos governos em priorizar o pagamento de dívidas mantendo juros altos,
além da política de privatizações. Em paralelo, ocorre a globalização neoliberal,
pela qual os países do Terceiro Mundo são
explorados pelos do Primeiro, e também
pelas multinacionais, que quebram a indústria e a produção nacionais.
Resultados visíveis dessas políticas têm
sido o desemprego estrutural, massivo, e,
conseqüentemente, a precarização do emprego. Diminui o número de trabalhadores com carteira assinada. Há 20 anos, no
Brasil, chegamos a ter 60% dos trabalhadores registrados; hoje, mais da metade dos
trabalhadores está no emprego informal.
Quem consegue trabalhar submete-se a
baixos salários, pouca proteção social e
jornada de trabalho prolongada.
Voltam a ocorrer situações que nos fazem lembrar o início do capitalismo: trabalho escravo, exploração de crianças, tráfico de mulheres, de crianças, migração de
trabalhadores da Ásia para a Inglaterra, da
América Latina para os EUA, da África para
a Europa.
No Brasil
Aqui, depois da ascensão dos movimentos sociais entre o fim dos anos 70 e a
década de 80, vimos o triunfo do
neoliberalismo e sua hegemonia durante
os anos 90. Depois de anos enfrentando
com dificuldade o governo Fernando
Henrique Cardoso, a esquerda finalmente
conseguiu derrotá-lo, graças a um discurso coerente e de mudança.
O novo governo, no entanto, deu continuidade às políticas econômicas da era
FHC. Os movimentos sociais ficaram perdidos durante o primeiro ano do governo
Lula. Divididos em setores (funcionalismo
público X trabalhadores do setor privado),
divididos quanto à postura face ao governo (“governo em disputa” x “nosso governo”), divididos sobre como agir no PT (“enfrentar o governo” ou “se submeter”?).
O governo Lula conseguiu dividir os
movimentos sociais. Quando fazem críticas, os movimentos são acusados de “fazer o papel da direita”. É uma das táticas
A política neoliberal veio acompanhada pela difusão de uma nova ideologia. A
base moral que sustentava a sociedade –
direitos humanos, sociais, trabalhistas, dignidade da pessoa humana – foi sendo desmontada.
Tudo se reduz ao indivíduo. Cada um
deve trabalhar para obter saúde, educação,
moradia. O ser humano não é mais sujeito
de direitos, é consumidor; não há serviços
públicos, mas bens a serem comprados. O
Estado nada deve fazer, porque qualquer
ação de proteção social será tachada de
“paternalismo”.
Por que isto afeta os
movimentos sociais?
Os novos valores não produzem
união, solidariedade, consenso. Ao contrário, a ideologia individualista afasta a
possibilidade de atuação coletiva. Se antes a pobreza era fruto do trabalho malremunerado, hoje ela é vista como fruto
da incompetência individual. Como
conseqüência, a riqueza está atrelada à
terra indígena Raposa Serra do Sol, embora com modificações.
Estas vitórias só foram conseguidas
graças a uma ampla mobilização - do próprio movimento e dos seus apoiadores:
alguns parlamentares, setores da sociedade civil, da universidade, parte da Igreja
Católica, movimentos de trabalhadores
rurais. Foi somente a articulação de muitos movimentos e de muitos setores da sociedade que conseguiu, até o momento,
barrar algumas das investidas do governo
para atender aos interesses dos grandes.
Alguns objetivos, no entanto, até agora
não foram alcançados: a realização da reforma agrária, a ruptura com o agronegócio, a
realização de uma auditoria da dívida externa, a mudança da política econômica.
No confronto entre movimento social
e governo, este último costuma usar os
seguintes meios para enfraquecer o movimento: dificultar a articulação do próprio
movimento, dificultar a comunicação do
movimento com o conjunto da sociedade,
dificultar o acesso aos meios de comunicação, enquanto os grandes meios seguem
difundindo a ideologia individualista e
divulgando uma imagem negativa dos movimentos (“destruidores da propriedade”).
Já os movimentos, para alcançar seus
objetivos, precisam reforçar a consciência
de seus membros, fortalecendo a crença na
legitimidade de sua luta por direitos. Precisam criar consenso junto à sociedade em
torno de sua luta, o que exige comunicação (dar visibilidade a suas idéias e a seus
argumentos). Um movimento, sozinho,
pouco consegue: ele precisa manter e
aumentar a articulação com outros movimentos e ganhar o apoio de outros setores da sociedade, para aumentar a sua
força e incidência.
( )
* Professor da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) e Membro da
coordenação da ONG Iser Assessoria.
Foto: Arquivo Cimi
As “novas” idéias
da “nova” sociedade
para manter o apoio a um governo que é,
de fato, de direita. E, mesmo se o governo
não consegue convencer a todos, consegue reduzir a intensidade da luta. Os últimos três anos e meio foram anos de contenção dos movimentos. E a tática da
cooptação também funcionou muito, através da oferta de benefícios, de cargos.
Como resultado, vivemos no Brasil um
momento em que existe mobilização, mas,
de modo geral, ela está em baixa. Alguns
setores mantiveram e até ampliaram sua
mobilização como, por exemplo, o movimento indígena. Outros setores se dividiram: houve um racha nos movimentos sindical e ecológico, por exemplo.
Com baixa mobilização é difícil se
fazer ouvir. Assim, o governo conseguiu
aprovar leis contrárias aos interesses dos
trabalhadores, como a liberação dos
transgênicos, a Lei de Falências, o leilão
anual das áreas de exploração do petróleo.
E o governo está preparando para 2007 a
reforma trabalhista, para flexibilizar a proteção dos trabalhadores.
No entanto, apesar das condições
adversas, a mobilização social conseguiu
barrar, até agora, o projeto de autonomia
do Banco Central. A partir da greve de fome
de D. Luiz Cappio, conseguiu obrigar ao
debate e interromper, ao menos temporariamente, o projeto de transposição do rio
São Francisco. Obteve a homologação da
3 Agosto - 2006
Política Indigenista
Orçamento indigenista cresce, mas dinheiro
para demarcações diminui
Priscila D. Carvalho
Repórter
A
análise das ações específicas para
os povos indígenas no orçamento
brasileiro entre os anos 2000 e
2005 conclui que houve aumento
no gasto da administração pública estatal,
mas diminuíram os recursos destinados à
regularização fundiária e à proteção dos
territórios indígenas. Este tipo de investimento é considerado “estratégico para a
sustentabilidade social e econômica desses povos” pelo autor da análise, o pesquisador Ricardo Verdum, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Em valores reais, isto é, atualizados
pela inflação, o orçamento indigenista aumentou 138%. Foi de R$ 144,75 milhões
em 2000 para R$ 345,46 milhões em 2005
(ver tabela). O período avaliado engloba os
últimos três anos do mandato do ex-presidente FHC e os três primeiros anos do
governo Lula.
Ao longo dos seis anos, a pesquisa
constata que as políticas indigenistas foram sendo distribuídas por diversos ministérios e que isso resultou na “fragmentação e falta de coordenação das ações”. A
análise aponta também que a participação
indígena na gestão das políticas públicas
não passou das intenções. “Falta uma instância que articule políticas, que dê diretrizes gerais. Esta é a idéia de propostas
como a da criação do Conselho Nacional de Política Indigenista. E falta incluir indígenas na formulação de programas, definir se
teremos uma reedição da velha política integracionista, agora aliada a um discurso de inclusão social,
ou se é algo novo, voltado para a autonomia das comunidades em definirem as políticas voltadas para elas”, afirmou Verdum
em entrevista ao Porantim.
No sentido oposto ao aumento dos
gastos totais, o estudo constata a diminuição do gasto com demarcação de terras indígenas desde 2002. O maior investimento ocorreu em 2001, quando foram gastos
R$ 67,138 milhões, 151% a mais do que no
ano anterior. Daí para frente, os valores
caíram de R$ 53,323 milhões, em 2002
para R$ 42,49 milhões em 2005. No orçamento de 2006, essa tendência se mantém,
pois estão previstos R$ 42,081 milhões para
o mesmo conjunto de ações.
“Houve, neste caso, uma sensível
diminuição nos investimentos e no ritmo dos
trabalhos, o que certamente deve estar re-
Publicado no Jornal do Inesc
Verba aumentou 138% entre 2000 e 2005, mas o valor destinado
a demarcações decaiu a partir de 2002. Do total do orçamento
dos últimos seis anos, 64,5% foram gastos com saúde
lacionado com os
compromissos do
governo federal com os
chamados setores
estratégicos para a
geração de superávits
primários – particularmente, o
capital investido no agronegócio –, a ponto de desacelerar e até paralisar a demarcação das terras indígenas”, diz a
publicação, de junho de 2006.
Do total de investimentos, que soma
cerca de R$ 1,5 bilhões, 64,5% (R$ 1,036
bilhões) foram gastos com ações de prevenção, controle e recuperação da saúde
indígena, de responsabilidade da Fundação
Nacional de Saúde (Funasa). Em relação à
saúde, a análise da
aplicação do orçamento termina com
questionamentos: “Considerando as constantes invasões indígenas às sedes da
Funasa nos estados; as denúncias de uso
político da máquina administrativa e de
desvio de recursos; as greves de funcionários; os problemas de relacionamento envolvendo técnicos contratados e indígenas;
a persistência de situações graves de saúde, como os casos dos Guarani e dos
Xavante, e o agravamento dos problemas de saúde entre os Yanomami, se faz
urgente avaliar o que está gerando tudo
isso, apesar do aumento dos recursos financeiros alocados no orçamento”.
Crédito e apoio técnico à produção ainda são demanda
Agosto - 2006
4
O estudo indica, nos últimos seis anos,
que aumentaram os gastos com suporte a
projetos de geração de alternativas econômicas para a população indígena, mas avalia que os resultados práticos ainda estão
“aquém das expectativas”.
“No Ministério do Meio Ambiente, o
PDPI (Projetos Demonstrativos dos Povos
Indígenas) ficou praticamente parado ao
longo dos três primeiros anos do governo
Lula, em meio à crise que decorre da falta
de definição sobre seu destino político e
administrativo, da burocratização do processo orçamentário interno do Ministério
e da perda de prestígio junto ao movimento indígena da Amazônia. O projeto Carteira Indígena, que conta com recursos do
Ministério do Desenvolvimento Social para
apoiar pequenos projetos de organizações
indígenas, também sofreu com cortes de
recursos e vem tendo dificuldades de superar a ainda incipiente capacidade de
monitorar e assessorar os projetos apoia-
dos”, analisa Verdum na análise publicada
pelo Inesc.
Funcionando desde 2001, o PDPI duraria até 2006, mas será prorrogado para permitir que a verba do projeto que ainda não
foi aplicada – quase dois terços do total –
possa ser utilizada. Ainda restam R$ 24
milhões para aplicação em projetos.
Mudanças positivas
Entre as mudanças ocorridas durante
o governo Lula, Ricardo Verdum avaliou
como positiva a expansão das ações do
Ministério do Meio Ambiente para além da
região Amazônica e o aumento da atuação
do Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA).
O MDA tem, desde 2004, um programa
de assistência técnica à produção voltado
para indígenas, um programa de Promoção
da Igualdade de Raça, Gênero e Etnia e
ações em todas as suas secretarias que não
têm verbas específicas para indígenas, mas
que também atendem a esta população.
Segundo Renata Leite, assessora do Programa de Promoção de Igualdade de Gênero, Raça e Etnia, os recursos do ministério gastos com apoio a projetos voltados
para áreas como recuperação de áreas degradadas, gestão e controle territorial,
manejo ambiental e de recursos naturais
e produção agroecológica, foram de R$
1,16 milhões em 2004 e chegaram a R$ 2
milhões em 2005. Em 2004, os recursos
foram destinados a oito projetos e, em
2005, para 11. No primeiro semestre de
2006, houve outros 12.
Renata Leite destaca que cresceu o
número de comunidades indígenas que
apresentam propostas. Elas propuseram
mais projetos em 2005 do que em 2004,
quando a maioria ainda eram propostas
vindas de entidades não indígenas. A assessora avalia, no entanto, que ainda há
problemas na qualidade dos projetos, no
foco – que não pode ser para compra de
sementes, por exemplo, mas para
estruturação da produção. Afirma que falta, em alguns casos, estruturação das organizações indígenas que muitas vezes não
têm sequer CNPJ.
Orçamento indigenista
Valores atualizados pela inflação
2000
144,75 milhões
2001
251, 66 milhões
2002
258, 56 milhões
2003
248, 21 milhões
2004
208, 118 milhões
2005
345,46 milhões
Gastos com demarcação de terras
2000
26,73 milhões
2001
67, 13 milhões
2002
53,32 milhões
2003
51,03 milhões
2004
47,87 milhões
2005
42,49 milhões
Povos da Bahia e
Pernambuco na luta
por uma educação
escolar de qualidade
Foto: Wanderley Pessoa / MEC
Educação
Regulamentação da educação escolar indígena é discutida
em audiência com Ministro da Educação e encontro
de professores em Pernambuco
Bahia para que parte desta verba fosse
usada para sanar os problemas emergenciais
das escolas indígenas. Para encaminhar este
tema, o secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, Ricardo
Henriques, se reuniu com a secretária Anaci
Paim um dia após a audiência.
Em relação à contratação de professores, a secretária garantiu que vai tentar
realizar os concursos ainda esse ano. Segundo a professora Pataxó Hã-Hã-Hãe,
Margarida, que esteve na audiência, Anaci
já havia prometido, no segundo semestre
de 2005, que realizaria os concursos em
maio de 2006, porém isto não ocorreu.
Na avaliação de Haddad, uma das razões que pode dificultar a realização dos
concursos é a falta de regulamentação. “A
lei do concurso público é universal. Precisa de uma norma dizendo que para ser professor indígena o concurso não é universal“ completou o ministro, que garantiu
elaborar uma proposta de lei que regulamente esta questão.
Marcy Picanço
Editora do Porantim
Subsistema
A criação de uma lei que regulamente
os concursos específicos não atende os interesses de todo o movimento indígena,
pois isto se confronta com a cultura de
controle social sobre os professores, exercido por alguns povos. Para o movimento
de Pernambuco, por exemplo, a efetivação
de professores deve ser avaliada em conjunto com as lideranças e os contratados
precisam atender ao perfil definido pelo
seu povo. “A lógica do concurso publico
não é a lógica dos povos indígenas em
Pernambuco. O concurso é feito no nosso
país por vários motivos, entre eles superar
o nepotismo, medir competências. Este
não é o nosso caso. Já somos professores
legitimados pelas comunidades, fomos escolhidos pelo povo e atendemos o perfil
do professor indígena que foi construído
por cada povo, então não tem mais o que
selecionar. Em nosso caso, pra que concurso?”, questiona a professora Pretinha
Truká. Junto com professores de oito povos, ela participou, entre 5 e 9 de julho, do
XV Encontro da Comissão de Professores
Indígenas de Pernambuco (Copipe), que
também debateu a questão da contratação
dos professores, entre outros assuntos da
política escolar indígena.
Os povos de Pernambuco também têm
discutido a estruturação de um subsistema
específico para educação indígena, de
abrangência estadual. Eles vão avançar nesse debate e levar essa questão para V Conferência Estadual de Educação Indígena,
prevista para acontecer no mês de agosto
com cerca de 400 participantes.
Representantes
dos povos do
sul da Bahia
exigiram de
Fernando
Haddad
medidas para
resolver a
precária
situação da
educação
escolar
indígena na
região
Professores
de PE
discutiram
criação de
subsistema
para
educação
indígena e
participação
nos espaços
da Apoinme
Fotos: Cimi NE
A
pesar das questões específicas em
cada região do país, há algumas
reivindicações e situações comuns
em relação à educação escolar indígena. A forma de contratação dos professores e a situação deles é atualmente
um dos grandes desafios para a área.
Segundo dados do censo escolar de
2005, há 8 mil professores indígenas nas
2324 escolas que funcionam em terras indígenas no Brasil.
Na região sul da Bahia, por exemplo,
há 21 escolas públicas indígenas. Alguns
dos professores foram contratados após
concursos específicos, outros são efetivados de acordo com a CLT (Consolidação das
Leis Trabalhistas), outros trabalham com
contratos temporários, sem direitos, como
férias e 13º salário, regulamentados. Esta
situação de precariedade no trabalho foi
uma das questões que representantes dos
povos do sul e extremo sul da Bahia
(Pataxó, Pataxó Hã–Hã-Hãe e Tupinambá)
apresentaram ao ministro da educação,
Fernando Haddad, em uma audiência realizada em 6 de julho, em Brasília.
Além dos problemas trabalhistas dos
professores, a reunião discutiu soluções para
a grave realidade que os povos da região
vêm enfrentando em relação à educação
escolar. Há escassez de professores: são 100
para cerca de 4 mil alunos, segundo Agnaldo Pataxó. Além disso, os salários giram em
torno de 100 e 350 reais e, freqüentemente,
atrasam. Há também falta de merenda
escolar e transporte em muitas aldeias.
“Temos feito tudo do ponto de vista
orçamentário e pedagógico para a educação indígena. Este esforço não chegar na
ponta é muito frustrante”, declarou
Haddad. Ele garantiu que o problema não
é falta de recursos: “Faz pouco tempo nós
liberamos R$ 25 milhões para o governo
da Bahia via Prodeb (Programa de Apoio
ao Desenvolvimento da Educação Básica)”.
O ministro se comprometeu a intervir
junto à Secretaria Estadual de Educação da
“Acho que temos leis claras. Elas têm
que ser aplicadas, pois não dá mais pra ver
os nossos filhos fora da escola”, discordou
Agnaldo Pataxó, integrante da Comissão
Nacional de Educação Escolar Indígena. Na
opinião dele, deveria haver um subsistema
federal para educação indígena com orçamento próprio. “Esta proposta saiu da última Conferência Nacional”, reforçou.
Educação avança com movimento indígena forte
Outra questão central discutida no
XV Encontro dos Professores Indígenas
de Pernambuco foi o fortalecimento da
relação do movimento de professores
com a entidade que representa os povos da região Nordeste, a Apoinme. O
movimento dos professores se
aprofunda em temáticas pedagógicas e
de gestão da educação escolar. Mas a
educação está ligada a todos os outros
aspectos da vida das comunidades e o
movimento sabe que, para garantir qualidade de ensino, precisa de terras demarcadas e de políticas públicas que só serão
criadas a partir da pressão de todo o
movimento indígena. Em última análise,
a estruturação da educação escolar indígena depende da existência de um movimento indígena forte.
Por isso, os professores reunidos definiram que, para fortalecer a Apoinme, é preciso melhorar a comunicação entre as enti-
dades e ampliar a presença de cada uma
delas nos espaços de debate da outra.
Para isso, sugerem que a Articulação
dos Povos do Nordeste, Minas Gerais e
Espírito Santo retome o investimento
na organização de encontros para discutir com profundidade questões como
a relação com o Estado e temas como
terra, saúde e educação, além de aumentar o conhecimento sobre os povos e o
intercâmbio entre eles.
5 Agosto - 2006
Fotos: Egon Heck / Cimi MS
Mato Grosso do Sul
Assassinato
de Dorvalino,
mortes de
crianças, mas
também
muita força,
união e
esperança
marcaram os
seis meses de
acampamento
Histórias e Lições de Nhanderu Marangatu
Guarani acampados à beira de
estrada retornam para sua terra
Egon Heck / Lucia Rangel
Cimi MS / Antropóloga–PUC/SP
R
oncam os tratores. Caem os últimos barracos ou o pouco de estrutura que sobrou de alguns. Os
que manejam as máquinas talvez
não saibam que essa estrutura material que
estão destruindo ficará para sempre na
alma desse povo. Foi meio ano de heróica
resistência Guarani-Kaiowá, desde dezembro de 2005, quando foram despejados de
sua terra Nhanderu Marangatu, no município de Antônio João (MS).
A Kuña Aty Guasu (Assembléia das Mulheres Guarani), realizada entre 22 e 24 de
junho, oficializou o retorno dos quase 500
indígenas que estavam acampados à margem da BR-384 à sua terra.
Os homens com as máquinas têm pressa, pois o asfalto precisa ficar pronto. Afinal, o progresso não pode ser estagnado
por alguns índios e as eleições se avizinham. Hamilton Lopes, uma das lideranças do acampamento, ao sentir a chegada
das máquinas, falou: “Para onde querem
que a gente vá agora? Para o segundo andar, em cima das árvores?”
A conclusão do asfaltamento da estrada entre Bela Vista e Antônio João expulsou definitivamente os Guarani do acampamento onde viveram por mais de seis
meses e os levou a voltar para a terra que
é deles, mas que ainda está ocupada por
fazendeiros.
Meio ano tenso e intenso
na beira da estrada
Agosto - 2006
6
Sentamos com Hamilton Lopes e Léia
Aquino para conversar sobre esses seis
meses e alguns dias de acampamento. Foram dias marcados por muito sofrimento,
mortes, poeira, frio, chuva, calor intenso
sob as lonas pretas.
Hamilton fez uma pequena cronologia
das expectativas, promessas e fatos. “Logo
que fomos despejados, no dia 15 de dezembro, se dizia que, no máximo em dois
meses, o Supremo Tribunal Federal poderia julgar a ação. Passaram três meses, e
nada. Deram vários prazos. A gente ficava
esperando para a qualquer momento ter
uma notícia favorável e voltar para nossa
terra. O tempo foi passando e nada de resolver a situação. O desânimo e o cansaço
foram tomando conta de alguns. Mas o grupo continuou unido e com esperança. O
assassinato de Dorvalino e as mortes de
algumas crianças que não agüentaram a
fome doeram, mas nos fortaleceram. Recebemos muitas ameaças, mas ficamos firmes. Por fim, o pessoal criou coragem e
começou a voltar para seus barracos de
onde foram despejados. Não tinha outra
saída. O asfalto estava chegando e a gente
não tinha pra onde correr”.
Nesses seis meses, o acampamento recebeu inúmeras visitas de instituições nacionais e internacionais, repórteres, comissões, curiosos, amigos e inimigos. Estiveram lá o Secretário Especial de Direitos
Humanos, o presidente da Funai, representantes do governo do Mato Grosso do Sul
e o prefeito de Antonio João, entre outros.
Em Brasília, os Guarani falaram com Ministros do Superior Tribunal de Justiça, com
parlamentares e com representantes do
governo federal. Também relataram a situação em que viviam para um representante da ONU.
As lições, a luta e o futuro
As lições ficaram. A luta continua. A
cada lua que passa, é dado um passo adiante. “Nunca mais vamos sair da nossa terra. Aprendemos muito nesses seis meses.
Tivemos muito tempo para ver, pensar, conhecer o mundo e o pensamento dos não
índios. Engolimos muita poeira, amassamos muito barro, passamos muito frio e
sofremos com o calor. Mas a dor maior era
ficar aí à toa, sem ter onde trabalhar, olhando para nossa terra aí em frente, presa,
proibida. Mas não desanimamos. Recebemos muita força de nossos deuses, dos
antepassados, dos nossos aliados. Nossos
filhos serão guerreiros e vão ter orgulho
da luta que enfrentamos”, relata Léia.
Hamilton expressa a vivência dos seis
meses destacando suas preocupações e
expectativas: “Foi uma grande lição para
todos nós. Seis meses de resistência para
conseguirmos empurrar o processo judicial adiante. Precisamos nos apoiar muito e
nossas lideranças mostraram muita firmeza e clareza. Pensei muitas coisas nesse
tempo. A mais importante foi o sonho de
liberar o Marangatu e organizar nosso trabalho de produzir os alimentos. Pensei
muito nas crianças que vão viver nessa terra. Queremos preparar a casa para nossos
filhos. A escola e os professores são muito
importantes. Muitos jovens se enforcaram
no acampamento. Teve tempo de um suicídio por mês aqui.”
Léia desabafa: “Vamos sair da beira da
estrada para o asfalto passar. Já estamos
cansados de ser enganados e tratados
como crianças. Que a Justiça faça alguma
coisa. Os que mataram Marçal, Dorvalino
e outros estão todos soltos. Porque estão
demorando todo esse tempo para julgar o
processo que nos expulsou da terra?”
Hamilton, vendo os tratores escavando a estrada e refletindo todo esse tempo
de desprezo e ódio que sofreram, diz: ”Se
não querem nos reconhecer e dar nossa
terra, nossos direitos, então que peguem
essas máquinas façam um buraco bem grande e nos joguem todos lá dentro. Assim
ficaremos para sempre em nossa terra”.
Mas a dureza da vida não lhes roubou
o sonho e a certeza de que vão construir
um futuro melhor para seus filhos. Hamilton fala, com os olhos brilhando, como
pensa em ajudar a organizar a produção
de alimentos, fazer um desenvolvimento
sustentável para dar exemplo para o município, para o Brasil e para o mundo. Léia
conclui a conversa lembrando que “nós indígenas temos um coração que ama todos,
não apenas nós mesmos”.
“Será preciso estender essa
tarja preta para lembrar
tantas vidas sacrificadas
para os privilégios e
enriquecimento de alguns
poucos”
E a cruz de Dorvalino, fincada no local em que ele tombou, próximo ao portão
de entrada para algumas fazendas, permanecerá para sempre no chão ou na lembrança daquela memória perigosa dos que
lutaram por essa terra.
Terra Guarani
de Araça’í: exílio,
resistência e luta
Fotos: Cimi Sul
Santa Catarina
Enquanto o processo de regularização está parado na Funai
desde janeiro, uma criança morreu em função das precárias
condições em que vivem os Guarani
Cleber César Buzatto
Marline Dassoler Buzatto
Ivan César Cima
Cimi Sul
E
stá cada dia mais grave a situação
dos Guarani do oeste de Santa
Catarina que foram acolhidos, provisoriamente, há quase cinco anos,
na terra Toldo Chimbangue, do povo
Kaingang, no município de Chapecó.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) paralisou o processo de regularização da terra dos Guarani, desrespeitando o Decreto
1775/96. Enquanto isso, no fim de junho,
uma criança morreu em função do rigor do
inverno somado às precárias condições em
que eles estão vivendo.
Desde outubro de 2001, mais de 20
famílias de Guarani, que somam cerca
de 90 pessoas, vivem sobre oito hectares
da terra Toldo Chimbangue que, além
de estar invadida por não-índios, ainda
abriga os Kaingang que são seus ocupantes tradicionais.
O espaço onde vivem os Guarani é
notadamente insuficiente para a sobrevivência física e cultural destas famílias. Além
disso, há a constante frustração da expectativa de retorno à terra tradicional, que
ocorre em função do atraso no processo
de sua demarcação. Isso tudo, somado às
condições climáticas e à ineficiente assistência dos órgãos públicos, tem feito com
que estas famílias continuem vivendo em
condições precárias e degradantes.
A aldeia fica numa região montanhosa, próxima ao poluído Rio Irani. Ela tem
enfrentado tremendas dificuldades em
função, por um lado, da forte umidade e
do frio rigoroso durante o inverno e, por
outro, da escassez de água potável nos
períodos de estiagem que seguidamente
têm atingido a região. Além disso, no local onde vivem há quase seis anos, os
Guarani não têm condições de produzir o
necessário à sua alimentação. Plantam
pequenas lavouras de milho, feijão e mandioca e cultivam verduras em pequenas
hortas. A produção advinda disso, no entanto, não é suficiente para se manterem.
De acordo com o guarani Maximino Morais Mariano “era pra nós ficarmos aqui só
pouco tempo. Aqui não dá pra plantar que
chega, não tem fonte de água boa. É difícil a
vida aqui”.
Em função disso, apresentam grande
dependência da assistência governamental.
E esta tem se mostrado falha. O depoimento do cacique João Barbosa atesta esta afirmativa. Segundo ele, falta comida e, “na
seca, as fontes escasseiam, chegam a secar. Aí
as pessoas pegam de caneca, pela manhã, um
pouquinho de água que junta durante a noite.
Tem que parar as aulas por que não tem água
pra nada. As crianças ficam com sede. Demora
dias pra trazerem água no caminhão pipa”.
Enquanto isso, o processo de regularização da terra guarani continua na dependência de encaminhamentos da Funai.
O relatório antropológico, publicado em
setembro de 2005, identificou e delimitou
a “Terra Indígena Guarani de Araça’í”, com
2.721 hectares. Em janeiro de 2006, quando encerrou o período do contraditório,
os agricultores, as prefeituras de Saudades
e Cunha Porã e o governo de Santa Catarina
apresentaram contestações ao relatório.
Estas estão, desde então, em análise na
Coordenação Geral de Identificação e Delimitação (CGDI), da Diretoria de Assuntos
Fundiários (DAF) da Funai em Brasília. O
prazo para conclusão de tal análise, conforme o decreto 1775/96, é de até 60 dias.
No entanto, já se passaram seis meses e
esta parte do processo ainda não foi concluída.
Vivem, portanto, uma situação limite.
Conseqüentemente, a indignação, a inquietação e a revolta têm sido potencializadas.
Neste sentido, a afirmativa do rezador
guarani Clementino Barbosa, 94 anos, é
enfática: “Já perdemos uma criança na aldeia. Não estamos dispostos a morrer esperando”.
Vinte famílias
Guarani estão
vivendo,
provisoriamente,
há quase cinco
anos na terra
Kaingang Toldo
do Chibangue
Histórico dos Guarani no oeste de Santa Catarina
Desde o final do século XIX, há relatos da presença Guarani no oeste de Santa Catarina, mais precisamente na região
onde, atualmente, estão localizados os
municípios de Cunha Porã e Saudades.
Apesar disso, as terras desta região foram consideradas “devolutas”, de propriedade do Estado. Isto serviu de justificativa para que fossem repassadas, pelo
governo de Santa Catarina, a empresas
particulares. Elas passaram a “povoar” a
região a partir de uma visão puramente
mercadológica, ou seja, com o único intuito da obtenção de lucros.
Em função disso, a partir da década
de 1920, período em que foi iniciada a
colonização nestes municípios, os Guarani
foram sendo expulsos pela empresa Colonizadora Sul Brasil, que tratou de fazer
a chamada “limpeza da área”. Ou seja, ex-
propriar a terra dos posseiros que ocupavam
a área “objeto” da colonização. A terra “limpa” tinha maior valor comercial.
Nesse procedimento, de acordo com o
Sr. Fontoura de Castro “se dizia: ´compra ou
te arranca´. Às vezes dava morte. Quem era de
bem agarrava e saía quieto pra diante. E aquele que era bonzote ficava lá mesmo”. Feita a
retirada dos “intrusos”, como a Empresa
Colonizadora chamava os indígenas, a área
foi sendo loteada e vendida a pequenos agricultores, na sua grande maioria descendentes de imigrantes europeus vindos do Rio
Grande do Sul.
Para não serem todos mortos, os
Guarani atravessaram o rio Uruguai e se refugiaram na terra do povo Kaingang denominada Nonoai, no norte do Rio Grande do
Sul. Ali permaneceram até julho do ano
2000, quando partiram para realização da
retomada de sua terra tradicional, em
Santa Catarina. Os Guarani reivindicavam
a criação de um Grupo de Trabalho (GT)
para identificação e delimitação da terra
desde 1998, mas somente a partir dessa
retomada é que a Funai constituiu o GT,
em setembro de 2000. No mês seguinte,
no entanto, com base numa liminar concedida por um Juiz da Justiça Federal de
Chapecó, sem que fossem previamente
comunicados, os Guarani foram novamente expulsos de sua terra e conduzidos compulsoriamente, mais uma vez, à
terra Nonoai, pelas polícias Federal e
Militar de Santa Catarina.
Permaneceram naquele local até
outubro de 2001, quando retornaram a
Santa Catarina e foram acolhidos,
provisoriamente, pelos Kaingang da
terra Toldo Chimbangue.
7 Agosto - 2006
Fotos: Egon Heck, Geertje van der Pas e Priscila D. Carvalho
A cada cinco anos, no mês de
julho, milhares de pessoas se
encontram em Ribeirão
Cascalheira, no interior do Mato
Grosso, para realizar uma
romaria dedicada à memória
daqueles que foram mortos
defendendo a vida. É um
encontro que celebra causas: a
indígena, a de negros e negras,
mulheres marginalizadas,
meninos e meninas de rua, dos
operários. Os participantes da
caminhada renovam seu
compromisso com as lutas pela
Vida e pela Justiça.
Mártires tornam visível injustiça
vivida pelo povo no dia-a-dia
N
Agosto - 2006
8
Priscila D. Carvalho
Repórter
este ano, a Romaria dos Mártires
da Caminhada ocorreu em 15 e 16
de julho, na Prelazia de São Félix
do Araguaia. Este é um local importante na construção de uma Igreja
Católica comprometida com a luta
do povo indígena, caboclo e ribeirinho, desde a época em que o Mato Grosso começava
a ser invadido pelo latifúndio incentivado pela
ideologia desenvolvimentista, nos anos 70.
Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), condensa o espírito da
Romaria:
“Cada mártir é um símbolo, um sinal, daqueles índios, posseiros, negros que foram
massacrados, e que são milhões. Na América
Latina se conta 80 milhões de massacrados.
Esse martírio não é de cada um deles. É de
todo um povo. Eles apenas tornam visível essa
injustiça vivida no dia-a-dia”.
Dom Tomás lembrou que um levantamento da CPT mostra que dos cerca de 1.000
assassinatos que ocorreram nos últimos 11
anos, 70 geraram processos e só foram condenados 14 posseiros e 7 mandantes. “Quando um mártir cai, é sinal de que milhares estão caindo e eles servem para dar voz aos
que não têm voz. O martírio denuncia uma
situação de injustiça, outros milhares foram
mortos sem que ninguém se incomode”,
disse Dom Tomás em entrevista.
Os assassinos de Simão Bororo, Marcos
Veron, Dorival Benitez, João Araújo Guajajara,
Pe. Rodolfo Lunkenbein, João Bosco Penido
Burnier, Vicente Cañas, Irmã Cleusa Rody Coelho ou nem chegaram a ser condenados ou
continuam respondendo a processos que
duram anos – e até décadas - para serem
finalizados. Ao mesmo tempo, centenas de
indígenas e camponeses respondem a processos criminais por fazerem retomadas de
suas terras para voltar a viver nelas. Situação como esta tem sido enfrentada pelo povo
Xukuru, que tem 35 lideranças respondendo
a um único processo por reagirem após um
atentado que matou dois jovens e feriu o
cacique deste povo em 2003. Centenas de
militantes de movimentos sociais vivem
situações semelhantes.
Fotos: Priscila D. Carvalho, Geertje van der Pas e Egon Heck
Presença indígena
Zezinho Bororo (foto acima), que foi
baleado há 30 anos, na terra Merure, no
Mato Grosso, no mesmo dia em que foram
assassinados Simão Bororo e o padre
Rodolfo Lunkenbein, participou da Romaria este ano. Ele contou ao Porantim uma
dessas histórias de impunidade:
“A Funai tinha determinado a demarcação da nossa terra. Achavam que a missão
é que ficava fazendo a cabeça dos índios,
mas a gente já tinha percebido que a situação não estava boa e que a nossa luta era
pela terra mesmo. O Rodolfo era visado
porque era diretor da Missão Salesiana.
Quando a demarcação começou, no dia 15
de julho de 1976, tinha três frentes trabalhando. Eu estava na roça. O cacique avisou que tinha chegado um carro com fazendeiros que queriam parar a demarcação.
Fomos para o colégio. Eles disseram
que já tinham parado o trabalho de uma
frente de demarcação e o Rodolfo disse que
tinham que procurar a Funai, em Brasília.
Quando iam sair, já estavam quase no
carro, o João Mineiro, um dos cabeças, voltou e começou a falar palavrões. Percebemos
que ele ia agredir o padre. Logo depois começaram os tiros. Atiraram no padre Rodolfo
por trás, o tiro pegou na perna. Eu, o Simão,
o Gabriel e o cacique Lourenço estávamos
lá. O Gabriel foi esfaqueado.
No começo, veio a Polícia. Deu processo, prenderam uns. Eles ficaram presos um
tempo, depois foram soltos”.
Estevão Taukane, do povo Bakairi, que
também vive no Mato Grosso, foi à Romaria pela memória do padre João Bosco
Penido Burnier, assassinado por causa do
trabalho que desenvolvia com os Bakairi. A
Romaria lembrou especialmente os 30 anos
do assassinato de Burnier. “Este é um momento de reflexão, para ver onde avançamos e como proceder no relacionamento
com os potenciais aliados. Refleti sobre o
movimento indígena, vim buscar um pouco de ânimo, de conhecimento e de humildade. Padre João tinha conhecimento, instrução, e era muito humilde, era conselheiro. Por isso faço questão de vir quando recebo o convite”, avaliou Estevão.
Os indígenas acenderam, com tochas,
a fogueira na qual foram acesas as velas que
romeiros carregaram pelos seis quilômetros
de caminhada noturna realizada no sábado, 15 de julho, que reuniu 4 mil pessoas,
segundo sua organização.
Na manhã de domingo, dia 16, uma missa campestre teve a participação de Marcos
Xukuru. Perguntado por Dom Pedro
Casaldáliga sobre que frutos a caminhada deveria produzir, o cacique respondeu: “Cada
um e cada uma deve defender um ideal e
lutar pelas causas populares. E levar daqui
não só a camiseta, a lembrança, mas que leve
dentro do peito a força dada por Tupã e
Tamaim. E que possa orar e fazer algo não
apenas pelos povos indígenas, mas pelos
negros, pelos sem terra. Nós povos indígenas não queremos o Brasil inteiro. Queremos apenas terra para sobreviver neste país
pluriétnico e pluricultural”, disse.
D. Zenilda, viúva do cacique Xicão Xucuru, assassinato em 1998, veio de Pernambuco
para participar da caminhada que reuniu cerca de 4 mil pessoas
A causa indígena só se salvará
com união continental
Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia
até 2005, Dom Pedro Casaldáliga, ou simplesmente Pedro, como gosta de ser chamado, segue na sua luta para manter forte uma Igreja
ao lado do povo. Aos 78 anos, ele continua
vivendo na Prelazia situada na região onde vivem os povos Karaja, Xavante e Tapirapé. A
entrevista que segue foi concedida antes da
Romaria ao Porantim e a uma equipe de
documentaristas.
Como foi seu primeiro contato com os
indígenas aqui na Prelazia?
Foi com o povo Tapirapé, por causa das
Irmãzinhas que já desde os anos 1950 estavam lá. E também com o povo Karajá, que aparecia discretamente nas ruas de São Félix. Nos
quatro meses de preparação daquele curso do
Cenfi [voltado para os missionários que vêm
do exterior para trabalhar no Brasil] a gente
começou a sentir o mundo indígena por alguma leitura, alguma palestra que nos deram.
Depois, tem sido a briga, a luta diária. Criamos, entre outros muitos, o Cimi.
Depois, se ampliou a visão e foi se criando consciência de Ameríndia nesse contato
com os vários países da América Latina.
O trabalho primeiro e fundamental do Cimi
foi possibilitar encontros de chefes indígenas,
que descobriram raízes, lutas, massacres comuns. E o inimigo comum. Criou entre eles
solidariedade e os povos manifestam, se fazem presentes: há organizações, confederações. Há bastante intersolidariedade, até o
ponto de haver consciência de Ameríndia. Digo
sempre que a causa dos indígenas só se salvará se os povos se unirem continentalmente em
reivindicação de terra, autonomia.
Como vê a situação dos povos indígenas
hoje?
Infelizmente, a política indigenista deste
governo é quase nula, na região do Araguaia e
no Brasil. É omissa. Falta demarcar muitas
áreas, muitas áreas demarcadas estão sendo
invadidas.
O Estatuto dos Povos Indígenas está aí
esperando para ser votado, mas é melhor nem
Dom Pedro
Casaldáliga,
Dom Tomás
Balduino e o
cacique
Marcos Xukuru
participam de
celebraçao na
manhã de
domingo, 16 de
julho
mexer, porque a bancada ruralista é perigosa,
pode até estragar. Até a Constituição Federal
é questionada.
Todas as políticas oficiais da América Latina, ao longo dos últimos 500 anos, têm sido
de integração [às sociedades nacionais], de
desintegração dos povos indígenas para
torná-los pobres. Brasileiros, mexicanos ou
guatemaltecos pobres, negando sua identidade, sua terra, sua língua, sua cultura.
Às vezes a Igreja colaborou, perseguindo
religiões. Nos primeiros tempos, queimaram
templos, códigos sagrados.
E como está a situação dos povos
indígenas que vivem na região da Prelazia?
Na região, temos casos difíceis. Os
Xavante da Suiá-Missu [terra Marãiwatsedé],
impedidos de voltar para a sua terra. A justiça pediu três laudos antropológicos [sobre
esta terra]. Já no Parque Indígena do Xingu,
há uma situação de expectativa. Há 16 povos, há fazendas por perto e como não há
política que dê à Funai capacidade de ser o
que deveria, tudo é precário.
Em outra parte, quando cheguei contavam
100 mil índios, hoje há mais de 700 mil.
Os povos indígenas cresceram em número. Cresceram em consciência. Cresceram em
organização. Cresceram em intersolidariedade,
as várias ramas do mesmo tronco, e de povo
para povo. Inclusive há setores indígenas importantes que têm consciência de Ameríndia,
de todo o continente. Já não é a causa de um
povo, de uma aldeia, é a causa de um mundo,
o mundo indígena.
Como você vê a participação popular na
Romaria?
A presença das pessoas anima, nesta hora
em que há decepção na política, até no campo eclesial, corrupção na política. A participação do povo dá ânimo. Todo esse povo
é fermento mesmo, vem das pastorais, da
solidariedade.
Temos percebido muita intersolidariedade, que é uma coisa de duas mãos, que
vem e vai, vai e vem.
9 Agosto - 2006
Rio São Francisco
Fotos: Éden Magalhães e Priscila D. Carvalho
Discutir
mais a
transposição
foi
compromisso
assumido pelo
governo para o
fim da greve
de fome de
Dom Luis
Cáppio
(segundo da
esq. para dir.,
na foto da dir.)
Encontro instaura
diálogo entre governo
e movimentos
Sociedade civil e governo retomaram discussões em torno de um
tema mais amplo - o desenvolvimento do Semi-Árido
Maurício Hashizume
Agência Carta Maior
R
eunidos em Brasília, representantes da sociedade civil e gestores
governamentais participaram, entre 6 e 7 de julho, do primeiro
encontro de reaproximação entre as partes, como resultado do compromisso assumido desde a suspensão da greve de
fome promovida ao longo de dez dias (26
de outubro a 6 de novembro do ano passado) pelo frei Dom Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra, na Bahia.
Pedro Bertone, coordenador do grupo
de trabalho intergovernamental sobre o
projeto de integração do Rio São Francisco com as bacias do Nordeste Setentrional
– como o governo denomina o projeto de
transposição -, reconhece que houve erro
na forma como a questão foi colocada anteriormente. Agora, confirma o assessor, a
ordem do Palácio do Planalto é a de intensificar o diálogo com base em referências
mais amplas, para além da mera obra de
engenharia da transposição. “A obra está
integrada a outro projeto maior de desenvolvimento para a região do Semi-Árido.
Sem outras ações, como a própria
revitalização do Rio São Francisco, a obra
deixa de ter sentido”, argumenta.
Dom Cappio participou dos dois dias
de conversa. Estiveram presentes, também,
Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e representantes do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), de organizações como a Articulação do Semi-Árido (ASA) e de movimentos sociais com forte atuação no Nordeste. “O encontro foi bastante esperançoso. Pela primeira vez, a sociedade civil
Agosto - 2006 10 está sentada ao lado do governo para dis-
cutir não só a questão da obra, mas as possibilidades de ações para o povo que vive
no Semi-Árido”, define Dom Cappio. Para
ele, a primeira oficina – que se desdobrará
em encontros posteriores com as populações das regiões envolvidas – teve o mérito da transparência. “Cada um disse o que
pensa. Essa é a principal senha para se debater pontos divergentes com clareza e
objetividade”, assinala, ressaltando que os
acordos que surgirem da interlocução
reativada ainda precisam ser cumpridos
“para que não sejamos apenas
instrumentalizados”.
A segurança hídrica – principal justificativa do projeto de transposição - não
basta, enfatiza o bispo, para atender os
interesses do povo e da nação. “Lá em Barra, onde vivo, vejo de uma das janelas o
rio São Francisco. Há populações miserá-
veis que vivem bem próximas da água.
Quem garante que essa mesma água vai
garantir o desenvolvimento aos de longe
se nem quem está perto é atendido?”,
questiona. “Desenvolvimento é bem mais
do que água”.
O religioso identifica o início de um
movimento importante de esclarecimento
dos pontos de concordância e divergência
entre os atores sociais. “Eu quero acreditar no processo. Esse primeiro encontro
não foi importante apenas para o diálogo
da sociedade civil com o governo. Foi importante também para o diálogo do governo com setores do próprio governo”.
Foram definidos três grandes grupos
de trabalho temáticos – disponibilidade
hídrica, revitalização do rio São Francisco
e projetos de desenvolvimento no SemiÁrido. Nesses espaços, o número de integrantes do governo e de membros da sociedade civil deve ser igual. Eles serão encaminhados pela comissão que está à frente
do processo, formada por 12 representantes de entidades civis e por representantes da Casa Civil, Secretaria Geral da Presidência da República e de ministérios ligados ao tema.
Entre os povos indígenas, a mobilização de resistência à obra de transposição nunca esmoreceu, relata Marcos
Sabaru, do povo Tingui-Botó, de Alagoas.
“Começa na Ilha de Assunção, onde vivem
os Truká, e une diversos povos como
os Tumbalalá, os Tingui. etc.”.
Para Sabaru, o diálogo foi reaberto
pelo governo por causa do calendário eleitoral: para não contrariar indígenas, pescadores, quilombolas, setores da Igreja
Católica e diversos outros segmentos que
são contra o projeto. “Mas também é importante ouvir as pessoas. Aqui é só conversa. Se tiver validade, tem que aparecer
em atos”.
Para Luiz Carlos da Silveira Fontes, coordenador do Baixo São Francisco do
CBHSF e professor do Departamento de
Engenharia Agronômica da Universidade
Federal de Sergipe (UFS), a rodada inicial
de conversas reabre espaço para questões
que haviam sido perdidas: o debate sobre
a gestão das águas do rio São Francisco e a
definição da ordem de prioridades dos investimentos públicos.
Bertone, que foi assessor da Subchefia
de Articulação e Monitoramento da Casa
Civil, admite que o governo está disposto
a recolocar na mesa as diferenças entre
governo e setores contrários à transposição sobre a destinação da água do rio: uso
para consumo humano ou uso econômico.
O plano de gestão da Bacia do rio São Francisco, aprovado no âmbito do CBHSF depois de um processo longo de consultas
públicas, não descarta em absoluto a transposição, desde que seja limitada e exclusivamente para consumo humano. “Neste
primeiro momento, não houve tentativa de
imposição do governo federal. Ainda não
podemos, porém, antecipar o que vai dar
no final”, observa Fontes. “Mas está claro
que a imposição é o pior caminho. Perpetua o conflito”.
Povos Puruborá e Karitiana realizam
assembléias em Rondônia
Foto: Cimi RO
País
Afora
A Assembléia elaborou propostas sobre como reivindicar junto à Funai o direito pela sua terra. De acordo com a Funai,
em setembro deverá ser criado um Grupo
de Trabalho para a delimitação do território Puruborá. A criação é resultado da
insistência das lideranças em exigir, via
Ministério Público, que a Funai assumisse
a responsabilidade pelo andamento do processo de demarcação da terra Puruborá.
Outro ganho da luta, na avaliação da assembléia, foi o atendimento à saúde, que
passou a ser feito pela Fundação Nacional
de Saúde (Funasa).
A V Assembléia Puruborá renovou a
esperança dos outros povos do estado que
Eles discutiram saúde,
educação, relacionamento com
a Funai e a luta pela terra
ntre os dias 10 e 13 de julho,
cerca de 60 representantes
Puruborá se reuniram na aldeia
Aperoi, nas proximidades do rio
Manoel Correia, município de Seringueira,
Rondônia. O principal ponto de pauta foi a
luta pela reconquista do território tradicional. A X Assembléia do povo Karitiana
aconteceu nos dias 24 e 25 de junho na
Aldeia Central, em Porto Velho, com a participação de 75 indígenas.
O local da Assembléia Puruborá foi
a casa da D. Emília, que comprou um
pedaço da terra que era tradicionalmente
ocupada por seu povo. Em 1994, ela e sua
família foram expulsas pela Funai do local
em que viviam, porque ele ficava na divisa
da terra Uru Eu Wau Wau.
Este povo encontra-se espalhado pelos municípios de Guajará-Mirim, Costa
Marques, São Miguel, São Francisco, Porto
Velho, Ji-Paraná e Seringueiras. Entretanto
seu território tradicional fica no município
de Seringueira.
A população Puruborá é superior a 400
pessoas e os 10 idosos deste povo guardam a memória de quando podiam viver
em seu terrritório e conhecem profundamente os limites da terra de seu povo.
lutam pela revisão dos limites ou delimitação de seus territórios. O evento contou
com o apoio do Cimi, a presença do Ministério Público Federal, da Secretaria Estadual de Educação, da Funai e da Funasa.
Foto: Cimi Ne
E
Volmir Bavaresco
Terezinha Dalcegio
Cimi RO
Histórico do povo Puruborá
O Marechal Rondon contatou os Puruborá em 1919 e os deixou na região do
rio Manoel Correia, aos cuidados de um encarregado do Serviço de Proteção ao
Índio (SPI), José Felix do Nascimento. No mesmo ano, o Marechal Rondon demarcou a terra deste povo. Em 1925, o doutor Benjamim Rondon, filho do Marechal,
reabriu a demarcação. Nos anos seguintes, os Puruborá foram acometidos por
epidemias que dizimaram o povo. O encarregado do SPI deixou seringueiros trabalharem dentro da área e os ajudava a explorar o trabalho dos indígenas.
Karitiana
Os Karitiana
se reuniram
na Aldeia
Central, em
Porto Velho.
Abaixo,
alguns idosos
do povo
Puruborá
presentes à
Assembléia
deste povo
Orlando Karitiana coordenou a Assembléia que, entre outras reivindicações, exigiu mais uma vaga no Conselho Distrital
de Saúde, já que o povo Joari precisou se
juntar aos Karitiana, quando restaram apenas homens entre os remanescentes. O
presidente do Conselho, Aurélio Tenharim,
comprometeu-se a levar esta questão para
discussão.
A Assembléia também requisitou a
aquisição de computadores para estudantes indígenas universitários, pois atualmente há apenas duas máquinas. Osman Brasil, administrador da Funai em Porto Velho
prometeu equipar uma sala com computadores exclusivos para os estudantes.
Todos os participantes demonstraram
grande interesse em continuar firmes na
luta pela ampliação de seu território bem
como reforçar a luta junto aos demais povos e movimento indígenas. A Assembléia
contou com a presença de representantes
do Cimi, Funai e Funasa.
Povo Truká clama por justiça em ato silencioso
Ato com mais
de mil
pessoas
lembrou um
ano do
assassinato
de Adenilson
dos Santos
Vieira e de
seu filho
Roberto Saraiva
Cimi NE
U
ma passeata silenciosa nas ruas de
Cabrobó, Pernambuco, marcou a
memória do assassinato de
Adenilson dos Santos Vieira e de
Jorge dos Santos Barros, do povo Truká.
Em 30 de junho, mais de mil pessoas carregaram faixas que expressavam saudade
dos guerreiros, executados pela Polícia
Militar do estado de Pernambuco um ano
antes. Até agora, o inquérito para apuração das mortes ainda não foi concluído. O
ato organizado pelos Truká foi um protesto contra a impunidade e contra as intimidações que continuam ocorrendo contra
as lideranças deste povo.
Os policiais envolvidos nos assassinatos aguardam em liberdade o desenrolar
das investigações e a comunidade Truká
sente-se intimidada com a proximidade
deles, que seguem trabalhando em
Cabrobó.
Apesar do clima de tensão e desconfiança que havia na cidade, a manifestação
silenciosa e pacífica calou a todos os
que esperavam um ato violento ou
provocativo. Na celebração que aconteceu
dentro da aldeia, lideranças e familiares
pediram força a Tupã. Os Truká esperam
poder viver em paz e solicitam a punição
aos culpados, com respeito às leis: “Eu só
peço aos encantados que os assassinos sejam presos e paguem pelo mal que fizeram contra nós e contra as mães que sofrem as perdas de seus filhos”, declarou o
cacique Neguinho Truká.
A liderança Pretinha Truká resume o
que seu povo deseja com o ato: “Esperamos que as autoridades vejam que só queremos chamar a atenção para esses fatos,
e que não se repita com outras famílias, da
aldeia ou da cidade, uma atrocidade igual.
Não podemos nos calar diante do dragão
da morte”.
Foi com esse sentimento que estiveram presentes, além de indígenas Truká e
de outros povos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Centro
de Cultura Luiz Freire (CCLF), o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH),
a Pastoral dos Pescadores (CPP) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
11 Agosto - 2006
Povo Bororo não pode viver
em terra homologada
País
Afora
Em julho, oito famílias Bororo iniciaram um movimento para tentar recuperar esta
terra e voltaram a viver em uma pequena parte dela
A
parte dos atuais habitantes do lugar sabia que a terra era indígena quando iniciaram suas construções. Indígenas e entidades indigenistas reivindicam a retirada dos não-índios que vivem em toda a
extensão de Jarudóri e em cerca de 40%
da terra Teresa Cristina, ambas de ocupação tradicional do povo Bororo.
A decisão para a retirada depende da
Fundação Nacional do Índio (Funai). O procurador da República Mário Lúcio Avelar
afirmou que vai encaminhar à
Justiça
uma Ação Civil Pública pedindo a reintegração de posse da terra dos Bororo.
Histórico
A expulsão dos Bororo foi iniciada no
início do século passado. Jarudóri faz par-
te das terras demarcadas pelo Marechal
Rondon, em 1912, e tinha aproximadamente de 100 mil hectares. Na década de
30, a região foi usada para a instalação
de colônias agrícolas, como parte do
Programa Marcha para o Oeste, e o
loteamento intensificou-se a partir dos
anos 60. Outras áreas foram invadidas por
garimpeiros. Em 1945, o estado de Mato
Grosso criou a Reserva Indígena Jarudóri,
reduzindo a área demarcada por Rondon
para 6 mil hectares. A terra sofreu nova
redução quando foi registrada, ficando
com 4.706 ha.
Invasões, violência e epidemias – de
tuberculose e sarampo - contribuíram
para a saída de muitas das famílias Bororo
que ali viviam.
Fotos: Carlos Werner e Gonçalo Ochoa
pesar de ter seu território demarcado desde 1945, os Bororo
da terra Jarudóri, no Mato Grosso, são obrigados a viver espalhados em outras terras de seu povo,
porque sua área tradicional está invadida por cerca de 2,6 mil posseiros. No fim
de junho, oito famílias Bororo iniciaram
um movimento para tentar recuperar esta
terra, que fica no município de Poxoréu,
no sul do estado.
Elas estão acampadas em uma área
da vila Jarudore, fundada nas terras dos
Jarudóri. Os atuais moradores da vila temem perder seus imóveis, por isso há risco de conflitos.
Segundo a assessoria da Procuradoria da República no Mato Grosso, boa
O seminário
“Povo BoeBororo:
Território
Tradicional e
Direitos às
Terras
Indígenas
Tereza Cristina
e Jarudori”
buscou
sensibilizar
a sociedade
civil para as
questões
fundiárias
deste povo.
Participaram
representantes
dos Bororo, da
Funai, do
Ministério
Público, entre
outros
Terras invadidas por posseiros
Alagoas, Paraíba, São Paulo
1
Santa Catarina, Mato Grosso, Pernambuco 2
Tocantins, Rondônia, Paraná e Acre
3
Pará
4
Maranhão e Bahia
5
Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul
6
Roraima
18
Fonte: Cimi e Cir
terra cada
cada
terras cada
terras
terras cada
terras cada
terras
Fazendeiros ainda invadem 16% das terras homologadas ou registradas
A situação vivida pelos Bororo de
Jarudóri não é única no Brasil. Pelo menos 17% das 382 terras indígenas que já
tiveram seu processo de demarcação concluído, isto é, que foram homologadas ou
registradas, continuam invadidas por fazendeiros ou posseiros, que mantêm a
posse da terra.
Não fazem parte desta lista as terras
invadidas apenas com intenção de roubo
de recursos naturais, como o garimpo, a
extração ilegal de madeira e a pesca. Se
esses tipos de invasão fossem considerados, a lista seria ainda maior.
São pelo menos 66 mil indígenas que,
apesar
de terem terras demarcadas, conAgosto - 2006 12
tinuam vivendo em permanente tensão
com os invasores, que exploram as terras e contribuem também para a degradação dos territórios.
As invasões têm históricos e conseqüências específicas em cada terra, mas
uma característica constante, segundo a
avaliação do Cimi, é a falta de vontade
política para a retirada dos invasores. A
situação se mostra pela falta de verbas
para a retirada de invasores, pela falta de
fiscalização e mesmo pela demora para
aplicação de recursos já destinados para
indenizações. “O procedimento que a
Funai vem adotando em geral é de só indenizar os invasores depois que os pró-
prios indígenas os expulsam”, afirma
Saulo Feitosa, vice-presidente do Cimi.
Isso prolonga os conflitos e dá margem
para processos de criminalização das lideranças.
A lista inclui terras localizadas em
pelo menos 16 estados. O levantamento
mais completo vem de Roraima, e foi realizado pelo Conselho Indígena de
Roraima (CIR). Lá, 18 terras registradas e
homologadas são invadidas por posseiros e fazendeiros.
Rio Grande do Sul e Mato Grosso do
Sul também se destacam, com seis terras
cada um, seguidos por Maranhão e Bahia,
com cinco terras cada.
México tem
de 15 a 25
milhões de
indígenas
O
Priscila D. Carvalho
Repórter
Brasil não é o único país
da América Latina em que
dados recentes revelam a
existência de uma população indígena maior do que a que
costumava ser contabilizada em
pesquisas mais antigas. No México, que tem 103 milhões de habitantes, os censos oficiais contavam
entre 8 e 10 milhões de indígenas.
Entretanto, um estudo publicado
este ano pelo Instituto Nacional de
Antropologia e Historia (INAH)
informa que existem 15 milhões
de indígenas no país.
Os levantamentos no México
mostram também que, dependendo da forma como se faz o censo
e dos critérios utilizados, os resultados mudam – e muito. O censo
oficial considera como indígenas
apenas os cidadãos que falam
idiomas tradicionais. Já o estudo
do INAH inclui pessoas que se
autodenominam indígenas sem terem, obrigatoriamente, que falar
idiomas dos povos originários.
Pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a
autodenominação deve ser o critério para a identificação de indivíduos e grupos indígenas.
Para o pesquisador que organizou a publicação, Miguel Alberto
Bartolomé Bistoletti, o novo número demonstra uma realidade
distinta. Estas informações podem
proporcionar as bases para o desenvolvimento de políticas públicas mais coerentes para a população indígena. O estudo foi publicado no livro Visões da Diversidade: Relações Interétnicas e identidades indígenas no México atual.
Segundo a organização católica que atua com os indígenas no
México, o Centro Nacional de
Ayuda a las Misiones Indígenas
(Cenami), a população indígena
do país pode chegar a 25 ou até
30 milhões de pessoas, se forem
contados também os indígenas
que saíram de suas áreas de origem e vivem nas cidades mexicanas, sem abandonar sua identidade cultural.
Fotos: ALAI e Simone Bruno/Minga Informativa
Encontro no
Peru reúne líderes
indígenas dos
povos andinos
Ameríndia
O evento fundou a Coordenação Andina de
Organizações indígenas e definiu suas prioridades
Blanca
Marcy Picanço
Editora do Porantim
A
s lutas contra o neoliberalismo e
pela autodeterminação dos povos
foram duas prioridades nas discussões do primeiro Tantachawi, ou
Congresso da Coordenação Andina de
Organizações Indígenas, que ocorreu de
15 a 17 de julho no histórico santuário
de Cusco, no Peru. O evento reuniu 500
delegados oficiais representantes dos
Kichwa, Aymara, Mapuche, entre outros
povos vindos da Colômbia, Equador, Peru,
Bolívia, Chile e Argentina.
A criação da Coordenação começou a
ser pensada quatro anos atrás, a partir de
intercâmbio entre os povos que vivem na
Cordilheira dos Andes e da percepção de
que há muitos problemas comuns que afetam a região. “Estão nos impondo um plano militar de iniciativa regional. O Plano
Colômbia é para expulsar os indígenas do
seu território. O Plano Dignidade, na Bolívia, é para perseguir indígenas, camponeses e cocaleros. Querem nos impor os tratados de livre comércio (TLC), a Alca, que
pretende tirar nossos territórios, água e sementes”, explicou à Agência Minga
Humberto Cholango, nomeado Coordenador Político da Coordenação Andina e presidente da Ecuarunari, uma das entidades
que organizaram o Congresso.
A Declaração de Cusco, aprovada ao fim
do evento, rejeita a imposição dos TLC e
dos grandes projetos que estão ingressando em terras dos povos indígenas sem o
devido consentimento destes. Também
propõe que “as instâncias internacionais
deixem de nos invisibilizar e nos substituir,
e levem em conta nossos direitos, em particular que a Comunidade Andina das Nações e o Mercosul, em todos seus processos e decisões, respeitem nossos Direitos
Coletivos com a devida consulta e consentimento. Igualmente, que a Organização
Mundial do Comércio (OMC) respeite
nossos direitos de Territorialidade, Autonomia e patrimônio intelectual e cultural,
e seu caráter coletivo e transgeneracional.”
Autonomia
A construção de Estados plurinacionais
e sociedades interculturais é o eixo guia
da Declaração de Cusco, que inicia afirmando: “Não queremos que os Estados nos
dêem uma mão, mas sim, que tirem suas
mãos de cima de nós”.
Em entrevista ao Porantim, Menthor
Sanchez, da Conaie, explica que os Estados
acham perigosa a luta dos povos indígenas
por autonomia, mas não questionam a atuação de empresas transnacionais: “Os governos acham que vamos querer Estados
dentro dos Estados e vamos acabar com a
soberania dos países. Mas, eles é que estão
entregando sua soberania, quando vendem
para empresas de outros países o direito de
explorar os seus recursos naturais ou quando transferem um grande volume de dinheiro para outros países. Não sei que soberania é esta”.
Ele afirma que os povos indígenas querem a autonomia porque são diferentes:
“Por exemplo, temos uma relação com a
terra diferente da que os países do ocidente têm. Não a destruímos, não a tratamos
como capital”. Ele destaca que os povos
lutam pelos seus territórios e para proteger os recursos naturais que têm sido ameaçados por projetos governamentais ou
empresas privadas transnacionais que exploram petróleo, gás, madeira e até água.
Chancoso e
Um dos pontos centrais na agenda de
Boaventura de
atuação da Coordenação junto aos Estados
Souza Santos
no próximo período será a luta pelo territóparticiparam
do evento que
rio e pela proteção dos recursos naturais.
reuniu 500
Outro ponto importante é a questão
delegados de
da participação no Estado. Miguel Palacin
diversas
organizações
Quispe, líder indígena Kichwa do Peru, eleiindígenas da
to primeiro Coordenador Geral da CoordeAmérica do
nação Andina, explica que, em relação a
Sul
isto, a organização propõe uma refundação
dos Estados incorporando as propostas dos
povos indígenas que aparecem nos projetos políticos das organizações indígenas
dos diversos países andinos. Dessa forma,
se pretende alcançar um Estado Plurinacional institucionalizado e que incorpore
a todos.
Outro tema da agenda é a reconstituição e integração dos povos e nacionalidades indígenas. Quispe disse à agência
de notícias Minga que eles acham que politicamente a integração entre os povos
tende a crescer. “Assim como os Estados
fazem acordos apenas com governos, nós
fazemos acordos entre os povos”, explica.
Nesse sentido, há a proposta de reconstruir
politicamente o Tawantinsuyu (Império
Inca, na língua quenchua) e ir integrando
os povos vizinhos em uma agenda comum,
em uma prática de modelo de desenvolvimento baseado nos próprios povos.
Na agenda da Coordenação, também
há o tema da participação política indígena. Quispe considera que os povos indígenas devem participar dos governos desde
os níveis locais da administração até as instâncias nacionais, com uma prática
participativa da democracia inclusiva, que
é a demandada pelos povos.
Uma das primeiras tarefas da Coordenação é a difusão da Declaração de Cusco.
Em seguida, devem fazer com que todas
as instâncias dos governos dos países
andinos saibam que agora existe uma organização para representar os povos indígenas da região. O Congresso fundador da
entidade foi organizado pela Ecuarunari,
do Equador, pela Conacami, do Peru, pela
Conamaq, da Bolívia, pela Onic (Colombia)
e pela Citem (Chile).
13 Agosto - 2006
A VIDA DOS POVOS
Os Apurinã na cidade de Lábrea
Fotos: Cimi / Equipe Lábrea
Vivendo na cidade há anos, eles ainda preservam sua medicina tradicional
Os remédios,
feitos de
animais e
plantas, são
usados não
apenas pelos
Apurinã, mas
por alguns
moradores sem
acesso a
remédios
industrializados
Geertje van der Pás*
Repórter
A
ndando pelas ruas da cidade de
Lábrea, em bairros afastados e especialmente no centro, deparamonos a todo instante com homens,
mulheres, jovens, crianças de estatura baixa,
cabelos escuros e lisos e olhos amendoados.
São indígenas ou descendentes diretos de
vários povos que habitam as margens do
Purus ou as periferias da cidade. A maioria é
do povo Apurinã.
Eles vêm à procura de tratamento médico, emprego, para receber algum benefício
do governo como aposentadoria, bolsa
escola, auxílio, família… A grande parte dos
índios que procura emprego, não encontra.
Muitos deles fazem carvão para vender.
Outros pescam, plantam roças nas margens
do rio, roçados em terra firme e tentam sustentar toda a família. Alguns vivem há muito
tempo em Lábrea, há mais de 40 anos; outros, há alguns meses.
Numa caminhada por um dos maiores
bairros da cidade, chamado Fonte, onde há a
maior concentração de indígenas, encontramos o senhor Edivar Apurinã, que vive na
cidade há mais ou menos quinze anos. “Não
estou satisfeito aqui, venho porque minha
família está toda aqui. Mas acharia melhor se
a minha família estivesse toda na aldeia, mas
os filhos estão estudando, eles vão somente
nas férias.”, diz Edivar Apurinã. “Tenho orgulho de ser índio e jamais escondo a minha
condição. A melhor coisa é estar lá na aldeia,
porque aqui na cidade não tem como a
gente sobreviver. Na aldeia, nós temos tudo
e é nosso.”
Um outro Apurinã, chamado Juraci, ouve
a discussão e complementa: “Entre a aldeia e
a cidade, eu não troco um por outro, pois se
na aldeia tem facilidades, como a alimentação, aqui na cidade tem facilidades pelo lado
da saúde. Eu não preciso descer o rio remanAgosto - 2006 14 do, aqui tem tudo e é perto.”
Porém, conversando com os índios que
moram na cidade, pode-se perceber que apesar de tantos anos longe de suas aldeias, eles
não esqueceram uma das atividades mais importantes que herdaram de seus antepassados: a medicina tradicional.
Nas florestas, as populações podem encontrar grande parte do que precisam para
sobreviver, desde os alimentos até os remédios. As ervas existentes são, na maioria,
• As primeiras referências aos índios
Apurinã foram dadas por algumas
expedições em meados do século
XIX (1852, 1861, 1862 e 1866).
• Os Apurinã estão distribuídos por
todo o rio Purus, nos estados de
Rondônia e Amazonas.
• No Amazonas, eles somam
aproximadamente 3100 pessoas,
vivendo em 35 terras indígenas.
Em Rondônia, são 100 pessoas,
todas na terra indígena Roosevelt.
• Na cidade de Lábrea moram mais
ou menos 300 famílias Apurinã,
• Embora 80% de suas terras
estejam demarcadas, continuam
as invasões, principalmente por
peixeiros e madeireiros.
• A língua materna é Apurinã. É da
família Aruak.
conhecidas pelos pajés. Pela tradição herdada dos antigos, eles conseguem ajudar seu
povo a se livrar de muitos tormentos.
Na cidade, é muito comum a utilização
dos remédios naturais, feitos de plantas e de
animais, ou a procura por benzedores. É muito mais que, simplesmente, a tradição herdada dos pais e avós. Muitas vezes, é uma questão de sobrevivência, numa sociedade onde
nem todos têm condições de se beneficiar da
medicina ou comprar os remédios prescritos
pelo médico.
Em Lábrea, os Apurinã sempre falam sobre o conhecimento dos remédios tradicionais.
Uma das histórias é sobre como eles se previnem contra picadas de cobra: se os pais encontram uma colméia de abelhas na mata, eles
recolhem toda a colméia e passam no corpo
da criança. Uma proteção para toda a vida.
Rosana Apurinã fala sobre o avô dela. Ele
era pajé e morava na cidade, mas já morreu.
“Ele nunca deixava as doenças atingirem a
gente. Quando a gente pega gripe, não é com
antibiótico que a gente vai se curar. A gente
faz o tratamento caseiro. Mesmo porque a
gente sabe que fortalece a gente. Tem tipo
de doença que a gente sabe que é pra esse
tratamento de medicina branca. E tem tipo
de doença que… por exemplo: um mosquito
dá uma ferrada em mim. Se aquela doença
passa mais ou menos um mês, a gente já sabe
que é arabani. Daí que a gente sabe que tipo
de doença a gente tem, e sabe que foi algum
pajé que colocou. A gente sabe que a doença
é causada por algum espírito quando a pessoa começa a fazer certas coisas que não são
normais.”
*A partir de trechos do relatório “Indios na
cidade: uma nova face e um novo desafio”
do missionário Hoadsom Leonardo Silva,
da equipe Lábrea-AM, elaborado para o
curso de formação básica do Cimi.
Algumas das ervas mais usadas pelos Apurinã que vivem em Lábrea
• Alfavaca, jambú, casca de jatobá, casca de uxí, óleo de andiroba, copaíba,
corâma, malvavisco (malva), hortelã = para fazer xarope para curar gripe;
• Casca de goiabeira e de castanheira = para fazer chá para curar diarréia;
• Banha de taíra = pinga-se no ouvido para curar dor;
• Banha de cobra sucuriju e de jacaré = fricciona-se no local afetado para
curar reumatismo;
• Chá de cupim = para curar inchaço.
Resenha
Impunidade
Marçal Guarani – A voz que não pode ser esquecida
STF dá liberdade
para acusado de
mandar matar
Irmã Dorothy
N
Benedito Prezia
São Paulo : Expressão Popular
96p. R$3,00
o dia 29 de junho, a primeira turma
do Supremo Tribunal Federal (STF)
concedeu habeas corpus para o empresário Regivaldo Pereira Galvão. Ele
estava preso e é acusado de ser um dos mandantes do assassinato da Irmã Dorothy Stang,
ocorrido em Anapu, no Pará, no dia 12 de fevereiro de 2005. Galvão poderá aguardar em
liberdade o julgamento. Esta decisão contrariou todas as resoluções anteriores das instâncias mais próximas do caso (no município
e no estado).
O relator do caso no STF, ministro Cezar
Peluso, em seu voto, considerou “a prisão preventiva absolutamente ilegal”, alegando que
ela não pode ser utilizada como antecipação
da pena e como justificativa para a “sede
de vingança coletiva”. O voto de Peluso foi
acompanhado pelos ministros Sepúlveda
Pertence e Marco Aurélio Melo. Votaram contra o habeas corpus, os ministros Ricardo
Lewandowski e Carlos Ayres Brito.
Em nota, a Comissão Pastoral da Terra,
lembrou que esta liberdade poderá ser aproveitada para a intimidação das testemunhas
de acusação. Além disso, pode significar a
impunidade, porque o empresário tem condições econômicas para fugir.
O estado do Pará tem uma história
marcada pela impunidade em relação aos crimes ocorridos no campo. A CPT do Pará entregou ao presidente do Tribunal de Justiça
do Estado uma relação de 774 assassinatos
ocorridos no estado nos últimos 35 anos. Desse total, em cerca de 70% dos casos não houve
qualquer apuração sobre a responsabilidade
pelos crimes. Não há um mandante sequer
desses crimes condenado e cumprindo pena
atrás das grades.
C
itando o filósofo Walter Benjamin: “A história é um profeta com
o olhar voltado para trás. Pelo
que foi e contra o que foi, anuncia o que será”, o autor mostra, nessa perspectiva, seu interesse em escrever a biografia de Marçal Tupã-i, para que sua figura não ficasse esquecida.
Desde as primeiras décadas do século passado, há registros do sofrimento do
povo Guarani. O livro destaca a violência
da qual esse povo sempre foi alvo, os seguidos assassinatos cometidos pelos
“bugreiros” para “limpar a área” a fim de
que as terras fossem mais facilmente ocupadas pelos fazendeiros. Por outro lado
eram utilizados como mão-de-obra barata. Curt Nimuendaju, o grande pesquisador alemão, escreveu num relatório, em
1913: “(Os Guarani) constantemente são
ameaçados de morte se eles tentam abandonar as fazendas onde trabalham. E que
isso não é mera invenção deles ou ameaça
vaga, provam os numerosos assassinatos...
... sem outro motivo como ódio ao “bicho”
ou qualquer conta fantástica (contraída nos
armazéns das fazendas).”
Nesse contexto de violência e exploração nasceu Marçal, a 24 de dezembro de
1920, recebendo o nome de Tupã-i, o pequeno Tupã, o pequeno senhor do trovão.
Acompanhamos a trajetória de Marçal, suas
idas e vindas desde a vivência na cultura
ocidental e a vida evangélica, quando chegou a ser pregador até sua volta às origens, o retorno à sua identidade étnica “o
caminho de volta ao ser guarani”. Sentimos como sua vida foi afetada pelo golpe
de 1964, quando a ditadura militar representou um reforço do poder dos fazendeiros e dos grandes grupos econômicos,
época em que a questão indígena foi considerada de segurança nacional, pois mui-
tas reservas ficavam em áreas estratégicas,
em regiões de reserva mineral ou de fronteira.
Engajado na luta pela sobrevivência de
seu povo, sofreu perseguições sendo obrigado a deixar o lugar onde exercia seu trabalho de enfermeiro. Mas nunca desistiu
ou se intimidou e suas mensagens eram
firmes nas denúncias sobre a situação de
sofrimento a que os Guarani-Kaiowá e todos os povos indígenas do Brasil estavam
submetidos.
Após a participação em várias assembléias indígenas, Marçal sentiu a necessidade de se criar uma organização indígena de âmbito nacional. Em junho de 1980,
no Mato Grosso do Sul, foi criada a UNI,
União das Nações Indígenas. Durante as
reuniões para que se estruturasse essa organização, se discutiu e aprovou a ida de
Marçal a Manaus para que representasse
os povos indígenas no seu discurso ao Papa
João Paulo II. Em outubro daquele ano,
com uma voz clara e firme, diante da multidão silenciosa que se aglomerava em
frente ao palácio episcopal de
Manaus, Marçal fez, não um
discurso de saudação, mas sim,
uma denúncia da situação em
que viviam os povos indígenas
naquela época, sintetizando
500 anos de violência contra
esses povos:
“Eu sou representante da
grande tribo guarani, quando,
nos primórdios, com o descobrimento desta pátria, nós éramos uma grande nação. (...)
Somos uma nação subjugada
pelos potentes {poderosos},
uma nação espoliada, uma nação que está morrendo aos
poucos sem encontrar caminho, porque aqueles que nos
tomaram este chão não têm
dado condições para a nossa
sobrevivência. Nossas terras
são invadidas, nossas terras são tomadas,
os nossos territórios são diminuídos. (...)
Queremos dizer a Vossa Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte dos
nossos líderes assassinados friamente por
aqueles que tomam o nosso chão(...)”.
A publicação do Cimi “Violência contra os povos indígenas – 2003/2005”,
lançada neste ano, mostra que após 27
anos do discurso de Marçal ao Papa João
Paulo II, o povo Guarani-Kaiowá continua
a viver sob o signo da violência – assassinatos, invasão de suas terras, morte prematura de suas crianças, despejos injustos de seus territórios, suicídios.
E foi também num contexto de violência que ele foi assassinado em 1983, três
anos após ter discursado para o Papa. Mas
a voz e a mensagem de Marçal não foram
silenciadas com sua morte. Seu ideal foi
mantido por lideranças que se sucedem na
luta pelo direito à terra e a uma vida digna
para seu povo.
Leda Bosi
Sedoc
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15 Agosto - 2006
A REBELIÃO DE AJURICABA
E
ntre os muitos povos do médio Amazonas que
resistiram à conquista portuguesa, destacou-se
o povo Manau, que vivia na região do baixo Rio
Negro.
O casamento do sargento Guilherme
Valente, comandante da fortaleza de São José
do Rio Negro, com a filha de um importante cacique
Manau, em 1675, facilitou a presença portuguesa,
sobretudo o tráfico de escravos indígenas, irritando
lideranças nativas que passaram a discordar dessa prática.
Isso ocorreu com Ajuricaba, filho de Huiuebene, que
se retirou com um grupo de guerreiros para o interior. A
morte do pai, vítima de conflitos com os portugueses,
causada por desacordo sobre preço desse infame
comércio, motivou o retorno desse líder, que passou a
liderar seu povo.
APOIADORES
UNIÃO EUROPÉIA
Agosto - 2006
16
Articulando-se com lideranças Mayapena, povo do alto
Rio Negro, Ajuricaba conseguiu fazer uma grande frente
de resistência, desencadeando uma guerra em 1723, que
duraria quatro anos.
Fortificando suas aldeias, passaram a atacar a fortaleza
do Rio Negro e algumas missões. Para isso tiveram o apoio
dos holandeses, que, interessados na região, ofereceram
armas de fogo, além de outras armas obtidas em confronto
com os portugueses.
O governador do Pará hesitava organizar uma
expedição punitiva, pois não tinha certeza de vitória. Isso
possibilitou uma negociação entre as partes, sugerida
pelos jesuítas, que tentavam ganhar tempo e recuperar
indígenas das missões, que estavam no poder dos
rebelados. Selou-se um tratado de paz, havendo troca de
prisioneiros: 50 indígenas das missões seriam barganhados
por 50 guerreiros Manau que estavam em poder dos
portugueses. De sua parte Ajuricaba se comprometia tirar
a bandeira holandesa que tremulava em seu barco, que
para ele seguramente não passava de um enfeite
provocativo.
O tratado de paz durou pouco, pois notícias vindas
da região diziam que os conflitos haviam recomeçado. O
governador mandou um pequeno exército, equipado até
com canhão, para enfrentar os rebelados.
Depois de um cerco de vários dias, a fortaleza indígena
caiu sob o poderio das armas de fogo. Ajuricaba e mais
300 guerreiros foram presos, e conduzidos em barcos para
Belém.
No meio da viagem, houve um motim. Como diz o
relato do comandante da expedição “ele [Ajuricaba] e
outros homens levantaram-se na canoa, onde estavam
sendo conduzidos, agrilhoados, e tentaram matar os
soldados. Estes sacaram suas armas e feriram alguns deles
e mataram outros. Então Ajuricaba saltou da canoa para a
água, com outro chefe, e jamais apareceu vivo ou morto”.
Ajuricaba, atirando-se nas águas do Amazonas, entrou
para a história, como um dos heróis mais importantes da
resistência indígena na Amazônia.
Benedito Prezia

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