Políticas públicas, economia e poder o Estado de Roraima entre
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Políticas públicas, economia e poder o Estado de Roraima entre
Universidade Federal do Pará Núcleo de Altos Estudos Amazônicos Doutorado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido Nelvio Paulo Dutra Santos POLÍTICAS PÚBLICAS, ECONOMIA E PODER: O Estado de Roraima entre 1970 e 2000 Belém 2004 Nelvio Paulo Dutra Santos Historiador POLÍTICAS PÚBLICAS, ECONOMIA E PODER: O Estado de Roraima entre 1970 e 2000 Tese apresentada para obtenção do grau de Doutor em Ciências: Desenvolvimento SócioAmbiental, Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos. Área de concentração: Estado, Políticas Públicas e Cidadania. Orientadora: Profª. Drª. Ligia T. L. Simonian. Belém 2004 _________________________________________________ Santos, Nelvio Paulo Dutra Políticas Públicas, economia e poder: o Estado de Roraima entre 1970 e 2000/ Nelvio Paulo Dutra Santos; Orientadora Drª. Ligia T. L. Simonian. Belém: 2004. 270 f. Tese (Doutorado) - Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (PDTU) - Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará. 1. Políticas públicas. 2. Geopolítica. 3. Amazônia. 4. Roraima. ________________________________________________ Nelvio Paulo Dutra Santos Políticas Públicas, Economia e Poder: O Estado de Roraima entre 1970 e 2000. Tese apresentada para obtenção do grau de Doutor em Ciências: Desenvolvimento SócioAmbiental, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará. Área de concentração: Estado, Políticas Públicas e Cidadania. Data de aprovação: ____________ Banca Examinadora: _________________________________________ - Orientador Profª Drª. Ligia T. L. Simonian Doutora em Antropologia Universidade da Cidade de Nova Iorque _________________________________________ Prof. Dr. José Gilberto Quintero Torres Doutor em Ciências Políticas Universidade Central da Venezuela _________________________________________ Profª Drª. Catherine Prost Doutora em Geografia Universidade - França _________________________________________ Prof. Dr. Francisco de Assis Costa Doutor em Economia Universidade - Alemanha _________________________________________ Prof. Dª. Rosa Elizabeth Acevedo Marin Doutora em História Universidade - França 5 AGRADECIMENTOS À minha Universidade, a UFRR, instituição jovem que investe no aperfeiçoamento de seus docentes, pela oportunidade de realizar este Curso, especialmente aos colegas do Departamento de História. Aos professores, aos colegas de curso e funcionários do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), amigos e incentivadores, em especial a Adagenor Lobato Ribeiro. À professora Ligia T. L. Simonian, orientadora, incentivadora e amiga. À CAPES, pela bolsa de estudos que me concedeu via PICDT. Ao amigo Vicente de Paulo Joaquim, coordenador do IBGE de Roraima, pela disponibilidade e colaboração quando dos levantamentos da base de dados. E, especialmente, à minha esposa Marlene, companheira, incentivadora paciente e colaboradora. 6 RESUMO Esse trabalho analisa as razões da mudança e permanência das estruturas de poder em Roraima, desde a intervenção do Estado nacional autoritário em um espaço territorial demarcado pela fronteira política e de recursos e sua ocupação por várias sociedades, inclusive tradicionais, em situação de conflito. O ponto de partida da investigação foi o estudo do papel do Estado como suposto coordenador da ação social ou comandante do agir institucional, no sentido de Max Weber, frente a uma situação concreta, onde se defrontam, numa relação dicotômica, o nacional e o local/regional. Com esse objetivo, privilegiou-se a busca da compreensão do sistema de relações estabelecidas pelas ações resultantes do planejamento geopolítico e desenvolvimentista para a Amazônia ocidental, bem como de suas resultantes no presente. Estas consistem, principalmente, na transformação no espaço de duas décadas, de um território federal com pouco mais de 40.000 habitantes e dois municípios em um novo estado federativo. A rápida mudança alterou drasticamente o cenário humano e físico-espacial, dando origem a novas estruturas sócio-econômicas e sociais, cujos agentes tendem a participar de grupos de pressão para defender suas posições. Estas consistem, de um lado, nos defensores da legislação instituída pela Constituição de 1988, que reconheceu direitos das comunidades indígenas às suas terras e condiciona a exploração dos recursos naturais; de outro, empresários e políticos adeptos do desenvolvimento local, de preferência imediato. Os resultados da pesquisa revelam que o Estado não dispõe de condições políticas para resolver tais questões, não tendo também se mostrado um mediador eficiente, havendo uma tendência para o acirramento da disputa e ao impasse. 7 ABSTRACT This work analyzes the reasons of the change and permanence of the structures of power in Roraima, since the intervention of the authoritarian National State over a territorial space demarcated by political borders and related to resources and its occupation by several societies, including the traditional in conflict situation. The starting point for the research was the study of the State’s role as a supposed coordinator of the social action or commandant of acting institutional, in Max Weber's sense, in the face of a concrete action, where it is confronted, in a dichotomic relationships, between the national and the local/regional. With such a purpose, it was privileged the search for an understanding of the system of relationships that was established by the resulting actions of the geopolitical planning and development for western Amazon, as well as of its outcomes in the present. These consist, mainly, though the transformation in the space of two decades, of a federal territory with not much more than 40.000 inhabitants and two municipal districts in a new federative state. That fast change altered drastically the human and physical scenery space, giving origin to new socioeconomic and social structures, whose agents tend to participate on pressure groups to defend their positions. These groups consist, on one hand, of defenders of the legislation instituted by the Constitution of 1988, which recognized the rights of the indigenous communities towards their lands and the conditions for the exploration of the natural resources; on the other hand, are the managers and the political followers of the local development, immediate of preference. The results of such research reveal that the State does not have the political conditions to solve such questions, as he does not even tend to show himself as an efficient mediator, as there is a tendency to the incitement of the dispute and of the impasse. 8 LISTA DAS ILUSTRAÇÕES Mapa 1 - O mundo de Mackinder em 1904......................................................................... 73 Mapa 2 - A política de contenção americana, baseada em Spykman................................. 77 Mapa 3 - Produção colonial do Brasil................................................................................. 83 Mapa 4 - Vertebração rodoviária do Brasil, segundo Mattos............................................. 105 Mapa 5 - Áreas interiores de intercâmbio fronteiriço, segundo Meira Mattos................... 107 Mapa 6 - Espaço ocupado pela pecuária bovina em Roraima em 1970.............................. 130 Quadro 1 - Rebanho bovino de Roraima - 1970-1995........................................................ 130 Mapa 7 - Pólos de desenvolvimento do II PND.................................................................. 137 Quadro 2 - Estabelecimentos rurais de Roraima quanto à condição de produtor: 19701995.................................................................................................................. 166 Quadro 3 - Utilização das terras rurais de Roraima, 1970-1995......................................... 167 Quadro 4 - Produção de arroz, feijão e milho em Roraima entre 1974 e 2000................... 179 Mapa 8 - Rodovias federais e colonização em Roraima..................................................... 191 Quadro 5 - Colônias do INCRA em Roraima - 1997.......................................................... 192 Quadro 6 - Colônias do ITERAIMA em Roraima -1997................................................... 193 Mapa 9 - Municípios do Estado de Roraima....................................................................... 217 Quadro 7 - População dos municípios de Roraima: 1991-2000.......................................... 224 Quadro 8 - Transferências Constitucionais para alguns Municípios do Estado de Roraima em 2000........................................................................................... 228 Mapa 10 - Terras Indígenas em Roraima................................................................ 235 Quadro 9 - Componentes da Primeira Assembléia Legislativa de Roraima - 1990.......... 240 Diagrama 1 - Os caminhos dos conflitos e impasses na década de 1990........................... 243 Fluxograma 1 - As redes de compromisso em Roraima..................................................... 244 9 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Produção econômica do Território do Rio Branco –1942-1943............ 93 Tabela 2 - Imóveis rurais do Brasil em 1967.......................................................... 158 Tabela 3 - Estabelecimentos e dimensão das terras rurais de Roraima 1970-1985 167 Tabela 4 - Propriedade das terras rurais em Roraima – 1970-1985........................ 168 Tabela 5 - Estrutura produtiva de Roraima - 1970-1997....................................... 178 10 LISTA DE SIGLAS ABI ACAR ACIR ADMIR ALBRÁS APIR ARENA ARIKON BB BASA BNDES CCPY CEDI CGT CEF CEHILA CEPAL CIDR CIMI CIP CIR CNBB COBAN CODESAIMA COMARA CONAMAZ CPRM CPT CSN CUT CVRD DASP DNPM EDF EMBRAPA EMFA ESG FAG FEB FGV FIDAM FIER FLONAS FMI FNO FNS FPE FPM FUNAI FUNDEF GETAT IBAD Associação Brasileira de Imprensa Assessoria de Crédito e Assistência Rural de Roraima Associação Comercial e Industrial de Roraima Associação das Mulheres Indígenas de Roraima Alumínio do Brasil S/A. Associação dos Povos Indígenas de Roraima Aliança Renovadora Nacional Associação Regional Indígena do Quinô e Monte Roraima Banco do Brasil S/A. Banco da Amazônia S/A Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social Comissão pela Criação do Parque Yanomami Centro Ecumênico de Documentação e Informação Confederação Geral dos Trabalhadores Caixa Econômica Federal Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina Comissão Econômica para a América Latina Centro de Informações da Diocese de Roraima Conselho Indígena Missionário Conselho Interministerial de Preços Conselho Indígena de Roraima Conferência Nacional dos Bispos do Brasil Comissão Binacional de Alto Nível Companhia de Desenvolvimento de Roraima Comissão de Aeroportos da Amazônia Conselho Nacional da Amazônia Legal Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais Comissão Pastoral da Terra Conselho de Segurança Nacional Central Única dos Trabalhadores Companhia Vale do Rio Doce Departamento Administrativo do Serviço Público Departamento Nacional de Produção Mineral Environmental Defense Fund Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária Estado Maior das Forças Armadas Escola Superior de Guerra Fundação de Assistência ao Garimpeiro Força Expedicionária Brasileira Fundação Getúlio Vargas Fundo de Investimento Privado do Desenvolvimento da Amazônia Federação das Indústrias do Estado de Roraima Florestas Nacionais Fundo Monetário Internacional Fundo Constitucional de Financiamento do Norte Fundação Nacional de Saúde Fundo de Participação dos Estados Fundo de Participação dos Municípios Fundação Nacional do Índio Fundo de Participação do Ensino Fundamental Público Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins Instituto Brasileiro de Ação Democrática 11 IBAMA IBGE IBRA IDH INCRA INPA INPE IPEA IPES IPTU ISA ISEB ISS ITBI ITERAIMA MDB MECOR MIRAD MST NAEA OAB ONG ONU OPEP OPIR PAEG PCB PCN PDTU PDA PDS PDVESA PEGB PIB PIN PND PNRA POLAMAZONIA PR PRORURAL PROTERRA PSD PSP PTB RADAM SADEN SBPC SEBRAE SESI SINDIMADEIRAS SINDIGAR SINDICON SINDUSCON SNI SPI SPVEA SUDAM Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Instituto Brasileiro de Reforma Agrária Índice de Desenvolvimento Humano Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas Instituto de Pesquisa Econômica e Social Imposto Predial e Territorial Urbano Instituto Sócio Ambiental Instituto Superior de Estudos Brasileiros Imposto Sobre Serviços Imposto sobre Transações de Bens Imóveis Instituto de Terras e Colonização do Estado de Roraima Movimento Democrático Brasileiro Ministério Extraordinário para a Coordenação dos Órgãos Regionais Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Núcleo de Altos Estudos Amazônicos Ordem dos Advogados do Brasil Organização Não-Governamental Organização das Nações Unidas Organização dos Países Produtores de Petróleo Organização dos Professores Indígenas de Roraima Programa de Ação Econômica do Governo Partido Comunista Brasileiro Projeto Calha Norte Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido Plano de Desenvolvimento da Amazônia Partido Democrático Social Petróleo de Venezuela S.A. Projeto de Estudos de Garimpos Brasileiros Produto Interno Bruto Programa de Integração Nacional Plano Nacional de Desenvolvimento Plano Nacional de Reforma Agrária Programa de Pólos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia Partido Republicano Programa de Assistência ao Trabalhador Rural Programa de Redistribuição de Terras e Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste Partido Social Democrático Partido Social Popular Partido Trabalhista Brasileiro Radar da Amazônia Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência Serviço Brasileiro de Apoio à Pequena e Média Empresa Serviço Social da Industria Sindicato da Indústria Madeireira Sindicato dos Garimpeiros Sindicato da Construção de Estradas e Pavimentos Sindicato da Construção Civil Serviço Nacional de Informações Serviço de Proteção ao Índio Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia 12 SUDENE SUFRAMA SUPRA TCA UDN UDR USAGAL Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste Superintendência da Zona Franca de Manaus Superintendência para a Reforma Agrária Tratado de Cooperação Amazônica (Pacto Amazônico) União Democrática Nacional União Democrática Ruralista União dos Sindicatos e Associações de Garimpeiros da Amazônia Legal 13 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................... 15 2 POLÍTICA , ESTADO E SOCIEDADE .............................................................................. 2. 1 A POLÍTICA E A ORIGEM DO ESTADO......................................................................... 2. 2 O ESTADO E A SOCIEDADE............................................................................................ 2. 3 O ESTADO E A REPRESENTAÇÃO................................................................................. 2. 3. 1 A representação no Brasil.............................................................................................. 2. 3. 2 Partidos, elites e grupos.................................................................................................. 2. 3. 3 Grupos de pressão e grupos de interesse...................................................................... 2. 4 AS MUDANÇAS NO PAPEL DO ESTADO NO SÉCULO XX: RACIONALIDADE E PLANEJAMENTO.............................................................................................................. 2. 4. 1 O estado, planejamento e desenvolvimento no Brasil................................................. 2. 4. 2 1964: a aliança de tecnocracia e militares.................................................................... 2. 4. 3 1985-2000: o fim do autoritarismo e o fortalecimento dos grupos regionais............ 2. 5 O ESTADO E A GEOPOLÍTICA........................................................................................ 27 27 36 37 41 48 54 3 O ESTADO NACIONAL BRASILEIRO E A AMAZÔNIA.............................................. 3. 1 O ESTADO E A INTERVENÇÃO NA AMAZÔNIA: ANTECEDENTES HISTÓRICOS........................................................................................................................ 3. 2 O RIO BRANCO: UMA SOCIEDADE DE CRIADORES NA AMAZÔNIA................... 3. 3 O ESTADO NOVO E A CRIAÇÃO DO TERRITÓRIO FEDERAL ................................ 3. 4 1946 – 1964: A DESCENTRALIZAÇÃO DO ESTADO E A AMAZÔNIA..................... 3. 5 O PENSAMENTO GEOPOLÍTICO BRASILEIRO E A AMAZÔNIA............................. 3. 6 OS MILITARES E O PENSAMENTO DA ESG................................................................ 3. 7 CRESCIMENTO BRASILEIRO E REAÇÃO DOS PAÍSES VIZINHOS......................... 78 4 RORAIMA: MILITARIZAÇÃO, PROGRESSO E CONFLITO..................................... 4. 1 A MILITARIZAÇÃO DA FRONTEIRA E A MODERNIZAÇÃO.................................... 4. 2 GEOPOLÍTICA E COOPTAÇÃO: O GOVERNO HÉLIO CAMPOS............................... 4. 3 AUTORITARISMO CENTRAL X PATRIMONIALISMO LOCAL: O GOVERNO RAMOS PEREIRA.............................................................................................................. 4. 4 AS ORIGENS DO POPULISMO: O PRIMEIRO GOVERNO DE OTTOMAR PINTO.. 4. 5 O FIM DO AUTORITARISMO E A ASCENSÃO DO PODER LOCAL......................... 4. 6 ROMERO JUCÁ: O PODER EMPRESARIAL.................................................................. 4. 7 DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS: INÍCIO DA GRANDE POLÊMICA..................................………………………………………………………... 4. 8 TERRA: A BASE TERRITORIAL EM DISPUTA............................................................ 4. 8. 1 A questão fundiária em Roraima na década de 1990.................................................. 57 60 64 68 71 79 86 89 95 100 109 116 122 124 132 136 141 144 148 152 155 160 14 5 ECONOMIA E RELAÇÕES DE PODER.......................................................................... 5. 1 A ECONOMIA E O AMBIENTE........................................................................................ 5. 1. 1 A colonização: de projetos político-administrativos a problemas políticos............ 5. 1. 2 O garimpo: origens e caminhos..................................................................................... 5. 1. 2. 1 O garimpo em Roraima e seu significado..................................................................... 5. 1. 2. 2 Garimpo, mobilidade espacial e política...................................................................... 5. 2 RELAÇÕES POLÍTICAS, ESTRUTURAS E PROCESSO DE PODER………………... 5. 2. 1 A força e fraqueza dos municípios................................................................................ 5. 2. 2 Uma nova situação geopolítica: o Calha Norte e a questão indígena........................ 5. 2. 3 Os anos de 1990: conflitos e impasses - uma síntese...............................……………. 171 176 185 196 201 206 212 215 230 237 6. CONCLUSÃO...................................................................................................................... 249 REFERÊNCIAS......................................................................................................................... 255 15 1 INTRODUÇÃO Desde o século XVIII que o Estado marca sua forte presença na Amazônia. No entanto, foi somente após 1964 que o poder público, através da imposição de um projeto de modernização, inseriu a Amazônia nas bases produtivas nacionais. Ao longo desse processo, segundo Becker (1998), a Amazônia assumiu importante posição-chave perante as prioridades econômicas e geopolíticas, além de ser considerada uma solução para os problemas de tensão social do Nordeste e da continuidade do crescimento econômico-social do Sudeste. Essa profunda e abrangente intervenção atingiu o cotidiano das populações amazônicas, transformando o espaço geográfico, modificando o universo das relações econômicas, sociais e políticas. O incentivo a atividades produtivas, o aumento populacional, a abertura de rodovias e implantação de novas estruturas técnicas e administrativas, fazem parte desse conjunto. Na década de 1980, com a redemocratização1 e o arrefecimento da ação do Estado, aumentou o espaço das elites locais ou regionais e, com a promulgação de uma nova Constituição, surge um novo cenário político nacional, onde a Amazônia tem, novamente, um papel de destaque. Esses três momentos diferenciados, são partes de um processo cujos resultados ainda estão sendo identificados e avaliados por inúmeras pesquisas, mas existem, ainda, realidades, que, por seu papel e importância presente, justificam um estudo mais aprofundado e abrangente. Este exige um tratamento teórico-metodológico das questões envolvidas mais relevantes das diferentes fases e espaços onde ocorreu o processo e suas especificidades, pois a diversidade, mais que tudo, é uma das marcas da região amazônica. Reconhece-se, também, que se diversos foram cada momento político, nacional e internacional, bem como as estratégias e objetivos, tem permanecido invariável a idéia de que a Amazônia representa uma 1 A expressão “redemocratização” é utilizada neste trabalho como sinônimo de fim de regime de exceção, acompanhando-se um uso consagrado. Assim, o termo foi utilizado com relação a 1945, fim do Estado Novo e 1985, final do regime militar brasileiro. 16 possível solução para problemas que lhe são alheios, pagando sempre o preço disso. E esse custo, como se pretende mostrar aqui, não se resume ao ambiente físico, já que as populações humanas são logicamente afetadas sempre que o espaço é modificado. A intervenção do Estado na região se iniciou com o marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII, a qual buscava garantir territórios para a coroa portuguesa, construindo fortalezas nas entradas “naturais”, isto é, junto a alguns rios, como nos campos do rio Branco, hoje Roraima. Uma segunda intervenção (COSTA, 1992, p. 9) se deu quando da repressão da revolta da Cabanagem (1835-1839), ocasião em que o governo imperial aumentou maciçamente sua presença militar na então província do Pará. Após a metade do século XIX, ocorre o que comumente é conhecido como o “ciclo da borracha”, cujo período áureo inicia-se por volta de 1870, decaindo após 1912. Segue-se um período de estagnação até 1940, quando o governo central cria vários órgãos técnicos e de apoio e desencadeia uma série de ações na região. Essas medidas estão ligadas aos denominados “Acordos de Washington” e, segundo Bahiana (1991), foram assinados em plena Segunda Guerra Mundial, quando a borracha e outros produtos estratégicos foram extremamente valorizados. Essa Guerra também resultou na valorização maior das fronteiras, com a criação de territórios federais na Amazônia, como o Amapá e Rio Branco (Roraima), Guaporé (Rondônia), Ponta Porã, no Centro-Oeste e Iguaçu, no Sul. Essas novas unidades administrativas obedeciam a uma estratégia, apoiada numa ideologia que se expressava no movimento da “marcha para o oeste”. Esta, concebida por geógrafos e militares, adeptos de uma geopolítica nacionalista, defendia a necessidade da ocupação do interior de território nacional, num processo patrocinado pelo Estado. Embora um tanto modificada, a idéia transparece, de acordo com Vesentini (1987), no governo de Juscelino Kubitschek (19561961), na construção de rodovias de acesso à Amazônia e da nova capital brasileira, Brasília. A criação do território de Rio Branco, hoje Roraima, em 1943, representou o primeiro passo para uma mudança radical numa sociedade local, dominada por criadores de gado que também exploravam o garimpo e por alguns comerciantes. Uma população pouco numerosa se dedicava ao extrativismo vegetal e animal, principalmente no baixo rio Branco, apoiada em pequenas povoações, pontos de ligação com Manaus (BARROS, 1995). Em Boa Vista, então transformada em capital, havia desde o início do século XX uma Prelazia católica, segundo Eggerath (1924), cujos religiosos, homens e mulheres, tratavam da 17 evangelização dos diferentes grupos indígenas. Estes dispunham ainda do atendimento de um posto do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Após a redemocratização em 1946, cada território passou a eleger um deputado federal, estabelecendo-se assim, um canal direto com o poder central que propiciou a participação gradativa das lideranças locais nos embates e na burocracia. Na década de 1950, no entanto, o poder central não se fez muito presente, pois de acordo com Freitas (1997) houve apenas a fundação de algumas colônias agrícolas, mesmo após a criação da Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA), sediada em Manaus. As grandes mudanças só se efetivariam após a implantação do regime militar, quando Roraima adquire importância geopolítica em razão da complicada situação política no Caribe e das reformas administrativas no governo federal. Num primeiro momento, grandes mudanças no perfil político-administrativo e econômico local são gestadas no fim da década de 1960 e início da seguinte. Então, três fatos concretos se interligam: o acirramento da Guerra Fria, a execução de grandes projetos visando a integração e o desenvolvimento e, uma mudança na política aplicada aos territórios (FREITAS, 1997), com nova aplicação dos índices de distribuição das verbas entre as unidades da Federação. Com essa alteração, os territórios passaram a receber não só repasses como se fossem estados federados, mas também a merecer atenção especial do governo central para se constituírem em futuros estados2. O cenário político internacional e a ideologia do governo brasileiro de então levaram Roraima, situada no extremo norte, uma cunha encravada em dois países com problemas de guerrilha e instabilidade política, a participar de uma ação geopolítica, ainda antes do movimento de integração e desenvolvimento nacionais. Em 1967, como posto por Silva Jr. (1994, p. 283-284), um batalhão militar assume e dá continuação acelerada à abertura da rodovia Manaus-Boa Vista-Venezuela, a BR 174, além da formação de uma infra-estrutura física e administrativa, sediada quase toda em Boa Vista. Assim, embora só em 1970 haja maior visibilidade da ação do governo com relação à Amazônia, quando se inicia a construção da rodovia Transamazônica e se institui o Programa de Integração Nacional (PIN), Roraima já tinha iniciado sua participação forçada nos acontecimentos políticos nacionais. Melhor sincronia haveria a partir da metade da década de 1970, tempo do II Plano Nacional de Desenvolvimento e do Programa de Pólos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia 2 A transformação dos territórios em futuros estados, após a promoção de seu desenvolvimento econômico é objetivo explícito em artigo do Decreto 411/69 (Brasil, Decreto, 1969). 18 (POLAMAZÔNIA), quando são anunciadas descobertas de minérios e quando ocorrem o início da migração espontânea e a colonização junto aos eixos das rodovias BR 174 e BR 210. A primeira mais estratégica e a segunda oficialmente de integração, ambas marcariam o espaço e a vida roraimenses daí em diante. Os anos de 1970 representariam um tempo de grandes mudanças no espaço roraimense. A capital, antes uma típica cidade amazônica na beira de rio, recebeu um traçado moderno, circular, com a construção de dezenas de repartições e centenas de residências funcionais. As vilas de Normandia e Bonfim, na fronteira com a Guiana, e Caracaraí, porto fluvial do rio Branco, tiveram, segundo Barros (1995), um novo traçado urbano. Esta última cidade até então era apenas o lugar de embarque de gado para Manaus e se transformou no ponto de intersecção entre as duas rodovias federais, com instalações portuárias modernas. Como símbolo da importância geopolítica foi construída em Boa Vista uma ponte sobre o rio Branco, na rodovia que demanda à fronteira guianense. A chegada do progresso e de uma nova ordem por vezes causou problemas junto às lideranças locais. Se alguns filhos da terra foram agraciados com bolsas de estudos para sua formação técnica em Manaus e principalmente em Belém, muitos dos antigos proprietários tiveram desqualificados os títulos de suas glebas (SANTILLI, 2001) e foram combatidos, segundo Freitas (1993), pelo governador que tentou ali implantar o II PND e o POLAMAZÔNIA. Outro fenômeno desse tempo na Amazônia, a migração, não foi sempre bem recebida seja por autoridades ou lideranças locais, até que seu lugar fosse garantido no sistema político que foi se implantando. De 1979 em diante, ocorreram grandes crises de abrangência internacional ocasionando no campo da política o enfraquecimento e depois, já na década seguinte, o fim do regime militar e a redemocratização brasileira (BECKER, EGLER, 1994; COSTA, 1992). Enquanto o governo central se enfraquecia, as forças regionais eram paulatinamente fortalecidas, inclusive com uma reforma eleitoral que beneficiou o Norte, o Nordeste e os territórios. A abertura forçada permitiu ainda que outras forças, de base mais popular, passassem a se organizar e a exigir direitos até então negados. Na economia, além da alta mundial dos juros e do preço do petróleo, haveria a explosão no preço internacional do ouro, o que propiciou o avanço do garimpo na Amazônia, beneficiado pela disponibilidade de abundante mão-de-obra oriunda do campo. 19 Em 1987, foi instalada a Assembléia Nacional Constituinte, havendo antes e durante a mesma, movimentos sociais expressivos, inclusive na Amazônia. Foi também o tempo de organização em todo o Brasil de grupos de interesse e de pressão, como o dos ruralistas e o dos empresários, causando um retrocesso na legislação fundiária, sem que houvesse perda dos incentivos antes instituídos. Outras forças, no entanto, conseguiram avançar, como os ambientalistas e grupos defensores das culturas humanas imemoriais. Isso garantiu que constassem na Constituição de 1988 tanto a defesa do meio ambiente pelo Estado como os direitos dos índios e de outras populações tradicionais às suas terras imemoriais. Assim, definiu-se um controle, por vezes mais formal que real, mas sempre presente, sobre a ação de um desenvolvimento predatório, contrariando tradições e políticas arraigadas, tais como a da infinitude de recursos e o direito do livre acesso a estes. A partir daí, os agentes do Estado, aplicadores da legislação, passaram a ser alvo de críticas de agentes econômicos, principalmente locais, adeptos da exploração imediatista dos recursos naturais. Onde os interesses foram e são mais fortemente contrariados como em Roraima, a questão passou para o campo da política, tomando ares de luta por direitos ligados à soberania, além de incorporarem esforços das autoridades estaduais para reverter a situação. A Constituição vigente (BRASIL, Constituição..., 1988, art. 14 das Disposições Transitórias) transformou o território em estado, mas a dependência de recursos federais impede desde então que a ação do governo central deixe de ter importância determinante. Em razão disso, a década de 1990 foi de embates e tentativas de consolidação econômica. Em 2000, encerraram-se as últimas obras estruturantes: a ligação asfáltica entre Manaus e Caracas e a chegada da rede de energia elétrica em Roraima produzida na Venezuela. Estas realizações representam, entre outras coisas, em nível nacional, uma mudança na perspectiva política no sentido da superação de desconfianças dos países vizinhos nascidas quando do projeto de desenvolvimento da Amazônia setentrional pelo governo brasileiro. Em termos locais, no entanto, essas duas obras não têm, a curto prazo, como mudar uma realidade: a da dependência quase total de recursos federais para manter a máquina administrativa roraimense. O novo estado teve sua instalação em 1990, mas nas primeiras eleições, saem vitoriosos, na grande maioria, políticos representantes de grupos de interesse diferenciados, mas praticamente todos contrários aos limites impostos pela Constituição à exploração dos 20 recursos naturais e à demarcação das terras indígenas. Passada uma década, Roraima não conseguiu formar uma base de arrecadação que transformasse sua autonomia formal em real (SANTOS, N. P. D. 2002-2001, n. c.). O governo federal, por sua vez, graças a uma Constituição que fortaleceu o legislativo, depende de apoio parlamentar mais disponível nos pequenos estados, sempre que necessita aprovar suas ações. Esses dois fatos, que conduzem o poder local à oposição e ao mesmo tempo à dependência, levam ao desenvolvimento de uma relação de ambigüidade política, onde pontifica tanto o choque frontal como a colaboração. Em termos teóricos, isso pode ser explorado, primeiramente, como um dos problemas da federação, segundo Dallari (1986), onde dois níveis de Estados competem pelo direito de dispor do direito de legislar sobre seu espaço. Em segundo lugar, há o problema irresolvido da não absorção pelo Estado na sua estruturação, dos grupos organizados, mais comumente identificados como de interesse, ou, quando sua ação se torna mais reconhecida, como de pressão, um fenômeno já levantado por pensadores como Durkheim (1978) e Weber (1999). Com esse trabalho pretende-se explicar como as políticas públicas, principalmente no período militar, transformaram inteiramente o universo econômico, social e político de Roraima, no período 1970 a 2000. O objetivo da pesquisa é contribuir com os estudos que o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) e a Universidade Federal do Pará realizam sobre a Amazônia, dentro do Programa de Doutorado do Trópico Úmido, a exemplo de Mathis (1993), Rodrigues (1996) e Simonian (2001). O interesse por esse estado se explica por Roraima ter um processo histórico-evolutivo diferenciado dos demais estados amazônicos. Exemplo disso é o fato de que ali está presente, como em outras partes, a luta pela terra entre índios e fazendeiros ou grupos econômicos, mas não a travada entre camponeses com fazendeiros e madeireiros, embora haja estreito contato entre estes agentes. O processo intervencionista/desenvolvimentista não se completou no Brasil, por causa da crise e depois o fim do regime militar e a redemocratização. Evidentemente, houve alguma continuidade, como a permanência dos programas e órgãos de desenvolvimento regional. Em Roraima, restaram as rodovias, as malhas urbanas, os resultados de pesquisas minerais e nas várzeas, além da continuidade da política de incentivos e de crédito. Restou, ainda, uma situação política de conflito, onde os agentes das diferentes categorias buscam se organizar, enquanto as lideranças mais fortes reordenam suas estratégias de dominação, dentro e fora do novo estado federativo, por vezes em confronto com o governo central. 21 A abordagem teórica refletiu uma necessária e breve explicação da evolução do Estado moderno e dos papéis que este foi assumindo com as mudanças no cenário mundial. Isso tornou obrigatório discutir brevemente algumas matrizes de seu nascimento, como o pessimismo autoritário de Hobbes e o otimismo liberal de Locke. A história do Estado moderno mostra que não há uma fronteira definitiva entre essas duas matrizes: a absolutista e a liberal. Exemplar nesse sentido é a alegada necessidade da intervenção por vezes violenta, pelo organismo que em tese é fruto da vontade social. Ontem, como hoje, essa é uma questão aberta e está presente em estudos em que o Estado define o social e, por meio do planejamento, o econômico. Essa pretensa legitimidade do uso da força e da racionalidade pelo Estado exigiu a leitura de Weber e, um seu contraponto, de Engels. Em se tratando de um estudo sobre um espaço físico transformado, abordou-se a questão da representação, associada ao problema centralização x descentralização. Traduzidas por alguns autores, como Dallari (1986), como o grande problema das federações, herdadas do modelo político estadunidense, ou por outros, como Schwrtzman (1982) e Velho (1976), na perspectiva do autoritarismo x democracia. Na visão do primeiro, a dinâmica dos governos leva a rompimentos de barreiras, estabelecidas na ordem política legal brasileira, estruturada em três níveis de governos. Essa dinâmica tem levado à busca de melhor eficiência e envolvido grupos e partidos, além de associações diversas, representando interesses divergentes, como os regionais. Em Roraima, isso corresponde mais fortemente a um momento posterior à intervenção do Estado, década de 1980 em diante, o que exigiu um exame das teorias dos grupos, comentada adiante. Sobre a questão da geopolítica, foi inevitável construir um histórico das teorias e estratégias, acompanhando os diferentes momentos em que houve sua aplicação, associada aos projetos de desenvolvimento. O Estado Nacional brasileiro inicialmente desconheceu a Amazônia, cuidando mais de guarnecer a entrada do rio Amazonas, fechando-o até 1864 à navegação internacional. O ciclo da borracha tirou a região do desconhecimento, mas só se pode falar em intervenção mais permanente após 1940, quando do Estado Novo (1937-1945). Este deixou uma herança que permeou o período da redemocratização (1946-1964), graças à dinâmica referida por Dallari (1986) e teve prosseguimento após 1964, atuando numa escala que atingiu praticamente todos os setores da vida social, política e econômica brasileira. Diferente de outros trabalhos, aqui foi identificado que a concepção geopolítica adotada está 22 mais próxima à elaborada por Carlos Meira Mattos, do que a desenvolvida pelo general Golbery do Couto e Silva. O pensamento geopolítico brasileiro na década de 1970 não era, propriamente, o das décadas de 1950 e 1960. Embora houvesse a base comum da justificativa do avanço para o interior e do desenvolvimento patrocinado pelo Estado, além da aceitação da idéia de que o Brasil comungava entre as nações ocidentais, alinhando-se quase automaticamente à liderança dos Estados Unidos da América, ocorreram mudanças significativas desde a metade dos anos de 1970. Isso se deve ao fato das alterações no cenário mundial e da oportunidade do país vir a se tornar uma potência regional até o ano 2000, além da aceitação do fato de que os países vizinhos poderiam, através do Tratado ou Pacto Amazônico, assinado em 1978, participar de um desenvolvimento integrado. Neste, um papel especial era reservado para a Venezuela, limítrofe com Roraima. O Estado que tem um plano geopolítico é sobretudo um interventor, de natureza autoritária, cujo papel pode ser explicado, em parte, pelas teorias weberianas. Foi essa a principal linha interpretativa seguida neste estudo, por melhor satisfazer as indagações que o suscitaram. Para Weber (1999, p. 525), o Estado é uma corporação política que se mantém por meio da dominação institucional, inclusive usando o monopólio da violência. Esse autor considera tal associação como histórica, que faz uso também da coação física para se manter. Aqui, essa força é subentendida como o poder executivo, o qual passou a comandar o Estado moderno, fazendo uso não só da força, mas de uma forte burocracia, como assevera Weber (1999) e, considerada por Bonavides (1999, p. 442), como fator de isolamento do povo do processo decisório. Além do “povo”, há um componente organizado, por vezes politicamente, não absorvido pelo Estado, formado por grupos sociais, como tratado por Durkheim (1978) e Weber (2000). Esses grupos embora não compondo oficialmente o Estado, atuam neste e na sociedade e têm sido objeto de estudos na política sob duas perspectivas: a unitarista e a pluralista. A primeira, é incorporada pelos defensores da teoria das elites, que implicitamente acaba defendendo uma não democracia, como se observa em Mosca e Pareto. Mais funcional, a visão pluralista de Bobbio (1982), Bonavides (1999) e Pasquino (1982), permite entender melhor os diferentes grupos de interesse e de pressão identificados nesse estudo. Leva-se em conta, porém, que não se trata de um transporte automático de categorias, mas de fazer uso adequado de instrumentos teóricos com maior potencial 23 explicativo. Assim, foi preterida aqui a teoria das elites, por ser menos produtiva na explicação dos conflitos que ocorrem no setor intermediário entre o cidadão e o Estado. Também foi necessário distinguir grupos e partidos, apoiando-se em Oppo (1982), Rodrigues (1982), e em Dowbor (1998). Foi considerado ainda o fato de que os grupos mais poderosos sempre pressionam governos e, conforme Bonavides (1999), podem passar de exteriores ao poder, ao próprio poder, não só explorando este, mas constituindo-se no próprio. Roraima enquadra-se neste entendimento, pois o governo do estado, fortemente ligado a grupos, congrega uma luta contra a demarcação das terras indígenas e o controle ambiental. A metodologia, numa primeira fase, constou do estudo de obras filosóficas e políticas que tratam do domínio do método nas políticas públicas e relações de poder e, da formação de uma base de dados, a partir de uma revisão bibliográfica e trabalhos de campo. Houve a necessidade de estudar a filosofia política, antes da ciência política, levando-se em conta que o fazer científico é antecedido da concepção não só do seu objeto, como afirma Sartori (1981, p. 186), mas de um problema a ser resolvido ou compreendido, numa fase conhecida como de definição operacional. A investigação e a exposição, ou análise, em termos mais atuais, exigem a adoção de teoria, mas, como explica Sartori (1981), a ciência não é só teoria e esta tem que dirigir a uma investigação ou pesquisa, em que há necessidade de aquisição de dados. Ainda segundo Sartori (1981), a ciência é também aplicação, tradução da teoria na prática, mas trata-se aí de um início, não de um esgotamento, pois é um projetamento destinado a intervir na realidade, embora com significado diferente do das ciências naturais ou exatas. Esse trabalho científico exige um acesso e um domínio das fontes da forma mais direta possível ( ECO, 1989, p. 37) para facilitar seu controle. A orientação da presente pesquisa foi da professora e pesquisadora Ligia Simonian, antropóloga do NAEA/UFPA. Sua experiência no trato das realidades amazônicas foi mais que inspiradora, principalmente nos problemas vividos pelas comunidades indígenas e caboclas amazônicas. A ela devem-se as informações, constituídas em diversas obras, sobre organizações indígenas roraimenses e seu papel político. Essa orientação facilitou a compreensão do papel dos grupos sociais já comentados, lançando luz sobre os embates na questão da posse da terra e sua tematização. O levantamento da base de dados heurísticos constou da revisão da literatura nacional e estrangeira sobre as temáticas amazônicas, desde política e atuação do Estado, 24 sobre a história, a política, a economia, cultura e transformações estruturais da região e de Roraima. Esse material foi haurido após o cumprimento dos créditos do curso de Doutorado do PDTU/NAEA, entre 2000 e 2003, no IBGE de Roraima e em arquivos e bibliotecas de Belém, como a da Primeira Comissão Brasileira de Limites, na biblioteca do NAEA e a Central da UFPA. Em Boa Vista, a Biblioteca Pública do Estado dispõe de importante documentação do tempo do território e embora haja algumas lacunas, sua leitura foi fundamental. Os trabalhos de campo constaram de levantamentos de dados em Roraima, em 2001, 2002 e 2003, incluindo entrevistas com ex-garimpeiro e artesão do ouro, comerciante de minérios, colonos e ex-colonos de assentamentos, lideranças políticas, representante da Advocacia Geral da União, empresários, comerciantes, criador, liderança indígena, intelectual, técnico do Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), representantes dos grupos de pressão, como o presidente da Federação Estadual da Agricultura e uma líder dos arrozeiros. Atenção especial foi dada à literatura que resultou em ações estruturantes da administração federal e territorial, como Cavalcanti (1949), o Decreto 411/69, o Programa de Ação do II PND para Roraima (1975-1979). O primeiro foi o estudo pioneiro sobre o então território do Rio Branco, que se transformou no guia das ações administrativas até 1964, antecipando as ações que se seguiram. O segundo determinou o papel dos governadores militares dos territórios, que deviam ser preparados para se transformar em estados federativos. O terceiro contém desde uma análise geral da situação local até as medidas locais preconizadas no II PND e POLAMAZÔNIA, isto é, o mapa do desenvolvimento pensado quando do projeto Brasil potência, período que deixou as marcas mais profundas no espaço e na sociedade roraimenses. Uma fonte muito útil foi a dos jornais, principalmente os locais. Isto se deve à necessidade de identificar-se não apenas alguns fatos ocorridos, mas, principalmente, os discursos políticos, das autoridades e dos grupos que se formaram. O jornal regular foi introduzido pelo governo do território na década de 1970, numa época em que a rádio e a única repetidora de televisão, os transportes e a maioria das moradias eram estatais. Foi com a leitura de jornais locais que se descobriu, por exemplo, como e porque o número das propriedades rurais diminuiu drasticamente entre o início e o fim dos anos de 1970, pela não aceitação de antigos títulos pelo governo militar local e pelo INCRA. 25 O fato causou o primeiro grande choque entre lideranças locais e o governo central, e é uma das fontes de discórdia na questão fundiária que se seguiu. Mas havia uma vida local, refletida na literatura de viajantes e pesquisadores, principalmente estrangeiros, como Barros (1995), Furley (1994), Hemming (1990), Macmillan (1997), Rivière (1972), que permitem formar imagens da sociedade roraimense e sua evolução, permitindo ao pesquisador um controle dos dados e à qualificação de outras fontes. Ademais, a convivência do pesquisador por uma década, com a realidade local, permite qualificar as fontes de modo a não se envolver acriticamente por esta ou aquela. A redemocratização e a promulgação da nova Constituição, em 1988, representam uma nova vida para Roraima, transformada em estado federativo. Questões como a fundiária, associada à das terras indígenas, institucionalizam-se, assumindo, por vezes, choques dramáticos. Grupos de interesse transformam-se em grupos de pressão radicais, estabelecendo-se um impasse, já que não há uma autoridade mediadora, um Estado que defina as questões, pois desapareceu o Estado weberiano que poderia usar da força para sobrepor-se aos grupos em luta. A luta enfrentada por índios e seus defensores pela demarcação de suas terras, conforme preconiza a Constituição, é a parte mais visível do cenário social roraimense. Há milhares de lotes rurais abandonados, enquanto colonos buscam novas glebas em outros pontos e o INCRA e o Instituto de Terras do estado não se entendem quanto à política do setor. O resultado disso, é que a população dos municípios originados da colonização, cada vez mais se torna urbana, apesar de o número de migrantes ser contínuo. O estado, por outro lado, não consegue arrecadar mais que um percentual da receita e os escândalos na administração são uma rotina. Enquanto isso, sobram debates e choques, inclusive com perdas de vidas. Basicamente, o corpo do trabalho está organizado em quatro partes. A primeira trata essencialmente das teorias políticas e sobre o Estado, a sociedade e as diferentes formas de representação política. Nesta, são analisados as origens e os papéis dos partidos, das elites e dos grupos de interesse e de pressão. Discute-se também sobre as mudanças do papel do Estado, sua racionalidade e o planejamento de governo, inclusive no Brasil, antes e pós-1964. Destacam-se, ainda, as questões geopolíticas que influenciaram a Guerra Fria e seus desdobramentos. 26 A segunda parte analisa o papel do Estado nacional brasileiro na Amazônia, suas razões, processos e resultados, no Estado Novo, período democrático de 1946-1964 e sob o regime militar. A análise abrange o pensamento geopolítico da Escola Superior de Guerra, matriz da ideologia da segurança associada ao desenvolvimento. Ao final dessa parte, examina-se o crescimento brasileiro na década de 1970 e as reações dos países vizinhos, notadamente Argentina e os pan-amazônicos, como a Venezuela. A terceira parte trata da militarização da fronteira, do progresso e dos conflitos, no período 1969-1990. Nesse tempo, se destacam cinco governadores territoriais que marcaram definitivamente a história local. O primeiro, como estrategista militar e construtor que depois adotaria o estado para morar, tornando-se político de carreira. O segundo, como implantador de grandes projetos ao tempo do II PND, que ficaram em grande parte inacabados. O terceiro, como líder populista, formador do primeiro grupo político. O quarto, por ser o primeiro roraimense escolhido governador e o quinto, por ser o representante do empresariado, líder atual de um dos grupos dominantes na política. Nessa parte, são discutidos os problemas do novo estado e, principalmente, as questões que envolvem o grande conflito: o da demarcação das terras dos índios. A quarta e última parte considera a economia e as relações de poder. Sobre essa primeira problemática, analisam-se as relações entre a economia e o ambiente, onde a persistência do discurso do desenvolvimento pretendido tornou-o necessariamente antiindígena e antiambientalista. A colonização e o garimpo são tratados como as mais representativas e estruturantes economias da base política atual, sendo que a primeira deu origem à maioria dos municípios, a base político-estrutural do estado federativo e ponto central do processo de legitimação representativa. O garimpo, atualmente de importância econômica muito reduzida, foi o instrumento político de incorporação de espaço junto a terras em conflito, além de ser uma das idéias-força da necessidade de desenvolver o estado. As estruturas e processos de poder, a segunda problemática, são tratados em partes identificadas como complementares: o município, base de poder local, a ideologia da soberania nacional, exemplificada pelo Projeto Calha Norte (PCN) na sua versão ideológica local. Ao concluir o trabalho, apresenta-se uma síntese dos impasses dos anos de 1990-2000, principalmente a questão crucial na passagem do século: o das terras indígenas. 27 2 POLÍTICA, ESTADO E SOCIEDADE A discussão sobre políticas públicas, economia e poder em Roraima entre 1970 e 2000, requer tratamento teórico acerca das racionalidades que sustentam o surgimento e o desenvolvimento do Estado Moderno, processos que precederam o início da exploração desse estudo pelos europeus. Nesta direção, as grandes mudanças por que passou a humanidade, após a Idade Média, têm dois componentes estruturantes básicos: o surgimento do capitalismo e o advento do Estado Moderno. Há uma forte associação dos dois fenômenos, mas ocuparse-á aqui do segundo, de suas origens, sua natureza, componentes, história dos diferentes tipos de Estado e de seus papéis. Estes últimos se manifestam politicamente e são exercidos por pessoas supostamente autorizadas para tal, pertencentes à classe ou grupos que se sobrepõem aos demais. Essa hierarquia está historicamente sujeita a mudanças oriundas de transformações econômico-sociais, lentas ou abruptas, cruentas ou pacíficas, abrangentes ou pontuais, com avanços maiores ou menores. A marcha da história, a partir do desmoronamento do mundo medieval e a constituição do mundo moderno, confunde-se com a história do Estado e da relação entre seus componentes. 2. 1 A POLÍTICA E A ORIGEM DO ESTADO A idéia de política remonta a Aristóteles, que a considerava como uma prática humana natural e necessária. Para o filósofo grego, o homem é um “animal político”, o que compreende a concepção grega de vida, onde o ser humano deve ligar-se obrigatoriamente a uma polis, a unidade constitutiva não divisível e a dimensão suprema da existência (SARTORI, 1981, p. 157). Para Aristóteles (Cap. I. Livro 1), o homem “não político” era um deficiente, algo até menos que um homem, já que não tinha uma vida associada, coletiva. Em sua obra A política, Aristóteles (Cap. I, Livro 1) afirma que a natureza faz com que todos os homens se associem, pois o individuo por si só não é suficiente, sendo que, aquele que não participa do Estado ou é um bruto ou uma divindade. A família e a aldeia seriam as etapas anteriores dessa caminhada que culminaria no Estado. Este seria, pois, o resultado da reunião de famílias e sinônimo de sociedade. Outra afirmação do filosofo (Cap. I. Livro 1): o Estado precede, na ordem natural, à família e ao indivíduo, pois “o todo deve ser 28 colocado antes da parte”. Durante séculos, a teoria política aristotélica dominou o pensamento europeu, até que, com o Renascimento e posteriormente com o Iluminismo, outros pensadores construíssem novas explicações para o surgimento do Estado e outras questões de ordem política. Aristóteles, no entanto, jamais foi inteiramente deixado de lado. De acordo com Sartori (1981, p. 162), no decorrer do processo histórico ocidental, desde a Antiguidade até a Idade Média, a concepção aristotélica se diluiu, transformando-se em um corpo de idéias ligadas ao direito. Recebeu a influência da teologia, tendo que se ajustar às concepções cristãs e depois reflete a ruptura conhecida como Reforma religiosa. Com o humanismo e o Renascimento, ambos ligados ao florescimento do comércio, principalmente o das cidades italianas desde o século XIII (DAHL, 2001; SARTORI, 1981), a política foi redescoberta. Conforme assinala Dahl (2001, p. 25), em cidades como Veneza e Florença, os governos, inicialmente exercidos apenas por membros de famílias nobres, teve que ser dividido com os novos ricos, mercadores, banqueiros e artesãos, mais numerosos e em ascensão econômica. Essa experiência, nada tranqüila, onde o poder oscilava entre oligarquias e outros grupos, por vezes com interferências externas, foi no geral, mais democrática e, de acordo com Putnam (2000), deixou raízes ainda identificáveis no presente. No início dos tempos modernos, o processo histórico-político das cidades-estados, dos Estados Nacionais contemporâneos em expansão,3 e ainda, da relação entre os dois modelos, serviu como fonte para uma área autônoma do conhecimento – a política. Nos séculos XVI e XVII, de acordo com Sartori (1981, p. 162-164), renasce a política, com Nicolau Maquiavel (1469-1527) e Thomas Hobbes (1588-1679). Maquiavel, natural de Florença, escreveu um dos mais famosos livros sobre política: O Príncipe (1515), além de outros textos. Foi protagonista de fatos políticos que inspiraram sua obra, eivada de prescrições para bem governar, principalmente nos capítulos V, X; e XIV a XXV de O príncipe. Hobbes, autor de Leviatã (1651), inspirou-se na concepção mecanicista do universo (SARTORI, 1981, p. 164), para propor uma ordem na sociedade humana. Ambos escreviam sobre uma política que se sobrepunha à religião e à moral, com certo pessimismo sobre o ser humano e um enaltecimento do papel do Estado. Este último tema foi também tratado pelo jurista francês Jean Bodin (1530-1596). No final do século XVI, quando o quadro político europeu apresentava crises entre nações rivais e problemas internos ameaçavam a própria existência de algumas, como a 3 Maquiavel foi funcionário do governo de Veneza e contemporâneo das invasões da Itália por Carlos VIII da França (1494) e pelo imperador da Alemanha Carlos V (1527) (CÉSAR, 1982, p. 8). 29 França, Jean Bodin, em Os seis livros a respeito da República, procurou construir uma teoria geral do Estado que ajudasse seu país a superar as crises políticas de seu tempo (DOWNS, 1969, p. 31). Bodin defendeu nessa obra, a soberania do Estado com autoridade centralizada no poder real, sobrepondo-se esse ao parlamento, às poderosas corporações de então e ao papado (SANDRONI, 1999, p. 58). O Estado foi definido por Bodin (apud BOBBIO, 1979, p. 41-42) como: “[...] um governo justo que se exerce com o poder soberano sobre diversas famílias e sobretudo o que elas têm em comum entre si [...] a família é a verdadeira origem do Estado”. Bodin é precursor da tese do contínuo progresso da humanidade, contrariamente à maioria de seus contemporâneos, admiradores do período clássico, suposto apogeu da humanidade, para quem sua época representava um tempo de perigo e decadência ( DOWNS, 1969, p. 31-32). A visão evolucionista de Bodin influenciou pensadores como Condorcet e outros iluministas. Até então, havia quem defendesse inclusive a origem divina do Estado, mas Bodin mostrou que, numa sociedade formada por famílias, uma pessoa ou grupo de pessoas, conquista e estabelece, pela força, o domínio político sobre seus vizinhos. Até então, não se distinguia governo e Estado, sendo este último, para Bodin, governado por alguém que dispunha da Soberania, “[...] o mais alto poder de comando do Estado [...]”, expressão cunhada pelo pensador (DOWNS, 1969, p. 32). A Bodin ainda se deve a idéia, de acordo com Downs (1969, p. 32), de que povos de países com clima frio tenderiam a ser mais evoluídos que os de climas mais quentes e úmidos e da distinção de governo e Estado. Política e Estado são, pois, considerados inseparáveis. Pensadores diversos, em diferentes épocas, tentaram explicar as origens do Estado, como Aristóteles, Jean Bodin, Thomas Hobbes e, mais recentemente, autores de áreas que não propriamente a política, como Carneiro (1970). Com o avanço dos estudos, dos autores ligados ao Iluminismo, a questão ampliou-se com as definições mais claras dos papéis atribuídos ou exercidos pela Igreja e pelos organismos políticos. Na antiga Grécia, Aristóteles (1966) explica a origem do Estado enquanto polis ou cidade grega, onde um grupo de cidadãos, reunidos pela necessidade de defesa e realização de suas vontades, gradativamente passaria a uma organização mais completa, ou perfeita, submetendo-se a um governo, num processo natural. Essa necessidade de união para a defesa é explorada por Hobbes (Leviatã, Cap. 17), argumentando que uma das funções do Estado é exatamente promover a segurança pessoal; com o crescimento de estados 30 vizinhos, esse pequeno Estado democrático, identificado com uma cidade, não terá chance diante de ataques externos. Para Hobbes, em Leviatã, ou “a matéria, a forma e o poder de um Estado eclesiástico e civil”, publicada em 1651, o Estado originar-se-ia a partir da necessidade das pessoas superarem o “estado da natureza” em que viviam, em permanente situação de conflitos, de guerra de todos contra todos, onde ponteava uma infinidade de vontades individuais, sem um poder superior e unificador (Leviatã, Cap. 13). Nessa situação, onde “o homem é o lobo do homem” predominaria o medo, a fraude, as paixões violentas (Leviatã, Cap. 13). A solução, seria a criação do Leviatã, um Estado ao qual os homens confiariam todo o seu poder e força, constituído por um homem ou uma assembléia, por meio de um contrato de proteção social mútua. Esse contrato obedeceria a duas leis naturais, pois: É um preceito ou regra geral da razão, que todo homem deve se esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de conseguí-la. Se não conseguir, pode procurar e usar toda a ajuda e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza, que é procurar a paz, e seguí-la. A segunda resume o direito natural, isto é, por todos os meios possíveis, cuidar da própria defesa (HOBBES, Leviatã, Cap. 14). O Estado hobbesiano englobaria numa única “vontade” as vontades de todos os homens e teria o papel de preservar a ordem e proteger a vida e a propriedade ( DOWNS, 1969; RIBEIRO 2002). No caso de vontades conflitantes, os súditos deveriam obedecer sempre ao soberano civil, não tendo o direito à desobediência ou à revolta. Ainda segundo Hobbes (Leviatã, Cap. 18), o poder do soberano deveria ser indivisível e ficar acima de outras instituições, mas tinha o compromisso de proporcionar um bom governo, sendo esse poder menos prejudicial que sua ausência. O pensamento desse autor não constitui propriamente uma visão históricoevolutiva, onde homens selvagens, através da associação e constituição de um Estado, passariam para estágios evolutivos superiores. O homem do estado de natureza hobbesiano, não é também um incivilizado (RIBEIRO, 2002, p. 54-55). Do mesmo modo, a idéia do homem em conflito com seus semelhantes não foi aceita pelos filósofos e estudiosos da política por muito tempo, já que predominou por séculos a idéia aristotélica do homem naturalmente sociável, o “animal político”. As duas teorias alimentariam polêmicas por muito tempo e as duas imagens, a aristotélica e a hobbesiana ainda dominam parte das preocupações 31 do pensamento político na atualidade, principalmente quando são tratados temas como igualdade, cidadania e limites do poder do Estado. A aceitação do processo formativo do Estado, a partir de um conjunto de pessoas vivendo no estado de natureza, foi incorporado aos estudos da ciência política. Pensadores como Locke, adotaram essa tese conhecida como a do contrato social, de forma diferente de Hobbes. John Locke ([1690] 1978, p. 71), filósofo e economista inglês, no Segundo Tratado sobre o governo civil, considerou o estado de natureza como uma época de paz e felicidade, onde todos viveriam em liberdade, que não se confunde com o estado de guerra. Sem perder esta liberdade (LOCKE, [1690] 1978, p. 71) todo homem pode concordar em formar um corpo político sob um governo. Ao viver na mesma época turbulenta que seu conterrâneo Hobbes, no final do século XVII,4 Locke propõe no Segundo Tratado ([1690] 1978, p. 40), um Estado em que o soberano recebe o poder por concessão da sociedade e não da submissão desta. Segundo Bobbio (1979), os dois pensadores tratam de um Estado Nacional, erigido sobre as ruínas do feudalismo. Para Bobbio (1979), o pensamento de Hobbes, disseminado na literatura política, é pessimista, pois sendo o ”homem o lobo do homem” é necessário um governo forte, estabelecido por um pacto para evitar contendas e disciplinar a sociedade. Contrariamente, Locke ([1690], 1978, p. 112) é otimista, elogia o homem do estado de natureza, o qual, dono natural de sua liberdade e vivendo em harmonia com os demais, estabelece uma autoridade por meio de um “contrato social” onde o detentor do poder pode perder sua posição, por “usurpação”. Outra diferença fundamental entre Hobbes e Locke, era que para este último, o homem do estado de natureza já desfrutava da propriedade com o significado genérico que englobava a vida, a liberdade e os bens como direitos naturais (MELLO, 2002, p. 85). Para Hobbes, a propriedade inexiste no estado de natureza e foi instituída pelo soberano-Leviatã ([1651] 2003, p. 183-189); para Locke essa instituição se dava pelo trabalho, sendo que a terra seria dada por Deus em comum a todos e se transformava em propriedade por meio das mãos humanas, não por concessão da autoridade. Locke avança mais nas prescrições, sugerindo a divisão de poderes do governo em executivo, legislativo e federativo e desenvolver a idéia de poder. 4 Hobbes e Locke foram participantes de acontecimentos políticos transformadores da política inglesa no século XVII. 32 Na literatura política, é praticamente consenso que Hobbes represente o pensamento absolutista e Locke o liberal. A influência de Locke, para Dallari (1986), é perceptível nas obras políticas de iluministas, como Rousseau e Montesquieu e, nos escritos conhecidos como O Federalista (1787), de Madison, Jay e Hamilton, fonte maior do moderno federalismo. Ao dar primazia ao poder legislativo (LOCKE, [1690] 1978, p. 86-90) o “poder supremo” já que este representava a maioria dos homens dotados de razão, estabeleceu um princípio adotado hoje pela maioria dos países democráticos. Para Donws (1969, p. 69-71) e Mello, (2002, p. 87-88), o direito de resistência a maus governos, defendido por Locke, foi consagrado pelos líderes da guerra pela independência dos EUA. Sua divisão dos poderes do governo, aperfeiçoada por Montesquieu, estabeleceu-se como norma nas nações modernas. Outro princípio filosófico lockeano, o da tolerância religiosa, nascida da sua defesa da necessária separação de funções entre sociedade e Estado (DONWS, 1969, p. 73), prenunciou a hoje consagrada separação da Igreja e Estado. O pioneirismo de Locke, ao contrário da tese de Aristóteles, incluiu ainda o princípio de que o indivíduo precede ao Estado,5 tema que seria retomado por iluministas no século XVIII, como Jean-Jacques Rousseau. Este defendeu em O contrato social (ROUSSEAU, [1762] 1965, p. 73-75), a democracia direta e a idéia de que o governo deveria limitar ao mínimo sua ingerência na liberdade do indivíduo-cidadão. Argumento semelhante, também baseado em Locke, foi utilizado por Adam Smith ([1776]1986) em Uma investigação sobre a natureza e causas da riqueza das nações, ao apregoar a liberdade individual e o distanciamento do Estado no campo da economia. Como posto por Bobbio (1991, p. 52) o Estado de natureza para Rousseau é histórico, além de compor uma idéia reguladora, há ainda discussão se esse Estado, em Rousseau, seria de guerra ou de paz. De acordo com Lafer (1991), as teorias contratualistas, ligadas à concepção individualista de sociedade e da história, respondiam, dentro da perspectiva burguesa, a duas exigências de seu tempo, os tumultuados séculos XVII e XVIII. A primeira: dar explicação para a origem do Estado diferente da tradicional, que o apresentava como resultado de um processo que se iniciava com a família natural. A segunda: dar uma justificação ao Estado diferente da utilizada pelos soberanos, supostamente incontestáveis em seu poder. Nesse sentido, o contratualismo invertia o processo de legitimação, que iria do indivíduo para o 5 Aristóteles, em Política (Livro 1, Capítulo primeiro), afirma que “na ordem natural, o Estado se antepõe à família e ao próprio indivíduo, visto que o todo deve ser posto antes da parte”. 33 soberano, não o contrário (LAFER, 1991, p. 82-83). O prestígio do pensamento contratualista só seria abalado com o impacto da filosofia hegeliana. No século XIX, o contratualismo perdeu aceitação a partir da crítica do filosofo alemão Hegel (BOBBIO, 1991; LAFER, 1991). Na época de Hegel, contemporâneo da Revolução Francesa, deu-se a revisão na filosofia da história, em que as origens, atribuições e limites do Estado são rediscutidos. Em sua obra Filosofia do Direito, Hegel (§ 258) (apud BRANDÃO, 2001, p. 108), critica os contratualistas, inclusive Rousseau, por desenvolverem mais a idéia de um Estado como deveria ser do que realmente como ele é, pois o conceito que está na base do Estado não é o de contrato, mas o de vontade. Em Filosofia do espírito (§ 535), discorre sobre o Estado, definindo-o como: [...] a substância ética consciente de si (grifo do autor), a reunião do princípio da família e da sociedade civil; a mesma unidade que existe na família como sentimento de amor, é a essência do Estado; a qual, porém, mediante o segundo princípio da vontade que sabe e é ativo por si, recebe também a forma de universalidade sabida. Esta, como as suas determinações e que se desdobram no saber, tem por conteúdo e escopo absoluto a subjetividade que conhece; isto é, quer para si esta racionalidade (HEGEL, apud BRANDÃO, 2001, p. 122). De fato, Hegel foi o primeiro a fixar a expressão “sociedade civil” como algo distinto e separado do “Estado político”, o que era apenas pressentido pelos contratualistas. Outro argumento hegeliano contra os defensores do direito natural e do contrato social seria, segundo e Bobbio, (1991, p. 98-99) e Krader, (1970, p. 36), a contradição entre o fato de a humanidade subordinar-se, primeiramente, à lei da natureza e depois diminuir sua liberdade pelo contrato social. Na sua revisão do processo histórico, Hegel afirma ser o Estado originário de um movimento contrário ao então pensado: do Estado para a sociedade. Esse Estado compreenderia, sua formação interna, o “direito interno dos Estados” ou sua constituição e, como indivíduo particular, com relação a outros estados o ”direito externo”. Porém, ressalta Hegel em Filosofia do espírito (§ 536): “[...] estes dois espíritos particulares são apenas momentos no desenvolvimento da idéia universal do espírito na sua realidade; e esta é a ‘história do mundo´, ou ‘história universal´” (HEGEL, apud BRANDÃO, 2001, p. 122-123). O pensamento de Hegel influenciou pensadores como Karl Max e Friedrich Engels, para os quais o estado de natureza não teria sido superado pelo advento do Estado moderno, dominado pela sociedade burguesa, conforme afirma esse último em Do socialismo 34 utópico ao socialismo científico (ENGELS, [1892]1974). Este Estado moderno não seria o mediador de partes em conflito, ou o “triunfo da Razão sobre a Terra”, como pensou Hegel , mas um instrumento de dominação, sempre despótico, uma ditadura de uma classe sobre outra, como expressa no Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels (1848, Capítulo I): “O poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa”. Engels escreve em A origem da família, da propriedade privada e do Estado: O estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs `a sociedade de fora para dentro; tampouco é ‘a realidade da idéia moral’, nem ‘a realidade da razão’, como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado (ENGELS, 1987, p. 191). As contradições de que fala Engels com certeza contribuíram para levar a conflitos e crises de abrangência mundial nos séculos XIX e XX, como as Grandes Depressões de 1870-1890 e a de 1929 (DOBB, 1987, p. 348-385), além de duas Guerras Mundiais (1914-1918 e a de 19391945). Mas houve em cada caso uma adaptação do Estado moderno, capitalista, inclusive tempo de grande progresso e prosperidade sem precedentes, como os anos de 1920, e colocaram em dúvida as análises de Marx (BORON, 1994, p. 21). A luta de classes, diriam os críticos liberais, teria sido suplantada pela abundância que inundava o Ocidente, mas, segundo Boron (1994, p. 22), esse grande crescimento criou as condições necessárias para absorver as tensões subjacentes ao funcionamento da democracia burguesa graças à ação de um Estado intervencionista, “[...] regulador e estabilizador do ciclo de acumulação e ativo mediador na lutas de classes ‘institucionalizada’ pelo regime de hegemonia”. Digno de nota é o fato de que uma crise não pôde ser absorvida pelos Estados capitalistas: a que redundou na Revolução Russa de 1917 e na criação da União Soviética, na primeira experiência prática das idéias de Marx, Engels e outros pensadores socialistas, como Lênin. 35 No século XX, principalmente na sua primeira metade, os estudos sobre política, origens do Estado e seu papel, dominam diversas correntes de pensamento nem sempre oriundos da área das ciências políticas. Identificam-se lacunas em teorias consagradas e, principalmente, percebe-se que as rápidas transformações sociais e ambientais, por sua abrangência, acabaram se transformando em problemas políticos, apresentando-se alguns destes, com novas roupagens. No início do século, a obra do sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) chamou a atenção para o fato de Locke, Rousseau e outros não terem percebido o papel de grupos intermediários entre o indivíduo e a sociedade quando da formação do Estado. Mais recentemente, autores como Carneiro (1970) apontam para a importância do meio físico quando do processo evolutivo de uma sociedade política, algo até então negligenciado. No entanto, o que tem marcado mais fortemente os estudos sobre a política é o papel do Estado, notadamente nas questões do desenvolvimento (OLIVEIRA, 1982) e da geopolítica. Ambos os temas envolvem outra questão fundamental: a do poder, bem como sua origem, estruturação e as relações necessárias entre o Estado e sociedade. Durkheim em “A divisão do trabalho social”, explica a necessidade humana de formar grupos de união permanente: A vida comum é atraente e ao mesmo tempo coercitiva. Sem dúvida, a coerção é necessária para conduzir o homem a ultrapassar a si mesmo, a acrescentar à sua natureza física uma outra natureza; mas, à medida que aprende a apreciar os encantos desta existência nova, ele constrói a necessidade, e não há nenhuma ordem de atividade onde não os procure apaixonadamente. Eis por que quando indivíduos que por terem interesses comuns se associam, não é somente para defenderem seus interesses, é para se associarem, para não mais se sentirem perdidos em meio a adversários, para terem o prazer de comungar, de não fazerem senão um com muitos, quer dizer, em definitivo, para levarem em conjunto uma mesma vida moral (DURKHEIM, 1978, p. 11). Grupos sociais profissionais, as corporações de ofício teriam se organizado na antiga Grécia e em Roma (DURKHEIM, 1978, p. 13), e adquirido grande força política a partir da Idade Média. Durkheim (1978, p. 14) ressalta que um desses grupos, a corporação de ofício, por muito tempo incorporou pessoas que se confundiam com a primitiva burguesia européia, de papel político incontestável na evolução do Estado Moderno. Carneiro (1970, p. 733-738) critica asperamente as teorias tradicionais sobre a origem do Estado, por desconhecerem o papel do ambiente. O contrato social de Rousseau, 36 classificado por ele como uma das teorias “voluntaristas” por exemplo, é apenas uma “historia curiosa”. Reconhece o papel da coerção na formação política e, baseado em pesquisas arqueológicas, culturais e ambientais feitas na Europa, Américas, Ásia e Egito, argumenta que para surgir o Estado devem estar presentes três condições: uma certa especificidade cultural, fatores demográficos e condições ecológicas adequadas. Por se tratar da origem remota do Estado, não cabe aqui tecer maiores comentários sobre sua teoria, mas sendo o território parte integrante do Estado, de irrefutável importância na sua história, mais adiante retornar-se-á esta questão. 2. 2 ESTADO E SOCIEDADE De acordo com Sartori (1981 p. 158), Estado e sociedade – o político e social, são distinções que só se consolidaram, nos seus significados atuais, no século XIX. Sartori (1981, p. 159) esclarece ainda, que São Tomás de Aquino (1225-1274), filósofo e estudioso medieval, traduziu o “animal político” de Aristóteles, o zoon politikón, por “animal político e social”, enquanto Egidio Romano (circa 1285) (sic) , traduzia por politicon animal et civile. Versões como estas passaram para a literatura ainda na época romana, onde expressões gregas antigas vão se confundindo com termos latinos e nomes de instituições romanas antigas e novas (SARTORI, 1981 p. 159). Exemplo disso é o uso da expressão romana civitas como sinônimo da grega polis. Entretanto, a civitas romana constituiu-se como a: civilis societas, de significação mais elástica e foi transformada na iuris societas, (SARTORI, 1981, p. 159). A primeira expressão seria utilizada por Hegel com o significado de “sociedade civil”, um Estado em sua forma inferior (BOBBIO, 2000, p. 44). Com a civitas (SARTORI, 1981 p. 160) o sentido grego original se alterou, passando o homem a ser um sociale animale, segundo o filósofo romano Sêneca (4 a.C.-65 DC), um ser que vive numa cosmópolis, adaptando-se para viver6. Ainda de acordo com esse autor (SARTORI, 1981 p. 165), a sociedade não é o demos dos antigos gregos ou o populus dos romanos. O demus desaparece com sua democracia, com sua polis, enquanto o populus desaparece com a queda da república romana. 6 Krader (1970, p. 26) esclarece que o habitante da civitas romana era o civis, isto é, o cidadão, o concidadão e por vezes o “companheiro”, como se referiam escritores romanos como Cícero, Terêncio e Ovidio. 37 A literatura medieval, como a romana, não exprimia uma idéia autônoma de sociedade e, acrescentou os “corpos” em que organizava o mundo feudal, o mundo das corporações. Foi Locke, no século XVII, o primeiro a referir-se aos direitos de uma maioria; a ele é atribuído o papel de formulador da idéia de sociedade (SARTORI, 1981, p. 165). Essa atribuição é particularizada dentro da concepção contratualista, já tratada aqui, onde a sociedade está em revolta contra o soberano ou vivendo sob a vigência de um contrato com ele. Mesmo assim, trata-se de uma sociedade que é uma ficção jurídica, pois a autonomia da sociedade, com relação ao Estado, pressupõe outra distinção: a esfera econômica (SARTORI, 1981, p. 166). Contudo, prevalece na atualidade, como referido por Sartori (1981, p. 166), a idéia de que cabe a Montesquieu, filósofo francês do século XVIII, autor de O espírito das leis, o título de descobridor da sociedade. Para Sartori (1981 p.166), foram os economistas do século XVIII e XIX, tratando de leis de mercado, não jurídicas, que deram uma imagem tangível de uma realidade social capaz de auto-regular-se, “[...] uma sociedade que tomou consciência de si mesma”. Ainda segundo o autor, “[...] cabe méritos a Montesquieu, mas este foi precedido por Locke e pelos defensores do constitucionalismo liberal. [...]”. Nesta perspectiva, preconizava-se um Estado com governo representativo. 2.3 O ESTADO E A REPRESENTAÇÃO No revolucionário século XVIII, predominavam os governos monárquicos dirigidos por soberanos com poderes quase sempre absolutos (DALLARI, 1986, p. 25), que eram utilizados mais freqüentemente em favor de si próprios, de familiares e da nobreza hereditária. O povo não participava de nenhuma escolha, assunto das famílias e interesses de nobres e reis, embora fosse o suporte econômico de luxos e corrupção, além de contribuir com seu sangue nas guerras entre os Estados nacionais em constantes conflitos. Foi em defesa de uma ordem política mais justa que pensadores como Locke, Rousseau e Montesquieu, (DALLARI, 1986, p. 25), rejeitaram o absolutismo dos monarcas e privilégios da nobreza e apregoavam a instauração de regimes onde imperasse a democracia. De todos, Rousseau era o mais radical, pois apregoava uma democracia direta, nos moldes da Antiguidade, isto é, sem a necessidade de se votar em ou ter representantes; de Montesquieu deriva uma posição favorável à representação (BONAVIDES, 1999, p. 60), já 38 que admitia que o povo era “excelente para escolher, mas péssimo para governar”. Ainda segundo Bonavides (1999, p. 60), os pensadores da política identificam em Rousseau o pensador que “[...] distinguiu com maior acuidade a Sociedade do Estado, a partir do estudo das ‘sociedades parciais’, onde, do conflito de interesses reinantes, só se pode recolher a vontade de todos”; ao passo que “o Estado vale como algo que se exprime numa vontade geral”. Na obra O contrato social, Rousseau (1762) afirma que a vontade geral só poderá ser exercida quando o povo estiver reunido. No capítulo XV do mesmo texto, afirma que “[...] quanto mais bem constituído for o Estado, tanto mais os negócios públicos sobrepujarão os particulares no espírito dos cidadãos” (ROUSSEAU [1762], 1965, p. 95), pois: [...] A diminuição do amor à pátria, a ação do interesse particular, a imensidão dos Estados, as conquistas, os abusos do governo fizeram com que se concebesse o recurso de deputados ou representantes do povo nas assembléias da nação. E o que em certos países chamam de Terceiro Estado. Desse modo, o interesse particular das duas ordens é colocado em primeiro e segundo lugares, ficando o interesse publico em terceiro. A soberania não pode ser representada pela mesma razão porque não pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade de forma alguma se representa: ou é ela mesma, ou é outra, não há meio-termo [...] (ROUSSEAU, [1762] 1965, p. 95-96). Rousseau ([1762] 1965, p. 64), ressalva que a impossibilidade da representação se dá quanto ao legislativo, pois o mesmo não se daria com respeito ao executivo, que é a força aplicada à lei. De acordo com Barreto (1982, p. 50), é por essa razão que na obra “Considerações sobre o governo da Polônia”, o filósofo propõe a instituição do “mandato imperativo”, que se transformou em um dos três modelos de representação política mais comuns na literatura política, quanto a seus fins. O modelo sugerido como exemplo, por Rousseau (BARRETO, 1982, p. 50) é também conhecido como o de “delegação”, enquanto os outros são o de delegação política como “relação fiduciária” e, o da “representação como representatividade sociológica”. Na atualidade, é lugar comum associar-se poder Legislativo e representação política e, de imediato, ressalta-se uma diferença entre os exemplos mais conhecidos: o parlamento inglês e o congresso dos EUA. Ressaltam-se também, outras diferenças: no primeiro caso, há representantes eleitos e não-eleitos, enquanto no segundo, todos são eleitos e representam unidades políticas que, reunidas, formam um outro Estado. Weber (1999) atribui ao sistema representativo inglês uma tradição medieval, associada à necessidade de 39 absorver politicamente a força da burguesia, enquanto a representatividade norte-americana, segundo Dallari (1986), tem origem na sua própria formação jurídico-política, no final do século XVIII, quando foi instituído o Estado federal representativo7. A representação política é considerada uma conquista democrática ( DAHL 2001), pois permite, teoricamente, um certo controle do governo, além de necessária para efetivar uma participação no processo político e responder às clássicas perguntas: quem afinal governa? Em favor de quem? Antigos e novos discursos afirmam que democracia é o governo do “poder visível” e que nada pode ficar no reino do mistério. Bobbio (2002), referindo-se ao contraste entre democracia formal e democracia substancial, afirma que o tema “poder invisível” não tem até agora recebido a necessária atenção dos estudiosos. Ainda de acordo com Bobbio (2000), um dos eixos do regime democrático é a inexistência de segredos de todas as decisões e dos atos dos governantes, mas a democracia direta foi abandonada em favor da representativa quando surgiu o grande Estado territorial e superado o absolutismo. Bobbio (2000, p. 98) esclarece que este fato exigiu uma nova conceituação do que seria o caráter público do poder, até porque o estado constitucional moderno deveria se distinguir do absolutista exatamente pela inexistência do segredo de suas ações e natureza. Dahl (2001, 120-124) tem posição semelhante a Bobbio, argumentando que o número de pessoas numa unidade política e a extensão de seu território têm importância crucial numa democracia, pois há evidentemente diferença entre governar uma cidade-estado, como na Antiguidade clássica e um Estado moderno. A utilizar-se de números, Dahl (2001, p. 123) afirma que para ter-se um sistema democrático satisfatório “[...] é razoável que os cidadãos prefiram eleger seus representantes em eleições livres e justas”. Como seria impossível que as pessoas controlassem seu governo em um país populoso, ou fizessem chegar ao Estado a sua vontade diretamente, a solução foi aprimorar a representação. Os exemplos foram a Revolução Francesa em período anterior a ascensão de Napoleão Bonaparte e, exemplo mais conhecido, após a independência dos EUA, passou a integrar sua Constituição e foi posteriormente consagrado no Estado constitucional moderno. Suas fontes foram principalmente os escritos conhecidos como O federalista, de James Madison, John Jay e Alexander Hamilton, editados em 1787, mas as idéias de maior liberdade política tinham sido defendidas por diversos filósofos europeus, desde o século XVII. 7 A Câmara dos Lordes e a dos Comuns, reunidas, formam o Parlamento inglês, enquanto nos EUA o Legislativo é formado pelo Senado e pela Câmara dos Representantes. Estes últimos, representam os Estados federados e equivalem aos deputados federais no Brasil. 40 Um país com regime político representativo coloca-se em oposição tanto aos regimes absolutistas e autocráticos, como com a democracia direta onde, em teoria, desapareceria a distinção entre governantes e governados (COTTA, 2000, p. 1.102). O sentido da representação política está na possibilidade de controlar o poder político, atribuído por quem não pode controlar o poder pessoalmente (COTTA, 2000, p. 1.102). A representação, elemento chave da história política moderna, é identificada (COTTA, 2000, p. 1.101), pois, com as assembléias parlamentares, numa expressão concreta de representação política. Baseado em seus fins, a representação poderia ser definida como um “[...] mecanismo político particular para a realização de uma relação de controle entre governos e governados” (COTTA, 2000, p. 1.102). Trata-se assim, de uma expressão ligada ao Estado de sistema representativo moderno, onde os governantes são eleitos pelo povo, mas a representação já existia na Grécia Antiga, onde as cidades-estado enviavam seus embaixadores para negociações nas eleições (BARRETO, 1982, p. 43). O termo vem do latim repraesentare, que segundo Barreto (1982, p. 43) significa literalmente: trazer à sua presença algo ausente, ou a materialização de uma abstração em um objeto, mas a palavra não era utilizada para significar algum tipo de relação entre pessoas. No modelo de delegação, o representante é apenas o executor da vontade de seus eleitores, cumprindo instruções precisas e com indisponibilidade de autonomia. Tem inspiração medieval e foi defendido por Rousseau como o adequado para o funcionamento da democracia (BARRETO, 1982). Assim, um deputado estará preso à linha política do partido, bem como ao seu programa e o que fizer diferente do que lhe foi atribuído não deverá ter efeito (BARRETO, 1982). De acordo com Bonavides (1999, p. 262), esse tipo de mandato ou representação foi combatido pelos defensores da democracia liberal, a coluna do poder político da burguesia, como Condorcet e Burke. Na representação como relação fiduciária a situação é inversa, pois o representante recebe a confiança do representado e dispõe de autonomia para legislar em favor “do bem comum” ou da nação e não do eleitor regional ou local que o elegeu (BONAVIDES, 1999, p. 262). Esse modelo, presente na Inglaterra, foi defendido por Edmund Burke (1729-1797), membro do parlamento, quando este enfrentava reis que buscavam reaver seu poder absoluto (KINZO, 2001), e pelos liberais ingleses; foi criticado por Rousseau em O contrato social exatamente porque os representantes rompem os laços com seus eleitores. Os 41 ingleses, afirmou Rousseau ([1762] 1965, p. 96), em O contrato social: “[...] eram livres apenas na hora de votar [...]”. Outra corrente que se opôs ao mandato imperativo, defendendo o segundo modelo, foi a dos pensadores franceses como Condorcet e Mirabeau, defensores da democracia representativa. O primeiro teria mesmo expressado claramente, como observado por Bonavides (1999, p. 261), em discurso na Convenção Francesa: “Mandatário do povo, farei o que cuidar mais consentâneo com seus interesses. Mandou-me ele expor minhas idéias, não as suas; a absoluta independência das minhas opiniões é o primeiro de meus deveres para com o povo”. Na atualidade, onde a complexidade das relações leva ao esgotamento dos canais de representação da democracia liberal, faz-se necessário não apenas buscar novos conceitos, mas identificar práticas de representação, inclusive as não institucionalizadas. Consoante isso, além da classificação segundo seus fins, deve-se considerar a natureza das diversas modalidades de representação política, que fogem ao formal e transcendem o conjunto de relações entre eleitores e governantes (DURKHEIM, 1978; WEBER, 1999a), que abrangem o exercício de ações ou funções, individuais ou coletivas, oriundas inclusive pela tradição ou assentimento, como se vê em estudiosos da política brasileira. 2. 3. 1 A representação no Brasil A representação no Brasil, embora tenha sido identificada por Dallari (1986) como surgida com a instauração do Estado liberal federativo, através da Constituição republicana de 1891 tem, historicamente, data mais antiga. Após a independência (1822), foi organizado o Estado através da Constituição do Império, de 1824 (CALMON, 1971), sendo criado um estado monárquico centralizado, com quatro poderes de governo: o executivo, o legislativo, o judiciário e o moderador, privativo do imperador (CALMON, 1971). Inicialmente, as províncias elegiam em eleições de dois turnos os seus representantes à Câmara. Entretanto, durante as regências (1831-1840), inúmeros movimentos revolucionários regionais deram conta ao governo que uma descentralização era necessária. Assim, pelo Ato Adicional de 1835, as províncias, as antigas capitanias do período colonial, passaram a ter alguma autonomia e a eleger sua assembléia, embora os presidentes das mesmas unidades continuassem a ser nomeados pelo governo central. 42 De acordo com alguns historiadores como Emília Viotti da Costa (1987), na época, o político era reflexo do econômico: A organização política do país refletiria os anseios dos grupos sociais que empresaram o movimento [de independência] - interessados em manter a estrutura de produção baseada no trabalho escravo, destinada a exportação de produtos tropicais para o mercado europeu. Organizar o Estado sem colocar em risco o domínio econômico e social e garantir as relações externas de produção seriam seus principais objetivos (COSTA, 1987, p. 122). Ainda conforme a autora (COSTA, 1987, p. 123), as oligarquias conseguiram controlar o governo através de órgãos representativos: a Câmara e o Senado, sendo este vitalício, e do Conselho de Estado. Como se vê em Calmon (1971, p. 1638), este último seria abolido com o Ato de 1835. Para Schwartzman (1982, p. 57), grande parte da história política do Brasil imperial girava em torno do tema centralização X descentralização em razão da natureza da colonização portuguesa, que combinava centralização administrativa com grande dispersão territorial. Essa dispersão e as contradições entre o poder central e o local estão presentes inclusive em estudos sobre a política regional, como na análise de Lima (1993/1994, p. 33) sobre a representação política do Amazonas no século XIX, pois ali: “As bases do processo eleitoral existente durante o Império não puderam garantir o funcionamento do sistema representativo e este resultava em uma permanente corrupção”. Ainda de acordo com Schwartzman (1982, p. 14), o processo político tem objetivos e mecanismos próprios, que embora não sejam independentes e isolados dos processos que se desenvolvem na esfera produtiva, só podem ser entendidos na sua especificidade. Cabe lembrar que o Estado brasileiro tem origem exógena (COSTA, 1987; SCHWARTZMAN,1982), resultado de processos históricos muito diferenciados, tanto no período imperial como no republicano e que ainda havia uma realidade concreta e outra nas disposições jurídicas. Costa (1987, p. 123-124) esclarece que a constituição de 1824, no seu artigo 179, tentou assegurar ampla liberdade individual e garantir liberdade econômica e de iniciativa “[...] inspirando-se diretamente na Declaração dos Direitos do Homem feita pelos revolucionários franceses em agosto de 1789”. Havia trechos, diz a autora, que eram mera transcrição da Declaração, mas omitia-se a afirmação da soberania da nação, a definição de lei como vontade geral e a declaração do direito dos povos de resistirem à opressão. Era como se houvesse duas sociedades, sendo que numa delas os legisladores, de formação européia, 43 incluíram na constituição os preceitos do liberalismo e o defendiam na Câmara e no Senado e, ao mesmo tempo, a escravidão era preservada e a maioria da população era composta de “moradores” em terras alheias (COSTA, 1987, p. 125). A sociedade e o Estado eram realidades distintas até então no Brasil. Em 1889, com a República, tentou-se mudar o social por meio da lei, sob um novo modelo: o estadunidense. A federação norte-americana nasceu da união de treze colônias, isto é, a instauração de um poder centralizador sobre unidades dispersas, preservando a individualidade de cada uma delas. No Brasil o processo foi inverso, pois ao tempo do Império havia um governo fortemente centralizado e, após 1891, o poder político foi distribuído entre as antigas províncias, até então simples divisões administrativas. Assim, cada uma delas recebeu formalmente a afirmação de sua individualidade e uma parcela do poder político, passando a denominar-se estado (DALLARI, 1986). Ainda de acordo com Dallari (1986), em termos de estrutura, quando nasce uma nova federação, a preocupação de seus criadores é conseguir manter a unidade sem eliminar a diversidade, dando ênfase maior à centralização ou à descentralização. Pode nascer aí, reconhece o autor, uma das inúmeras ambigüidades do sistema federativo. Acomodar diferentes realidades territoriais, políticas, econômicas, sociais, culturais e mesmo étnicas sob uma mesma autoridade, preservando ao mesmo tempo suas individualidades sem grandes atritos ou rupturas é um dos desafios do federalismo, inclusive no Brasil, onde avulta a diversidade entre regiões e setores político-sociais. A busca de uma unidade na diversidade sob um conjunto de regras comuns, não parece ser tarefa fácil ou isenta de atritos. Reconheceu-se na primeira constituição republicana brasileira o direito de representação da maioria, materializado no voto. Dentro desse pensamento, adotou-se primeiramente o sistema majoritário de representação, sendo seguido pelo critério da proporcionalidade (BONAVIDES, 1999, p. 247-253). Tal como no Império, foi importado um modelo nascido de circunstâncias e passado históricos diferenciados e, diferentes seriam também os resultados. A procura por um modelo não unitário de estado, em principio mais democrático, levou a que muitos países adotassem o modelo federal estadunidense, mas a multiplicidade dos centros de poder, uma característica básica do modelo, tem inspirado arranjos em tal número que hoje alguns teóricos identificam Estados federais com características muito diversas (DALLARI, 1986, p. 50). Avulta também no presente uma outra adaptação do federalismo a situações conflitivas seculares, de origem étnica ou territorial, como na 44 Espanha, Itália e alguns países africanos. Há pensadores que já advogam uma terceira escolha entre a centralização do Estado Unitário e a descentralização do Estado Federal: o Estado Regional (DALLARI, 1986, p. 51). Para estudiosos como Badia (1978 apud DALARI, 1986), este poderia resolver, teoricamente, algumas das intermináveis situações políticas conflitantes em alguns países europeus. O federalismo é, ao mesmo tempo, uma estrutura e um processo, o que torna o Estado federal mais complexo que o unitário. Nesse espaço, há uma “[...] multiplicidade de governos atuando conjugados e procurando ser harmônicos [...]” em esferas, áreas ou níveis diferentes, havendo uma esfera federal ou geral, ao lado de outras estaduais ou locais (DALLARI, 1986, p. 53). Mas não ocorre, na prática, que o governo central se ocupe só de assuntos de interesse geral e os governos locais apenas do que for de interesse nas suas unidades. Cabe aqui observar que o federalismo pode até mesmo ser deixado de lado, embora não formalmente, como ocorreu no Brasil com a instauração do Estado Novo (1937-1945) e do regime militar (1964-1985), ocasiões em que se desenvolverem projetos e instituíram-se medidas estruturadoras sem considerar as peculiaridades locais e regionais. O federalismo brasileiro tem, segundo Dallari (1986, p. 54-55), um complicador para o desempenho de seu processo que é o estabelecimento de três esferas de governo: a federal, a estadual e a municipal. O reconhecimento da autonomia de municípios e Estadosmembros é um fato complicador, uma vez que a estrutura e o processo político ficam por demais entrelaçados e a primeira passa a depender do segundo em razão da dinâmica dos governos, havendo eventuais rompimentos de barreiras (DALLARI, 1986, p. 54-55). Essa dinâmica é conformada pela busca de maior eficácia de desempenho e envolve logicamente não apenas grupos e partidos, mas também associações das mais diversas, representando ainda outros interesses divergentes, como os regionais. Celso Furtado, referindo-se às mudanças após a instauração da República brasileira, em A formação econômica do Brasil (1987) assinala que: Se a descentralização republicana deu maior flexibilidade político-administrativa ao governo no campo econômico, em benefício dos grandes interesses agrícolaexportadores, por outro lado a ascensão política de novos grupos sociais, de rendas não derivadas da propriedade – facilitada pelo regime republicano – veio reduzir substancialmente o controle que antes exerciam aqueles grupos agrícolaexportadores sobre o governo central. Tem início assim um período de tensões entre os dois níveis de governo – estadual e federal – que se prolongará pelos decênios do século atual (FURTADO, 1987, p. 172-173). 45 Logicamente, cabe à esfera federal o papel de administrar politicamente as diferenças em proveito do bem comum. Na prática observa-se que isso não será acompanhado sempre diretamente pelos cidadãos, pois existe ou deve existir sempre uma representação, de uma forma ou de outra. A complexidade do conjunto de relações e antagonismos em um Estado federal leva Dallari (1986), a afirmar: O federalismo é um fenômeno político e sócio-cultural. Aqui se coloca uma questão crucial: o federalismo é conveniente, possível e até necessário quando se pretende unir no mesmo Estado unidades sócio-culturais diferenciadas, mas, ao mesmo tempo, é inviável quando essa diferenciação é por demais acentuada. Ao lado disso é preciso considerar que o Estado Federal tem um governo e promove o relacionamento entre governos dentro de suas fronteiras. Assim, pois, além das políticas especificas de cada um desses governos, existe o objetivo, essencialmente político, de manter a própria federação (DALLARI, 1986, p. 55). Outro estudioso do liberalismo no Brasil, Celso Lafer (1975a), ressalta que no período 1945 a 1964, o qual denomina de “República Populista”, o Congresso, isto é, o Legislativo federal exibia uma vigilância conservadora diante do papel inovador do Executivo. Este poder teria sido fortalecido e se tornado potencialmente e organicamente mais relevante que o Legislativo e o Judiciário após o Estado Novo (SKIDMORE, 2000) e, mesmo com a aprovação da Constituição liberal de 1946, continuou sendo o mais evidente. Essa ascensão do Executivo estaria lastreada na sua posição de núcleo inovador e planejador da economia nacional. Uma herança de Getúlio Vargas, que passou pelos governos populistas e desenvolvimentistas das décadas de 1950 e 1960, atingindo seu auge com os militares após 1964. Em termos de poder, Lafer (1975a), referindo-se ainda ao período 1945-1964 , diz que havia um pacto de dominação, apesar do aumento da urbanização e industrialização e do conseqüente aumento da participação das massas no processo eleitoral. Para ele, no período coexistiam duas culturas políticas: a do “Brasil desenvolvido” no Sudeste e no Sul, e a do “Brasil subdesenvolvido”, abrangendo o Norte, o Nordeste e o Centro-Oeste. Mas havia uma coexistência entre as duas realidades (LAFER, 1975a, p. 62-63), em que: “[...] se reflete na origem e no crescimento do regime partidário. Os partidos mais conservadores – Partido Social Democrático (PSD), União Democrática Nacional (UDN), Partido Republicano (PR) – obtiveram, desde 1945, uma porcentagem claramente menor dos deputados federais, no Sudeste, do que no Brasil subdesenvolvido”. Anota ainda o autor (LAFER, 1975a, p. 62-63), que: “Direção oposta foi a do crescimento do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Partido 46 Trabalhista Brasileiro (PTB) e Partido Social Progressista (PSP) no Sudeste, onde aumentaram sua força eleitoral de 1945 a 1962”. O período 1945-1964 apresenta grande contraste em relação ao de 1891-1930, conhecido como o da República Velha, em razão das mudanças entre 1930-1945, principalmente quando do Estado Novo (1937-1945), e de mudanças estruturais que distanciaram parte do país da antiga estrutura agrária. Lafer (1975a, p. 63-65) afirma que essa coexistência de duas culturas políticas, a do Brasil desenvolvido e a do subdesenvolvido, exigiram do sistema político, isto é, o federalismo brasileiro, “[...] uma política que conciliasse diversos interesses num pacto de dominação que fosse viável”. Acrescenta ainda (LAFER, 1975a, p. 63-64), que este pacto teve duas moedas em circulação: o voto, que outorgava legitimidade o sistema, e a coerção organizada, o poder militar. Na literatura sobre o período, existe uma convergência de conclusões sobre o papel conservador do Congresso, bem como sua incompatibilidade com o pensamento de militares e civis de tendências tecnocráticas, tal como se observa em Ames (1986), Dallari (1986), Lafer (1975a) e Skidmore (2000). Para Rodrigues (1982), como um todo o governo não promovia a integração à sociedade nacional de milhões de brasileiros, mais da metade da população - já que o analfabeto não votava – e não atentava para o desequilíbrio do crescimento econômico nacional e setorial e desajustamentos regionais. O autor (RODRIGUES, 1982, p. 247-248) salienta também, o papel conservador do Congresso e dos partidos majoritários que o constituíam, como o PSD, a UDN e mesmo o PTB, formalmente progressista, os quais representavam um sistema que estabeleceu um desequilíbrio entre a sociedade e o Poder. Ainda de acordo com Rodrigues (1982, p. 247), “[...] sequer uma associação política de todos os brasileiros, que a primeira Constituição proclamou, chegamos a constituir; muito menos se pode afirmar que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, como se proclamou a partir de 1934”. E acrescenta o autor: “A Constituição de 1891 foi mais honesta, pois a nação era constituída pela união perpétua e indissolúvel das antigas províncias em Estados Unidos do Brasil, e o povo só aparecia no preâmbulo, ao dar representação para o estabelecimento, decretação e promulgação da Constituição” (RODRIGUES, 1982, p. 247248). A crítica do autor a uma falsa representação, que deveria ser expressa, sobretudo, pelo Legislativo, através dos partidos, leva a volta ao pensamento político de Locke. Do mesmo modo, os defensores de um Executivo mais forte, para se ter um Estado também mais forte, lembram o pensamento arquetípico hobbesiano. 47 A literatura política sobre o Legislativo brasileiro o apresenta como identificado, entre 1945-1964, com o conservadorismo e se constitui principalmente por partidos que eram mais fortes em regiões subdesenvolvidas, que para se manter tinham que adotar atitudes paternalistas e apoiar privilégios que, por vezes, desequilibravam o Tesouro Nacional. Não foi por acaso que a Constituição de 1946, liberal, estabeleceu que o Orçamento era de competência do Legislativo, nem que houvesse choques com administradores de linha neoclássica, principalmente monetaristas ligados ao Executivo, como Roberto Campos (AMES, 1986). A par disso, os governos populistas planejavam e executavam projetos de nível nacional, com a participação e o fortalecimento de um corpo técnico-administrativo, por vezes formado por órgãos paralelos, como no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Em suma, houve um distanciamento do Estado em seu relacionamento com a sociedade civil. Esta, no entanto, segundo Lafer (1975a, p. 66-71), não seria ouvida no período que se seguiu, o de 1964-1985, após o esgotamento das fórmulas institucionais e das regras do pacto de dominação que a sustentavam. Após a vitória do movimento militar de 31 de março de 1964, os militares impuseram um Ato Adicional, o AI 1, escrito pelo mesmo jurista do Estado Novo, Francisco de Campos (SKIDMORE, 2000). Lafer (1975a, p. 72) lembra que o documento esclarece sobre o novo momento político nacional: “Fica assim, bem claro, que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação”. Houve depois uma série de Atos Institucionais, sendo que o AI 5 transformou o Congresso em uma casa legislativa de poder apenas formal. Como era preciso, no entanto, apresentar no exterior uma aparência de democracia, havia eleições, embora as regras mudassem sempre que a oposição ameaçasse ter uma vitória. Eis porque, em 1966 e 1982 os partidos foram oficialmente extintos e outros criados, segundo a conveniência do regime militar. As eleições, muitas vezes alteradas em seu calendário não poderiam, pois, alterar o status quo, mas crises na economia internacional levaram a agudização de problemas políticos internos, exigindo cada vez mais medidas de contenção da oposição, que se fortalecia nessas ocasiões. Foi necessário alterar, também, a composição do Congresso, aumentando o número de parlamentares, principalmente nas regiões onde o governo mantinha maior controle, como o Norte e o Nordeste. Houve aumento até da representação dos territórios federais, que inicialmente tinham apenas um deputado federal, passando para dois e posteriormente para 48 quatro. Mas essas medidas seguiam uma das linhas do movimento revolucionário, a dos moderados, que, contrariamente aos da “linha dura”, admitiam ceder algum espaço para a sociedade política para manter seu apoio (STEPAN, 1971). Quanto ao Executivo, houve seu fortalecimento no período, com instauração de eleições indiretas para os cargos de presidente e governadores de Estado. O papel quase formal do Legislativo contrastava com o do Executivo, apoiado na segurança da estrutura militar e na classe de administradores tecno-burocráticos, como economistas e planejadores. A partir de Becker (1999), percebe-se que essa aliança garantia o funcionamento contínuo do governo autoritário e a consecução de seu projeto de desenvolvimento para o País, nos moldes capitalistas, através de Planos de abrangência nacional. Nestes, indica Becker (1999), a Amazônia ocuparia um lugar especial. Com o esgotamento do regime e o seu final, em 1985, houve o que se denominou “redemocratização”, com o fortalecimento, ou a volta do poder descentralizado e, por conseqüência, do Legislativo. No âmbito das mudanças, produziu-se uma nova Constituição, em 1988, que estabeleceu as novas bases políticas do Brasil. Foram criados os novos Estados de Roraima, Amapá e Tocantins, enquanto o Executivo voltou a uma situação semelhante a do período 1946-1964, ou seja, teve seu poder diminuído. No tocante à representação, segundo Becker, Egler (1994) e Gall, Ricúpero (1999) a Constituição de 1988 aumentou sensivelmente o espaço para o exercício da cidadania e, ao criar novos Estados federados e permitir a multiplicação de municípios acabou multiplicando, também, os espaços políticos das lideranças regionais e locais. 2. 3. 2 Partidos, elites e grupos Um dos problemas dos legisladores que procuram normalizar o comportamento político, individual e coletivo, da sociedade ligada a um Estado, é como harmonizar os diferentes e por vezes exclusivos interesses. Exemplo disso ocorreu no final do século XVIII, quando uma das preocupações dos autores de O Federalista, principalmente Madison, foi tratar do controle legal das diferentes facções políticas que buscam a dominância do poder em um Estado democrático. No entanto, há grandes diferenças entre as forças políticas que se organizam dentro de um Estado, variando desde suas origens, sua natureza, estrutura, objetivos, abrangência, dimensão e duração temporal. Assim, podemos identificar partidos, grupos de interesse, elites, oligarquias, grupos de interesse e grupos de pressão. Segundo Max Weber, os partidos são: 49 [...] relações associativas baseadas em recrutamento (formalmente) livre com o fim de proporcionar poder a seus dirigentes dentro de uma associação e, por meio disso, a seus membros ativos, oportunidades (ideais ou materiais) de realizar fins objetivos ou de obter vantagens pessoais, ou ambas as coisas. Podem constituir relações associativas efêmeras ou duradouras participar de associações de todo tipo e surgir como associações muito distintas na forma: séqüitos carismáticos, criadagens tradicionais e partidários racionais (racionais referentes a fins ou valores, ou de cunho ‘ideológico’). Podem ser orientados principalmente por interesses pessoais ou por fins objetivos. Na prática, podem dirigir-se, oficial ou efetivamente, exclusivamente à obtenção do poder para o líder e à ocupação de cargos administrativos por seus quadros (partido de patronato). Ou podem estar orientados predominante e conscientemente por interesses de estamentos ou classes (partido estamental ou de classe) ou por fins objetivos concretos ou por princípios abstratos (partido ideológico). Mas a ocupação de cargos administrativos pelos seus membros costuma ser, freqüentemente, um fim acessório, e os ‘programas’ objetivos não raro apenas um meio de recrutar novos membros (WEBER, 2000, v. 1, p. 188). Podem, ainda segundo Weber (2000, p. 188) “[...] constituir relações associativas efêmeras ou duradouras, participar de associações de todo tipo e surgir como associações muito distintas na forma” (WEBER, 2000, p. 188). Na atualidade, cientistas políticos que tratam da temática dos partidos, como Anna Oppo (1982), afirmam que se deve considerar partido no verdadeiro sentido, aqueles que surgiram quando o sistema político atingiu uma certa autonomia estrutural, uma complexidade interna e uma divisão de trabalho que comporta um processo de formação de decisões políticas em que participem mais partes do sistema em que estão inseridas e, teórica ou efetivamente, os “[...] representantes daqueles a quem as decisões políticas se referem” (OPPO, 1982, p. 9). Dentro dessa concepção, cabem só as organizações políticas oriundas de um processo onde emergem governos representativos, ou onde havia margem de aceitação de pelo menos uma pequena representatividade com algum poder de decisão. Assim, de acordo com Oppo (1982, p. 10), excluem-se os partidos como os da Inglaterra de antes de 1832, ano em que o Reform Act estendeu o sufrágio aos comerciantes e industriais, fazendo com que esses passassem a participar da gestão dos negócios públicos antes privilégio apenas dos aristocratas. Weber (1979, p. 48-49) não valoriza os antigos partidos ingleses que se transformaram no modelo de partidos nos séculos XIX e XX, declarando que esses eram na Inglaterra apenas séquitos da aristocracia e que junto a estes, com a ascensão da burguesia, surgiram de todos os lados os partidos de notáveis (grifo do autor). Para Oppo (1982, p. 10), após o Reform Act, organizaram-se na Inglaterra associações locais que participavam efetivamente na busca de votos para o parlamento ou para acompanhar a execução de leis. Essas associações eram organizadas por notáveis ou por grupos de interesse (grifo nosso). 50 Aristocratas, burgueses da alta sociedade fomentavam e por vezes financiavam as atividades eleitorais. O número de participantes era pequeno, mas firmou-se uma prática que foi ampliando-se gradualmente na Europa e nos EUA. Não foi, obviamente, uma caminhada tranqüila, pois na Alemanha os partidos só surgiram após a Revolução Liberal de 1848 e na Itália, apenas com a unificação, em 1870. Do exposto, duas conclusões já são aqui possíveis: a de que o partido político moderno nasceu de conquistas não só políticas, mas também econômicas e que seu surgimento está associado a categorias como “representação” e “grupos de interesse”. Mas outros fatos chamam a atenção na atualidade: a profissionalização e a estabilidade da liderança e de parte de seus componentes e a diversidade dos tipos de partidos. Mais, em alguns casos ocorre inclusive a transformação da liderança ou do próprio partido em grupo “oligárquico”. Nas democracias modernas, além de partidos estruturados, existem organizações, visíveis ou não, que intermediam decisões entre o cidadão e o governo, sendo discutido ainda se sua existência favorece, em ultima instância, a estabilidade ou a degeneração dos sistemas democráticos. Essas organizações são diferenciadas, sendo as mais comuns as denominadas de oligarquias, grupos de pressão, grupos de interesse, rótulos que abrigam uma grande quantidade de organizações, formais ou não (PASQUINO, 1982; RODRIGUES, 1982). No entanto, quando há referência sobre quem está no topo da sociedade, isto é, quem detém de fato o poder, a expressão “elite” tem sido mais utilizada, de acordo com Bobbio (1982), consagrada pelas teorias que tratam do tema. Dos diversos autores que tratam da teoria das elites, com conceitos diversos e por vezes excludentes, podem ser agrupados em dois lados: os que têm uma visão monista e os que, ao contrário, defendem ser pluralista a organização do poder na sociedade. Permeia essa divisão, a teoria das elites, oriunda do pensamento de Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Roberto Michels, adaptada e comentada por Harold Lasswell e Wright Mills, entre outros. Desse modo, busca-se explicar a divisão do poder nas sociedades complexas, o que trouxe para o pensamento político discussões e debates que ainda dividem opiniões. Mosca (apud BOBBIO, 1982, p. 62-63) identificou uma classe dirigente da sociedade, a quem chamou de “classe política” e “oligarquia”, explicando que esta encontrava sua força na sua organização, entendida como um conjunto de relações de interesse que faz com que os membros da classe política coliguem-se entre si em grupos homogêneos, opondose a uma maioria desorganizada e dividida. Pareto (apud BOBBIO, 1982, p. 62-63), sociólogo 51 e economista italiano, foi o consagrador da expressão “elites”, grupos de homens que ocupam graus superiores em todas as atividades humanas, inclusive na política, a quem denominou de “aristocracia”. Nesse modelo de Pareto (apud BOBBIO, 1982, p. 62-63), tais elites ou classes políticas principais seriam formadas por políticos, por detentores do poder econômico e pelos intelectuais (BOBBIO, 1982). Os primeiros estariam divididos em leões (que usam a força) e raposas (que usam a astúcia); as classes econômicas seriam formadas por especuladores e banqueiros e a dos intelectuais seria formada por homens de fé e homens de ciência (BOBBIO, 1982). Michels (apud BOBBIO, 1982, p. 62-63) estudioso de Mosca e Pareto, observando a estrutura dos grandes partidos de massa, sobretudo do Social Democrata Alemão no começo do século XX, percebeu ali também a concentração de poder em um pequeno grupo, a quem denominou “oligarquia”. Michels reforçou, portanto, uma expressão de Mosca, empregada para denominar minorias governantes. A expressão consagrada por ambos serviu para identificar, desde então, grupos governantes minoritários que usufruem de privilégios e que conquistam e se mantém no poder por diversos meios, com o uso ou não da coerção. Pareto, Mosca e Michels são considerados os fundadores da “teoria das elites”, mas esta passou a ter maior peso nas ciências políticas após os trabalhos de Mills e Lasswell, nos EUA. Estes foram secundados por trabalhos de campo em cidades americanas e outros textos de diversos autores, levando o tema ao campo do debate acadêmico e científico (BOBBIO, 1982; KAPLAN, 1982). Lasswell, em Quem ganha o que, quando, como ([1936] 1982) dedica o primeiro capítulo aos estudos da elite, escrevendo: As pessoas influentes são aquelas que se apropriam da maior parte do que é apropriável. Os valores à disposição são: deferência, renda e segurança. Os que recebem esses valores em maior quantidade pertencem à Elite, os demais são a Massa (LASSWELL ([1936] 1982), p. 15). Esse mesmo autor (LASSWEL, 1982, p.15-27), exemplifica cada um dos itens, tidos como não exclusivos, adicionando casos de ascensões sócio-políticas originadas na habilidade pessoal e um conseqüente prestígio, bem como os meios utilizados para obter, manter ou perder a autoridade. Mills, em A elite do poder (apud BOBBIO, 1982, p. 63), numa análise histórica e sociológica, contrapõe o homem e a mulher comuns estadunidenses com uma elite que concentra “[...] poder, riqueza e a celebridade”. Essa elite seria formada por políticos, 52 militares e homens de negócio: “[...] uma cúpula unida e poderosa, enquanto a base é muito mais desunida e impotente” (MILLS, apud BOBBIO, 1982, p. 63). Houve ataques de pensadores de linha liberal a essa suposta união das elites ou da existência de uma única delas, bem como por parte de pensadores marxistas, para quem a elite dominante é composta apenas de uma classe dominante: a dos detentores do poder econômico. Na base do problema teórico, continuava a questão das concepções monista e pluralista dos grupos detentores do poder, além de permanecer, também, uma certa confusão quanto à relação de variáveis e aos conceitos tidos esses por alguns estudiosos como empiricamente imprecisos (ZUCKERMAN, 1982, p. 74). Na falta de uma aceitação mais geral de uma ou outra linha de pensamento sobre a problemática das elites políticas, em razão de não terem frutificado conceitos de utilidade teórica, entre outros problemas, houve quem voltasse aos estudos das matrizes de Mosca e Pareto, como Bottomore (1982) e Zuckerman (1982). Tanto Mosca como Pareto se posicionam como antidemocráticos (BOBBIO, 1982; ZUCKERMAN, 1982). O primeiro, em sua publicação de 1896, época de intenso debate entre liberais e socialistas, conservadores e socialistas, tinha como objetivo principal a negação da teoria democrática (ZUCKERMAN, 1982). Pareto também ameniza o papel dominador das elites, ao afirmar que: A classe governante não é um grupo homogêneo. Ela também tem um governo – uma classe menor e mais seleta [...] as classes dirigentes, como todos os grupos sociais, realizam atos lógicos e ilógicos [...] não devemos pensar nelas como autores de um melodrama que administrassem e dirigissem o mundo. Elas não realizam reuniões nas quais congreguem para esboçar desígnios comuns, nem tampouco possuem qualquer mecanismo para chegar a um acordo geral (PARETO, 1916, apud ZUCKERMAN, 1982, p. 76). Para Bottomore (1982), o esquema conceitual, tanto de Mosca como de Pareto compreendem noções comuns como: em toda sociedade existe e não pode deixar de existir, uma minoria que controla o restante da mesma. Essa minoria, “classe política” para o primeiro, “elite governante” para o segundo, é composta pelos que ocupam cargos de comando político e podem influir diretamente nas decisões políticas. Mas para ambos, essa minoria sofre mudanças na sua composição com o passar do tempo, incorporando novos membros através do recrutamento individual nos estratos mais inferiores da sociedade. Ocorreria, eventualmente, também, a substituição total de mando por uma “contra-elite”, quando das revoluções (BOTTOMORE, 1982, p. 105). Menos explicitamente, como propõe Bottomore (1982, p. 107), haveria uma doutrina política embutida na obra de ambos os 53 pensadores italianos, de matiz antidemocrática e de crítica à democracia moderna que se desenhava como possibilidade na passagem do século XIX para o XX. A noção de igualdade, um dos fundamentos do pensamento político moderno, no qual está assentada a legitimidade do governo como expressão de uma maioria, choca-se com a idéia da teoria das elites, que acentua no seu âmbito o conceito de desigualdade de atributos individuais (BOTTOMORE, 1982, p. 107). No entanto, a oposição entre as duas concepções não é rígida a ponto de provocar uma exclusão, já que, no regime democrático e representativo é possível, a todos acessar as posições de poder na sociedade, na prática. Os cargos e oportunidades também se acham teoricamente abertas e os detentores do poder precisam prestar conta de suas atitudes perante o eleitorado. Karl Mannheim e Schumpeter (apud BOTTOMORE, 1982), estão entre os pensadores que endossam tal concepção, pois a idéia de igualdade pode ser reinterpretada como “igualdade de oportunidades”, já que as “elites” seriam, em teoria, abertas e seus membros recrutados entre diferentes estratos sociais. Percebe-se, na atualidade, que as expressões “elites” e “oligarquias” passaram para a literatura política ocidental, inclusive no Brasil, com significados um tanto diversos dos originais. As primeiras passaram a designar quaisquer grupos de pessoas que detivessem o poder e a segunda, grupos mais permanentes, geralmente familiares, quase impermeáveis e inamovíveis. Por utilizarem-se dessa linguagem, vários autores procuram explicar, criticamente, as desigualdades cívicas históricas do processo histórico brasileiro. Exemplos notáveis são: Os donos do poder (1976) de Raymundo Faoro; Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil (1975), de Victor Nunes Leal; Conciliação e reforma no Brasil (1982), de José Honório Rodrigues e Evolução política do Brasil (1933), de Caio Prado Júnior. Como tendência geral, ou como uso mais comum, em razão da emergência de um processo social e político mais intenso, como o estudado aqui, percebe-se que categorias como “grupos de pressão” e “grupos de interesse” respondem melhor às necessidades de uma análise mais produtiva. Numa época de rápidas mudanças de paradigmas, identificar e entender os desdobramentos mais amplos e complexos desse processo exige a adoção de conceitos funcionais e que permitam a apreensão de realidades e sua dinâmica. Assim, justifica-se aqui a opção pelo estudo de “grupos”, preterindo-se o de “elites” ou “oligarquias”. 54 2. 3. 3 Grupos de pressão e grupos de interesse Grupos de pressão, no sentido estrito, são organizações típicas dos sistemas democráticos, o que não significa a sua inteira aceitação, anota Pasquino (1982). O autor (PASQUINO, 1982, p. 17-18), reconhece que, nem a teoria liberal clássica, na qual a atividade política é a soma dos interesses individuais e sua composição autônoma, nem a teoria democrática de Rousseau, na qual a vontade geral era mais que a soma dos interesses dos cidadãos deixa espaço aos corpos intermediários da sociedade entre cidadão e Estado. Mas não só a ciência política tem identificado e manifestado interesse pelas organizações sociais e políticas intermediárias entre sociedade e Estado ou entre o cidadão e o governo. De fato, desde o início da teorização acerca dessa questão, têm-se perspectivas mais abrangentes que apontam para a interdisciplinariedade. Assim, os sociólogos Émile Durkheim (1978) e Max Weber (2000), entre outros, desenvolveram estudos sobre a temática. Na sua obra Da divisão do trabalho social (1978, p. 16), Durkheim refere-se a funções em que o Estado não pode desempenhar, devendo as mesmas ser executadas por grupos profissionais, “[...] herdeiros das antigas corporações”. Weber, autor de várias obras sobre política e poder, escreve em Economia e sociedade (1999) sobre a natureza e papel de instituições como classes, partidos e estamentos, integradas no Estado moderno. Mas, se para ambos a existência de instituições políticas ou sociais não concorrem nem contradizem ou excluem outras estruturas formais do Estado moderno, outros defendem idéia oposta. Em parte, essa divergência de pensamento se deve às transformações políticas do século XX. Em alguns sistemas políticos as atividades dos grupos de pressão e o seu número são superiores aos outros sistemas (PASQUINO, 1982). Para que esse número seja elevado, é necessário que haja condições, como a diferenciação estrutural da sociedade, mas essa condição ainda não explica porque os representantes profissionais e as associações voluntárias criadas pela modernização se transformam e operam na qualidade de grupos de pressão (PASQUINO, 1982). Numa ruptura entre estrutura e processo, o real se distancia do formal ou, na linguagem de alguns autores, o concreto se apresenta em lugar do abstrato e do ilusório. Bonavides resume em Ciência política (1999), um pensamento de grande parte dos sociólogos e cientistas políticos críticos do Estado liberal com respeito às instituições associadas a este: 55 O século XX conhece sociedades, grupos, classes e partidos como substrato da vida política em substituição dos antigos mitos do cidadão soberano e da vontade geral, tão usuais na abstrata teoria do Estado que nos veio da herança liberal. São mitos que só sobrevivem na linguagem jurídica das Constituições e dos publicistas; de modo algum encontram hoje confirmação nos fatos (BONAVIDES, 1999, p. 426). Outro autor, Ladislau Dowbor em A reprodução social (1998, p. 216), referindo-se à deformação da representação política liberal, afirma que: Uma razão para esta deformação sistemática da representação política é que as decisões se tomam de fato, senão na teoria, entre grupos minoritários de pessoas que se conhecem. [...]. São personagens chave que articulam as decisões entre si, e o processo representativo se tornou amplamente insuficiente. Ao tratar sobre Brasil atual, Dowbor (1988, p. 216) identifica cinco grandes grupos que, graças a sua organização e poder, interferem nas decisões políticas: as grandes empreiteiras; empresas de mídia; usineiros e grupos de grandes latifundiários; os grandes bancos e por último, as grandes montadoras de veículos. Esses grupos se estruturam informalmente como poder político e ainda acrescentam segmentos regionalmente poderosos. Existe, acrescenta Dowbor (1998, p. 17), um permanente desequilíbrio da tradicional “república” e numa democracia apoiada num só pé, o partido tornou-se insuficiente. Seguindo o mesmo raciocínio, Bonavides (1999) afirma que os efeitos da industrialização e das medidas governamentais após a Grande Depressão de 1929 e as guerras mundiais confirmaram o peso de organizações que adquiriram poder de influenciar decisões que as beneficiem. Na visão marxista defendida por Dowbor (1998), o próprio capitalismo, que gerou o fortalecimento de minorias políticas aliadas a grandes grupos econômicos, teve que refrear o poder destes, modificando-se com medidas como o New Deal de Roosevelt e melhoria das condições democráticas internas após a Segunda Guerra8. Na década de 1950, após grandes mudanças ocorridas em todo o mundo, como a aceleração da urbanização e início do consumo de massa, novos conceitos, modos de vida, e acima de tudo transformações no mundo político, alguns estudiosos, como Maurice Duverger, David Truman e outros, retomaram o tema da força dos grupos, levantado no início do século XX. Segundo Pasquino (1982), a presença e o poder de grupos informais junto aos 8 As medidas do presidente Roosevelt para salvar a economia estadunidense na década de 1930, mostraram que, mesmo numa democracia, pode haver o fortalecimento do poder executivo, em detrimento do legislativo e judiciário. Isso inspirou defensores do autoritarismo, inclusive no Brasil. 56 governos foram detectados já na década de 1900 por Arthur Bentley (1908), Samuel H. Beer e Lawrence Lowell (1908). Esse mesmo autor (PASQUINO, 1982, p. 9) revela que Bentley, autor do livro The processs of Government (1908), formulou a denominada “Teoria dos grupos”, referindo-se a “grupos de interesse” e a “grupos de pressão”, procurando romper o predomínio das disciplinas jurídicas e parafilosóficas nos estudos políticos. Por sua vez, Beer (apud RODRIGUES, 1982, p. 23) identificou a presença de grupos de pressão na Inglaterra, lembrando que, já no século XVIII os membros da Câmara dos Comuns aceitavam remuneração para favorecer interesses: “[...] jamais os seus membros deixaram de contar em seu seio representantes que mantivessem relações dessa espécie com pessoas ou órgãos alheios à Casa” (RODRIGUES, 1982, p. 23). Lowell, (apud RODRIGUES, 1982, p. 23) autor de The government of England (1908), registra que havia na Inglaterra um sistema de leis privadas (private bills) que “[...] tinha o defeito de levar a uma falta de atenção suficiente aos interesses do público”. A força de grupos informais na política foi também identificada na França, Alemanha e sobretudo nos EUA, com grandes diferenças tanto de abordagens como de avaliação do papel exercido por aquelas organizações. A presença e a força política de diferentes grupos, poderosos ou não, econômicos ou não, poderia ser identificada (BONAVIDES, 1999; DOWBOR, 1998) como um fenômeno típico da democracia liberal representativa, quase sempre ligada à economia capitalista. Entretanto, sua presença é assinalada também em países onde domina o partido único e a economia foi ou permanece socialista. Conseqüentemente, tais grupos não só podem ser diferenciados, mas também ocorrem em contextos e tempos diversos. Agesta (1967 apud BONAVIDES, 1999, p. 427) propõe: “Os grupos de pressão não são outra coisa senão as forças sociais, profissionais e espirituais de uma nação, enquanto aparecem organizadas e ativas”. O conceito cabe mais aos grupos de interesse, dos quais derivam os de pressão. A diferença entre ambos: os primeiros podem existir organizados e ativos, mas sem exercerem pressão política. Já os segundos se definem, segundo a mesma fonte, pelo exercício de influência sobre o poder político para obtenção eventual de medidas de governo que favoreça seus interesses. Para Burdeau (apud BONAVIDES, 1999 p. 427), os grupos de pressão sempre pressionaram os governos, com a diferença que “[...] ontem eram exteriores ao poder, clientes, e hoje são o próprio poder” ou “[...] a vontade de expressão do povo real, os grupos não exploram o poder, mas o exercem[...]”, são “[...] poderes de fato”. No entanto, conforme Bonavides (1999, p. 427), as formações profissionais ou de interesse só se politizaram com a 57 industrialização, isto é, com a nova sociedade industrial, quando se tornaram mais conscientes do teor reivindicatório e da posição que tinham que assumir em presença de um Estado confessadamente intervencionista. Burdeau (apud BONAVIDES, 1999, p. 429) referia-se ao início do século XX, quando a força do capital em alguns países europeus estava aparentemente dominante e sem controle, e antes dos grandes conflitos mundiais e crises econômicas. Após essas, o Estado moderno se transformou e novas alianças foram estabelecidas, sem que ligações anteriores fossem inteiramente cortadas. É o que mostram os diversos processos histórico-sociais específicos, como no caso do Brasil, onde após a segunda metade do século XIX ocorreram mudanças estruturais de monta. Exportadores, industriais, imigrantes, religiosos e militares estão entre os atores principais dessa transformação. 2. 4 AS MUDANÇAS NO PAPEL DO ESTADO NO SÉCULO XX: RACIONALIDADE E PLANEJAMENTO Para Weber (1999), o Estado, no sentido do Estado racional, somente se deu no Ocidente e a luta entre os diversos Estados nacionais concorrentes pelo poder, foi quem criou oportunidades para o surgimento do moderno capitalismo ocidental. Cada Estado lutava para atrair o capital e da aliança deste com o Estado nacional originou-se a classe burguesa nacional ou burguesia no sentido moderno da expressão (WEBER, 1999, p. 517). O sociólogo alemão atribui à racionalização o fato de o capitalismo moderno ter florescido no Estado nacional (WEBER, 1999, p. 521-543) e não em outros Estados, como no Oriente ou na Antiguidade ocidental, embora essa racionalização tenha dívidas com práticas administrativas romanas e medievais. Já no século XIV, apareceram na Inglaterra os sinais de uma política administrativa racional, do tipo que denominamos mercantilismo (WEBER, 1999, p. 523). Dobb (1987, p. 87) acrescenta que foram os mercadores que muitas vezes iniciaram a luta pela independência das cidades medievais e que é um engano conceber a época feudal como um período em que o comércio tivesse desaparecido de todo ou que o uso do dinheiro nas transações fosse estranho. Houve, pois, uma certa continuidade, como admite o próprio Weber (1999, p. 518) quando afirma que a racionalidade do Estado moderno prescindiu do direito romano, do germânico e do medieval, pois entre outras coisas, se fez necessário fazer uso da força e legitimar essa para garantir a continuidade da instituição. Além disso, diz 58 Weber (1999, p. 525-543), fez-se necessário recrutar quadros, controlar a administração e garantir que a economia funcionasse. A visão weberiana do Estado é a de um corpo ou associação política que se mantém por meio de uma dominação institucional, inclusive com o monopólio da violência legítima (WEBER, 1999, p. 525). Sua definição sociológica de Estado moderno é a de um organismo político que necessariamente, como as organizações que o antecederam, faz o uso da coação física, embora saliente que isso não é o único meio de o Estado se constituir e manter, “[...] mas é o seu meio específico” (WEBER, 1999, p. 525). Subentende-se aqui que o poder que administra, o Executivo, tem nesse Estado uma hegemonia sobre os outros dois. Segundo Bonavides (1999), no Estado moderno a distância entre o cidadão e o Estado se alargou enormemente com a formação do que ele denomina “clube tecnocrático”. Este, de acordo com o autor (BONAVIDES, 1999, p. 442), teria “[...] fechado o círculo já estreito da intervenção democrática e levantado questões de aguda atualidade relativas à sobrevivência da democracia, onde o povo se sente frustrado e ausente do processo decisório, feito em seu nome, mas sem a sua real participação”. Até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), predominou no Ocidente o Estado liberal representativo, cuja política econômica era a do livre mercado. Essa posição não esteve livre de críticas, seja dos socialistas de várias tendências, marxistas ou mesmo alguns utilitaristas extremados, como o pensador evolucionista inglês Herbert Spencer. Adepto do individualismo extremo, Spencer escreveu em 1884 o livro O homem contra o Estado, uma crítica aos políticos e governos que adotaram algumas medidas de apoio aos problemas sociais de seu tempo: o fim do século XIX (SPENCER, [1884] apud DOWNS, 1969). Ao investir contra mudanças governamentais, como o aumento de encargos sociais, que diminuía o lucro dos empreendedores, Spencer atacava diretamente o avanço dos direitos sociais e a mudança do papel do Estado, além de referir-se ao aumento da burocracia e dos impostos. A maior parte da legislação social adotada pelo governo inglês, dizia Spencer, interferia no processo natural de sobrevivência do mais apto, ajudando assim a perpetuar os fracos e incapazes. Afirmava que se as pessoas se habituarem à idéia de que o Estado cuidará deles, o espírito de iniciativa e de empreendimento desaparecerá. “E, naturalmente, quanto mais exagerado se torna esse modo de pensar, e mais insistentemente e freqüentes as exigências de intervenção [...] mais se forma nos cidadãos a idéia de que tudo deve ser feito para eles e não por eles” (SPENCER, apud DOWNS, 1969, p. 233). Spencer se recusa a aceitar 59 o conceito de maioria, afirmando que é uma suposição dos legisladores e do povo que seu poder seja ilimitado, pois isso seria rejeitado como incompatível com os direitos naturais e inalienáveis do indivíduo. A preocupação de Spencer e de outros se devia, também, às medidas corretivas visando eliminar deficiências na economia de mercado que passaram a ser tomadas ainda no fim do século XIX, como explica Claval (1979). Mas, foi após o conflito de 1914-1918 e as sucessivas crises, que abalaram praticamente o mundo todo e eventos como a Revolução Russa, que colocaram em dúvida medidas e teorias tradicionais sobre política e economia. O estado liberal e representativo, até então não intervencionista, passou a assumir cada vez mais seu papel de condutor da sociedade. Outra fonte de críticas ao Estado, na mesma época de Spencer, partiu de alguns adeptos do sociólogo Durkheim, como Léon Duguit (MERQUIOR, 1991). Duguit era como seu mestre, um defensor do individualismo, mas afirmava o valor das associações da sociedade civil, desqualificadas pela mística do endeusamento do Estado, principalmente o alemão bismarkiano. Duguit (MERQUIOR, 1991) criticou inclusive Locke e Rousseau por não reconhecerem a existência de grupos intermediários entre o indivíduo e o Estado quando do seu nascimento, e alertava para o papel deste como provedor de serviços públicos. Para Merquior (1991, p. 160), Duguit e seus colegas “[...] conferiram uma face legal” ao solidarismo durkhemiano, combatendo o pensamento autoritário oriundo da concepção do imperium da Soberania, sendo suas idéias muito valorizadas pela esquerda moderada e pelos funcionários públicos no período entre guerras. Apesar da profundidade filosófica dessas idéias, em primeiro plano, a história política mundial seria marcada no século XX por idéias oriundas da crítica marxista e das doutrinas das escolas geopolíticas. O Estado nacional tornou-se evidente, tinha conflitos não só interiores como os ocorridos entre classes e grupos, mas também com outros estados, tendo como pano de fundo a questão do espaço-território. No primeiro caso, o resultado mais evidente foi a Revolução Russa de 1917, evento que resultou no surgimento da União Soviética e, no segundo, em guerras por “espaço vital” e mesmo por prestígio nacional. Em ambos os casos o Estado liberal representativo foi colocado em cheque, em favor de uma centralização, alegadamente necessária. 60 2. 4. 1 O Estado, planejamento e desenvolvimento no Brasil Pesquisadores, como Velho (1976) e Oliveira (1982), têm comprovado que, mesmo nos períodos políticos considerados como de liberalismo, persiste uma centralização autoritária no núcleo central do governo. Oliveira (1982, p. 11) anota que desde o Estado Novo de Vargas até a “contra-revolução” de 1964, incluindo aí os Programa de Metas de Juscelino, foram realizados por decretos, “[...] às espaldas do Congresso Nacional”. Para Velho (1976), sempre houve um autoritarismo estatal, dominante, sendo o liberalismo político apenas uma linguagem utilizada por determinados partidos e agrupamentos para camuflar interesses que não colidiam com um autoritarismo estatal, ainda que este não apresentasse visibilidade política. Com uma economia dependente, o Brasil colheu os resultados das diversas transformações históricas. Assim, as razões não só da existência, mas da permanência de um aparente paradoxo, podem ser esclarecidas, pelo menos em parte, no breve resumo a seguir. Na década de 1930, com a crise após a quebra da Bolsa de Nova York, a economia de modelo liberal ou clássica, baseada em premissas como o equilíbrio estabelecido pela livre força de mercado, parecia superada. Os fatos mostravam que mudanças radicais eram necessárias, de natureza intervencionista, tal como preconizava o economista e pensador político inglês John Keynes (SANDRONI, 1999, p. 323). O exemplo prático veio dos EUA com o New Deal, uma série de medidas intervencionistas, abrangentes e centralizadoras do poder Executivo estadunidense, que tiraram o país da terrível crise após 1933. As idéias de Keynes, embora com receita para países industrializados, ganharam adeptos em todo o mundo e exerceram enorme influência, mesmo em países não desenvolvidos, como o Brasil. Economistas como Roberto Campos, Roberto Simonsen e Celso Furtado, envolvidos em diferentes projetos nacionais, tiveram essa fonte de inspiração comum (BIELSCHOWSKI, 1988). Muitos economistas brasileiros e estadunidenses conviveram durante anos nas comissões técnicas durante e após a Segunda Guerra, e o próprio governo brasileiro, no período do Estado Novo, tentou viabilizar a planificação da economia (FURTADO, 1981, p. 161). Como assinalado por Furtado (1981, p. 161), a esse planejamento em busca do desenvolvimento opunha-se uma corrente, liderada por Eugenio Gudin e Otávio Gouveia de Bulhões, representantes do liberalismo econômico, e como tal, defensores de um crescimento através das forças de mercado. 61 Jose Luis Fiori (1998, p. 77) diz que foi na década de 1930 que se formou uma burocracia, quando se normalizaram as atividades das áreas econômicas nacionais e criaramse as primeiras instâncias político-administrativas para o exercício de coordenação e planejamento global. Foi nesse período que: “[...] se construiu o arcabouço institucional básico do Estado desenvolvimentista brasileiro, que viabilizou os passos seguintes na direção de uma modernidade industrial” (FIORI 1998, p.77), E, mais adiante: “Mas foi nos anos 50 que o Estado brasileiro assumiu o ideário do desenvolvimento nacional”. (FIORI, 1998, p. 79). Para o mesmo autor, com a liderança tecnocrático-militar que assumiu o país após 1964, o projeto de desenvolvimento nacional capitaneado pelo Estado alcançou sua máxima potenciação, com retórica liberalizante mas sob o signo da segurança nacional (FIORI, 1998. p. 79). Para Fiori, a exemplo de outros autores, o Estado estava na ponta do processo, mas na década de 1950 e parte da de 1960, conforme Mantega (1997) e outros, uma parte dinâmica da sociedade, uma aliança de elites, detinha grande peso nas decisões e obtinha grandes vantagens da política econômica desenvolvimentista, sem uma submissão ao Estado. Mantega (1997, p. 133), baseado em Cardoso (1964), afirma que “[...] o empresariado nacional apenas tolerou [...]” o desenvolvimentismo do presidente Juscelino e nunca viu no capital estrangeiro uma ameaça às suas ações. O impulso para o desenvolvimento, teoricamente deveria ter partido de uma burguesia, mas a luta por um processo de mudança política e econômica nacional partiu nem dela nem da massa urbana, mas de grupos sociais das antigas classes médias e pequena burguesia recém-formada. A expressão desses grupos manifestou-se através do nacionalismo como uma ideologia estatizante e desenvolvimentista, defendida por estudantes, profissionais liberais, militares, funcionários públicos, formadores da chamada elite intelectual. No entender de Cardoso (apud MANTEGA, 1997, p. 133), referindo-se sobre a década de 1950 e inicio da de 1960, “[...] quem mandava mesmo no Estado, pelo que tange a suas decisões cruciais, era a aliança entre as elites tradicionais dos grupos agrários e financeiros e membros da burguesia industrial, muitas vezes sob a tutela de um líder populista, como Getúlio, Juscelino ou Jânio, que, no frigir dos ovos realizavam os interesses das elites”. Para Velho (1976, p. 161), referindo-se ao mesmo período, as coisas não se davam inteiramente desta forma, pois permanecera o intervencionismo estatal, inclusive nas ações de planejamento regional, já que estava presente a noção de que havia, desde décadas anteriores, um desequilíbrio econômico em favor do centro-sul do país, causado pelo funcionamento 62 ‘espontâneo’ da economia. Isso foi reconhecido não apenas na Constituição de 1946, segundo Velho, mas na continuidade do intervencionismo estatal regional. Tal problemática e compreensão aparecem em analistas que trataram do caso roraimense. Exemplar, nesse sentido, é o trabalho de Barros (1995), que revela as especificidades quanto às questões regionais e locais do território, vis-à-vis aos governos centrais. Assim, o maior questionamento sobre a afirmação de Cardoso, talvez possa ser sobre a construção de Brasília e de novas rodovias rumo ao centro do país que, segundo Vesentini (1987), eram obras que contrariavam alguns setores por ele citados. O intervencionismo do Estado no Brasil, como em outros países contemporâneos, envolvia, também, uma questão de estratégia e iniciou-se após a Revolução de 1930, que alijou as elites agrárias do poder nacional, processo que se acentuou com a implantação do Estado Novo (1937-1945). A participação brasileira na Segunda Guerra, ao lado dos EUA, propiciou a implantação de indústrias de base, como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), ambas estatais (FURTADO, 1981 p. 158159). A guerra provocou também mudanças no comércio externo, aumentando o preço do café e a busca de produtos estratégicos, como a borracha da Amazônia. Com capital em grande parte estadunidense, foi criado o Banco de Crédito da Borracha e montada uma estrutura de apoio para a exploração do produto. Foi mais longe a intervenção na Amazônia, criando-se vários órgãos administrativos e territórios federais sob administração direta do governo central. Alterou-se, pois, a divisão federativa reinante até então. No plano nacional o governo tentou melhorar o sistema de transporte e obter o acesso às reservas minerais, motivo maior da vinda de técnicos estadunidenses para levantar dados e fazer a avaliação de possibilidades econômicas. O primeiro grupo deles, junto com funcionários nacionais, formou a Missão Cooke, em 1943. Esta recomendou ao final dos trabalhos a implantação da industrialização como meio de aproveitar os recursos minerais (FURTADO, 1981, p. 161). Outras comissões se seguiram, como a Abbink, e em 1948, a Comissão Mista Brasil-EUA, além de vários estudos que formaram diagnósticos que permitiram conhecer melhor as realidades e possibilidades econômicas e sociais do país e firmar, segundo Furtado (1981, p. 161), a idéia de planejamento. A redemocratização, em 1945, trouxe no seu rastro a volta do federalismo e da descentralização, através da Constituição de 1946. Mas a idéia de planejamento, agora adstrita ao Legislativo, permaneceu, bem como a força do Executivo e dos órgãos técnicos. Exemplo 63 dessa permanência foi a garantia formal, expressa na Constituição, de verbas destinadas ao desenvolvimento regional do Nordeste e do Norte (BRASIL, Constituição, 1946, art.199.) O governo que sucedeu o Estado Novo, no entanto, pouco pôde fazer com relação ao desenvolvimento, segundo SKIDMORE, (2000a), já que sua política era de contenção e equilíbrio do orçamento. O segundo governo Vargas (1951-1954) criou a Petróleo Brasileiro S/A (PETROBRÁS) e tentou a retomada do desenvolvimento, mas crises políticas abortaram sucesso maior. O governo que o seguiu, de Café Filho (1954-1955), teve como ministro da Fazenda o neoliberal Eugenio Gudin, avesso ao planejamento e política estatal de desenvolvimento.(AMES, 1986) No entanto, os estudos sobre a realidade econômica brasileira e suas possibilidades continuaram, seguindo diversas correntes de pensamento, desde a neoliberal até a socialista, agrupados em torno de instituições como a Fundação Getúlio Vargas (FGV), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), o Clube dos Economistas, a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) e Universidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Algumas dessas instituições tiveram oportunidade de colocar suas idéias à prova nos governos que se seguiram, enquanto um grupo em especial, composto pela Escola Superior de Guerra, graças à sua derrota em tentativa de golpe para evitar a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek em 1955 (CASTELLO BRANCO, 1977, p. 8), só teriam sua vez de 1964 em diante. Entre os estudos referidos, merece destaque os da CEPAL, patrocinada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e que se tornou matriz de um novo pensamento para o desenvolvimento continental. Seus técnicos, economistas e sociólogos desenvolveram teorias que seriam aplicadas nos planos de desenvolvimento de vários países na década de 1950, como o Plano de Metas do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). O Plano de Juscelino, não inteiramente cepalino, promoveu intensamente os transportes e a industrialização, marcando uma política que ficou conhecida como “desenvolvimentismo”, sendo baseada em levantamento de pontos de estrangulamento (BIELSCHOWSKI,1988; MANTEGA, 1997). Conforme Lafer (1975b), foi a primeira experiência de planejamento governamental efetivamente colocada em prática no Brasil, um marco na evolução da história do planejamento. A época de Juscelino é a que melhor representa o período também conhecido como o da pluralidade partidária, interposto entre a redemocratização e o golpe militar de 64 1964 (AMES, 1986). O desenvolvimento provocado pelo Plano de Metas deu-se num contexto de conciliação política entre as elites e permitiu uma ampliação e a participação de setores sociais até então marginalizados (LAFER, 1975b). Isto foi possível, afirma ainda este autor, pelo rápido surto de industrialização e conseqüente urbanização, o que formou uma massa de assalariados, a qual viu-se, depois, prejudicada pela enorme inflação que adveio. Outro resultado foi o esgotamento do denominado “modelo de substituição de importações”, defendido pelos cepalinos e estruturalistas, segundo Lafer (1975b). A política de Juscelino permitiu a sustentação de um desenvolvimento do Brasil-Sudeste sem a desagregação do Brasil subdesenvolvido, havendo a coexistência de duas culturas políticas, sem exclusão (LAFER, 1975a, p. 65). Seguiu-se o Plano Plurianual de Desenvolvimento, do governo João Goulart (1961-1964), elaborado pelo estruturalista Celso Furtado e equipe, mas crises financeiras e políticas inviabilizaram sua implantação. Em 1964, uma aliança de militares, empresários e grandes proprietários rurais derrubou o governo Goulart. No entender de alguns autores (LAFER, 1975a; MANTEGA, 1997; SKIDMORE, 2000a), começava um novo tempo na política brasileira. 2.4. 2 1964: a aliança de tecnocracia e militares Os militares são considerados um dos grupos sociais mais homogêneos pela sua organização e seu modo de recrutamento (MARQUÉS et al., 1981, p. 40). Entretanto, sua atuação é polivalente em relação a atuação política, conforme mostra a diversidade de papéis em várias partes do mundo, sendo que nos países capitalistas avançados e com instituições democráticas liberais, existe um exército estritamente profissional e subordinado às autoridades políticas (MARQUÉS et al., 1981, p. 40). Na América Latina seu papel foi muito diferente disso, principalmente após a Grande Depressão de 1929, conforme explica Hobsbawm (2000, p. 109-110). A situação de caos quase geral de 1930 em diante, deu a impressão que o velho liberalismo estava morto, ou parecia condenado (HOBSBAWM, 2000, p. 111) e, países como a Argentina, o Chile e o Peru experimentaram ditaduras militares de esquerda ou de direita. Para Hobsbawm (2000, p.110), foi diferente no Brasil, onde “A Depressão acabou com a oligárquica ‘Republica Velha’ e levou ao poder Getúlio Vargas”. Passado o período já referido entre a queda de Vargas em 1945 e 1964, os militares brasileiros assumem o poder no Brasil. 65 A partir de 1964 o congresso nacional deixou de ter o papel relevante, embora não dominante, do período posterior a 1945, em favor de um Executivo forte e centralizado e o voto grandemente desvalorizado (LAFER, 1975a). E, dentro da busca de uma racionalidade das decisões e da eficiência, o regime militar fez uso da tecnocracia para implantar seu projeto para o Brasil. De início (LAFER, 1975a) buscou-se a reconstrução econômica e financeira, o controle da inflação e após, um esforço rumo à modernização e racionalização da economia. Com o primeiro presidente do período militar, Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967), são tomadas medidas saneadoras da economia segundo o modelo clássico, perseguindo o debelamento da inflação. O desenvolvimento econômico, no entanto, não foi esquecido, vindo a constituir um dos itens do Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) para o biênio 1965-1966 (FURTADO, 1981). Uma série de medidas, como a instituição do Código Tributário Nacional, com extinção e criação de impostos estaduais, provocou maior interferência na autonomia dos Estados da Federação. Para Furtado (1981), estes tiveram cada vez mais restringidas as suas prerrogativas, pois, como no Estado Novo, impuseram-se a centralização e a criação de órgãos técnicos de abrangência nacional regional. Atenção especial foi dada ao desenvolvimento da Amazônia (FURTADO, 1981), sendo criados o Fundo para Investimentos Privados no Desenvolvimento da Amazônia (FIDAM), a Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e o Banco da Amazônia S/A (BASA) (BRITO, 2001, p. 151). Fez ainda parte do elenco de medidas a criação da Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) (BRITO, 2001, p. 151). A Amazônia, em razão dos resultados dessas medidas e outras que se seguiram nos governos posteriores, sofreria impactos e transformar-se-ia integralmente, nos aspectos físicoambiental, social e político. Mas, se na Amazônia as decisões visando sua transformação econômica poderiam ser bem-vindas pelas lideranças locais e regionais, não se dava o mesmo com relação aos Estados economicamente mais fortes, como São Paulo e Minas Gerais. Ao dar exemplo de força, o governo federal não tomou conhecimento da reação de alguns governadores ao Estatuto da Terra em 1964 (JOFFILY, 1998, p. 183). No ano seguinte, diz a mesma fonte, deu-se a extinção de todos os partidos políticos, via Ato Institucional, em razão da derrota eleitoral de suas forças de apoio, com poucos protestos, já que os opositores estavam cassados em seus direitos políticos ou na defensiva. O regime se fechava, mas de acordo com Skidmore (2000a), seu chefe era tido como alinhado com a ala mais moderada dos militares, conhecida 66 (STEPAN, 1971) como da Sorbonne, isto é, da Escola Superior de Guerra (ESG). Seu sucessor, diferentemente, fazia parte da “linha dura” do Exército, defensora intransigente, segundo Gall (1977), da ordem e do desenvolvimento sob a hégide do Estado. O governo Costa e Silva (1967-1969) elaborou o PAEG, mas este, como outras medidas oficiais, estava mais voltado para questões econômicas de âmbito nacional, onde houve sucesso de acordo com a proposta. A renda foi concentrada, elevou o padrão de consumo de muitos e deu-se início ao que seria conhecido como o “milagre brasileiro”, mas havia uma outra preocupação crucial dos militares além da busca do desenvolvimento: a segurança. Esta bateu de frente, em 1968, com grandes passeatas estudantis e protestos que tomavam as ruas, tal como em Paris ou nas grandes cidades estadunidenses. O governo respondeu com um outro Ato Institucional e medidas repressoras (LAFER, 1975a), enquanto eram mantidos os rumos da política econômica, nas mãos do ministro Antonio Delfim Neto. Com a doença do presidente, em 1969, assumiu uma junta de três ministros militares que aprovaram um Programa de Metas e Base de Ação do Governo para o período 1970/1971, segundo o qual o Brasil deveria estar desenvolvido ate o final do século XX. Uma ênfase especial foi dada ao desenvolvimento e à integração regional, principalmente do Nordeste com a Amazônia e o Planalto Central (FURTADO, 1981, p. 182-183). Entre 1969 e 1970, provavelmente em razão de crises políticas nos países vizinhos na fronteira do Norte, principalmente a então Guiana Inglesa, uma nova legislação foi elaborada para os territórios federais, estabilizando suas administrações e investimentos e obras estratégicas como pontes e estradas e algum incentivo à migração e colonização. O grande símbolo da política de desenvolvimento, através do PIN, era a rodovia Transamazônica. Na sua construção foram utilizados fundos antes destinados ao Nordeste (SKIDMORE, 2000b), havendo protestos de lideranças regionais. Outra rodovia de integração, a Perimetral Norte, como a primeira, também inacabada, é hoje apenas um eixo de colonização no sudeste do atual estado de Roraima, conectada a uma outra mais recente, aberta no governo Geisel, a Manaus - Boa Vista (BR 174), concluída em 1977. Exemplo maior da racionalidade burocrática instituída a partir de 1964, são os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND). O I PND (1972-1974) foi elaborado numa época em que havia grande progresso nos países ricos e, assim, capital externo disponível para investimentos (BECKER, EGLER, 1994; JOFFILY, 1998, p. 195). No governo de Ernesto Geisel (1974-1979) foi elaborado o II PND, que procurava dar ao Brasil o status de “potência 67 emergente” e visou a uma maior expansão do mercado interno, substituir importados e a tornar o Brasil um exportador de bens primários em larga escala, como os minérios. Para Furtado (1981, p.191), o II PND, mais diretamente que os planos anteriores, resultou em medidas mais concretas para atenuar as disparidades regionais, redividindo a Amazônia, o Nordeste e o Centro-Oeste atribuindo a cada uma um programa específico, como o Programa de Pólos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (POLAMAZÔNIA). Becker, Egler (1994, p. 139-140), baseando-se em Lessa (1979), acrescentam: O II PND foi o mais importante e concentrado esforço do Estado desde o Plano de Metas para promover mudanças estruturais, justamente quando a economia mundial entrava em sua mais severa recessão desde os anos 30. O projeto da potência nacional estava explícito no Plano. A estratégia para alcançá-lo, inspirada no modelo japonês, teve como núcleos centrais: o fortalecimento das firmas nacionais, a industrialização comandada pela produção de bens de capital, a crescente autonomia tecnológica, o apoio aos conglomerados financeiros, e a mudança nas relações externas para ampliar o grau de independência econômica nacional, tirando vantagens das condições da crise internacional. A crise aludida aqui é resultante do primeiro choque do petróleo (1973) e das dificuldades norte-americanas advindas da guerra do Vietnam. O governo Geisel nesse tempo rompeu o famoso Acordo Militar com os EUA e iniciou uma política externa mais independente, com uma aproximação comercial mais intensa com a Alemanha Federal e com o Japão. Com a primeira foi assinado um acordo para construir no Brasil usinas atômicas e, com o segundo, obteve-se recursos para grandes projetos de mineração, como o Carajás. O II PND e o POLAMAZÔNIA causaram enorme efeito estruturante na Amazônia, com a abertura de rodovias, como as BR 174 e Perimetral Norte, e a implantação de projetos de mineração e a hidrelétrica de Tucuruí. Seus efeitos foram visíveis no então território de Roraima, cuja população teve aumento expressivo entre 1970-1980. Após 1979 (BECKER, 1995), com o segundo choque do petróleo e a crise da dívida que se alastrou desde os EUA e promoveu a alta dos juros das dívidas do Terceiro Mundo, houve o refluxo No início da década de 1980, as crises e a inflação resultante afastaram a classe média do governo, que teve que fazer concessões, promover a abertura política e valorizar as elites políticas do Norte e Nordeste, mais fiéis e dependentes. Um III PND, de acordo com Brum (1993, p. 225-227), refletiu as dificuldades do período e teve muita retórica e pouca objetividade e resultados. A política de Estado intervencionista, de inspiração keynesiana, esgotou-se, dando lugar ao neoliberalismo anti-estatista na década seguinte. O governo que se 68 seguiu, o de João Batista Figueiredo (1979-1985), marcou o fim do regime militar com aumento da resistência da sociedade civil, que exigiu eleições diretas e o fim do autoritarismo. Tal fim se dá em 1985, com a eleição de candidato da oposição à presidência e eleições diretas para governadores. Foi o início da “Nova Republica”, com dois anunciados compromissos que identificam desejos e necessidades da sociedade civil: a “[...] remoção do entulho autoritário [...]” e resolução de problemas da economia como a inflação (JOFFILY, 1998, p. 243). Em 1988 foi aprovada uma Constituição que não só devolveu a autonomia aos estados, como criou três novos: Amapá, Tocantins e Roraima. (BRASIL. Constituição, 1988, art.14, do Ato das Disposições Transitórias). Começava desse modo, um novo tempo para o Brasil e para a Amazônia, marcado logo após pelo fim da “guerra fria” e, principalmente (ALTVATER, 1995), pela “nova ordem mundial”, ditada pelos EUA, a qual se impôs desde o início da década de 1990. 2. 4. 3 1985-2000: o fim do autoritarismo e o fortalecimento dos grupos regionais Mesmo com o fim do autoritarismo, as estruturas burocráticas e órgãos técnicos nacionais e regionais, bem como todo o mecanismo de incentivos fiscais e de crédito permaneceu e até em alguns casos foram ampliados. A estrutura militar nas fronteiras não se alterou e buscou-se mesmo seu fortalecimento, como exemplifica a instituição do Projeto Calha Norte (PCN) (BRASIL, PROJETO..., 1985). No entanto, com a descentralização garantida pela nova Carta Magna, grupos, oligarquias ou elites, os detentores do poder político local e regional, têm sua força aumentada e, farão uso de seus privilégios antes contidos pela centralização (BUNKER, 1985; COSTA, 1992; FERNANDES, 1999). Do mesmo modo, os governos estaduais, principalmente os dos novos estados da Amazônia, assumirão o discurso do desenvolvimento, direcionando recursos para a infraestrutura de energia e transportes e incentivo a grupos empreendedores. Questões cruciais como a da posse e propriedade da terra, não são resolvidas, apesar das promessas oficiais contidas no Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e da criação de uma estrutura burocrática tão grande quanto ineficiente. Ante a fraqueza e indecisão de um governo que lutava para manter sua legitimidade, diversos grupos de pressão, como a União Democrática Ruralista (UDR) e outros, organizam-se em defesa de seus 69 interesses. Nessa perspectiva, eles entram em choque com comunidades indígenas, lideranças camponesas e religiosas e instituições ligadas à ecologia. A Constituição de 1988 teve um papel estruturante no novo mapa do poder regional e local, pois entre outras medidas, garantiu o repasse de recursos aos estados e municípios, sendo que “A triplicação da fatia municipal nos gastos públicos levou à criação de mais de mil novos municípios para receber transferências” (GALL, RICUPERO, 1997, [n. p.]). Ocorreu também que: “Os poderes judiciários e legislativos dos governos federal e estaduais concederam-se generosos aumentos de salários e aposentadorias”. A mesma fonte (GALL, RICUPERO, 1997) informa que a folha de pagamentos do governo federal diminuiu muito desde 1985, enquanto estados e municípios “contratavam agressivamente”. A descentralização, característica do Estado federal representativo proporciona entre outras coisas a multiplicação dos centros de poder, a ponto de alguns estudiosos perguntarem se não há o risco de se criar uma ilusão de democracia enquanto na realidade terse-ia em vez de federação uma “aliança de oligarquias” (DALLARI, 1986, p. 72-76). Ao afirmar que em grande número de estados brasileiros é mais evidente que grupos oligárquicos e outros dominem, enquanto promovem o respeito às formalidades características de uma democracia Dallari, (1986, p. 73) salienta que nesses estados: Existem famílias ou grupos de famílias que exercem férrea dominação política, econômica e social. Nesses Estados-membros, são cumpridas as formalidades democráticas, realizam-se eleições com sufrágio universal e voto secreto, mas tudo se passa debaixo da vigilância e do controle firme dos oligarcas, de tal modo que as manifestações oposicionistas atingem apenas aspectos exteriores e não afetam o poder de comando. Para que haja o domínio de famílias ou grupo de famílias que formam uma oligarquia, é necessário decorrer um certo tempo, com certeza não inferior a uma geração. As transformações ocorridas no período 1964-1985, apenas duas décadas, foram tão intensas a abrangentes que permitiram a ascensão de diversos grupos emergentes, principalmente regionais e locais, que, no entanto, não poderiam ser identificados como oligarquias. Há que se considerar, também, o fato que a redemocratização realinhou forças antigas e novas, por vezes de maneira muito fluida e temporária, tornando difícil a classificação em grupo desse ou daquele tipo. De todo modo, são perfeitamente identificáveis os grupos de interesse e de pressão mais atuantes em novos espaços de poder, como nos estados criados em 1988. 70 O estado de Roraima é um exemplo da inexistência de oligarquias e forte presença de grupos mais recentes. As famílias tradicionais, ligadas principalmente à pecuária, jamais exerceram um poder total, sendo no século XIX e metade do XX desafiadas pelos comerciantes de Manaus. Em 1943 (FREITAS, 1997; OLIVEIRA, 1991), com a criação do território do Rio Branco, foi nomeado um governador militar, seguido por políticos designados por influencia de uma oligarquia do Maranhão. De 1964 em diante, a Aeronáutica designou diversos governadores e montou uma burocracia que passou a dominar todos os campos, com exceção do comércio, em mãos de negociantes do Ceará. A primeira eleição no estado, em 1990, é um retrato dos grupos que estavam no comando ou em gestação: o governador e o vice-governador eleitos eram militares da reserva, oriundos ambos de Pernambuco; os três senadores eram igualmente de outros estados, bem como todos os oito deputados federais e um terço dos estaduais. Um senador eleito era ex-governador e militar; outro era médico, a terceira, a esposa do governador, vinda do Ceará (OLIVEIRA, 1991). Um dos candidatos derrotados ao Senado era de São Paulo e outro de Alagoas, enquanto o único representante da terra ficou em sexto lugar (SILVA JR., 1994). O candidato derrotado ao governo do estado era ex-governador, pernambucano, antigo presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), sendo que sua esposa foi eleita para a Câmara Federal (OLIVEIRA, 1991). Posteriormente ele seria senador e ela seria eleita prefeita da capital, Boa Vista, em duas ocasiões. Chama a atenção a origem profissional dos políticos eleitos em 1990, o que se repetiria nas eleições legislativas posteriores. Os pecuaristas sempre elegem alguns candidatos, mas a maioria é formada por técnicos que pertenceram ou pertencem a quadros burocráticos militares e civis, havendo sempre representantes, formais ou não, das Federações da Agricultura e do Comércio, do Sindicato de Garimpeiros ou de Madeireiros. Atualmente, outros grupos organizados, como os indígenas, estão elegendo representantes no legislativo e até em algumas prefeituras municipais. Não se verifica, no entanto, a existência de “oligarquias”, bem como “elites”, conforme a literatura política já comentada. 71 2. 5 O ESTADO E A GEOPOLÍTICA É inegável o peso do pensamento da geopolítica na política nacional brasileira, principalmente no período do Estado Novo e entre 1964-1974, já no regime militar. Seu papel tem sido evidenciado por autores como Becker (1990; 1995), Becker, Egler (1994), Gall (1977), Santos (1996), Schwartzman (1982), Skidmore (1978), Stepan (1971), Vesentini (1987) e Visentini (1995). Historicamente, os estudos de geopolítica e sua aplicação ganharam espaço após os trabalhos do geógrafo alemão Friederich Ratzel (1844-1904), sobre a relação Estado-espaço. A expressão, no entanto, é atribuída como criada pelo sueco Rudolf Kjellén (1846-1922). A partir dos escritos desses dois pensadores e em razão principalmente das divisões e rivalidades políticas entre as grandes potências, não resolvidas com a Primeira Guerra, surgiram verdadeiras “escolas” de geopolítica, absorvendo doutrinas políticas anteriores ou estabelecendo projetos para planos nacionalistas de dominação ou de defesa. Assim, nomes como Alfred T. Mahan (1840-1914), Halford Mackinder (18611947), e Karl Haushofer (1869-1946) tornaram-se mundialmente conhecidos. Mais recentemente, após a Segunda Guerra, com a Guerra Fria, a cena é dominada pelas idéias de Nicholas Spykman (1893-1943), de Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski. Os três últimos, principalmente Spykman, influenciaram as diversas correntes e ações geopolíticas na América Latina, principalmente no Brasil, na Argentina, no Chile e no México. No Brasil, os precursores da geopolítica, atuantes desde os anos de 1920 e 1930, foram Everardo Backheuser, Cassiano Ricardo e Mário Travassos (Mattos, 1977). Mas o pensamento geopolítico brasileiro amadureceria com a Escola Superior de Guerra, fundada em 1949, e seu nome se confundiria com o seu teórico mais conhecido: o general Golbery do Couto e Silva. No Chile, Augusto Pinochet Ugarte, que chegou à presidência do país em 1973, destaca-se com trabalhos sobre a matéria. Na Argentina, foram os militares da Marinha que desenvolveram um pensamento e uma estratégia geopolítica, valorizando as vantagens de seu país deter o controle da bacia do Prata e a ligação ao sul do Atlântico com o Pacífico. Diferentemente dos pensadores europeus, que tinham preocupação com suas fronteiras e alianças e dos estadunidenses, que pensavam em termos de como conseguir e manter uma hegemonia mundial, na América Latina predominava a preocupação com três pólos geopolíticos: as bacias do Orinoco, do Prata, e da Amazônia. Tratava-se, na prática, de um antigo problema que vinha dos tempos coloniais e que marcaria praticamente todos os 72 conflitos de natureza geopolítica no continente, principalmente entre Brasil e Argentina (BANDEIRA, 1995; CASTRO, 1992). O mesmo envolvia, como resultado da evolução tecnológica e do processo político, assuntos que abordavam a temática da abertura de comunicações terrestres com o Pacífico e o Caribe. O pensamento geopolítico tem como pressupostos, de acordo com Becker (1995, p. 271-272): “[...] o Estado como a única unidade política do sistema internacional, e o território como fundamento do poder nacional na medida em que permite o desenvolvimento autárquico necessário ao exercício do poder mundial”. Becker (1995) indica ainda, que a origem da prática estratégica do poder remonta a Heródoto (446 A. C.) e está ligada de maneira indissolúvel à Geografia e, que na geopolítica, é ao espaço que se atribui o poder, particularmente ao meio físico. Em suma, a geopolítica é determinista atribuindo valor estratégico a algumas áreas do globo. Isto remete a um pequeno resumo de cada teoria clássica. Segundo Tosta (1984, p. 14-16), Kjellén percebeu que o Estado era reconhecido apenas “por dentro dele mesmo” e que poderia ser examinado, com maior proveito, “de fora”, em atuação recíproca com os demais Estados. A partir daí, o autor desenvolveu sua teoria orgânica do Estado, na qual este, para crescer, necessita expandir seu espaço. Para Mafra e Abreu (1977), Kjellén adotou aqui uma concepção de Ratzel, concebendo o Estado como um ser biológico e, ampliando o conceito do organismo vivo, introduziu a idéia de nacionalismo, que daria ao mesmo uma característica diferencial. Para Becker (1995, p. 277), Kjellén, ao considerar o Estado como uma forma de vida que para crescer tem que se expandir, levou ao auge o determinismo geográfico e a legitimação da prática estratégica do poder do Estado. Este Estado orgânico, cuja gestação, nascimento, infância, juventude, senectude e desaparecimento tem na sua fronteira (MATTOS, 1975, p. 4), “[...] o limite periférico do organismo estatal”, isto é, sua pele. De acordo com Mafra e Abreu (1977, p. 55), no fim do século XIX, vivia-se a fase áurea da política mundial de ‘equilíbrio do poder’, ou da “paz britânica”, quando a Inglaterra dominava os mares e as grandes potências não guerreavam entre si. O equilíbrio foi rompido com o crescimento alemão, estadunidense e japonês, enquanto os antigos impérios coloniais decaíam. Kjellén, contemporâneo da Primeira Guerra, de acordo com os mesmos autores, teria previsto um possível crescimento futuro do poder terrestre alemão, sucedendo possivelmente a Inglaterra como a maior potência mundial. 73 Mackinder, geógrafo e professor de Oxford, autor de O pivô geográfico da história (1904), adquiriu notoriedade mundial, incluindo o conceito de “Heartland”. Este, situado na região central da Eurásia, seria o centro geopolítico do mundo, a “Ilha Mundo” (CASTRO, 1980). Para Mackinder (BECKER, 1995, p. 278-279), diferente do que apresentavam os mapas tradicionais, o mundo estaria dividido em duas unidades: a Ilha Mundial e o crescente externo ou insular. A primeira seria constituída pelo “Heartland”, equivalente ao continente eurasiano e às regiões costeiras ou crescente marginal interno. A segunda compreenderia o crescente externo ou insular, abrangendo as áreas marítimas da América, África ao sul do deserto do Sahara, a Austrália, a Grã-bretanha e Japão. No Mapa 1, a seguir, tem-se a concepção de Mackinder espacializada. Mapa 1 - O mundo de Mackinder, em 1904. Fonte: Becker, 1995, p. 278. Ainda conforme esse autor, quem dominasse o “Heartland”, com seus vastos recursos (CASTRO, 1980, p. 119), poderia construir frotas e o império do mundo se acharia em sua mira. Para Becker (1995, p. 279), a importância do “Heartland” poderia ser resumida na sua célebre frase: “Quem dominar o leste da Europa domina o Heartland, quem dominar o Heartland dominará a Ilha Mundial e quem dominar a Ilha Mundial dominará o mundo”. Todavia, para Castro (1980, p. 119), Mackinder, sendo inglês, manifestava o receio de uma aliança da Alemanha com a Rússia, mas era possível deter esse imenso poder, “[...] caso 74 venha a China a ser organizada pelo Japão para derrotar o império russo e conquistar seu território”. Isto poderia “[...] se constituir [...] num perigo amarelo para a liberdade do mundo, porque justamente com isso, estaria subtraída uma frente marítima aos recursos do grande continente”. Sua influência no pensamento geopolítico foi marcante e, embora atualmente (BECKER, 1995, p. 279) se considere que errou ao não perceber o poderio estadunidense na sua distribuição espacial, suas teses pesaram para que após a Primeira Guerra se separasse a Alemanha da Rússia por um “cordão sanitário” de Estados diversos. Pouco antes de Mackinder, de acordo com Becker (1995, p. 280), houve quem reconhecesse as desvantagens da continentalidade. O almirante estadunidense Mahan, conhecedor da história do império britânico, foi o inspirador da grandeza marítima dos EUA ao defender a idéia da necessidade de seu país ser dotado de uma forte armada nacional ocupando o Atlântico e o Pacífico, e adquirir bases de apoio no mundo todo. Segundo Tosta (1984, p. 39), Mahan observa que a expansão política, econômica e cultural se constitui no principal fundamento da grandeza nacional e que um governo, para apoiar um programa de expansão de uma nação, deve ter acesso à riqueza acumulada. Este acúmulo depende de um comércio exterior intenso e crescente, que só pode ser mantido por uma grande marinha mercante. Mais próximo de Mackinder, Haushofer, militar alemão, também se tornaria célebre, por sua defesa do “espaço vital” para o Estado (TOSTA, 1984) e, como formulador da teoria do poder terrestre, influenciado por Kjellén, pelo poder marítimo inglês e por Mackinder. O geopolítico alemão (BECKER, 1995, p. 279) idealizou ainda as denominadas Pan-regiões, cuja complementaridade de recursos garantiria sua autarquia. Graças ao uso de algumas de suas concepções pelo nazismo expansionista (TOSTA, 1984), seu nome ficou associado a esse, tanto ou até mais que a teoria do espaço vital de Kjellén (CASTRO, 1980, p. 119). O mesmo ocorreu com a expressão “geopolítica”, tornada conhecida graças à divulgação intensa das atividades do Instituto de Geopolítica de Munique, presidido por ele e freqüentado até por governantes alemães de sua época. Após a Segunda Guerra, o continente europeu perdeu seu papel de supremacia mundial, ficando preso a dois sistemas de poder por um “cinturão do diabo”, na concepção de Haushofer (CASTRO, 1980, p. 122). De acordo com a mesma autora, Haushofer considerava esse como constituído por Estados que não passariam de peões num jogo de xadrez, comandados por duas das maiores potências vencedoras. Em 1945, foi inaugurado o tempo da 75 hegemonia bipolar, dos EUA e União Soviética, que se impôs por mais de quatro décadas. Entretanto, antes mesmo do término do conflito, em 1944, uma nova teoria geopolítica era exposta e serviria de base a muitos outros estudos e ações governamentais: a de Nicholas Spykman. A geopolítica de Spykman, conforme Castro (1980, p. 122), é acima de tudo um estudo demonstrativo de que os EUA poderiam ter um papel na história semelhante ao da Inglaterra em tempos anteriores: o de dominância global. Spykman, professor de Ciência Política de Yale, era, segundo Mello (1999, p. 93-133), alinhado com o pensamento político estadunidense “realista”. Isto significa que não comungava com os defensores da teoria do “esplêndido isolamento” anteriormente defendido e aplicado pelo presidente Wilson, atualizado por “idealismo” no período entre guerras. Ainda de acordo com Mello (1999, p. 94), o avanço do nazismo e do militarismo japonês colocou em lados opostos os “isolacionistas” e os “intervencionistas”, num debate que “[...] modelou fortemente o perfil intelectual de Spykman”. Assim, diz o autor, ele se tornou adepto do realismo em relações internacionais e do intervencionismo em política externa americana. Ao escrever suas principais idéias em tempo de guerra, o realismo de Spykman o leva a ver o sistema internacional de uma forma que se assemelha à visão hobesiana do “estado de natureza”, matizado como potencialmente belicoso e anárquico. Para Mello (1999, p. 96), além de realista, o geopolítico estadunidense é também um realista maquiavélico, pois as relações entre Estados soberanos se pautam numa relação de poder, que visa em última instância à segurança e à autopreservação destes. Estas compreenderiam a manutenção de sua integridade territorial e a preservação da independência política. Em sua obra mais conhecida, EUA frente al mundo (1944), escreveu, de acordo com Mello (1999, p. 96-97): Na sociedade internacional são permitidas todas as formas de coerção, inclusive as guerras de destruição. Isso significa que a luta pelo poder se identifica com a luta pela sobrevivência; assim sendo a melhoria das posições relativas de poder converte-se no desígnio primordial da política interior e exterior dos Estados. Tudo o mais é secundário porque, em última instância, somente o poder permite realizar os objetivos da política exterior. Poder significa sobrevivência, aptidão para impor a própria vontade aos demais, capacidade de arrancar concessões dos mais débeis. Quando a última forma de conflito, é a guerra, a luta pelo poder se converte em rivalidade pelo poderio militar, em preparação para a guerra. 76 Em termos espaciais, o realismo do pensador não revelava menos agressividade. Os EUA deveriam conter qualquer agressão ao seu poderio não dentro de seu território, mas numa linha de defesa do outro lado dos oceanos Atlântico e Pacífico. Ao aproveitar parte do raciocínio de Mackinder, como a unicidade da superfície dos mares (Mello, 1999, p. 99), e ao levar em conta fatores novos, como os avanços tecnológicos utilizados na guerra de então, como a aviação de longo alcance, Spykman concebeu o fim do “esplêndido isolamento” dos EUA, mais comumente referidos como América (sic). Ele identificou mudanças na geografia mundial com a abertura dos canais de Suez e do Panamá e, admitiu a partir daí, a existência de cinco massas terrestres ou grandes ilhas continentais. Estas seriam: a América do Norte, a Eurásia no Hemisfério Norte e, a América do Sul, a África e a Austrália no Hemisfério Sul. Assim, a “Grande Ilha” de Mackinder foi substituída por duas ilhas continentais, uma em cada hemisfério. Mello (1999, p. 100-101) esclarece que, diferente dos geopolíticos e geógrafos de então, Spykman utiliza uma projeção polar em seu mapa, apresentando o mundo a partir de uma visão centrada no Ártico. Nessa projeção, ele mostra as posições geográficas de sua teoria conhecida como do “Rimland”, ou “região das fímbrias” (TOSTA, 1984), em oposição à do “Heartland” de Mackinder. As Fimbrias, como identifica Becker (1995), são as terras peninsulares da Eurásia, onde se concentram a população, os recursos e as linhas marítimas. Dos três centros de estrutura e distribuição de poder identificados pelo geógrafo e geopolítico estadunidense – região atlântica da América do Norte, região atlântica da Europa e a região costeira do Extremo Oriente, dois estariam no “Rimland”. De acordo com Becker (1995, p. 280-281), Spykman forneceu, com sua teoria destinada a conter a Alemanha e o Japão, os subsídios para a política estadunidense de contenção da União Soviética na Guerra Fria. Tosta (1984) afirma que Spykman temia uma Europa unida, capaz de alterar a importância americana como potência atlântica, e defendia a idéia de estabelecer ali um poder equilibrado, não um poder integrado. Outra preocupação era uma China moderna, capaz de ameaçar o Japão e as potências pró-ocidentais da região. No Mapa 2, que segue, tem-se a localização da Heartland de Spykman. 77 Mapa 2 - A política de contenção americana, baseada em Spykman. Fonte: Abreu, Mafra, 1977, p. 67. Mapa 2 - A política de contenção americana, baseada em Spykman. Fonte: Abreu, Mafra, 1977, p. 67. Quanto ao Hemisfério ocidental, onde se localiza o Brasil, Spykman, ainda de acordo com Tosta (1984, p. 80), afirma que os EUA poderiam exercer efetiva pressão sobre a parte setentrional da América do Sul. Por sua vez, Gall (1978, p. 101) registra um pensamento de Spykman, às vésperas da Segunda Guerra, em que o estrategista afirma que, apesar de o Brasil ser maior que os EUA, não tem como ser uma potência militar. De acordo com seu entendimento, isto se explica pelo fato do território brasileiro ser composto, na sua maior parte, por florestas tropicais e por ter uma faixa costeira muito estreita, onde se concentra sua vida econômica, e há, também, falta de recursos energéticos e produtividade econômica. No pós-guerra, denominou-se “Política de contenção” ao conjunto de esforços dos EUA para deter avanços que ameaçavam, por parte da União Soviética e seus aliados, os valores do “Ocidente Cristão”. Neste contexto, surge o apoio às ditaduras latino-americanas, na maioria marcadamente anticomunistas, e o desenvolvimento de um pensamento geopolítico baseado em premissas como a necessidade de fortalecer o Estado Nacional contra “antagonismos” internos e externos. No afã de emular esses valores, o autoritarismo se encontra com a idéia da necessidade de desenvolvimento, continuando, na verdade, algo já presente pelo menos na década de 1930. 78 3 O ESTADO NACIONAL BRASILEIRO E A AMAZÔNIA O controle territorial é uma ação imperial, existente já no estado tradicional, que antecedeu o absolutista da Idade Moderna, segundo Claval (1979, p. 107). Indo mais além, Schwartzman (1982, p. 26), afirma que “[...] as nações são entidades de base territorial e por isso os processos políticos devem ser entendidos em termos de sua distribuição espacial”. Em termos de Brasil, essa espacialidade poderia ser compreendida como dividida entre litoral e interior, cabendo um lugar especial, fora desta classificação, a Amazônia. Disputada desde os tempos coloniais pelas potências européias, principalmente Espanha e Portugal, a Amazônia passou a compor partes marginais de seus territórios, depois da independência dos países sulamericanos. O avanço do capitalismo na segunda metade do século XIX, com a valorização de matérias-primas, como a borracha, intensificou o interesse por essa imensa região, tornando-a, segundo Becker (1995; 1998), uma fronteira de recursos e de acumulação. Identificado com essa visão, Altvater (1995) afirma que ela forma ainda uma fronteira do poder militar e analisa a Amazônia brasileira na década de 1970, como o lugar onde, pela intensificação da migração humana, se pretende eliminar a “desordem social” em outras partes do território nacional. Becker, Egler (1994, p. 149-150), apontam na mesma direção, afirmando que sua integração era considerada prioridade máxima pelos governos militares, e além das razões de acumulação e legitimação, tem-se como objetivo “[...] promover o ‘equilíbrio geopolítico’ interno e externo, oferecendo uma solução completa para os problemas de tensão social na periferia e para o crescimento no Centro, como também servindo para incrementar a predominância do Brasil na América do Sul”. Entretanto, há fatos e questões outras que merecem ser aqui levantados, tais como a antiguidade histórica da ocupação da Amazônia, o interesse em sua incorporação aos centros mais dinâmicos da economia e garantia de sua defesa militar e melhor aproveitamento de seus recursos naturais. Todos levam à necessidade de se pensar sobre as sociedades préexistentes, sejam elas indígenas ou não. O interesse pela região não nasceu com os militares pós-1964. Ela está presente nas preocupações do governo português desde o século XVII, na extensa literatura sobre a época da borracha, e, principalmente, nas teses geopolíticas de geógrafos brasileiros inspirados em Ratzel e Kjellén, desde os anos de 1920. Esses 79 intelectuais, por sua vez, forneceram subsídios para a atuação do Estado Novo e mesmo após a redemocratização de 1946. Entre 1946 e 1964 não houve um hiato, pois a estrutura burocrático-administrativa do Estado brasileiro não foi de todo modificada, nem o pensamento geopolítico brasileiro, que ganhou outras cores com a Guerra Fria, mas em termos de visão territorial permaneceu, como demonstra Vesentini (1987), analisando as origens de Brasília. É fundamental, ainda verificar que há sociedades amazônicas estabilizadas, oriundas de processos político-econômicos que evoluíram desde o século XVIII. Uma delas, um foco de atenção especial aqui, tendo como lócus os campos do Rio Branco, hoje Roraima, foi envolvida em todas as fases históricas de ocupação da região, modificando-se estruturalmente a partir de 1970. 3. 1 O ESTADO E A INTERVENÇÃO NA AMAZÔNIA: ANTECEDENTES HISTÓRICOS Desde o século XVI, época de domínio do Estado absolutista e mercantilista, o projeto colonial português na América e outras partes do mundo enfrentou a oposição de competidores europeus, principalmente da França, Inglaterra, Holanda e Espanha (CALMON, 1971; FARAGE, 1991; MATTOS, 1980; PRADO JR., 1982). Schilling (1978), considera a estratégia portuguesa como bastante avançada para seu tempo, pois no século XVI já se havia estruturado um esquema de exploração conjunta e combinada de quatro continentes. Portugal, afirma o autor, negociava com especiarias da Ásia, com escravos africanos e implantou a produção de açúcar no Brasil, vendendo-o para os europeus. O papel pioneiro desempenhado por Portugal nesse comércio é comentado também por Prado Jr. (1982, p. 86-95) que destaca duas necessidades dos portugueses: povoar e organizar a produção. Já no século XIV, afirma Prado Jr. (1982, p. 84), o comércio europeu passou por uma revolução, promovida pelo avanço nas técnicas de navegação, tendo a rota marítima que ligava o Mediterrâneo ao mar do Norte, passando pelo estreito de Gibraltar, suplantado a rota terrestre que passava pela Itália, os Alpes e vales renanos. Isso beneficiou, diz a mesma fonte, os países litorâneos ocidentais, como Holanda, Inglaterra, a França e a península Ibérica, formando um equilíbrio que se firma já no século XV e tendo como conseqüência mais distante a expansão européia ultramarina. Para Novais (1987, p. 47-48), há uma outra 80 distinção da exploração comercial anterior, pois até então a atividade econômica colonial se dava “nos limites da circulação de mercadorias”, e com a grande expansão: “[...] a colonização promoverá a intervenção direta dos empresários europeus no âmbito da produção”. É nesse tempo que Portugal, antes mais ocupado com as lutas contra os árabes na península Ibérica, se transforma em país marítimo, aponta Prado Jr. (1982, p. 82) pois “[...] desliga-se, por assim dizer, do continente e volta-se para o oceano que se abria para o outro lado, não tardará, com suas empresas e conquistas no ultramar, em se tornar uma grande potência colonial”. Para Novais (1987, p. 48), essa colonização da época moderna, inaugurada pelos portugueses, dá-se por meio da agricultura tropical, tornando possível valorizar as novas terras descobertas num quadro de competição entre as diversas potências européias. Outra vantagem portuguesa, comenta Schilling (1981, p. 18), seria uma percepção mais global do espaço americano, pois: [...] fica evidenciada na intenção de estabelecer os limites atlânticos de seu império americano: a bacia do Amazonas, no norte, e a da Prata, ao sul. Dominando os dois únicos caminhos naturais de penetração utilizáveis na época, os portugueses teriam o controle de toda a América do Sul. Esse controle foi disputado por séculos, principalmente com a Espanha e, teria seqüência após o fim do período colonial e as independências do Brasil e seus vizinhos. Como resultado das disputas com rivais europeus, no início século XVII, em 1616, na entrada do rio Amazonas, na Amazônia oriental, os portugueses construíram o forte do Presépio, que deu origem à cidade de Belém9. No entanto, seu avanço para o interior da Amazônia apresentava forte resistência dos índios, principalmente os da ilha de Marajó, o que só foi amenizado pela atuação dos jesuítas (CALMON, 1971; FURTADO, 1981). Em 1657 os jesuítas iniciam uma ação evangelizadora mais efetiva no coração da Amazônia, a partir da missão pioneira de Tarumá, na conjunção do rio Negro e do Solimões (FURTADO, 1981). Foram seguidos por outras ordens, como os franciscanos, mercedários e carmelitas. Conforme Cardoso (1990); Farage (1991), iniciava-se o ciclo das “drogas dos sertões”, isto é, da coleta de recursos florestais, que marcaria a economia colonial amazônica, uma vez que foi 9 Na verdade, era o tempo da união das coroas ibéricas (1580-1640), quando Portugal estava forçosamente unido à Espanha. Os inimigos na ocasião eram os franceses, que ocuparam o Maranhão, fundando São Luis, hoje a capital daquele estado. 81 impossível reproduzir aqui o sistema de plantation, em vista das dificuldades como o isolamento geográfico, falta de capital e de investimentos da metrópole. Na metade do século XVII Portugal vivia um momento de clara decadência, pois tinha perdido, durante sua união com a Espanha (1580-1640) parte considerável de seu império colonial na África e Ásia para seus concorrentes, principalmente os holandeses (SILVA, 1990). Estes fundaram a colônia de Suriname, que abrangia também o que hoje forma a República da Guiana e, através dos rios Tacutu e Branco, estabeleceram relações comerciais com índios e brancos no rio Negro. Segundo Farage (1991, p. 75-77), isto preocupou as autoridades portuguesas de Belém, mais temerosas com a entrada de manufaturados e a captura de índios em seu espaço colonial do que propriamente com uma invasão. A expulsão dos concorrentes holandeses não apresentou grandes problemas, até porque a Inglaterra tomou pela força a maior parte da antiga possessão holandesa, a atual Guiana, vizinha da então “Guiana portuguesa”, hoje Roraima. Nas constantes lutas entre nações européias de então, Portugal e Inglaterra quase sempre estavam do mesmo lado, por laços de casamentos ou alianças econômicas e em campo oposto à Espanha. Assim, a ameaça às fronteiras, inclusive no extremo Norte continuou, sendo mais de uma vez repelidas expedições castelhanas com forças oriundas de Belém. Esses movimentos tornaram os campos do rio Branco conhecidos e a partir daí também percorridos por inúmeras expedições de resgate de índios que visitavam praticamente todos os afluentes do rio Negro, o que levou os padres carmelitas a instalar ali algumas missões (BRASIL, Instituto..., 1957, p. 45). Essa medida afastou dali os espanhóis, mas estes, empregando em seu avanço também jesuítas, entraram em atrito com os portugueses no Alto Amazonas e Alto rio Negro. Na segunda metade do século XVII e parte do seguinte, a falta de braços para a lavoura e outros serviços na Amazônia oriental deu origem a outra economia: a da caça ao índio, principalmente no rio Negro e seus afluentes. Sertanistas portugueses sediados em Belém e Maranhão entravam em constantes atritos com religiosos, principalmente os jesuítas (REIS, 1989). Mais que uma disputa por mão-de-obra (FURTADO, 1987, p. 129), era uma luta por dois sistemas incompatíveis: o extrativismo e a agricultura escravista, ficando esta confinada, pelas dificuldades enfrentadas, inclusive a de adquirir escravos africanos, ao Maranhão e às áreas mais próximas do delta amazônico. Ambos os sistemas dependiam inteiramente dos índios, como identifica Farage (1991, p. 26): “Dos índios dependiam não só 82 a extração das ‘drogas do sertão’, como também todos os outros serviços voltados para a vida cotidiana dos colonos: eram os remeiros, os guias, os pescadores, os caçadores, carregadores, as amas-de-leite, as farinheiras [...]”. Mas só no governo do Marquês de Pombal, ministro português (1750-1777), é que maiores atenções se voltam para a Amazônia e medidas mais efetivas vão ser tomadas para desenvolvê-la, no sentido mercantilista, e protegê-la de invasões. O projeto pombalino incluiu segundo Farage (1991), a expulsão das ordens religiosas, a instituição da Companhia de Comercio do Maranhão e Grão-Pará, e a proibição de escravização dos índios. Calmon (1971), registra que foi promovido, também, o “fechamento” dos caminhos de entrada para a Amazônia – os rios -, por meio de construção de fortalezas. As preocupações pombalinas com a Amazônia eram também parte de uma outra mais geral: o contrabando no comércio, praticado nas fronteiras da colônia, fosse na Amazônia ou no sul brasileiro, pois: [...] na primeira metade do século XVIII o comércio de metais americanos formou um grupo poderoso de comerciantes portugueses reunido às numerosas casas comerciais britânicas e um setor de comerciantes portugueses, os ‘comissários volantes’. Esse grupo detinha o controle sobre as linhas de crédito comercial e se encarregava da intermediação do comércio com o resto da Europa. Ao grupo havia se associado também à Companhia de Jesus. Privilegiados pela isenção fiscal desde o século anterior, os jesuítas negociavam essa prerrogativa e outros serviços com as casas importadoras/exportadoras lisboetas (MACHADO, 1999, p. 14). A mesma autora (MACHADO, 1999), citando Maxwell (1997) revela que Pombal denunciou a todos como contrabandistas, acusando-os de “[...] subverterem os interesses nacionais de Portugal”, além de acabar com a Mesa do Bem Comum dos Mercadores, em 1755. Nessa época, já havia crise na mineração do centro-sul brasileiro, as arrecadações do tesouro português diminuíam e foi anulado o Tratado de Madrid. Nesta direção, conforme Machado (1999), compreende-se que o papel das fortificações serviu mais para evitar o contrabando e marcar a presença do Estado colonial português, controlando o movimento de comunicação nas fronteiras. A Amazônia tinha se tornado, aos olhos do poderoso ministro Pombal (FURTADO, 1981) uma colônia deficitária, onde em vez de uma agricultura de exportação, capaz de fortalecer a economia real, predominava o extrativismo. No final do século XVIII, foi criada a capitania de São José do rio Negro, que daria origem ao atual estado do Amazonas. Um dos governadores dessa capitania, Manuel Lobo D’Almada, geógrafo, membro da comissão de limites instituída após o Tratado de Santo 83 Ildefonso entre Portugal e Espanha (1777), revelou-se um administrador cuja ação realizadora chegou a causar ciúmes e intrigas em Belém, capital do então estado do Grão-Pará10 (REIS, 1989). D’Almada providenciou a edificação do forte de São Joaquim, na conjunção do rio Urariquera com o Tacutu, onde estes formam o rio Branco e introduziu o gado bovino nos campos próximos (REIS, 1989). Essas duas medidas vão proporcionar a fixação definitiva da população branca, de cultura européia na região. A seguir, vê-se o Mapa 3, indicativo da economia colonial brasileira, em que o vale do rio Branco aparece destacado. Mapa 3 - Produção colonial no Brasil, por região. Fonte: Becker, Egler, 1994, p. 101. 10 A partir de 1621, ao tempo da união das coroas ibéricas (1580-1640), a América portuguesa foi dividida em dois “Estados”: o do Brasil e o do Maranhão, que posteriormente teve parte desmembrada com a denominação de Grão-Pará. Este, a grosso modo, abrangia a Amazônia brasileira de hoje. 84 D’Almada introduziu no vale do rio Negro a agricultura do café, do anil, que chegou a ser exportado para Portugal, do algodão, da salsa e do arroz. Este último, plantado no rio Branco, chegou a abastecer toda a capitania (REIS, 1989). Inúmeros pesqueiros foram também instalados, mas, no entender de Reis (1989, p. 143), a expectativa das autoridades era a criação de gado nos campos do rio Branco, pois a falta de carne e couros era “[...] um problema que, ao lado do problema agrícola, vinha constituindo grande preocupação para as autoridades da capitania”. O valor dos referidos campos para a administração lusa pode ser representado pela preocupação com as expedições exploratórias para a instalação de fazendas, que seguiam instruções precisas da metrópole e renderam relatórios pormenorizados do governador. Num desses documentos (D’ALMADA, apud REIS, 1989, p. 144) ele acentua as vantagens do gado do rio Branco, incluindo evitar o “[...] estrago que se faz nas tartarugas, sobre as quais é tanto maior o dano que se causa, do que o proveito que se tira, [pois] de uma viração de quatrocentas tartarugas, apenas se aproveitam oitenta e às vezes menos”11. A primeira das fazendas criadas, a de São Bento, na margem esquerda do rio Branco, nasceu da iniciativa pessoal do governador, segundo Reis (1989). O comandante do forte de São Joaquim, o alferes Nicolau de Sá Sarmento, fundou a segunda fazenda, a de São José. A terceira, (REIS, 1989, p. 144-145), a única fazenda ainda existente, a de São Marcos, foi fundada por Freire d’Évora, tido como senhor de grandes posses. Com a fundação do forte de São Joaquim e a implantação das fazendas reais, os campos do rio Branco estavam incorporados ao projeto amazônico de Pombal de ocupação e domínio. A cultura do gado e a fortaleza fixaram ali um pequeno grupo de origem européia, que se impôs ao indígena e deu origem a um setor social e político de relevância no futuro. Membros do contingente militar foram casando com as índias e formando famílias, o que era facilitado pelas autoridades (SIMONIAN, 2001), enquanto os militares mais graduados, quase sempre oriundos do Nordeste, trouxeram suas famílias. Seus descendentes se tornaram fazendeiros, privatizando as terras das fazendas reais (BARROS, 1995) e, incorporando elementos chegados mais recentemente, como na passagem do século XIX para o XX, originaram grupos familiares que ainda têm projeção social em Roraima. Ocorreu um 11 Quase dois séculos após, relatórios de técnicos federais, como Cavalcanti (1949), apontariam a “insensatez” da caça predatória do mesmo animal, no rio Branco. 85 processo típico de estruturação de uma sociedade patrimonial, que será mais adiante explicado. As reformas pombalinas incluíram a expulsão dos religiosos e a entrega da administração dos aldeamentos indígenas por leigos e militares. No fim do século XVIII, os índios administrados pelos soldados do forte São Joaquim se rebelaram contra maus tratos sofridos. Muitos abandonaram as antigas missões só retornando após anistia e promessas de melhor tratamento, enquanto outros permaneceram nas florestas e montanhas. Outros ainda, como os Yanomami, que ficaram à margem do processo colonial, só manteriam contato mais freqüentes com a civilização no século XX. A economia da região (FARAGE, 1991) ficou tão desarticulada no final do século XVIII e início do XIX que a mandioca, a base da alimentação, tinha que vir de Barcelos, no rio Negro, (o que causava protestos dos administradores locais). O Estado português necessitava de gente para guardar as fronteiras amazônicas, mas não conseguia organizar ali a produção e a distribuição, embora atribuísse a si essas tarefas. Na verdade, Portugal vivia um tempo de decadência, dependente da Inglaterra para defender-se, enquanto a Europa inteira era sacudida pela Revolução Francesa e pelas guerras napoleônicas. Como resultado dessas, o próprio território português foi invadido, fugindo a corte lusa para o Brasil e apressando a independência deste, que, de acordo com Gall (1977, p. 191), já superava economicamente a metrópole. Com o advento da independência do Brasil, em 1822, a capitania de São José do Rio Negro não se transformou em uma nova província do império, como as demais – o que simboliza sua insignificância no novo Estado - e foi anexada à província do Pará ( CALMON, 1971). Este marasmo só seria quebrado após o advento da economia da borracha, depois de 1850, quando se inicia um avanço em direção aos seringais. Esse movimento, seguindo os rios amazônicos, foi feito principalmente por milhares de migrantes nordestinos, muitos deles fugindo das secas e da pobreza na sua região. O primeiro presidente da província do Amazonas, separada do Pará em 1850, Tenro Aranha, era o que se pode considerar hoje um desenvolvimentista. Conforme seu Relatório às autoridades imperiais de 1852, incentivou o cultivo da borracha, o desenvolvimento da cultura do cacau, do café e planejou para o rio Branco a introdução de criadores mineiros e gaúchos para desenvolver a pecuária. No mesmo documento, lamentava a falta de braços, principalmente de mão-de-obra especializada numa terra rica de recursos e 86 esclarece que uma pretendida colônia militar do rio Branco deve ser formada com soldados que “sejam dados à agricultura”12. O referido Relatório enumera ainda o abandono da agricultura, do comércio, a presença de bandos errantes de índios que causavam desordens no interior e da falta de tranqüilidade. Aranha, também põe fé na mineração e verberava contra os “mascates e regatões” que prejudicariam o comércio legal. Eram evidentes, na época, a questão da falta de alimentos para uma população que aumentava a cada ano em razão da expansão da extração da borracha, e a introdução da Amazônia toda no circuito da economia brasileira e mundial, simbolizada pela presença dos barcos a vapor que percorriam seus rios a partir de 1853 13 (REIS, 1989). A borracha passou, ainda no século XIX, a ser o segundo produto de exportação brasileira (FURTADO, 1981), perdendo apenas para o café do centro-sul brasileiro. Com ela, surgem os diversos agentes de um processo de transformação econômico-social e espacial, tão vigoroso quanto relativamente curta foi sua duração. 3. 2 O RIO BRANCO: UMA SOCIEDADE DE CRIADORES NA AMAZÔNIA A formação de uma sociedade rural em um espaço amplo, fruto de uma expansão para o interior tem sido estudada e comentada por muitos analistas mais recentes, como Schwartzman (1982) e Gall (1977). Este último admite a coexistência da convivência do capitalismo e democracia quando da expansão territorial para o interior, pois é este, neste caso, que subsidia ambos. Para Schwartzman (1982) a sociedade resultante nesse processo, em que há o avanço e consolidação da fronteira, pode se estruturar com fortes características de acentuada hierarquização e com base patrimonial. Baseando-se em estudos sobre o Rio Grande do Sul, Schwartzman (1982, p. 66) diz que a dominância dos portadores de status militar, mais conseguido que outorgado pelo Estado, era aceita pelo governo central, que também permitia a distribuição da terra de acordo com a influência e poder oriundo da posição conseguida. O autor afirma, ainda, que a segurança da fronteira ao sul ficou entregue aos chefes militares, pois estes eram uma garantia de força organizada quando das guerras com os países vizinhos. 12 O forte de São Joaquim data do final do século XVIII. A colônia militar referida por Aranha não inclui aquela fortaleza, mas uma outra instituição, garantidora da fronteira com a Venezuela. 13 O empreendedor brasileiro Visconde de Mauá introduziu o transporte a vapor na Amazônia em 1852 (FURTADO, 1981, p. 105). 87 Nos campos do Rio Branco, na Amazônia setentrional, uma área infinitamente menor que os espaços abertos dos pampas, uma outra sociedade, com alguma semelhança à gaúcha, surgiu durante o fim do século XVIII e o século XIX. A diferença principal é que nesse segundo caso, seus patriarcas vieram para a fronteira como militares, transformando-se depois em fazendeiros (BARROS, 1995), favorecidos pelo ciclo da borracha, arrebanhando o gado solto nas fazendas reais que vão sendo privatizadas. Com o mercado de Manaus absorvendo gradativamente o excedente da pecuária do rio Branco, as antigas fazendas vão se expandindo e se multiplicando. Uma delas, a da Boa Vista do Carmo, fundada em 1830, por Inácio Lopes de Magalhães, oficial do forte de São Joaquim e oriundo do Nordeste, daria origem à primeira cidade junto ao rio Branco (OLIVEIRA, 1991). Magalhães formou um pequeno clã, como aconteceu com os patriarcas das famílias Brasil, Motta, Souza Cruz e outras, que vão formando alianças e avançando sobre as terras indígenas e públicas. Posteriormente, já no início do século XX, os pecuaristas vão também participar da extração do ouro e de diamantes, na condição de financiadores e controlar parte do comércio com a Guiana e a Venezuela. Essa última atividade era facilitada porque muitas fazendas estavam, e estão, localizadas próximas à fronteira, onde pontificam na atualidade muitos garimpos e campos de pouso. A mais forte parece ter sido a família Brasil, que teve disputas sobre terras com a empresa J. G. Araújo, sediada em Manaus. Esta, detinha a posse de vastas áreas no território, era aviadora de extração da balata, fornecedora de víveres para as tropas e membros das diversas comissões de limites nas fronteiras, além de possuir a maior casa de comércio de Boa Vista. Institucionalmente, foi com a Constituição republicana de 1891, que promoveu a descentralização do Estado no Brasil, que as lideranças locais formalizam seus locus de poder, ocupando cargos e, no caso do rio Branco, também legalizando as terras ocupadas,14 sendo criado o município de Boa Vista do Carmo, com sede na antiga fazenda do mesmo nome. São reflexos de um novo tempo, que compreende o retorno das ordens religiosas 14 Farage (1991, p. 32) informa que o decreto nº 4 de 16 de março de 1892 do governo do Amazonas, apoiado na Constituição Federal de 1891, possibilitou a regulamentação da ocupação fundiária no novo estado federal, permitindo a expedição de títulos de terras ocupadas antes de 1889. Apoiados nessa legislação, fazendeiros do novo município de Boa Vista teriam feito cento e quatro requisições de regulamentações de terras situadas no rio Branco entre 1893 e 1900, enquanto os fazendeiros do rio Urariquera teriam requerido um total de oitenta e cinco e dezenove requerimentos eram referentes ao rio Tacutu e margem esquerda do rio Branco. Sobre a espacialidade, a autora cita o depoimento do viajante e pesquisador francês H. Coudreau (1888), o qual afirma que todas as fazendas se encontravam na margem direita do rio Branco e no Urariquera, sendo que apenas quatro fazendas existiam no rio Tacutu e margem esquerda do rio Branco. 88 européias e uma representação federal de defesa dos índios, de inspiração positivista. A sociedade local formada por fazendeiros, comerciantes e indígenas, passou, pois, a contar a partir daí, com religiosos, alguns militares do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), transformada na década de 1960 na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), além de alguns poucos ribeirinhos que se dedicavam ao extrativismo vegetal e animal no baixo rio Branco. Eggerath (1924), descrevendo a sociedade do rio Branco no primeiro quartel do século XX, registra a existência de alguns conflitos pela posse da terra e pelos direitos indígenas, tendo como centro a exploração da balata. Um prenúncio de choques nas décadas seguintes, quando a questão da terra, valorizada pela mineração (CENTRO DE INFORMAÇÕES…, 1990), transformou-se em um dos problemas mais candentes em Roraima e o tema mais explosivo da atualidade. Era o tempo em que o extrativismo se expandia, ocupando o espaço econômico da pecuária. Aqui já se percebem os conflitos pelo controle da mão-de-obra através do domínio do espaço numa sociedade tradicional patrimonial, no sentido que lhe dá Max Weber. Pesquisadores que tiveram contato direto com o rio Branco na primeira metade do século XX, como Cavalcanti (1949), Eggerath (1924), Hemming (1990) e Rice (1924) acentuam o negligenciamento da agricultura, a pobreza da dieta e alto índice de doenças da população, bem como a decadência da pecuária e a ascensão da economia mineira a partir de 1920. As pessoas liberadas pela coleta da borracha, sem alternativas de ganho, foram atraídas pela possibilidade de mineração do ouro e diamante nas áreas montanas próximas às fronteiras com a Venezuela e Guiana, seguindo os afluentes do Branco e outros rios (BARROS, 1995, p. 56). Não houve mudanças significativas na década de 1930, época de grande epidemia dizimadora do rebanho bovino (BARROS, 1995; CAVALCANTI, 1949), mas na década seguinte, segundo Barros (1995), a população de migrantes vai aos poucos superando a mais antiga, atraída pela mineração que se expande mais ao norte e pelas atividades administrativas, concentrando-se principalmente na capital, Boa Vista. Uma imagem de imobilidade social transparece em diversos estudos sobre a sociedade de Roraima que abrangem períodos anteriores a 1943, como em Eggerath (1924), Furley (1994) e Riviére (1972) Os agentes sociais dominantes, já referidos, eram até então poucos fazendeiros, quase todos membros de antigas famílias vindas do Nordeste, membros da Igreja, alguns funcionários públicos e comerciantes. Desses últimos, alguns eram ligados a Manaus, principalmente à empresa J. Araújo, enquanto outros eram libaneses e cearenses 89 recém-chegados. Garimpeiros de ouro e diamante, populações ribeirinhas dedicadas ao extrativismo vegetal, junto com empregados nas fazendas compunham o estrato populacional de menor poder aquisitivo. As populações indígenas eram atendidas pela Igreja e pelos funcionários do SPI (CAVALCANTI, 1949). Este atendimento provavelmente não deve ter mudado substancialmente a situação das comunidades índias, pois o autor afirma que os indígenas, principalmente as crianças, eram submetidos a trabalhos forçados que se assemelhavam à escravidão. Havia, de acordo com essa afirmação, um controle coercitivo da mão-de-obra, só possível numa sociedade muito demarcada hierarquicamente, onde impera uma dominação tradicional, a qual, segundo Weber (2000, p.156-157), atua sobre as formas de gestão da economia, através do fortalecimento de idéias tradicionais e práticas patrimonialistas. 3. 3 O ESTADO NOVO E A CRIAÇÃO DO TERRITÓRIO FEDERAL Data de 1940 o início da intervenção estatal republicana na Amazônia, através de propostas e medidas concretas para um planejamento regional sistemático (BAHIANA, 1991). Após a crise da borracha, no início do século XX, o governo central havia falhado em implantar um planejamento regional, mas, ao tempo do Estado Novo (1937-1945) havia mais vontade, controle e continuidade, além de uma forte ideologia desenvolvimentista. A criação do território obedeceu a um plano estabelecido: em 1940 o presidente Vargas visitou a Amazônia, passando pelo Pará e o Amazonas. Era tempo de guerra, em que a França e a Holanda estavam vencidas pela Alemanha e a Inglaterra tinha imensas dificuldades em manter a luta contra Hitler praticamente sozinha e, as Guianas, possessões européias, eram limítrofes do Brasil na Amazônia. Segundo Bahiana (1991, p. 17), o presidente declarou em Manaus o que o governo pretendia na época para a Amazônia: desenvolver uma política que visava a “[...] ocupar a região para protegê-la de invasões estrangeiras e trazer benefícios para camponeses e colonos, em lugar de alguns latifundiários”. Já em Belém, o discurso varguista dirigiu-se “às classes conservadoras” afirmando seu compromisso com a modernização do extrativismo na região. Este seria substituído “[...] pela indústria agrícola metódica e científica os velhos métodos, como o fez Henry Ford”, referindo-se ao grande projeto de plantio da borracha daquele empresário 90 americano, cujo insucesso ainda não era de todo conhecido (BAHIANA, 1991, p. 17). Para o governo Vargas, a Amazônia estava destinada a cumprir um papel estratégico, para o qual era exigida uma modernização na sua economia, daí o aceno às elites para participação, bem como aos trabalhadores. Prenunciava a procura de matéria-prima pelos beligerantes (era o tempo da Segunda Guerra Mundial) e o Estado não poderia deixar de manter o controle e mesmo promover as mudanças necessárias. E elas foram muitas, mas o governo brasileiro não detinha totalmente a iniciativa pois como mostra Bahiana (1991, p. 17), o aparato institucional construído na Amazônia na década de 1940 foi financiado em parte pelo governo norteamericano ou pelo capital privado, como a Fundação Rockfeller e destinava-se também a atender aos esforços de guerra. É ainda Bahiana (1991, p. 16-17) que informa sobre o papel do governo dentro do contexto político e econômico referido, quando a Amazônia passou a sediar diversos órgãos do novo aparato estatal. Dentre estes, tem-se: Serviço Especial de Saúde Pública, mantido pela Fundação Rockefeller, encarregado do saneamento básico; Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia e Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia, que tinha a função de recrutar, hospedar e providenciar a colocação de nordestinos nos seringais; Banco do Crédito da Borracha, que tinha 40% de capital norte-americano; Instituto Agronômico do Norte, com sede em Belém; Ampliação do SPI, para controlar os eventuais conflitos entre índios e seringueiros; além de outras medidas, como o melhoramento dos aeroportos de Manaus e de Belém. Para alguns autores (BAHIANA, 1991, p. 17; FREITAS, 1997, p. 40), a medida mais concreta, em termos de resultados presentes e futuros, foi a criação dos territórios federais do Amapá, Rio Branco (atual estado de Roraima), e Guaporé, atual estado de Rondônia. A idéia de criar territórios para melhor controlar as fronteiras não era nova, era uma antiga recomendação de geopolíticos brasileiros, como Everardo Backheuser e Lisias Rodrigues (BAHIANA, 1991, p. 17). Este último, um Brigadeiro da Aeronáutica, de acordo com Mattos (1975, p. 53), realizou estudos sobre as fronteiras brasileiras ao norte, principalmente junto às Guianas, sua preocupação principal. Mattos (1975) anota outros geopolíticos influentes para o fortalecimento das fronteiras e o avanço para o interior, como Mário Travassos, destacando o papel central de Backheuser. De acordo com Oliveira (1991) e Freitas (1997), embora criado em 13 de setembro de 1943, o território do Rio Branco só teve nomeado seu primeiro governante em 91 abril do ano seguinte, sendo que o mesmo só chegou a Boa Vista, à capital, em junho de 1944. A elite local preparou-se para receber a autoridade maior que chegava: o capitão Ene Garcez dos Reis. Um autor local anota que o então ex-prefeito Adolpho Brasil “[...] mandou levar a notícia a todas as suas fazendas e às fazendas vizinhas”, e que mais de quinhentas pessoas se acotovelavam no pequeno cais num dia que deveria ser festivo, mas o governador não teria tomado conhecimento da recepção que lhe era feita, na versão de Oliveira (1991, p. 16) e, teria declarado “não querer saber de coronéis de barranco”. O governo que se instalou no edifício da Prelazia católica, o único que tinha condições para tal, foi, segundo uma tradição local, “duro e ditatorial”. Era a “ordem” que chegava, apoiada por um contingente armado de 200 homens: houve proibição de reuniões e ajuntamentos, recolhimento das pessoas às 18 horas aos seus lares e os valentes de antes eram caçados e após, castigados à luz do dia, como exemplo. Segundo Oliveira (1991) essas medidas eram para firmar um símbolo do poder político central, numa terra na qual alegava-se estar dominada pelo banditismo e pela falta de justiça. Importante documento sobre a situação geral do território na época de sua criação, é o Relatório elaborado pelo técnico em administração do governo federal Araújo Cavalcanti, em 1945, quando acompanhou o governador Garcez e elaborou o Plano de Recuperação e Desenvolvimento para o território (CAVALCANTI, 1949, p. 4). Seus estudos in loco foram acompanhados pelos padres beneditinos e por vezes pelos fazendeiros Homero Cruz e Adolpho Brasil. A situação geral é descrita (CAVALCANTI, 1949, p. 5) como “tenebrosa”, afirmando que a mudança dependeria só do governo federal, que deveria ir a socorro das populações locais, com técnicos, pessoal, material, recursos financeiros e uma nova legislação adequada à região (grifo do autor). Apesar de não haver nos escritos de Cavalcanti uma menção direta aos pensadores geopolíticos e influentes da época, é notória a semelhança de algumas idéias, como a necessidade de ocupar e desenvolver economicamente as áreas junto às fronteiras. Não obstante, Cavalcanti (1949, p. 5-7) se mostra menos “nacionalista”, pois ataca o “nacionalismo estreito” no qual os territórios seriam apenas, acima de tudo, pontos de defesa contra ataques militares. Para ele, como era comum ao final da guerra, não se devia ignorar o alcance das armas aéreas e, não havia nenhuma ameaça de países vizinhos. Entretanto, publica na íntegra (CAVALCANTI, 1949, p. 55-56) um decreto do presidente venezuelano Eleazar Contreras, de dezembro de 1938, mandando proceder a uma “exploração metódica” 92 da área fronteiriça ao atual território do Rio Branco. O objetivo central de Contreras é semelhante ao dos geopolíticos brasileiros da época e das décadas seguintes: “incorporar essas regiões [fronteiriças] à sua economia integral da nação”. O Relatório de Cavalcanti foi base para a edição do Decreto-lei 7.775 federal, de 24 de julho de 1945, que instituiu as normas para o governo do território. Diferentemente de outros pesquisadores que passaram pelo rio Branco, Cavalcanti era um agente oficial de um governo que pensava em mudanças, que viu até com indignação fatos como o trabalho forçado de crianças índias, principalmente dos Macuxi; que se surpreendeu com o controle total do comércio por poucos, com os preços abusivos e a extração de madeiras de lei de modo predatório. Tal como Eggerath duas décadas antes, que se refere à quase inexistência da agricultura e problemas da pecuária decadente, criticando os fazendeiros que preferiam aplicar seu capital financiando atividades mineiras. Cavalcanti (1949) propõe todo um plano para o território que, em alguns aspectos foi seguido inclusive pelos administradores militares locais nas décadas de 1970 e 1980. Propôs também a criação de parques nacionais, como da ilha de Maracá,15 e de áreas de refúgio para animas silvestres, além da exploração mais racional de madeiras de lei. Considera o principal obstáculo ao desenvolvimento econômico da região a falta de braços, devendo haver uma “ocupação efetiva” do “solo imenso e vazio”. Como parte das medidas propostas, foi elaborado um Plano Rodoviário Territorial, que deveria garantir o acesso a três mercados consumidores “seguros”: a própria Amazônia, a Guiana Inglesa e a Venezuela. Os troncos principais deveriam partir de Boa Vista em direção às duas últimas. Daí partiriam cinco vicinais, a principal de Boa Vista a Caracaraí, que foi iniciada logo em seguida e integrada depois à BR 174, que liga atualmente Manaus a Boa Vista e esta à fronteira com a Venezuela. A estrutura administrativa instituída pelo Decreto 7.775, apesar das mudanças políticas, e constante troca de governadores entre 1946 e 1964, permaneceu e se firmou. Essa estrutura representa a racionalidade do Estado nacional brasileiro, defendida por Cavalcanti (1949, p. 56) e que critica asperamente a situação da economia local ao mesmo tempo em que identifica as “[...] imensas possibilidades de desenvolvimento”. Coloca grandes esperanças na 15 A ilha de Maracá, na verdade um arquipélago com dimensão de 101.312 hectares, forma hoje a Estação Ecológica de Maracá, criada em 2 de junho de 1981 pelo Decreto Federal 86.061 ( SILVA JR., 1994, p. 91).Cavalcanti (1949, p. 48-49); na verdade sugeriu um parque nacional no qual haveria uma “colônia florestal” e “núcleos coloniais”, numa concepção diferente de parque nacional que se tem hoje. De todo modo, sua preocupação ecológica é notável para a época. 93 pecuária, “[...] capaz de abastecer de gado a Amazônia, a Venezuela e a Guiana”, além de ser “[...] uma sólida garantia de equilíbrio econômico”. Os números da época, no entanto, não eram animadores. Em 1943, Araújo Cavalcanti e sua equipe realizaram um levantamento que demonstra o perfil da vida econômica em Roraima (CAVALCANTI, 1949, p. 19). Os números mostram ainda grande variação nos valores de um para outro período, o que denota uma certa instabilidade, em um tempo em que a coleta de dados, em razão do regime do Estado Novo, era extremamente facilitada16. Tabela 1 - Produção Econômica do Território do Rio Branco – 1942-1943 Classificação 1942 (em %) 1943 (em %) 1 – Produção puramente extrativa a) Vegetal 16,7 8,0 b) Animal (couros, peles e animais silvestres) 1,8 1,2 c) Mineral 42,1 59,6 5,0 3,7 2 – Produção agrícola a) Agricultura incipiente 3 – Pecuária 34,0 4 – Pequena indústria (manufatura de pequenos utensílios domésticos) 0,4 0,7 100,0 100,0 Total 26,8 Fonte: Cavalcanti, 1949, p.19. Apesar do choque inicial e alguns embates futuros da pequena elite de latifundiários e comerciantes entre si e com os administradores federais, mudanças estruturantes ocorreriam, temperadas freqüentemente pelo conflito que se acentuaria na década de 1970 e início da seguinte. A economia e a vida nos campos do rio Branco não foram mais as mesmas após a criação do território, sendo o motor das mudanças a nova organização administrativa imposta pelo governo central, notadamente no primeiro governo Vargas e após 1964. 16 Na atualidade, persiste a importância da madeira e diamantes como os valores mais altos, o que mostra a persistência de alguns aspectos na economia local. 94 Baseada no diagnóstico de Araújo Cavalcanti e sua equipe, implantada pelo decreto citado e inalterado por duas décadas, a máquina administrativa territorial constava de: Governador; Secretaria Geral; Divisão de Saúde e Saneamento; Divisão de Assistência à Maternidade e à Infância; Divisão de Educação; Divisão de Produção, Terras e Colonização; Divisão de Obras; Divisão de Segurança e Guarda; Serviço de Administração Geral e Serviço de Geografia e Estatística. Essa estrutura deu os meios para que os administradores implantassem pelo menos parte das medidas de infra-estrutura tidas como necessárias para promover o desenvolvimento: construir uma cidade-capital administrativa, melhorar os transportes e promover a colonização agrícola, trazendo e apoiando colonos com crédito e assistência técnica. Já no primeiro governo, destaca Freitas (1997), instalou-se uma máquina de beneficiamento de arroz e colocação de um aviamento (sic) para farinha de mandioca, instalação de dez famílias de agricultores, venda de material agrícola e a instalação da primeira região agrícola na região de Murupu, além de medidas diversas de apoio. Em 1945, quando caiu o Estado Novo varguista, o governador Garcês foi exonerado e a administração passou, em vista da nova situação política, de quartel a uma repartição pública, onde os governadores se sucediam, ocupando o cargo por tempos curtos. Sua nomeação passava pela indicação do Senador Victorino Freire, do PSD do Maranhão ou, como em outros casos, pelo deputado federal do território (FREITAS, 2000; OLIVEIRA, 1991). Era o tempo da redemocratização, da volta do Estado federal representativo, da descentralização. Esta seria, como em outras ocasiões, aproveitada pelos grupos regionais e locais para fortalecer seu domínio ou, fato comum, para lutar por ele. No entanto,em Roraima, ainda não havia o que pode chamar oligarquia, o que é comprovado pela presença ali de prepostos do senador maranhense Victorino Freire, na maioria militares, sendo muitos deles também do Maranhão. Na década de 1950, o segundo governador, indicado por Freire e seu conterrâneo, o tenente-coronel Félix Valois de Araújo, procurou formar uma base própria de poder, embora apoiando Freire. Valois foi eleito duas vezes deputado pelo território e conseguiu a nomeação de seu genro, o capitão José Maria Barbosa para o governo, além de tentar um terceiro mandato. Barbosa e Valois se apoiavam em grupos dissidentes locais, mas em 1958 estes se uniram e venceram a eleição. Quatro anos depois, Valois aliar-se-ia a Gilberto Mestrinho, então governador do Amazonas, elegendo-se este como deputado por Roraima, 95 tendo Valois como suplente. Ambos teriam seus mandatos e direitos políticos cassados em 1964, quando começa uma outra era para Roraima e para o Brasil. Em suma, os grupos de interesse, novos e antigos, tentam se transformar em grupos de pressão. Com a criação do território federal, a escala hierárquica foi acrescentada de um governador, em uma base espacial não superior a um município: o de Boa Vista. Mas esse período foi bastante breve, com a chegada da redemocratização em 1945, quando se abre um espaço para mais um cargo, o de maior importância, o de deputado federal. Era esse o canal político com o Rio de Janeiro, para o acesso a verbas e, mais importante no caso, para os cargos. 3. 4 1946-1964 A DESCENTRALIZAÇÃO DO ESTADO E A AMAZÔNIA A queda do Estado Novo em 1945 não interrompeu a idéia de ocupação da Amazônia, patrocinada pelo governo federal. A Constituição Federal de 1946 garantiu que os territórios criados na Amazônia fossem mantidos, ao contrário de dois outros, situados um no Mato Grosso e outro que abrangia partes de Santa Catarina e Paraná. O artigo 199 da Carta garantia que, para se executar o Plano de Valorização Econômica da Amazônia o governo aplicaria por vinte anos uma quantia não inferior a três por cento da receita tributária. A morosidade legislativa fez com que só em 1953 fosse criado o órgão operativo para administrar esses recursos: a SPVEA, antecessora da SUDAM. Os objetivos deste órgão estavam expressos na lei que a criou, n.° 1.806, de janeiro de 1953: Promover o desenvolvimento da agricultura e a exploração da floresta em termos de maior rendimento e melhor técnica de trabalho, fomentar o criatório e a pesca e indústrias decorrentes; promover o aproveitamento de recursos minerais, incrementar a industrialização de matérias-primas, realizar um plano de viação, promover a recuperação permanente das áreas inundáveis, estabelecer uma política de energia, uma política demográfica, desenvolver o sistema de crédito bancário regional, e as relações comerciais com os centros de consumo e abastecedores, nacionais e estrangeiras, proceder a pesquisas, à formação dos quadros técnicos necessários, incentivar o capital privado (grifo meu) para que se integre nos propósitos de valorização [...] (FERREIRA, apud BAHIANA, 1991, p. 17-18). 96 Em resumo, buscava-se por meio dessa medida, a modernização da região com o apoio do setor privado, cabendo ao Estado proporcionar a infra-estrutura. Entretanto, não houve recursos disponíveis para tal durante a década de cinqüenta e início da seguinte, e, quando os havia, problemas de várias ordens impediriam o sucesso da SPVEA. Um estudioso do assunto, Brito (2001, p. 140-146), assevera que o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) e o Congresso competiam pelos recursos destinados à Amazônia, entrando freqüentemente em conflito jurisdicional de competência. Além disso, na década de 1950, pouco antes do governo Kubitscheck, ministros liberais opunham-se à destinação de recursos federais à Amazônia, como relata o ministro da Fazenda do presidente Café Filho (1954-1955), Eugênio Gudin, em livro autobiográfico: Quando ministro do governo Café Filho, ao ser solicitado, na conformidade do que estipula a Constituição de 1946, a suprir o superintendente da Amazônia recursos equivalentes a 3% da Receita tributária da União, recusei-me a fazê-lo, diante dos imperativos do programa antiinflacionário do governo e do fato de não dispor a Superintendência da Amazônia dos fatores de produção necessários à execução do programa, extremamente vago aliás (GUDIN, 1978, p. 38) . A atitude de Gudin exemplifica como o Executivo se sobrepõe ao Legislativo não só na definição de políticas, mas na disponibilidade de recursos, mesmo que a legislação seja contrariada. A preocupação maior era com o equilíbrio das contas, ficando as políticas regionais praticamente em suspenso. Com o regime implantado em 1964, isso ficou ainda mais evidente, conforme palavras de Roberto Campos, ministro da Fazenda de Castelo Branco, referindo-se ao período pré-1964: O Congresso havia se transformado em ‘engenho de inflação’ ao multiplicar o orçamento de dispêndio, e em ‘fator de distorção’ de investimentos pela sua hipersensibilidade a pressões regionais capazes de destruir a coerência e o equilíbrio de planos e programas (ROBERTO CAMPOS, 1975, apud AMES, 1986, p. 177). A autoridade de Gudin e de Roberto Campos, contrariando num caso a Constituição e noutro o Congresso, com argumentos técnicos, isto é, não políticos, na prática mostram que uma república federativa nos moldes clássicos, descentralizada, tem grande dificuldade de se manter no Brasil. 97 Ames (1986, p. 177-203), analista da política orçamentária e da evolução política brasileira do período 1946-1964, comenta sobre o fato de que a Constituição de 1946 garantia ao Congresso o poder sobre as finanças, mas que o controle legal de um orçamento não se traduzia em efetivo controle do mesmo. Senadores e deputados preocupavam-se com os gastos públicos, embora alguns desprezassem o caminho legislativo e tratassem diretamente com o Executivo. De outro lado, técnicos como Cavalcanti (1949, p. 84), que tinha peso político e decisional até 1945 e que foi membro da Comissão Especial do Plano de Valorização da Amazônia, queixava-se da situação após a redemocratização, aludindo sobre a não disposição de recursos para a Amazônia e de uma “Campanha subterrânea contra o Parlamento”. Skidmore (2000a, p. 91), assevera que o Executivo foi ampliado por Vargas e permanecera quase intacto, apesar das mudanças instituídas na referida Constituição. Em tese, este fato, sem dúvida, facilitaria uma certa continuidade de pelo menos parte da antiga política adotada. Não foi o que aconteceu de imediato, no primeiro governo pós-1946, do presidente Dutra, quando foram aplicadas medidas monetárias ortodoxas (SKIDMORE, 2000a, p. 92). Segundo a mesma fonte (p. 97), quanto ao seu destino econômico, o Brasil seria, na visão de Dutra, um país essencialmente agrícola, exportador de matérias-primas e alimentos e importador de artigos manufaturados. As obras públicas e a busca do desenvolvimento, após breve parada durante o governo de Eurico Gaspar Dutra (1947-1951), retomaram seu ritmo no segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954) e de Juscelino Kubitschek (1956-1961), com programas que privilegiaram a implantação da infra-estrutura industrial e estenderam-se também pelas áreas da saúde e educação, valorizadas pelas classes média e operária. Politicamente, era claro o objetivo de atender apelos do setor industrial e onde se concentravam os redutos eleitorais, ambos inexistentes na Amazônia. Ames (1986, p. 179) identifica o setor militar como o grande perdedor na corrida por recursos públicos no período, mas as regiões com poucos votos poderiam ser inscritas nesse conjunto, já que pouco ou nenhum peso político tinham para mudar a realidade. Entretanto, a idéia da Amazônia como uma região que deveria ser “integrada” na sociedade nacional, oriunda do Estado Novo, permaneceu, permeada pelo pensamento desenvolvido na Escola Superior de Guerra – voltado, principalmente para a segurança nacional. 98 No regime pluripartidário entre 1946-1964, parlamentares do PSD, ao contrário da UDN, tinham atuação mais regional, o que os levava a ter maior numero de solicitação de verbas federais. No sistema de representação proporcional de então “as oportunidades eleitorais de cada parlamentar eram determinadas em função de seus votos” (AMES, 1986, p. 183). Os partidos eram, quase todos, “diversificados, indisciplinados, clientelistas e descentralizados”. De acordo com o mesmo autor, também buscavam verbas em favor de seus redutos de voto mesmo os integrantes da UDN, a quem era filiada a maioria dos ministros da Justiça, das Relações Exteriores e da Fazenda e cujos membros se identificavam geralmente como não ligados a facções e regiões. Para Ames (1986), sendo o Legislativo o eixo central da elaboração do orçamento, este tinha que operar num contexto em que participavam ministros, governadores de estado e presidentes da República. Os vínculos entre os presidentes e governadores “aumentavam o poder de barganha do estado, e o sucesso da campanha eleitoral de um presidente em um estado podia estimulá-lo a olhar com benevolência as suas demandas” (AMES, 1986, p. 185). Isso se refere ao geral, pois no governo Café Filho (1954-1955), após a morte de Vargas (1954), e no início do governo de Juscelino Kubitschek (1956), cujos ministros eram marcadamente liberais, houve uma tendência, que depois se modificaria, para um maior controle das finanças públicas e da inflação, encurtando as solicitações consideradas contrárias a esses objetivos. Há outros exemplos, como o Ceará e Maranhão, onde no primeiro suas lideranças sempre souberam beneficiar-se com a adversidade das constantes secas (AMES, 1986, p. 199). O autor considerou a bancada cearense como a “mais fisiológica do Congresso”, agregando membros das diferentes forças locais. Diferente era o caso do Maranhão, onde reinava o chefe político Vitorino Freire, do PSD, cuja máquina eleitoral comandou os destinos do estado de 1947 a 1976. Forte junto ao governo central, o poder de Freire ia além, pois era quem comandava, por muitos anos, do Maranhão, quem ia governar o território federal de Roraima, no extremo norte brasileiro17. Embora só após 1964 as grandes mudanças ocorressem na Amazônia, algumas linhas mestras de planejamento e de objetivos anteriores também permaneceram (Bahiana, 17 Em 1965 Vitorino Freire e o vitorinismo seriam derrotados no Maranhão por seu ex-afilhado José Sarney (JOFFILY,1998, p. 243), com o apoio de Castelo Branco e do Coronel João Batista Figueiredo. Já se vivia aí um novo momento da política nacional. 99 1991, p. 18). Equivale a dizer: desde os governos Vargas e Kubitschek estabeleceram-se as bases de inserção da região no espaço nacional, preparando o grande movimento de extensão da fronteira interna que iria se iniciar após 1964. Com respeito a Roraima, essas bases já existiam, pois o território além de estar ligado diretamente ao governo central no Rio de Janeiro, já estava também estruturado em termos burocrático-administrativos. Ao contrário de outras unidades da Federação, não havia muito a desfazer, pois quase tudo era resultado de administradores que seguiam uma linha que em regra geral, teria continuidade. Em Roraima, segundo Oliveira (1991), as mudanças implantadas por Garcez na década de 1940 transformaram a vida local e tiveram continuidade, fato também apontado por Barros (1995). O território tinha uma importância geopolítica que não escapava ao governo central, cioso de suas fronteiras, embora a geopolítica não fosse uma tônica dos governos do período pré-1964. Já no início da década de 1950 funcionava o Serviço de Navegação do Território Federal do Rio Branco, além de duas empresas particulares; foi instalada uma agência do BASA, enquanto a Força Aérea Brasileira fazia a ligação com Manaus e o resto do Brasil, através do Correio Aéreo Nacional. Duas empresas aéreas particulares operavam com táxi aéreo, entre Boa Vista-Caracaraí e fazendas do território, enquanto uma empresa aérea nacional, a Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul, fazia linha regular com Georgetown, a capital da vizinha Guiana. Na mesma década (FREITAS, 1997, p. 110) foram criadas três colônias agrícolas: a do Taiano, com japoneses, a Fernando Costa e a do Cantá. As duas últimas deram origem a municípios na década de 1980, enquanto a primeira foi abandonada pela maior parte de seus integrantes. Até então havia apenas dois municípios: Boa Vista e Caracaraí, o qual dispõe de um porto fluvial no rio Branco, próxima das cachoeiras que impedem a plena navegação por seis meses do ano até a capital. Mas se houve algum progresso econômico e mudanças no cotidiano, a estrutura institucional não abriu até ali um espaço maior para os grupos locais, nos territórios, pois Roraima, vinculada ao Ministério do Interior, podia eleger, desde 1945, apenas um deputado federal; sua capital não tinha Câmara de Vereadores e o seu prefeito era nomeado pelo governador (BRASIL. Instituto...,1957, p. 46). O primeiro deputado federal eleito, no início de 1947, Antonio Martins, era representante local da empresa de Manaus J. G. Araújo (Oliveira, 1991) e teve destaque nas eleições seguintes, o que demonstra a força do comércio ligado à Manaus e a rivalidade com algumas lideranças locais. 100 Confirmando o fato, Freitas (1993) anota que a nomeação de prefeitos, na época, muitas vezes dependia de negociações entre a elite local constituída de pecuaristas e comerciantes. O cargo mais disputado era o de representante no Congresso, o deputado federal, perseguido inclusive por alguns ex-governadores, já que era a garantia de uma vida confortável na capital federal, de prestígio e poder local. O peso da posição, segundo Freitas (1993), era tal que alguns deputados chegaram a impor um nome como governador, daí as constantes e ferrenhas disputas, onde ocorriam inclusive mortes. 3. 5 O PENSAMENTO GEOPOLÍTICO BRASILEIRO E A AMAZÔNIA Para Santos (1996, p. 103-104), o movimento militar de 1964 respondia aos imperativos da participação do Brasil no bloco atlântico da economia mundial, o que exigia transformações que nem o governo de Jânio Quadros nem o de João Goulart encaminhavam. Mas não se tratava apenas de uma inserção do Brasil no contexto do capitalismo mundial, pois obedecia, também, a uma doutrina de estratégia política exposta claramente por autoridades brasileiras, como o general Golbery do Couto e Silva (SANTOS, 1996, p. 103104). Havia, pois, uma certa contradição que se refletiria não só quanto aos objetivos mais imediatos, mas principalmente, quanto ao papel de um Estado fortalecido que chamava a si o papel de condutor da sociedade, o respeito a preceitos liberais de não intervenção na economia e um papel discreto reservado ao Estado. Assim, a aliança vencedora em 1964 teve que compatibilizar, forçosamente, dois pensamentos: o da economia clássica, para resolver os problemas econômicos do país, e o da tradição militar brasileira. Segundo O´Donnel (1982, p. 281), as forças armadas, atores do processo autoritário e burocrático “tendem a ser a mais nacionalista e a menos capitalista das instituições do Estado”. Os ideais maiores incorporados por esta tradição, segundo o mesmo autor, “sobrepõe-se ao lucro, que pode ser necessário, mas que não deve ser ‘excessivo´ ou trabalhar contra a missão de homogeneizar a totalidade da nação”. O´Donnel ressalva, no entanto (1982, p. 281-282) que, entre 1964 e 1967, no governo Castelo Branco, o escalão superior das forças armadas tinha mais afinidade com as orientações da alta burguesia, isto é, do capitalismo. 101 Esse último grupo, representado por Castelo Branco e seu círculo de colaboradores, conhecido como o da “Sorbonne”, ou da ESG, sobrepôs-se a um outro braço das forças armadas: a denominada “linha dura”. Esse segundo grupo tinha como figura de maior expressão e então ministro da Guerra, general Costa e Silva. Houve assim, desde o início, divergências de concepção e modos de ação para a solução de problemas nacionais, com reflexos na administração dos territórios federais, como Roraima, na Amazônia ocidental. O governo Castelo Branco tentou reorganizar a economia utilizando-se de planos e programas (BECKER, 1998). Essa reorganização compreendeu acima de tudo a estabilização das finanças, levada a cabo pelos ministros Roberto Campos e Otavio Gouveia de Bulhões. Ambos já tinham trabalhado no plano de estabilização do governo de Juscelino Kubitscheck adotado em 1958 e abandonado um ano depois (SKIDMORE, 2000a). Os dois economistas identificavam como maior problema econômico, na ocasião, a inflação acelerada que era causada por excesso de demanda. Sua linha de pensamento era inteiramente liberal e logicamente não apoiava ações em que o Estado tomasse a iniciativa de desenvolvimento, principalmente em um período definido como de “arrumação de casa”, na concepção do autor. Região estratégica, a Amazônia ocupava um lugar especial na mentalidade dos militares brasileiros, há décadas. A antiga idéia de sua integração à economia e à vida nacional vinha sendo defendida por inúmeros geopolíticos, principalmente após a década de 1920. Durante o Estado Novo, principalmente durante a Segunda Guerra, foi montada uma estrutura administrativa com intensa participação militar, que teve continuidade e conseqüências futuras, como será visto adiante. Assim, mesmo com a atenção voltada para a solução de assuntos prementes, como a organização da nova ordem, houve a implantação de medidas visando a dinamização da vida econômica na região, como a mudança da SPVEA para SUDAM (1966) e a criação da Zona Franca de Manaus (1967). Houve ainda ( BECKER, 1998), a delimitação de uma nova área extra-regional – a Amazônia Legal, já existente em lei desde 1953. As medidas tomadas para a região na época faziam parte do que se chamou “Operação Amazônia” (1965-1967), que objetivava colocar em prática as antigas idéias de ocupação, desenvolvimento e integração, formuladas desde o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), mas aperfeiçoadas nas décadas posteriores, por institutos de pesquisa e de planejamento oficiais, como o Instituto de Pesquisas Econômica e Social (IPES) (MAHAR, 1978). Segundo esse pensamento (BAHIANA, 1991, p. 19; MAHAR, 1978, p. 3-4), de 102 inspiração geopolítica, era necessário fortalecer a presença do Estado numa região de grande extensão territorial tido como quase vazia em termos populacionais. Havia também uma idéia permanente de sempre se subordinar a economia regional brasileira a um plano maior, de natureza geopolítica, como ressalta Santos (1996) e que tinha como mentor mais conhecido, o general Golbery do Couto e Silva, do grupo de Castelo Branco e da ESG. No entanto, foi um membro desta instituição, o general Carlos de Meira Mattos, o principal idealizador da ação do Estado nacional brasileiro na Amazônia na década de 1970, quando o Estado autoritário brasileiro já estava consolidado e o país apresentava contínuos índices positivos de crescimento. O pensamento de Meira Mattos, exposto em várias de suas obras (MATTOS, 1975; 1977; 1980), estava calcado, como também o de Golbery e outros militares de seu tempo, em premissas geopolíticas já tratadas desde as décadas de 1920 e 1930, principalmente por Everardo Beckheuser, Mário Travassos e Cassiano Ricardo. Para Lewis Tambs (1978, p. 4546), autor de trabalhos de geopolítica sobre a América Latina, Mário Travassos foi um dos postulantes da presença dos dois grandes pólos estratégicos da América Latina: o maciço boliviano de Charcas e o mar “fechado do Caribe”18. Ambos os conceitos se tornariam verdadeiros paradigmas da geopolítica latino-americana, principalmente a partir das obras de Golbery, incorporador e divulgador da primeira dessas proposições. Segundo essa autora (SHILLING, 1978), a Bolívia, o Paraguai, Rondônia e Mato Grosso constituíam a união dos setores geopolíticos na América Latina, concepção que passou a ser levada em conta e gerou protestos de inúmeras autoridades e intelectuais dos países citados. Vesentini (1987, p. 69) destaca que o pensamento geopolítico nacional herdou idéias da elite intelectual do Império, re-elaborando-as, ultrapassando a preocupação com a segurança do Estado. Assim, numa justificativa da dominação, utiliza-se dos mitos históricos mais arraigados numa sociedade, tidos como alicerces ou marcos da história nacional. Mas a geopolítica pensada na ESG olha, sobretudo, para o futuro (MATTOS, 1978), atribuindo papéis específicos nessa “missão” a setores da sociedade e ao território. Este último, de acordo com Mattos (1975; 1978), citando idéias do pensador inglês Arnold Toynbee, tem que ser dominado, vencido, não devendo oferecer facilidades ao homem sob pena de formar-se em seus domínios um povo fraco, uma sociedade que tende a enfraquecer-se e mesmo a desaparecer. 18 De acordo com Tambs (1978, p. 45), esses dois pólos geopolíticos foram identificados também pelo boliviano Jaime Mendoza. 103 Está subjacente nesse pensamento, que o agente condutor da sociedade nessa caminhada de domínio da natureza e de busca de um lugar ao sol, no meio das nações desenvolvidas é o Estado, o Estado-nação dos geopolíticos (SILVA, 1981). Fica subentendida também (MATTOS, 1978; 1980), a necessidade de se ordenar a ação para vencer-se obstáculos, a serem necessariamente vencidos: os antagonismos de várias ordens, inclusive políticos. Em suma, defende-se o autoritarismo, o que não se constitui propriamente em novidade na história intelectual brasileira. Conforme Vesentini (1987, p. 69) a idéia de “construir a Nação” brasileira remonta aos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no segundo reinado (1840-1889), como Francisco A. de Varnhagen. Lembra Vesentini (1987, p. 68-86), que a mudança da capital federal brasileira para o planalto central obedeceu a imperativos geopolíticos, desprezando-se estudos de geógrafos, como Leo Waibel, que aconselhava uma localização mais próxima do centro demográfico do país. No final, a decisão coube aos militares membros da Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital, nomeada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1950), cujos argumentos eram claramente inspirados em Mackinder e sua teoria sobre o “Heartland” ou Terra central. A construção de Brasília, aponta Vesentini (1987, p. 74-75), foi amplamente divulgada como a realização de um ideal de antigos patriotas como Tiradentes e José Bonifácio, a realização de um sonho de Dom Bosco e das idéias de Varnhagen. No entanto, o autor lembra ainda (VESENTINI, 1987, p. 76-86) que seus defensores nas décadas de 1920 e 1930 a viam não só como uma medida necessária à integração territorial do país, mas como parte de um pensamento que tecia críticas à descentralização promovida pelo regime republicano. Um dos mais conhecidos críticos do federalismo e liberalismo brasileiros (VESENTINI, 1987, p. 76-77) era o professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, Everardo Backheuser, defensor de um governo forte e centralizado. Leitor de Ratzel e Kjéllen, seus trabalhos exerceram grande influência desde a década de 1920. Velho (1976) identifica A Marcha para o Oeste (1940), do poeta Cassiano Ricardo como uma obra de apoio não só a um movimento nacional para o interior, mas ao próprio autoritarismo do Estado Novo (1937-1945). No início da construção da rodovia Transamazônica, em 1970, o livro foi reeditado e saudado como obra quase profética, o que demonstra a importância que lhe era atribuída. Mattos (1980, p. 147) aponta que Ricardo chamou a atenção para o que “[...] os bandeirantes realizaram há mais de 200 anos, em termos 104 de fronteiras políticas, e que as gerações que os sucederam não conseguiram até hoje concretizar em termos de fronteiras econômicas, deve ser levada avante se utilizando uma estratégia adequada”. Essa estratégia reforça Mattos (1980, p. 147), corresponde aos meios técnicos e científicos “[...] que atualmente estão à disposição dos projetos políticos e econômicos”. A linha de pensamento político de Meira Mattos seria marcada por essa composição política-economia e pela necessidade de dominação do ambiente pelo homem. Na obra Brasil, geopolítica e destino (1975, p. 8-12), ele traça a trajetória para transformar o país até o ano 2000 em nação desenvolvida, uma das metas do II PND. Na mesma obra (1975, p. 8), baseada nas idéias do historiador inglês Arnold Toynbee, afirma que “[...] a façanha humana no planeta é marcada pela luta”. Diferente de Golbery, para quem a região do Rio da Prata teria maior importância para a estratégia geopolítica brasileira, Mattos (1980) defendia um avanço, a “conquista” da Amazônia para consolidar o Estado-nação brasileiro, através de uma estratégia sobretudo terrestre. Nessa perspectiva, a problemática das ligações rodoviárias surge com força no discurso de Mattos (1980, p. 147-148): Durante 200 anos tentamos a conquista do nosso interior e particularmente da imensa Bacia Amazônica apoiados em estratégia essencialmente fluvial. Fracassamos porque a navegação fluvial é caprichosa; não nos leva onde queremos; a navegação dos rios amazônicos sofre a influência das estações de águas altas e águas baixas; há inúmeras quedas e cachoeiras que interrompem a navegação da maioria dos cursos d´água. Mudamos de estratégia nos anos 50 e começamos a implantá-la nos anos 60. A nova tentativa seria a conquista do Planalto Central, onde se encontra o divortium aquarium entre as três maiores bacias brasileiras – do Prata, do Amazonas e do São Francisco; montados nesse divisor (instalação de Brasília), tentamos baixar à planície amazônica pelos grandes espigões que separam as águas dos afluentes da margem sul do ‘grande rio’. E assim o fizemos, descemos pelo divisor que separa o Tocantins do Araguaia para alcançar Belém na foz do Amazonas. Baixamos pelo espigão que separa o Xingu do Tapajós, até Santarém, no baixo Amazonas. Baixamos pelo espigão separador das bacias do Madeira e do Tapajós para chegar a Manaus, no médio Amazonas. Aí está a ossatura da nossa estratégia de conquista da Amazônia. O êxito desse empreendimento animou-nos. Depois veio a grande transversal, cortando espigões de leste a oeste, e ligando entre si as artérias longitudinais que seguiram esses divisores – a Transamazônica”. Numa referência à outra rodovia de ligação, a Perimetral Norte, BR 210, Mattos (1980, p. 148) argumenta que esta é a continuação da mesma estratégia, buscando o espigão entre o Jari e o Trombetas, para chegar a Tiriós, na fronteira com o Suriname e daí a Roraima e às fronteiras da Venezuela e República da Guiana e, possivelmente em futuro próximo, a 105 fronteira Colombiana. Para Mattos, todas essas rodovias seriam de interesse também dos vizinhos países de língua espanhola, mas para Shilling (1978), esse avanço fazia parte de medidas que representavam o que muitos consideravam como um avanço do “expansionismo brasileiro”. A complexidade da malha viária então proposta pode ser observada no Mapa 4, adiante. Mapa 4 - “Vertebração” rodoviária do Brasil, segundo Mattos. Fonte: Mattos, 1977, p. 91. O papel de dominância na América Latina, buscado ou não pelo Brasil foi resumido por pesquisadores como Becker, Egler (1994, p. 154-168), os quais afirmam que até 1974, ano da posse de Geisel, o Brasil fundamentou sua política externa numa aliança 106 bilateral com os EUA, inclusive nas relações com seus vizinhos. Daí os golpes militares que se seguiram em muitos países sul-americanos, apoiados secretamente pelo governo brasileiro. Essa estratégia, segundo os autores, se constituía em teses da ESG. Os esforços principais se voltavam para a bacia do rio da Prata, procurando “satelitizar” o Paraguai e a Bolívia, estabelecendo ligações ferroviárias, construindo a barragem de Itaipu e fazendo acordos comerciais, controlando os mercados financeiros através do Banco do Brasil e outras medidas que os isolavam da rival brasileira: a Argentina. Ao mesmo tempo, havia por parte das autoridades brasileiras a omissão sobre a ocupação física de território paraguaio e boliviano por colonos brasileiros, pela soja ou pela simples ocupação de terras devolutas no Paraguai e avanço de seringueiros na Bolívia. Esse avanço desenfreado em direção às fronteiras vizinhas era, como afirma Gall (1977, p. 106-108), uma grande preocupação das autoridades nacionais de lá e de cá. Quando a Amazônia já ocupava maior atenção dos geopolíticos que o Prata, em razão de Argentina e Brasil terem chegado a bons termos quanto à barragem de Itaipu, na metade da década de 1970, Meira Mattos (1980, p. 173) asseverava: O General Golbery reformulou, na década de 60, a grande manobra geopolítica de integração nacional. Preconizou, então, que, partindo-se da base ecumênica de nossa projeção continental (região em torno do triângulo Rio-São Paulo-Belo Horizonte), acelerássemos a integração à mesma da “plataforma central” e, daí, inundássemos a Hiléia amazônica. Esta é a manobra estratégica da frente do Planalto Central, em plena marcha. O que estamos propondo, em termos de Pan-Amazônia. É uma manobra mais ampla, partindo simultaneamente das três frentes – a tradicional, saindo da foz e subindo o “grande rio” e seus afluentes, a do Planalto Central descendo as escarpas até a grande planície e, agora, acrescentando e operando um novo front em termos de desenvolvimento econômico, que virá ao encontro dos dois primeiros, baixando do grande arco fronteiriço das vertentes sul do sistema guiano e vertentes sul e oeste do sistema andino, até alcançar os impulsos gerados pelos dois anteriores [Grifos do autor]. Numa concessão aos novos tempos, referindo-se às relações com a Venezuela e República da Guiana, Mattos (1980, p. 173) afirma ainda que: “Será um recobrimento de impulso, partindo de três frentes e ampliados através das áreas-polos binacionais e trinacionais, até os limites dos territórios amazônicos de nossos vizinhos”. A concepção desse autor quanto a tais relações foi por ele próprio delineada, conforme o Mapa 5, a seguir. 107 Mapa 5 - Áreas interiores de intercâmbio fronteiriço, segundo Meira Mattos. Fonte: Mattos, 1980, p. 168. O enaltecimento da necessidade de composição com os países vizinhos não era a única novidade no discurso do geopolítico. Ao lado de conceitos como “vazio demográfico”, Mattos argumenta que a rede de transportes no interior, deveria combinar as vias rodoviárias, hidroviárias e aéreas, “sem desprezar nenhuma” Nas regiões virgens não havia necessidade de uma superpovoação, continua, pois a ocupação mais adequada seria por meio de pólos, incorporando benefícios econômicos e que seriam centros de progresso social. Afirma ainda Mattos (1980, p. 174-175), que: “A preservação ecológica dentro de um conceito tradicional e o respeito às reservas indígenas serão melhores atendidos com esta estratégia, pólos de irradiação distanciados, mas atuantes, capazes de representar a lei e a dinamização do progresso econômico e social”. Em Geopolítica pan-Amazônica (1980), Mattos argumenta que o Pacto Amazônico traria vantagens econômicas e políticas para o Brasil e seus vizinhos. Todos 108 seriam beneficiários da integração que adviria da assinatura do Pacto Amazônico, em julho de 1978, entre Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Suriname e Guiana. O Pacto representaria: [...] um esforço no sentido de conscientizar os países condôminos da região sobre a necessidade de criarem um organismo de cooperação regional, para juntos moverem as alavancas capazes de despertar a Pan-Amazônia de seu sono secular”. E, uma lembrança: “Não será possível, nesse esforço hercúleo, abrir mão do capital e da tecnologia dos países mais adiantados do mundo, dos organismos internacionais de suporte financeiro e tecnológico. O que não desejam os países amazônicos é perder a soberania sobre essa região cobiçada sob o pretexto de sua incapacidade para explorá-la. Para isso terão que atuar juntos – mostrar inteligência, colocar de lado suas desconfianças recíprocas e revelar uma verdadeira vontade realizadora. (Mattos, 1980, p. 136). As “desconfianças recíprocas” eram oriundas dos temores da expansão brasileira na região, por parte de governos, de intelectuais ou representantes de setores acadêmicos ou ainda de grupos de interesse, como se observa em Madi (1998), Martinez (1980), Nazoa (1997) e, Schilling (1978). O perigo de se “perder a soberania” embora reconhecendo a necessidade de recursos externos, financeiros e tecnológicos, expressam aqui o momento em que o governo brasileiro já não aceitava o “alinhamento automático” com os EUA, após a metade da década de 1970. O fim da década de 1970 foi o tempo de realização máxima do governo brasileiro, antecedendo a “crise da dívida” que se abateu sobre o Terceiro Mundo, em 1979, e a uma outra em 1981-1982, que levaria ao início do fim do regime militar. Na década de 1980, projetos como o Calha Norte (1985) seriam tentativas de reeditar a organização do espaço amazônico e proteger as fronteiras. Na década de 1990, com a “Nova ordem mundial” e o “Consenso de Washington” (ALTVATER, 1995; HUNTINGTON, 1997), que se impuseram após a “guerra fria”, o Brasil, bem como a Amazônia e a própria geopolítica, sofreriam mudanças no rumo de sua vida política. Contudo, afirmam Becker, Egler (1994, p. 273), há uma herança presente, estruturadora, da geopolítica, bem como novos papéis para essa área do conhecimento nos tempos da multipolarização e de politização da natureza. 109 3. 6 OS MILITARES E O PENSAMENTO DA ESG A ESG e o general Golbery do Couto e Silva são, talvez, os nomes mais conhecidos na literatura sobre a participação dos militares na vida política brasileira nas décadas de 1960 e 1980. Ambos têm seu nome ligado à geopolítica nacional e latinoamericana, graças às concepções teóricas gestadas e às ações que inspiraram. Golbery (1981, p. 159), após discorrer sobre as teorias e os temas ligados à geopolítica, como os “antagonismos” entre nações ou coligações de nações, afirma a necessidade de uma estratégia para a defesa de cada Estado, bem como de um “sismógrafo estratégico da maior sensibilidade”. Golbery foi também o principal articulador do IPES, fundado em 22 de novembro de 1961. O IPES era integrado por militares, empresários, políticos e técnicos que unidos num grupo de pressão e associados a ESG, foi a principal arma dos articuladores da vitória dos militares que derrubaram o governo de João Goulart em 1964 (BRUM, 1993, p. 144; DREIFUSS, 1981, p. 369). Segundo Dreifuss (1981, p. 369-370), faziam parte do grupo IPES/ESG, dentre outros, os generais Ernesto Geisel, Orlando Geisel, Cordeiro de Farias, o coronel Mário Andreazza, os tenentes-coronéis João Batista Figueiredo e o Almirante Augusto Rademaker. Todos (SCHILLING, 1978, p. 22) tiveram papel expressivo e por vezes decisivo na política brasileira após 1964, como a própria ESG. No entanto, autores como Skidmore (2000b), Stepan (1971) e Tambs (1978) identificam outros grupos de militares, como o ligado aos generais Costa e Silva e Emílio Garrastazu Médici, que chegaram à presidência da República. O discurso deste grupo diferia do “grupo da Sorbonne” e eram identificados como a “linha dura”. Esse segundo grupo, de acordo com Tambs (1978), era também mais afeito às questões de segurança e adepto de um desenvolvimento promovido pelo e com a participação do Estado. Um estudioso norteamericano das elites políticas, Manwaring (1980, p. 108), afirma que os presidentes militares brasileiros, de Castelo Branco a Geisel, cujo governo coincide com a época de seu estudo, foram coerentes com a idéia de desenvolvimento econômico, que foi a base de sua legitimação para a política. Salienta ainda o autor que os governos tiveram não somente o monopólio da violência, mas um pessoal competente que poderiam “assegurar a construção do Brasil à sua própria imagem”. 110 O general Golbery do Couto e Silva escreve em Conjuntura política nacional, o poder Executivo & geopolítica do Brasil (1981) que deve haver uma “[...] integração crescente do grupo social que compõe a Nação, tanto do ponto de vista político, como psicossocial e econômico, é também condição fundamental da própria sobrevivência do Estado” (SILVA, 1981, p. 168-169). E mais adiante: “À sobrevivência, essencial é ainda a manutenção do território, base física do Estado, uma vez que sua mutilação redundará, em qualquer caso, em prejuízo da integração e em redução do bem-estar, da prosperidade e do prestígio nacionais” (SILVA, 1981, p. 169). Argumenta também que algumas medidas, como as tomadas no território de Roraima, vizinho da Guiana, podem ser melhor entendidas, principalmente, se se atentar para o preconizado “expansionismo para o interior” (SILVA, 1981, p. 171). O general Meira Mattos, citado anteriormente, embora seguidor de Golbery, adaptou o pensamento geopolítico para a realidade da segunda metade da década de 1970, quando o horizonte político mundial apresentava mudanças. A ESG foi fundada em 1949, no governo de Eurico Gaspar Dutra, por Cordeiro de Farias segundo o modelo da War College dos EUA, conforme registra Vianna Filho (1977, p. 11). Este reconhece a dívida da instituição para com as idéias de Backheuser, mas identifica, como Stepan (1971, p. 245), sua origem com a Segunda Guerra e a participação de militares na Força Expedicionária Brasileira no conflito. Ao dissertar sobre a doutrina da entidade, Arruda (1978, p. 65) revela que essa se originou de um Curso de Alto Comando criado em 1942, ano em que o Brasil rompeu relações com o Eixo, mas que não foi operacionalizado. A idéia, diz Arruda (1978, p. 66), seria retomada em 1948 pelo Decreto 25.795, de 22 de outubro, o qual estabeleceu normas para sua organização. Seu nascimento se deu dentro do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), onde já se encontrava uma Missão Militar Americana composta por três altos oficiais. Era o tempo de plena Guerra Fria e da presidência de Eurico Gaspar Dutra, cujo governo era acima de tudo pró-EUA e anticomunista ferrenho. No entanto, nem sempre a ESG identificou-se inteiramente com as idéias dos geopolíticos americanos (TAMBS, 1978, p. 45-64) ou com as medidas daquele governo. Sua estrutura e os denominados “princípios fundamentais”, segundo Arruda (1978, p. 67), não eram uma cópia de sua inspiradora: Considerou-se, desde logo, desaconselhável que copiasse a nossa Escola o “National War College”. Este seria o grande inspirador, mas não o seu único modelo. Com efeito, a escola Americana, atuando num meio desenvolvido, podia dedicar-se preferentemente aos assuntos da guerra, despreocupada da solução dos problemas 111 nacionais, entregues a elites formadas por um sistema educacional de comprovada eficácia. No Brasil, porém, mais do que preparação para a guerra, a tarefa prioritária seria a de formar elites para a solução dos problemas do País, em tempo de paz. Dessas considerações nasceram os princípios, formulados com rara intuição, e que tiveram marcante influência na gênese e na evolução da ESG. Entre esses princípios, mencionaremos os que afirmam que a Segurança Nacional é função mais do Potencial Geral da Nação do que de seu Potencial Militar, e que o desenvolvimento do Brasil tem sido retardado por motivos suscetíveis de remoção, exigindo-se, para sua aceleração, que se utilize a energia motriz contida nas elites capazes de assumir os encargos de direção e administração do esforço nacional de construção: isto se conseguiria com a criação de um instituto de altos estudos, que funcionasse como centro permanente de pesquisas. [...] A idéia central contida nesses princípios era de que o desenvolvimento não depende só de fatores naturais, mas principalmente de fatores culturais. [...] O que se propunha para a nova Escola era algo contrário a um dos traços peculiares ao Caráter nacional brasileiro, e dos mais arraigados – o individualismo. A Lei de criação definitiva da Escola, de 20 de agosto de 1949, coerentemente, definia a mesma como não mais restrita a militares (Arruda, 1978, p. 68-69), mas congregando também civis de “[...] atuação relevante na orientação e execução da Política Nacional”. O artigo 1º da Lei, diz a mesma fonte, expressava seu objetivo maior: “desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários para o exercício das funções de direção e para planejamento da Segurança Nacional”. O binômio Segurança e Desenvolvimento, que marcou a doutrina da Escola e os governos militares pós-1964, já despontava desde os primórdios da Escola (ARRUDA, 1978, p. 68) e sempre orientou os seus trabalhos. Como qualquer entidade, a ESG teve diferentes momentos e sofreu influências de transformações políticas e ideológicas de âmbito nacional e global. Mattos (1977, p. 127) reconhece que sua origem está acima de tudo ligada a questões relativas às transformações do poder militar. Este, segundo o autor, após a Primeira Guerra “[...] perdia sua autonomia, no caso de conflitos bélicos e as expressões econômica e psicossocial do poder nacional entravam para o contexto bélico com um peso cada vez mais substancial”. O poder político, “[...] antes quase sempre arrastado pelo poder militar”, reconhece, passava a ser o único capaz de coordenar as três expressões citadas e a “[...] conduzi-las em convergência aos mais altos interesses nacionais”. Eis por que, afirma, a Inglaterra, em 1927 e depois a França em 1936 criaram suas escolas superiores de estudos estratégicos. Nestas, registra ainda Mattos (1977, p. 127-128), militares e funcionários civis “[...] se dedicaram ao estudo da guerra como fenômeno total [...] buscando uma melhor adequação da estrutura do Estado, para responder a uma tal emergência”. 112 O conceito de “guerra total” adotado do general alemão Karl Clausewitz, autor também da expressão: “a guerra é a continuação da política por outros meios” (DOWNS, 1969, p. 166-162), foi re-elaborado por Golbery (SILVA, 1981, p. 146-159). Este, na verdade, foi quem dotou a instituição de um arsenal político-ideológico, formando uma verdadeira escola de pensamento político, sacramentando antigas e novas teorias e concepções dos pensadores nacionais e estrangeiros. Assim, expressões como “guerra”, “poder”, “estratégia” e acima de tudo “segurança nacional”, passaram a ter um sentido próprio, bem como o papel pretendido pelos militares dentro da nova realidade esboçada nos seus trabalhos. Essa mudança conceitual estaria calcada (SILVA, 1981, p. 151) a ajustes necessários após a Segunda Guerra, quando esta mostrou que as táticas tradicionais de guerra foram superadas em favor de uma integração de ações. Com o fantasma da guerra nuclear, ao mesmo tempo sua impossibilidade, já nos tempos da guerra fria, outras concepções de guerra foram elaboradas para responder aos novos tempos. Algumas premissas, objetivos e princípios no entanto, permaneceram. Quatro exemplos disso são dados por Mattos (1975, p. 60): o surgimento do conceito de segurança em substituição ao de defesa; a consciência de que o Brasil possuía requisitos para ser uma grande potência; a crença de que o desenvolvimento brasileiro era retardado pela incapacidade de planejamento e execução governamentais e, “[...] a necessidade de elaborar um método de formulação política nacional”. Convivendo com rápidas transformações econômicas e políticas, a ESG esteve presente, visível ou não, por mais de três décadas na vida brasileira. Para Mattos (1975, p. 61), “[...] até 1964 a ESG não teve influência nas decisões do governo, mas formulou sua doutrina de segurança nacional e pesquisou no campo do desenvolvimento”. Arruda (1978, p. 72-73), levando em consideração a doutrina e o método de trabalho, identifica várias fases da ESG entre 1949 e 1978. A primeira iria até 1952, quando teria predominado o estudo da conjuntura. A segunda, entre 1953 a 1967, quando se iniciou o estudo da doutrina com ênfase na segurança, abrangendo inclusive o tempo do governo Castelo Branco. A terceira fase, de 1968 a 1973, foi a da predominância dos estudos de desenvolvimento. Neste último ano, explica Arruda (1978, p.72-73), um novo Regimento, instituído por decreto “[...] ampliou a missão primitiva da Escola – de Planejamento da Segurança Nacional – estendendo-a para a da ‘Formulação da Política Nacional de Segurança e Desenvolvimento´”. Não foi uma mudança de retórica, era época do “milagre econômico” e 113 do auge do fechamento político do regime militar, e os geopolíticos viam os resultados do crescimento brasileiro como o acerto de seus estudos e previsões. E, com o novo regimento da ESG, talvez pensassem, havia um respaldo maior , além do reforço de uma suposta fonte de legitimidade. Se na metade da década de 1970, havia estabilidade e progresso, supunham os geopolíticos da ESG, como Mattos (1975, p. 60-67), isso indicava que a política proposta pela Escola era “[...] formulada dentro de rigoroso processo de racionalização científica” e incorporava “[...] os valores geopolíticos que vinham sendo levantados por todos aqueles que a precederam como instituto superior de altos estudos” 19. Lembra ainda Mattos (1975, p.61) que: Quando veio a Revolução de 1964 a doutrina da Escola Superior de Guerra já estava formulada e exercitada em termos laboratoriais ou escolares. Foi fácil para o chefe da revolução, o presidente Castelo Branco e seus principais assessores Golbery, Ernesto Geisel, Juarez Távora, Cordeiro de Farias, todos ex-militares (sic), participantes ativos na formulação dessa doutrina, pois todos haviam pertencido aos quadros da ESG, transferirem para a prática governamental a doutrina formulada durante 14 anos no casarão do Forte de São João. Dentro da linha que atribui à entidade um papel central nos acontecimentos políticos e sucessos na economia brasileira pós 1964, Tambs (1978, p. 46), afirma: Os militares revolucionários brasileiros, ao contrário de outros países, já tinham um plano ao chegar ao poder. Orientados por um grupo de intelectuais militares e em íntima ligação com diplomatas e tecnocratas civis, que cursaram a Escola Superior de Guerra (ESG), as forças Armadas impulsionaram o Brasil para o Status de superestado. No entanto, de acordo com pesquisador norte-americano Alfred Stepan (1971), a doutrina da Escola, simpática ao liberalismo econômico, estava longe de ser seguida por todos os militares mais graduados e, as idéias políticas, principalmente sobre desenvolvimento, dos que assumiram o poder em 1964, foram assimiladas principalmente na experiência da Força 19 Compreensivelmente, ignoram-se nesse e outros textos da mesma linha estudos e mesmo instituições de cores políticas diferentes, como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), por exemplo. O ISEB (SANDRONI, 1999, p. 311) foi criado em 1955, subordinado diretamente ao ministro da Educação e Cultura, embora com autonomia administrativa e liberdade de pesquisa. Ocupava-se, além de estudos, da organização de cursos, conferências, palestras e seminários. Como era um foco de elaboração de ideologia nacionalista, foi extinto poucos dias após a derrubada do governo de João Goulart, em abril de 1964, por decreto. 114 Expedicionária Brasileira (FEB) e em cursos nos EUA. Daí serem os integrantes do grupo mais próximo a Castelo Branco, mais afeito com a política externa norte-americana. Stepan (1971, p. 245-247) anota que o governo que se seguiu ao de Castelo Branco, o de Costa e Silva, tinha um cunho mais nacionalista e elementos conhecidos como de “linha dura”, como os generais Albuquerque Lima, Syseno Sarmento, Jayme Portela e Emílio Garrastazu Médici. Entretanto, de acordo com Skidmore (2000b), não diferia muito do anterior, já que continuou na mão de tecnocratas de linha semelhante. Tratava-se, salienta Skidmore, de nomes conhecidos, como o economista Antonio Delfim Neto no Ministério da Fazenda, Helio Beltrão no de Planejamento e Mario Andreazza nos Transportes. No entanto, os acontecimentos futuros mostraram que havia uma divisão quase irreconciliável entre os dois grupos. Com o novo governo, ressalta Skidmore (2000b, p. 143), houve diferença no tratamento da inflação, diagnosticada como induzida pelos custos, sendo o maior deles o crédito. Foi estabelecido o controle de preços e salários e foi criado o Conselho Interministerial de Preços (CIP). O sucesso das mudanças econômicas foi em grande parte obscurecido pelos problemas políticos em 1968 e 1969. Nesse período, foi editado o Ato Adicional n. 5, o Congresso foi fechado, estabeleceu-se forte censura e aposentados juizes do Supremo Tribunal Federal. Mais forte, o governo ficou mais livre a partir daí para adotar medidas que antes passariam pelo filtro do Congresso e da opinião pública. A política econômica imposta ao país após 1964 (SKIDMORE, 2000b, p. 197), contrariava o pensamento nacionalista de alguns militares, notadamente o general Albuquerque Lima. Ministro do Interior; sua voz era ouvida com entusiasmo pelos jovens oficiais do Exército e da Aeronáutica. Um dos pontos de atrito que havia era a política de desenvolvimento regional e, quando por uma reforma constitucional, o montante dos impostos destinados aos estados e municípios passou de 20% para 12%, Albuquerque Lima renunciou ao cargo, exemplo seguido pelo diretor da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), que não concordou com os cortes orçamentários para sua instituição. Estava-se diante de um antigo problema, já referido, onde o poder central empalmado pelo Executivo, sobrepõe-se às regiões. O ministro era um grande defensor do desenvolvimento e da defesa das fronteiras. Albuquerque Lima, conforme Freitas (1993, p. 166-167), patrocinou a nomeação do tenente-coronel aviador Hélio Campos para governador do território de Roraima, em 1967. O apoio que Campos teve, na forma de recursos para obras de infra-estrutura de certa monta, corrobora a assertiva que mesmo durante o domínio da 115 “linha dura” no governo, que apoiava uma política econômica ortodoxa, houve preocupação com o desenvolvimento e a defesa da fronteira no extremo Norte. O grupo da ESG voltaria ao poder em 1974 com Ernesto Geisel. E, no governo desse, associado ao II PND e aos sucessos na área econômica e na política externa, alguns pensadores geopolíticos, como o general Meira Mattos, exultam com a perspectiva de o Brasil se transformar em potência mundial. Mattos (1975, p. 103), raciocinando sobre as indefinições e crises da política norte-americana após a guerra do Vietnam, afirma que: Na presente conjuntura mundial, dominada pela arrancada sem precedentes para o progresso científico e tecnológico, quem ficar para trás, dia irá aumentando a distância que, dramaticamente, separa as nações mais desenvolvidas das demais. Ficar para trás na escalada da ciência, da técnica e da indústria, significa condenarse à posição de inferioridade cada dia mais irrecuperável. Pelo direito de possuirmos uma vocação de grandeza, justificada pelas nossas expressões geográfica e demográfica, fomos desafiados a provar a nossa capacidade revolucionária alcançando as metas de nossa Política de Desenvolvimento a curto prazo. Este prazo concedido à Revolução não poderá passar do ano 2000. No início do milênio, teremos que estar formando entre as nações mais prósperas e poderosas do Universo. O ano 2000 é aqui um marco, uma meta a ser atingida de acordo com o mesmo autor (MATTOS, 1977, p. 137-144), quando o Brasil faria parte do clube das potências mundiais, com a incorporação de tecnologias, como a atômica. Esse otimismo era partilhado por alguns técnicos e intelectuais ligados ao regime. Na literatura política brasileira a data não se referia apenas ao final do século XX, quando muitas metas deveriam ser atingidas, mas também de uma “resposta” a um estudo do Instituto Hudson, de Nova York (MELO FILHO, 1974; SIMONSEN, 1973), publicado em 1965. Registra Simonsen (1973, p. 20-26), que a obra The Year 2000, de Herman Kahn e Anthony Wiener, indignou alguns analistas da economia brasileira, ao calcular para o Brasil uma renda de apenas 506 dólares per capita em 2000, enquanto a americana seria superior a 10.000 dólares anuais e o Japão, Canadá Europa Ocidental atingiriam aproximadamente 6000 dólares. O economista e ex-ministro destaca que a renda per capita do brasileiro era na época 280 dólares, o que representava 1:12,7 da americana, mas no ano 2000 essa relação seria de 1:20,7, de acordo com os pesquisadores americanos do Hudson. Simonsen (1973, p. 21-22) mostra que graças às medidas dos governos brasileiros de então, a Fundação Getúlio Vargas registrava que em 1969 o per capita brasileiro era de 440 dólares. Se a renda nacional brasileira seguisse esse ritmo, afirma o autor, teríamos em 2000 uma projeção de 3.100 dólares, uma “cifra bem mais alentadora que a prevista pelo Hudson Institute”. 116 Murilo Melo Filho lembra em O progresso brasileiro (1974, p. 91), com base em dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), instituição técnica brasileira, que a renda per capita do país já era em 1965 de 318 dólares, e que a taxa de crescimento econômico era bem mais elevada que a dos cálculos da dupla Khan-Wiener. Melo Filho (1974, p. 93) ressalta que a taxa de crescimento do “Brasil Grande” era de 7% ao ano e que na pior das alternativas, o Brasil ingressaria no ano 2000 na categoria dos países industrializados, apesar de sua elevada taxa de natalidade, que projetava para o país uma população superior a 200 milhões naquele ano. Registra ainda, (1974 p. 91) que o Hudson Institute, através do engenheiro ítalo-americano Roberto Panero, elaborou um projeto polêmico na década de 1960: o da inundação de grande parte da Amazônia para viabilizar sua exploração econômica, via construção de imensas barragens do lado brasileiro e da Colômbia. Nos anos de 1980, o Brasil e as outras economias latino-americanas sofreriam com a segunda crise do petróleo e a denominada crise da dívida. Becker, Egler (1994) registram que nesses países a renda per capita caiu aproximadamente 10% e em 1985 estava apenas um pouco superior que dez anos antes; o desemprego suplantava em 15% a força de trabalho e a inflação disparava. Em 2000, o Brasil e a Amazônia seriam diferentes do pensado e desejados, mas sem dúvida, há uma herança das transformações patrocinadas pelo Estado. 3. 7 CRESCIMENTO BRASILEIRO E REAÇÕES DOS PAÍSES VIZINHOS A literatura sobre as relações políticas latino-americanas costuma destacar o papel do Brasil frente aos demais países do continente, principalmente após seu crescimento e avanço para a Amazônia depois de 1964, quando temores antigos juntaram-se a novas preocupações. Autores como Bandeira (1995), Gall (1977), Madi (1998), Martinez (1980), Nazoa (1987), Salamanca (1973), Schilling (1978), Tambs (1978) e Visentini (1995) identificam os receios de governantes e outros setores com a expansão e dominância brasileira, principalmente no período 1964-1978. Com posições políticas e linhas teóricas diferenciadas no seu conjunto, essas fontes tratam o Brasil como um país em ascensão e com pretensões de estabelecer uma liderança sul-americana, com características de um sub-império, ligado à política de hegemonia dos EUA. O distanciamento brasileiro de seus vizinhos tem origens históricas remotas. Nos tempos coloniais, Portugal e Espanha participavam das constantes guerras na maior parte das vezes 117 em lados opostos. No século XIX, com a independência dos países de língua espanhola e do Brasil, este preservou sua integridade territorial, enquanto seus vizinhos de língua espanhola se dividiram e enfrentaram grandes períodos de instabilidade política. Restaram (CASTRO, 1992) alguns problemas de fronteira e de direitos sobre bacias hidrográficas e navegação de rios, que se estenderam até o século XX. Segundo Donghi (1975), estes problemas foram os motivos de guerras entre Peru, Bolívia e Chile, ameaças de choque entre este e Argentina, e guerra de uma aliança liderada pelo Brasil contra o Paraguai. Além disso, conforme Pinsky (1987, p. 337), o Brasil durante o Império relacionou-se principalmente com os países europeus, muito particularmente com a Inglaterra, “[...] por acordos comerciais e por dívidas”, dando as costas para seus vizinhos. Após a República, o eixo das relações mudou paulatinamente para os EUA ( PINSKY, 1987, p. 338-339), e, na Primeira República (1889-1930), por motivos mais geopolíticos que econômicos, o barão do Rio Branco levou a política externa brasileira a apoiar sempre a política americana. O poder dos EUA, interpretava o barão, defenderia o Brasil de uma dependência das potências européias. Quanto aos vizinhos, havia pendência de fronteira com a Argentina, com a Colômbia e com a Inglaterra. Quase todas foram resolvidas por arbitragem, geralmente em favor do Brasil, de acordo com Calmon (1971), perdendo este apenas uma área para a Inglaterra, onde hoje divisam o estado de Roraima e a República da Guiana. Na década de 1930, além da rivalidade Brasil-Argentina, houve guerra entre Bolívia e Paraguai e lutas armadas entre Peru e Colômbia nas divisas da Amazônia. O quadro ainda apresentava disputas de limites entre Bolívia e Chile e deste com o Peru. Foi nesse tempo que o governo brasileiro, a partir das idéias de geopolíticos como Backheuser, Lisias Rodrigues e Mário Travassos, realizava levantamentos junto às fronteiras do Norte amazônico, o que resultaria na criação dos territórios do Amapá e Rio Branco. Esses trabalhos chamaram a tenção do presidente Contreras, da Venezuela, que em 1938 (CAVALCANTI, 1949) ordenou um estudo visando à integração nacional de seu País nas “áreas despovoadas” do sul do Orinoco. Autores como o mexicano Martinez (1980), associam as ações do governo brasileiro pós-1964 à obra do general Golbery do Couto e Silva, “Geopolítica do Brasil” (1952). Esta, diz Martinez, é a fonte de uma doutrina básica e oficial da Escola Superior de Guerra para a expansão do Brasil sobre a América Latina e África. Mais contundente, Schilling (1978), identifica o “imperialismo brasileiro” com um tipo atualizado de fascismo e 118 um militarismo capaz de influenciar e até patrocinar a queda de governos vizinhos, além de promover uma “satelitização” do Uruguai. Como Martinez, Schilling vê nas ações da política externa brasileira, principalmente no rio da Prata e na Amazônia, como a realização da geopolítica, pensada por Mário Travassos e Golbery. Desenvolvendo argumento semelhante, Moniz Bandeira (1995) identifica a Amazônia como o segundo grande projeto geopolítico do autoritarismo brasileiro e ocupa-se das questões geopolíticas que envolveram o Brasil e a Argentina em questões como a da barragem de Itaipu, atraindo o Paraguai e a Bolívia através de ligações ferroviárias, empréstimos e abertura de portos livres. O triunfo do autoritarismo brasileiro, de acordo com Gall (1977, p. 112), teve um aspecto perturbador: a proliferação de “pequenos brasis” em outras partes da América Latina. Lembra ele, que das outras nove repúblicas sul-americanas, apenas o Paraguai e o Equador viviam sob governos militares em 1964, mas em 1977, só dois deles eram governados por civis. Segundo Gall (1977, p. 112): O ‘modelo’ brasileiro pareceu tão bem sucedido aos observadores em termos de promoção do crescimento econômico, redução da inflação, esmagamento da insurreição esquerdista, limitação do consumo de massas, controle das tensões sociais e mobilização política, que sua influência se espalhou nos últimos doze anos aos demais exércitos da região. As mais recentes e brutais dessas ditaduras provêm de três repúblicas latino-americanas mais europeizadas o Chile, a Argentina e o Uruguai. Assim, não é surpresa que países amazônicos, como Colômbia e Venezuela, não ficassem indiferentes ao avanço brasileiro em direção às suas fronteiras. A rivalidade Brasil-Argentina tinha proporcionado uma tentativa de aliança desta última com a Venezuela (BANDEIRA, 1995; TAMBS, 1978), visando formar uma frente de países contrários à política externa brasileira no continente. A Venezuela chegou a formar com os países andinos, inclusive a Argentina, o Pacto Andino, tentando isolar o Brasil. Entretanto, assinala Tambs (1978, p. 52), o Peru, a Bolívia, o Equador, a Colômbia e por último a própria Venezuela assinaram em 1978 o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), conhecido como Pacto Amazônico, liderado pelo Brasil. O autor assinala como razões dessa mudança o progresso econômico brasileiro e a influência de uma nova tecnologia. O peso deste novo fator, explica Tambs (1978), que podia alterar as relações geopolíticas, era a tecnologia atômica que, como esperava o Brasil, estaria à sua disposição com o Tratado Nuclear com a Alemanha, assinado pelo presidente Geisel em 1975 e que perturbou as autoridades norte-americanas. 119 A Venezuela, lembra Tambs (1978), foi um dos países fundadores da Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) quando se afastou dos EUA. Em 1964 não reconheceu o governo militar brasileiro e desde 1973 vinha se beneficiando da crise do petróleo, que quadruplicou seu preço. Tinha uma política externa independente, a ponto de reconhecer o governo revolucionário cubano e nacionalizar as empresas mineradoras e petrolíferas norte-americanas em 1974 e 1975. O então presidente Rafael Caldera promoveu uma aproximação com os países do denominado Terceiro Mundo e tentou a formação de uma aliança anti-brasileira. De acordo com Tambs (1978), esta busca foi promovida: Em parte pelo crescimento econômico do Brasil, a construção da Transamazônica, a projetada Perimetral Norte, o estabelecimento de campos de pouso e instalações militares em Roraima, o aumento populacional de Boa Vista e a subseqüente penetração para a fronteira da Venezuela. O encontro entre os presidentes Caldera e Médici, na cidade fronteiriça de Santa Elena de Uairén, em 1973, pouco serviu para reduzir as tensões. Até a decisão conjunta de pavimentar a rodovia em construção Manaus-Boa Vista-Santa Elena-El Tigre-Caracas, simplesmente exacerbou os receios venezuelanos. Tambs (1978, p. 53) registra que a pretensa aliança de países de língua espanhola de Caldera fracassou por não ter o país os “[...] fatores geopolíticos de espaço, posição, população e diretrizes [...]”, além das contradições dentro do Grupo Andino. Tambs (1978, p. 53) anota que a Venezuela estava “cercada” por nações castristas, como Panamá, Jamaica e Guiana e ligada ao Brasil por crescentes atividades econômicas e pela rodovia Manaus-Caracas. Assim, afirma Tambs (1978, p. 53), Caldera teve que se decidir em favor da “continentalização”, aproximando-se dos “americanos portugueses”, cada vez mais poderosos e independentes. No entanto, o governo venezuelano não tinha descuidado de suas fronteiras e territórios desde o sul do Orinoco (BARROS, 1995; MATTOS, 1980), tendo implantado um complexo minero-industrial próximo à foz desse grande rio, na província de La Guayana, onde desponta a moderna cidade de Puerto Ordaz, junto à antiga Ciudad Bolívar. Além disso, junto às quedas dos vários rios que se juntam ao Orinoco, foram construídas usinas hidrelétricas, dando ao sul da Venezuela energia barata e abundante. Sem discordar das razões econômicas e geopolíticas que separavam Brasil e Venezuela, Visentini (1995, p. 19-43) refere-se a uma assincronia política entre esses países, principalmente no século XX. A Venezuela, lembra Visentini (1995, p. 22-23), teve na primeira metade no século XX poucos anos de democracia, ao mesmo tempo em que se transformou num dos maiores produtores mundiais de petróleo. Segundo esse autor (1995, p. 120 23), em 1958 foi restabelecida a democracia e a política externa venezuelana adotou a defesa dos regimes democráticos no continente, a denominada “Doutrina Betancourt”20. No caminho inverso, o Brasil passaria em 1964 de regime democrático a uma ditadura militar. Ainda de acordo com Visentini (1995, p. 25-26), os temores venezuelanos foram afastados após a adoção de uma política externa independente no governo Geisel (1974-1979), a assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica em 197821 e o início dos acordos entre Brasil e Argentina sobre barragens do rio Paraná. Em 1979, um ano após a assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica, as relações entre Brasil e Venezuela já eram diferentes, conforme escreve Mattos (1980). Foi assinado um acordo petrolífero, aumentando a quota de compra brasileira de 50.000 para 100.000 barris diários e empresas brasileiras se associaram para a construção da grande hidrelétrica de Guri, um complexo de barragens integradas, e a Venezuela completou a rodovia que alcançou a fronteira com o Brasil. O autor exalta ainda a base fronteiriça em Boa Vista, onde teria sido criado um pólo de desenvolvimento. Essa última informação está ligada às ações locais implantadas durante o II PND e o POLAMAZÔNIA. Daí para frente, afora em alguns pequenos casos, não haveria grandes problemas nas relações entre Brasil e Venezuela O crescimento brasileiro causou alguma apreensão também na Colômbia. Salamanca (1973), ex-cônsul de seu país em Manaus, lamenta que seu país tenha sido alijado por Peru e Brasil de parte de sua fronteira amazônica no passado e, que não haja da parte de seu governo um plano de ocupação da região. Atribui esse fato à existência de uma mentalidade colombiana andina e montanhesa e apresenta (1973, p. 17-20), uma síntese de um Plano Geral para a Integração da Amazônia colombiana. Tece elogios ao Brasil, que empreendeu “[...] a obra quiçá mais importante para o desenvolvimento e da civilização americana”. O Autor citado, também manifesta preocupação com o avanço econômico brasileiro na fronteira e com o isolamento da cidade de Letícia. Salamanca (1973, p. 55-62) elogia a “Operação Amazônia” e destaca que a Zona Franca de Manaus, quase anulou o comércio de Letícia. Baseado nos exemplos brasileiro e no 20 A “Doutrina Betancourt”, leva o nome do presidente venezuelano Rómulo Betancourt, eleito após a revolução democrática que derrubou a ditadura militar venezuelana em 1945. Foi eleito presidente novamente em 1959. Conforme Zurita (1995, p. 122), essa doutrina consistia no não reconhecimento de governos surgidos pela força e produziu um distanciamento com o Brasil após 1964. 21 De acordo com Bansart (1995, p. 58-59), em 1976, quando o presidente brasileiro Ernesto Geisel propôs o Tratado de Cooperação Amazônica à Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, esta última “[...] manteve um longo silêncio acerca desta proposição e foi o último país a responder afirmativamente”. 121 peruano, defende a construção de rodovias na Amazônia colombiana, o que facilitaria a colonização. Anota que (1973, p. 63) a “Ação Amazônica do Peru”, ao tempo do presidente Belaunde Terry, de 1965, declara a zona amazônica de seu país, limítrofe com a Colômbia, liberada de impostos pelo prazo de quinze anos, enquanto os impostos do lado colombiano são os mesmos das grandes cidades. O autor (SALAMANCA, 1973, p. 112-113) propõe ainda a colaboração do Brasil, o “poderoso vizinho econômico sul-americano”, e diz (SALAMANCA, 1973, p. 139-140) ser inoportuna e delirante a tese da política imperialista do Brasil. Tambs (1978, p. 54-55) afirma que o Brasil tinha perante seus vizinhos uma “[...] superioridade geográfica, que acentuou o progresso ideológico, econômico e tecnológico”. Sua população era de aproximadamente 110 milhões de habitantes, concentrados no centro e no sul e crescia a um ritmo de 2,8% ao ano entre 1960-1975. A estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) era de que no ano 2000 teria ultrapassado os 200 milhões de habitantes e, como reconhece Gall (1977), havia um movimento populacional em direção às regiões fronteiriças tão intenso e de tal amplitude que sua impulsão dificilmente seria contida. Essa era na verdade, afirma Gall, a maior preocupação dos vizinhos do Brasil: as intensas mudanças na economia criaram uma população rural de aproximadamente 44 milhões de pessoas, com característica altamente móvel. Esse número, lembra Gall (1978, p. 107), era o dobro da população argentina, o maior vizinho e rival brasileiro. Os altos índices de natalidade e a mobilidade populacional no Brasil, que preocupavam administradores como Simonsen (1973), foi amenizada por outros, como Delfim Netto. De acordo com Gall (1978, p. 107-108), Delfim teria afirmado em 1967 que se o crescimento econômico era na razão de 9 a 10 por cento ao ano, nada seria ganho perdendo tempo com especulações sobre um fenômeno social tão desestimulante. Problemas como a concentração de renda e da terra estavam ligados à mobilidade da população diz o mesmo pesquisador, mas para o governo brasileiro da época os caminhos estavam traçados e ao final todos sairiam ganhando com o progresso geral. 122 4 RORAIMA: MILITARIZAÇÃO, PROGRESSO E CONFLITO A intervenção na Amazônia pelos governos militares após 1964 tem sido considerada como iniciada com a construção da rodovia Transamazônica, em 1970, após visita do presidente Médici ao Nordeste para verificar os efeitos de terrível seca. Ainda na primeira metade desse mesmo ano, segundo Velho (1976, p. 209), foram anunciados vários outros projetos rodoviários como a Cuiabá-Santarém, a pavimentação da Belém-Brasília e o apoio à rodovia estadual amazonense que ligava Manaus à Brasília-Acre. Em julho de 1970 foi anunciado o PIN que, na opinião de Velho (1976), substituiu a abordagem desenvolvimentista regional pela inter-regional. Entretanto, de acordo com a Fundação de Meio Ambiente e Tecnologia de Roraima (SILVA JR., 1994), no norte da Amazônia Ocidental houve medidas anteriores de grande monta, como a continuação da rodovia BR 174, ligando Manaus a Boa Vista, até então aberta lentamente pelo governo amazonense. O governo Costa e Silva (1967-1969), após o término da política externa de “fronteiras ideológicas” do governo anterior, em vista do desgaste político com países vizinhos (BANDEIRA, 1995, p. 234-236), optou prioritariamente pela defesa interna, entregue às Forças Armadas. Foi assim abandonada a participação de expedições armadas, em apoio à política norte-americana de contenção do avanço do comunismo, como a ocorrida em São Domingos em 1965. No entanto, de acordo com Bandeira (1995, p. 236), a posição brasileira não mudou, mesmo após a criação em 1967, na cidade de Havana, da Organização LatinoAmericana de Solidariedade, um instrumento com que Cuba esperava fomentar guerrilhas no continente. No final da década de 1960, o clima político no Caribe era explosivo (SILVA JR., 1994) e a posição estratégica de Roraima deve ter pesado na mudança do Comando Militar da Amazônia de Belém para Manaus, a apressar a abertura da BR 174 e deslocar vários contingentes militares para a fronteira com a Guiana e a Venezuela. A seguir, o governo passou a montar em Roraima uma infra-estrutura física, com a construção de edifícios públicos e milhares de casas residenciais, mudando o perfil da capital e do território. Essa mudança foi facilitada pela pré-existência de uma estrutura administrativa (Barros, 1995; Freitas, 1997), oriunda do tempo do Estado Novo, como já demonstrado. 123 Mas Roraima tinha mais que uma posição estratégica e uma pequena máquina administrativa. Havia desde o século XIX uma economia pecuária e mercantil (BARROS, 1995; CAVALCANTI, 1949) complementada pelo extrativismo mineral e vegetal. Evoluiu ali uma sociedade hierarquizada, patrimonial, tendo no topo criadores e comerciantes, e submetidas, diversas comunidades indígenas. Não obstante as mudanças ocorridas durante o regime militar, como uma nova estrutura administrativa e a chegada de migrantes em tal número que suplantou os nativos, houve por parte dos antigos grupos dominantes a preservação de valores e participação no poder. É notável o fato de que os territórios federais tenham se beneficiado de uma reforma constitucional em 1969, que retirou receita dos estados, e que a partir daí houvesse estabilidade e mais recursos aos governadores territoriais (FREITAS, 1993) por força do Decreto-Lei 411/6922. Em Roraima, estes representaram os diferentes momentos políticos e administraram segundo projetos nacionais, como os PNDs. Hélio Campos (1967-1970 e 1970-1974), homem ligado à “linha dura” militar, governou de acordo com o I PND, num momento de euforia nacional, cooptando as lideranças locais com cargos e apoio para dezenas de jovens estudarem nas grandes capitais. No seu tempo, a abertura da BR 174 e outras realizações locais causaram protestos da vizinha Venezuela, mas foram também pontos de referência para uma aproximação desta com o Brasil e sua participação no Pacto Amazônico23. Seu sucessor ao tempo do II PND, Fernando Ramos Pereira (1974-1979), mercê da tentativa de implantar os projetos previstos no POLAMAZÔNIA, entrou em choque aberto com algumas lideranças locais tradicionais. Com exceção do embate na época de Ramos Pereira, os grupos dominantes locais reagiam, em geral (FREITAS, 1993), de acordo com estímulos externos, como a cooptação, a coerção e a associação, adotados em diferentes tempos pelos administradores nomeados. Assim, aproveitaram as vantagens dos diferentes momentos pelos quais passou o regime militar. O caminho da redemocratização passa pela crise da dívida, do início da década de 1980, quando os abundantes recursos federais começam a rarear, mas já se anunciava que o território seria um futuro estado federativo, e as lideranças preparam o caminho para novos papéis. 22 O papel estruturante e orientador do Decreto-Lei 411/69 é também salientado por MacMillan e Furley (1994, p. 187). Esse instrumento foi na prática regulamentado por outro decreto, de n. 200/69. 23 Assinado em julho de 1978 pelos países amazônicos, inclusive a Guiana e Suriname, como já referido. 124 Com a redemocratização, em 1985, seguindo o processo de erosão do regime autoritário que vinha desde 1974, conforme Becker, Egler (1994), houve no Brasil a reacomodação das elites regionais, em busca de novos mecanismos políticos garantidores de seu poder. Em Roraima, nenhum dos grupos de interesse conseguiu a hegemonia e formou-se uma aliança em que, pela primeira vez, um filho da terra foi escolhido para governador. Mas a luta que se seguiu, inclusive com o assassinato do prefeito da capital, ensejou uma intervenção do governo central, que nomeou um novo governador, ligado aos grandes projetos de mineração. Este foi atropelado pelo grande afluxo de garimpeiros que invadiram as áreas indígenas e provocaram problemas de tal monta, que chamou a atenção dos países vizinhos, defensores dos índios e ecologistas do mundo todo, obrigando o governo brasileiro a fechar os garimpos. Criado pela Constituição de 1988 e organizado em 1990, o estado de Roraima não conseguiu resolver três de seus maiores problemas: a questão fundiária; a demarcação das terras indígenas, atendendo a mesma Constituição que o criou; e uma economia que não gera recursos para manter a máquina administrativa, dependente ainda de 80% de repasses federais para se manter24. Há um contínuo avanço de migrantes em direção à floresta, abrindo caminho para a extração de madeira e para a pecuária. Esse fluxo segue as antigas rodovias estratégicas, hoje os eixos de penetração na selva e que em alguns sítios deram origem a povoados e cidades. Persiste também um garimpo residual de ouro e diamante, cujas atividades são informais em sua maioria. 4. 1 A MILITARIZAÇÃO DA FRONTEIRA E A MODERNIZAÇÃO O abandono da doutrina de fronteiras ideológicas pelo governo Costa e Silva (1967-1969), de acordo com Bandeira (1995, p. 237), não significou que o governo militar brasileiro toleraria governos de esquerda, revolucionários, principalmente na bacia do rio da Prata. Pode-se dizer que o mesmo valia para a bacia amazônica, a julgar pelas ações ali desenvolvidas. Chamava a atenção das autoridades de Brasília a instável situação política da 24 A Lei Orçamentária do ano 2000, do estado de Roraima, apresenta na conta Receitas do Tesouro um total pouco superior a 459 milhões de reais, dos quais apenas 85 milhões são oriundas de Receita Tributária. Em entrevista (GADELHA, 2001, p.5), o ex-secretário de finanças do estado, Leocádio Vasconcellos, afirmava “O estado sobrevive do Fundo de Participação dos Estados, orçado em 30 milhões/mês e da renda tributária própria, em 11 milhões de reais/mês”. 125 Guiana, ex-Inglesa, com revoltas desde a independência em 1966, que se transformaram em guerra civil iniciada em 1969. Um dos lados em luta, o dos descendentes de indianos, o grupo étnico mais numeroso (BARROS, 1995), liderado por Chedi Jagan, abertamente advogava teses marxistas e era apoiado por Cuba. Índios passavam a fronteira para o lado brasileiro e havia notícias de invasão do território nacional. Sem alarde, pelotões de fronteira deslocaramse para Roraima em 1969 (SILVA JR., 1994), quando foi apressada a construção das rodovias BR 174 e BR 40125. A divisão de forças na cúpula do governo militar brasileiro não atrapalhou medidas de ordem geopolítica, pelo menos com relação à Amazônia setentrional. Em março de 1967, foi criado o 6.° Batalhão de Engenharia de Construção, que reiniciou a abertura da BR 174 ligando Manaus a Boa Vista, até então a cargo do governo do estado do Amazonas, cuja conclusão só se daria em 1977. A medida foi complementada pela formação de outras unidades militares, como o 2.° Grupamento de Engenharia de Construção em 1970, e pela fixação de outros pelotões militares nas localidades de Bonfim, Normandia e Surumu (SILVA JR., 1994, p. 283-284). Significativamente, o Comando Militar da Amazônia foi transferido de Belém para Manaus, o que sugere que a prioridade em termos estratégicos na Amazônia estava mais próxima da Amazônia Ocidental e do Caribe. Com o governo Médici, entrava-se em uma nova fase dos governos militares, situação a que o próprio ministro Delfim Neto adaptou-se, conforme Velho (1976, p. 211), mas não os representantes do liberalismo mais ortodoxo, como Gudin (1978, p. 269-270), para quem a Transamazônica era uma “[...] obra imatura [...] houve concorrência pública para início das obras antes da conclusão do projeto”. Críticas ainda mais ferozes vinham de pensadores mais à esquerda. Um crítico da intervenção na Amazônia, e do regime que a promovia, Oliveira (1994, p. 87), afirma que: A direita nacionalista militar que restou no Exército, após os expurgos de 1964, formulou, na competição com as correntes ‘entreguistas´ (representada fortemente pela dupla Campos-Bulhões) pela hegemonia no interior do primeiro governo da ditadura, a proposta de ‘integrar para não entregar`, que passou a ser um componente da doutrina mais ampla da ‘intervenção’. Na verdade a integração já era a fórmula juscelinista da Belém-Brasília, contra vozes mais autorizadas do pensamento burguês brasileiro se levantaram: Roberto Campos, Eugênio Gudin... a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. 25 A primeira liga Manaus – Boa Vista – fronteira com a Venezuela, enquanto a segunda liga Boa Vista à divisa com a Guiana. Estas estradas já tinham sido sugeridas na década de 1940 por Cavalcanti (1949), o que demonstra sua visão geopolítica e, também, que há uma continuidade entre a ideologia do Estado Novo e o regime militar pós-1964. 126 Essa guinada em busca do desenvolvimento nacional contrariava, pois, o pensamento liberal. No entanto, assevera Velho (1976, p. 170-171): “[...] os laços com o capitalismo internacional se fortaleceram após 1964, mas de 1969 em diante a política liberal mostrou-se simplesmente inaplicável por muito tempo”. O Estado, diz ainda o autor, “[...] foi forçado a preencher os ‘vazios’ na economia e gradativamente, na prática houve uma reversão completa das intenções declaradas”. Assim, autoritarismo e um nacionalismo que funcionava como uma fachada ideológica se conjugam no fechamento do regime. Este regime cada vez mais afasta os políticos liberais e coloca em seu lugar membros identificados com o autoritarismo. Uma das conseqüências disso, afirma ainda Velho (1976, p. 172), é que a centralização acelerou o ritmo e na prática desapareceu a autonomia estadual. Um exemplo concreto disso, citado por Skidmore (2000b), foi a retirada de recursos dos estados em 1969, legitimada por uma reforma constitucional. Mas os territórios foram beneficiados em seguida com medidas e legislação em sentido contrário, uma quase ironia para um país com tradição federal. Para Freitas (1993), uma medida do governo central, de resultados estruturantes para o território de Roraima, foi o Decreto-Lei 200, de fevereiro de 1967.26 Este decreto promoveu uma reforma administrativa ao instituir o Sistema Federal de Planejamento que atingiu fortemente os territórios, o que propiciou a melhoria de sua estrutura administrativa, a regularização e a ampliação dos repasses de verbas. A partir daí, houve uma estabilidade dos governadores no posto (FREITAS, 1997) com resultados positivos, pelo menos para Roraima, já que, por nove anos seguidos, dois governadores deram início, continuidade e fim a várias obras públicas de certa envergadura. Mas, os investimentos em Roraima, pelo menos numa fase inicial, não tinham objetivo propriamente desenvolvimentista e sim estratégico, situação que se modificou quando também mudou o panorama das relações políticas com os vizinhos países amazônicos, no final da década de 1970. Obras como a ponte sobre o rio Branco, que deu início à BR 401, a qual liga diretamente Boa Vista, a capital de Roraima, a Bonfim, na fronteira com a Guiana (SILVA JR., 1994, p. 199-212), construída na década de 1970, com mais de um quilômetro de extensão, simbolizam uma época. Não foi uma medida isolada, segundo Freitas (1993): o 26 Esse Decreto, com seus 613 artigos, deu nova forma à máquina administrativa federal brasileira. Entre outras coisas, abriu caminho para disposições legais como o já referido Decreto-Lei 411/69, de janeiro de 1969, o principal regimento dos governadores dos territórios durante o regime militar. 127 ritmo de construções durante o “milagre brasileiro” incluiu o palácio do governo e uma série de outras obras públicas, como casas para os novos funcionários, implantação de telefonia, luz elétrica permanente e água encanada na capital. Barros (1995) reconhece que havia a idéia geopolítica de que era preciso atrair e fixar pessoas, inclusive com formação para ocupar a terra fronteiriça. Explica ainda que esses incentivos para ocupação continuaram nos governos militares seguintes, mas o grande esforço, a obra maior da estratégia do governo desde 1967 na Amazônia Ocidental, foi a BR 174. Em 1964, início do regime militar, os territórios tinham sido marginalizados. Roraima só recebeu um governador nomeado pelo novo regime em julho daquele ano. Seu nome, segundo Freitas (1993), ficou associado à repressão que marcou a época em todo o país. Líderes locais, como o prefeito municipal, foram sumariamente presos, demitidos e cassados. Dilermando Rocha, o governador, diz a mesma fonte, era de confiança do Marechal Cordeiro de Farias, Ministro Extraordinário para Coordenação dos Organismos Regionais (MECOR), antecessor do depois recriado Ministério do Interior, o que lhe dava respaldo nas ações. Cordeiro de Farias foi o fundador da Escola Superior de Guerra e tinha inteiro conhecimento do papel a ser desempenhado pelo território. No entanto, esse autoritarismo inicial foi mudado, provavelmente em razão de se ter consciência que ali havia uma população nacional, com lideranças que poderiam ser cooptadas numa nova e necessária relação de poder. Na década de 1970, recursos oriundos do PIN, dos PNDs e do POLAMAZÔNIA, além dos específicos dos PDAs da SUDAM, seriam investidos em Roraima e mudariam sua história, administrados com entusiasmo por dois governadores militares do período: Hélio Campos e Fernando Ramos Pereira. O primeiro abraçaria posteriormente a política, aliando-se a grupos locais, opondo-se tenazmente ao governo do segundo e chegaria a senador do novo estado de Roraima, após reeleger-se mais de uma vez como deputado federal do território. Ramos Pereira seria o aplicador entusiasta da política desenvolvimentista contida no II PND e no POLAMAZÔNIA, além de defensor da criação do novo estado e de obras como uma usina hidrelétrica para suprir de energia Boa Vista e Manaus, que não foi construída. Segundo Freitas (1993), ele defendia, acima de tudo, uma racionalidade na ocupação do espaço do território, com a implantação de um pólo agropecuário e outro mineral. Seu reconhecido autoritarismo resultou em guerra aberta com os defensores dos 128 índios e com grupos políticos locais, até que estes últimos fossem apaziguados por seu sucessor, Ottomar Pinto, iniciador de uma nova era na política roraimense. Os Planos Nacionais de Desenvolvimento, especialmente o II PND (1975-1979), conforme Becker, Egler (1994, p. 144), seguiam a lógica do projeto geopolítico, objetivando ordenar o território nacional, através da sua ocupação rápida e combinada, incorporando o centro-oeste e a Amazônia e modernizar a economia nacional. Através dessas políticas, afirmam os autores, buscava-se ainda, estender o controle estatal a todas as atividades e a todos os lugares, com a função de também de legitimar o Estado. Um capítulo do II PND era o II Plano de Desenvolvimento da Amazônia (PDA) (1975-1979), elaborado pela SUDAM. O POLAMAZÔNIA era também específico para a região, enquanto cada território teve o seu Programa de Ação para o período. O Programa de Ação do Governo para o Território de Roraima – 1974-1979, contém um diagnóstico das realidades sociais e econômicas em Roraima na década de 1970, além dos objetivos gerais do POLAMAZÔNIA e II PND e da série de medidas a serem tomadas. Em 1973 (OLIVEIRA, 1988) foram lançados o Plano Básico de Desenvolvimento do Vale do Rio Branco, em Roraima, mas este deve ter sido substituído pelo Programa de Ação para o Território de Roraima, pois não há evidências e informações sobre sua implantação. Fato concreto é que o planejamento governamental para a Amazônia estava, já em 1973, abrindo um maior espaço para o grande capital. O Programa de Ação para o Território de Roraima, o detalhamento do II PND/Programa de Ação do governo para a Amazônia da SUDAM, de 1975, informa que a agricultura concentrava-se em torno das já citadas três colônias: Taiano, Fernando Costa e Cantá. Seu mercado, diz o mesmo documento, era reduzido, com baixo nível de educação agrícola, dificuldades de financiamento, mercado consumidor restrito à cidade de Boa Vista, assistência técnica reduzida e o sistema viário deficiente. Outra causa do atraso seria a situação fundiária indefinida: de um total de 1.193 imóveis rurais cadastrados em 1972, apenas 172 possuíam título definitivo. A soma total da área dos imóveis era de 1.835.652 ha. Dos imóveis titulados, informa o documento, apenas 53 deles teriam direitos reais, sendo que havia 905 titulares de posse, havendo ainda 190 imóveis cadastrados classificados como “inconsistentes”. Esses dados aproximam-se dos apurados pelo IBGE, que mostram uma intensa alteração nos números de 1970 em diante. 129 O Programa de Ação é um documento de planejamento de sua época, que trata o espaço geográfico do antigo território como área a ser ocupada, havendo exceção apenas para uma pequena porcentagem “reclamada pela FUNAI”, não por povos de cultura tradicional e diferenciada. Era uma visão burocrática e autoritária, dentro do contexto do pensamento geopolítico governamental da época, quando se acreditava acima de tudo na resolução de problemas com a aplicação de técnicas e medidas racionais. Nesse contexto, não há espaço para outras racionalidades ou culturas, como as indígenas. Das diferentes e então ignoradas culturas indígenas de Roraima, as mais numerosas são os Yanomami e os Macuxi. Outros grupos são os Ingaricó, Taurepang, Waiwai, Waimiri-Atroari, Wapixana e Maiongong. Os Yanomami vivem no oeste de Roraima, ficando parte de suas terras no Amazonas e na Venezuela. Sofreram invasões com repetidos avanços de fazendeiros e garimpeiros, o que só foi amenizado recentemente, com a demarcação de sua Reserva (FREITAS, 1997). Os Macuxi habitam o cerrado e a parte mais montanhosa, no nordeste, onde fica a Terra Indígena Raposa/Serra do Sol. Esta, segundo observadores como o Instituto Sócio-Ambiental (ISA) (2000) e pesquisadores da realidade local (SIMONIAN, 1999), é a área mais conflituosa de Roraima nos embates em torno de sua demarcação. Ainda segundo o Programa de Ação (p. 46-51), o rebanho bovino em 1970 seria de 330.000 cabeças,27 número que só seria ultrapassado em 1995; a pecuária seria a atividade de maior significação sócio-econômica do Território, abastecendo 30% do consumo de Manaus e absorvendo 28% da mão-de-obra rural masculina. No Mapa 6, que segue, tem-se a espacialização da área onde a pecuária dominava, por essa época. Por sua vez, as fazendas distavam de 26 a 316 km da capital, sendo que no inverno, período de chuvas, o acesso era dificultado. Informa ainda, tal como confirmado por outras fontes, que muitos capatazes que trabalhavam no sistema de “quarta”, isto é, recebendo um quarto dos bezerros criados, freqüentemente se transformavam em fazendeiros, o que atraia uma parcela notável da mãode-obra. Técnicas primárias, de criação extensiva e pouco empenho na melhoria de técnicas e cuidados alimentares seriam causas de uma baixa produção no setor. 27 Dados do IBGE, publicados em 1995 atribuem para 1970, rebanho de 238.761 cabeças, conforme Quadro 1. 130 Fonte: Ministério do Interior/ II PND /Programa de Ação para o Território de Roraima, 1975, p. 49. O gado exportado para Manaus variava entre cinco a oito mil cabeças/ano entre 1960-1968; aumentou para cerca de 10.000 em 1969, chegou a 15.000 em 1971, e baixou para 5.000 em 1974. O aumento destes números após 1967 é atribuído à implantação da Zona Franca de Manaus, o que justificaria as expectativas dos administradores nesse mercado. O consumo local era superior a 10.000 cabeças/ano. Ano 1970 1975 1980 1985 1995 Cabeças 238.761 246.126 313.881 306.015 399.939 Quadro1 - Rebanho Bovino de Roraima - 1970-1995. Fonte: IBGE, Censos Agropecuários, 2001. Chama a atenção a localização das fazendas de gado, conforme o Mapa 6, estão em sua maioria na região norte-nordeste, já na época reivindicada por grupos indígenas, mas o texto desconhece a questão. Algumas áreas interditadas pela FUNAI e uma outra, próxima às fazendas, merecem breve comentário no documento. Outro fato chamativo é que, havendo um 131 mercado seguro e crescente para uma pecuária provida de incentivos, a mesma não deslanchou, conforme mostra o Quadro.1. O Programa faz severa crítica ao comércio que, como será visto adiante, tem um importante papel na formação das lideranças políticas locais28. O documento ainda lista os minerais: ouro, diamante, cassiterita, além de 11 outros, o que preconizava, como era o plano geral, uma exploração empresarial. Sobre o extrativismo, refere-se a uma muito pequena exploração da borracha, da castanha e da balata, atividades que nas próximas décadas praticamente desapareceriam. Os resultados das medidas tomadas pela racionalidade do governo central quanto à titulação de terras, além de outras que se seguiram, podem ser analisados nos números apresentados pelos Censos Agropecuários do IBGE de 1970, 1975 e 1980. No primeiro Censo citado havia 1.483 proprietários, número reduzido para 150 no segundo, crescendo para 345 no último. Em 1985 esse número aumentaria mais de dez vezes, atingindo 3.666 e passaria para 6.643 em 1995-1996. Mas a mudança de números de 1985 em diante está mais ligada ao grande número de assentamentos do INCRA e do Instituto de Terras de Roraima (ITERAIMA), criado em 1992, e ainda, à política de legalização territorial promovida pelo governador Ottomar Pinto (1979-1983). Apesar do conflito quanto à questão fundiária, os interesses locais, segundo a aliança de poder estabelecida, tinham que ser atendidos, sendo a abertura de estradas um claro sinal disso. Na década de 1970, os vários governos do território abriram outras rodovias, ligando fazendas, povoações e assentamentos agrícolas que se transformaram nos anos seguintes em sedes de municípios. Esta rede de estradas deveria, também, possibilitar a ocupação organizada de novas terras, ignorando se estas eram indígenas ou não, o que permitiu e até acelerou o avanço para a floresta. Esses novos caminhos abertos permitiram não só a gradual agressão ao ambiente e pressão sobre as terras indígenas, mas também um explosivo aumento populacional pela chegada de migrantes, principalmente nordestinos assentados nos projetos agrícolas do INCRA e do ITERAIMA. Também foi facilitada a retomada da mineração garimpeira na segunda metade da década de 1980. Outra causa da destruição da floresta (BARBOSA, 1990; SCHNEIDER et al, 2000) é a extração predatória da madeira que se segue à abertura de estradas vicinais. As estradas vicinais se alongam segundo o desenho conhecido como “espinha de peixe”, transversalmente ao eixo da estrada principal e formam atualmente a maior parte dos 28 Alguns dos políticos da atualidade, filhos de comerciantes e profissionais liberais foram estudar em Belém e em outras cidades. E, a partir de cargos técnicos na administração, evoluíam para cargos políticos ainda na década de 1970, como será visto mais adiante. 132 aproximadamente três mil quilômetros de estradas estaduais. Sua construção e manutenção de alto custo, mantêm ocupadas inúmeras empreiteiras, já que as chuvas constantes de maio/agosto destroem trechos e pontes, e têm sido motivos de controvérsias e disputas por verbas entre grupos empresariais ligados ao setor de estradas29. Essas estradas quando mais novas, são construídas para acessar grupos de colonos que cada vez mais se embrenham na floresta, em busca de novas terras, algumas das quais são posteriormente vendidas após a retirada da madeira e transformadas em pastagens. Esse processo tem causado atritos entre pecuaristas e administradores do INCRA, além de deslocar lentamente os rebanhos para o sul e sudeste do estado. Em resumo, as mudanças estruturantes em Roraima a partir do final da década de 1960 e parte da seguinte, devem-se à associação de vários fatores como: a estabilidade dos governadores, sua relativa autonomia de decisão e recursos oficiais disponíveis. Pesou também o fato de, graças ao critério de escolha da época, os governantes serem dotados de boas relações em Brasília, principalmente com os ministros do Interior e da Aeronáutica. Oficialmente, o território era vinculado administrativamente ao primeiro, mas vivia-se em regime de exceção e, na prática, era quase sempre o segundo que tinha maior força. Como será demonstrado adiante, foi buscado o desenvolvimento, mas a matriz era geopolítica, em razão da situação do Caribe, palco principal do avanço da ideologia socialista através de Cuba, principalmente, e das relações tensas com a Venezuela. 4. 2 GEOPOLÍTICA E COOPTAÇÃO: O GOVERNO HÉLIO CAMPOS Com o início do governo Costa e Silva, em abril de 1967, seria nomeado governador o tenente-coronel aviador Hélio da Costa Campos, que governaria até o início de 1970, e depois do fim deste ano até 1974. Foi contemporâneo de dois fatos que contribuiriam para marcar profundamente Roraima: a instável situação política da Guiana e do Caribe e o que se denominou “milagre brasileiro”. Campos, como anota Freitas, (1993, p. 166-167), advinha do Correio Aéreo Nacional e tinha trabalhado como ajudante de ordens do brigadeiro Eduardo Gomes, seu mentor. A ala militar ligada a Gomes era de grande prestígio quando do início do governo Costa e Silva. O ministro do Interior deste, general Albuquerque Lima, ardente nacionalista, componente da “linha dura”, teria sido o “padrinho” da nomeação de 29 A construção/reconstrução de estradas é tão permanente, que há um forte e influente Sindicato dos Construtores de Estradas, que funciona junto ao Serviço Social da Indústria (SESI) de Boa Vista. 133 Campos. No dizer de Freitas, (1993, p. 166-167), este gozava também da confiança do ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Mattos e era um veterano de ações militares, como a intervenção em São Domingos em 196530. Com recursos para realizar projetos e mudanças, Hélio Campos apoiou-se no cotidiano da administração em dois nomes da terra: o antigo secretário do território Waldir Abdala e Francisco das Chagas Duarte, filho de fazendeiro e ex-prefeito de Boa Vista. Para obras como rodovias contava com o apoio do ministro dos Transportes Mário Andreazza, enquanto que para a parte mais administrativa beneficiava-se das reformas em favor dos territórios, quando estes passaram a receber repasses do Fundo de Participação dos estados e o dos Municípios, além de outros. Teve ainda o apoio do ministro das Minas e Energia Costa Cavalcanti, que depois, já no governo Médici, assumiria o Ministério do Interior e conseguiria sua nomeação para um segundo governo. Sendo esta uma exceção, sua explicação só pode significar que Campos era o homem certo para o projeto geopolítico já desenhado para a região, e que sabia articular com a sociedade política local. Obras de infra-estrutura, como dezenas de pontes e estradas, construção de casas populares, construção de um estádio de futebol imponente e melhoria no abastecimento em si não atrairiam o apoio de lideranças da terra. Assim, Hélio Campos atuou junto aos líderes e grupos locais, que, sem condições de eleger o deputado federal, estavam acomodados no partido de oposição, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Cargos e apelos amigáveis fizeram com que o candidato a deputado federal pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido de apoio ao governo, não tivesse concorrente em 197031. Situação diferente ocorreria quatro anos depois, quando o partido governista, como em outras partes do Brasil, não pôde acomodar as diferentes correntes e se fez uso das sublegendas. Em 1970, registra Freitas (1993), em razão das políticas públicas implantadas, Roraima e Boa Vista já apresentavam mudanças visíveis: a capital tinha se transformado em canteiro de obras, com centenas de novas casas e bairros novos, além de um campus universitário da Universidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Migrantes chegavam a toda hora, em busca de novas oportunidades. Técnicos vinham se incorporar à administração, beneficiados com a gratuidade de moradia, água, luz e transporte urbano, além da saúde pública grandemente melhorada. A população iniciaria um aumento exponencial, superado 30 Operação militar intervencionista em São Domingos, país do Caribe em 1965, patrocinada pelos Estados Unidos. Oficialmente, foi comandada por oficiais brasileiros. 31 Há informação segundo a qual a oposição teria ganhado as eleições em 1970 em Roraima, divulgada na imprensa nacional (Joffily, 1998, p. 199). Leituras de jornais locais desmentem o fato, bem como Freitas (1983). 134 apenas pelo território de Rondônia na década de 1980. O número de eleitores acompanharia esse crescimento, como será visto adiante, mas esta parece não ter sido uma preocupação de Campos naquele momento, até porque só havia eleição para um deputado federal e para as duas Câmaras de Vereadores, a da capital e a de Caracaraí. Além do progresso econômico, o início da década de 1970 foi marcado no Brasil pela repressão violenta à oposição política brasileira, parte da qual apelou também para a violência, através de guerrilhas, nas formas urbana e rural (JOFFILY, 1998; SKIDMORE, 2000b). A questão da segurança nacional permeava a ação administrativa de todo o Brasil. Ministérios, governos estaduais e outros órgãos tinham estreita ligação com o Serviço Nacional de Informações (SNI). Assim pode-se dizer que foi “natural” que entre o primeiro e o segundo mandato de Hélio Campos, um espaço de nove meses, o governador, Walmor Dalcin, fosse o antigo chefe da Divisão de Informações do Ministério do Interior. Esta vinculação ou experiência junto à área de Informações, conforme registra Freitas (1993, p. 179), era uma pré-condição para governar os territórios. Dalcin, como Campos antes e depois, apoiou-se em técnicos e lideranças locais, embora tenha nomeado um cunhado para prefeito de Boa Vista. Seu curto governo foi marcado pelo grande apoio aos estudantes roraimenses que residiam em Belém e Manaus, os quais ganhavam passagens aéreas e bolsas de estudo (FREITAS, 1993, p. 180). No segundo governo Hélio Campos (1970-1974), foram adquiridas as Casas do Estudante de Roraima nas duas capitais citadas (GOVERNO ADQUIRE..., 1973, p. 5), que ainda hoje funcionam, vinculas ao governo estadual32. Nesse período, Campos continuou usufruindo dos bons tempos do “milagre brasileiro”, sem se descuidar do item segurança e informações, criando um jornal para o governo33, construindo instalações próprias para as estações de radiocomunicação em diversas localidades, principalmente junto às fronteiras da Guiana e da Venezuela, além de ampliar o aeroporto da capital e os quartéis de fronteira, agora com iluminação própria, uma novidade na região. Existem evidências que tudo era monitorado por Brasília, traduzidas localmente como um apoio irrestrito do ministro do Interior, o general Costa Cavalcanti ao governador (MINISTRO..., 1973, p.3), que visitou Boa Vista “mais de dez vezes em 1973”. Havia uma justificativa para a preocupação geopolítica com Roraima naquele tempo em que alguns países de língua espanhola tentavam formar uma aliança anti-brasileira. 32 33 Em Manaus existe também a Casa do Estudante feminina. Jornal Boa Vista, fundado em setembro de 1973, impresso na Imprensa Oficial do Estado. 135 Em 1973, registra Tambs (1978, p. 52-53), a vizinha Venezuela tentava liderar esse movimento, aproximando-se da rival brasileira, a Argentina. Embora o autor registre que as tensões não se reduziram com o encontro, naquele ano, dos presidentes Médici e Caldera na cidade fronteiriça de Santa Elena de Uiairén, o jornal do governo de Roraima informa que no ano seguinte foi instalado em Boa Vista o consulado venezuelano (CONSULADO DA VENEZUELA....,1974, p. 5). Caldera, em vista do insucesso da aliança pretendida, preferiu aproximar-se posteriormente, do Brasil. Tambs (1978, p. 53), atribui peso determinante nessa decisão à construção da BR 174. A habilidade política de Campos pode ser percebida no seu trato com os políticos e outras lideranças locais, num entrosamento tal que foi escolhido como candidato a deputado pelo território após o término de seu mandato, em 1974. O poder central e o local se completavam nas ações. Foi diferente com seu sucessor, pois este teve que enfrentar problemas que confrontavam o poder local, como o da legalização das terras, já apontado pelo referido Programa de Ação. A titulação de terras no território causaria o choque entre o poder patrimonial local, até então intocado, e o governo central, o que se estendeu pelas décadas seguintes. No fim de 1973, o veículo oficial do governo territorial, Jornal Boa Vista, apresentava em manchete: Esperanças do homem roraimense residem no PROTERRA (ESPERANÇAS..., 1973, p. 8). A mesma fonte informava que o INCRA enviou ao território na ocasião o chefe da Comissão de Discriminação de Terras Devolutas e o Banco do Brasil financiaria essa titulação com recursos do Programa de Redistribuição de Terras e Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste (PROTERRA). Houve resistência e desinteresse a esse registro por parte de muitos, pois o mesmo jornal – que era o veículo do governo – em edição de 20 de outubro trazia mensagem do Projeto Fundiário Boa Vista-INCRA, esclarecendo que posseiros e ocupantes precisavam procurar o INCRA. O encarregado do projeto informava que havia “[...] medo que o INCRA lhes tomasse as terras, quando a finalidade do INCRA é efetivar a discriminação da terra, legitimando a propriedade dos posseiros e ocupantes” Em novembro o Jornal Boa Vista estampava: “Política do INCRA não é tomar a terra, e sim regularizá-la” (POLÍTICA..., 1973, p. 8). Os números dos Censos Agropecuários dos anos posteriores mostram que não houve muito sucesso no chamamento, nem nas intimações que se seguiram. Um estudioso da questão, o antropólogo Paulo Santilli (2001, p. 65-75), afirma que houve até o cancelamento 136 de muitos cadastros rurais na ocasião e nos anos seguintes, o que é corroborado pelos números dos censos do IBGE, constantes na Tabela 4. A planejada racionalização do espaço geográfico, aplicada pelo Programa de Ação e a implantação do POLAMAZÔNIA, enfrentariam outro problema: o da abertura das prioritárias rodovias 174 e Perimetral Norte. Nestas houve resistência dos índios à invasão de suas terras, enquanto nos outros projetos a serem implantados nas regiões de ocupação mais antiga havia indefinição de direitos, fossem de indígenas ou não. Eram problemas para o sucessor de Hélio Campos, Fernando Ramos Pereira (1974-1979), no tempo em que na política internacional imperava a “Guerra Fria” e as relações com a Venezuela estavam deterioradas, e logo havia pressa. 4. 3 AUTORITARISMO CENTRAL X PATRIMONIALISMO LOCAL: O GOVERNO RAMOS PEREIRA O denominado “novo autoritarismo”, distinto do tradicional e caudilhesco, surgiu na década de 1960 nos países que tentavam se modernizar (BECKER, EGLER, 1994). Ele é exercido por um Estado que, na concepção de Schwartzman (1982, p. 138-139), é o representante do setor dominante da sociedade, “[...] capaz de criar grandes estruturas organizacionais capazes de mobilizar recursos e desenvolver capacidades extrativas e produtivas, incorporando grande parte da riqueza territorial e de seus recursos humanos”. De acordo com Becker, Egler (1994, p. 144-15), o desenvolvimento científico-tecnológico tornou o Estado capaz tecnicamente e conceitualmente para tratar do espaço em grande escala. Dentro desse quadro, surgem, integradas ao II PND, as estratégias regionais como a de pólos de desenvolvimento, que são vistos no Mapa 7, a seguir, o que contrasta com a escala macroregional do I PND. É neste contexto que Roraima recebe um novo governador, intérprete fiel dos planos e com poderes conferidos de um governo burocrático-autoritário, segundo a concepção de O´Donnel (1982). 137 Mapa 7 - Pólos de desenvolvimento do II PND. Fonte: Becker, Egler, 1994, p. 149. Em janeiro de 1974 tem início o governo brasileiro do general Ernesto Geisel. Em abril assume o governo em Roraima o coronel-aviador Fernando Ramos Pereira, amazonense, pessoa de confiança do novo ministro do Interior, Rangel Reis ( FREITAS, 1993), que o acompanha na cerimônia de posse em Boa Vista. O Jornal Boa Vista (RORAIMA TERÁ..., 1975, p. 1)34 registra que Ramos Pereira declara em discurso que veio “[...] para colaborar para o sonho dos filhos da terra em desenvolver o território e transformá-lo em estado da Federação”. Disse ainda ter fé nas potencialidades econômicas do território, “[...] nos setores da pecuária, agricultura e mineração”. Nomeou para prefeito de Boa Vista um roraimense, Júlio Martins. Este, segundo Freitas (1993), seria seu futuro aliado político, mas inimizar-seia com a maioria das lideranças locais, como alguns membros da família Brasil, que encontrou abrigo no MDB. O governador, Ramos Pereira se dedicou sobretudo a viabilizar em Roraima o projeto de desenvolvimento do governo Geisel para a Amazônia. O tempo e as obras deram também, a Ramos Pereira, a fama de “austero” (FREITAS, 1993); “[...] um homem probo, mas 34 O jornal oficial do governo esteve desativado de 12 de março a 28 de maio, o que demonstra uma descontinuidade, senão uma não aceitação do novo nome pelo seu antecessor e sua gente. 138 que não quis colonizar o sul do estado [...]”, de acordo com o ex-governador Getúlio Cruz (2003, i. v.). Sob o slogan: Ocupação, desenvolvimento, integração, Ramos Pereira perseguia os objetivos desenvolvimentistas do II PND e do POLAMAZÔNIA, como a urbanização de núcleos urbanos na fronteira com a Guiana e a Venezuela, a expansão da malha urbana de Boa Vista e a completa remodelação urbana da cidade de Caracaraí, ponto de junção da BR 174 e da Perimetral Norte, ambas em construção no tempo de seu governo. De acordo com o II PND (1975, p. 62), Boa Vista e Caracaraí eram os únicos municípios do território e as sedes estavam incluídas como “[...] centros urbanos de apoio ao modelo [...] organização racional do espaço [...]”. As áreas destinadas aos projetos de desenvolvimento locais constantes do POLAMAZÔNIA, o Pólo Agro-pecuário e o Pólo Mineral, abrangiam as “áreas antigas” ocupadas por grupos indígenas e por fazendas com limites indeterminados, cuja documentação era colocada em dúvida pelo INCRA. No sul e sudeste, a abertura das rodovias BR 174 e Perimetral Norte causavam conflitos cruentos com os índios que foram violentamente reprimidos. Exemplo disso ocorreu em janeiro de 1975, quando a Delegacia Regional da FUNAI recrutou 80 trabalhadores que se juntaram aos 46 que recebiam treinamento de sertanistas para trabalhar em cinco frentes de atração que seriam criadas no território dos Waimiri-Atroari (DEMONSTRAÇÃO DE FORÇA..., 1975, p. .3). De acordo com o jornal, o delegado regional alegou que estava apenas fazendo uma “[...] demonstração de força aos indígenas, visando evitar novos massacres e proteger a vida tanto dos servidores como dos militares [...]”. A BR 174, inaugurada em 1977, foi aberta pelo 6.º Batalhão de Engenharia de Construção, sediado em Boa Vista. O sentido de “missão” do empreendimento pode ser haurido da canção dessa unidade militar, intitulada “A mais bela das vitórias”, cuja letra enaltece a derrubada da floresta e a vitória sobre a selva (SOUZA, 1977). Na construção da estrada, morreram quatro militares e 28 civis, lembrados em um monumento junto à estrada, com a inscrição que homenageia aqueles que “[...] deram suas vidas pacificando os índios Waimiri-Atroari. Não morreram em vão. Abril 1977”. Souza (1977, p. 275) exalta a ligação rodoviária entre o Brasil, a Venezuela e com a Guiana, e através do Pacto Amazônico, ao comércio com o Caribe. Nesse sentido, Souza (1997, p. 275) que representa um pensamento dicotômico em favor de ligações terrestres, típico do pensamento geopolítico da época afirma: “Problemas resolvidos. Guerra em revanche contra um mundo extraordinariamente 139 hidrográfico. Olhado e aceito pela maioria dos brasileiros como impossível de ser domado e vencido”. Ao relatar a abertura da mesma rodovia, Matta (1992) dá outra visão dos acontecimentos, reunindo informações sobre assassinatos de centenas de Waimiri-Atroari ataques a aldeias e a transferência forçada destas, diminuição de seu território por portarias da FUNAI, e favorecimento à empresa mineradora Paranapanema. A área indígena em questão, que abrange os estados de Roraima e Amazonas, também compreendia terras que foram inundadas pela represa de Balbina, o que aumentou a pressão sobre o grupo. Em 1968, tendo percebido o desastre resultante da abertura da Belém-Brasília para inúmeras tribos, as autoridades delegaram aos padres da Prelazia Católica de Boa Vista a atração e “pacificação” dos Waimiri-Atroari. O padre italiano Calleri, que comandava a operação, foi morto pelos índios naquele mesmo ano, tendo havido a partir daí uma repressão sem trégua aos indígenas da região (MATTA, 1992, p. 383-384). Nos anos seguintes a Igreja, através do Conselho Indígena Missionário (CIMI), de acordo com Matta (1992, p. 384-385), mudou sua linha de ação frente aos povos indígenas, passando da tentativa de evangelização para a defesa do direito à terra, à cultura e a autodeterminação do índio. De 1975 em diante, registra Matta (1975, p. 385), mediante as novas violências contra os Waimiri-Atroari, que o CIMI passou a denunciá-las, principalmente aquelas originadas pela abertura da BR 174. Para os agentes regionais do governo, a resistência e a própria existência do índio eram um entrave a ser removido. Ainda em 1975, o governador de Roraima, Ramos Pereira, declarou ao Jornal do Brasil: “Sou de opinião que uma área rica como essa não pode se dar ao luxo de conservar meia dúzia de tribos indígenas atravancando o seu desenvolvimento” (MATTA, 1992, p. 378). O governador do Amazonas, registra a mesma fonte, brandia discurso alegando que os índios ocupavam as áreas mais ricas do seu estado, causando prejuízos para a receita nacional, já que impediam a exploração destes e impossibilitavam a prestação de melhores serviços de saúde e educação. Quando ainda se viviam os tempos do “milagre brasileiro”, não parecia haver lugar para o índio num mundo novo que nascia. Este se transformava rapidamente pela assimilação de tecnologia e a determinação e vontade do governo. A selva e o índio estavam no mesmo lugar dentro da ideologia de desenvolvimento a qualquer preço e precisavam ser removidos. Esse desenvolvimento na Amazônia, já pensado pelos geopolíticos, tinha algumas marcas bem definidas, tais como a idéia de que ela podia ser conquistada por meio de 140 rodovias que se entrecruzavam e a de que havia tecnologia adequada para tal empreendimento. Gall (1977, p. 104-105) alerta que o “milagre” foi possível pela disposição de energia de origem fóssil abundante e barata, mas pouco disponível em território brasileiro. O Brasil tirou vantagem do baixo preço do petróleo, mas em 1973 os preços deste quadruplicaram, todo o curso do desenvolvimento brasileiro ficou ameaçado e os projetos de desenvolvimento tiveram, cada vez mais, maior parcela de capital desviado para cobrir os déficits causados pelo crescente aumento do custo do combustível. O uso de tecnologia de ponta aplicada na exploração de áreas antes quase desconhecidas da Amazônia é comentado por Gall (1977, p. 104). Equipes de geólogos conseguiram atingir Carajás pela primeira vez, utilizando helicópteros de combate do Vietnam adaptados para uso civil, chegando a um inacessível maciço da Amazônia, revelando a maior jazida de minério de ferro do mundo, com alto teor jamais encontrado. Outro conjunto de planaltos da selva amazônica, o de Trombetas, induziu o Projeto RADAM a realizar busca com levantamento sistemático, utilizando os processos de esquadrinhamento lateral de radar, disponibilizado pela força Aérea Americana desde 1970 (GALL, 1977, p. 104). Um desses processos deve ter sido empregado pelo RADAM em Roraima em 1974, quando se noticiou, com alarde, a descoberta de urânio. Em Surucucu, terra dos índios Yanomami, técnicos do governo federal com ajuda de militares, teriam localizado urânio, mineral estratégico (URÂNIO EM RORAIMA, 1975, p.1) O deslocamento de vários ministros até o local e o destaque da notícia, dada pelo ministro de Minas e Energia, Shigeaki Ueki, atesta a importância que se dava ao fato, numa época em que o Brasil assinou um acordo nuclear com a Alemanha. Roraima parecia destinada a ceder caminho para o desenvolvimento, mesmo ao preço do desaparecimento de culturas tradicionais milenares. Na cachoeira do Bem-Querer, no rio Branco, o governador pretendeu construir o que seria sua obra maior (FREITAS, 1993), defendida pessoalmente por ele nas reuniões da SUDAM: um projeto integrado de usina hidrelétrica e eclusas para a navegação, inundando áreas ocupadas. O projeto foi incluído por Geisel no POLAMAZÔNIA35. Pereira também executou o Plano de Expansão Urbana de Caracaraí e localidades fronteiriças de Bonfim, Normandia, Pacaraima e Surumu (EDITAL..., 1977, p.9). Construiu (SILVA JR., 1994) a ponte 35 Segundo o Jornal Boa Vista, órgão do governo territorial, em 28.05.1977, tratava-se da mudança de recursos de uma outra usina, a de Cotingo. A medida foi defendida pelo ministro das Minas e Energia Shigeaki Ueki. 141 sobre o rio Branco, na capital, parte da BR 401, que demanda à fronteira com a Guiana e uma outra sobre o rio Urariquera, no norte do território. Ao tentar impor o modelo de desenvolvimento pretendido (FREITAS, 1993), Ramos Pereira chocou-se com uma estrutura de poder local que não ousava até então desafiar o governo federal. As razões do enfrentamento só se explicam pela importância que as lideranças locais que, em grande parte agrupadas na sigla partidária do MDB, defendiam não só valores, mas principalmente sentiam-se ameaçadas pela possível perda do seu bem mais precioso: a terra. No Programa de Ação do Governo para o Território de Roraima (1975, p. 79), a regularização da situação fundiária encabeçava a lista dos pré-requisitos para o desenvolvimento do território, junto com a conclusão da ligação rodoviária com Manaus, a reestruturação e modernização do setor público e implantação de um sistema de planejamento territorial. O enfraquecimento do governo central em vista das crises de 1979 e 1981-1982 daria condições para a emergência de novas relações de poder em Roraima. Em razão das reformas eleitorais que valorizaram o voto nas regiões menos desenvolvidas, o número de deputados federais no território passou para quatro, um sinal de que os tempos mudaram em favor da situação local. Entretanto, lideranças nascidas no bojo da burocracia estatal buscavam também seu espaço na política do já declarado futuro estado federativo, disputando com os da terra, um eleitorado cada vez mais identificado com os migrantes. 4. 4 AS ORIGENS DO POPULISMO: O PRIMEIRO GOVERNO DE OTTOMAR PINTO A transição do regime militar para a democracia não foi rápida nem linear. Seu caminho foi permeado pela idas e vindas desde 1979, ano da posse do último governante do regime, João Batista Figueiredo. Ao lado do autoritarismo persistente, que impediu a emenda constitucional das eleições diretas para presidente, houve a anistia a presos e exilados políticos, bem como a derrubada do voto indireto para governadores e prefeitos de capitais. Nesse contexto, onde o voto foi evidentemente valorizado, houve uma re-acomodação das elites regionais (BECKER, EGLER, 1994). Para esses autores: O clientelismo , instrumento para obter votos através da troca de favores e bens públicos, atingiu níveis sem precedentes na história brasileira, em grande parte porque as formas tradicionais de fidelidade eleitoral – baseadas na propriedade da terra – foram profundamente abaladas pela mobilidade da força de trabalho e ameaçadas pelas novas territorialidades (BECKER, EGLER, 1994, p. 223). 142 Com o término do mandato de Ramos Pereira, assumiu o governo de Roraima o brigadeiro da Aeronáutica Ottomar de Souza Pinto, o qual tratou de administrar dentro do novo quadro político nacional, contrastando desde o início com seu antecessor. Ottomar tratou de pacificar os ânimos entre os grupos dominantes locais, divididos entre os que apoiavam Ramos Pereira, a minoria, e as outras lideranças, como os membros da família Brasil. Formou um secretariado tendo por base as forças locais, como Getúlio Cruz, Mozarildo Cavalcanti e Francisco Chagas Duarte36, todos roraimenses, exestudantes em Belém, patrocinados pelos governos anteriores. Os três se notabilizariam, após projeção como administradores, como líderes políticos. As atitudes iniciais de Ottomar geraram um clima de concórdia (FREITAS, 1993, p. 195), que o levaram a receber em baile oficial um diploma de “Governador da paz”, em couro de carneiro incrustado de brilhantes. A mudança de estilos e de pensamento pode ser observada em dois pronunciamentos que mostram atitudes que se converteram em ação. Coerentemente com a política dos grandes projetos do II PND, voltados para a atração do grande capital privado, Ramos Pereira afirmara ser uma das maiores preocupações do seu governo “evitar a todo custo a ocupação espontânea, a nível familiar, ao longo dos eixos rodoviários principais, motivada pelo fluxo carreador de contingentes em busca de melhores oportunidades, criando em pontos estratégicos postos de triagem” (RORAIMA TERÁ POLÍTICA..., 1975, p. 1). Contrariamente, Freitas (1993, p.196) no seu discurso de posse, Ottomar diz: “[...] Que venham, sem demora, nossos irmãos do centro-sul e do Nordeste! Que tragam seus instrumentos de trabalho e seu vigor produtivo, extraordinários fermentos, que farão crescer e crescer muito o bolo de nossa economia [...]”. Ottomar daria, de fato, inteiro apoio aos migrantes, formando uma base política própria de sustentação. Outra mudança apontada por Santilli (2001, p. 70-71) foi o apoio aos pecuaristas quando da demarcação de áreas indígenas, quando houve, inclusive, reuniões destes em repartições públicas e a presença do próprio governador em reuniões que a FUNAI realizava com as comunidades indígenas. A segunda parte da década de 1970 no Brasil foi marcada por sucessivas mudanças na legislação eleitoral que beneficiavam os estados mais pobres e os territórios federais onde o partido do governo detinha mais força. As eleições tinham tomado o caráter 36 Ottomar de Souza Pinto, pernambucano, era brigadeiro da Aeronáutica. Segundo Oliveira (1991, p. 34), estudou economia, medicina e Direito. Era vinculado à Comissão de Aeroportos da Amazônia (COMARA) e veio para Roraima participar da construção do aeroporto de Boa Vista. Segundo Getúlio Cruz (2003, i. v.) sua nomeação foi resultado da amizade com o irmão do presidente Figueiredo, Euclides, que presidia o Comando Militar da Amazônia, mas não dispunha da simpatia do ministro da Aeronáutica nem da do Interior. A rápida queda de Ottomar em abril de 1983 dá crédito a essa versão. 143 de plebiscito, sendo necessário ao governo federal desunir a oposição política. Em 1979, baseado em plano de seu estrategista, o general Golbery, o governo federal promoveu a extinção dos partidos MDB, de oposição, e a ARENA, governamental, abrindo espaço para a criação de novas legendas. Diferentemente dos governos anteriores, essa mudança necessitava de legitimidade, e por isso passou pelo Congresso, com protestos, sendo aprovada a Lei de n. 6.767/79. O objetivo desta foi atingido mas a oposição mais forte e estruturada logo se recompôs no Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), enquanto forças que apoiavam o governo mais de perto fundaram o Partido Democrático Social (PDS). Outro objetivo governamental era apoiar-se em partidos próximos ou de sua confiança, fortalecendo sua base (JOFFILY,1998, p. 223). Essa abertura propiciou, em todo o Brasil, uma corrida das lideranças, novas e velhas, em busca de abrigo ou papel de comando partidário. Em Roraima, onde o número de vagas para deputado federal aumentou, não foi diferente. A primeira metade da década de 1980 marca outras grandes mudanças no Brasil. Foi a época de greves nacionais, inflação, de conflitos pela terra, quebra financeira do país em 1982 levando-o à recessão e a um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas 1982 foi também ano de eleições nacionais, onde prevaleceram as regras constantes das reformas eleitorais de 1979, embora isso não bastasse para levar o partido governista, o PDS, à vitória. Foram proibidas as coligações e o voto foi vinculado às legendas. Completando o quadro, a Emenda Constitucional de n. 22 ampliou o número de deputados federais nos estados menos populosos - de seis para oito – e nos territórios – de dois para quatro (JOFFILY, 1998, p. 235). Não é difícil imaginar os efeitos da abertura de oportunidade política numa população como a de Roraima, na época pouco superior a 80.000 habitantes (BRASIL, Instituto..., 1991). O grande objetivo do governo era manter maioria no Colégio eleitoral que elegeria o futuro presidente (SKIDMORE, 2000b), mas a base governamental rachou quando o próprio PDS se dividiu em duas alas, formando uma delas o Partido da Frente Liberal (PFL) que, aproximando-se do maior partido da oposição, o PMDB, isolou o governo em 1985, ano de eleição para presidente. Em Roraima, o governo Ottomar (1979-1983) não foi isento de crises. Teve que demitir o prefeito da capital e houve conflito na criação do PDS, partido de apoio ao governo federal. Embora elegesse os quatro deputados federais do território, o partido cindiu-se em “ala do governador” e “ala nativista”, conforme Freitas (1993, p. 201). As lideranças locais teriam ficado também chocadas com o novo estilo de governo, afirma Freitas (1993, p. 201), 144 pois esse incluía um crescente fluxo de migrantes que “[...] reforçava o contingente eleitoral e a liderança do governador”. Ottomar seria afastado do cargo em 1983 (Veja, 1983, p. 44), após conflito com o deputado federal João Fagundes, militar e seu ex-protegido, articulado com lideranças locais. A reportagem afirma que Ottomar praticamente teria que arquivar “[...] seu sonho de ser eleito senador em 1986, pelo virtual Estado de Roraima”. Mas, diferentemente de outros ex-governadores, Ottomar voltaria, apoiado no eleitorado da periferia de Boa Vista e do interior, beneficiados com casas e lotes distribuídos largamente por ele. Fortalecer-se-ia também pelo apoio de líderes locais e principalmente recémchegados que juntos esperavam desfrutar do seu carisma e dos cargos e obras. Em 1985 o brigadeiro Ottomar disputou a eleição para prefeito de Boa Vista, perdendo para a “Aliança Democrática” constituída pelo PFL e PMDB. Empalmando o PTB, foi eleito deputado federal em 1986, com tamanha votação que elegeu também sua mulher, Marluce Pinto (Freitas, 1993). O governador era então seu ex-secretário Getúlio Cruz, o primeiro roraimense a assumir o cargo, graças a um novo momento político: o fim do regime militar em 1985. Ottomar e Cruz teriam, a partir daí, quase sempre caminhos opostos. 4. 5 O FIM DO AUTORITARISMO E A ASCENSÃO DO PODER LOCAL Na metade da década de 1980, enfrentando crises econômico-financeiras, o movimento pelas “Diretas já” e a dissidência nas forças tradicionais de apoio, o governo federal se enfraquece. Era chegada a hora da redemocratização. Esta ocorreu sem violência, embora com algumas tensões, com a vitória no Colégio Eleitoral de um candidato a presidente da oposição, deputado Tancredo Neves, tendo como vice um ex-representante e ex-presidente nacional do PDS, José Sarney. Com a morte prematura de Tancredo, após longa enfermidade, Sarney assumiria o governo. Iniciava-se assim o período que Tancredo cunhou como a “Nova República”, consagrado também na literatura política como de “redemocratização”. Após 1985, os territórios passaram a ter titulares indicados politicamente, sendo escolhidos por voto direto os prefeitos das capitais. Porém, o processo de escolha em Roraima foi retardado devido o agravamento da doença do presidente eleito, Tancredo Neves, impedindo-o de assumir o cargo, o que inquietou as lideranças. Em sessão de cinco de março daquele ano, Alcides Lima,37 deputado do PFL, acusa na Câmara a presença do governador do 37 Câmara dos Deputados, (5 mar.1985). 145 Amazonas, Gilberto Mestrinho, no processo de escolha. No dia dezenove do mesmo mês, o deputado Mozarildo Cavalcanti38 declara, na mesma Câmara, esperar que os processos de nomeação de governador para Roraima, “[...] obedeçam pelo menos a critérios que levem em conta as lideranças políticas locais, que levem em conta os valores daquele povo e não interesses de outros Estados, de grupos, de políticos ou de empresários, que querem interferir de maneira nefasta na escolha dos governadores”39. E, mais adiante: “[...] queremos fazer nesse dia um apelo veemente, em nome de todo o povo de Roraima, para que o governador a ser nomeado dentro em breve seja um homem de lá, que conheça nosso povo, que sofra com nosso povo [....]”. Em sessão de 28 de maio de 1985, o deputado Alcides Lima 40 afirmava na mesma tribuna: “O clima de expectativa que antes existia no território, com o advento da Nova República, começa a se transformar em angústia e desencanto, com tendência para o caótico”. Os apelos de Alcides Lima e Mozarildo Cavalcanti iam mais longe, e com o apoio dos demais deputados territoriais, defendiam veementemente a criação do estado de Roraima, principalmente após haver a certeza da instalação da futura Assembléia Nacional Constituinte. É possível deduzir das palavras dos dois deputados federais roraimenses que a autonomia buscada, superando os interesses de “outros Estados” e “de empresários”, tinha a ver com a futura exploração mineral, propiciada pela abertura da BR 174 e levantamentos do Projeto RADAM. Nesse sentido, não é de se admirar que os políticos locais que se opunham à Aliança Democrática, formada por PMDB e PFL, tentassem uma aliança com o governador do Amazonas, como nos tempos pré-1964. No ano de 1986 haveria eleições para o Congresso que se transformaria em Assembléia Constituinte; as lideranças de Roraima estavam divididas e buscavam aumentar seu cacife político. Entretanto, o discurso do desenvolvimento e da necessidade de criar o novo estado era comum às lideranças políticas e estava associado à questão das terras indígenas. Afirmava-se que era preciso explorar as riquezas minerais e outras, não cedendo a pressões que defendiam os direitos dos índios41. Por fim, na metade de 1985, um roraimense de família tradicional, Getúlio Cruz, foi escolhido para governador de Roraima pela aliança local PFL/PMDB ( FREITAS,1997, p. 124). Nas primeiras eleições para prefeitos, a Aliança só perdeu em um dos então oito 38 Câmara dos Deputados, (28 mar.1985). Câmara dos Deputados, (19 mar.1985). 40 Câmara dos Deputados, (28 mar.1985) 41 O discurso contra os índios e seus defensores já existia, mas à medida que aumentava o valor das terras e a legislação brasileira reconhecia direitos das populações indígenas, as manifestações contrárias adquiriam maior força. Em 21 de outubro de 1983, na Câmara, o deputado federal João Fagundes, do PDS, bradava que a riqueza mineral tinha que ser explorada; com argumentos semelhantes, o prefeito e vereadores de Normandia faziam apelo em manifesto escrito “Ao povo e às autoridades”, atacando padres e o papel destes na questão das terras. 39 146 municípios do território, sendo a vitória mais festejada a da capital, onde Silvio Leite, apoiado por Cruz, derrotou Ottomar Pinto. Uma terceira força liderada pelo ex-governador e exdeputado federal Hélio Campos concorreu na capital, mas teve pouca votação (MAGALHÃES, 1997, p.128-129). Parecia que os embates futuros seriam entre as duas forças lideradas por Cruz e Ottomar. Mas fatos locais políticos contribuíram para a formação de um cenário diferente. No governo de Getúlio Cruz (1985-1987), graças ao seu relativo peso político junto ao governo central (escolhido pelos partidos que compunham a base de apoio do governo federal), deram-se continuidade a muitas obras do regime anterior, tais como a construção de casas, abertura de estradas, assentamentos rurais e projeto de uma hidrelétrica que chegou a ser iniciada. Mas, enquanto o governo federal enfrentava forte crise econômicofinanceira e a Assembléia Nacional Constituinte tinha avanços e recuos em razão da presença e atuação de grupos de pressão, como os ruralistas (JOFFILY,1998), em Roraima, diversos embates em torno de direito à terra ganhavam cada vez mais força e radicalização. O desenrolar da então tumultuada política nacional era acompanhada em Roraima pela Tribuna de Roraima, que apoiava o governo territorial. No calor dos debates na Assembléia Nacional Constituinte em Brasília sobre o PNRA, deu-se “a marcha dos trinta mil” à capital federal e a organização da UDR, pressionando o Congresso a não aprovar medidas que prejudicassem interesses de grandes proprietários (PROPRIETÁRIOS RURAIS..., 1987, p.11). De acordo com Fernandes (1999, p.143-144), a UDR surgiu para se opor à proposta de reforma agrária apresentada pelo governo da Nova República e se estruturou em torno de entidades de classe e representativas do empresariado rural, em níveis nacional e local. Em Roraima, pode-se acrescentar, como especificidade, a participação do poder público no movimento. Produtores rurais roraimenses, com apoio institucional do governo do território, traduzindo a questão para o das terras indígenas, fundam a UDR de Roraima em setembro de 198742. A mesma fonte, em edições de setembro e de outubro, mostra que a Igreja Católica, ao defender os índios, atraía oposição, cada vez maior, inclusive de autoridades. Eram comuns na época, notícias como a do Secretário de Segurança Territorial, na Tribuna de Roraima (1987, p. 5), que clamava: “Presença estrangeira explica a velha cobiça pela área”. 42 O jornal Tribuna de Roraima de 4 de setembro de 1987, registra uma passeata da UDR no centro de Boa Vista, onde aparecem cartazes com os dizeres: “O Brasil é dos brasileiros – Fora os estrangeiros mascarados de religiosos” e: “Nosso ouro sumindo para o estrangeiro”. Os objetivos do movimento local tinham especificidades bem próprias. 147 O ano de 1987 foi pródigo em acontecimentos em Roraima. Em maio, o prefeito escapa de um atentado, mas sucumbe a outro em outubro, onde cai fuzilado por dezenas de tiros. O crime causa uma crise e o governador Getúlio Cruz, cunhado do vice-prefeito, é obrigado a licenciar-se após crise política, sendo depois exonerado pelo presidente Sarney. Maio foi o mês que o presidente Sarney anunciou que pretendia ficar cinco anos no governo, (JOFFILY,1998, p. 257) em vez dos quatro esperados, sendo apoiado nas forças políticas mais à direita. Isto pode ter tido reflexos políticos importantes em Roraima, se forem observadas as palavras do ex-governador Getúlio Cruz (2003, i. v.): “[...] Sarney necessitava de votos para aprovar os cinco anos e Ottomar tinha dois votos no Congresso, o dele e o da esposa, Marluce”. De fato, numa votação decisiva, Sarney obteve 58% dos votos necessários para aprovar seu projeto, em junho daquele ano, uma votação quase apertada. Assim, inimizado com seu ex-amigo Ottomar, Getúlio não voltaria. Em outubro o presidente Sarney nomeia um general, Alberto Klein para o governo, o que não é aceito pacificamente, conforme a Tribuna de Roraima (EMPRESÁRIOS..., 1987, p. 3), que destaca em manchete: “Empresários repudiam a intervenção alienígena”, pelo fato de não ter havido “[...] consulta às bases políticas e produtivas locais”. 1987 foi ainda o ano em que se iniciou um grande aumento das atividades garimpeiras, com a invasão da área da Serra de Surucucu, nas terras dos índios Yanomami. A Tribuna de Mucajaí, (MESMO PROIBIDOS..., 1987, p. 8) afirma que o número de garimpeiros chega a dois mil. O fato é quase simultâneo a uma notícia vinda de Brasília: a aprovação da transformação dos territórios do Amapá e de Roraima em estados da Federação na Comissão de Sistematização da Constituinte no Congresso Nacional. Com essa transformação, um novo espaço político, principalmente institucional, se abriria para grupos e lideranças locais, antigos e novos. No início de 1988, quando a Polícia Federal e os militares retiravam garimpeiros das terras Yanomami, o jornal de maior circulação no território refere-se às áreas invadidas pelos garimpeiros como “[...] áreas pretendidas pela FUNAI” (CSN QUER ESVAZIAR GARIMPOS, 1988, p. 3) enquanto destaca (1988, p. 1 e 3, 25.mar.) que: “Todos os vereadores de Boa Vista estão protestando contra a retirada de garimpeiros das áreas indígenas” e em manchete na terceira página: “Câmara pede a Sarney para não acabar com os garimpos.” Em 17 de setembro, o mesmo jornal estampa em manchete, na primeira página, um nome que vai, tal como Ottomar, marcar a vida política de Roraima: “Jucá vai assumir hoje”. Na mesma 148 edição, em editorial: “Klein sai, Jucá entra e a história se repete”, critica-se a saída de um e a entrada de outro governador sem que se tenham ouvido as lideranças locais. Reação mais forte, foi a de Ottomar Pinto e Marluce, que tentaram a não aprovação do nome de Romero Jucá pelo Senado, sem sucesso. Em dezembro houve nova derrota de Ottomar, perdendo a eleição para prefeito de Boa Vista, em que saiu vitorioso Barac Bento, do PFL, apoiado então por Jucá. 4. 6 ROMERO JUCÁ: O PODER EMPRESARIAL Os problemas da gestão de Getúlio Cruz mostraram que as lideranças da terra estavam divididas demais para compor pacificamente um governo, aproveitando o vácuo de poder deixado pelo governo autoritário do regime militar. Havia em Roraima uma estrutura física de rodovias e um aparato administrativo, além de riquezas minerais que atraíam não só milhares de garimpeiros, mas também empresas mineradoras como a Paranapanema e a Gold Amazon. Jucá parecia o indicado para assumir a missão de promotor do desenvolvimento privado, com apoio governamental. Romero Jucá, ex-presidente da FUNAI, teria vindo para Roraima, segundo Getúlio Cruz (2003, i. v.): “[...] para favorecer a mineradora Paranapanema, mas quando viu o potencial político do movimento dos garimpeiros, mudou de posição, encontrando seu espaço político [...]”43. Para Freitas (1997, p. 124), Jucá foi indicado ao cargo pelo PFL de Pernambuco, liderado pelo senador Marco Maciel. De todo modo, suas ações e seu discurso dão a entender claramente que representava os interesses empresariais privados44. A leitura de jornais roraimenses da época confirma a tradição local de que Jucá foi o grande defensor do garimpo em Roraima, tomando medidas concretas para tal, havendo boa receptividade. 43 Getúlio Cruz, ex-governador, aliado de Ottomar e de Jucá em diferentes ocasiões (i. v. 2003). Almeida (1994, p. 521-537), registra que após a redemocratização houve uma articulação de diversas forças sociais da Amazônia, como barrageiros, seringueiros, índios, trabalhadores rurais, garimpeiros, além de grupos ambientalistas e instituições confessionais, com demandas a que o governo federal teve que dar resposta. O governo foi sensível aos apelos, mas, explica Almeida (1994, p. 534), sua contra-estratégia se deu articulada com setores do empresariado e segmentos do poder local beneficiários dos incentivos e vantagens fiscais. Sintomaticamente, ocorrem encontros de classes produtoras e de lideranças políticas, onde se debatiam temas como a política ambiental e de crédito do governo federal e sua conseqüências. 44 149 “Calma nos garimpos”, era a manchete de matéria da Tribuna de Roraima (CALMA..., 1989, p. 4) onde se percebe um otimismo incontido: “[...] A atividade garimpeira em Roraima está devidamente estabilizada em razão das inúmeras pistas abertas em toda a região”. E: “Hoje ninguém está longe de uma pista que não possa alcançá-la rapidinho”[...]. Nada se comenta sobre a então recente Constituição e as garantias ali contidas em favor das comunidades indígenas ou do meio ambiente. Tratava-se de mascarar um desastre, enaltecendo uma política do governo territorial, num momento em que terminava o governo Sarney e havia uma campanha para eleições presidenciais. No entanto, o governo federal teve que agir, em vista do impacto de reportagens sobre a avalanche de garimpeiros que entraram nas terras indígenas em curto espaço de tempo. A todo momento notícias nacionais e internacionais davam conta de massacres, mortes por doenças e danos ambientais e culturais. A situação dos Yanomami foi um dos motivos do lançamento, em janeiro de 1989, da Ação pela Cidadania, formada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e outros órgãos da sociedade civil, senadores e deputados federais de diversos partidos45. Os membros da Ação foram procurados em Brasília por tuxauas Macuxi e dirigentes do CIR que denunciavam que os direitos dos índios estavam sendo violados na A.I. Raposa/Serra do Sol. Em vista das denúncias, uma comissão da Ação pela Cidadania deslocou-se para Roraima, visitando as áreas críticas e colhendo depoimentos entre 9 e 12 de junho de 1989, que resultaram do documento Roraima: o aviso da morte (COMISSÃO..., 1989). O conteúdo deste é mais que uma denúncia, retratando a desarticulação das ações e descontrole dos órgãos públicos, como a FUNAI, a ausência do Estado em alguns setores básicos, como a justiça, além de constatar que algumas pistas usadas pelo garimpo foram abertas pelo PCN. Coordenada pelo senador Severo Gomes, a Comissão foi acompanhada por advogados da Procuradoria-Geral da República, por D. Aldo Mongiano, bispo de Roraima, um delegado da Polícia Federal,46 jornalistas e um representante da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), além de outras pessoas. Entre as propostas de solução estava a demarcação das terras indígenas ainda pendentes e a retirada dos garimpeiros. Na sua volta a São Paulo, o senador Severo Gomes 45 Outro motivo da organização do movimento foi a impunidade de assassinatos de dirigentes sindicais dos seringueiros e trabalhadores no Acre, conforme COMISSÃO..., 1989, p. 7). 46 Legalmente, a Polícia Federal é a instituição encarregada de cuidar dos assuntos de segurança nas fronteiras, de acordo com o parágrafo 1º do artigo 144 da Constituição Federal. 150 publicou na Folha de São Paulo (1989 [n.p.] 18.06) um artigo intitulado “Paapiú – campo de extermínio”, retratando um dos garimpos visitados e descrevendo uma triste situação. No texto, o senador reconhece não ser tarefa fácil a retirada dos garimpeiros, mas não foram poupadas palavras duras ao governador e ao Ministro do Exército, taxando o primeiro de “velho caçador de escalpos”. O documento chama atenção ainda para o problema ecológico causado pelo uso do mercúrio pelos garimpeiros e os futuros resultados disso. Na imprensa roraimense, a realidade era outra. A Tribuna de Roraima estampava na primeira página: “Yanomamis apelam a Jucá para que o garimpo continue funcionando nas áreas indígenas”, e: “Tuxauas vão a Brasília falar no Ministério de Minas e Energia” e ainda: “Jucá reúne pilotos e compradores” (YANOMAMIS..., 1989, p. 1). O Editorial do mesmo jornal bradava um desafio: “E agora Sarney?” (p. 4), comentando e valorizando a visita de três tuxauas ao palácio do governo territorial para dizer ao governador que queriam a continuidade do garimpo. O artigo ataca as “pressões internacionais” e o “petista Davi Yanomami”. Em setembro de 1989, em revista especial alusiva ao primeiro ano de sua administração,47 o governo roraimense reconhece que a expansão das atividades garimpeiras aumentou não só a demanda por bens e serviços, mas ampliou o quadro de doenças endêmicas e infecto-contagiosas nas regiões de garimpo. Mas afirma que: “Apesar disso, hoje a atividade mineral em Roraima é um dos maiores sustentáculos da economia do Estado, fator importante a ser considerado ao se encarar o conjunto de questões que caracteriza o setor.” E, sem comentar qualquer crítica às medidas tomadas, propõe uma solução futura: O atual governo aborda a situação de forma corajosa ao buscar uma ação pioneira na região amazônica, no sentido de ordenar o garimpo, conciliando interesses entre os diferentes agentes envolvidos no processo. Essa é a proposta do projeto Meridiano 62°, concebido pelo Governo Estadual e aprovado pelo Ministério das Minas e Energia, contemplando, com determinação, a preservação do meio ambiente. (...) O governo de Roraima mostra-se, também, sensível às relações estabelecidas entre o segmento populacional dos garimpos e as comunidades indígenas próximas àquelas áreas, desenvolvendo um esforço no sentido de conciliar divergências e determinar espaços de atuação de acordo com a Legislação Brasileira. (Um Ano pra Valer. Governo de Roraima, 1989). 47 Um Ano pra Valer. Boa Vista: Governo do Estado de Roraima, 1989. 151 O documento também lista as principais futuras ações voltadas para “o ordenamento do setor mineral e a organização e proteção do garimpeiro”. Estas seriam, além do aludido Projeto: condição para zoneamento das reservas garimpeiras do Estado; policiamento preventivo e repressivo nas áreas de garimpo; combate à malária e apresentação e discussão de proposta de financiamento junto ao Banco do Brasil para aquisição de equipamentos de controle da poluição de mercúrio nos garimpos. Embora fale de diferentes setores da administração e suas políticas, inclusive da colonização, nada mais há sobre índios, terras ou questão indígena, nem sobre a questão fundiária, todos assuntos presentes na imprensa local e discutidos no cotidiano na época. Outra atitude de Jucá foi integrar-se de imediato ao meio político local. A Tribuna de Roraima (JUCÁ..., 1988, p. 2), registra que Jucá iniciou seu governo sem mudar o secretariado, enquanto sua mulher, Tereza Jucá, assumiu o Programa Nacional de Voluntariado, passando a desenvolver atividades “em favor dos mais carentes”. Em 11 de novembro desse ano, a Tribuna anota: “Governador entrega casas do [Conjunto] Pricumã II, do Conjunto dos Professores e o dos funcionários Públicos”. Os beneficiados, segundo lista nominal, eram aproximadamente quinhentos, quase metade, a julgar pelo nome, mulheres. Ainda em novembro, somando forças com lideranças locais, Jucá apoiou o candidato Barac Bento à prefeitura de Boa Vista, derrotando Ottomar. Sentindo-se bastante forte, Jucá, após a posse de Fernando Collor, em março de 1990, e a sua substituição no cargo de governador, candidata-se para o governo do novo estado. Jucá teve, no entanto, que se acomodar no desgastado PDS, uma vez que houve uma corrida pelas antigas e as novas siglas, além de um certo isolamento, tendo o próprio governador do território, nomeado por Collor em março de 1990, o alagoano Rubens Villar, rompido com ele e passado a apoiar Ottomar. Jucá dependia muito do apoio dos garimpeiros, mas com o combate a suas atividades pelo governo Collor, como a destruição das pistas de pouso, desarticulou um maior movimento nesse sentido. Apesar disso, conseguiu compor uma das principais forças políticas que se enfrentariam em 1990. A outra força política era a de Ottomar. Ambos tinham aliados nas famílias tradicionais, que não tinham um nome congregador para encabeçar a disputa. Alguns antigos nomes corriam por fora, como Hélio Campos e Mozarildo Cavalcanti, candidatos ao Senado. Outros, como os empresários Neudo Campos e Almir Sá, despontavam na política local, 152 disputando o primeiro o cargo de governador pelo partido do presidente Collor, o PRN, enquanto o segundo disputava a Câmara de Deputados . Ao criar os novos estados-membros em 1988, Roraima e Amapá, a Constituição Federal estabeleceu que a instalação dos mesmos se daria em 1990, bem como a eleição de seus dirigentes. Estas coincidiram com o início de um governo federal cuja ação marcaria a vida política e econômica roraimense: Fernando Collor de Mello. Algumas medidas, como a retirada de garimpeiros, já tinham se iniciado em 1989, mas Collor virtualmente acabou com o garimpo predatório em Roraima, mandando destruir as pistas de pouso clandestinas e no ano seguinte aprovou a demarcação das terras indígenas Yanomami. A imprensa local, inclusive o jornal criado pelo governador Jucá (1988-1989), O Estado de Roraima, acompanha e comenta os fatos, principalmente em 1990. A coordenação do processo era do respeitado Delegado da Polícia Federal Romeu Tuma e ninguém parece ter desafiado o poder central até as eleições. O maior prejudicado com o fim do garimpo em termos eleitorais foi justamente Jucá, que conseguiu chegar ao segundo turno, mas teve que enfrentar no final da campanha a união de todos os outros cinco candidatos em torno de Ottomar Pinto. 4. 7. DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS: INÍCIO DA GRANDE POLÊMICA Segundo o caput do artigo 231 da Constituição Federal, aprovada em 1988, “[...] São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. A reação foi inevitável em um estado em que parte substancial de seu território tradicionalmente é ocupado por índios, que compõem percentualmente a maior população indígena do país48. Jazidas de ouro e diamante, além de outros minérios, e grandes florestas estão localizados na sua maior parte nas áreas indígenas. O conflito se agudiza porque, tradicionalmente, institucionalizou-se a privatização de terras públicas por grupos familiares, cuja base econômica é altamente dependente dos recursos naturais. Em outras palavras, o patrimonialismo historicamente estabelecido corre o 48 Em razão de problemas enfrentados pelo IBGE no Censo de 2000, não há uma estatística segura sobre o número de indígenas em Roraima. Há aceitação que seu número atinja aproximadamente 10% do total da população do estado, o maior índice do Brasil. 153 perigo de não sobreviver, daí a virulência das reações, onde nunca é citada a Constituição, mas aos agentes que tratam dos assuntos ligados à problemática, como a FUNAI ou mais precisamente os representantes desta. No início de dezembro de 1990, um mês antes dos eleitos tomarem posse, o Estado de Roraima estampa a manchete: “Ampliação de área indígena repudiada por empresários”, relatando que grupo de comerciantes e pecuaristas de Roraima está criando o Movimento em Defesa da Não Internacionalização da Amazônia (AMPLIAÇÃO..., 1990, p. 1). O movimento foi organizado, diz a mesma fonte, por uma Comissão, presidida por um pecuarista. E o protesto era contra a ampliação da Terra Indígena de São Marcos. Há referências sobre outro decreto sobre a Área Indígena Raposa/Serra do Sol. Mais de trezentos produtores rurais seriam prejudicados, a maioria pecuaristas, “alguns deles”, frisa o texto “com títulos definitivos” e ainda: “[...] O Movimento de Defesa da Não Internacionalização de Roraima acha que por trás dessa ação do governo federal estejam organismos como a Comissão Pastoral da Terra, o Conselho Indígena Missionário (CIMI) e Igreja Católica, que argumentam com a proteção ao índio o interesse em internacionalizar a região”. Dias depois, houve um Ato Público do Movimento pela Não Internacionalização de Roraima para marcar o protesto contra a nova Terra Indígena (ATO PÚBLICO... 1990, p. . 3). O Movimento reunia comerciantes, industriais, garimpeiros e pecuaristas. Na ocasião: “Said Salomão, patriarca dos comerciantes de Roraima, fundador da Associação [Comercial], lembrou que antes da interferência da FUNAI, índios, fazendeiros e garimpeiros viviam pacificamente no Estado”. Falou também o líder garimpeiro José Altino Machado, que afirmou: “[...] para conseguir recursos externos o Presidente da República está vendendo a Amazônia”. Outro orador, o pecuarista José Augusto Macaggi, o coordenador do Movimento, afirmou que “[...] só trinta por cento de Roraima estaria livre para a agricultura e pecuária”. Em linhas gerais, esses argumentos e posições ainda perduram e foram incorporados no senso comum local. Numa linguagem mais amena a questão de fundo – a da posse e domínio da terra e seus recursos – seria tratada também por políticos e legisladores que organizaram os poderes Executivo e Legislativo do novo estado, que, esperava-se, poderia atender às expectativas dos diferentes grupos, embora no momento representasse mais um espaço político que se abria. 154 O conflito da legislação federal, principalmente através da nova Constituição com as expectativas locais, foi evidentemente percebido pelos deputados eleitos para a Assembléia Legislativa. Havia, no entanto uma posição, oficialmente aceita, de que seria possível através da nova estrutura administrativa, garantir e se legitimar medidas de interesse local mesmo que contrariassem dispositivos da legislação federal. O presidente da Assembléia Legislativa, Flávio dos Santos Chaves, em entrevista em janeiro de 1991, quando da posse da Assembléia Estadual Constituinte, afirmou (OLIVEIRA, 1991) que “O Legislativo estadual vai assegurar o acesso à terra ao ruralista e ao minerador”. E: Claro que com o advento da Constituição Estadual, deveremos encontrar muitas proposições conflitantes com as diretrizes da Carta Magna Federal, contudo é consenso geral da Assembléia Legislativa Estadual tirar parâmetros respeitosos aos interesses – primeiro do povo de Roraima, da economia do estado e de salvaguarda das comunidades indígenas, mas assegurando o direito do homem rural à terra e acesso ao subsolo dos nossos mineradores, esteios, afinal, de uma economia nascente que precisa crescer para promover o desenvolvimento do estado (OLIVEIRA, 1991, p. 37). Tinha-se, pois, que atender aos reclamos dos grupos de interesse locais. Uma das preocupações é comprovada por observadores da economia roraimense da época, como Barros (1995) e Diniz (1998): Roraima estava no momento com a economia profundamente abatida pelo combate ao garimpo. Houve como conseqüência o abandono de centenas de residências na capital (BARROS, 1995) e a invasão de terrenos urbanos por milhares de pessoas (INVASÃO..., 1990, p.1)49. Soma-se a isto o fato, do desaparecimento de quase todo o dinheiro circulante após a implantação do Plano Collor50. Na base de todos os problemas da economia local, presumia-se, estava a questão da terra. 49 O jornal atribui as invasões a um certo “Chico Doido”, personagem polêmica que seria depois vereador e deputado estadual, sob esse nome político. No bojo das mudanças, novos líderes surgiam. 50 O Plano Collor, foi implantado pelo governo do presidente Collor de Mello (1990-1992). Em março de 1990, após o fechamento dos bancos, foi reinstituído o Cruzeiro como moeda oficial e recolhida a maior parcela dos depósitos bancários a vista, de cadernetas de poupança e outros títulos, liberando apenas quantias não superiores ao fixado. O remanescente ficou bloqueado, sendo liberado apenas em prazos posteriores. O Plano causou a falta de moeda no país, sendo que, em Roraima, houve pelo menos um suicídio de comerciante e o fechamento de vários estabelecimentos com a associação dos dois eventos: o Plano e o fechamento da maioria dos garimpos (ROSSETTI, 2002, i. v.). 155 4. 8 TERRA: A BASE TERRITORIAL EM DISPUTA Segundo Karl Polanyi (1980, p. 181), a terra “[...] é um elemento da natureza inexplicavelmente entrelaçado com as instituições do homem”. Para o mesmo autor, à medida que o capitalismo e a sociedade evoluíam na Europa, o uso, a propriedade e a legislação sobre a terra se modificavam. A secularização das terras da Igreja pelo Estado Moderno italiano no século XIX e a série de leis inglesas desde a Idade Média são exemplos disso (POLANYI, 1980, p. 182-183). O Estado utiliza seu poder de império para regular a propriedade fundiária, adaptando-a aos valores da sociedade que o mesmo representa ou, a certos setores desta. Polanyi (1980), descreve as diferenças de papel do Estado na questão da terra na Europa e um resultado visível: diferentemente do ocorrido no Estado liberal e capitalista, a Igreja e a aristocracia feudal foram os defensores dos tronos em derrocada. Numa análise sobre a situação das terras no Brasil no século XIX, Dean (1976, p. 245), afirma que a predominância das grandes fazendas surgidas no período colonial na América Latina se constituiu numa desvantagem econômica e social. Não era suficiente, diz o autor, os exemplos da superioridade econômica das pequenas propriedades agrícolas na Europa Ocidental e nos EUA. O governo brasileiro, esclarece Dean (1976, p. 245), tentou resolver os problemas da concentração da propriedade agrícola enfrentando os grandes fazendeiros, mas não houve sucesso em razão do sistema político dominado pela elite rural. A questão da terra (DEAN, 1976, 246-257), foi discutida por anos na Assembléia Geral do Império (1822-1889). Houve poucos avanços, que ocorriam apenas quando problemas maiores, como o da mão-de-obra, agravado com o fim do tráfico (1850) e o aumento das lavouras de café, exigiam melhor tratamento e oportunidade aos imigrantes. O governo imperial brasileiro procurou não mais permitir a privatização das terras públicas, pois a posse é a negação da autoridade do Estado (DEAN, 1976). Uma das preocupações era que, como não havia meios legais para garantir os títulos de propriedade, a violência no interior do país ditava uma ordem estranha ao governo. Mas, afirma Dean (1976, p. 248), o Estado foi forçado a fornecer uma lei sobre a terra, por outros motivos: exigências dos plantadores de café do vale do Paraíba a ação dos burocratas da corte, “[...] que comumente eram parentes dos cafeicultores”. As discussões parlamentares sobre a lei que disciplinou o acesso à propriedade das terras duraram sete anos (JOFFILY, 1999, p. 71). A partir daí as terras não poderiam mais ser doadas, só podendo ser adquiridas por compra. A 156 Lei de Terras de 1850, embora apresentasse algumas vantagens ao pequeno proprietário imigrante (DEAN, 1976, p. 257), beneficiou muito mais os antigos proprietários, pois revalidou as sesmarias concedidas no tempo da Colônia e legalizou as posses. Proclamada a República em 1889, organizado o Estado com a constituição de 1891, a administração das terras públicas foi entregue aos estados da federação (CENTRO DE INFORMAÇÃO..., 1990), que receberam também as minas para reforçar sua economia. (CALMON, 1971, p. 1976). A autonomia dos estados foi uma das marcas republicanas e, segundo Calmon (1971, p. 1977), fortaleceu ou em outros casos fez surgir as oligarquias regionais. Nessa perspectiva, os indígenas do país continuam a ser expropriados, processo em que a criação do SPI, em 1910, não sustou. Na Amazônia, o advento da República coincide com o auge da exploração da borracha, notadamente nos estados do Pará e Amazonas. Nos campos do rio Branco, hoje Roraima, abastecedor de gado para Manaus, fazendeiros e comerciantes não deixaram de aproveitar o momento, requerendo terras ao governo do novo estado - o Amazonas - e criando condições para a participação na vida política, sendo a povoação principal transformada na sede do município de Boa Vista. Como não havia delimitações físicas seguras entre as vastas propriedades e muitos não se dispuseram a documentar terras que ocupam, o caminho para a futura disputa entre órgãos federais ligados à administração da terra e dos índios, defensores das terras indígenas e fazendeiros, comerciantes e garimpeiros, estava aberto. Na época, de acordo com o Centro de Informações da Diocese de Roraima (CIDR) (1990), a disputa era outra: fazendeiros locais e comerciantes de Manaus lutariam entre si pelos recursos naturais e terras na região; os primeiros beneficiando-se da expansão da mineração e os segundos, do aviamento de atividades extrativistas e fornecimento de mercadorias ao governo amazonense, recebendo o pagamento em terras. Os governos brasileiros até a década de 1950, passando por Getúlio Vargas (19301945 e 1951-1954) e Juscelino Kubitschek (1956-1961) não valorizariam o problema do acesso à terra. A questão passa a ter visibilidade só na década de 1950, quando algumas lideranças camponesas organizam movimentos no Nordeste, sendo os mais conhecidos as ligas camponesas, de inspiração socialista. A vitória da Revolução cubana em 1959 e o apoio que essas lideranças tiveram dos partidos esquerdistas, como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), e do governo João Goulart (1961-1964), assustaram a direita e os militares que venceram em 1964. Mas o problema existia e clamava por solução. 157 Na década de 1950 e início da seguinte, nos meios acadêmicos, intelectuais e empresariais, não faltavam críticas à concentração e ao latifúndio, seja de integrantes da CEPAL, seja de intelectuais associados a empresários do IPES, e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) (DREIFUSS, 1981, p. 240-243). Os dois últimos eram ligados ao movimento conspirador que derrubou o governo de Goulart em 1964. Este conseguiu não somente aprovar um decreto instituindo a reforma agrária como também criar a Superintendência Para a Reforma Agrária (SUPRA), em 1962. A medida, segundo Dreifuss (1981), fazia parte das “Reformas de Base” pretendidas pelo governo, mas a oposição também apresentava suas propostas de mudanças quanto à terra e à economia nacional. Para Dean (1976, p. 257), os decretos sobre a terra no governo Goulart foram as primeiras medidas racionais depois do fim do Império. Dreifuss (1981, p. 243-244) informa que os integrantes da oposição ao governo Goulart reuniram-se em São Paulo, em janeiro de 1963, no Primeiro Congresso Brasileiro para a Definição de Reformas de Base. Na ocasião, vários políticos, empresários e acadêmicos apresentaram demandas empresariais visando uma modernização conservadora, respondendo às reformas de cunho trabalhista, “ambas afirmadas como um projeto nacional para o Brasil” (DREIFUSS, 1981, p. 243). Mas já em 1964, o primeiro governo militar, o de Castelo Branco (1964-1967) ao tentar resolver o grave problema fundiário nacional, elaborou e fez aprovar no Congresso a Lei 4.504, mais conhecida como o Estatuto da Terra. Seguia uma linha “[...] gerada pelos EUA de Kennedy” (JOFFILY, 1999, p. 185), expressa na denominada “linha de Punta del Este”, que reconhecia a existência de distorções nos sistemas de posse e uso da terra e preconizava a substituição de latifúndios e minifúndios. O texto da lei enfrentou resistências das classes proprietárias e dos governadores de Minas Gerais, São Paulo e Guanabara. Entre outras alegadas desvantagens, estabeleceu que as indenizações de terras desapropriadas seriam pagas em títulos públicos e não mais em dinheiro, revogando-se o artigo 141 da Constituição vigente. Outro ato de força, o Ato Institucional n. 9, de abril de 1969, já no governo Costa e Silva (1967-1969), facilitou ainda mais a indenização, ao retirar da Constituição aprovada naquele ano, a exigência de indenização prévia (JOFFILY, 1999, p. 185). Nessa perspectiva, o Estatuto da Terra classificou os imóveis rurais em “latifúndios por exploração”, improdutivos; os “latifúndios por extensão”, frutos da distorção fundiária; os “minifúndios” e a “empresa rural”. Para a implementação da sua política agrária, o governo havia criado o 158 Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), transformado em 1970, durante o governo Médici (1969-1974) no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A modernização autoritária implantada pelo governo federal na agricultura fazia parte de projetos abrangentes e transformadores, que tiveram diversas fases desde que os militares optaram pela mudança induzida da economia e das instituições. Isto compreendia uma nova relação entre a sociedade e o espaço, e entre esta e as novas realidades econômicas que se apresentaram (BECKER, 1999; SANTOS, 1996). A ênfase na modernização ameniza ou quase desfaz as pressões pela divisão das grandes extensões de terras. Por outro lado, fatos novos, como as secas do Nordeste, como a de 1967 e a de 1970, motivam o governo a planejar o deslocamento do excesso populacional nordestino para a Amazônia, acomodando modernização e geopolítica. Ainda no governo Castelo Branco (1964-1967), foi realizado um cadastramento dos imóveis rurais brasileiros (Tabela 2), a fim de se ter uma leitura da situação, mas não se pode dizer que seus dados tenham influenciado medidas posteriores. Na verdade, os problemas referentes à situação fundiária brasileira não foram resolvidos pelos governos militares e nem pelos que os sucederam, inclusive porque as tentativas de mudança do status quo agrário encontraram sempre fortes resistências, principalmente por grupos de pressão como a UDR na década de 1980. No meio rural, os indígenas, os camponeses e os extrativistas seriam os grandes perdedores dos processos expropriatórios que se seguiram e persistiram. Tabela 2 - Imóveis rurais no Brasil em 1967. Tipo de imóvel Latifúndios por exploração Latifúndios por extensão Minifúndios Empresa rural Total Porcentagem de imóveis Porcentagem da área ocupada em hectares 21,80 76,50 0,01 6,40 75,79 12,50 2,40 4,60 100,00 100,00 Fonte: JOFFILY, 1998, p. 185. A criação do INCRA no governo Médici (1969-1973) não representou apenas uma mudança de sigla, mas a passagem da colonização à frente da redistribuição, através da ênfase na modernização, buscando a revolução tecnológica na agricultura. Além do INCRA, o 159 governo federal lançou em 1970, o PROTERRA, com objetivos de alavancar uma reforma agrária. O documento trazia como novidade (JOFFILY, 1999, p. 197) a indenização dos proprietários atingidos por desapropriações; esta seria em dinheiro e não em títulos, como constava no Estatuto da Terra e, a maioria dos recursos seria destinada a projetos empresariais. Era o tempo do “milagre brasileiro”, havia crescimento econômico geral do país e abundância de recursos. Em Roraima isso era representado pelo ritmo acelerado de construções públicas (BARROS, 1995; FREITAS, 1993), inclusive de centenas de casas populares (CEM CASAS..., 1973, p. 13) e a chegada do PROTERRA. (ESPERANÇAS..., 1973, p. 8). A política do governo Médici daria contornos especiais à questão da terra, principalmente depois do lançamento do Programa de Integração Nacional (PIN), que resultou na abertura de rodovias que se tornaram eixos de penetração na Amazônia, como a Transamazônica e outras de menor extensão. Grandes projetos de colonização e agropecuários, beneficiados com subsídios, foram implantados, principalmente na década de 1970. Em 1971 foi criado o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (PRORURAL), destinado a dar ao trabalhador do campo a proteção e a ajuda desfrutada pelo trabalhador urbano. No entanto, apesar de intensa propaganda oficial dos governos militares apregoar que estava havendo sucesso na política de acesso à terra, sem atritos ou lutas sangrentas, questões básicas não foram resolvidos, como a concentração fundiária e o intenso êxodo rural, como mostram os números de várias fontes. Entre 1965 e 1981 (JOFFILY, 1999, p. 185), o governo federal baixou apenas 124 decretos de desapropriação de terras. E, segundo um retrato fiel do processo, o Censo Agropecuário de 1985, 1% das propriedades rurais brasileiras detinha nada menos que 43,8% das terras ocupadas, enquanto havia mais de três milhões de glebas com menos de 10 hectares, ocupando apenas 2,7% do total dessas áreas. Esses números revelam uma coerência política, pois (JOFFILY, 1999, p. 185) os grandes proprietários fundiários foram um dos esteios sociais e políticos essenciais do regime militar. Segundo a mesma fonte, desapareceram as pressões dos EUA por uma reforma agrária na América Latina e por outro lado, o governo brasileiro deslocou a ênfase na modernização. Em 1985, ano que marca o fim do regime militar, iniciou-se o período conhecido como “Nova República”, quando foi criado o Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário (MIRAD). Uma equipe técnica do MIRAD e do INCRA formulou o Primeiro PNRA, que previu (JOFFILY, 1999, p. 251) a desapropriação de 43 milhões de hectares de latifúndios 160 improdutivos e o assentamento de 1.400.000 famílias até 1989. Surgiram reações a esse Plano (Fernandes, 1999), principalmente da UDR, fundada no mesmo ano de 1985, tendo o governo cedido e reformulado parte do PNRA. As pressões da UDR incluem uma “marcha dos trinta mil” sobre Brasília em junho de 1987 e incisiva atuação na Assembléia Constituinte (FERNANDES, 1999; JOFFILY, 1999, p. 257). Em Roraima, como já visto, houve discreta repercussão desses fatos51. Nos trabalhos de elaboração da Constituição de 1988, o movimento que se contrapunha de frente à UDR, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e outras correntes mais à esquerda não tiveram forças para aprovar uma legislação que trouxesse mudanças para a questão agrária. Já as forças conservadoras saíram vitoriosas, pois a UDR conseguiu aprovar itens como o que estabelece que latifúndios produtivos não podem ser desapropriados, mesmo não cumprindo sua função social. Houve, pois, entre 1964 e 1988 um retrocesso, em termos legislativos, com prejuízo dos trabalhadores sem-terra. No entanto, o mesmo não se aplica aos indígenas, beneficiados com o artigo 231 da nova Carta, onde se reconhecem “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Esses direitos, embora bem claros no documento maior do Estado brasileiro, têm sido contestados por interesses contrariados, principalmente em Roraima, onde as áreas indígenas compõem parte substancial de seu território52. 4 . 8. 1 A questão fundiária em Roraima na década de 1990 Desde o fim do século XIX, progressivamente, as terras públicas das áreas de savana em Roraima, vinculadas inicialmente a três fazendas governamentais dos tempos coloniais, foram sendo privatizadas pelos fazendeiros pecuaristas, conforme anotado por Barros (1995, p. 50-51), inclusive usufruindo da mão-de-obra indígena, fato referido também por Cavalcanti (1949). As terras foram gradativamente adquirindo valor de troca maior que o de uso e um problema tomou visibilidade quando a ordem burocrática federal se impôs na década de 1970: com poucas exceções, não havia limites definidos nem titulação das terras 51 No mês seguinte à criação da UDR em Roraima, houve o assassinato do prefeito da capital, Silvio Leite, fato que deflagrou uma crise política e levou à exoneração do governador Getúlio Cruz. O impacto do acontecimento deve ter deixado a UDR e medidas aprovadas na Assembléia Constituinte para segundo plano, segundo se depreende da leitura dos jornais locais e informações verbais. 52 Os números sobre a dimensão total das áreas indígenas de Roraima são conflitantes, já que o discurso dos movimentos contrários à demarcação, excluem as terras alagadas, militares e outras, para fortalecer seu argumento. No entanto, pode-se afirmar que os números não são inferiores a 40% do total do estado, que tem extensão de 225.000 km2. 161 que davam até então sustentação à economia básica do território – a pecuária. Isso foi um fato complicador, com resultados de momento e no futuro, já que envolveu relações de poder e provocou choques com a burocracia e a legislação federal. Mais que um atrito poder local versus poder central, a questão envolvia e envolve diferenças de mentalidades, de práticas e uma tradição histórico-administrativa que, no conjunto, adquirem necessariamente contornos políticos. No fim da década de 1970 e início da seguinte, no governo de Ottomar Pinto, a questão tomaria novos rumos com a intensificação da colonização e avanço territorial da pecuária nas áreas coloniais. Foi o tempo também de tentativa de equacionar o problema da titulação da terra urbana, principalmente em Boa Vista, que se agravou com seu crescimento. A questão fundiária de Roraima aprofundou-se após a Constituição Federal de 1988 e a criação do estado. A nova carta, em seu artigo 231, reconheceu os direitos dos indígenas às suas terras imemoriais, mas o novo estado instrumentalizou os grupos de pressão contrários à materialização local do fato, já que agora se poderia usufruir uma legislação favorável ao seu discurso. Como resultado, a situação fundiária tornou-se complexa e indefinida, com solução indeterminada e sujeita a desdobramentos políticos. Os fazendeiros tradicionais de Roraima, apesar de vez por outra se dedicarem a atividades outras, como a mineração (BARROS, 1995; CAVALCANTI, 1949), enquadram-se na seguinte definição: fazenda é o estabelecimento cujo titular é um agente que personifica uma racionalidade mais próxima do capital mercantil, perseguindo lucro por fórmulas de maximização assentadas na: [...] busca da manutenção de seu patrimônio , terra e gado, bem como da garantia de algo que poderíamos definir como ‘subsistência de luxo’. A finalidade é manter um elevado padrão de consumo para o fazendeiro e sua família, em nenhum momento implicando a dilapidação de seu patrimônio, fonte de segurança e poder político (AIDAR, PEROSA, 1981, p. 37, apud COSTA, 2000, p. 68). Ainda segundo Costa (2000, p. 68), a presença da família é constante nas fazendas, mas “[...] O fundamental do trabalho é, contudo, proveniente de assalariamento ou de formas de parceria”. Cavalcanti (1949) referindo-se à década de 1940 em Roraima registra que os vaqueiros participavam da sorte e os índios recebiam em espécie e por vezes eram obrigados a esses trabalhos. Informações semelhantes foram registradas por Rivière (1972), referindo-se à década de 1960, e por CIDR (1990), referindo-se à década de 1970 e início da seguinte, 162 quando o então trabalho assalariado já predominava e representava novas relações sociais de trabalho vigentes. A transformação de alguns vaqueiros nordestinos em fazendeiros em Roraima, com a conseqüente ascensão social e mesmo política, foi evidenciada por Rivière (1972), Barros (1995) e Hemming (1990), além de fazer parte da tradição oral roraimense. Nas fazendas mais antigas, segundo Rivière (1972), não havia cercas e nem limites precisos, pois o gado vivia solto nos campos. Freitas (2000b, p. 45-46) observa que a identificação desse gado solto era feita pela marca. Uma leitura da obra de Luiz Aimberê Freitas (2000b) sobre a origem de inúmeras famílias tradicionais roraimenses permite vislumbrar-se um modelo do surgimento destas a partir da atividade criatória, enquadrando-se no afirmado acima: entre o fim do século XIX e início do XX, um nordestino ou paraense, relativamente jovem, vem para Roraima, assume a condição de vaqueiro e, como tal, desfruta da sorte, isto é, da participação de um quarto das novas rezes e, alguns anos depois, “situa” ou funda uma ou mais fazendas. Exemplo disso foi Domingos Braga, nascido no Ceará, que após trabalhar algum tempo no Pará, foi atraído pela notícia da existência de gado na região do rio Amajari, em Roraima. Depois de alguns anos como vaqueiro transformou-se em fazendeiro, situando, isto é, fundando, duas fazendas. Ainda segundo o mesmo autor (FREITAS, 2000b, p. 44-45), Domingos Braga foi casado quatro vezes, teve inúmeros filhos, sendo que alguns prosseguiram com as atividades do pai, enquanto alguns filhos e netos, homens e mulheres, estudaram e se transformaram em sua maioria em servidores públicos. Outros antigos patriarcas que seguiram o que se poderia chamar aqui de “modelo”, foram Bento Coelho e Aldo Rodrigues da Silva. O pai do primeiro, conforme Freitas (2000b, p. 39-42), foi casado com mulher da família roraimense Brasil e contratado como vaqueiro pela empresa de Manaus J. G. Araújo, dona de diversas fazendas em Roraima. Coelho, como Domingos Braga, fundou fazendas e foi líder político, deixando larga descendência. A história dos descendentes de Bento Coelho e de Domingos Braga, é praticamente a mesma das famílias Brasil, Souza Cruz, Magalhães, Motta e tantas outras tradicionais de Roraima. O uso da mão-de-obra indígena estava freqüentemente ligado à utilização das terras dos próprios índios (SANTILLI, 2001), o que exigia um ritual de aproximação que incluía muitas vezes o compadrio. Um exemplo: Aldo Rodrigues da Silva, vaqueiro como os 163 demais, veio do Piauí já na metade do século XX (SANTILLI, 2001, p. 59), chamado pelo fazendeiro Jesus Cruz. Com o tempo, Silva comprou a posse e estabeleceu amizade com os índios das malocas (aldeias) próximas, teve família e se utilizou da mão-de-obra indígena por meio do compadrio e outros recursos. Também comprou uma área de posse dos herdeiros de Bento Brasil, adquirida do governo do estado do Amazonas em 1903, a qual tentou regularizar em 1973 (SANTILLI, 2001, p. 61), sem sucesso. Era o tempo em que o Estado Nacional, em razão da busca de solução da crise do petróleo e dos efeitos do fim do milagre, estava marcando sua presença e fazendo sentir sua autoridade no tocante à titulação das terras. Os problemas causados pela indefinição fundiária em Roraima têm um início bem definido: o início da década de 1970, quando o governo federal, desejando implantar um projeto de desenvolvimento nacional, incluindo uma modernização autoritária no campo, tomou medidas para cadastrar e titular as terras. Essa operação, própria do Estado, ação racional-legal no sentido weberiano, despertou reações de interesses contrariados. O Programa de Ação do Governo para o Território de Roraima – 1975-1979, publicado em 1975, registra como um dos problemas para o desenvolvimento da agricultura de Roraima a “Situação fundiária indefinida” (1975, p. 45). Apoiado nos dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural de 1972, aponta a mesma fonte, apenas 172 dos imóveis rurais tinham título definitivo, como já anotado em 4.1. O Programa de Ação – 1975-1979 (p. 85) acentua a importância da regularização fundiária, principalmente quando trata de futuros projetos a serem integrados ao POLAMAZÔNIA. No entanto, como demonstram várias fontes (SANTILLI, 2001; IBGE, 1981; BOA VISTA, 1973), a preocupação governamental com o problema fundiário em Roraima, bem como a reação ao controle federal sobre as terras, é anterior ao Programa. Este delineava toda uma ocupação do espaço do território com a implantação de um pólo agropecuário e outro mineral, como constava no POLAMAZÔNIA, além de prever a introdução de toda uma infra-estrutura para dar suporte à evolução local do II PND. Tudo isso exigia uma ocupação “racional” do espaço físico, o que não combinava com o tipo de ocupação da terra até então feita nem com uma migração espontânea maciça, como ocorreu. Não admira pois a oposição do governador Fernando Ramos Pereira (1974-1979) à instalação de colonos ao longo das rodovias (RORAIMA TERÁ..., 1975, p. 1), o que tentou evitar, declarando que haveria uma política oficial de ocupação. 164 Já em 1973, iniciou-se uma polêmica entre autoridades federais e sociedade local em torno da titulação definitiva de terras pelo INCRA (ESPERANÇA..., 1973 p. 8), que permitiria ao Banco do Brasil realizar financiamentos aos produtores, pelo PROTERRA. Na recém-chegada Comissão de Discriminação de Terras Devolutas do INCRA, o responsável pelo Projeto Fundiário Boa Vista-INCRA informava, conforme o Jornal Boa Vista (POSSEIROS E OCUPANTES..., 1973, p. 6), que: “Havia medo que o INCRA lhes tomasse as terras, quando a finalidade do INCRA é efetivar a discriminação da terra, legitimando a propriedade dos posseiros e ocupantes, separando a do governo federal”53. Reafirmando sua mensagem, o executor do Projeto Fundiário de Roraima explicava textualmente no Jornal Boa Vista (POLÍTICA...,1973, p.8), que “[...] a política do INCRA não é tomar a terra e sim, regularizá-la [...]”. Alguns dias depois, no mesmo jornal (INCRA INTIMA..., 1973, p. 4), o INCRA intima pessoas e entidades a apresentar seus títulos, escrituras ou qualquer outra comprovação listando nomes como Adolpho Brasil, Tuxaua Pereira e Onésimo de Souza Cruz, grandes pecuaristas e líderes políticos locais. Era o final do segundo governo de Hélio Campos (1969-1974), bem relacionado com as lideranças roraimenses, mas o discurso do INCRA, quando enfatizava as vantagens da legitimação, pode não ter encontrado apoio do governador. Foi diferente, como já explicado, a reação no governo seguinte, o de Fernando Ramos Pereira (1974-1979), que entrou em atrito com lideranças locais, principalmente as da família Brasil. Entre as prováveis razões para poucos terem atendido ao chamado, embora esse fosse quase contundente, uma pode estar relacionada com a política de crédito e financiamento da Assessoria de Crédito e Assistência Rural (ACAR-RR), vinculada à Secretaria de Economia, Agricultura e Colonização do governo do território. Esta não exigia, ao que parece, documento legal para financiamentos e assessoria técnica. Mais provável ainda, é o fato de que os ocupantes, autodenominados proprietários, não atribuíram à época grande importância ao chamado à legitimação, em razão de, pelo menos em alguns casos, terem maior confiança em documentos fornecidos pelo estado do Amazonas antes de 1943. Estes documentos, como aponta Santilli, (2001), eram imprecisos quanto aos limites e não inteiramente reconhecidos pelo INCRA na época. Havia, no entanto, uma outra racionalidade, de natureza econômica. 53 Segundo o IBGE (1981, p. 26), o Censo Agropecuário considera ocupante o responsável pela ocupação pura e simples das terras devolutas, sendo o mesmo, pela sua condição jurídica, posseiro, segundo o Código Civil Brasileiro. 165 Segundo o IBGE, A não legalização de terras na Amazônia advém, geralmente do fato de não terem tido elas importância maior, dado o tipo de ocupação. Nos campos naturais, a pecuária era uma atividade desenvolvida na sua forma mais extensiva – o livre pastoreio. O sistema adotado já demonstra a pequena importância atribuída à terra. Na realidade, ela não tinha valor; quem tinha era o gado. (BRASIL, Instituto... , 1981, p. 26) Outras fontes, como Rivière (1972, p. 47), confirmam tal assertiva, registrando ainda que a não valorização da terra em Roraima, bem como a indefinição de limites das fazendas, deviase à consideração de que os recursos naturais eram ilimitados54. Referindo-se a uma área onde não havia até então criação de gado, o IBGE (1981) afirma que a não valorização da terra também se dava quanto à porção sul do território de Roraima,55 onde predominava a floresta, a população era extremamente rarefeita e a economia era toda baseada no extrativismo vegetal e na pesca. A terra (BRASIL. Instituto..., 1981, p. 26) representava apenas o suporte das árvores, estas sim, com valor econômico. A mesma fonte explica que nos dois extremos do território, do alto rio Maú ao norte, em São José do Anauá, Santa Maria do Boiaçú e no alto rio Urariquera e a serra de Pacaraima, as terras ocupadas o eram pela forma exclusiva de ocupação. No norte e nordeste e mesmo próximo a Caracaraí e Boa Vista, as terras ocupadas não constituíam a condição legal única (BRASIL. Instituto..., 1981, p. 26-27), mas predominavam de modo absoluto. Já no início da década de 1970 é possível ver que essa realidade estava mudando, principalmente nas zonas pecuaristas, mais antigas e ao logo das rodovias ao sul e sudeste, áreas de florestas, onde milhares de colonos se estabeleceram. Boa parte das mudanças no uso e apropriação da terra em Roraima a partir da década de 1970 pode ser acompanhada nos números dos Censos Econômicos e Agropecuários do IBGE. Estes permitem também algumas indagações, como as razões da variação dos proprietários entre 1970-198056 e das pastagens plantadas de 1975 em diante. Porém, essas 54 Sobre o conceito de recursos naturais, concorda-se aqui com o afirmado por Coelho (1994, p. 185), herdado da teoria marxista clássica: “[...] os recursos naturais são todos aqueles que são de uso potencial para os seres humanos. Eles são socialmente determinados no sentido que seus valores são relacionados às tecnologias usadas para explorá-los e à existência da população que o consome”. 55 A expressão “sul de Roraima” à época, corresponde hoje ao sul e sudeste do estado conforme uso do IBGE, diferentemente de alguns autores. No texto, o adotado aqui sempre foi o uso oficial. 56 No tocante ao ano de 1970 e 1975, os números da Tabela 3.2 são por vezes diferentes do Programa de Ação já comentado. Isto se dá em razão das revisões do IBGE e do uso de conceitos diferentes e da inserção de itens como “sem declaração” e da separação da propriedade particular da pública. Até por serem em termos numéricos 166 variações certamente só podem ser explicadas com auxílio de outras informações e análises das ações dos administradores e dos agentes econômicos, além de influências do meio físico. Ano/ Estab. Proprietário Arrendatário Parceiro Ocupante 1970 1975 1980 1985 1995 1.483 150 345 3.666 6.643 4 3 1 2 16 26 5 5 1 19 440 2.861 3.391 2.720 798 Totais Quadro 2. Estabelecimentos Rurais de Roraima quanto a condição do produtor 1970-1995. Fontes: BRASIL. IBGE, Censos Econômicos, 1985 e 1995-1996. As variações nas categorias proprietário e ocupante, nos períodos mostrados nos Quadros 2 e Tabela 4, são explicadas por vários pesquisadores, como Braga (1998), Barros (1995; 1996), Diniz (1998), Furley, (1994), Pereira (1998) e Santilli (2001). Pereira (1998, p. 49-54) defende que a mudança dos números de proprietários pode ser explicada pela dinâmica colonizadora, pela migração e o deslocamento de pequenos produtores para atividades mineradoras e para as cidades e, principalmente, por uma concentração da grande propriedade. Furley (1994), analisando o período 1970-1985, tem conclusão semelhante. Braga (1998), em estudo para a Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (EMBRAPA), analisa efeitos das mudanças nas áreas geográficas mais atingidas por estas e seu processo, mostrando a ligação entre o avanço das pastagens e da exploração da madeira nos assentamentos bem como o freqüente abandono dos lotes pelos colonos. Este último fenômeno foi anotado também por Barros (1995). É necessário evidenciar aqui resultados do primeiro governo de Ottomar Pinto (1979-1983), quando o mesmo desenvolveu uma política voltada sobretudo ao crescimento da agro-pecuária. insignificantes, essas diferenças não mudam o significado do problema abordado. 167 Ano/ hectares 1970 1975 1980 1985 1995 Lavoura permanente 1.526 9.239 4.110 4.657 64.405 Lavoura temporária 3.648 17.859 25.261 23.173 68.607 -- 1.904 32.282 46.447 40.560 1.125.069 1.325.533 1.519.432 1.100.208 1.246.541 21.965 27.635 82.352 147.005 296.024 326.031 291.185 617.368 680.426 1.021.974 360 -- 10 414 1.414 27.809 55.888 49.365 50.765 103.002 Lavoura em descanso Pastagem natural Pastagem plantada Matas naturais Matas plantadas T. produtivas não utilizadas Área Total (*) 1.506.408 Quadro 3 - Utilização das terras rurais de Roraima - 1970 – 1995 (em hectares). Fonte: BRASIL. IBGE, Censos Econômicos, 1995. (*) O IBGE utiliza ainda a categoria terras inaproveitáveis, o que eleva os totais para 1.594.397; 1.836.201; 2.463.107; 2.149.537 e 2.976.817 hectares, respectivamente. Entre 1980 e 1985 houve uma intensificação da migração para Roraima. O avanço dos assentamentos do INCRA e do governo do território para a floresta e a implantação de pastagens nos mesmos, principalmente os mais antigos, além da exploração da madeira, vão mudando gradativamente o ambiente físico, o social e também o político no sul e sudeste. A análise dos próprios censos econômicos do IBGE, colocados dentro do contexto histórico e político de Roraima no período 1970-1985 (Tabela 3), permite ainda outras conclusões. Tabela 3 - Estabelecimentos e dimensão das terras rurais de Roraima - 1970-1985. (em hectares) Total Estab. Categorias e Porcentagem área Ano Total ha (*) 1970 1.586.406 1.953 0,08 1975 1.836.201 3.019 1980 2.478.767 1985 2.157.128 MENOS DE 10 ha 10 a 100 ha MAIS DE 10.000 ha 100 a 1.000 ha 1.000 A 10.000 ha 0,64 17,28 79,29 2,71 0,25 0,93 9,67 51,23 37,93 3.742 0,07 1,14 14,23 60,21 24,35 6.389 0,05 6,73 22,69 57,34 13,18 Fonte: 1970-1985 Furley, 1994, p. 33; IBGE, 1995. (*) No Censo Agropecuário do IBGE 1995-1996, referindo-se aos os números de 1970-1985, estes são: 1.594.397, 1.836.201, 2.463.107 e 2.149.537 hectares, respectivamente. Não se mudaram os dados aqui tendo em vista que as pequenas diferenças em nada alterariam a análise do problema. 168 Sem dúvida, há uma convergência quanto ao progressivo avanço das pastagens para a floresta, à custa da apropriação, inclusive por compra de terras antes ocupadas pelos colonos migrantes. Este processo, que ainda está em marcha, só se iniciou após a intensificação dos assentamentos, de 1979 em diante. Assim, é forçoso concluir.que o governo federal, em não aceitando a maioria dos títulos de terra antigos, ampliou a categoria dos de propriedade da União, principalmente entre 1970 e 1975, como visto em 4.3. Tabela 4 - Propriedade das terras rurais em Roraima - 1970-1985 1970 Propriedade Individual Estab. 1975 % Estab. 1980 % 1985 Estab. % Estab. % 1.598 81.8 145 4.82 314 8.40 3.614 56.57 Outra particular 98 5.1 12 0.4 12 0.32 41 0.64 Entidade pública 256 13.10 2.851 94.78 3.416 91.28 2.705 42.34 Sem declaração 1 0.0 1 0.0 00 00 29 0.45 100 3.019 100 Totais 100 100 Fonte: BRASIL. IBGE, Censos Econômicos, 1985 e 1995-1996. A alteração do número de proprietários rurais em Roraima nos períodos 19701980 e 1980-1985 permite atribuir as mudanças principalmente às diferentes atitudes dos governantes do então território federal em dois momentos: 1974-1979 e 1979-1983. Em ambos os períodos, um problema relegado tomaria posteriormente uma dimensão até então não prevista: o das terras indígenas. Exemplo disso foi o fato de que até o final da década de 1970, na área do extremo nordeste de Roraima e, entre o rio Urariquera e a serra de Pacaraima, os habitantes eram exclusivamente indígenas, segundo o IBGE (BRASIL. Instituto, 1981), o que mudaria com o avanço do garimpo no final da década seguinte. Os números que mudaram o mapa de Roraima nesse período representam um movimento humano principalmente em direção ao sul e sudeste, junto às BR. 174 e 210. O aumento de ocupantes e de incorporação de matas naturais entre 1970 e 1980 deve-se, como já mostrado, em sua maior parte, ao fluxo migratório e ocupação de novas terras, e também, ao avanço das fazendas, incorporando terras mas não as legitimando, como se verá adiante. Entretanto, desde a década de 1960, de acordo com o CIDR (1990, p.10), deuse a chegada de fazendeiros sulistas e foi instituído nas antigas áreas pastoris o trabalho assalariado, o que aumentou a pressão sobre as comunidades indígenas. Esse avanço, fruto 169 também da política de incentivos da época, fazia parte de um sistema completamente independente daquele da colonização, que se dava mais próximo à floresta, junto às rodovias. Mesmo com a crise que abalou o governo brasileiro na década de 1980, essa dupla transformação do espaço roraimense, promovida agora pelo governo territorial, inclusive após o governo de Ottomar Pinto, continuou. Uma outra mudança ocorreu no interior da pecuária nesse tempo: em pesquisa com 137 fazendeiros, Macmillan, Furley (1994, p. 195) concluíram que 51% deles tinham outros interesses econômicos, principalmente o comércio, para onde carreavam os recursos oriundos de incentivos para a agropecuária. A terra passou a ser utilizada, também, como captadora de capital de giro, muito mais que para expandir as atividades declaradas, o que não diminuiu a disputa por ela. A questão fundiária persistiria, compreensivelmente, agravando-se na década de 1990. O problema não era exclusivamente rural, pois boa parte das terras urbanas da capital, Boa Vista, tem também uma questão irresolvida. Uma das raízes do problema se encontra também no emaranhado jurídico-administrativo e político produzido pela ação do Estado. João Danilo Nogueira (1997), ex-prefeito da capital e membro do antigo Conselho Territorial, afirma que não havia maior problema fundiário antes de 1974. Nesse ano, o governador Fernando Ramos Pereira (1974-1979), apoiado em pareceres de técnicos do Ministério do Interior, determinou a supressão de processos de aforamento de terras urbanas. Até então a prefeitura de Boa Vista, baseada em uma aquisição de área de terras ao Estado do Amazonas em 1899, administrava sem interferências seu patrimônio fundiário, aforando centenas de glebas. Cada processo de aforamento, informa Nogueira (1997, p. 129), era publicado inclusive no Boletim Oficial do Estado, mas ignorava-se o artigo 2° do Decreto-Lei de criação do território, de n.º 5.812, o qual expressava claramente: “Passam para o domínio da União os bens que, pertencendo aos estados ou municípios, na forma da Constituição e das leis em vigor, se acham situados nos territórios delimitados no artigo presente”. Entre 1974 e 1979, segundo Nogueira (1997, p. 136), estabeleceu-se “[...] um verdadeiro pandemônio em torno da questão fundiária urbana”. Firmaram-se convênios com o INCRA e, com base nos pareceres dos técnicos do Ministério do Interior, passou-se a expedir Licenças de Ocupação (grifo nosso). Essas licenças seriam provisórias, cuja validade se estenderia até uma definitiva regularização. Em 1979, o novo governador, Ottomar Pinto, de acordo com Nogueira (1997, p.135), “extrapolando sua competência criou, por decreto executivo, o Conselho Imobiliário Territorial que passou a examinar os milhares de casos de 170 posses de terrenos urbanos”. O Conselho indicava como suporte jurídico o Decreto-Lei 411 de 1969, o qual autorizava os governadores dos territórios, uma vez ouvidos o Conselho Territorial e com a prévia autorização do Ministro do Interior, a alienar os bens patrimoniais da União existentes no território. Assim, diz a mesma fonte (NOGUEIRA, 1997, p. 135), o governo territorial passou a alienar lotes urbanos, tendo assinado cerca de cinco mil Contratos de Promessa de Compra e Venda com prazo de cinco anos de amortização e uma centena de títulos definitivos de terras urbanas na capital. Isso durou até 1983, quando o governador foi afastado. O Conselho Imobiliário tinha uma fragilidade legal e foi extinto quando do novo governo que assumiu após a queda de Ottomar, em abril de 1983. A partir daí, afirma Nogueira (1997, p. 135), a questão da propriedade dos lotes urbanos está à espera de solução, não se sabendo quais dos diversos títulos dão legalidade às glebas urbanas. Em vista da dificuldade de esclarecer-se a legalidade das terras urbanas, da necessidade de se resolver a questão, inclusive porque sem títulos legais não havia como obter financiamentos, propõe Nogueira (1997, p.136) que o governo federal “[...] devolva ao município as suas terras legalmente adquiridas no ano de 1899”. No urbano, como no rural, a legalidade das terras de Roraima sofreu uma tentativa de solução no primeiro governo de Ottomar Pinto (1979-1983), mas atualmente ambos persistem e por vezes tomam rumos de confrontos e discussões intermináveis. A solução das forças políticas roraimenses para o problema das terras rurais, no entanto, choca-se com a legislação federal, inclusive com o já comentado artigo 231 da Constituição de 1988. No entanto, a economia madeireira, a pecuária e as grandes plantações de arroz irrigado dependem de um avanço contínuo para as terras indígenas e para a floresta. Como as comunidades indígenas resistem à tomada de suas terras e exigem a demarcação das mesmas, associados aos ecologistas e à Igreja Católica, e os governos estaduais e municipais defendem o outro lado, estabeleceu-se um impasse. Para resolvê-lo, os grupos de interesse se transformaram em grupos de pressão, cada qual armando-se de argumentos próprios. A história de Roraima passou a ser a história dos choques entre o antigo patrimonialismo que se ligou ao populismo. Ambos têm se beneficiado da máquina burocrática e dependido de contínuos recursos externos, como no tempo das vantagens promovidas pela geopolítica nacional. É essa a explicação que se tentará dar no próximo capítulo. 171 5 ECONOMIA E RELAÇÕES DE PODER Historicamente, a economia e a sociedade de Roraima se constituíram a partir das atividades de uma pecuária extensiva, do garimpo e de um extrativismo vegetal e animal. A criação do território, em 1943, veio alterar esse quadro, formando uma infra-estrutura administrativa que propiciou o aumento da população urbana e a implantação de algumas colônias e uma certa dinamização no comércio e serviços. A redemocratização, em 1946, dotou o território de uma representação política nacional e abriu espaço para lideranças que passaram a disputar o poder, materializado principalmente nos poucos cargos públicos. A geopolítica do regime militar, a partir de 1970, com a aplicação do PIN, dos PND, do POLAMAZÔNIA e outros projetos, transformou inteiramente a vida econômica, social e política local. Rodovias ligaram o território a Manaus, à Venezuela e à Guiana e a capital se firmou como um centro urbano administrativo. Dentro da racionalidade do regime, as definições político-administrativas eram verticais, mas houve o patrocínio de estudos para formação técnica e universitária de muitos roraimenses, propiciando o preparo de futuras lideranças locais57. Outros projetos desenvolvimentistas mais específicos foram iniciados, como barragens, um pólo mineral e outro agropecuário que, em vista das dificuldades financeiras e políticas do governo central após 1979, foram abandonados. É o tempo em que, de acordo com Costa (1993, p. 16), a ditadura projeta na Amazônia suas duas faces: a econômica e a política. Uma herança, no entanto, ficou. O abrandamento e depois o desaparecimento do regime militar (BECKER, EGLER; 1994; BUNKER, 1985; COSTA, 1992) levaram ao fortalecimento das forças regionais e locais. Em Roraima, esse caso tem suas especificidades, como um clientelismo implantado por antigos administradores do território e a adoção, por suas lideranças políticas e econômicas, de um discurso que defende ardentemente o livre acesso às terras indígenas e de preservação ambiental, com o apoio explícito de seus governantes. Como a Constituição de 1988 incorporou, por pressões de entidades e de amplos segmentos da sociedade nacional, a defesa 57 Diversos ex-estudantes roraimenses, bolsistas do governo do território, ocuparam depois cargos administrativos, dedicando-se posteriormente à política. É caso de Mozarildo Cavalcanti, Neudo Campos Getúlio Cruz e outros. 172 das culturas tradicionais e do ambiente, formou-se aí um ponto de atrito entre o poder local e o central. Diferentemente dos tempos áureos da ditadura, na década de 1970, a estruturação do novo estado federativo de Roraima, em 1990, deu-se em momento de grandes dificuldades econômico-financeiras, no Brasil e no mundo. Localmente, ocorreram novos movimentos dos garimpeiros rumo às terras Yanomami e de milhares de migrantes para Boa Vista. No âmbito federal, para combater a inflação galopante, o governo brasileiro adotou uma política de enxugamento do Estado e das finanças públicas, retirando a maior parte da moeda em circulação. Quase simultaneamente, a grande esperança econômica, o garimpo, foi tornado ilegal, e tentado sua inviabilização com a destruição de pistas de pouso clandestinas e expulsão das terras indígenas de milhares de garimpeiros58. Em termos nacionais, seguiu-se uma recessão, enquanto em Roraima manteve-se, como nos tempos do território, uma crônica dependência de recursos federais repassados ao estado. A coexistência de um discurso que contraria frontalmente a legislação federal59 com o apoio político no Congresso dos parlamentares roraimenses ao mesmo governo, gera dubiedades só entendidas dentro da lógica das complexas relações que se estabeleceram entre os dois níveis de poder. A nova Constituição aumentou consideravelmente as transferências de recursos aos estados e municípios, mas é muito específica quanto aos direitos de populações tradicionais e aos limites para a exploração do meio ambiente. Esses limites são encarados como entraves insuperáveis pelas lideranças econômicas e políticas de Roraima. Os agentes econômicos locais, dentro de sua racionalidade, defendem a manutenção dos processos econômicos tradicionais. Assim, o diamantário Arthur Barradas (entrevista em fevereiro de 2003), afirma sequer existirem índios em Roraima e que todas as terras deste estão fechadas aos brasileiros pelas ONG e entidades ecológicas. Na mesma linha de pensamento, a rizicultora Izabel Itikawa, que confirma já ter liderado “chamamentos” e 58 O fim dos maiores garimpos, acompanhado das medidas como a retirada de circulação da moeda, trouxe a ruína de muitos comerciantes em Boa Vista. Francisco Rocetti, em entrevista escrita (Boa Vista, 2002), revela que o negócio da família, que incluía uma churrascaria, teve que fechar as portas porque não conseguia receber cinco quilos de ouro de quem havia fornecido alimentos. A família Rocetti conseguiu se recompor, atuando ainda hoje, mas a tradição oral registra até casos de suicídio. 59 Esse discurso não se dirige diretamente ao governo federal, mas aos órgãos administrativos desta esfera, como o IBAMA , o INCRA e, principalmente, a FUNAI. Embora seja expresso mais freqüentemente por políticos da área legislativa e empresários, por vezes toma a forma de pronunciamento dos administradores. É o caso do questionamento, por parte do governador Neudo Campos (GOVERNADOR VAI..., 1999, p. 4), da demarcação de terras indígenas no estado, alegando inclusive interferência de países estrangeiros. Outro exemplo pode ser colhido da entrevista do presidente da Assembléia Legislativa de Roraima (OLIVEIRA, 1991, p. 27), onde reconhece que a Constituição estadual encontraria “[...] proposições conflitantes com as diretrizes da Carta Magna”, defendendo o acesso dos mineradores locais à exploração do subsolo. 173 passeatas contra a demarcação, diz que [...] 94% de Roraima está comprometido em áreas indígenas” (entrevista gravada em fevereiro de 2003). Não é diferente o discurso dos políticos, como o do deputado federal Almir Sá, também presidente da Federação Estadual da Agricultura, para quem A melhor saída para a questão fundiária de Roraima é dar ouvidos à razão. É impossível que um governo brasileiro, possa provocar de forma irresponsável o atraso de uma região, de um estado, em função dos sonhos mirabolantes de dois ou três indígenas controlados por organismos internacionais. [...] Precisa-se hoje, urgentemente, definir o que é terra do estado de Roraima e o que são terras da União, e também dar ao governo local poder para decidir sobre o destino de suas terras. Ao mesmo tempo precisa-se de coerência dos governos deste país (entrevista escrita, março de 2003). O entrelaçamento de interesses promove assim uma crítica comum, que opõe o pensamento local ao externo, inclusive no âmbito legal e administrativo e, além do combate sem tréguas a entidades ambientais e de defesa das populações tradicionais, como se verá adiante. Neste contexto de conflitos múltiplos, persiste a dicotomia governo federal x governo local, mesmo que amenizada pela intermediação política e repasses de recursos. Como produto da organização federativa, existem órgãos públicos federais que concorrem com os estaduais, como o INCRA com o ITERAIMA. Essa é uma das causas da dificuldade para a solução da questão fundiária, o ponto central das discórdias em Roraima, ao qual se atribui como o maior entrave à economia do estado60. À medida que há algum prejuízo, real ou imaginário, ou impedimento em razão da ação institucional, os grupos de interesse tomam a forma de grupos de pressão, atuando diretamente ou através de seus representantes, como o senador Mozarildo Cavalcanti e o deputado federal Elton Rönhelt. O argumento legitimador pode vir também dos próprios administradores, como um prefeito ou o próprio governador, conforme já citado. O argumento é sempre o da necessidade de desenvolver a economia, havendo forças contrárias a isso, manipuladas por interesses nacionais e internacionais. A manutenção da estrutura de poder e do discurso têm sido garantidas pela implantação de um sistema político de cooptação, em que pesem as diferenças de estilo dos governantes. Nesse contexto, os grupos de interesse mais fortes se transformam em grupos de pressão, se aglutinam, com atritos ou desencontros, que muitas vezes levam a rompimentos e dissidências, sem rupturas definitivas. Há uma intensa busca interna de institucionalização desses grupos, desde os indígenas aos de classe. Já nas primeiras eleições estaduais estão 60 A agro-pecuária está incluída (Sandroni, 2000, p. 555) no setor primário da economia. Este tem tido, desde 1970, uma queda acentuada na participação da estrutura produtiva de Roraima, como mostra a Tabela 5, adiante. 174 presentes os representantes do comércio, da pecuária, dos arrozeiros e madeireiros, além de outros grupos, como o dos garimpeiros. Com a criação do estado, o espaço político se abriu também para políticos do Amazonas, do Nordeste e até de São Paulo, pelo menos quanto à participação nas eleições, ainda que através dos grupos locais mais estruturados. Entre os primeiros, Júlio Cabral,61 apoiado por Ottomar Pinto, tal como os paulistas Moisés Lipnik e Wagner Canhedo, enquanto João Lyra, usineiro de Alagoas compôs com Romero Jucá. Mas a grande vantagem era de quem detinha alguma máquina eleitoral anterior, o que explica como antigos administradores militares, ex-governadores do território foram eleitos, como o primeiro governador, senador e deputado federal, respectivamente. Pela mesma razão pode se explicar porque sete vereadores de Boa Vista se elegeram deputados estaduais. A partir daí, com a montagem da máquina administrativa do estado, é que as relações de poder, institucional ou não, vão tomar forma definida, sendo que alguns aspirantes ao poder se retiram posteriormente, como Cabral e Lyra. Haverá ainda uma desproporcionalidade entre o poder organizado, institucional e a economia da nova unidade federativa, o que explica, em parte, a hierarquia que se formou entre grupos de interesse e grupos políticos com ligações externas. Acima dos grupos de interesse e de pressão, situam-se os grupos políticos, cujo comportamento difere dos primeiros por incorporarem politicamente estes e, possuírem cada qual uma máquina eleitoral e articulações com Brasília e outros estados. O mais tradicional é o de Ottomar Pinto, ex-governador do território (1979-1983) e do estado (1991-1995), exdeputado e ex-prefeito de Boa Vista. Sua esposa, Marluce Pinto, empresária, é ex-deputada e ex-senadora, enquanto uma filha é deputada estadual e outra foi em 2000 reeleita prefeita do município de Rorainópolis. Outro grupo é o do senador Romero Jucá, ex-governador (19871989) casado com a atual e ex-prefeita de Boa Vista e ex-deputada Tereza Jucá. Bastante articulado em Brasília, Jucá é autor de inúmeros projetos de lei em favor da exploração de minérios nas áreas indígenas. Um terceiro grupo é o do ex-governador Neudo Campos (1995-2002), uma dissidência do grupo Ottomar, de quem foi secretário no segundo governo deste (1991-1995). Todos os líderes desses grupos são e têm ligações com empresários, de Roraima e de fora, e defendem o discurso do desenvolvimento, além de se posicionarem contra a demarcação e homologação das terras indígenas em áreas contínuas, o centro da questão fundiária, o problema local maior na virada do século. 61 Cabral, filho do então ministro da Justiça do governo Collor, Bernardo Cabral, teve vida curta na política de Roraima, retirando-se dela após o primeiro mandato. 175 O exemplo mais visível da atuação e da linha de pensamento político das lideranças roraimenses está em seus discursos e propostas de revisão ou regulamentação da legislação federal no Congresso Nacional. Em 1995, o senador Romero Jucá apresentou ao Senado um Projeto de Lei n. 121, que, aprovado naquela instância, foi remetido à Câmara de Deputados e transformado no Projeto de Lei n. 1.610/96 (LEITÃO, 2004, p. 40). O referido Projeto de Lei se refere à regulamentação da exploração e aproveitamento dos recursos minerais em terras indígenas (LEITÃO, 2004, p. 94) de que trata os artigos 176, parágrafo 1º, e artigo 231, parágrafo 3º da Constituição Federal. Nos anos de 1990, além de Projetos de Lei ( CIMI, 2004, [n.p.]) os parlamentares roraimenses foram autores de três das sete Propostas de Emenda Constitucional relativas aos direitos indígenas apresentados no Congresso Nacional. O mais ativo dos parlamentares é o senador Mozarildo Cavalcanti, autor, entre outras, da proposta de suspensão da Portaria do Ministério da Justiça n° 820, de 11 de dezembro de 1998, que declara posse permanente dos índios a T. I. Raposa/Serra do Sol, e da Emenda Constitucional que altera os artigos 52, 225 e 231 da Constituição Federal. Estes artigos tratam da competência do Senado, do meio ambiente, do reconhecimento à organização social dos índios e o direito às terras tradicionalmente ocupadas por eles, respectivamente. Dependente do Congresso, embora com o domínio dos recursos públicos, o poder Executivo federal não fica imune às pressões de parlamentares. Os representantes da Amazônia em relação à exploração de bens naturais, advogam medidas em favor de atividades econômicas que interferem nas áreas das populações tradicionais. No caso de Roraima, os governadores se posicionam do mesmo lado em que estão os parlamentares, fazendo uso, inclusive, de recursos legais contra a finalização do processo de demarcação e transformando vilas em sede de municípios nas terras já demarcadas. O Estado Nacional, traduzido pela ação do Executivo federal, não tem assim facilidade para resolver impasses quanto à questão do ambiente na Amazônia Os resultados têm sido as idas e vindas quando das demarcações e homologações de terras indígenas ou da criação de Reservas Extrativistas e Unidades de Conservação na Amazônia. Pode-se considerar como exemplos dessas ações, o Decreto federal 1.775/96, que instituiu o contraditório quando das demarcações, substituindo o Decreto 22/91 e, em 1996, o reconhecimento da legalidade da criação pelo governo do estado de dois municípios nas áreas indígenas roraimenses (SANTILLI, 2001, p. 124-125) pelo Ministério da Justiça. Como se verá adiante, tais medidas, no conjunto, fazem parte de uma estratégia de barrar o 176 cumprimento de determinação constitucional. E, mesmo que esta esteja em parte cumprida, como é o caso das T.I.Raposa/Serra do Sol e São Marcos, os direitos dos índios, inclusive no tocante aos usufrutos não são respeitados e, muitos deles, em razão da troca de bens, têm aceitado defender a demarcação em área descontínua (SIMONIAN, 2001, p. 189), como defendem os grupos referidos. 5. 1 A ECONOMIA E O AMBIENTE De acordo com Hecht (1993, p. 687-695), existem três maneiras de se obter lucro a partir da terra e recursos naturais: a pura extração, a produção e a economia fiscal. Esta última consiste no processo de se capturar financiamentos e subsídios que se transformam em capital. Segundo a autora (HECHT, 1993), os governos brasileiros forneciam de maneira muito liberal empréstimos a juros muito abaixo da então elevada inflação, com a condição de se formar pastagens, isto é, desmatando. A terra adquirida a preços irrisórios, se transformava em capital patrimonial de reserva e o retorno econômico da pecuária nessas condições é baixo, mas esse não era o objetivo final dos beneficiados pelos financiamentos e subsídios. O interesse se estende aos minérios e madeira fechando um círculo: o gado serve para ocupar e legitimar a ação de agentes cuja racionalidade com relação à floresta é uma só: esta tem que ser derrubada e transformada em pastagens. Quem percorre hoje o sul de Roraima, junto às rodovias BR 174 e 210 pode verificar que ali ocorreu processo semelhante ao descrito, a partir da década de 1970. Referindo-se ao avanço dos pioneiros no sul de Roraima na década de 1970, Barros (1995, p. 33) registra que: Muitos queriam apenas a madeira para vender às serrarias; estas, por sua vez, também queriam evitar intermediários e avançavam elas próprias para a floresta; outros queriam terra, roçado, pastos. Outros somente formar pastos. Acredita-se em geral que logo aquelas estradas estariam asfaltadas, crença sem dúvida nutrida pelo ambiente de “milagre” no qual se embriagava a sociedade brasileira no começo e meados dos anos de 1970. Barros descreve sobre uma migração espontânea, num espaço que na época o governo territorial procurou evitar, não o conseguindo, como já demonstrado, apesar de toda autoridade de que estava investido. Isto mostra a força do movimento e de sua motivação, e que, mesmo sem os subsídios e vantagens fiscais, a busca pela terra e o que ela prometia era suficiente para sua ocupação. 177 A pressão internacional registra Hecht (1993), inclusive do Banco Mundial, para a diminuição da escala de empréstimos fáceis não parou a depredação na Amazônia. O processo de crise econômica e social porque passou o Brasil após a década de 1970, com inflação incontrolável, transformou a terra, como também o gado, em bem garantidor de patrimônio. O desmatamento até acentuou-se, conforme Hecht (1993) com os grandes e pequenos projetos de colonização, que levaram populações do Sul e Nordeste brasileiros para a Amazônia. Houve até mesmo uma “indústria de posse” para aquisição de terras, num país em que aumentavam as pressões para uma reforma agrária e conflitos com populações antigas, como as indígenas e outras tradicionais como seringueiros e coletores de castanha. Em Roraima o gado serve para garantir a posse da terra e, confirmando o argumento de Hecht, para garantir recursos. A FUNAI e a Igreja Católica têm financiado projetos de criação de gado entre os índios macuxi (MACMILLAN, FURLEY, 1994, p. 195), enquanto muitos criadores brancos utilizam a fazenda como uma maneira de transferir recursos para outros setores de seus interesses. Em 1992, uma pesquisa feita por Macmillan e Furley (1994, p. 195) com 137 criadores mostrou que 70 deles tinham outras atividades econômicas, como o comércio, e investiam o capital conseguido onde maior seria o rendimento. Além de servir à vários usos, produtivos ou não, a terra não perde assim sua importância e os agentes sociais a ela ligados tendem a disputá-la cada vez mais. A transferência de capital entre setores da economia, explica porque os percentuais da estrutura produtiva do estado de Roraima não refletem os problemas que têm tido maior repercussão política. Dados estatísticos do IBGE mostram, como se vê na Tabela 5, que, entre 1970 e 1997, o único setor a não sofrer alteração digna de nota, foi o terciário, que compõe quase dois terços da força produtiva. Apesar disso, são as atividades ligadas aos outros setores, principalmente o primário, que mais têm ocupado espaço na mentalidade e no discurso de políticos, de empresários e da mídia locais. A redução da agropecuária e da indústria é atribuída às dificuldades causadas por forças externas e não à falta de vigor e problemas de mercado da economia local. O crescimento urbano, principalmente de Boa Vista, e a existência de uma máquina burocrática civil e militar, relativamente numerosa, constitui um mercado consumidor interno relativamente alto, em vista de uma massa de salários regular e contínua. O setor secundário tem alguma expressão graças à madeira, mas, como o primário, é dependente do acesso facilitado aos bens naturais e ao crédito. Além disso, o mercado da madeira, além de majoritariamente externo, é tradicionalmente instável. 178 Tabela 5 – Estrutura produtiva de Roraima 1970 – 1997 (em %) Setor 1970 Primário Secundário Terciário Total % 1975 1980 1985 1997(*) 33,96 32,88 18,95 15,27 6,33 3,77 6,10 17,19 21,42 23,15 62,27 61,02 63,86 63,31 70,52 100 100 100 100 100 Fonte: IBGE apud FECOR, 1997, p. 90. (*) Estimativa Diante dos quantitativos da Tabela acima, evidencia-se uma interrogação: por que o peso das questões políticas que envolvem a economia de Roraima não é maior no setor mais representativo? As prováveis respostas são encontradas na herança histórica da agropecuária e, mais fortemente, no modelo de desenvolvimento incentivado, na esperança de acesso a recursos financeiros com juros baixos e frouxo controle. Os incentivos para quem detém a propriedade da terra, se não têm atualmente a generosidade das décadas passadas, existem, como o Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO)62. Em 1999 (BANER VAI..., 1999, p. 5) o liquidante do então extinto Banco do Estado de Roraima informou que a dívida deixada pelas empresas e pessoas físicas chegava a 460 milhões de reais. A natureza da dívida era proveniente de recursos do Fundo de Desenvolvimento de Roraima, do BNDES e do FNO. A metade dos 3.400 mutuários em débito com o Fundo era da área rural. Pesquisas mais recentes, como Diniz (1997) e Braga (1998) mostram que a terra em Roraima vem adquirindo maior valor de troca que de uso, numa distorção da política de colonização. Inegavelmente, o avanço progressivo da pecuária nas antigas regiões das colônias, mais que a exploração da madeira, vem alterando o quadro da estrutura fundiária, criando inclusive debates e atritos entre o INCRA e lideranças políticas locais. Sinal disso são os discursos de parlamentares, inclusive em Brasília, onde o senador Mozarildo Cavalcanti propôs a extinção do INCRA, da FUNAI e do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA), alegando que há duplicidade e superposição de órgãos executores de ações que municípios e estados fariam melhor63. A venda de lotes a pecuaristas é parte e resultado do 62 Esse Fundo, previsto no artigo 159 da Constituição (BRASIL. Constituição..., 1988), foi regulamentado pela Lei n. 7827 de 27 de setembro de 1989 (BRASIL. Lei 7827, 1989). Sua administração está a cargo do Ministério da Integração Nacional e do BASA como agente financeiro. A abrangência espacial do mesmo compreende todos os estados da região Norte. 63 BRASIL. Senado Federal, pronunciamento de Mozarildo Cavalcanti, em 8 mar.1999. 179 problema, pois há muitos lotes simplesmente abandonados, como mostram os Quadros 5 e 6 adiante. Uma rápida visão do criatório e produtos básicos, como arroz, feijão e milho, permite perceber que a evolução da agropecuária de Roraima, desde 1970, não se explica pela expansão da colonização e incorporação de novas áreas ao processo produtivo. Naquele ano o território possuía 1953 estabelecimentos rurais e a pecuária bovina correspondia a um rebanho de 238.761 cabeças (BRASIL, Instituto... Censo Agropecuário de 1995/1996). Em 1995, os números eram 7.476 estabelecimentos e um rebanho de 399.939 cabeças, que aumentaram para 480.400 em 200064. No caso da pecuária, uma mudança pouco expressiva, apesar dos números mostrarem (BRASIL, Instituto... Censo, 1995-1996 e 2000) que os estabelecimentos rurais eram majoritariamente compostos por pastagem natural: 1.125.069 ha de um total de 1.594.397 ha em 1970 e, 1.246.541 ha do total de 2.976.817 ha em 1995. Até os anos de 1970, grande maioria desses estabelecimentos e toda a atividade criatória estavam no norte e nordeste roraimense, enquanto no sul e sudeste as únicas atividades econômicas eram a pesca e a extração vegetal e animal (BRASIL, Instituto... 1981, p. 28). O advento das rodovias, da vinda em massa de colonos e a pesquisa aplicada mudariam em parte a espacialidade da pecuária, já que, ocorreu um avanço da atividade para as áreas coloniais, após a derrubada da floresta, sem que houvesse o abandono das antigas. PRODUTO (em t) ANO 1974 Arroz Feijão Milho 1981 1985 1989 2000 2.177 44.830 14.479 16.082 50.850 245 673 482 372 150 1.980 14.479 7.183 3.990 19.500 Quadro 4.- Produção de arroz, feijão e milho em Roraima entre 1974 e 2000. Fontes: 1. De 1974 a 1989 (COSTA, 1994, p. 279). 2. IBGE/RR. Produção Agrícola Municipal 2000. Ao contrário da pecuária, cujo crescimento quantitativo foi relativamente modesto entre 1970 e 2000, outros produtos, como o arroz, o feijão e o milho tiveram uma trajetória diferente, principalmente o primeiro. A agropecuária da atualidade é uma herança das modificações espaciais planejadas, onde se buscaram o crescimento e a qualidade da produção. Isto corresponde a uma parte da explicação da situação atual dessa área de 64 Dados do IBGE (2003), mostram que o número de bovinos em 2001 diminuiu, passando para 438.000. 180 atividades. As rodovias obedeceram a um plano geopolítico, traçadas após estudos do RADAMBRASIL (Barros, 1995) e, o PROVÁRZEAS, realizou estudos após 1981, que possibilitaram a expansão da cultura do arroz irrigado (BRASIL, Instituto... p. 28; BRAGA, 1998, p. 16-17), após o fracasso das experiências com o arroz no cerrado. Barry, Paterson (1994, p. 158-159) situam a superação das dificuldades do cultivo do arroz em várzeas dos rios Branco, Urariquera e Tacutu, creditando seu sucesso também à abertura de rodovias, ligando a atividade ao mercado e aos centros de beneficiamento na capital. A plantação do arroz irrigado se dá atualmente mais nas várzeas do nordeste do estado, inclusive em área indígena e conflituosa. Esse arroz tem tido produção crescente, sendo o produto agrícola roraimense de maior venda no Amazonas e Pará. Ocupando com suas atividades as áreas indígenas ao norte e nordeste do estado, os arrozeiros formam possivelmente o grupo de interesse mais organizado e poderoso do estado, enfrentando ambientalistas, lideranças indígenas e seus defensores. Suas armas principais hoje são o discurso em favor da soberania nacional e a defesa do direito de produzir, garantindo empregos e arrecadação aos cofres públicos. Institucionalmente, formam a Associação de Produtores de Arroz Irrigado de Roraima e têm estreitas ligações com pesquisadores da EMBRAPA local,65 além de, eventualmente, terem lideranças eleitas para cargos legislativos66. Braga (1998, p. 15) calcula que a área do arroz irrigado cresceu 420% entre 19861987 e 1994-1995, atingindo cerca de oito mil hectares. Esses números são compatíveis com os do IBGE (BRASIL, Instituto..., 1995) que registra um pouco mais de 10.000 ha plantados com arroz em 1992 e uma área colhida um pouco menor. A quantidade total colhida, segundo o IBGE (1995, p. 3-34), foi naquele ano superior a 25.000 toneladas, número bem abaixo dos da década de 1980, quando do início de sua expansão. Na década de 1990, o mercado de Manaus e o de Boa Vista passaram cada vez mais a consumir o arroz produzido nas várzeas de Roraima. Ainda segundo Braga (1998, p. 17), o rendimento médio passou de 3.000 kg/ha para 5.000 kg/ha, podendo atingir os 8.000 kg/ha em condições mais favoráveis. A expansão do arroz irrigado não tem ocorrido sem problemas. O seu plantio é feito nas várzeas, algumas delas nas áreas indígenas, como as do rio Tacutu, no nordeste roraimense67. Por outro lado, o fato de as águas subirem durante o inverno (abril-agosto), 65 Um dos empresários do arroz irrigado, Nelson Itikawa é oriundo dos quadros da EMBRAPA. Como se deu em 1990, com a eleição dos deputados estaduais Luiz Afonso Faccio e Antonio Evangelista Sobrinho. O primeiro é gaúcho e o segundo, cearense. 67 Esse rio marca exatamente a divisa com duas Terras Indígenas, situadas à margem direita: Raposa/Serra do Sol e São Marcos. 66 181 quando da segunda colheita,68 obriga aos produtores a semear nas partes mais altas, o que, de acordo com Barrow, Paterson (1994, p. 158-159) causa o desmatamento de vastas áreas de floresta, problema também relatado por Braga (1998). Sendo o arroz produto agrícola exportado em maior escala, concentrando o grosso de sua produção por poucos empresários, formou-se em torno de suas atividades um dos diversos grupos de pressão locais, conhecido como “grupo dos arrozeiros”. Este tem liderado a maioria dos protestos contra a demarcação e homologação das terras dos índios, incorporando o discurso da defesa da soberania nacional69. Quanto ao garimpo, atividade quase centenária, é hoje uma sombra do que representou no fim da década de 1980 e início dos anos de 1990. A exploração de minérios nas áreas indígenas, onde está a maioria das jazidas, é condicionada pela Constituição de 1988 e depende de uma regulamentação que se arrasta desde então no Congresso Nacional. Resta a polêmica que a questão envolve, além da esperança dos que auguram uma riqueza rápida e segura e, um comércio e serviços, principalmente em Boa Vista, associado ao que sobreviveu da atividade70, como se verá adiante. Não obstante, o Sindicato dos Garimpeiros de Roraima (SINDIGAR), vinculado à Federação das Indústrias de Roraima (FIER), está em plena atividade. Outro setor marcante na economia roraimense, o madeireiro, tem também forte presença política. Seu sindicato é um dos mais atuantes e o produto tem sido sempre o primeiro na agenda de exportação. Seu grande crescimento ocorreu com o aumento das obras públicas na década de 1970, e sua fonte de matéria prima expandiu-se em torno das novas rodovias e colônias. O mercado tradicional é a Venezuela, despontando atualmente Manaus para a progressiva produção do sul e sudeste do estado. A exploração da madeira, tal como o garimpo e a lavoura de arroz, é um dos pontos de atrito com indígenas e ambientalistas. Em alguns casos, ela é semi-clandestina ou informal, como se percebe percorrendo as estradas do interior. 68 Como toda atividade de capital intensivo, o tempo na produção arroz irrigado é fundamental, tendo que haver uma consonância com o secador industrial, de acordo com Izabel Itikawa (entrevista em fevereiro, 2003). A empresária informa também sobre a mudança de local de plantio para as partes mais altas durante o plantio de inverno, no caso, as terras indígenas. 69 Exemplo dessa posição é a empresa Itikawa, com plantação de 700 hectares de arroz irrigado no município de Normandia, no nordeste roraimense. Na época chuvosa do inverno, o segundo plantio é feito “do outro lado do rio Tacutu” (Izabel Itikawa, entrevista gravada em 27 de fevereiro de 2003). O outro lado do rio é exatamente área indígena, não reconhecida pelos empresários. 70 Não obstante, algumas vezes o diamante é notícia, constando na lista de exportação, o que mostra haver uma exploração não tão diminuta como se pode deduzir de números oficiais ou informações verbais. 182 O contínuo afluxo de migrantes e avanço para a parte florestal mais densa das áreas coloniais do sul e sudeste favorece a oferta de madeiras. Na década de 1980, assinala Barbosa (entrevista escrita, 2002), os serradores se utilizavam de intermediários que entravam em acordo com os colonos que cediam ao toreiro algumas árvores para serem extraídas e transportadas até a serraria, em troca de desmatar parte da área para o plantio. Esse intermediário, também identificado em Roraima como extrator, podia ser autônomo ou vinculado a alguma serraria e o processo freqüentemente incluía outros acordos e trocas. Mas, a atuação do extrator hoje é por vezes mais abrangente na ação e resultados, como noticia um jornal de Boa Vista: A notícia foi trazida por um pequeno extrator de madeira. Num projeto de assentamento rural do Incra, na BR 174, os produtores tiram lotes em seus nomes próprios e dos filhos e esposas. Após o recebimento, parte deles são vendidos à primeira oferta: ´comprei um cheio de cedro, caça e peixe por 400 reais. É uma beleza. Vou tirar a madeira, encher de pasto e passar para frente o lote` disse o tirador de madeira (VENDA..., 2000, p. 3). O relatado não se refere a uma exceção, se se analisar o processo junto às áreas coloniais junto às BR 174 e 210 e das colônias Confiança. Em todas elas existe, registra Diniz (1998), como em outras áreas coloniais, um altíssimo percentual de abandono de lotes e, de acordo com Barros (1995); Diniz (1998), o avanço da exploração madeireira e da pecuária. Ambos registram ainda, como por vezes transparece na imprensa local o envolvimento políticoempresarial nessas operações. O avanço da pastagem e da exploração madeireira ao longo das rodovias, em terras anteriormente destinadas à agricultura, é aparentemente irreversível. Percebe-se, como relatado por alguns autores, que o pequeno agricultor passa a ver a terra cada vez mais como um bem de troca de fácil acesso. É comum encontrar colonos, inclusive residindo nas cidades (SANTOS, N. P. n.c.), que já passaram por vários assentamentos. O estudo da economia roraimense, principalmente da década de 1990, permite identificar a persistência do discurso do desenvolvimento, adaptado às circunstâncias em que predominam valores voltados para um imediatismo, conforme modelo referido em Schneider et al. (2000) com respeito à Amazônia. Para o autor (SCHNEIDER et al. 2000, p. 21), a perspectiva dos governos locais na Amazônia é imediatista, daí seu apoio aos interesses econômicos de curto prazo. Assim, o futuro da comunidade pode ser comprometido com 183 práticas predatórias, tornando, a longo prazo, práticas insustentáveis para todos os níveis da sociedade. Se o governo central não intervier, argumentam Schneider et al. (2000, p. 21), a comunidade terá que decidir por si mesma se prefere o modelo do boom-colapso ou um desenvolvimento sustentável. Resta reconhecer, no entanto, as dificuldades dessa interferência, visto que nem sempre se consegue identificar o que é ou não sustentável; além do mais, os agentes da ação, que formam a suposta comunidade, são pioneiros, cuja racionalidade difere da do morador mais permanente e antigo. Sobre a política ambiental, além da legislação contida na Constituição, sobram documentos oficiais de intenções, como o Política Integrada para a Amazônia Legal (1995), do Ministério do Meio Ambiente e a Agenda Positiva da Amazônia (1999), da Comissão da Amazônia e de Desenvolvimento Regional da Câmara dos Deputados. O documento Política Integrada para a Amazônia Legal, foi aprovado pelo Conselho Nacional da Amazônia Legal (CONAMAZ), em julho de 1995 e, segundo declara o presidente Fernando Henrique Cardoso na apresentação do mesmo, seria a base de um ousado “Projeto Amazônico” (BRASIL, Ministério..., 1995, p. 5-6). Neste, se buscaria a colaboração dos demais países da região amazônica para “[...] tornar o conceito de desenvolvimento sustentável uma realidade capaz de trazer mais prosperidade e justiça para os povos amazônicos” (BRASIL, Ministério..., 1995, p. 7). Para o então ministro do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, Gustavo Krause, além de constituir-se a base de um Projeto Amazônico, a Política Integrada representa uma ruptura com os sistemas econômicos passados e com os padrões tecnológicos das duas últimas revoluções industriais. O texto da Política Nacional Integrada para a Amazônia Legal (1995) afirma no seu preâmbulo (p.13) que a preocupação do governo federal é “[...] promover o desenvolvimento nacional e reduzir as desigualdades regionais [...]”, nos termos do artigo 3°, II e III da Constituição Federal. Nas suas Diretrizes Gerais (p. 19), destaca-se tanto a integração interna quanto a externa, reconhecendo-se que, em vista da imensa diversidade da região, não se pode pretender que a estratégia de desenvolvimento se dê em todo o extenso território, havendo a necessidade de zoneamento ecológico-econômico. A extensão do território, bem como de suas fronteiras, não deixam esquecer a necessidade da vigilância, a ser exercida pelas forças Armadas com a ajuda de uma Polícia Federal fortalecida (p. 24). Na Política Nacional Integrada para a Amazônia Legal (1995, p. 24) são previstas medidas para a superação das carências das populações urbanas, reconhecidas como fruto de uma mobilidade intensa e da urbanização desordenada. Identifica-se que os núcleos 184 urbanos se constituem, crescentemente, em um dos maiores problemas sociais e ambientais da Amazônia. A cidade amazônica é tida ali também como condição crucial do desenvolvimento, enquanto mercado consumidor, mercado de trabalho, sede de redes de informação e base de apoio para as ações diretivas. Embora tenha toda essa abrangência e clareza, além de tratar-se de instrumento funcional e orientador, a Política Nacional Integrada para a Amazônia Legal não é sequer citada em outras legislações ou quando das discussões relativas ao desenvolvimento ou preservação na Amazônia71. A Agenda Positiva da Amazônia é mais específica em seus objetivos. Ela nasceu de Seminários promovidos em setembro de 1999, em cada estado, visando atender às suas peculiaridades ecológicas e sociais. Escrita um ano após o grande incêndio nas florestas de Roraima, e ainda marcado por ele;72 uma leitura atenta do documento permite a compreensão de sua inoperância. Nele consta a ênfase no desenvolvimento sustentável financiado pelo Estado, além de identificar o zoneamento ecológico-econômico com a ação de programas de desenvolvimento do governo de Roraima. Consta ainda no documento (AGENDA POSITIVA DA AMAZÔNIA, 2001, p. 121), a necessidade de “[...] Negociar com os países mais ricos uma compensação financeira para a conservação da Amazônia”73. Em outras palavras, não parece haver um problema de definição de políticas ou mesmo de desconhecimento das realidades ecológicas e sociais, nem de falta de legislação específica ou mesmo de definição de papéis. Mas falta uma ênfase, uma determinação, como se percebe no artigo 43 da Constituição Federal, que coloca as ações do governo central no desenvolvimento regional mais como possibilidade e dependente de lei complementar. Assim, permanece um quadro em que, embora haja pressões, inclusive no nível global, há imensa dificuldade do Estado em cumprir seu papel e ao mesmo tempo conciliar interesses de curto e longo prazo dos diversos agentes envolvidos. 71 Na verdade, mesmo na literatura acadêmica dificilmente seu nome é mencionado. Isso leva à conclusão de se ter aí mais um instrumento oficial que o próprio governo não faz divulgação através do uso. 72 O grande incêndio de março de 1998 devastou parte considerável das florestas roraimenses. Apesar do enorme esforço de centenas de bombeiros, inclusive estrangeiros e voluntários, o fogo só se apagou quando, no fim daquele mês, as chuva chegaram, bem antes do costume (KIRCHOFF, ESCADA, 1998, p.70). 73 Os representantes de Roraima na Comissão da Amazônia e de Desenvolvimento Regional, na época do feitio da Agenda, Luciano Castro, Robério Araújo e Salomão Cruz, são integrantes de corrente política contrária à demarcação de terras indígenas e defensores de uma solução fundiária em Roraima que libere as terras públicas da União ao estado. 185 5. 1. 1 A colonização: de projetos político-administrativos a problemas políticos O valor da colonização de Roraima pode ser dado não só porque oito de seus quinze municípios tiveram origem em colônias oficiais, mas pelo fato de que foi a partir desses pontos de fixação, junto a estradas denominadas de integração, que a maior parte do seu território foi efetivamente ocupado e paulatinamente explorado74. De acordo com Santos (1979, p. 32), “[...] a transformação do espaço ‘natural’ em espaço produtivo é o resultado de uma série de decisões e escolhas, historicamente determinadas”. A determinação aqui foi, principalmente, do Estado não só atuando diretamente, mas com a implantação de obras estruturais como estradas, pontes e estudos técnicos, além de manter uma política de crédito e incentivos. Velho (1976, p. 219) registra que esta determinação do Estado brasileiro no início da década de 1970 abriu caminho para uma migração espontânea rumo aos novos espaços amazônicos e ao noroeste do Maranhão. Esta corrente chegaria a Roraima, não sendo inicialmente aceita pelo governo territorial, já que se seguia até ali outro modelo de ocupação, o empresarial de capital intensivo, centrado em dois pólos75. Pode-se dizer que as mudanças da política nacional envolvendo a Amazônia corresponderam também a diferentes projetos de colonização em Roraima. De acordo com Freitas (1997), o primeiro projeto colonizador nasceu após a criação do território, sendo criadas três colônias agrícolas para abastecer a capital de gêneros alimentícios. Com a abertura das rodovias BR 174 e 210, na década de 1970, ocorreu um movimento migratório quase constante, patrocinado a partir de 1979 no governo de Ottomar de Souza Pinto, segundo o autor (FREITAS, 1993). De acordo com o IBGE (BRASIL.Instituto..., Censos de 1980 e 1991), a população passou de 79.159 em 1980, para 217.583 em 1991. A década de 1980 marcou, pois, a intensificação desse movimento e a transformação do território em estado federativo em 1988, se deu durante uma curva ascendente da migração. Entretanto, o movimento do fim dos anos de 1980 e início dos de 1990, de acordo com Barros (1995), é atribuído mais à expansão do garimpo e, como 74 Mucajaí, Alto Alegre, Cantá, Caroebe, São João da Baliza, São Luiz, Iracema e Rorainópolis, são todos municípios roraimenses originados de colônias agrícolas. 75 Era época do governo Ramos Pereira (1974-1979), o qual pretendeu implantar o POLAMAZÔNIA, com os pólos agro-mineral e agropecuário e, ao mesmo tempo, impedir a migração espontânea e familiar para os eixos das rodovias BR 174 e Br 210. Pereira não obteve sucesso em nenhuma dessas iniciativas, além de atritar com grande parte da liderança política local, como tratado em 4.3. 186 mostram os mesmos Censos, esse crescimento se deu muito mais na população urbana, onde o aumento correspondeu a 136%, enquanto o rural cresceu 35,3%. Assim, o acesso à terra tem sido facilitado, com objetivos tanto políticos como econômicos, não se levando em conta condições ambientais, mercado e outras variáveis que têm tornado os assentamentos muitas vezes como locais de passagem para muitos colonos que o abandonam ou vendem seu lote. Visitas a assentamentos e vicinais, além de dados estatísticos do IBGE (BRASIL.Instituto..., Censo 2000) que registram uma sensível diminuição da população rural em alguns municípios de origem colonial, apontam no mesmo sentido. No entanto, deve-se admitir que outras variáveis, além das causas políticas, culturais e sociais, interferem no processo: as condições ambientais, como a reconhecida baixa fertilidade do solo76. Ao descrever o ambiente físico de Roraima, Braga (1998, p. 9-11) explica que quatro milhões de hectares, 17% do total do estado são cobertos por vegetação do tipo cerrado, conhecido também como savana, lavrado ou campos de terra firme. Os restantes 83% são cobertos por vegetação de florestas diversas, que apresentam potencial madeireiro, limitações e exploração variadas. É nessa área de floresta, diz Braga, que estão concentrados 90% dos produtores rurais, em área desmatada estimada em 1992 pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) em 400 mil hectares. Descrevendo mais detalhadamente os agroecossistemas de Roraima, Braga (1998, p. 10-11) divide o espaço geográfico em cinco áreas: duas de cerrado com altitude entre 800 a 1.200 metros e de 100 a 500 metros; duas de floresta equatorial, com altitude entre 800 a 1.200 metros e de 200 a 800 metros e uma área de formações pioneiras, com gramíneas arbustivas e arbóreas e floresta equatorial hidrófila de várzea, com altitude inferior a 200 metros, no Baixo rio Branco. Ainda segundo Braga (1998, p. 10-11), a primeira área de cerrado abrange os municípios de Boa Vista e Normandia, na região nordeste do estado, e é classificada como de fertilidade muito baixa. A segunda, abrangendo o centro, o norte e leste de Roraima, é classificada como de fertilidade baixa e muito baixa. Ambas têm, afirma o pesquisador, aptidão para preservação, lavoura e pecuária em 2,5 milhões de hectares dos quatro milhões de seu total. A área de floresta equatorial de maior altitude abrange o norte, o nordeste e o leste, junto da fronteira com a Venezuela e Guiana, tem relevo ondulado e fertilidade baixa. A 76 Braga, em estudo técnico da EMBRAPA-RR (1998, p. 34-35) anota que os solos de Roraima “[...] apresentam fortes restrições de ordem física, química e hídrica, tanto na capacidade de armazenar água e nutrientes, como pelos baixos teores de matéria orgânica e má distribuição de chuvas”. Diniz (1998), em estudo sobre as colônias Confiança, por sua vez descreve a luta sem trégua entre o colono, as formigas e a juquira. 187 aptidão desta área “[...] é para preservação, lavoura permanente ou pecuária” (BRAGA, 1998, p. 11). A equatorial, de menor altitude abrange o nordeste, o centro, sudeste e sudoeste, com relevo entre o suave ao ondulado. Sua fertilidade (BRAGA, 1998; DINIZ, 1998) é considerada como baixa, com áreas com aptidão para preservação, extrativismo, lavoura e pecuária. A área de formação pioneira ou mais recente, em termos geológicos, situada ao sul, junto ao baixo rio Branco, onde esse encontra o rio Negro, tem fertilidade que varia da muito baixa à elevada e a aptidão predominante (BRAGA, 1998, p. 11) é para preservação e extrativismo. Além das áreas citadas, Braga (1998, p. 11) refere-se a uma outra, de várzeas, junto aos principais rios Tacutu, Surumu, Urariquera, Branco e Mucajaí, com aproximadamente 350.000 hectares, explorados atualmente com arroz irrigado, como já relatado. Pela lógica do regime dominante na década de 1970, decisões políticas e técnicas definiriam a ocupação do espaço. Há ainda o fato inegável de que existe uma ligação entre o ambiente e a espacialidade de culturas e pessoas, mas o colono que chegou ao sul e sudeste de Roraima nesse tempo inverteu a lógica do poder do Estado, passando a sujeito ativo da ação. Documento oficial (RORAIMA. Secretaria..., 1977, p. 18) registra em quadros estatísticos que a BR 174 e a Perimetral Norte (a BR 210), em 1977 já superavam as antigas colônias quanto à utilização de áreas e que “[...] 35% dos agricultores são semi-nômades [...] Entendem–se por agricultor semi-nômade, aquele que utiliza a terra sem fixação definitiva, usa método tradicional de cultivo, do plantio à colheita e em grande parte está ausente do local da propriedade em decorrência da procura de outras fontes de rendimentos [...]”. Para aumentar a área cultivada e principalmente o número de colonos fixos (RORAIMA. Secretaria..., 1977, p. 19), foi planejado um núcleo agrícola localizado na BR 210, com a denominação de São João da Baliza, sob a liderança dos maranhenses João Pereira e Didi Evangelista. Estudos mais recentes sobre a colonização em Roraima (Braga, 1998; Diniz, 1998) identificam problemas e processos comuns nos assentamentos do INCRA e nos do governo do estado, situados junto a áreas de floresta. Braga (1998, p. 12) informa que após a ocupação e derrubada da floresta para o plantio de culturas temporárias, o colono planta por dois ou três anos consecutivos, seguindo-se um pousio da terra por cinco a dez anos, quando as áreas são novamente preparadas para novo plantio, aproveitando a recuperação da fertilidade do solo. Uma alternativa utilizada para controle de vegetação invasora e valorização do lote tem sido a formação de pastagem nas áreas desmatadas. Diniz (1998, p. 166-167), em trabalho nas colônias Confiança I, II e III, do governo do Estado, descreve o 188 plantio feito com instrumentos manuais e “maneiras rústicas”, limpando-se o terreno após o plantio, combatendo dois inimigos: a juquira e as saúvas. A juquira, uma erva de pequeno porte, cresce junto às áreas de roçado anterior e chega a inviabilizar a produção de roças no segundo ano, se não combatida eficazmente. As saúvas por sua vez atacam as sementes e as plantas mais novas, exigindo fortes doses de venenos para sua eliminação. Como há poucos recurso técnicos e financeiros para o combate à juquira, explica Diniz (1998, p. 167), planta-se capim. Ela e os solos pobres forçam o agricultor a derrubar todos os anos novas parcelas de mata virgem (DINIZ, 1998, p. 167) transformando-a em pastagens artificiais. Como Barros (1995), que trata da colonização em todo o estado, Diniz (1998) identifica a maioria dos colonos de Confianças como de origem do Nordeste brasileiro, principalmente do Maranhão. E, como Braga (1998), registra intensa circulação dos colonos e a passagem de muitos por outros locais antes da fixação no lote. Muitos deles têm mais de uma residência, trabalhando sua terra durante parte do ano e dedicando-se inclusive a serviços na capital. Diniz (1998, p. 168-169) explica que esse hiato se dá em razão dos períodos bem definidos de seca, entre outubro a março, e o de chuvas intensas, de maio a setembro. Barros (1995) e Diniz (1998, p. 169) acentuam o fato da existência de residência múltipla entre os colonos, nascida da necessidade de dispor de serviços de saúde e educação, só disponíveis nos centros urbanos, principalmente em Boa Vista. É evidente o fato de que o fenômeno só existe porque há disponibilidade de casas na capital e outros centros urbanos; bem como que a condição de aquisição situa-se de acordo com um padrão de racionalidade, que não pode ser explicado por razões de sucesso econômico. Na discussão local sobre o Estado Nacional e o Federativo, sobre a legitimidade e a autoridade no direito de legislar sobre as terras de Roraima, 77 há um quase silêncio sobre as terras desocupadas e o fato de ocorrer a partir daí uma concentração da propriedade. Esta ocorre quase sempre através do avanço da pecuária em áreas inicialmente abertas pela colonização e foi fato comum na Amazônia, principalmente após a década de 1970. Um dos seus resultados é a diminuição da população rural, como mostram os Censos Demográficos e Agropecuários do IBGE78. Mas ela não era, pelo menos oficialmente, o objetivo dos seus 77 Ver a respeito, nota sobre o afirmado pelo governador Neudo Campos no Seminário do Calha Norte em Boa vista em junho de 2001. 78 O Censo Demográfico 2000 do IBGE mostra que a população rural de vários municípios de origem colonial, como São João da Baliza, teve sua população rural diminuída sensivelmente entre 1991 e 2000. No mesmo período, de acordo com o Censo Agropecuário de 1995, o rebanho bovino aumentou substancialmente, bem como a área de pastagem. 189 incentivadores e patrocinadores, os administradores que, em pelo menos um caso, tinha objetivo mais político que econômico. Durante seu primeiro governo (1979-1983), na apresentação do Relatório das Atividades Governamentais de 1979, Ottomar Pinto admitia que: O objetivo máximo de meu governo é o de promover o desenvolvimento social e econômico desta região, incentivando a ocupação da terra através do pequeno produtor rural. O setor agropecuário constitui o objetivo central da política econômica estabelecida, para o qual convergirá parcela expressiva dos recursos orçamentários e em função do qual alocados os recursos em infra-estrutura física e social (RORAIMA. Relatório..., 1979, p. 7). Numa etapa posterior, afirma o governador, seriam atacados os problemas da infra-estrutura urbana e ainda: “[...] está o meu governo seriamente preocupado com a elevação da taxa de crescimento demográfico apresentada pelo território” (RORAIMA. Relatório..., 1979, p. 7). Registra também que foram construídos 500 quilômetros de estradas vicinais, implantados novos projetos de colonização e o Distrito Hortigranjeiro de Boa Vista. Entretanto, a crise financeira que atingiu o Brasil e o mundo em 1979, denominada a segunda crise do petróleo, encurtou os recursos federais e provocou queixas do governador ao governo federal, mas não a interrupção de seu projeto. No Programa Anual de Governo para 1980 (RORAIMA. Programa..., 1980, [n.p.]), solicitando recursos do Fundo Extraordinário em razão das reduções do Fundo de Participação dos Estados (FPE), a principal fonte de recursos do território, o governador alega que há despesas com a intensa migração, mas diz ser a mesma espontânea. Era um tempo difícil para a economia brasileira (CASTRO, 1988; FURTADO, 1981) em que os países ocidentais enfrentavam crise atribuída aos constantes aumentos dos preços do petróleo. O retrato dessa situação era a constante troca de ministros ( CASTRO, 1988, p. 50), tal como a substituição de Mário Simonsen por Delfim Netto, na Fazenda. No entanto, precisando de apoio político das regiões menos desenvolvidas para contrabalançar o crescimento das oposições no Sul e Sudeste, o governo federal manteve o apoio a projetos antigos e mesmo a novas iniciativas, como a criação de seis novos municípios em 1982. Graças a isso, o governador Ottomar foi formando, principalmente através da migração maciça, um eleitorado fiel, no campo e na cidade, embora, como afirma Freitas (1993), isso tivesse assustado os grupos políticos locais. 190 A colonização em Roraima é administrada pelo INCRA e pelo ITERAIMA, não sem atritos de pertinência. Os resultados do processo indicam que é ignorado seu documento normalizador, o Decreto 59.428/66. (BRASIL, Decreto 59.482, 1966). Segundo este, pode ter direito a um lote rural de terras quem preenche as seguintes condições: a) ser maior de vinte e um anos e ter menos de sessenta anos; b) não ser proprietário de terreno rural; c) não ser proprietário de estabelecimento de industria ou comércio; d) não ser funcionário público; e) ter comprovada vocação para o exercício das atividades agrárias; f) ter compromisso de residir com sua família na parcela a ser recebida; g) possuir sanidade física e mental, bem como bons antecedentes; h) que demonstre capacidade empresarial para o gerenciamento do lote. Pelo menos algumas condições foram simplesmente ignoradas ou passaram despercebidas, o que não seria uma exceção, já que é comum o abandono ou o fracasso de projetos de colonização no Brasil79. Levantamento efetuado por Diniz (1998), conforme Quadros 5 e 6 revelou um total de 57 projetos de assentamento e colonização, sendo 36 sob a jurisdição do ITERAIMA e 21 do INCRA. Os dados apresentam evidente discrepância entre os números da capacidade de assentamento e os lotes distribuídos e ocupados, além de contrastar com o discurso da falta de terras para trabalhar em Roraima, um dos argumentos contra as demarcações. A descontinuidade nos assentamentos é atribuída, quase sempre, à falta de verbas, atritos de competência e problemas políticos. Segundo o avaliador dos imóveis rurais do INCRA de Roraima, Edmilson Lopes da Silva,80 o problema básico do INCRA em Roraima no caso do problema dos lotes abandonados, é parte de um problema essencialmente político, pois: “[...] Acontece que, como há esse conflito político, o INCRA não permite que o Governo do Estado interfira nessa ação jurídica que o INCRA deva exercer sobre a terra, ao mesmo tempo, o INCRA não quer interferir nas ações econômicas que o Governo do Estado tenha que implementar, para não dividirem as benesses do voto; então isso complica muito, isso emperra muito o desenvolvimento da ação agrária [...] O problema na essência é político. Enquanto os órgãos forem patronados (sic) por políticos, a situação vai continuar desse jeito” 81. 79 Hébette, Acevedo (1979, p. 151) Entrevista gravada em maio de 2002, em Boa Vista. 81 Na mesma entrevista, Edmilson refere-se ao fato de o Projeto Anauá, cuja sede se transformou na cidade de Rorainópolis, ainda não ter se emancipado, por haver vantagens na continuação de sua condição. 80 191 Significativamente, em junho de 2001, no Seminário do Projeto Calha Norte em Roraima, o governador Neudo Campos afirmou haver duplicidade na política agrária no Brasil. Em Roraima, disse, o Governo do Estado, tem uma política agrária, e o Governo Federal, outra82. Mapa 8 - Rodovias federais e colonização em Roraima. Fonte: Farley, Mougeot, 1994, p. 22. O mapa 8 mostra que, em termos ambientais, os resultados, em ambos os casos coincidem: a floresta vai cedendo espaço à expansão da colonização. Mas há outros fatos a se levar em conta aqui: a abertura de caminho para a exploração da madeira e o “amansamento” da terra, preparando-a no longo prazo para o avanço da pecuária e lavoura mais capitalizada. 82 O governador afirmou ainda que o INCRA estaria ligado a um partido político, uma clara referência ao controle que o na época o grupo Ottomar exercia sobre alguns órgãos federais em Roraima. 192 Faz parte do processo, ainda, no curto prazo, a abertura de novas estradas. Esta última atividade é uma das que envolvem quantias consideráveis do orçamento do governo do estado83. Por fim, como se verá adiante e também demonstrado no Quadro 2, os números dos lotes distribuídos não são compatíveis com os Censos Agropecuários do IBGE. PROJETO Paredão Tepequém Quitauau Taboca RR- 170 Serra Dourada Itá Cujubim Novo Paraíso Jatapu Japão São José Maranhão Sumaúma Vila Nova Anauá Equador Jundiá Ladeirão Integração Futuro MUNICÍPIO ANO CRIAÇÃO CAPACIDADE DE ASSENTAMENTO LOTES DISTRIBUÍDOS Alto Alegre Amajari Cantá Cantá Cantá-Caracaraí Caracaraí Caracaraí Caracaraí Caracaraí 1987 1992 1996 1996 1995 1996 1995 1995 1995 1983 1995 1996 1996 1996 1996 1979 1992 1995 1995 1995 1995 Total 1.375 1.538 200 150 698 130 150 60 70 3.000 273 115 200 520 130 4.840 2.103 180 80 150 200 312 207 80 91 698 94 58 57 -2.067 273 52 106 498 51 2.975 131 25 13 150 -- Caroebe Iracema Iracema Iracema Mucajaí Mucajaí Rorainópolis Rorainópolis Rorainópolis Rorainópolis Rorainópolis Rorainópolis 84 Quadro 5 - Colônias do INCRA em Roraima - 1997 Fonte: Diniz, 1998, p. 162. OBS: 1) Dados até janeiro de 1997; 2) (--) dados não disponíveis A indefinição fundiária associada a uma expansão espontânea tem levado à situações de confronto entre competências administrativas, com repercussões políticas. Diniz (1998, p. 164) registra que nas colônias Confiança o avanço da pastagem e da concentração, além da chegada de novos colonos, que tomam a iniciativa de abrir novas picadas na mata em terras da União. Essas se transformam em estradas e dão origem a novas vicinais. Convergem aqui diversos interesses, tais como aqueles dos colonos, pecuaristas, madeireiros, empreiteiros de estradas e políticos. Esse processo fortalece o argumento de que os colonos necessitam de 83 Roraima possui aproximadamente 3.000 quilômetros de estradas vicinais, abertas e mantidas por empreiteiras, cujo Sindicato de Indústria da Construção de Estradas e Pavimentos (SINDICON), associado ao Sistema FIER) é um dos mais ativos e influentes. Neudo Campos foi Secretário de Obras de Ottomar Pinto (1991-1995), eleito governador em 1994 e reelegendo-se em 1998. Seu vice, Francisco Flamarion Portela seu antigo Secretário de Obras, assumiu o cargo de governador em 2002, elegendo-se para cargo nesse mesmo ano. 84 Diniz apresenta um total geral de 7.938 lotes, mas trata-se de uma incorreção numérica, como verificado. 193 terras para desenvolver a economia do estado e que os órgãos administrativos da União, como INCRA, FUNAI e IBAMA, atrapalham ou impedem o caminho do progresso. PROJETO MUNICÍPIO ANO CRIAÇÃO Alto Alegre São Silvestre Taiano Paubaru Tepequém Pacu Vilena São Francisco Confiança I Confiança II Confiança III Serra Grande Serra Grande II Cantá América Ribeiro Petrolina do Norte Serra Dourada Caicubi Cachoeirinha R. Terra Preta Água Boa de Cima Cemitério Vila Iracema Roxinho Campos Novos Apiaú Campos Novos Tamandaré Tamandaré II Roxinho Samã Sorocaima Pacaraima Santa Maria Baliza São Luiz Vila Moderna Alto Alegre Alto Alegre Alto Alegre Amajari Amajari Amajari 1976 1988 1965 1985 1989 1985 1985 1983 1980 1981 1982 --1944 1986 --------1987 1996 1979 -1985 1994 1987 1983 1983 1983 --1978 -- Bonfim Bonfim Cantá Cantá Cantá Cantá Cantá Cantá Cantá Caracaraí Caracaraí Caracaraí Caracaraí Caracaraí Caracaraí Caracaraí Iracema Iracema Iracema Mucajaí Mucajaí Mucajaí Mucajaí Mucajaí Pacaraima Pacaraima Pacaraima Rorainópolis São João da Baliza São Luiz São Luiz Total LOTES DISTRIBUÍDOS 317 58 92 180 370 60 120 135 109 228 2.988 107 200 73 186 401 150 80 60 60 48 50 273 597 253 1.500 82 98 100 557 60 38 06 80 749 1.016 242 FAMÍLIAS RESIDENTES 300 35 40 80 70 50 80 70 40 100 850 50 30 40 30 65 40 ---48 30 220 300 40 900 20 45 20 200 10 20 06 80 450 800 90 5.249 Quadro 6 – Colônias do ITERAIMA em Roraima - 1997 Fonte: Diniz, 1998, p. 161. OBS: 1) Dados até junho de 1997; 2) (--) dados não disponíveis O ITERAIMA administra também algumas colônias mais antigas, como a de Cantá, criada em 1944, e Taiano, fundada na década de 1950. Apenas duas delas são da década de 1990, sendo as demais fundadas pelo governo do território na década de 1980. A 194 Constituição Federal de 1988 previu a criação dos Institutos de Terras nos estados, daí terem as colônias do antigo território passado à administração estadual, surgindo mais um ponto de atrito com as estruturas e organismos federais. Um problema ilustrativo ocorreu em 1995, quando uma nova colônia, Samã II, do ITERAIMA, situada em área indígena demarcada e homologada, teve alguns de seus posseiros expulsos pelos índios e pela FUNAI, repercutindo este episódio fortemente na Assembléia Legislativa e outras instâncias locais85. Em contraste com o congênere estadual, com três exceções, as colônias do INCRA foram criadas na década de 1990. Sobressai a disparidade dos números entre capacidade de assentamento e famílias neles residentes, como no caso dos Projetos Anauá e Jatapu, junto a BR 174 e 210, respectivamente. Sede administrativa do projeto do mesmo nome, Anauá tornou-se em 1995 a sede do município de Rorainópolis. Esses dois assentamentos têm chamado a atenção não só pelo grande número de abandono de lotes, mas por estes serem revendidos em tal número, para transformação em pastagens, que o INCRA teve que intervir, agindo judicialmente86. Os dois projetos, criados ainda no tempo do território, congregam um total de 5.354 lotes distribuídos, representando 84,44% do total dos assentados. A repercussão da venda de lotes por quem o recebeu para nele trabalhar, criou mais um protesto político com larga repercussão na imprensa, mostrando que não há entendimento fácil entre dois níveis de poder e seus agentes. Em defesa dos pecuaristas, acusados pelo INCRA de compra ilegal, se levantaram desde lideranças locais a parlamentares federais, como deputados e senadores, mostrando a força dos interesses locais 85 O presidente da Assembléia Legislativa, Édio Lopes (ASSEMBLÉIA REPUDIA.., 1999, p. 2,) referiu-se ao conflito como resultado da influência de organismos nacionais e internacionais. Outra fonte (PROCURADOR VISITA.., 1999, p. 10) informa que a reintegração de posse foi registrada na Procuradoria da República, na Justiça Federal de Roraima e que o procurador referiu-se ao fato de que a área foi homologada em 1991 e os posseiros foram colocados lá em 1993. Um dos entraves à saída dos posseiros era o montante da indenização das benfeitorias, mas o fato de o governo do estado ter permitido e até incentivado a entrada de não índios em área indígena, após a aprovação da Constituição de 1988, indica claramente a vontade de não concordar com a legislação federal e defender interesses locais. 86 Folha de Boa Vista (2000, p. 3), fala de polêmicas e debates entre autoridades, imprensa e representantes dos colonos. A mesma Folha de Boa Vista (2000, p. 3) refere-se à compra das terras pelos pecuaristas. O INCRA iniciou, em 1999, a retomada dos lotes por via judicial, mas a reação, inclusive dos políticos foi em defesa dos adquirentes da terra. Em 2000 a Procuradoria do INCRA ajuizou ação na Justiça para a retomada dos lotes alienados irregularmente no antigo Projeto Anauá e houve reação do deputado federal roraimense Francisco Rodrigues quando, em maio de 2003 alguns lotes tiveram que ser desocupados pelos pecuaristas e foram reincorporados ao patrimônio da União. O deputado alegava (Brasil Norte, 2003, p.3) a necessidade da legalização para não prejudicar proprietários que teriam feito melhorias nas terras e dependeriam delas para prover seu sustento. O senador Jucá declarou estar preocupado com a retomada das terras e ter pedido providências do governo do estado e da Assembléia Legislativa. 195 frente a medidas de órgãos da esfera federal. Essa reação varia de simples protestos a solicitações para a extinção da FUNAI, INCRA e IBAMA, como nos pronunciamentos do senador Mozarildo Cavalcanti (1999). Em alguns desses pronunciamentos do ano de 1999, ano seguinte ao da Portaria do Ministério da Justiça que aprovou a demarcação da terra Indígena de São Marcos em Roraima, o senador denuncia a ingerência do governo federal no estado de Roraima e pede a extinção da FUNAI, do IBAMA, da Fundação Nacional de Saúde (FNS), e do INCRA. Propôs ainda a delegação de poderes aos estados e municípios para executar as tarefas hoje a cargo daquelas instituições. Como se verá adiante, o discurso de diversos parlamentares no Congresso, principalmente da Amazônia, faz parte da ação de deslegitimação de direitos constantes na Constituição. Prudentemente, o órgão federal que realiza a estatística oficial, o IBGE, que tem números muito diferenciados dos estabelecimentos rurais, não é atacado. Conforme Quadro 2, referente ao Censo Agropecuário desde 1970 a 1995-96, o IBGE levantou um total de 7.476 estabelecimentos rurais no estado de Roraima em 1995, muito distante do total de lotes ocupados do INCRA e ITERAIMA dois anos depois: 11.590 (conforme quadros 5 e 6) . Parte dessa discrepância se dá ao fato do conceito de estabelecimento rural utilizado pelo órgão, 87 mas, apesar disso, há evidências não só de que o real e o oficial guardam grandes distâncias entre si, mas de que órgãos de dois níveis de governo vêem o mesmo objeto de modo diferenciado. A favor do IBGE, tem-se a coerência de décadas de levantamentos, o que lhe dá maior confiabilidade aqui, além de estar mais próximo da realidade observada pelo pesquisador em alguns municípios, como São Luiz do Anauá, São João da Baliza e Caroebe na metade da década de 1990. Em suma, a colonização em Roraima, deixou de ser parte um problema de produção, passando a uma outra função: preparar a terra para o criatório, permitir a extração da madeira e favorecer a indústria de abertura de estradas. Isso explica não só a veemente defesa de políticos e empresários em favor da liberação de recursos para abertura de novas terras à colonização. Forma-se assim um mecanismo em que o econômico-administrativo torna- se um problema político, para converter-se novamente em econômico, não produtivo. Mas aqui, como em alguns conflitos mais prolongados, surgiu uma organização política de 87 De acordo com o IBGE (BRASIL, Instituto... 1985, p. XIII), um “[...] estabelecimento agropecuário é todo terreno de área contínua, independentemente de tamanho ou situação, inclusive urbano, formado por uma ou mais parcelas, subordinado a um único produtor, onde se processa uma exploração agro-pecuária”. Esse critério se enquadra em cada lote rural distribuído, seja pelo INCRA ou ITERAIMA. 196 base: a Central dos Assentados, que discute com o INCRA inclusive sobre a reocupação de lotes abandonados por novos assentados. Sua voz, ao que parece (TÉCNICOS Identificam..., 2000, p. 2), se faz cada vez mais ouvida. 5. 1. 2 O garimpo: origens e caminhos O descobrimento de ouro e outros minérios de valor na Amazônia é sonho que data desde o início da colonização (COSTA, 1993, p. 10). Para Machado (2000, p. 12-29), nos acordos de limites entre Portugal e Espanha no século XVIII, a preocupação principal de Pombal era o possível contrabando do ouro e do diamante. Estes eram então abundantes no centro-sul brasileiro, onde seu contrabando era comum, daí a construção de fortalezas em locais onde as comunicações entre portugueses, espanhóis, holandeses e ingleses eram facilitadas pela geografia. Mas, com relação à Amazônia, segundo Costa (1993, p. 10), naquele século houve: “[...] a decepção com a falta de ouro, prata, esmeralda ou diamante”. Na metade do século XIX, de acordo com Pinto (1993, p. 28), deu-se a primeira tentativa de exploração organizada do ouro na Amazônia, no Gurupi, na província do Maranhão. Informa o autor (PINTO, 1993, p. 28), que embora em 1893 houvesse um surto de garimpo em Calçoene, no Amapá, tendo atraído cerca de 6.000 garimpeiros e produzido 10 toneladas de ouro em uma década, a mineração aurífera amazônica só adquire maior importância na década de 1930. Ainda segundo Pinto (1993, p. 29), a Constituição republicana de 1891 havia transferido o direito das minas para o proprietário do solo, mas em 1934 isso foi revertido, com a promulgação, em pleno Estado Novo, do Código de Minas, outorgando ao governo federal a legislação sobre as minas, estabelecendo o Sistema de Concessões. Para administrar o setor, foi criado o Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM). Foi ainda realizado, no ano seguinte, um levantamento da produção dos garimpos na região amazônica, estimada em 40 kg/ano. No final da década de 1930, o garimpo avançou pela Amazônia, no rio Tocantins, no Amapá e em Roraima, onde (CAVALCANTI, 1949), além do ouro se extrai o diamante desde 1912. No entanto (PINTO, 1993, p. 29), nada foi feito pelo Estado no sentido de amparar os garimpeiros, como se fez com os seringueiros durante a Segunda Guerra. No início da década de 1950, são descobertas jazidas de cassiterita em Rondônia e, em 1957, o 197 governo Kubitschek criou a Fundação de Assistência aos Garimpeiros (FAG), objetivando dar assistência ao garimpo, orientando-o para o associativismo. No ano seguinte, são descobertas jazidas auríferas no rio das Tropas, afluente do Tapajós (COSTA, 1993, p. 11; PINTO, 1993, p. 29). Aparece aqui um elemento novo no garimpo: o transporte aéreo que, conforme Costa (1993, p. 12), revolucionou a logística em relação às atividades em áreas remotas88. A descoberta, no Tapajós, segundo Mathis (1997, p. 392), representou uma nova fase do garimpo na Amazônia, substituindo o extrativismo como economia dominante, criando novas formas de remuneração do trabalho, que passou a ser feita em espécie, com o próprio produto extraído – o ouro. De 1964 em diante, com o regime militar, a mineração no Brasil se modifica inteiramente, principalmente na Amazônia (PINTO, 1993, p. 29-30), onde havia apenas uma exploração empresarial organizada, a da Serra do Navio, no Amapá, de onde se extraía o manganês. A partir daí, abriu-se a região para o grande capital nacional e estrangeiro, embora sob o controle rígido do Estado (PINTO, 1993, p. 30), adotando-se um novo Código de Mineração e descentralizando o DNPM, além da criação da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM)89. Em 1967, de acordo com Pinto (1993, p. 30), o DNPM realizou estudos geo-econômicos no Tapajós e cadastrou os garimpos da área, onde surgem os primeiros requerimentos para a exploração do ouro sob as novas normas. No fim da década de 1960, a atividade garimpeira no Tapajós passou a sofrer os efeitos de uma crise (MATHIS, 1997, p. 394) oriunda da queda de produtividade nos aluviões. Mas, em razão do grande aumento do preço do ouro a partir de 1971, houve condições de maiores investimentos técnicos, cujos resultados fortaleceram o setor,90 embora agredindo mais fortemente o ambiente. De acordo com Costa (1993, p. 14), a garimpagem se expande velozmente pela Amazônia, empregando no final da década de 1970 e início da seguinte, cerca de 145.000 pessoas só no Pará. A alta do preço do ouro (COSTA, 1993, p. 13; PINTO, 1993, p. 30) continuou por toda a década de 1970 e início da seguinte, quando foram descobertas as grandes jazidas de Serra Pelada e de Cumaru, no Pará, atraindo milhares de trabalhadores em disponibilidade para o garimpo. 88 Barros (1995, p. 58) anota o aumento do uso de pequenos aviões nos garimpos de Roraima nesse período. Foram implantados Distritos do DNPM em Belém (PINTO, 1993, p. 30) e Residências em Manaus, Macapá, Porto Velho e Boa Vista. 90 Mathis (1997, p. 394) afirma que o aumento do preço internacional do ouro refletia sintomas da crise do sistema financeiro internacional e da perda de hegemonia econômica e política dos Estados Unidos da América (EUA). 89 198 Afirma Costa (1993, p. 13-14) que, entre 1975 e 1980, houve contínua queda do preço do arroz, produto básico da economia maranhense, enquanto as lutas pela terra recrudesciam na Amazônia91. Este e outros conflitos pela terra levaram o governo federal (Coelho, 1997, p. 503) a criar o Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT). Segundo Sandroni (1999, p. 263-264), o órgão era subordinado à Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional, visando o atendimento da questão da terra no sudeste do Pará, norte de Goiás (hoje Tocantins) e oeste do Maranhão. Com as crises advindas principalmente das altas do preço do petróleo, em 1973 e em 1979, a economia do ouro adquiriu cada vez maior importância econômica, havendo a partir de 1978 aumento na intensificação de capital no Tapajós (MATHIS, 1997, p. 396), inclusive com o emprego de balsas. A mecanização do processo de extração, compensada pela elevação do preço do ouro, foi acompanhada de uma mudança da política do Estado (MATHIS, 1993, p. 170-172; 1997, p. 397-398), que viu no setor uma solução para amenizar os efeitos da balança comercial negativa em razão dos aumentos do preço do petróleo importado. Em 1974, lembra Costa (1993, p. 16), para a execução do II PND, foi criado o POLAMAZÔNIA, com o objetivo de formar uma infra-estrutura para uma exploração mineral de grande porte, além de dinamizar o setor madeireiro e agropecuário92. Em 1979 (MATHIS, 1993, p. 171-172) foi criado dentro da CPRM, o Grupo de Trabalho do Programa Nacional de Incremento à Produção Nacional do Ouro e no DNPM, o Projeto de Estudo de Garimpos Brasileiros – Produção Nacional de Ouro (PEGB)93. Foi realizado um cadastramento dos garimpos e, ainda de acordo com Mathis (1993, p. 171), o estado autoritário brasileiro entendeu ser o PEGB uma contribuição para a segurança nacional94. Em 1979, o ministro de Minas e Energia César Cals estabeleceu que a produção de ouro deveria passar de 4,5 para 100 toneladas em 1985. Naquele ano, em razão da segunda crise do petróleo, o preço internacional do ouro havia novamente disparado, passando, 91 Esse é exatamente o período em que há um grande movimento migratório, principalmente de maranhense, de forma espontânea, para o sul e sudeste de Roraima, junto aos eixos das BR 174 e 210, fato indesejado pelo então governador Ramos Pereira, como já anotado aqui. Não há como dissociar essa migração em Roraima com a falta de terras mais próximas acessíveis ao migrante, bem como à crise na economia do arroz. 92 Em linhas gerais, foi isso que o governo Ramos Pereira (1974-1979) tentou estabelecer no então território de Roraima. 93 Segundo Pinto (1993, p. 30), o Projeto Garimpos Brasileiros é de 1977, quando os garimpeiros invadiram a área aurífera de Andorinhas, destinada oficialmente para ser explorada pela estatal DOCEGEO. 94 A área foi palco também de atividades de guerrilha, lembra Mathis (1997, p. 398), além de conflitos pela terra. 199 segundo Pinto (1993, p. 30), dos 65 dólares a onça troy95 em 1972, para 512 dólares em 1979. Já então, afirma o mesmo autor, a garimpagem se expandia no Amazonas, Pará, Maranhão, Roraima,96, Rondônia, Tocantins, Mato Grosso e Amapá, mas o número de garimpeiros não ultrapassava dos 100.000. Esse número aumentaria a cada ano, chegando em 1990, segundo Mathis (1997, p. 401) a 400.000. Em maio de 1980 (MATHIS, 1993, p. 172), o governo federal, através do SNI interveio em Serra Pelada, para controlar o garimpo. Nesse ano (JESUS, 1993, p. 177) o governo passa a comprar o ouro produzido nos garimpos, principalmente em Serra Pelada, Cumaru e no Tapajós, através da Caixa Econômica Federal (CEF) e Banco do Brasil (BB). É também nesse período que, ao lado do aumento da produção do ouro, acompanhada pela imprensa, surgem vozes críticas à agressão à natureza, em vista do impacto ambiental causado pelas atividades garimpeiras. No entanto, na esfera administrativa e no meio empresarial, era evidente que as preocupações com a economia falavam mais alto que a ecologia, expressão ainda pouco conhecida e de muito pouco peso político. Segundo Pinto (1993, p. 30-31), o preço do ouro atingiu em 1980, o recorde histórico de 850 dólares a onça troy e Serra Pelada produziu até 1988, 40 toneladas do metal. Em 1988, afirma o mesmo autor (PINTO, 1993, p. 31), o preço do metal havia caído, mas os garimpos da Amazônia produziram mais de um bilhão de dólares, ou 9% do PIB regional e a atividade garimpeira já tinha se expandido para os países vizinhos, como Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. Na segunda metade da década de 1980, de acordo com Mathis (1993, p. 169), com o declínio do regime militar os órgãos federais aos poucos vão deixando de atuar junto aos garimpos. Foi época em que aumentaram as pressões dos defensores da ecologia (Pinto, 1993), e de acordo com Costa (1993, p. 17-18), também de movimentos políticos urbanos e rurais e, sobretudo, de um fortalecimento das elites regionais. Em Roraima, território então conturbado pela divisão política interna, foi nesse período que ocorreu um novo surto em busca do ouro (BARROS, 1995; RODRIGUES, 1996), quando milhares de garimpeiros se embrenhavam no noroeste do território, terra dos índios Yanomami. Esse movimento tinha um fator novo: uma organização interna, partindo no geral de líderes garimpeiros do Tapajós, articulados com empresários e dispondo numa fase seguinte do apoio do governo do território. 95 Unidade de peso utilizada internacionalmente para pedras e metais preciosos no denominado sistema troy. Equivale a 31,104 gramas. 96 A referência aqui é sobre o avanço do garimpo em escala maior. O garimpo em Roraima é mais antigo. 200 Em 1988, com a nova Constituição brasileira, houve a incorporação, em parte, do discurso ecológico-ambiental, atingindo a vida da mineração, principalmente a garimpagem. A nova Carta (MATHIS, 1993, p. 173-74) fortaleceu a autonomia dos municípios e prescreveu o cooperativismo como forma ideal da atividade garimpeira, dando permissão de lavras após análise de órgão ambiental estadual. Literalmente, no seu artigo 21, XXV, consta que “[...] compete à União estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa”. E, no parágrafo 3º do artigo 174, consta que “O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros”. As jazidas no entanto, em lavra ou não, tal como outros recursos minerais, constituem propriedade distinta do solo, e para efeito de exploração ou aproveitamento pertencem à União, sendo garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. Em 1990 (MATHIS, 1997, p. 401), o denominado Plano Collor97 derrubou o preço interno do ouro, aumentou o preço dos insumos da produção e determinou a interdição da garimpagem nas terras Yanomami em Roraima, ocupado por cerca de 40.000 garimpeiros. MacMillan, Furley (1994, p. 186-188) atribuem essa e outras medidas governamentais brasileiras contrárias ao garimpo, às pressões da mídia internacional, principalmente através da ONG estadunidense Environmental Defense Fund (EDF). De acordo com esses autores (MACMILLAN, FURLEY, 1994, p. 187), a dependência do Brasil para obter créditos estrangeiros o tornou particularmente sensível a esse tipo de pressão. A interpretação de Macmillan, Furley (1994, p. 187), em muito se aproxima daquela do discurso político dos grupos e instituições contrários à demarcação das terras indígenas e favoráveis ao garimpo em Roraima. No entanto, havia uma pressão de âmbito nacional, exercida por lideranças indígenas, pela imprensa nacional, entidades ambientalistas e da Igreja Católica, além de parlamentares, como o senador Severo Gomes e outros. O problema do garimpo foi enquadrado junto a outras questões sociais, ambientais e humanas, e isso não ficou no discurso. Exemplo disso ocorreu em junho de 1989, quando Roraima recebeu a Comissão da Ação pela Cidadania, formada em São Paulo, naquele ano. A 97 O Plano Collor, também chamado Plano Brasil Novo, segundo Sandroni (1999, p. 466-467), implicou em mudanças nas áreas monetária e financeira, fiscal, de comércio exterior, câmbio e de controle de preços e salários. Foi reinstituído o cruzeiro, convertendo a maior parte das aplicações de curto prazo em depósitos compulsórios, bloqueados por 18 meses. Foi criado o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e outras medidas visando combater a sonegação. Foram liberados os controles sobre importações e exportações e dos preços antes administrados. Com o Plano, houve equilíbrio das finanças públicas e as reservas externas aumentaram em um ano para 8,5 bilhões de dólares, mas o país entrou em recessão. 201 instituição tinha o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e dos reitores da Universidade de São Paulo e da de Campinas, dentre outras, e membros do Congresso Nacional, como os senadores Severo Gomes e Fernando Henrique Cardoso e os deputados Fábio Feldman e Plínio Arruda Sampaio. De acordo com relatório da Comissão da Ação pela Cidadania (1989, p. 7) as atividades se concentraram no problema da impunidade pelos assassinatos de seringueiros e trabalhadores rurais do Acre e na terrível situação em que se encontravam os índios Yanomami, em Roraima, sob ameaça de extinção cultural e física por falta de garantias que a Constituição lhes assegurava. A estratégia da Comissão foi realizar viagens aos locais dos problemas, visitando Roraima quando do auge do garimpo, constatando e dando notícia do desastre humano e ambiental que ali ocorria. Já estava longe a ditadura e a imprensa nacional e estrangeira divulgava seguidas reportagens sobre o desmatamento na Amazônia, mostrando os garimpos de Serra Pelada, do Tapajós, do Madeira e o de Roraima. Era inevitável lembrar que uma Constituição recém-aprovada apontava para o lado oposto do que ocorria. A posição aqui defendida é a de que a opinião pública nacional, embora não a única, foi a principal força definidora do fechamento dos principais garimpos de Roraima e da demarcação das terras Yanomami que se seguiu. 5. 1. 2. 1 O garimpo em Roraima e o seu significado Desde o início do século XX, quando a economia da extração da borracha entra em decadência na Amazônia, a mineração manual passa a fazer parte da história e da vida de Roraima. Os primeiros garimpos foram explorados no rio Maú, a partir de 1912, quando, com a descoberta de novas jazidas, foi aumentando a importância desta atividade (BARROS, 1995; CAVALCANTI, 1949; CIDR, 1990, p. 15-16; RODRIGUES, 1996, p. 15), tendo superado no início da década de 1940 a tradicional produção pecuária, de quem era subalterna98. Após avanços e recuos, no fim da década de 1980 e início da seguinte, a mineração em Roraima 98 Segundo Cavalcanti (1949, p. 19), em 1942 a produção de diamantes e ouro em Roraima representava 42% do total da economia, passando para 59% no ano seguinte. No mesmo período, a pecuária passaria de 34% para 26,8%. De acordo com o IBGE (1981, p. 28), a pecuária recuperaria sua posição mais adiante, após a queda da mineração na década de 1960, quando muitos garimpeiros se dirigiram para a Venezuela e Guiana. 202 intensificou-se a ponto de chamar a atenção da imprensa nacional e internacional, em razão das transformações ambientais e sociais locais. A partir de 1990, a atividade decaiu, principalmente por causa da proibição de sua prática nas áreas indígenas, passando a uma atividade quase marginal. Como parte da herança do garimpo em Roraima, permanece em muitos o sonho do acesso a uma fonte de riqueza, imaginada como rápido e grandioso, mas impedido por medidas governamentais, incentivadas por entidades nacionais ou estrangeiras, desconhecedoras de direitos dos habitantes da terra. Outro vestígio é a persistência, não só do próprio garimpo, mas de um comércio do diamante e do ouro. É notável ainda o fato de que o diamante, num estado em que não há exploração mecanizada nem fiscalização eficiente de sua produção e comércio, atinge em alguns anos o segundo lugar nas exportações, após a madeira99. Pesquisa pessoal levantou, em 2001, vinte casas comerciais que se dedicavam à venda e consertos de jóias apenas na famosa “Rua do Ouro”, do fim dos anos oitenta, e vizinhança próxima100. Todas negociam com o ouro e outros metais, in natura ou “sucata”, jóias e algumas também com o diamante, sendo que a maioria realiza trabalhos de ourivesaria. Pelo menos quatro delas têm maior capital, funcionam ainda como fornecedores de matéria prima e têm pessoal e equipamento para trabalhos mais elaborados, 101 onde se percebe haver uma terceirização. Não se trata de atividades clandestinas, no horário comercial há um movimento regular de pessoas e as lojas anunciam a compra, a venda e a troca e serviços nos cartazes, nas calçadas. Existe até mesmo um banco especializado no ramo, ao lado de uma das joalherias102. 99 Em informação à Folha de Boa Vista (2002, p. 5, 02.04), o Coordenador de Promoção e Investimentos da Secretaria Estadual de Planejamento de Roraima, Damião Araújo, informou que a madeira serrada liderava as exportações, com 80% em média, mas que em 2001 houve uma surpresa: a exportação para a Bélgica de diamantes, no valor de US$ 480.000, correspondendo a 11,84% do total das exportações. Outras informações oficiais dão conta que a madeira é sempre o primeiro produto exportado, invariavelmente para a Venezuela, enquanto um segundo produto ainda não se firmou. 100 A “Rua do Ouro” é a rua Araújo Filho, no centro de Boa Vista, mas o comércio dos minérios abrange um quarteirão, formado também pelas ruas Benjamin Constant, Cecília Brasil e Avenida Presidente Getúlio Vargas. Nesse espaço, concentra-se a maior parte do comércio e serviços do ramo de minérios. Josimar de Souza, exgarimpeiro, hoje pequeno empresário do ouro e ourives, informa em entrevista, em maio de 2002, que há 34 ourivesarias em Boa Vista, uma em Caracaraí e outra em São João da Baliza. 101 Como as empresas Marsan D.T.V.M. Ltda, Pedro José Lima Reis e Arthur Gomes Barradas. 102 Trata-se do Banco Dimensão S/A, na rua Benjamin Constant. Na Lista Telefônica da Empresa Telecomunicações de Roraima S/A (Telemar) de 2001, constam quatro ourivesarias e dezessete casas que negociam e trabalham ouro e outros metais, todas em Boa Vista. A maior empresa, a Timbó, que compreende a Timbó Diamantes e a Timbó Joalheiros, congrega praticamente todas operações do ramo, além de uma loja de câmbio, consta ali como uma das ourivesarias. Apenas duas outras empresas anunciam comércio com diamantes, sendo uma na capital e outra em Pacaraima. Na mesma Lista, constam ainda seis casas na capital, que fornecem artigos e equipamentos para garimpo, mas seu número vem diminuindo. 203 É comum hoje, em Boa Vista, ver-se nos hotéis e outros locais mais ou menos reservados, pessoas comercializando ouro ou acertando contas, bem como a presença de compradores ou vendedores de ouro e diamante vindos da vizinha Guiana e da Venezuela. O dólar guianense e o bolívar venezuelano são aceitos e trocados em muitos lugares, principalmente nas empresa Timbó Diamantes e na Pedro José103. O garimpo em Roraima, hoje apenas um vestígio residual do passado, deu origem e faz parte desse comércio, que apresenta disparidades e, também, uma face social e uma outra, política. De certo modo, o comércio ligado ao ouro e ao diamante reproduz as condições sociais de produção do garimpo, onde estão presentes o sucesso e o insucesso. Josimar de Sousa, cearense, dono de pequena empresa de ourivesaria e comércio de ouro em Boa Vista, entrevistado em maio de 2002, admite que, embora o ouro esteja subindo de preço, sua profissão não tem futuro. Josimar trabalhou em Ariquemes, Rondônia, e após o fechamento daquele garimpo, bem como problemas com a malária, veio para Roraima em 1985. Afirma que a maioria dos ourives de Roraima, ao contrário dele, não foi garimpeira e identifica a origem destes como vindos do Pará, Maranhão, Ceará e Goiás. Josimar pertence a uma minoria: a dos que tem uma formação técnica no ramo do ouro e diamantes,104 mas, ao contrário de alguns outros, não progrediu economicamente, pertencendo ao grupo de ourives que depende de casas mais fortes para execução de algumas encomendas105. Há uma cooperação e um clima de confiança entre os artífices e comerciantes do ramo. É comum haver empréstimos de matéria-prima, consultas sobre pesos e qualidade de material, principalmente entre os mais antigos ou mais equipados. Há também eventuais associações quando algum comprador se dirige para a Guiana ou Venezuela, mas a colaboração parece se deter aí, havendo uma certa independência individual, embora um mesmo espaço seja muitas vezes compartilhado. Não se percebe a presença do Estado, em 103 Segundo a citada Lista Telefônica 2001, além dessas, outras cinco empresas funcionavam ainda em 2001 como Casas de Câmbio, inclusive duas empresas de construção. Isto revela que o capital transita rapidamente entre diferentes setores da economia, mas não necessariamente em muitas mãos. 104 Em entrevista escrita, realizada em sua oficina de ourivesaria em 28 de maio de 2002, Josimar informou que aprendeu a profissão de ourives desde os nove anos, com um irmão, montador de jóias, em Fortaleza. Além de um sócio, mais dedicado à compra e venda, há um aprendiz, sobrinho do ourives vizinho, oriundo de Santarém, como outros ourives vizinhos de Josimar de Boa Vista. 105 Há uma hierarquia entre as diversas casas de jóias e ourivesaria em Boa Vista. É comum ver-se ourives das casas menores se dirigirem para a de Arthur Barradas ou outras, em busca de material. Percebe-se que as transações nesse caso são feitas sob confiança, com simples anotações em caderno quando da entrega do metal ou recebimento em espécie ou dinheiro. Outra fonte de matéria-prima, a compra de ouro de particulares, na forma de “sucata”, cotado na ocasião (maio de 2002) a R$ 12,50 o grama. 204 nenhum de seus níveis, o que é sentido pelo menos pelos artesãos. Josimar alega a ausência deste, que poderia injetar recursos na profissão, em forma de empréstimos. Igualmente parece não haver uma valorização, por parte dos ourives e pequenos comerciantes, do Sindicato dos Garimpeiros ou de uma associação. Houve pelo menos uma tentativa de organizá-la, mas não teria funcionado por falta de interesse da maioria dos ourives106. Ex-garimpeiros e ourives como Josimar, não manifestam abertamente um discurso político em favor da livre exploração de minérios em Roraima, na sua maioria situados em áreas indígenas. Nesse sentido, pequenos comerciantes do ouro e artesãos do ramo formam o que poderia ser classificado mais como um grupo de interesse, ou mesmo categorial, que um grupo de pressão107. O contrário se dá com os empresários bem-sucedidos ligados ao setor, como Arthur Gomes Barradas,108 dono de uma das maiores empresas do ramo de minérios de Roraima, congregando desde ourivesaria, venda e fabricação de jóias, além de ser um dos maiores proprietários de imóveis urbanos na capital. Oriundo do Rio de Janeiro, Barradas chegou em Roraima na década de 1950, para trabalhar no então maior garimpo da Amazônia: Tepequém, na serra do mesmo nome, ainda hoje existente. Tepequém foi descoberto em 1936 e teve a exploração requerida pelo proprietário rural Adolpho Brasil (BARROS, 1995, p. 58), que formou a Empresa de Mineração Tepequém Ltda., vendida depois para uma empresa belga. Barradas veio para gerenciar a empresa quando esta passou das mãos de Paulo Hellinger para Jacques Slesinger, ambos judeus belgas109. Este último tentou mecanizar as atividades, que empregava 160 homens, quase todos com família, mas foi desaconselhado pelo engenheiro Davidoff Lessa e 106 Josimar de Souza, entrevista escrita em maio de 2002. Não houve contato com os membros da possível associação, mas percebe-se pelos comentários dos artesãos que há uma divisão política entre eles. Por outro lado, existe um Sindicato dos Garimpeiros de Roraima e o Sindicato dos Artesãos de Roraima, que funcionam junto ao SESI/RR, ambos são ligados a políticos. O segundo, é presidido pela deputada estadual Malú Campos, parente do ex-governador Neudo Campos e também presidente do Partido dos Aposentados na Nação (PAN). Os dois sindicatos não parecem atrair os ourives, o que, em primeira mão aqui é atribuído também ao seu pensamento de independência. 107 Um grupo categórico, na perspectiva de Young (1970, p. 107), refere-se a indivíduos que compartilham de uma ou mais características, mas que não interagem com freqüência. Os grupos são impelidos por seus interesses e necessidade de consecução de seus objetivos. Este grupo eventualmente pode transformar-se em um grupo de interesse ou mesmo grupo de pressão, conforme suas necessidades sentidas e objetivos elaborados apontem numa direção. 108 Conforme entrevista escrita, em 28 de fevereiro de 2003, em Boa Vista. Na verdade, Arthur Barradas dirige várias empresas a partir da sede de uma empresa que leva o nome da esposa: “Zilda Jóias”, dedicada, oficialmente à vendas. 109 Arthur Barradas, entrevista escrita em 28 de fevereiro de 2003, em Boa Vista. Hellinger vendeu a empresa após o assassinato do filho. Esse crime, de acordo com Rodrigues (1996), estaria ligado às violências oriundas de atritos entre garimpeiros e empresários. 205 por ele, Barradas, visto isto ser anti-econômico, por estarem os diamantes à grande profundidade e o terreno não permitir o trabalho com máquinas110. Nas palavras de Barradas: O diamante, assim como o ouro e outros minérios, não representam mais nada para a economia do estado de Roraima, uma vez que todas as áreas que contém minérios foram fechadas, não são mais terras brasileiras, são dominadas por ONGs e [entidades] ecológicas. São terras brasileiras e os brasileiros não podem pisar. A FUNAI assenta meia dúzia de índios, que foram índios outrora, hoje adaptados à sociedade, a maioria mestiços com pretos da Guiana, garimpeiros brasileiros e outros que se misturam e vivem em harmonia com os que se dizem não índios. A FUNAI contrata esses caboclos que [são] retirados da sociedade, assenta dez índios importados e demarcam milhares de hectares de terra. Os índios de Roraima, em quinhentos anos não ocuparam mil hectares de terras. Cada maloca não ocupa nem um hectare e o que eles vão fazer com tanta terra que deveria ser da União? Ainda proíbem os não-índios ou descendentes de índios de cultivar essas áreas, taxando de áreas ecológicas, campos nativos que não tem qualquer conceito ecológico (Arthur Gomes Barradas, entrevista escrita, em 28.02.2003). Para Barradas, os governos federal e o estadual poderiam trabalhar em favor da mineração em Roraima, “[...] que poderia ser a maior do mundo [...] a mineração tem capacidade para empregar 50.000 homens, 30.000 na mineração e 20.000 no beneficiamento de minérios”. O discurso de Barradas não é uma voz isolada. Se teve atritos com os proprietários rurais ou políticos locais, não revela. Foi diferente com o geólogo Décio Rufino de Oliveira, que realizou estudos para a exploração de minérios em Roraima em 1962 e, foi “[...] vítima de sérias perseguições, provocadas por interesses político-econômicos, de grupos que controlavam a vida política daquele território” (Oliveira, 1971, p. 121)111. Oliveira identifica a exploração do Tepequém como “predatória” e a fronteira Brasil-Venezuela110 Segundo Barradas, em entrevista escrita em 28 de fevereiro de 2003, o relatório de prospecção apresentado pela equipe de Lessa mostrou que o projeto de mecanização era anti-econômico, visto que o diamante se encontrava em grutas de grande profundidade. De acordo com o IBGE (BRASIL.Instituto..., 1981, p. 28), na década de 1960 ocorreu uma crise no garimpo do diamante em Roraima, com garimpeiros se dirigindo para os países vizinhos e serra de Surucucu, acessível apenas por avião. Dos garimpos diamantíferos, permaneciam os de Suapi, Tepequém e Maú, sendo apenas os dois últimos acessíveis por estrada. Lessa e Barradas, afirma este último, adquiriram um avião e se associaram em pesquisas de minérios e abertura de pistas para mineração, como Surucucu. Ali se iniciou a exploração manual da cassiterita, logo fechada (BRASIL.Instituto..., 1981, p. 28), por se tratar de área indígena. Esse movimento antecipou o da década de 1980, quando Surucucu foi tomado por milhares de garimpeiros, vindos principalmente do Tapajós. 111 Rufino de Oliveira revela que uma das maiores jazidas de diamantes de Roraima se localizava no vale do rio Suapi-Quinô, mas era mantida quase inexplorada pelo proprietário da fazenda Suapi, Sr. Levindo Pereira, classificado por ele como “diamantário”. 206 Guiana como a mais promissora para se desenvolver um projeto de mineração industrial. Em comum com Barradas, Oliveira (1971, p. 121) tem o discurso da necessidade de explorar as riquezas minerais em favor do progresso nacional, apresentando inclusive a idéia de se formar uma empresa somente para explorar as reservas nacionais de ouro e diamante. O texto de Oliveira (1971) revela ainda que os planos de exploração mineral em grande escala na Amazônia, envolvendo o capital privado e o público, antecedem ao II PND. Referindo-se à década de 1970, o IBGE (BRASIL,Instituto..., 1981, p. 28), informa que parte do diamante era lapidado em duas empresas em Boa Vista, mas que os estudos do projeto RADAMBRASIL e da CPRM encontraram na fronteira com Venezuela e Guiana, a região dos diamantes,112 elevado número de pistas de pouso clandestinas, o que revelava dificuldades de controle sobre a saída dos minérios. O pensamento de Barradas e Oliveira contêm a mesma ideologia do II PND, 1974-1979 e do POLAMAZÔNIA, representados em Roraima pelo governo de Ramos Pereira (1974-1979) que, conforme já mostrado, não trouxeram os resultados esperados. 5. 1. 2. 2 Garimpo, mobilidade espacial e política O garimpo no Brasil é um divisor de águas, graças aos efeitos diferenciados da atividade, que podem ser reunidos em pelo menos quatro tipos: econômicos, ecológicos, sócio-culturais e políticos. O mais evidente, em razão das crescentes preocupações com o ambiente, é o problema ecológico, o qual, como já mostrado, aumentou com a mecanização da extração do minério. No entanto, a ecologia não constitui o centro das discussões em Roraima, onde historicamente o aspecto sócio-cultural e o econômico se entrelaçam no político. No âmbito sócio-cultural, avulta o problema das epidemias, já que a extração do diamante, do ouro e outros minérios, quase sempre situam-se em terras indígenas, o contato interétnico tem provocado surtos de doenças, como a malária, quando não o extermínio físico de parte de sua população. De acordo com o CIDR (1990, p. 11-13), desde o início da garimpagem, no começo do século XX, os índios roraimenses foram afetados por ela, tendo inclusive alguns deles se transformado em garimpeiros. Quanto ao aspecto político, este assume maior visibilidade após o grande movimento garimpeiro nas terras Yanomami, na segunda metade 112 Convém lembrar aqui que essa é também a região das fazendas de gado tradicionais de Roraima. 207 da década de 1980. Com a retirada dos garimpeiros e a demarcação das terras Yanomami no início dos anos de 1990, o garimpo, embora em muito menor escala, mudou, de acordo com Santilli (2001, p. 94), para o nordeste roraimense, na T. I. Raposa/Serra do Sol, junto à fronteira com a Guiana. De acordo com esse autor (SANTILLI, 2001, p. 94), isso ocorreu com o incentivo do governo do estado, trouxe o recrudescimento da violência contra a população indígena e o alastramento de epidemias. Mas a história da garimpagem em Roraima é mais antiga, e sua compreensão exige uma pequena revisão de alguns estudos na área. Da literatura específica sobre o tema do garimpo em Roraima, sobressaem os estudos acadêmicos de Furley, MacMillan (1997), MacMillan (1994) e Rodrigues (1996). O papel econômico e social do garimpo é também afirmado por autores como: Barros (1995), CIDR (1990), Furley (1994) e por Rivière (1972). Há ainda obras que mostram uma ligação entre as atividades garimpeiras de Roraima e do Tapajós (ALMEIDA, 1994), onde surgiu na década de 1980, tempo de grandes movimentos sociais, uma liderança e organização política, inclusive com a criação de associações e sindicato de garimpeiros. Rodrigues (1996) mostra a evolução da sociedade roraimense, vista através da economia da mineração, classificando esta como uma atividade social ligada à conquista do território e à construção da identidade local. MacMillan (1997) realiza estudos dentro de uma visão ambientalista e social da atividade garimpeira mais recente, chamando a atenção para o fato das operações de extração serem próximas ou dentro de cursos d’água, provocando impactos nos ecossistemas aquáticos e problemas de saúde pública. Esse mesmo autor (MACMILLAN, 1997, p. 182-183) identifica, como Barros (1995) e CIDR (1990), outro resultado: parte do lucro da atividade garimpeira seria investida em pastagens em Roraima e no Pará, contribuindo para a concentração espacial e da renda. Essa transferência do capital é também anotada anteriormente por Rivière (1972, p. 15), que registra ter a pecuária regredido entre 1935 e 1945, em razão das doenças no gado e do desvio de recursos, inclusive mão-de-obra, para a exploração de diamantes. A associação do garimpo com a pecuária, a qual superou na década de 1940 (BARROS, 1995, p. 55-56, CAVALCANTI, 1949, p. 22), é recorrente em todos os estudos sobre o assunto. Reportando-se às décadas de 1980 e 1990, MacMillan (1997) e Rodrigues (1996, p. 88), reconhecem que os garimpos tiveram mais que investimentos por parte de fazendeiros e empresários influentes do setor, consistindo essa ligação em relação de domínio. Para MacMillan (1997, p. 183), a garimpagem em Roraima “[...] pode ter tido uma forte repercussão sobre os modelos de desmatamento, posse da terra e violência rural”. 208 Há convergência ainda na interpretação das facilidades da expansão da mineração manual sobre outras atividades econômicas, medidas governamentais e o cotidiano das populações mais antigas. Cavalcanti (1949, p. 22), na década de 1940, identifica o “dinheiro mais rápido” do ouro e do diamante, que funcionava em detrimento da pecuária e da agricultura. Com referência ao início da década de 1980, antes do grande movimento em direção às terras Yanomami do noroeste de Roraima, o CIDR (1990, p.11) atribui o avanço do garimpo ao fracasso dos grandes projetos extrativistas governamentais no então território. Uma outra vantagem, mais evidente, é a de que o garimpeiro, quase sempre um adulto do sexo masculino, desloca sua força de trabalho sem maiores problemas, já que esta compreende alguns poucos instrumentos e sua própria pessoa. Assim, o garimpeiro de hoje, o agricultor de ontem, tendo quase sempre trabalhado em lugares diversos, tende a prosseguir sempre numa viagem sem fim. E, por vezes, sem disso ter consciência, é usado para abrir caminho para o capital, daí a razão de ser tão ardentemente defendido no discurso e não dispor de apoio real seja do Estado seja de outras instituições. Os garimpeiros de Roraima, de ontem e de hoje, com exceção de alguns índios, são em sua grande maioria, nordestinos que já passaram por garimpos de Rondônia, do Tapajós e outros. Muitos se dirigiram para os países vizinhos, como Venezuela e Guiana, onde por vezes enfrentam problemas com as autoridades113. Existe pelo menos uma contrapartida: nos garimpos decadentes é comum o surgimento de uma agricultura de subsistência e a criação de animais, junto às famílias que se formaram com o tempo ou ali se instalaram114. No geral, porém, o padrão é a mobilidade, à qual foi acrescida em algumas lideranças, uma conscientização política. Na década de 1970 (BRASIL. Instituto..., 1981, p 28), com a descoberta de cassiterita na Serra de Surucucu, houve um deslocamento garimpeiro para a área, reprimido pelas autoridades em razão de se tratar de área indígena Yanomami115. Em 1985, ano do fim 113 Venezuela e Guiana têm consulados em Boa Vista, o que facilita a solução de alguns problemas que envolvem em muitos casos ações de contrabando e questões relativas à exploração de garimpos. De acordo com José Quintero Torres, Cônsul Geral da Venezuela em Belém (entrevista escrita, em 04.08.2003), existe o Grupo de Trabalho da Mineração Ilegal Venezuela-Brasil, previsto na Comissão Binacional de Alto Nível (COBAN). Esta foi instituída no Comunicado Conjunto e o Protocolo da Gusmânia em 04.03.1994, onde, esclarece Torres, se trata de “assunto tão delicado como é a atividade dos garimpeiros na fronteira”. Os integrantes do Grupo, esclarece ainda Torres, são militares venezuelanos e a Polícia Federal do Brasil, que têm mantido um estreito enlace de comunicações, tendo como base as cidades de Santa Elena de Uairén e Boa Vista. 114 Segundo o IBGE (BRASIL, INSTITUTO, 1981, p. 28), a decadência da exploração do diamante em Roraima nos últimos anos da década de 1960 provocou não só a ida para a Venezuela de aproximadamente 5000 garimpeiros, bem como transformou outros em agricultores de subsistência, como no Maú. 115 Esse primeiro movimento em direção à Serra de Surucucu se deu na época do governo Fernando Ramos Pereira (1974-1979), que estava longe de ser um defensor dos índios. Assim, o crédito dessa expulsão deve estar mais ligado à programada implantação do POLAMAZÔNIA em Roraima, o que era incompatível com a 209 do regime militar, garimpeiros iniciaram um avanço para as mesmas terras, extraindo primeiramente a cassiterita. Forças econômicas e políticas de Roraima apoiaram esse movimento, liderado por José Altino Machado (RODRIGUES, 1996)116. Segundo Rodrigues (1996, p. 88), o CIMI publicou nota denunciando o envolvimento do deputado federal João Fagundes e do diretor da empresa de mineração Gold Amazon, ligada ao grupo da empresa Paranapanema. Em abril de 1985, foi realizado em Boa Vista, sob o patrocínio da Associação Comercial de Roraima (ALMEIDA, 1994; RODRIGUES, 1996, p. 88), um Seminário para debater os problemas da exploração mineral em Roraima. Neste encontro (RODRIGUES, p. 88), José Altino Machado, falou a um jornal local sobre a existência de uma caixa da “Operação Surucucu”, mantida por membros de oito garimpos do Tapajós. Nos anos seguintes, esse avanço para as terras Yanomami continuou, com efeitos que chamaram a atenção nacional e mundial. Os prejuízos causados ao ambiente e principalmente às comunidades Yanomami, como doenças, desarticulação cultural e mesmo o extermínio físico de muitos, foram registrados no Relatório da Comissão da Ação pela Cidadania (1989, p. 31), liderada pelo senador paulista Severo Gomes, em junho de 1989. Esta constatou o uso pela garimpagem de pistas de pouso construídas pelo Projeto Calha Norte, como em Paapiú. No local, o posto da FUNAI estava abandonado, enquanto ali funcionava uma representação da empresa de mineração Gold Amazon117. Embora já estivesse em vigor a nova Constituição, aprovada em outubro de 1988, que claramente reconhece os direitos das comunidades indígenas às terras imemoriais, além da garantia também constitucional desde 1934, autoridades locais defendiam a economia do garimpo, como constatou a comissão da Ação pela Cidadania em seu Relatório. As autoridades locais, estaduais e federais tinham um discurso “fatalista” quanto à questão, encarando o problema da invasão da área como fato consumado e “inelutável”. Segundo a Ação pela Cidadania (RELATÓRIO..., 1989, p. 31), os administradores defendiam argumentos como: [...] onde há ouro, há garimpagem [e:] Sempre foi assim em todo lugar e todas as épocas [...]. Em Roraima, não pode ser diferente, de modo que em vez de procurar deter o processo, vamos ordená-lo, restringindo a área indígena, abrindo estradas, levando o progresso à região. Não vamos opor 200 mil roraimenses, que precisam do ouro para desenvolver o Estado, a 12 mil índios, porque estes levarão a pior. Procuremos uma solução que não impeça o progresso da região. garimpagem. A invasão de 1985 em diante se deu em contexto político completamente diferente, quando, segundo Mathis (1997), o Estado estava se afastando do controle das atividades mineradoras. 116 Machado, que chegou a ser preso pela Polícia federal, era também empresário do setor e articulador político. Foi inclusive candidato ao Senado (SILVA JR., 1994, p. 271), na eleição geral em Roraima de 1990. 117 A Gold Amazon, segundo Rodrigues (1996, p. 88), era empresa ligada ao Grupo da Paranapanema e presidida por Tomé Mestrinho, irmão do ex-governador e atualmente senador amazonense Gilberto Mestrinho. 210 Uma visão de que o progresso é inevitável, mesmo com custos para algumas populações tradicionais e da não observância da legislação. O lento processo de transição à democracia, como explicam Becker, Egler (1994) e Costa (1993, p. 17-18), trouxe o fortalecimento das forças políticas regionais. O processo também permitiu, segundo Costa (1993, p. 17), que movimentos sociais surgissem ou se ampliassem, inclusive na Amazônia. Foi nesse tempo que se organizaram os barrageiros, os juteiros, os seringueiros, os índios, os garimpeiros. Surgem daí os “Encontros” e as “Cartas”, onde pontificam (ALMEIDA, 1994, p. 526-527) reivindicações de novas formas de trabalho, de respeito às culturas, à defesa do ambiente, demarcação de terras e reforma agrária. O movimento dos garimpeiros, que sob a liderança de José Altino Machado funda a União dos Sindicatos e Associações de Garimpeiros da Amazônia Legal (USAGAL), destoa dos demais por reivindicar o acesso à livre exploração de minérios nas terras indígenas e não defender a ecologia ou a reforma agrária. Machado (Rodrigues, 1996) expandiu suas atividades a Roraima, liderando a invasão da serra de Surucucu em 1985 e participando ativamente de encontro de garimpeiros e empresários em Boa Vista, em abril de 1989. O momento político na metade de 1989 era de eleições presidenciais, com um governo federal desgastado, o que explica em parte a constatada omissão das autoridades federais, como o Departamento de Aviação Civil, a FUNAI e o IBAMA na questão da invasão de terras indígenas e exploração predatória de minérios em Roraima. O governador Romero Jucá, considerado o defensor dos garimpeiros, foi homenageado por estes, por empresários e comerciantes quando, em 1987, apresentou o projeto Meridiano 62, que chegou a ser aprovado na Câmara dos Deputados (RODRIGUES, 1996, p. 89). Este previa a criação de “reservas garimpeiras”, onde a garimpagem seria livre por dois anos ( RODRIGUES, 1996, p. 88-89); a partir daí, o espaço seria explorado por empresas públicas ou privadas. Previa ainda, de acordo com Rodrigues (1996), a transferência para o governo estadual de todos os títulos e requerimentos e alvarás de pesquisa, contrariamente ao que depois, em 1988, ficou disposto na Constituição, que dá essa competência ao Congresso Nacional. A questão da mineração em Roraima foi tomando assim um caráter cada vez mais político, incorporando fortemente participantes antes menores, como os comerciantes, organizando-se lobbies para pressionar o governo federal a não cumprir, na prática, artigos da Constituição, então recentemente aprovada; artigos que condicionam o acesso às terras indígenas ou de preservação. Isto se dá num tempo, o fim da década de 1980, em que, ao contrário do governo federal, o poder regional dispõe de força, adquirida com a 211 redemocratização e a descentralização proporcionada pela nova Carta. Como no caso dos movimentos sociais ocorridos pouco antes, diversos encontros são realizados, envolvendo lideranças da Amazônia, tal como nos outros segmentos sociais, desde governadores, administradores e empresários. Almeida registra (1994, p. 534) que houve uma resposta do governo a estas articulações, em março de 1989, com um debate do secretário-geral da Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional (SADEN), general Ruben Bayma Denis, com os governadores da Amazônia, em Manaus, sobre o Programa Nossa Natureza118. Segundo Almeida (1994, p. 534), na mesma cidade, em agosto daquele ano, 37 entidades empresariais realizaram o I Encontro de Empresários da Amazônia, com aproximadamente 250 participantes, cujo resultado foi o documento intitulado “Carta da Amazônia”. Esta anunciou a criação do Conselho Empresarial da Amazônia, defendeu a “[...] atualização do zoneamento geo-econômico e ecológico da região” (ALMEIDA, 1994, p. 534) e a manutenção da concessão de incentivos fiscais e creditícios, enquanto a questão das áreas indígenas mereceu no documento uma ligeira menção. Até a aprovação da Constituição de 1988, o cenário político nacional comportava ou permitia a assimilação de interesses diferenciados. Ela trouxe uma maior autonomia aos estados e municípios, mas questões como a restrição à exploração de áreas pretendidas por segmentos empresariais e políticos regionais têm causado choques entre os dois níveis do Estado. A partir de 1988, multiplicaram-se os municípios brasileiros (GALL, RICÚPERO, 1997, [n.p].) e novos estados, como Roraima, foram criados. Surgiu daí um maior espaço político-institucional para muitas lideranças, os interesses destas, graças aos mecanismos do Estado federativo, que incluem a representação através do voto que é local, por vezes se chocam com o aparato jurídico-legal do Estado Nacional119. Abre-se, conseqüentemente, o caminho para a crise entre agentes e o impasse político, levando o Estado à quase inoperância em algumas áreas. Além disso, desde a década de 1980, o contexto econômico-financeiro internacional estava provocando modificações 118 O Programa Nossa Natureza foi instituído pelo Decreto Federal 96944, de 12 de novembro de 1988. O III Encontro de Governadores da Amazônia, foi realizado de 6 a 8 de março de 1989, em Manaus. 119 Exemplos da inoperância da legislação são abundantes, mesmo quanto se trata de documentos de natureza também técnica. É o caso da Agenda Positiva do Estado de Roraima, integrante da Agenda Positiva da Amazônia, assinada em Boa Vista em setembro de 1999. Neste documento, nascido de reuniões do Ministério do Meio Ambiente com autoridades e técnicos da Amazônia, seria, por exemplo, priorizada a área agrícola em áreas já abertas, poupando áreas da floresta. Do mesmo modo, devia-se intensificar nos assentamentos agrícolas federais e estaduais a ocupação dos já existentes e orientar para o uso de alternativas ao uso do fogo, entre outras medidas de natureza ecológica. Na prática, o que existe e é defendido por políticos locais é o direito de utilizar livremente a floresta e mesmo a venda dos lotes por colonos, sem conhecimento do INCRA. 212 profundas nos países dependentes, que tomavam medidas que na prática encerravam ou modificavam antigas práticas, alterando o sistema de relações com o poder central. Tinha já terminado o estado autoritário, mas aos poucos, seu substituto democrático tinha que tomar medidas de austeridade e encerrar o papel de motor do desenvolvimento, alimentado pelo crédito externo. Em suma, o Estado federativo não estava conseguindo superar crises e atender grupos intermediários. Em 1989, as forças políticas da Amazônia, inclusive em Roraima, julgavam que poderiam contornar o estabelecido no texto constitucional. Daí o silêncio sobre as primeiras medidas do governo Collor no ano seguinte, destruindo pistas de pouso utilizadas por garimpos nas terras Yanomamis, ao mesmo tempo em que ocorriam eleições no novo estado. Como este teve que se estruturar numa época de política de contenção, e a economia basicamente primária e altamente dependente do acesso predatório ao ambiente não apresentou alternativas, a euforia de uma autonomia política aos poucos foi substituída pelo pessimismo e ataques aos pretensos adversários do progresso local. O que veio a seguir, durante toda a década de 1990 tem a mesma marca. 5. 2 RELAÇÕES POLÍTICAS, ESTRUTURAS E PROCESSO DE PODER A compreensão do processo e universo político em Roraima passa, obrigatoriamente, pelo entendimento das mudanças econômicas e, principalmente, dos diversos processos que compõem historicamente as relações com o poder central. A pecuária do rio Branco gerou uma sociedade política cujas relações se estendiam ao máximo até Manaus, enquanto a mineração da primeira metade do século XX, nada acrescentou a esse quadro. Não houve também alteração no cenário local com a instalação do Serviço de Proteção aos Índios, embora uma das fazendas públicas fosse assumida pelo órgão e, de acordo com Eggerath (1924), se estabelecesse uma contestação à expansão da privatização das terras públicas e indígenas. Desde a criação do território, em 1943, estabeleceu-se uma burocracia federal, cujos cargos passaram a ser alvo de disputas, tornadas mais acirradas com a redemocratização do período 1946-1964. Esse último período foi marcado pelo domínio da política regional, até 1964120. Com os governos militares (1964-1985), a relação poder local x 120 A julgar pela literatura compulsada, pode-se afirmar que, na década de 1950, não se refletiram em Roraima, os efeitos da política desenvolvimentista planejada para a Amazônia, a ser dinamizada pela SPVEA. 213 poder central, como em todo o Brasil, são de ampla dominância do segundo, cabendo ao primeiro apenas o apoio e a legitimação do sistema político pelo voto. Governadores militares nomeados, como afirmam Macmillan, Furley (1994, p. 187), administravam os territórios federais segundo o Decreto-Lei 411, de 08 de janeiro de 1969. Este objetivava, lembram Macmillan, Furley (1994, p. 187-188), a ocupação efetiva dos territórios, principalmente dos espaços tidos como vazios, a criação de municípios, levando pessoas locais a participar da administração neste nível. A geopolítica comandava o processo, pois textualmente, no artigo 2.º do Decreto-Lei 411, consta que o desenvolvimento econômico, social e político buscado visam à criação de condições que possibilitem a ascensão dos territórios à categoria de estado. O papel dos territórios federais, segundo essa linha geopolítica, estava traçado antes mesmo do PIN, dos PND e de outras medidas que se seguiram. Da mesma forma já estava delimitado o espaço político subalterno para as lideranças locais, o que segundo Freitas (1993) e MacMillan, Furley (1994, p. 188) perduraria até 1979. No entanto houve pelo menos uma exceção, já comentada, em que forças locais de Roraima entraram em choque com o governador, visto que seus interesses estavam ameaçados121. Entre 1979 e 1983, o território foi administrado por Ottomar Pinto, que implantou uma política de cooptação das forças locais, e incentivo à migração, implantação de projeto político próprio, rompendo com parte das lideranças roraimenses. Estas se afirmam por um breve tempo, após 1985, quando ascende ao governo um roraimense – Getúlio Cruz. Na crise que se seguiu com o assassinato do prefeito de Boa Vista, Silvio Leite, em 1987, Cruz foi exonerado, sendo nomeado para o governo do território um general, Roberto Klein. O objetivo do governo federal era claro: só alguém com bastante autoridade poderia, naquele momento, impor a ordem, permanecendo acima das paixões locais. A oportunidade de autonomia foi momentaneamente perdida, abrindo-se o caminho para a formação de grupos liderados por políticos oriundos de outros estados. As lideranças locais, graças às suas profundas divisões, não aproveitaram, pois, a chance de administrar o poder local na ocasião da abertura política. Após o breve governo de Klein, o governo federal nomeou alguém de confiança dos empresários nacionais: Romero Jucá. Este governou entre 1988-1989, abrindo caminho para o capital e o poder privado 121 O fato ocorreu com o governador Ramos Pereira (1974-1979), quando do cadastramento das terras ocupadas pelos fazendeiros locais, pelo INCRA. Importante notar que os fazendeiros foram apoiados pelo antecessor de Pereira, Hélio Campos. 214 nacional, favorecendo inclusive o garimpo. Jucá tinha sido presidente da FUNAI e como tal favoreceu o acesso à exploração de terras indígenas, como em Rondônia com os madeireiros (SIMONIAN, 1993)122. Jucá permaneceu em Roraima após seu governo, disputando eleição em 1990 para governador e elegendo-se depois senador. A partir da instalação do estado, em 1990, os grupos políticos vão se estruturando em torno de Ottomar, de Jucá, ou de outras personagens de menor peso político. Na segunda metade dos anos de 1990, estrutura-se um outro grupo, em torno de Neudo Campos, dissidente de Ottomar. Campos é empresário local da construção civil, como alguns dos componentes de seu grupo, dentre eles Carlos Coelho. Os grupos de interesse, antigos, como comerciantes, pecuaristas, madeireiros e outros mais recentes, como antigos empresários do garimpo e arrozeiros, em vista do que julgam injustiça do poder central, vão tomando uma forma cada vez mais definida, transformando-se freqüentemente em grupos de pressão. Neste contexto, não se apóia este ou aquele partido, pois estes são apenas rótulos das personagens políticas. Estas incorporam ou procuram incorporar apoios que lhes permite dialogar com lideranças regionais e com o poder central. Percebe-se que os grupos de interesse mais ligados ao poder local atuam principalmente sob duas condições: integração a uma associação de classe ou sindicatos e, a participação nos projetos governamentais. Isto explica a força e o crescimento de sindicatos como o da Construção de Estradas, uma das maiores verbas do orçamento estadual. A associação fornece a força e a participação deve promover, sempre, as vantagens buscadas. Mas não basta obter, é necessário legitimar. A legitimação do sistema político local, como nos demais níveis, conforme Dallari (1986), é concretizada por meio do voto. Este está concentrado nos municípios, pois embora a capital, Boa Vista tenha dois terços do eleitorado roraimense, este é ali muito diluído. O resultado disso é que desde 1990 o interior tem definido as eleições estaduais, graças à eficácia dos mecanismos postos em prática, que incluem interesses aparentemente comuns entre o eleitor e o eleito. 122 Romero Jucá foi o primeiro presidente da FUNAI ( SCHWADE, 1992, p. 374-375). Na sua gestão, informa Schwade (1994, p. 375), ocorreu a transferência de aldeias dos índios Waimiri-Atroari para a construção da Hidrelétrica de Balbina, no norte do estado do Amazonas e permitido o avanço da empresa mineradora Paranapanema nas terras dos mesmos índios, na divisa do Amazonas com Roraima. 215 5. 2. 1 A Força e fraqueza dos municípios O papel político do município brasileiro tem sido evidenciado em vários autores, como Leal (1975), Dallari (1986) e Santos (1996). Embora tenha autonomia política reconhecida desde 1891, o município no Brasil tem sido marginalizado como entidade política com algum poder de decisão. Mesmo quando sua força aparece na modalidade de oligarquias, conforme demonstra Leal ([1949] 1975), há uma forte relação de dependência dos estados membros da Federação e do governo central, pois nesse tipo de relação, os governantes do município muitas vezes não podem ser oposicionistas. É evidente que mudanças profundas ocorreram na relação dos municípios brasileiros com os estados e o governo central nas últimas décadas. No entanto, em Roraima, os municípios dependem quase inteiramente de recursos externos, o que os fragiliza e, de certo modo, aproxima da situação analisada por Leal (1975). Percebe-se também que, é nos municípios que se dão as relações mais estreitas entre eleitor e as lideranças políticas roraimenses, que se organizam hierarquicamente. Daí a importância da figura dos prefeitos e vereadores junto aos governadores, formando alianças que ultrapassam as siglas políticas. Este paradoxo, de força e fraqueza municipal, se dá por causa do poder de monitoramento e controle do voto, bem de troca valioso num estado com o menor eleitorado do país. Dallari (1986, p. 64), ao citar inclusive casos de municípios estadunidenses, esclarece que apesar de ser maior a influência do povo nas decisões do governo local, assegurando um caráter mais democrático de governo, o município não tem posição de proeminência na organização do Estado Federal; o que pode ser entendido como uma imperfeição da fórmula federativa. Nos EUA, Índia, Canadá, Brasil e outras federações (DALLARI, 1986, p. 61), prevaleceu um critério jurídico-formal no estabelecimento da estrutura. Para esse autor: O Estado Federal foi criado como uma aliança de Estados, e por esse motivo a preocupação maior dos organizadores tem sido a definição dos limites territoriais dos Estados-membros e o reconhecimento da identidade de cada uma das unidades assim diferenciadas. Muitas vezes a delimitação dos Estados-membros foi absolutamente artificial, feita sob a influência de interesses privados ou mesmo de conveniências administrativas, sem levar em conta os fatores étnicos ou culturais. (DALLARI, 1986, p. 61). Embora sendo o nível que oferece a possibilidade de realização da democracia, os municípios não conseguem ter autonomia real, lembra Dallari (1986, p. 62-63). A Constituição dos países federais enfatiza uma autonomia municipal, mas na atribuição das competências e distribuição 216 das rendas públicas os municípios recebem menos que o necessário para suas necessidades e vivem em situação de constante dependência. Anulando-se, no dizer de Dallari (1986, p. 63), a autonomia formal. Segundo Santos (1996, p. 101-104), a história do Brasil é também uma sucessão de pactos territoriais. No tempo do Império, as províncias e os municípios eram a base jurídica do Estado e a República ampliou essas bases dando autonomia aos estados federados e aos municípios. A Revolução de 1930 (SANTOS 1996, p. 101), através da Constituição de 1937 e do Estado Novo, levou a um novo arranjo político-territorial, suprimindo a autonomia estadual, mutilando, legalmente, a federação, com o predomínio do poder central. A redução das liberdades, inclusive individuais, aparecia, comenta o autor, como justificativa para permitir um ritmo mais acelerado das transformações. Santos (1996, p. 101-102) salienta que com a redemocratização e a Constituição de 1946 foram restaurados os direitos dos estados e ampliadas as prerrogativas municipais, amparadas por uma maior generosidade fiscal, onde os municípios passaram a receber parcelas da arrecadação federal sobre o imposto de renda. É esse estímulo (Santos, 1996, p. 102) que vai levar à criação de centenas de novos municípios, caracterizando um novo pacto territorial, fortalecedor da vida local. Essa situação mudaria em 1964, quando ocorrem entraves à sua expansão, mas, com a Constituição de 1988, ocorre processo semelhante ao de 1946 de acordo com Gal, Ricúpero (1997), com a criação de mais de mil novas unidades municipais. Para Leal ([1949] 1975), o município brasileiro do interior foi historicamente dominado pelo coronelismo, uma relação de compromisso entre o poder privado em decadência e o poder público fortalecido. Embora essa situação venha se modificando, reconhece Leal ([1949] 1975, p. 254-255), há persistências e paradoxalmente, os próprios instrumentos do poder constituído têm sido utilizados para rejuvenescer o poder privado residual dos “coronéis”. Ao referir-se a uma desejável elevação do nível político no Brasil, Leal ([1949] 1975, p. 258) afirma que a pobreza do povo, principalmente a população rural, com seu atraso cívico e intelectual, constitui-se em sério obstáculo para uma mudança. O município roraimense, em parte, se encaixa nessa descrição. Os 15 municípios de Roraima, têm em comum, problemas crônicos de falta de recursos e conseqüente dependência do estado e da União. Os pactos políticos que se estabelecem entre prefeitos e os grupos dominantes no estado expressam visivelmente isso, pois é necessário uma mediação para a aprovação e a liberação de recursos. No geral, a 217 economia inclui atividades extrativas, uma pecuária extensiva e uma agricultura familiar em crise, como mostra a sensível diminuição de sua população rural. Os que se situam no norte do estado, criados em áreas reconhecidamente indígenas, apresentam dados mais desfavoráveis, como adiante se mostrará. Mais da metade deles nasceram de antigas colônias agrícolas e assentamentos, junto às rodovias BR 174 e BR 210. E, conforme o mapa 9, oito têm fronteira com a Venezuela ou Guiana, sediando campos de pouso e quartéis e compondo o espaço abrangido pelo Calha Norte. Pacaraima e Bonfim têm sua sede junto aos países e outros centros urbanos vizinhos, portas de entrada e saída das BR 174 e 401, respectivamente. Mapa... Municípios de Roraima Fonte: Baseado em IBGE, 1997. Mapa 9 - Municípios do Estado de Roraima Fonte: Baseado em IBGE, Censo 2000. 218 O pequeno número de municípios, contrastando com o relativamente elevado número de cargos eletivos no estado – 24 deputados estaduais, 8 federais e 3 senadores – faz com que muitas lideranças municipais busquem melhor sorte na política, sem perder contato com sua base eleitoral. A cada eleição, muitos vereadores e ex-prefeitos se lançam candidatos, fazendo parte de alianças que congregam por vezes uma dezena de partidos. Esta é uma das razões do elevado número de candidatos em cada pleito, enquanto outras derivam de motivos como a busca de ascensão social, de reconhecimento, ou como denomina Laswell (1982, p. 22), da deferência, transformando motivos privados em motivos públicos. É comum também que os prefeitos sejam antigos técnicos da área administrativa, comerciantes e profissionais liberais bem sucedidos com alguma projeção intelectual e de prestígio, como advogados e médicos123. Exceção por vezes observadas nos de economia baseada na pecuária, onde se elegem membros das famílias tradicionais. A biografia de muitos líderes políticos os identifica com o movimento migratório entre 1960 e 1970, menos intenso que o que veio a seguir, quando do deslocamento do 6.º Batalhão de Engenharia para Boa Vista, para as obras de execução das rodovias que marcariam a vida do território. Ocorre no mesmo período um surto madeireiro (BRASIL. Instituto..., 1981, p. 20),124 tal como ocorreria também no fim da década de 1970. De acordo com o IBGE (BRASIL. Instituto..., 1981), a abertura de rodovias pelo governo federal e territorial nos anos de 1970, deu origem a vários pequenos centros urbanos, enquanto isolou algumas das antigas vilas, como São José do Anauá e Santa Maria do Boiaçu. Estas, situadas no baixo rio Branco (Barros, 1995) decaíram também com a retração do extrativismo vegetal. Outras vilas, como Conceição do Maú ou Depósito, antigas sedes distritais, retrocederam por ficarem afastadas do fluxo migratório e não terem economia que as sustentassem, perdendo população para os pequenos núcleos próximos à fronteira (BRASIL.Instituto..., 1981, p. 42). Junto a esta, no norte e nordeste do território, graças aos investimentos oriundos do projeto geopolítico federal, cresceram os núcleos de Normandia, Bonfim, Pacaraima, Uiramutã e Surumu. Destes, os quatro primeiros seriam transformados em municípios. Outra localidade próxima à fronteira norte, Vila Brasil, surgida no movimento garimpeiro, tornou-se a sede municipal de Amajari. 123 É comum, em Roraima, a adoção oficial de nomes políticos que auxiliam na identificação com ocupações profissionais. Assim, nomes como “Geraldo da Farmácia”, “Tonhão do INCRA”, “Chico das Verduras” ou “Luizinho da Tabela” são mais conhecidos por essas denominações que pelo seu nome verdadeiro. 124 Houve um outro surto, mais intenso, no final da década de 1970 e início da seguinte, como adiante. As razões de um e outro estavam ligadas a valorização externa da madeira, principalmente, pelo mercado da Venezuela. 219 Na década de 1970, com a implantação das BR 174 e 210, milhares de migrantes se dirigem a Roraima, mesmo que a política inicial não incentivasse esse movimento, como já mostrado. Graças a esse movimento espontâneo, o INCRA teve que promover assentamentos às pressas no sul e no sudeste do território, onde vão surgir pequenos centros que também seriam transformados em sedes municipais, como Rorainópolis, São Luiz do Anauá e São João da Baliza. Quanto ao município de Boa Vista, até o Censo de 1980 era, como todo o território, majoritariamente rural, de acordo com o IBGE (BRASIL.Instituto..., 1981, p. 20), mas a partir de 1979, com o governo Ottomar (1979-1983), iniciou-se uma política de incentivo migratório. Os resultados foram não só um movimento para o interior em busca de lotes rurais, mas também de lotes urbanos e das vantagens de uma vida urbana, proporcionada pela capital. Outra mudança foi o perfil da população; de acordo com o IBGE (BRASIL.Instituto..., 1981, p. 20). Até 1970, apenas 21,1% dela era composta por migrantes, sendo que 41,7% destes era oriunda do Amazonas, enquanto cearenses eram seguidos pelos maranhenses, com percentuais de 12,9 e 8,2%. Nos anos seguintes, esse último grupo ultrapassou os demais, tanto nas cidades, principalmente Boa Vista, onde conjuntos habitacionais passaram a compor a paisagem, principalmente nos bairros periféricos. A cidade de Boa Vista é um retrato das mudanças político-administrativas e econômicas de Roraima. No centro permanece a maioria das casas comerciais de maior capital, além das repartições federais, e em volta da praça do Centro Cívico, estão os prédios do aparato administrativo estadual, hotéis e a sede da Igreja Católica. As escolas tradicionais também ocupam as proximidades do antigo centro histórico à margem direita do rio Branco. Muitas famílias tradicionais ainda preferem ter suas casas em torno dessa parte antiga da cidade, enquanto comerciantes e empresários passaram a ocupar áreas mais elevadas, em bairros novos. A periferia, ao final da década de 1970, hoje bairros quase centrais, era formada pelos bairros que acomodavam uma população destinada à administração civil e militar, como São Francisco, 31 de Março, Aparecida, São Pedro, Canarinho e o de Mecejana. Este último foi destinado para ser ocupado essencialmente por residências militares, tendo em 1975 mais de 3.000 habitantes (BRASIL.Instituto..., 1981, p. 40)125. Junto ao rio Branco, foi construído o Conjunto dos Executivos, para abrigar os altos funcionários do então território e posteriormente, do governo do estado, tanto da área executiva como da judiciária. 125 Essa expansão urbana de Boa Vista, contemporânea ao II PND e crescimento brasileiro, não foi vista com bons olhos pelo governo Venezuelano, como registrado em 3.7. 220 Até então, se seguia para a capital e pequenos centros urbanos nas fronteiras, a um plano geopolítico, mas o que veio a seguir, após 1979, serviu mais a outros propósitos, no governo de Ottomar Pinto e outros governantes que se seguiram, como Romero Jucá (19871989). Novos bairros surgiram, com centenas de casas oriundas de projetos administrados pela Companhia de Desenvolvimento de Roraima (CODESAIMA) criada pelo ex-governador Fernando Pereira para captar recursos e desenvolver um território que, de acordo com o Decreto 411/69, deveria ser transformado em estado. Com Romero Jucá (1987-1989) foram implantados projetos urbanos como o Nosso Lote, em Boa Vista, além de continuar a expansão da cidade em direção ao sul, com novos loteamentos, confundidos hoje com nomes de bairros. A grande expansão da cidade se deve principalmente aos incentivos dos dois governos Ottomar Pinto (1979-1983; 1991-1995) e, conforme Barros (1995), ao grande movimento de garimpeiros ocorrido entre 1987-1990. De acordo com Freitas (1993, p. 198-199), no primeiro governo Ottomar (19791983) houve um chamado aos migrantes e foram elaborados inúmeros projetos pela Secretaria de Planejamento,126 presidida por Getúlio Cruz. No entanto, o grande esforço inicial foi direcionado para o interior, tendo as antigas colônias agrícolas recebido apoio técnico (FREITAS, 1993). Quase sem exceção elas seriam transformadas depois em sedes de município, como Alto Alegre e Mucajaí. Frentes de trabalho foram abertas em vários locais, como Três Corações, Novo Paraíso, São João da Baliza, Bonfim e São Luiz do Anauá. Com exceção dos dois primeiros, esses centros também se tornaram sedes municipais em 1982. Houve uma prioridade inicial, de acordo o Relatório das Atividades Governamentais de 1979 (RORAIMA, Relatório..., 1979), para o desenvolvimento agropecuário, incentivando a ocupação da terra pelo pequeno produtor rural. Numa etapa posterior, “1982 ou 1983”, informa o documento, seria a vez de atacar de forma mais substancial a infra-estrutura urbana. A listar-se as obras no campo, há o destaque para a construção de cerca de 500 quilômetros de estradas vicinais. 126 Freitas (1993, p. 198), secretário da Agricultura do governo Ottomar, registra que foram elaborados projetos com o nome de: Caju, Carneiro, Diamante, Pecuária, Milho, hidrelétrica de Cotingo, Cana-de Açúcar, Arroz, bacia Leiteira. O mesmo autor (Freitas, 1993, p. 199) registra ainda que Ottomar encampou o Projeto do Distrito Hortifrutigranjeiro de Monte Cristo. 221 No seu Programa Anual de governo para 1980 – Proposta de Fundo Especial, 127 Ottomar solicita recursos adicionais, em razão de transformações recentes no território, condicionadas por dois fatores: a abertura da BR 174 e a “[...] explosiva corrente migratória, decorrente, em parte, da própria estrada” (RORAIMA, Programa..., 1980, [n.p.]); afirma, ainda, que a agricultura e a pecuária dispunham de terras férteis, abundantes e inexploradas, bem como para o potencial madeireiro e mineral. Mas a maior parte dos recursos se destinava a projetos de assentamento, como o das Confiança I, II e III e aos Distritos Agropecuário e o Hortifrutigranjeiro. Como em outros documentos oficiais, oculta-se que boa parte das terras do território eram indígenas. Neste sentido, Ottomar executou uma política com os índios que incluiu a demarcação de algumas reservas e tentativas de absorção (CENTRO DE INFORMAÇÕES..., 1990, p. 14) visitando freqüentemente as malocas (aldeias) e transformando-os em eleitores, distribuindo tratores, equipamentos e sementes. Com a ampliação da rede de estradas vicinais, interligando os pequenos centros urbanos, melhorar a malha urbana e os serviços públicos de Boa Vista, não foi difícil conseguir que o governo federal criasse novos municípios em Roraima. O mais difícil, anota Freitas (1993, p. 200-203), foi administrar a política local, após o fim do partido de apoio ao governo, a ARENA e a criação do seu substituto, o PDS. As várias correntes, uma formada por antigos auxiliares de Fernando Pereira, como o deputado Júlio Martins, outra composta pelo grupo do deputado Hélio Campos e, uma terceira, liderada pelo próprio Ottomar e por Getúlio Cruz128. A atuação populista e clientelística do governador assustou as lideranças locais, que ficaram “[...] chocadas com o viés popular do novo estilo de governo e com o crescente fluxo migratório que chegava a Roraima e engrossava o contingente eleitoral e a liderança do Governador” (FREITAS, 1993, p. 201). Nas eleições de 1982, ano da divisão municipal, o território, de acordo com a nova legislação, elegeu quatro deputados: dois ottomaristas e dois “nativistas”, na expressão de Freitas, ou “minhoquistas” no dizer popular dos roraimenses 129. 127 O Fundo Especial era um recurso extra-orçamentário a quem os governantes podiam recorrer. O governo central tinha no momento grandes dificuldades com a grande crise iniciada em 1979, mas precisava de aliados fiéis nas próximas eleições. Ottomar tinha um trunfo: se transformado em estado federativo, como programado a tempos, Roraima teria parlamentares fiéis ao governo. Isto era exatamente o que a reforma eleitoral inspirada por Golbery previa: em baixa no Sul e Sudeste, as forças governistas, em razão da mudança das regras do jogo, teriam apoio das dependentes bancadas do Nordeste e do Norte. 128 Do grupo de Júlio Martins, participava Luiz Aimberê Freitas, um dos secretários de Ottomar que deixou logo em seguida o governo (FREITAS, 2003, i. v.). 129 O choque entre lideranças locais e as recém-chegadas, relatadas por Freitas (1993, p. 201), não se constituía novidade em uma terra com as características de Roraima. Fato notável na atualidade é amenizado ou acirrado de acordo com interesses comuns ou exclusivos. 222 Entre os primeiros, João Fagundes e Alcides Lima, enquanto Júlio Martins e Mozarildo Cavalcanti integravam o outro grupo. Embora amenizadas, na atualidade vez por outra avulta alguma referência a essa divisão, explorada de uma nova forma: alguns candidatos alegam ter apoio exclusivo das famílias tradicionais, o que lhes daria algum prestígio. Independente das divisões internas, a criação de novos municípios em 1982 foi bem recebida por todas as lideranças políticas. Para alguns autores ( CENTRO DE INFORMAÇÕES..., 1990, p.15), a criação desses municípios seria uma exigência dos próprios fazendeiros, fortalecendo sua dominância. O poder desse grupo é salientado por Furley (1991, p. 186), que atribuiu a ele o domínio da política roraimense até as eleições de 1990. A análise aqui conduz em outra direção, a de que, com exceção do período entre 1985 e 1987, o governo central manteve o controle da situação no território, embora as negociações tivessem que ser feitas com lideranças locais. Estas, no entanto, incluíam na década de 1980, mais ainda que antes, também madeireiros e alguns comerciantes130. De todo modo, a partir de 1982, com o aumento do número de deputados federais, o governo de Ottomar e com a criação de seis novos municípios, abrindo campo para novas lideranças, a história política de Roraima não seria mais a mesma. Isso se daria porque, ao mesmo tempo que se reforçava a estrutura interna de poder, formando base de apoio junto às novas municipalidades, as quais, em sua maioria estavam ligadas mais a cargos e compromissos com a administração que à economia tradicional. Fortalecia-se assim o poder de barganha local junto ao governo federal, sob o comando do governador, mas um ano depois a política local o derrubaria. Em 1º de julho de 1982, o presidente João Batista Figueiredo assinou a Lei 7009 (BRASIL. Lei 7009, 1982), autorizando a criação dos municípios de Alto Alegre, Bonfim, Normandia, Mucajaí, São João da Baliza e São Luiz do Anauá. Os três primeiros desmembrados de Boa Vista e os demais, de Caracaraí131. Foi uma redefinição de espaço político, tornando Ottomar praticamente imbatível no interior, graças à nomeação de prefeitos 130 Em 7 de setembro de 1944 (SILVA JR., 1994, p. 316), foi fundada a Associação Comercial e Industrial de Roraima (ACIR). Os comerciantes foram assim a primeira classe a se organizar institucionalmente, logo após a criação do território, o que demonstra a atenção às mudanças. Hoje a ACIR é uma das instituições de classe mais fortes do estado, apoiando incisivamente medidas que atendam interesses de comerciantes e industriais. É também o núcleo central de outra organização: a Federação das Associações Comerciais e Industriais de Roraima, existentes em cada município. 131 O texto da Lei, que tem também a assinatura do ministro do Interior, Mário Andreazza, reza que a criação das novas unidades municipais se daria “[...] independentemente de comprovação dos requisitos previstos na Lei n. 6.448 de 11 de outubro de 1977” (BRASIL, Lei 7009, 1982), entendendo-se que esta normatizava o assunto. Tal fato mostra a excepcionalidade da medida e a sua importância. 223 de sua confiança, a distribuição dos novos cargos, e no caso dos fazendeiros (CENTRO DE INFORMAÇÕES..., 1990, p. 15), um maior controle das terras ocupadas por eles e reclamadas pelos índios. Ottomar cairia em 1983,132 mas três anos depois seria o deputado federal mais votado, e eleger-se-ia o primeiro governador do estado em 1990 com o apoio do interior. Nesta posição, criaria em 1994 dois municípios: Caroebe, no sudeste, junto à Br 210, na fronteira com o Pará e Guiana e Iracema, junto à BR 174. A trajetória vitoriosa continuou em 1994, quando Ottomar elegeu Neudo Campos, seu Secretário de Obras como governador, derrotando os seguidores de Jucá e aliados, como o candidato a governador Getúlio Cruz. Em outubro de 1995, em meio à grande polêmica, visto estarem em áreas indígenas, o governador Neudo Campos criou os municípios de Pacaraima, o de Amajari, e o de Uiramutã. E ainda: o município de Cantá próximo a Boa Vista e o de Rorainópolis, na divisa com o Amazonas, junto à BR 174. A criação dos municípios nas áreas indígenas foi contestada pela FUNAI e pelo CIR (SANTILLI, 2001, p. 122-127), com marchas e contramarchas legais em Boa Vista e em Brasília, até aprovação das leis estaduais de criação. Tratase de ato acima de tudo, de natureza política, já que esses municípios, como adiante será demonstrado, têm grandes dificuldades para se manter. Desavindo com seu antigo patrocinador, Neudo formou seu próprio grupo político a partir de 1997, reelegendo-se governador em 1998, quando derrotou os grupos de Ottomar e o de Jucá, aliados no segundo turno. Desde então, prefeitos tiveram mais uma opção de se ligar a esse ou aquele grupo. Sem sucesso maior em Boa Vista, Ottomar estabeleceu a partir daí sua base de apoio em Rorainópolis, onde elegeu sua filha, Otília Pinto prefeita em 1998, sendo esta reeleita em 2002. Os números sobre a população apresentados pelo IBGE mostram que Rorainópolis segue à risca o modelo estabelecido por Ottomar anteriormente: sua população aumentou de 5.498 em 1991 para 17.393 habitantes em 2000, o maior crescimento do estado (BRASIL. Instituto..., Censo de 2000). Esse crescimento se dá quase todo em razão do fluxo migratório que ali se concentra, tanto no meio urbano como no rural. O quadro 8 mostra que, no mesmo período, seus vizinhos São João da Baliza e Caracaraí tinham em 2000, menor população que em 1991 enquanto outros, como São Luiz e Caroebe, cresceram 132 Ottomar caiu em março de 1983, sendo substituído por outro brigadeiro, Vicente Moraes, o qual, de acordo com Freitas (1993, p. 202), formou um governo tipicamente militar e autoritário e, sem o apoio do ministro do Interior, Mario Andreazza, pouco realizou. Moraes, afirma ainda Freitas (1993, p. 203), não era político e nem gostava de política e procurou apenas administrar, atritando com os deputados federais do território, Mozarildo Cavalcanti e Alcides Lima. O ministro Andreazza candidato a candidato a presidente, apoiou os deputados e o governador caiu. Eram realmente novos tempos políticos, mas há que considerar aqui também o momento de grande crise econômico-financeira pela qual passava o Brasil na ocasião, com certeza acabou influindo no fluxo de recursos ao território e no choque entre o governador e os deputados. 224 muito discretamente. O refluxo do garimpo no primeiro caso e o abandono das terras no segundo, são as principais causas dessa mudança. POPULAÇÃO DE RORAIMA 1991 - 2000 MUNICÍPIO CENSO 91 TOTAL Amajari 10.903 URBANO 299 CONTAGEM 96 RURAL 10.604 TOTAL 4.623 CENSO 2000 URBANO RURAL 451 4.172 TOTAL 5.294 URBANO RURAL 799 4.495 Alto Alegre 11.211 3.356 7.855 13.771 3.929 9.842 17.907 5.195 12.712 Boa Vista 122.600 120.157 2.443 153.936 150.442 3.494 200.568 197.098 3.470 Bonfim 5.436 1.221 4.215 5.660 1.446 4.214 9.326 3.000 6.326 Cantá 4.042 428 3.614 7.671 630 7.041 8.571 1.155 7.416 Caracaraí 8.773 5.139 3.634 9.664 5.786 3.878 14.286 8.236 6.050 Caroebe 3.647 890 2.757 4.829 1.417 3.412 5.692 1.977 3.715 Iracema 2.163 1.356 807 2.817 2.012 805 4.781 3.228 1.553 Mucajaí 11.272 5.222 6.050 10.895 6.423 4.472 11.247 7.029 4.218 Normandia 5.223 1.146 4.077 6.796 1.433 5.363 6.138 1.500 4.638 Pacaraima 4.099 1.269 2.830 5.777 1.763 4.014 6.990 2.760 4.230 Rorainópolis 5.496 1.457 4.039 7.544 2.712 4.832 17.393 7.185 10.208 S.J. Baliza 6.328 2.309 4.019 4.058 3.082 976 5.091 3.882 1.209 3.778 2.268 1.510 4.456 3.148 1.308 5.311 3.447 1.864 12.612 217.583 252 146.769 12.360 70.814 4.634 247.131 372 185.046 4.262 62.085 5.802 324.397 525 247.016 5.277 77.381 S.L. Anauá Uiramutã Quadro 7 - População dos municípios de Roraima: 1991-2000. Fonte: BRASIL. IBGE, Contagem de 1996, Censos de 1991 e de 2000. No sudeste roraimense, o abandono dos lotes dos assentamentos, uma das fontes de atração e o conseqüente avanço do gado e da extração madeireira têm ligação com esse declínio populacional. Rorainópolis destoa dos demais, e o seu contraponto, de acordo com o IBGE (BRASIL.Instituto..., 2000) fica no norte e no nordeste, municípios de Amajari e Uiramutã. No primeiro, a população passou de 11.211 habitantes em 1991 para menos da metade, 5.294 em 2000. No segundo, os números são 12.612 e 5.802 habitantes. O fenômeno presente aqui é duplo: a questão das terras indígenas, que abrange integralmente os dois municípios, com a contínua retirada de não índios, e de acordo com Vicente Joaquim (2003, i. v.), o município de Amajari tinha recebido milhares de garimpeiros durante o grande surto do garimpo que durou até 1991, ano do Censo. 225 Os números da relação urbano-rural também chamam a atenção: Vila Brasil, a capital de Amajari tinha apenas 451 habitantes em 1996 e 799 em 2000. Em Uiramutã não se passa diferente: 372 e 525 habitantes, respectivamente. Em São João da Baliza, parte da população rural passa a urbana, invertendo os números de 1991 já em 1996, fenômeno que permanece. Os números acima não são gratuitos, pois a dinâmica da população indica até certo ponto se o ser humano está satisfeito no meio em que vive, se lhe é permitido ficar ou sair e, quais são suas alternativas. Essas condições estão associadas aqui, seja nos municípios onde o garimpo estava forte em 1991 ou onde os lotes rurais estão ficando vazios. Outro indicador é o número de unidades comerciais e industriais que mostram a fragilidade econômica dos municípios roraimenses, refletida na baixa arrecadação, insuficiente para manter sua máquina administrativa, resultando numa crônica dependência dos governos estadual e federal. No setor industrial, levantamento realizado recentemente pela Federação das Indústrias do Estado de Roraima (FIER) identificou 431 indústrias no estado, sendo 336 delas em Boa Vista (FEDERAÇÃO..., 2000, p. 18). No norte e nordeste do estado, numa faixa que abrange os municípios de Amajari, Pacaraima, Uiramutã e Normandia (FEDERAÇÃO..., 2000, p. 18), existem apenas seis indústrias, sendo cinco delas ligadas à madeira. No sul e sudeste, onde estão Caracaraí e outros municípios que nasceram ao longo da BR 174 e da 210 ou Perimetral Norte, os números melhoram: são 54 indústrias, sendo 23 de madeira, 11 de mobiliário e 8 de construção civil e terraplanagem. Na região central, Boa Vista concentra 336 indústrias, enquanto Bonfim não tem nenhuma133. O setor comercial também apresenta números chamativos (SEBRAE, 2002, [n.p.]): Uiramutã tem 3 casas comerciais; Amajari 3, Pacaraima 27, o mesmo número de Normandia. A concentração, como na indústria, dá-se na capital, Boa Vista, que sedia 1825 casas comerciais, sendo 1745 delas de porte micro, 73 de porte pequeno, seis de porte médio e apenas uma de porte grande. No eixo das BR 174 e 210, o antigo município de Caracaraí lidera com 95 estabelecimentos, seguido de São João da Baliza com 81; Mucajaí com 68; São Luiz do Anauá com 38; Rorainópolis com 29; Iracema com 17 e Caroebe com 14. Em todo o estado. 133 Outro levantamento, realizado pelo Serviço Brasileiro de Apoio à Pequena e Média Empresa (SEBRAE) em 2002 (SERVIÇO..., 2002), aponta um total de 503 indústrias para Boa Vista. O estudo da FIER (2000, p. 16), esclarece pelo menos parte para tão grande diferença de números, registrando que 62% das empresas cadastradas na Secretaria da Fazenda do estado e na Junta Comercial do Estado de Roraima são empresas desativadas, sem nenhum processo formal, “com endereço incorreto ou inexistente e falta de qualquer informação, por menor que fosse, sobre determinada empresa”. Registre-se que a informalidade é um fato registrado em qualquer pesquisa de campo em Roraima, como apontado no mesmo estudo (FUNDAÇÃO..., 2000, P. 17). Nos pequenos municípios, no entanto, os números não diferem substancialmente. 226 A maioria quase absoluta do porte dos estabelecimentos comerciais e industriais foi anotada como “micro”, o que pode ter vários significados. Primeiramente, há uma tendência não só à informalidade total ou parcial do negócio, mas, no caso das indústrias, também a uma diversidade de tarefas complementares e autônomas. Exemplo disso é o das serrarias, onde o extrator da madeira, o toreiro e transportador não se identificam ou aparecem, sendo que muitas vezes o próprio empreendimento funciona somente no tempo em que as fortes chuvas de abril/setembro permitem a entrada na mata. Em Mucajaí, Rorainópolis, São João da Baliza e São Luiz do Anauá, todas cidades às margens das BR 174 e 210, o número de serrarias, por exemplo, é sempre muito maior que o oficial, sendo os fiscais do IBAMA freqüentemente acusados de autoritarismo e de serem inimigos do progresso local. Todos esses municípios se originaram do movimento de colonização. É notável que nos municípios nascidos de antigas colônias, o avanço da pecuária em direção à floresta não é feito geralmente por pecuaristas “tradicionais”, mas principalmente por comerciantes, profissionais liberais ou funcionários mais abonados. Estes grupos, que incluem alguns indígenas, encontram no criatório um investimento mais seguro e rentável para seu capital disponível. Diferentemente dos municípios onde a pecuária é mais antiga, a expressão “pecuarista” muitas vezes soa mais como uma referência elogiosa, de certo prestígio ou posição conseguida, do que a atividade econômica principal, tal como observado em São João da Baliza134. Desta forma, os rebanhos individuais não são muito numerosos, embora o município tivesse em 1993 aproximadamente 11.800 cabeças (SERVIÇO BRASILEIRO..., 1994, p. 16), aumentando para 18.000 (BRASIL, Instituto, 2000, p. 3), no ano 2000. Uma outra atividade econômica do município de São João da Baliza, tão informal que sequer consta de levantamentos estatísticos, embora visível ao pesquisador, é o garimpo do ouro. Este é praticado quase que esporadicamente por agricultores e pessoas ligadas a outras atividades e tem ligações com os empresários de garimpos do lado do vizinho estado do Pará, no Trombetas. Embora seja difícil avaliar valores, pode-se afirmar que essa atividade pouco ou nada contribui para a dinâmica econômica do município, já que poucas pessoas dele se beneficiam. Destaca-se o fato de a população rural tender a tornar-se mais urbana, como entre muitos exemplos, como já observado por Barros (1995), do proprietário deixar a família na 134 Exemplo disso é Sérgio Mamedes, funcionário estadual e pequeno criador de bovinos em São João da Baliza, visitado em dezembro de 1995. Associado ao pai, adquiriu lotes vizinhos ao seu, não muito longe do centro urbano e conseguiu auxiliares com tradição criatória. Simultaneamente, prosseguiu com seu trabalho na cidade. 227 cidade enquanto permanece por alguns meses na propriedade rural. Em 1995, em São João da Baliza e São Luiz do Anauá, ambos com suas sedes situadas junto a diversas vicinais do assentamento que deu origem aos municípios, observou-se que há facilidade para a ida e volta diária dos donos de lotes rurais que residiam na cidade. Essa proximidade confunde o ruralurbano, embora não impeça evidentemente o avanço contínuo para a floresta, em busca de outros lotes para os recém-chegados, que passam a reivindicar a abertura de estrada e de uma infra-estrutura de atendimento. É comum também que famílias tenham duas residências, ficando os filhos na cidade, inclusive na capital com a mãe, enquanto o pai permanece a maior parte do tempo no campo. É ainda usual deixar o lote aos cuidados de um parente ou vizinho, ou ainda arrendar a terra ou simplesmente abandoná-la, mas o que tem causado problemas, inclusive políticos entre pecuaristas e o INCRA, é a compra por estes últimos de lotes dos colonos, os quais não poderiam, por lei, aliená-los135. Um dos resultados dessas transações, que ocorrem também nas cidades, é a indefinição da propriedade, com a concentração de imóveis, de modo informal. Por sua vez, isso leva a provocar, como em Mucajaí, a quase insignificância da arrecadação de alguns tributos municipais, como o Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbano (IPTU), o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e o Imposto sobre Serviços (ISS). Dados relativos a 1995 (SERVIÇO..., 1998, p. 36) mostram que esses três tributos somaram naquele ano 0,28%, 0,13% e 2,03%, respectivamente, da receita total. No ano seguinte o índice do IPTU desceu para 0,14%, segundo a mesma fonte, enquanto como antes, dois terços da receita era constituída pelo Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Mucajaí é um dos mais antigos municípios roraimenses, mas a situação não é diferente nos de criação mais recentes. Os números sobre arrecadação municipal espelham também a indefinição fundiária, a informalidade e a pura e simples sonegação, dadas as dificuldades de fiscalização e a falta de uma tradição de cidadania que inclua o pagamento de tributos como norma. Assim, cada vez mais se depende de repasses de recursos federais e estaduais, uma vez que a população urbana aumenta continuamente e tende a exigir atendimento básico de saúde, educação e moradia136. Num diagnóstico feito em 1993 em São João da Baliza ( SERVIÇO..., 135 Conforme já comentado, a questão da compra de antigos lotes coloniais por pecuaristas tem adquirido repercussão na imprensa de Roraima com políticos e mesmo a mídia atacando o INCRA por tentar invalidar juridicamente essas transações. 136 A construção de casas tem sido a grande preocupação dos prefeitos de Roraima, desde a capital a centros menores como São João da Baliza. Uma simples observação direta comprova que este não tem sido um problema irresolvido, pelo contrário, tem-se transformado num item de troca, política ou não. Em dezembro de 1995, o prefeito Paulo Barbosa, em informação verbal ao pesquisador, disse ser prioridade de sua administração 228 1993, p. 14), referindo-se ao item Receita, registra-se que: “São João da Baliza, a exemplo de outros municípios do estado, não tem um nível de receita compatível com as despesas. A arrecadação tem sido insuficiente para dotar sua população rural e urbana dos serviços necessários” (SERVIÇO BRASILEIRO..., 1994, p. 14). A soma dos tributos municipais naquele ano, conforme a mesma fonte, representou montava em 3,38%; os estaduais somavam 2,50% e os restantes 94,12% tinham origem federal. Destes últimos, 29,93% do total eram “Recursos a Definir” e 54,72% eram oriundos de “Outras Fontes”. A soma desses dois últimos números, 85,45%, mostra o grau de dependência de acordos e aliança políticas que prefeitos têm que fazer parte, sob pena de ficar quase completamente sem recursos. Assim, cada prefeito é forçado a uma dependência direta do governo do estado ou a um grupo político que lhe garanta recursos federais137. Tal dependência, convém lembrar aqui, também se dá com o estado de Roraima com relação ao governo central, já que não tem arrecadação suficiente para suas despesas. Em 2000, o estado de Roraima só arrecadava 18% do seu orçamento, conforme a Lei Orçamentária enviada ao Legislativo138. REPASSE MUNICÍPIO ITR LC 87/96 FUNDEF 580.406,83 6.394,15 5.186,78 116.642,13 708.629,89 5.294 133,85 Mucajaí 773.875,61 10.329,90 5.746,58 228.213,09 1.018.165,18 11.247 90,53 Pacaraima S. J. da Baliza 580.406,83 186,24 6.826,82 183.584,65 771.004,54 6.990 110,3 731.817,40 1.864,36 3.198,80 0,00 736.880,56 5.091 144,74 Uiramutã 580.406,67 12,20 5.178,37 245.405,08 831.002,32 5.802 143,22 3.246.913,34 18.786,85 26.137,35 773.844,95 4.065.682,49 Amajari TOTAL FPM TOTAL HABIT. PER CAPITA Quadro 8 - Transferências Constitucionais para alguns Municípios do Estado de Roraima em 2000139. Fonte: SIAFI - Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal, 2004 a construção de casas para as famílias recém-chegadas. Dois fatos ilustram a dependência da Prefeitura de São João da Baliza com relação ao governo estadual: 1); Em 1995, o pesquisador, tendo trabalhado e residido na cidade como professor do campus local da Universidade de Roraima, foi agraciado pela Câmara de Vereadores com o título de “Cidadão Balizense”. No entanto, a entrega do título foi seguidamente adiada e acabou não ocorrendo pois isto era sempre feito pelo governador e este não tinha agenda para visita à cidade;.2) em 1996, a Câmara de Vereadores cassou o mandato do prefeito Paulo Barbosa (Guilherme Ramos, 1996, i. v.). Uma breve visita da senadora Marluce Pinto e uma nova reunião do Legislativo local desfez tal medida. 138 Na Lei Orçamentária para o ano 2000, de um total de 459.627,343 reais, apenas 85.287.000 eram de receita tributária, correspondendo a pouco mais de 18%, como já referido. 139 O Imposto Territorial Rural (ITR) é declarado por pessoa física ou jurídica dona de imóvel. O Imposto Predial e Territorial Rural Urbano (IPTU) é imposto direto que incide sobre propriedade imobiliária. No geral, é uma das principais arrecadações das prefeituras municipais brasileiras, mas em Roraima, percebe-se que sua isenção é muito buscada e consentida. O Imposto sobre Propriedade de Veículos Autônomos (IPVA) é cobrado pelos governos estaduais e repassado em parte para os municípios. O Fundo de Participação do Ensino Fundamental Público (FUNDEF) é destinado exclusivamente à manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental. 137 229 A busca de alternativas econômicas, geralmente a tentativa de criação de empregos, leva os prefeitos por vezes a favorecer ou defender atividades consideradas predatórias do ambiente, como a garimpagem e a extração desordenada da madeira. Em busca do lucro rápido o empresário com o apoio institucional local, justifica suas ações como essenciais para o progresso do município e acaba entrando em choque com instituições federais e não governamentais. Robert Schneider et al. (2000, p. 15), identificam nesse caso um dilema para a comunidade: seguir o caminho conhecido como “boom-colapso”, predatório, histórico na Amazônia e de rápido retorno, ou uma economia sustentável, garantidora de vantagens a longo prazo. Os mesmos autores (SCHNEIDER et al. 2000, p. 2122) aconselham aos governos a estabilização da economia local e regional, evitando-se o imediatismo dos governos locais, além de promover o estabelecimento ordenado da ocupação regional e a estabilização do setor madeireiro. Constam ainda das prescrições de Schneider et al. (2000, p. 30-31), que se elimine a abundância da terra, que estimula o seu abandono, a migração e a garimpagem, através da intensificação do zoneamento e a criação de Florestas Nacionais (FLONAS), além de separar as fronteiras de exploração madeireira e agrícola. As medidas propostas são de improvável aplicação em Roraima por contrariarem práticas de exploração predatória e imediatista e um discurso político que associa desenvolvimento com livre exploração da natureza. Em resumo, a força e a fraqueza econômica e política nos municípios, são parte da problemática do estado de Roraima. Este desfruta de uma posição geopolítica privilegiada e dispõe de riquezas naturais das quais apenas algumas são passíveis de exploração sem conflito com o Estado nacional, com as sociedades indígenas e instituições ambientalistas. Por outro lado, estabeleceu-se um certo equilíbrio instável entre os dois níveis do Estado, o nacional e o federativo, num regime em que o poder Executivo, para governar depende do Congresso, cujos membros são oriundos na sua maioria dos estados menores. Independente do afirmado, o governo federal dispõe de duas forças (BRASIL. Ministério do Meio Ambiente..., 1995, p. 24) nos estados fronteiriços como Roraima: as Forças Armadas e a Polícia Federal. As forças políticas locais procuram atrair os membros das primeiras, com o discurso nacionalista da defesa da soberania. Os militares são saudados sempre, inclusive pela mídia local, como os grandes defensores da fronteira e do território nacional (Barros, 1995), enquanto a Igreja Católica, as ONG e entidades ambientalistas são 230 identificados como instituições estrangeiras (BARRADAS, entrevista, 2003; ITIKAWA, entrevista, 2003) e agentes da internacionalização da Amazônia. Dentro desse quadro, o Projeto Calha Norte, instituído em 1985, é valorizado como uma garantia da manutenção da fronteira e uma trincheira da soberania e da ordem interna. Um exame do mapa 10, adiante, mostra que a maior parte dos municípios roraimenses tem terras indígenas e fazem fronteira com os vizinhos Venezuela e Guiana. Essa última condição os coloca dentro do espaço abrangido pelo PCN, enquanto o governo do estado, políticos e empresários locais procuram associar o problema das terras indígenas ao da segurança. É a proclamação de uma nova geopolítica, onde o “inimigo” tem aliados internos. 5. 2. 2 Uma nova situação geopolítica: o Calha Norte e a questão indígena Na atualidade, a ênfase dada ao PCN em Roraima serve ao discurso político local, contrário à demarcação das terras indígenas em áreas contínuas e a um maior controle ambiental. Daí sua valorização, identificando-o com a defesa da soberania nacional, considerada como ameaçada pela ocupação estrangeira. É visível, no entanto, que novos quartéis se instalam na fronteira e casas de militares são construídas todo ano, principalmente em Boa Vista. Mas isso está ligado à transferência de pessoal e unidades do Sul para a Amazônia, um inegável aumento de contingente que não pode ser confundido como fortalecimento do Projeto em si, na forma que desejam seus agentes140. Apesar da importância atribuída por estrategistas e autores geopolíticos modernos como Aderbal Meira Mattos (1991), do destaque na imprensa e constantes citações em obras sobre a política na Amazônia, o PCN não teve um papel transformador ou estruturador em Roraima, um dos estados de sua abrangência. Resta pouca dúvida sobre o fato de que as crises financeiras e políticas,141 além das novas diretrizes instituídas pela 140 Aqui, está se separando as funções de rotina dos militares na fronteira com o Projeto. Esta rotina, ao contrário do PCN, não tem tido descontinuidade, o que permite desfazer qualquer equívoco de identificação. 141 As verbas para o Programa Calha Norte foram sistematicamente cortadas e praticamente se extinguiram em 1999, afirma o senador Mozarildo Cavalcanti (1999, p. 49-52, 19.03). Em plenário, o senador relata que o Projeto abrange 69 municípios, dos quais 38 na fronteira e corresponde a 14% da superfície total do Brasil, mas tem recebido poucas verbas desde 1986. Neste ano, teria recebido pouco mais de 14 milhões de reais, atingindo em 1987 a 47,31 milhões; mas, afirma, a partir de 1991 os números foram diminuindo, chegando a pouco mais de 4 milhões posteriormente. Outras fontes convergem na mesma direção. Segundo Antônia Márcia Vale foi necessária uma emenda da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional do Senado para que o Programa recebesse R$ 1,2 milhão, o que representa apenas 2,5% do recebido em 1989. O Plano Plurianual 2000-2003, diz a fonte, destinou perto de R$ 4 milhões. A falta de recursos foi também assunto constante dos oradores no Seminário do Projeto em Boa Vista, em julho de 2001, o que leva ao raciocínio de que não se trata de prioridade dos últimos governos brasileiros. 231 Constituição de 1988, como o reconhecimento dos direitos indígenas às suas terras imemoriais, têm relação com o papel modesto de tão ambicioso projeto. No entanto, o PCN tem alguma presença em Roraima, bem como participou, no final da década de 1980, do grande avanço do garimpo para a área Yanomami, quando os empresários da mineração utilizaram algumas das pistas abertas pelos militares. O PCN, de acordo com Mattos (1991, p. 95-103), seria uma reação brasileira ao fracasso do Tratado de Cooperação Amazônica, assinado em 1978 com os vizinhos limítrofes, o qual mostrou-se inoperante. A iniciativa do Projeto, informa o autor (MATTOS, 1991, p. 96), foi do Conselho de Segurança Nacional (CSN), que encaminhou ao presidente Sarney uma exposição de motivos, com base em eventuais conflitos fronteiriços entre alguns vizinhos e “[...] a atual conjuntura do Caribe”. Essa preocupação se baseava em um fato concreto: a invasão do território brasileiro por guerrilheiros colombianos, em abril de 1985, no município amazonense de São Gabriel da Cachoeira. Em vista da possível repetição desse tipo de ameaça, o presidente José Sarney nomeou um grupo interministerial de estudos, coordenado pela Secretaria de Planejamento e composto por integrantes dos ministérios militares, das Relações Exteriores e o do Interior. O Grupo concluiu que faltava infraestrutura em saúde, educação, transporte, saneamento básico e riscos de contrabando e narcotráfico, além de garimpos irregulares. Na descrição de Mattos (1991, p. 96-97), o PCN abrange 14% do território nacional e 24% da Amazônia Legal e atua em três Espaços Diferenciados: a faixa de fronteira entre Tabatinga e Oiapoque; a Orla Ribeirinha dos rios Solimões e Amazonas e seus afluentes e o Núcleo Interiorano ou Núcleo Regional. Projetos especiais deveriam ser criados em todas as regiões, principalmente nas faixas de fronteiras, destacando-se entre outros, o trecho “[...] da presença dos índios Yanomami, no noroeste de Roraima e ao norte do Amazonas” (MATTOS, 1991, p. 97). Desses projetos, o que tem visibilidade são os quartéis, marcando a presença do Estado nacional brasileiro nas fronteiras, sendo o de Surucucu, nas terras dos Yanomami, um dos primeiros a serem instalados, em 1987. De acordo com Becker (1998, p. 80), o PCN é uma continuação da militarização da política de ocupação regional, cuja estratégia compreenderia a busca de solução para os conflitos crescentes. Afirma essa autora (BECKER, 1998, p. 80-81), que o Projeto foi entregue no seu início ao SADEN. A orientação do Projeto Calha Norte, informa ainda Becker (1998, p. 82): “[...] é garantir a presença estratégica e a movimentação tática das forças armadas no 232 controle sócio-econômico-militar da região, apaziguar conflitos e acelerar a produção hidrelétrica”. Alguns dos conflitos que se pretende apaziguar com o Calha Norte, segundo a mesma fonte são: o contrabando de ouro, convulsões políticas nos países vizinhos e América Central, conflitos entre garimpeiros, índios e empresas e influência das missões religiosas. Ainda segundo Becker (1998, p. 82), com o PCN foram lançadas bases para um “ordenamento” de um imenso espaço e o lançamento de bases de uma nova sub-região: a Amazônia Setentrional. Na atualidade, o Programa, mesmo administrado por militares, teve que sofrer mudança em alguns de seus objetivos, dando-se ênfase, no discurso e na distribuição de recursos, ao desenvolvimento regional. Nas palavras de seu gerente, coronel Roberto de Paula Avelino: O Plano tem os seguintes objetivos: aumentar a presença brasileira na área, criando estímulos de desenvolvimento sustentável na região, ampliar as relações fronteiriças, fortalecer a infra-estrutura de energia e telecomunicações, expandir a infra-estrutura viária e hidroviária, fortalecer a ação governamental contra ilícitos, intensificar as campanhas demarcatórias e promover a assistência e proteção às populações indígenas” (RORAIMA SEDIA..., 2001, p. 07). O gerente do Projeto aponta ainda que uma das principais metas é auxiliar os municípios a encontrar o caminho para o desenvolvimento da Amazônia e que: “Na nova era do Calha Norte foram aplicados 58% dos recursos em atividades de segurança e integridade territorial e 42% em desenvolvimento regional” (RORAIMA SEDIA..., 2001, p. 7). Aponta também que é preciso impedir o deslocamento das populações do interior para as cidades e conseqüentemente o inchaço das capitais. MacMillan, Furley (1994, p. 187-188), referindo-se à ação do governo federal em Roraima, minimizam o papel do PCN, classificando-o como mais um dos Planos governamentais para ocupação da fronteira, como foram os PND I, II e III, não atribuindo a ele qualquer função transformadora, ao contrário do referido Decreto 411/69. Percebe-se que há uma contínua ampliação das bases aéreas locais, como a de Boa Vista e melhoramento de campos de pouso no interior, como o de Caracaraí. Vez por outra, a imprensa roraimense noticia atritos nessas localidades entre índios e militares, um dos sintomas dos conflitos pela terra; também se percebe que o papel atribuído ao PCN é muito provavelmente mais amplo que suas possibilidades e recursos. Por outro lado, os tempos pós-regime militar impuseram situações em muito diferentes da época em que projetos geopolíticos foram elaborados. Há 233 uma nova Constituição, novo contexto político interno e externo e até uma nova estrutura organizativa das Forças Armadas, reunidas no Ministério da Defesa. O PCN está vinculado hoje ao Departamento de Política e Estratégia, da Secretaria de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais e, nas suas reuniões nos estados da Amazônia, há sempre um espaço para as autoridades regionais e locais e um tema comum: a falta de recursos. Um retrato da situação do PCN, na atualidade, pode ser descrito a partir do Seminário do Projeto realizado em Boa Vista em julho de 2001. O evento, amplamente divulgado, com participação de 20 parlamentares federais e tendo como palestrantes o governador de Roraima, políticos nacionais, militares e membros da Fundação Getúlio Vargas, teve mais reflexo na mídia e em alguns restritos setores locais que junto a segmentos supostamente interessados, como os prefeitos dos municípios fronteiriços. Embora constantemente referidos como favorecidos pelo Projeto, os índios estavam ausentes, bem como sociedades que com eles interagem, como a Igreja Católica e as ONG. O evento foi marcado pela presença de parlamentares, como o senador gaúcho Pedro Simon, que enalteceu o Projeto (SENADOR GAÚCHO..., 2001, p. 3). Uma das expressões mais ouvidas no evento foi a parceria com os municípios. Estes, nas palavras do gerente do Projeto, coronel Avelino, teriam cada um o seu Plano de desenvolvimento Integrado Sustentável, com recursos repassados do Projeto, previstos em 480.000 reais distribuídos entre os 15 municípios roraimenses, todos eles têm área abrangida pelo Projeto. A partir de convênios com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), seriam realizados estudos sobre a Amazônia Setentrional. Algumas das ações citadas chamam a atenção por serem também tarefas de outros órgãos públicos e instituições político-administrativas, como a construção de salas de escolas, distribuição de material escolar, construção de estação rodoviária na fronteira com a Venezuela e apoio às comunidades indígenas. Durante o Seminário, Roberto Cavalcanti de Albuquerque (2001, palestra), da Fundação Getúlio Vargas, lembrou que os pólos do PCN abrangem 1,5 milhão de Km2, ou seja, uma população de 2,7 milhões de habitantes; têm um PIB de 12 bilhões de dólares, representando 1,5% do PIB nacional e um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,669, contra 0,742 do nacional. Na faixa de fronteira, afirma ser o PIB 2.415 dólares e o IDH 0,577. A partir dessas realidades, Cavalcanti propõe estratégias de desenvolvimento. A primeira, com os objetivos de: ordenar o processo de ocupação humana; acelerar o 234 crescimento econômico sustentável em termos ambientais; avançar no desenvolvimento humano, com igualdade de oportunidades e mais bem-estar, menos pobreza e melhor distribuição de renda. Uma segunda estratégia envolveria uma compatibilidade da anterior com o Programa Avança Brasil, do governo federal. Na exposição racional de Albuquerque, percebe-se o contraste entre o ideal preconizado por técnicos e pesquisadores e as realidades políticas locais e regionais, que acabam por tornarem pontuais e descontínuas as ações de projetos e programas. O preconizado por Albuquerque e por outros palestrantes, envolve questões que dizem respeito às populações tradicionais, como as indígenas e ribeirinhas, mas as medidas sugeridas não apresentam avanço com relação às de outros Planos ou documentos oficiais que tratam de uma política para a região, como a Agenda Positiva para a Amazônia, por exemplo, editado no mesmo ano do Seminário. Mesmo lideranças como os prefeitos de Roraima, supostamente os grandes beneficiários do PCN, não se entusiasmaram com o Seminário, talvez por já terem participado de um outro anterior, em 1997, cujos resultados não tinham aqui visibilidade, seja no referido evento ou na imprensa. O Seminário serviu entre outras coisas, para mostrar as profundas divisões políticas em Roraima, onde pontificam políticos como o senador Mozarildo Cavalcanti, inimigo declarado da FUNAI, do IBAMA e das ONG e ardente defensor do Projeto no Senado. Cavalcanti tem continuamente reclamado do corte de verbas para o PCN. Outro defensor do Projeto no estado, o deputado federal Francisco Rodrigues teceu elogios ao Projeto e manifestou expectativas otimistas142. A Igreja Católica, no mesmo veículo, através do bispo diocesano D. Apparecido, declarou ser o Projeto problemático para as comunidades indígenas, pois a proposta deste é povoar a fronteira com gente diferente, que não seja indígena, consideradas estas como não confiáveis e por isto seus direitos são desrespeitados. A crítica foi rebatida pelo coronel Avelino (INICIA HOJE..., 2001, p. 4) argumentando não existir grandes problemas entre índios e Forças Armadas. Como indica o mapa 10, militares que guardam a fronteira e índios ocupam o mesmo espaço e há relatos que informam que essa convivência não tem sido tranqüila. 142 Rodrigues declarou à Folha de Boa Vista ( 02.07.2001, p. 4) que o Projeto iria mostrar quem realmente manda na Amazônia, citando nominalmente Margareth Tatcher, Al Gore, Miterrand e Michael Gorbachev. Na época, a então ex-primeira ministra britânica, o vice-presidente norte-americano, o presidente francês e o ex-presidente da extinta União Soviética, respectivamente. Foram nomes citados pelo senador roraimense Mozarildo Cavalcanti em discurso no Senado em 03.08.99 (CAVALCANTI, 2000, p. 11-12). O discurso de Cavalcanti denunciava, como em outras ocasiões, o “perigo da internacionalização da Amazônia”. 235 Mapa 10 – Terras Indígenas em Roraima Áreas críticas, junto às fronteiras: A - F Áreas internas, não problemáticas: 1) Santa Inês; 2) Anaro; 3) Ponta da Serra; 4) Ouro; 5) Ananás; 6) Cajueiro; 7) Araçá; 8) Aningal; 9) Boqueirão; 10 Truaru; 11) Anta; 12) Pium; 13) Mangueira; 14) Barata/Livramento; 15) Serra da Moça; 16) Jabuti; 17) Bom Jesus; 18) Manoá/Pium; 19) Moskow; 20) Muriru; 21) Canauamim; 22) Tabalascada; 23) Malacacheta; 24) Sucuba; 25) Raimundão. Fonte: Baseado em Funai, 2004. Um fato ilustrador dessa situação polêmica, apresentou-se quando da realização do Censo Populacional de 2000 em Roraima. Segundo o IBGE, houve resistências para realizar os levantamentos do Censo em duas regiões de Roraima, uma delas nas terras dos Yanomami, onde ocorreu: 236 A imprudência inadvertida de nossa parte em levar os cartazes de divulgação do Censo, julgados por nós como cativante a eles – um deles ‘O Brasil quer saber quantas estradas o Brasil precisa’ – causou enorme resistência, uma vez que os indígenas tradicionalmente são visceralmente contra estradas e no caso dos Yanomami, lutam a décadas contra o projeto militar denominado Calha Norte”. (BRASIL. Instituto..., Censo Roraima 2000, mimeo). No norte do estado, principalmente no município de Uiramutã, segundo o mesmo documento, embora reuniões tivessem sido feitas com a FUNAI e lideranças indígenas, apenas cinco das quinze comunidades indígenas puderam ser recenseadas. Neste último caso, o problema é que ali ocorrem as disputas pela demarcação das terras dos índios Macuxi, Wapichana, Ingaricó e Taurepang. O problema nesse caso não é com os militares, mas com pecuaristas e arrozeiros, principalmente, no entanto, esses exemplos mostram que a intervenção das autoridades, mesmo que seja um levantamento populacional, é mais problemática do que pode parecer. O Relatório do Seminário, terminado meses após sua realização, não foi divulgado à imprensa nem aos seus participantes, mas localmente se pôde avaliar alguns de seus reflexos, durante e logo após o evento. Em uma pausa das palestras, Rubens Barreto (2001, i. v.), antigo comerciante de equipamentos para garimpo, lamentou ao pesquisador que houvesse tão pouca freqüência e repercussão em um acontecimento de tão grande importância, que garantia a defesa do Brasil de entidades estrangeiras. Abordou e apresentou um grande proprietário rural de Roraima: Agamenon Magalhães, de tradicional família local. Rubens declarou que Magalhães deveria estar sentido com os estadunidenses, já que estes estariam por trás da ação de abandono de suas fazendas em terras entregues aos índios Yanomami. Magalhães (2001, i. v.), responde da seguinte forma: “Não, as coisas não são bem assim, os americanos são um povo de vencedores, e eu adoro vencedores”. Acrescenta ser um homem rico e feliz, com parentes que trabalham na burocracia do estado e um filho dono de empresa de terraplanagem, o que o orgulha, apresentando cartão da mesma143. O discurso valorativo do Projeto parecia também ter pouca força junto a alguns setores políticos locais. Dias após o término do evento, a imprensa apontava que nenhum prefeito compareceu para discutir sobre o Projeto (PREFEITOS NÃO SE..., 2001, p. 4), num encontro organizado pelo governo do estado. Apenas o município de Uiramutã enviou um representante. Este tem 100% de seu território situado em terras indígenas, advindo daí 143 Trata-se da empresa Terrareta – Terraplanagem e Pavimentação Ltda., sita em Boa Vista. Empresas de pavimentação e terraplanagem são consideradas o grande filão de verbas junto ao governo estadual, já que Roraima tem mais de 3.000 Km de rodovias, as quais, em razão de meio ano de chuvas intensas, estão quase sempre em obras. 237 problemas que espera resolver com a ajuda do PCN, como a questão fundiária e o melhoramento da estrada principal que dá acesso à sede do município. Ao pesquisador das políticas públicas, não escapa o fato de que há, com o PCN, uma superposição de projetos, objetivos e funções entre as diversas instâncias administrativas. Exemplo disso é o desconhecimento da existência do CONAMAZ, por onde, teoricamente e administrativamente, deveriam passar todos os programas e projetos ligados à região amazônica. No documento intitulado Política Nacional Integrada para a Amazônia Legal, do Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, através de sua Secretaria de Coordenação dos Assuntos da Amazônia Legal, aprovado pelo CONAMAZ em 1995, foi estabelecido que este, com o auxílio dos ministérios, dos demais órgãos e das áreas afins, seria a base de um Projeto Amazônico. Também seria compatível com outros projetos regionais e contaria com a cooperação das Forças Armadas e da Polícia Federal. O CONAMAZ é formado por praticamente todos os ministros e governadores dos estados amazônicos, assim, há uma lógica numa articulação de políticas quando se trata do desenvolvimento da Amazônia. Ambos os projetos estão, pois, tratando do desenvolvimento regional, tal como prescreve o art. 3º, II e III itens da Constituição, respectivamente, garantia do desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais. Assim, percebe-se que o Estado nacional brasileiro, mesmo quando dispõe de uma estrutura como a militar, não tem como resolver problemas locais e regionais, mesmo que representantes das instituições finalísticas afirmem em contrário. 5.2.3 Os anos de 1990: conflitos e impasse – uma síntese As relações de poder em Roraima, a partir de 1990 refletem, sobretudo, as grandes mudanças no Brasil desde os anos pós-1964. Autores, como Becker, Egler (1994, p. 169), afirmam que o Brasil entrou na modernidade com o projeto geopolítico do Brasil-Potência, elaborado e gerido pelos militares, o qual deixou marcas profundas sobre o espaço e a sociedade nacionais. Por outro lado, num período de tempo relativamente breve, a redemocratização fortaleceu lideranças antigas e novas e, após 1988, abriu-se um espaço político-institucional em todos os níveis. Em Roraima, esse processo transformador provocou também uma continuidade. A mudança foi acompanhada da chegada de novos agentes, mas a conjuntura nacional produziu 238 também uma continuidade de processo. A anterior crise do governo militar levou à valorização do voto nos territórios e estados menores, favorecendo os governadores e seus programas políticos. Mas a opção do governo Sarney pelo social proporcionou recursos à continuação de projetos populistas e clientelísticos em Roraima, justamente quando milhares de garimpeiros e colonos ali chegavam em busca de uma nova vida. Já no início do primeiro governo civil (SKIDMORE, 2000, p. 556), mesmo os dados oficiais do governo indicavam que, no fim do período militar, havia uma imensa dívida social e uma cobrança da mesma feita pela imprensa, por intelectuais, pela Igreja e outras instituições. Em 1986, ainda segundo Skidmore (2000, p. 556), o presidente José Sarney (1985-1990), após o relatório do professor Hélio Jaguaribe, resolveu implantar um novo Pacto Social, com o aumento substancial nos investimentos em programas sociais144. O Estado havia, pois, mudado suas prioridades, enquanto os movimentos sociais se expandiram pelo país sem medo da repressão e as lideranças locais e regionais iam se reorganizando e recuperando seu antigo poder. Em Roraima, como exposto até aqui, houve um processo um tanto diferenciado do geral. A intervenção do governo Sarney no território após uma grave crise do primeiro governo territorial pós-período militar é interpretada aqui como fato extemporâneo, pois como comprova o não controle do movimento garimpeiro para Roraima, então ascendente, o Estado estava saindo do cenário local.. A prioridade do governo Sarney, destinando parte do PIB nacional para o social, beneficiou os governantes roraimenses, como Romero Jucá (1988-1989). Este investiu recursos em obras urbanas e sociais, incorporando parte do novo eleitorado formado por milhares de garimpeiros e outros migrantes que continuavam a chegar. A população urbana explodiu, principalmente a de Boa Vista, como já comentado, enquanto novos bairros residenciais nasciam rapidamente. O projeto econômico do governador estava voltado para a mineração a ser explorada industrialmente, mas cuidou também de preparar sua base política futura. Jucá aproveitou um momento que se indicava propício, já que as lideranças locais não tinham como, sozinhas assumir o novo papel que as mudanças propiciavam e a antiga aliança com os políticos do Amazonas já não funcionava. Com os mesmos objetivos, o ex-governador 144 Segundo Skidmore (2000, p. 556), Sarney prometeu aplicar no social 12% do PIB nacional. A inflação que se seguiu nos anos posteriores e a inclusão de itens na categoria do social impedem a citação aqui de um índice, mas é inegável que Roraima recebeu recursos vultuosos, aplicados na construção de milhares de casas urbanas, antes mesmo do governo Jucá. 239 Ottomar também voltou ao território, sendo eleito deputado federal, juntamente com sua esposa, Marluce Pinto. Em torno das lideranças de Jucá e Ottomar o poder em Roraima foi se estruturando, cuja definição institucional se daria na primeira eleição geral, em 1990. A década de 1980 (ALMEIDA, 1994) mostrou que movimentos populares, inclusive rurais e indígenas, podem ser organizados e ter ouvida sua voz, dentro e fora do Brasil. A partir daí os grupos sociais e étnicos, antes quase invisíveis, e não apenas grupos mais homogêneos e mais fortes, como os ruralistas, puderam mostrar sua força e influir na feitura de leis e exigir seu cumprimento. Em Roraima, essas duas forças caminhavam para o confronto, já que os grupos de interesse novos e antigos defendiam, como hoje, uma economia baseada no imediatismo predatório, enquanto a sustentabilidade tem o apoio formal do Estado nacional e instituições brasileiras e internacionais. A eleição para governador foi simultânea à de senadores, deputados federais e estaduais. Os números revelam o momento em que se abriu um espaço político-institucional para todos os tipos e tendências de lideranças, locais e recém-chegadas. Eram três vagas ao Senado,145 oito à Câmara Federal e vinte e quatro à Assembléia Legislativa 146. Um historiador local (OLIVEIRA, 1991, p. 30) anota que: cerca de 85.000 eleitores compareceram às urnas; eram 17 partidos registrados, formando alianças; seis dos candidatos para governador; 21 ao Senado; 55 à Câmara Federal e 236 à Assembléia Legislativa. O perfil profissional dos eleitos para o legislativo estadual está mais representado por empresários e profissionais liberais que os das economias tradicionais, isto é, o comércio e a pecuária. Embora os números obviamente não representem a rigor as ocupações ou posições sociais e profissionais, isso mostra que o universo político já não era o mesmo de décadas anteriores. Muitos vereadores de Boa Vista foram “promovidos” politicamente, tal como aconteceria com muitos prefeitos nas eleições seguintes. Antigos ocupantes de cargos no território também obtiveram êxito. Um rápido exame do resultado da eleição através de Oliveira (1991) e Silva Jr. (1994) revela alguns dados relevantes, como no caso dos deputados estaduais, no Quadro 10. 145 Como era a primeira eleição para o Senado no estado, de acordo com a legislação, o primeiro mais votado teria mandato de oito anos, enquanto o segundo e o terceiro colocados teriam mandato de apenas quatro anos. 146 De acordo com a constituição de 1988, um estado federativo com menos de 600.000 habitantes só poderia ter dezessete deputados estaduais. Na legislatura seguinte isso foi seguido à risca em Roraima, mas em 1998 o número voltou para 24 deputados, o que permanece desde então. 240 ATIVIDADE Empresário Comerciante Médico Advogado Veterinário Dentista Radialista Engenheiro civil Pecuarista Funcionário público Outra Total ESTADO DE ORIGEM 08 01 03 01 01 02 02 01 01 Roraima Maranhão Pernambuco Rio Grande do Sul Rio Grande do Norte Paraná Ceará Mato Grosso Amazonas São Paulo CARGO ANTERIOR 07 04 02 03 02 02 01 01 01 01 Vereadores Funcionário Municipal Secretario Território Prefeito Municipal Estreante na política Tentou Câmara em 1988 07 02 03 01 07 04 01 03 24 Quadro 9 – Componentes da Primeira Assembléia Legislativa de Roraima: 1990. Fonte: Baseado em Oliveira, 1991. (*) Há casos em que a biografia registra duas ou mais atividades, caso de um empresário e advogado e um outro que é também professor. Considerou-se apenas a atividade em exercício na época da eleição. (**) Todos os vereadores a que se refere o Quadro eram da Câmara Municipal de Boa Vista em 1990. Quanto aos postulantes aos outros cargos, alguns eram até então completamente desconhecidos, como os empresários Moisés Lipnik e João Lyra, ambos tentando vaga ao Senado. O primeiro era aliado de Ottomar, o segundo, de Jucá. O ex-governador Hélio Campos seria eleito ao Senado, após sucessivas derrotas à reeleição para a Câmara Federal e uma à prefeitura da capital. A segunda vaga ao Senado seria ganha por Marluce Pinto, e a terceira seria ocupada pelo médico e ex-vereador César Dias. (OLIVEIRA, 1991, p. 35). Nenhum dos eleitos ao Senado e à Câmara Federal era da terra, nem o governador e seu vice, bem como dois terços da Assembléia Legislativa, como se observa no Quadro 10. O empresário paulista Wagner Canhedo foi o suplente de Marluce ao Senado, o que levantou polêmicas em Roraima e na imprensa nacional147. Os interesses familiares foram, em parte, ratificados com essa eleição. O grupo de Romero Jucá elegeu também a esposa deste, Tereza, a mais votada para deputado federal e metade dos cargos ocupados foi de seus aliados, o mesmo não se considerou inteiramente derrotado, tendo declarado em discurso após o término das apurações: “Enfrentamos Villar, Getúlio, Neudo Campos, Roberto Dagon, D. Aldo Mongiano e Fernando Collor de Mello” (INTERIOR ELEGE..., 1990, p.1). Outra família, tradicional, a Cruz, teve menor sorte, não 147 Wagner Canhedo, dono da empresa Viação Aérea São Paulo (VASP), segundo a revista Visão de 31 de outubro de 1990, assumiria o cargo após a renúncia de Marluce, em troca do apoio financeiro à campanha de Ottomar. O fato não ocorreu. 241 elegendo Getúlio para o governo do Estado nem seu irmão, Salomão, para a Câmara Federal. Neudo Campos era empresário do ramo imobiliário e da engenharia148. Roberto Dagon foi o candidato do PT ao governo no primeiro turno, enquanto Mozarildo, então aliado de Ottomar, de quem tinha sido secretário, era deputado federal e concorreu ao Senado. D. Aldo Mongiano era bispo diocesano, e defendia os direitos dos índios, combatendo as pretensões de pecuaristas e garimpeiros. O expressivo número de candidatos ocorreria também nas eleições legislativas estaduais seguintes: 173 em 1994; 273 em 1998 e em 2002 o total somaria 547149. O menor número de candidatos em 1994 talvez se dê em razão da diminuição de 24 para 17 deputados estaduais, o que foi revertido em 1998, numa re-interpretação da Constituição Federal. É perceptível que a disputa para o legislativo estadual é uma das principais preocupações do governador, mas logo após as eleições comumente ocorre a troca de partidos, principalmente pelos estreantes no cargo. Para a Câmara Federal, Tereza Jucá se elegeu com folga para deputada federal, “puxando” o aliado João Fagundes, militar da reserva, ex-deputado e defensor intransigente do garimpo no Congresso, além de desafeto de Ottomar. Os outros eleitos foram Francisco de Assis Rodrigues, Marcelo Souza Cruz, Alceste Madeira e Ruben da Silva Bento. O primeiro era engenheiro agrônomo e empresário agropecuário, o segundo era engenheiro civil e antigo secretário de obras de Pernambuco e de transporte em Roraima, o terceiro era médico e empresário da saúde, enquanto o último, irmão do prefeito Barac Bento, era vereador e bancário. As eleições de 1990 foram relativamente tranqüilas (OLIVEIRA, 1991), mas seus resultados não agradaram a todos. Ottomar tentou cassar a candidatura de César Dias, aliado de Jucá, o que beneficiaria Moisés Lipnik, de seu partido, quarto colocado na votação. João Lyra ficou em quinto lugar, e em sexto Mozarildo Cavalcanti, então deputado federal pelo território (SILVA Jr., 1994, p. 271). Segundo a mesma fonte, muito próximo deste, seguiu-se o líder dos garimpeiros, José Altino Machado,150 ficando à frente do ex-prefeito da capital, Robério Araújo. Concorreram ainda ao Senado antigos líderes políticos e ocupantes de cargos 148 Cadastro Industrial da Associação Comercial e Industrial de Roraima (ACIR, 1988). Alexandra Sampaio, Folha de Boa Vista, 2002, p. 04. 150 Segundo Berno de Almeida (1994, p. 525), Machado tinha sido presidente da União dos Sindicatos e Associações de Garimpeiros da Amazônia Legal (USAGAL). Apresentava-se como garimpeiro do Tapajós, escrevendo em jornais como o Jornal do Brasil em abril de 1989 contra anteprojeto de Lei que regulamentaria a atividade garimpeira, enviado à Presidência da República pela Secretaria de Assessoramento e Defesa Nacional (SADEN). Foi também um dos organizadores do Encontro de Garimpeiros de Roraima naquele ano. 149 242 ao tempo do território, como os deputados do território Alcides Lima e Francisco das Chagas Duarte, que obtiveram pouca votação. No primeiro turno para governador (SILVA Jr., 1994, p. 271) o ex-governador Getúlio Cruz, então no PSDB, ficou em terceiro lugar, com 12,23% da votação. Neudo Ribeiro Campos, Robert Dagon da Silva e Belgerac Vilela Batista tiveram respectivamente 4,40, 1,73 e 0,05% dos votos. Os resultados não foram bons para a família Cruz, já que Salomão, irmão de Getúlio, embora com votação expressiva para deputado federal (SALOMÃO CRUZ..., 1990, p. 3) acabou não se elegendo em razão da legenda. Dois anos após, diferente de 1990, as eleições para prefeito em sete municípios, inclusive em Boa Vista, foram tumultuadas. O pleito na capital acabou sendo adiado de outubro para o mês seguinte, quando saiu vencedora Tereza Jucá, derrotando o candidato de Ottomar, Alceste Almeida, que tinha como vice Neudo Campos (CANDIDATOS AGUARDAM..., 1992, p. 11). Alguns dos nomes dos novos prefeitos e vereadores despontariam posteriormente na política estadual, como Nertan Reis e Gelb Pereira, que obtiveram dois terços dos votos para prefeito de Alto Alegre e Normandia, respectivamente, além de alguns vereadores. Destes, destacam-se Urzeni da Rocha Freitas, Homero de Souza Cruz Neto, Mecias de Jesus e Francisco Flamarion Portela (SILVA Jr., 1994, p. 273-274). Todos deputados nas eleições posteriores, sendo que este último seria vice-governador a partir de 1998 e governador eleito em 2002. Nas eleições de 1994 para governador, Ottomar apoiou seu secretário de Obras Neudo Campos, que se sagrou vencedor. Nesse ano o número de deputados estaduais diminuiu para dezessete,151 e houve mudança substancial de nomes na composição do legislativo estadual e no federal. Já era possível ali identificar melhor quem dispõe de mais recursos ou apoio para enfrentar seguidos e caros embates eleitorais. Isso se verificou principalmente nas disputas como para governador, quando Neudo Campos, rompido com Ottomar, reelegeu-se em 1998 mas não conseguiu eleger o prefeito da capital em 2000, o empresário Carlos Coelho, derrotado por Tereza Jucá. O então prefeito, Ottomar, foi também candidato, ficando em segundo lugar. O surgimento de uma terceira força política, nascida no meio do poder na década de 1990, mostrou apenas que havia mais um grupo nas disputas, não 151 De acordo com o artigo 27 da Constituição Federal (Brasil, Constituição Federal, 1988), o número de deputados estaduais corresponderá a um triplo dos federais por estado membro, até o número de trinta e seis, acrescidos de tantos quantos forem os deputados federais acima de doze. Os limites de número são fixados pelo artigo 45: não menos que oito nem mais que setenta deputados federais por estado. Assim, o número de 24 deputados estaduais em Roraima, permanece. 243 uma hierarquização com a hegemonia de algum setor político-econômico. Isso seria demonstrado nas eleições de 2002, onde Neudo Campos, candidato ao Senado, ficou em quarto lugar, enquanto seu vice, Flamarion Portela, elegeu-se governador. Apenas passadas as eleições de 1990, foi formada a Comissão de Assuntos Fundiários e Indígenas na nova Assembléia Legislativa. Como as comunidades indígenas e seus aliados mostravam disposição de defender o que a Constituição lhes garantia, estava assim formado o campo para uma disputa em que ninguém quer ceder. O diagrama 1 mostra como esse processo se construiu. Evolução Política 1943: Território Federal 1970-1979: Geopolítica e desenv. 1979-1985 – Fortalecimento local 1985: Redemocratização 1988: Estado federativo Atividades Econômicas Agropecuária e extrativismo Madeira Mineração (garimpo) Comércio e Serviços Instituições de controle Estado Nacional Ambientalistas Comunidades Indígenas Entidades confessionais Organizações não governamentais Grupos de pressão Grupos políticos estaduais Grupos locais Grupos nacionais Conflitos e impasses Diagrama 1 – Os caminhos dos conflitos e impasses na década de 1990 244 No seu conjunto, os grupos de interesses roraimenses, heterogêneos em natureza, objetivos e em força, não se identificam ou se apóiam em siglas partidárias, já que essas, sempre numerosas, não costumam ter estabilidade ou identificação com nomes de líderes locais152. É uma situação generalizada, pois os membros dos grupos políticos que mediam os grupos locais de interesse ou de pressão com o governo central não costumam ficar muito tempo num mesmo partido, já que necessitam ficar sempre próximos do poder central. Esse desligamento partidário, como anota Pasquino (1982, p. 17-18), dá-se porque os partidos tendem a concentrar os problemas políticos em larga escala, numa medida não muito freqüente e em ocasiões limitadas às eleições. Como esse espaço é o de um estado autônomo, mas não soberano, há necessidade de articulação com grupos com comunicação de nível regional e nacional, formado principalmente por parlamentares federais ou que tenham ascendência sobre esses. A institucionalização e a legitimação do poder passaram a ser perseguidas por diversos grupos políticos de abrangência estadual, mas apenas dois deles conseguiram se firmar, recebendo ambos adesões e sofrendo divisões nos anos seguintes. Da estrutura institucional e do processo legitimante, nasce uma rede de compromissos, como observado no Fluxograma 1. Prefeitos, Vereadores Deputados Estaduais Governo Estadual Governo Federal Grupos Políticos: Ottomar, Jucá, Neudo, Parlamentares Federais de RR, Militares Empresários, arrozeiros, comerciantes, pecuaristas, Ass. de classe, empreiteiros Fluxograma 1 – As redes de compromisso em Roraima 152 A exceção é o PTB, partido sempre presidido ou controlado por Ottomar Pinto, mas seu grupo, como os outros, sempre se valeu de alianças de diversos partidos. 245 No âmbito da economia o centro da questão é o problema da terra indígena. Mas, embora essa luta em Roraima seja antiga, ela não se dá, como em outras partes do Brasil, entre camponeses e latifundiários ou grandes empresas agrícolas. O embate atual se dá entre índios e seus aliados, contra os interesses na exploração e expropriação. Para o índio, a terra tem um valor simbólico, que ultrapassa o econômico e mesmo o cultural do não-índio. Essa é mais uma diferença da situação das terras abertas pela colonização, que adquiriram maior valor de troca que de uso e que passam paulatinamente a outros donos. A distância entre o pioneiro e o natural da terra transparece através da diferença de racionalidade, que se reflete nos conflitos e até nas formas de organização, seja da resistência seja pelas formas de luta. Muito pouco presente, o grande proprietário não é tido como uma ameaça ao camponês que tenha uma pequena gleba em qualquer parte do estado. Atuando dentro de sua racionalidade, o camponês sabe da facilidade para adquirir outra terra, graças à disponibilidade dessa ou ainda, tem a opção de mudar para a cidade, onde obterá uma casa popular sem grandes dificuldades. Em resumo, dos agentes que dependem da terra em Roraima, apenas o índio teme a expansão do gado, da mineração, da exploração da madeira e, mais recentemente, do arroz de plantio irrigado. Os grupos de interesse mais ligados ao setor econômico, na forma de associações de classe são: Associação Comercial e Industrial, Federação da Agricultura, Sindicato da Construção de Estradas, da Construção Civil, Associação dos Pecuaristas, Associação dos Produtores de Arroz Irrigado, Sindicato dos Madeireiros, Sindicato dos Lojistas e outros menores. Com origem nos movimentos sociais, existe o Sindicato dos Garimpeiros, o dos Assentados, o dos Artesãos. Com origem próxima a estes, mas divergindo frontalmente do dos Garimpeiros, existem diversas associações indígenas, algumas ligadas à Igreja Católica. Esta, lutando em favor das minorias étnicas, têm se constituído na maior força que bate de frente com os agentes políticos e econômicos, que têm o apoio dos governantes de Roraima. Sua ação não é tanto direta, como através do CIR, fundado em 1985. De acordo com Rodrigues (1996), o CIR tem o apoio de 70 comunidades indígenas, sendo individualmente a mais forte associação indígena do estado. No âmbito do CIR, foi criada a Secretaria de Mulheres (SIMONIAN, 2001, p. 27), e a Associação das Mulheres Indígenas de Roraima (ADMIR). Políticos e empresários têm procurado enfraquecer o CIR, apoiando outras associações concorrentes, como a Associação dos Povos Indígenas de Roraima (APIR), dissidência do próprio CIR, segundo Rodrigues – formado por índios 246 Macuxi, Taurepang, Ingaricó e Wapichana. Há ainda diversas outras organizações indígenas (SIMONIAN, 2001) tais como a Organização das Mulheres Indígenas de Roraima (OMIR), a Organização dos Professores Indígenas de Roraima (OPIR), a Associação Regional Indígena do Quinô e Monte Roraima (ARIKON) e outras mais recentes. Essa divisão não se dá em razão das divisões étnicas, mas por causa da cooptação e diversidade de interesses entre os próprios índios. O maior exemplo da divisão é a questão da demarcação das terras indígenas, já que o CIR e seus aliados só aceitam que isso seja feito em área contínua ( SIMONIAN, 2001; SANTILLI, 2001), enquanto outras lideranças defendem que isso seja feito em ilhas. Em permanente interação com grupos e associações, as instituições administrativas federais, como o INCRA, o IBAMA e principalmente a FUNAI, a Igreja e algumas instituições ambientais externas, estão em permanente linha de fogo. Isto ocorre como resultado do constante discurso deslegitimador das lideranças contrária ao controle do acesso livre às terras indígenas e de preservação. Diretamente, a deslegitimação é feita em quatro direções: pelo ataque aos órgãos da administração federal, encarregados do controle, que estariam agindo em desacordo com os interesses legítimos do estado e da população local; pela deslegitimação do próprio índio, não aceitando a indianidade deste ( PRÉCOMA, entrevista, 2003), já que o mesmo fala a língua nacional e absorveu parte substancial dessa cultura e deslegitima-se por fim a ação de toda e qualquer instituição estrangeira, como intervenção indevida na soberania nacional. De forma indireta, a deslegitimação é feita a partir da luta parlamentar para a mudança da legislação atual ou, sua reinterpretação. Dessa pressão junto ao Executivo federal, dependente de votos de congressistas para aprovar suas ações, resultam o não cumprimento de decisões já tomadas, como a Portaria 820/98 do Ministério da Justiça e, a aprovação do Decreto 1775/96. O primeiro documento, assinado em 1998, trata da delimitação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, que causou um movimento contrário ao seu cumprimento em Boa Vista. Na ocasião, percebiam-se cartazes em carros e pinturas em muros com a expressão: “Fora FUNAI” e até uma música alusiva foi gravada por conjunto popular, sendo apreendida pelo Justiça local por ter conteúdo discriminatório ao índio153. O Decreto 1775/96, assinado em 8 de janeiro de 1996, substituiu o Decreto 22, de 04 de fevereiro de 1991, dando nova forma aos procedimentos administrativos da demarcação das Terras Indígenas, 153 A música, gravada pelo Conjunto musical roraimense Pipoquinha de Normandia, com o refrão: “Terra contínua não”. 247 introduzindo o contraditório. Visto através de seus resultados, os dois documentos mostram que o Estado Nacional perdeu o poder da decisão, inerente, segundo Lasswell, Kaplan (1982, p. 27-28), ao poder do Estado. Essa decisão, segundo os autores ( LASSWELL, KAPLAN, p. 27-29) pertence a quem detém o poder e o exerce, sendo o cumprimento da mesma garantida pela ameaça implícita de sanções severas. Uma tradução funcional da concepção do legítimo uso da força no modelo weberiano, ou, no modelo de Dallari, um exemplo dos problemas enfrentados pela federação. Mostrar que tem a decisão e que faz bom uso dela é uma antiga forma política de legitimação: o governante deve mostrar que está trabalhando para o bem de todos. Isto é feito, geralmente, através de construção de obras de infraestrutura, que passam a ter uma visibilidade forçada, através de intensa publicidade oficial. Em Roraima, a década de 1990 se iniciou com construção de milhares de casas populares, mas terminou com a chegada da energia elétrica de Guri, na Venezuela, com o asfaltamento da BR 174, ligando Manaus àquele país de forma mais eficiente e, ainda, com a construção de ponte sobre o rio Branco em Caracaraí, junto à mesma rodovia. O discurso do aumento de empregos e de renda e, principalmente, do progresso, é assim reforçado. O caminho para a instalação de indústrias e lavoura capitalizada, com boas estradas e energia abundante foi aberto, sendo que a primeira fábrica de papel, que deve em tese resultar em 6.000 empregos já iniciou a plantação de árvores. Enquanto que, significativamente, o fato dos índios venezuelanos terem destruído algumas torres da linha de transmissão de energia que passam por suas terras foi explorado como interesses internacionais contrariados (INTERESSES INTERNACIONAIS..., 1999, p. 10). O poder local dá a entender que é o dono da decisão, não revelando informações outras, de que a decisão veio principalmente de um nível mais alto e tem objetivos mais amplos. Visentini (1995, p. 65-72) registra que a integração energética Brasil-Venezuela é produto de vários acordos binacionais e de reuniões da Comissão Binacional de Alto Nível, na qual o denominado Grupo II, tratava especificamente do problema da energia entre os dois países. O assunto foi dividido em dois itens: petróleo e energia hidrelétrica. O Brasil aumentou desde 1994 sua compra de petróleo venezuelano, que passou de 6.000 para 100.000 barris diários e estudos foram feitos para troca de tecnologia entre a Petrobrás e a Petróleo de Venezuela S.A. (PDVSA), a estatal venezuelana do setor. O autor informa ainda (VISENTINI, 1995, p. 66), que outros estudos do Grupo técnico incorporaram a viabilidade da extensão de 248 uma linha de energia entre Guri e Manaus. O poder central financia, pois, a legitimação do poder local, ao mesmo tempo que paga o preço pela não solução de outros problemas. O problema da energia na Amazônia está tendo solução diante de outras alternativas, como o gás natural da região. O problema da terra, em especial da terra indígena, é muito mais complexo, pois envolve, neste último caso, interesses muito mais que econômicos. Entrelaçado com as problemáticas ambiental e social, ultrapassando as fronteiras políticas, o problema da terra merece ser tratado com mais importância do que tem tido até aqui. 249 6 CONCLUSÃO As realidades políticas, econômicas e sociais de Roraima refletem, acima de tudo, a intervenção do Estado Nacional em diversos momentos. Até 1970, tratava-se apenas um território federal de importância estratégica e em razão disso, dentro da racionalidade do regime autoritário de então, a política da segurança chegou ali antes da do desenvolvimento. Situada no extremo norte, dividida longitudinalmente pelo rio Branco, com uma população de 40.000 habitantes, muitos deles indígenas, apenas dois municípios, uma superfície de 225.000 km2 e fronteiras maiores com a Venezuela e a Guiana que com seus vizinhos brasileiros, aquele espaço parecia carecer de qualquer importância. A economia se reduzia a uma pecuária extensiva e a algum extrativismo, não havendo uma riqueza que pudesse participar do mercado nacional ou de exportação. Não obstante, a geopolítica, instrumento do Estado desde o século XVIII, deu-lhe atenção especial, por reunir ali entradas terrestres e aquáticas para a Amazônia. Por mais de um século, uma fortaleza e três fazendas de gado faziam parte da paisagem formada por campos e florestas, ocupadas em sua maior parte por índios de diversas etnias. Sua história recente difere do Pará e do Amazonas, que cedo conheceram uma vida urbana, estruturada a partir de uma economia de exportação e um passado político de autonomia após 1891, realidades essenciais para o surgimento de uma elite econômica e política. Roraima, estaria pois “atrasada” mesmo em relação aos seus vizinhos da Amazônia e seus governantes, todos nomeados pelo governo central, traçariam planos para mudar essa realidade. Seguindo o pensamento da Escola Superior de Guerra, em tempos de Guerra Fria e de instável situação política dos países do Caribe, o governo militar brasileiro militarizou as fronteiras terrestres na Amazônia Setentrional, abriu a rodovia Manaus-Boa Vista e promoveu o aumento populacional desta última, preocupando a vizinha Venezuela. Houve em seguida a tentativa de desenvolvimento, com recursos do PIN, dos I PND e do POLAMAZÔNIA, principalmente. O resultado geral dessa ação, além de muito diferenciada da de outras unidades da Federação na Amazônia, também foi muito mais abrangente, profundo e rápido, o que se refletiu na desarticulação das culturas tradicionais e transformações ambientais. A rapidez do processo teve reflexo também no universo político local, promovendo a 250 desarticulação das lideranças antigas e a composição de novas forças. Mas estas últimas não tiveram tempo para a maturação, condição necessária à formação de qualquer grupo de interesse local ou não. Um resultado disso foi a incapacidade das lideranças políticas de Roraima de administrar sua autonomia quando da redemocratização, em 1985. A intervenção do Estado Nacional, autoritário, dotado dos instrumentos julgados necessários deveria ter, através da ação planejada, os resultados almejados, como preconiza a teoria política. No tocante a Roraima isto aconteceu apenas em parte, visto que os reflexos das crises internacionais ocasionaram a falta de recursos. Houve mesmo uma reversão: na década de 1980, com as crises e a falta de divisas, o governo federal incentivou a procura do ouro, proporcionando um apoio indireto ao garimpo. Uma síntese das políticas públicas do governo central no período compreendido entre 1970 e 2000 mostra que Roraima, como a Amazônia de um modo geral, tem sido utilizada para resolver alguns problemas nacionais ou próprios da administração federal. O papel de guarda da fronteira substituiu o papel de fornecedor de matérias-primas para a economia produtiva ou de exportação, mas enquadrou-se como receptor de excessos populacionais do Nordeste e outras regiões. Os objetivos das intervenções incluíam benefícios locais, mas eram planejados principalmente em função de necessidades alheias ao meio. Neste contexto, resultados negativos se tornam por vezes e posteriormente apenas registros geográficos, como se percebe com a rodovia BR 210, no trecho inacabado dentro da Terra Indígena Yanomami. Esta aparece hoje apenas como uma linha no mapa da Amazônia, embora tenha representado na década de 1970 uma porta de entrada para garimpeiros e fazendeiros, o que causou surtos de epidemias e morticínio entre aqueles indígenas. Há que se distinguir entre governo autoritário e democrático quanto ao uso da Amazônia ou de suas populações pelo governo central, pois a pesquisa abrange esses dois períodos. Em ambos os casos, a intervenção é quase sempre identificada como valorização da região. Se o Estado nacional depois do regime militar saiu quase todo de cena do setor produtivo, no político-institucional a região tem servido atualmente para equilibrar o poder no Congresso Nacional. Estados pequenos como Roraima, com pouco mais de 100.000 eleitores, elegem três senadores e oito deputados federais. O aumento da representatividade já tinha ocorrido no fim dos governos militares, mas ampliou-se com a Constituição de 1988 e a criação de novos estados. 251 Na prática, isso levou ao fortalecimento dos grupos de pressão locais, articulados aos regionais e nacionais, em detrimento das populações indígenas. O peso desproporcional dessa representação, motivo de críticas por parte de estados mais populosos, tem levado o governo federal a atender parlamentares amazônicos identificados como contrários à demarcação e homologação das terras dos índios e á conservação do ambiente, como consta na Constituição vigente. Em resumo, a necessidade de votos no Legislativo leva o Executivo a adiar ou atrasar um processo que, de acordo com a legislação, já deveria estar concluído. Essa força externa dos parlamentares roraimenses na atualidade contrasta com a dependência atual de recursos federais pelo governo estadual, resultando daí as alianças e a participação do próprio executivo local em grupo de pressão. Este fato leva-o a deslocar-se da função de árbitro e gestor de toda a sociedade, uma distorção das relações de poder. A ação do Estado nacional autoritário, baseada na racionalidade do poder institucionalizado e na confiança que a ciência poderia realizar, num território federal, um desenvolvimento, não pôde ser plenamente analisada em termos de sucesso ou insucesso, em razão de sua inconclusividade. Mas houve uma herança, como uma estrutura física e administrativa montada, transformações no social, econômico e no político. Na metade da década de 1980, com a queda da ditadura, as forças políticas locais chegaram a negociar a nomeação de um líder local para o governo do território. Entretanto, após lutas e mortes entre as lideranças, o governo federal promoveu uma inusitada intervenção, abrindo caminho para uma nova composição de forças, surgindo assim os grupos políticos de Ottomar de Souza Pinto e de Romero Jucá, ambos oriundos de outros estados. Foi também o tempo do grande avanço garimpeiro para as áreas dos índios Yanomami, no noroeste do território, aumento populacional exponencial e da transformação do território em Estado. O tempo parece ter sido acelerado em Roraima nesse período, não havendo condições de surgir “naturalmente” grupos e lideranças em número e condição de gerir seus problemas. O fracasso da primeira experiência de autonomia dos grupos locais é a comprovação disso. Há, no entanto, uma luta mais antiga: a dos índios, apoiados pela Igreja Católica e algumas instituições nacionais e estrangeiras. Seu discurso é o da exigência da demarcação, em área contínua, de suas terras, conforme determinado no artigo 231 da Constituição vigente, mas não há unanimidade, pois há organizações e lideranças indígenas que aceitam essa demarcação em ilhas, além de maior proximidade com os não-índios. Assim, se os fatos políticos por vezes se aceleraram, a antiga questão da terra permanece, não havendo 252 perspectiva de solução de curto prazo, graças à organização política de empresários, como os arrozeiros, que contam com o pleno apoio das autoridades locais. O presente estudo mostrou que por vezes existem dificuldades do Estado conciliar seus objetivos com os do poder local, mesmo quando o primeiro é o grande patrocinador. Um dos pontos de cisão levantados foi a da não compatibilidade entre as estruturas pré-existentes e ações que visavam um desenvolvimento promovido pelo governo central ao tempo do II PND, supostamente vantajoso para as forças locais. No centro das questões que permeavam as relações de poder emergiu, pela primeira vez, o problema da exploração dos bens naturais e o da titulação das terras. No campo da economia, Roraima ainda não se consolidou, apesar da chegada da energia elétrica da Venezuela e do asfaltamento das rodovias que o ligam a Manaus e aos dois países vizinhos. Fruto dessas melhorias, uma fábrica de papel suíço-canadense está sendo implantada, tornando-se a esperança de progresso para o estado. Outros exemplos amazônicos mostram que pode tratar-se de mais um enclave exportador, sem reais vantagens locais a montante e a jusante. Uma das atividades mais rentáveis, a exploração madeireira, tem se expandido, mas a maior parte das serrarias é de pequeno porte e acompanha os novos assentamentos para dispor de matéria-prima. A maioria dos municípios reflete seu surgimento das colônias agrícolas, mas o contínuo abandono de lotes e o refluxo populacional do meio rural apontam para uma queda acentuada na estrutura da produção minifundária. No geral, a agropecuária, com exceção do arroz irrigado se encontra em refluxo, apesar do pequeno crescimento do rebanho bovino. A expansão desse arroz tem se dado nas várzeas, inclusive nas conflituosas áreas indígenas, o que não assegura seu sucesso, apesar da alta produtividade e do mercado em expansão. Outra atividade tradicional, o garimpo, acha-se em estágio de quase extinção, apesar da esperança de muitos em sua volta, graças às aguardadas mudanças na legislação federal, defendidas por lideranças políticas locais. Há fortes indicadores de insustentabilidade, como a grande mobilidade espacial da população, mesmo para os padrões amazônicos, além da situação quase sempre muito precária dos municípios. Alguns deles foram criados a partir de antigas vilas de garimpos em terras indígenas, para garantir a presença do poder local, e não possuem meios para se manter. No geral, dependem cada vez mais de repasses federais e estaduais para atender seus compromissos regulares e não dispõem de estrutura para funcionar como unidades políticas. 253 A outra face do problema, a política, é que dá visibilidade à problemática de Roraima. Por ela, a política, passa ou parece passar todo e qualquer fato que mereça menção no cotidiano local. O fenômeno é percebido não só quando da ação dos diferentes agentes envolvidos, geralmente organizados em suas categorias, mas pela virulência dos embates. E é possível perceber, ainda, a forte presença do discurso político, legitimante/deslegitimante de ações e medidas, se estas beneficiam interesses identificados, ou, pelo contrário, supostamente prejudicam direitos. Assim, o imediatismo é defendido como legítimo, pois gera riqueza necessária ao progresso, enquanto quem a isto se opõe é considerado inimigo do desenvolvimento. O reconhecimento da necessidade do controle da exploração de alguns bens naturais e do direito dos índios às suas terras imemoriais, fruto de movimentos ambientalistas e de defesa das minorias, consagrado na Constituição vigente, deu origem a maior polêmica da atualidade em Roraima. A questão ali não era nova, pois os índios já tinham alguma organização, graças ao apoio da Igreja e passaram a reivindicar a demarcação de suas terras desde então. Mas a mesma Constituição também criou o novo estado, dando aos grupos de interesse o poder institucional e até certo ponto, decisório. A questão fundiária é a grande questão política local, originando cada vez mais ataques às instituições federais, às ambientais nacionais e estrangeiras e, principalmente, à Igreja Católica. Já na instalação dos primeiros trabalhos legislativos locais foi criada a Comissão de Assuntos Indígenas e Fundiários e depositou-se esperança na mineração. A insatisfação geral de políticos, empresários e outros beneficiários dos garimpos data do fechamento destes e da demarcação da terra indígena dos Yanomami pelo governo Collor, o que pode ser considerada como quase geral. Noutra frente, os políticos roraimenses em Brasília passaram a apresentar Projetos de Lei e Propostas de Emenda Constitucional para modificar, em parte ou no todo, a legislação indigenista e ambiental. O objetivo é facilitar a exploração de minérios em áreas indígenas e tornar inoperante o reconhecimento dos direitos dos índios. Essa ação é exercida por praticamente todos os parlamentares, apoiados por seus colegas dos estados da região amazônica e mesmo de outras regiões. Mas, a força da argumentação se esgota na justificativa da necessidade de criar riqueza e empregos e desenvolver a região amazônica. Nos grandes centros isso não tem repercussão, ao contrário de Boa Vista, onde os únicos jornais diários pertencem a grupos 254 políticos. O avanço das idéias ambientalistas e em favor de minorias e populações tradicionais, por meio da imprensa nacional e internacional, além de isolar o discurso local, pressiona também o governo a não permitir ações predatórias e manter o controle do avanço exploratório da Amazônia. O governo federal é então pressionado de dois lados: pelos parlamentares representantes dos estados, donos de votos preciosos no Congresso e, pela vigilância de lideranças indígenas e ambientalistas nacionais e estrangeiros. Percebe-se ainda, que há grupos de interesse e de pressão não locais, que têm interesses na exploração de recursos naturais na Amazônia, como empresas de mineração. Desse jogo de forças, nasce o clima de indefinição sobre a decisão e mesmo, sobre o cumprimento desta. 255 REFERÊNCIAS ALBERT, Bruce. Terra, ecologia e saúde indígena: o caso Yanomami. 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