de onomástica

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de onomástica
DE ONOMÁSTICA
por Higino Martins Esteves
Etimologias de prenomes e sobrenomes
ANDRADE
(Freire de Andrade)
BRÁULIO
(Braulhão-Braulhom)
CERVANTES
ESPASANDIM
(Espasadim)
GARCIA
INÁCIO
(Egnatius, Ignatius,
Enneko, Íñigo, Idácio)
LUGRIS
(Lugrim)
MEIRELES
ORDONHO
ORRACA
OSÓRIO
OSORES
SÁ
(Sás)
SAVEDRA
SARAIVA
(Sarávia)
VARELA
VASCO
VASQUES
ANDRADE
Não sei se o sobrenome tenha sido estudado antes de eu ter-lhe comunicado a etimologia à
Sr.ª Prof.a Julieta Drummond de Andrade, filha do grande poeta carioca. A origem é toponímica: há duas aldeias e uma paróquia deste nome, aquelas nos concelhos de Santiago de
Compostela e de São Amaro (Ourense), e a paróquia, solar da linhagem galega, no concelho
de Ponte d’Eume (Corunha). Não sei de casos no norte de Portugal, o que é possível, mas
improvavel a causa da guerra de reconquista.
Os genealogistas falam de Androge, cavaleiro que acompanhara o rei Desidério, derradeiro dos longobardos, quando veio combater os mouros a meados do séc. VIII, mas a proposta etimologizante não resiste a análise linguística. O rumo certo é o da velha gramática
histórica, e o resultado, claro: *ANDE-R}TI- “grã muralha, baluarte, fortaleza”. O prefixo
indo-europeu é *NDE- 1 ou *ANDE- 2, intensivo ou aumentativo, que geralmente superlativa
adjetivos: ande-roudos “muito vermelho” (Holder, I 145), andecavi, nome de tribo, “muito
fortes” (Holder, III 612), e outros (andecamulos, andecombogius, andetrogirix). Adunou
Tovar *NDE-BELTS, cifra de Indibilis, Indebelis, Αvδoβάλης, letra ibérica A-DA-BE-L-S, nome
do adail ilérgete, que explica suasoriamente como híbr. celtobasco com valor “mui negro”.
E Coromines aduz o topónimo andaluz Andévalo (< *ANDÉWĀLON “la gran muralla”)3.
A outra parte (RĀTIS, g. *RĀTOIS) vê-se no gaulês ratin acusat., no nome celtolatino de
Estrasburgo, Argentorāte-Argentorātum (daí o atual Argentré) e no étimo de Carpentras,
*CARBANTO-RĀTE-. O nome vive no gaélico ráth “fortress, rampart”, e daí o ingl. rath.
Tanto o pancéltico ANDE quanto um ANDE só britónico (de *NDE-; o ant. gaél. ter daí
*ENDE é incerto) junto de *RĀTIS, g. RĀTOIS, dão a base *ANDERĀTI-, que, com síncope
do E pretónico e sonorização do -T-, leva decerto para Andrade. Cabe supor-se que velhos
castros continuaram habitados trás a conquista, como nos casos dos topónimos em -óbre.
A história do sobrenome tem interessantes circunstâncias que cabe apontar brevemente.
O nome fora dantes FREIRE DE ANDRADE. A parte caduca qualificava membros das ordens
de cavalaria vindas da França, tal qual a mesma palavra freire, que substituiu parte do frade
autóctone. A redução de FREIRE DE ANDRADE por ANDRADE só pode assinalar a fortuna
dos cavaleiros da ordem do Templo no reino de Castela e Leão. Além dessas fantasias que
pululam arredor da fascinante ordem, o que é claro é que entesouravam restos do saber que
Dumézil desvendou. Eram cientes de serem sacerdotes-letrados a par de guerreiros, como
mostra o famoso sepulcro de Fernão Pérez de Andrade. O urso (símbolo da classe guerreira,
da dita 2ª função) e o porco bravo (símbolo pagão dos druidas, letrados e sacerdotes, da 1ª
função) não são aí animais de significação heráldica, são testemunhos da consciência que
ele tinha da sua dupla condição, aliás evidenciada no seu labor cultural e construtor.
1
2
3
Holger Pedersen, Vergleichende Grammatik der Keltischen Sprachen, 2 volumes, Göttingen, 1909, 1913.
Rudolf Thurneysen, Handbuch des Altirischen, I 473.
Joan Coromines, Topica Hesperica, Gredos, Madrid, 1972, I, 77 e II, 227.
BRÁULIO
Eis outro enigma antroponímico. Apesar do vago perfil latino ou germano, não é tal. Nem
da Itália nem de vizinhos, incluídos Catalunha e Aragão. Só do medieval reino de Leão, id
est, da Galécia medieval. Gutierre Tibon tira-o do germ. Brandila, o que é foneticamente
impossível. Geral e frequente em galego-português, do leonês passou ao castelhano, onde
é americano e filipino.
Documentação antiga e variantes formais
Em Orígenes del español, § 60, M. Pidal regista documentação medieval, do Reino de Leão.
Há aí um curioso BO interno, que M. Pidal qualifica de anti-hiático: 944 Brabolio, patronímico Braboliz, 1097 Brabolio. Como víramos no caso do cast. ant. Burraca, por Urraca,
esse BO/BU é grafia do uau, fonologicamente ausente nos romanços, e vivo no misterioso
céltico final, no cabo do primeiro milénio. As datas 944 e 1097 notam justo o tempo final
do sistema linguístico céltico da cornija cantábrica. Nem latino nem germânico, no céltico
é que cumpre buscar.
Bráulio, na forma atual, deve de ser de tradição (semi)erudita, não popular de todo. Na
España Sagrada diz Flórez, e repete M. Pidal, que no baixo-latim o nome se declinava
Braulio, Braulionis. Logo cumpre supor um étimo de tema em nasal. Ao perder-se a língua
que cunhara o nome, a frequência de nominativo-vocativo decretou a perda do *Brauliom
ou *Braulhom, que é o resultado românico do acusativo latino. Eco popular existiu: no guia
telefónico de Buenos Aires (2001) há um Luís N. Braullón, que suponho de origem galega
ou leonesa. Uma consulta rápida na Rede dos guias telefónicos do estado espanhol não me
revelou outros testemunhos, o que lamento.
*BRAUNIŪ, BRAUNIONOS
Logo proponho o célt. *BRAUNIŨ, BRAUNIONOS, que a passar ao baixo-latim dissimila
em regra em L o primeiro N a causa do segundo, dando Braulio, Braulionis. Que significa?
O tema *BRAUNION- tem *BRAUN- e o sufixo de pertença -ION-. E o que é BRAUN-?
No magnífico Lexique Étymologique de l'Irlandais Ancien de Vendryes vemos ser o étimo
do ant. gaél. brao, g. broon “mó, moinho de mão”. *BRAUNIŪ, BRAUNIONOS era logo
“moleiro, o do moinho”. A par de galês breuan, córn. brou, bret. breo, foi o célt. *BRĀWŪ,
BRĂUNOS, e este do indo-europeu *grwāwō, grwawnos (em autores novos *gwreHauon).
À margem da reconstrução indo-europeia, a forma pancéltica vai com o scr. grāvan “mó
de premer o soma”, arm. erkan “mó”, gót. -quairnus (asilu-quairnus “moinho de asno”),
ant. isl. kvern, anglo-sax. cwearn, inglês quern, neerl. kweern, ant. alto alem. quirn(a), lit.
gìrnos, ant. eslavo žrŭny, russo zhernov, polaco żarna, tocário B kärwenne.
Semântica
Difícil é imaginar, não impossível, por que vias o apelativo “moleiro” cobrou prestígio e
virou antropónimo, além do nome de família *Braulhão-Braullón, cujo rasto enxergamos.
Talvez foi caso similar ao do ferreiro, em todas as culturas considerado poderoso mago.
Também o moleiro pudera ser um bruxo poderoso. Mas talvez a chave deva buscar-se na
ideologia social que desvendou Dumézil; seria um eco da 3ª função, a do povo produtor de
riqueza, tal qual Garcia evocava a 1ª, e Ordonho a 2ª. Mais uma vez produz maravilha e
surpresa debruçar-nos naquele remoto mundo, sempre tão longe e a par tão perto de nós.
CERVANTES
Cervantes é sobrenome famoso de origem toponímica. Além dessa circunstância, a etimologia é dúbia. Há pendor geral a tirá-lo de cervo, mas parece uma miragem: não existiria o
tema verbal que é obrigado supor tirando a desinência. Também não creio ter nas mãos um
plural de tema consonântico. Uma longa experiência mostra os mais dos topónimos em -es
proceder de ablativos-locativos latinos do plural.
Aceitando tal premissa é possível reconstruir o étimo dos sítios, do concelho, do rio e
do sobrenome famoso. Teremos um híbrido celto-latino *CERBANTIĪS. Sem flexão, fica
o tema *KERBANTIO-, que tem uma desinência mixta, de adjetivo sobre a de particípio
presente, e o tema verbal indo-europeu *(s)kerba- “cortar, talhar; rachar”, o do gaélico
cerbaid “ele talha”, cerb “cortante, agudo, afiado; cortador, açougueiro, boucher”. É logo
um verbo denominativo da raiz ie. *(s)ker- “cortar” com acréscimo -bho-. O sentido geral
do híbrido será “nos que talham”, e referir-se-á à atividade desarborizadora da tribo local.
ESPASANDIM
Parece galego, espalhado por Portugal e Brasil. Há variante Espasadim, provavelmente a
originária. Virá do grecolatino spatha, mas não é o catalão espasa “espada”. A desinência
não o admite. Creio Espasadim ser metátese de Espadassim, e este não outro que o francês
Spadassin, documentado por vez primeira em Rabelais, e logo entrado não há muito tempo.
Sabido é que o vocábulo veio do italiano spadaccino, derivado do aumentativo spadaccia.
GARCIA
Tanto Schuchardt quanto Pedersen e Meyer-Lübke tiram o nome Garcia do basco: quer de
*hartze-a “o urso”, por sua vez de origem céltica (Schuchardt e Pedersen), quer de *kartzea (Meyer-Lübke), este autóctone. Decerto põe medo defrontar tamanhos vultos, mas calar
não cabe. Michelena, autoridade máxima em basco, no livro de sobrenomes bascos cinge-se
a citar aquelas equações a par que repete a opinião contrária de Luchaire. “Urso” é (h)artz
em basco, mas a derivação românica não se entende. Como é que a aspiração inicial passou
para G-? Como é que nunca se regista uma alternativa paroxítona? Todos creem basco
Garcia, mas aparece em Leão desde data remota.
Tudo se transforma pondo um étimo *KARKÍDIĀ, abstrato tirado do feminino do adj.
célt. *KARKÍDIO- “garçal, de garça”, baseado em *KARKI}, o étimo de garça firmemente estabelecido por Coromines no seu DCECeH. O significado era logo “garçalidade”.
Para entendê-lo cumpre ter em conta o simbolismo altamente positivo da ave na antiguidade e ainda na mesma Idade Média. A presença de Garcia no país basco explica-se pela
condição assaz testemunhada do céltico como língua franca popular nessa zona.
IGNATIUS e INÁCIO
Está em latim e grego, sem explicar. Isso levou a ver empréstimos do etrusco ou do gálata.
a) No latim há o nome gentílico Egnatius, pouco difundido e sem etimologia. Crê-se
pré-romano, com pendor a atribuí-lo ao etrusco (Emidio De Felice), pela semelhança com
Ecnate, Ecnatna (Tibon). Do etrusco nada se pode afirmar; é um mistério. E é possível ser
um celtismo, o etrusco rodeado e devassado como estava pelo céltico. Em data arredada
Egnatius passou para Ignatius, sob a influxo paretimológico de ignis “fogo”. A etimologia
popular continua viva hoje, como se vê nos ingleses Charles Johnson e Linwood Sleigh:
Ignatia, Ignatius (latin) “fiery”.
b) E. G. Withycombe, melhor conhecedor da história eclesiástica, atribui-lhe origem no
antropónimo gr. zΙγνάτιος, “of unknown etymology”. Levava-o Santo Inácio de Antioquia4,
bispo mártir sob Trajano, talvez entre 104 (fim das guerras dácias) e 117 (ano da morte de
Trajano). O nome não é grego, e pudera ser o latino visto, mas cabe que fosse gálata.
Não fora válido continuar a não dar-se amiúde em Rússia (pelo bispo de Antioquia) e
sobretudo em Ibéria, onde começa a ver-se no séc. VIII, sempre misturado com outro de
origem pré-romana frequente nos bascos, Enneko, que deu Eneco, Enego e Iñigo, com tom
dominante na primeira. Também Ennekon-.
Etimologia de ENNEKO(N) e IÑIGO
A indestrinçável confusão firma-se na Hispânia ao venerar-se Santo Ignácio de Loyola, que
nascera Íñigo López de Recalde. Ignatius logo espargiu-se entre os católicos: fr. Ignace,
alem. Ignaz, it. Ignazio (mais em Sicília e Sardenha), cat. Ignasi, ingl. Inigo. O pai do
arquiteto inglês Inigo Jones assinava Enego (ele também) e no testamento chama ao filho
de Inigue. Nos Preston, viscondes ingleses de Gormanstown, correu também Jenico, forma
provençal de Eneco tomada do protocastelhano. Bem que apareça como basco, na verdade
é do substrato indo-europeu das Vascongadas. O flutuar do tom depende da mudança de
tema a ver-se em basco e bascão. O proparoxítono Enneko ditongou o E tónico numa data
arredada (é a primeira vogal a ditongar, mesmo em romeno, que não ditonga o O), antes de
sonorizar-se o -C- e palatalizar o -NN-. O Jenico provençal procede desse protocastelhano
navarro. No patronímico há uma vasta série de variantes: Énnequiz, Yénneguiz, Yéniguiz,
Íñiguiz, etc. Ante o silêncio de Michelena, descarto o étimo basco, e foco as características
indo-europeias da estrutura, a geminada e o tom proparoxítono firme. Isso leva-me a ver aí
o céltico *ÉTNẸKO- “similar a um pássaro”, adjetivo do céltico *ETNOS “pássaro”.
Etimologia de EGNATIUS, IGNATIUS
Também aqui excluo a origem extra-indo-europeia. O tema -gna- e o sufixo -tio- a custo
possam explicar-se fora do indo-europeu. Ponto crítico é a vogal inicial, que se repete em
4
Grande nó histórico, hoje a turca Antakya, no sul ante Chipre, quase em Síria. Fundada no 300 aC. por Seleuco
Nicátor, general de Alexandre, para capital do seu reino de Ásia Menor a Paquistã, toma nome de Antíoco I, que a
virou num dos centros económicos e culturais maiores do mundo helenístico. Conquistada por Roma no 64, foi a
terceira vila do Império, trás Roma e Alexandria. No séc. I alguns discípulos de Jesus fundam uma comunidade de
língua grega, os primeiros a chamar-se christianoi. Invadida dos persas (538) e dos árabes (636). Nas Cruzadas foi
centro do reino latino, concessionado aos genoveses. Protetorado francês de Alexandreta de 1920 a 1939, é turca
desde esse ano.
Hispânia e faz parte dum grã interrogante ainda não atacado. Sem mais desenvolvimento,
adiantarei que, a meu ver, seria um artigo ou demonstrativo debilitado do céltico hispano.
Sempre qualificado de “ibérico”, o I “móvel” ficou sumido num saco de incógnitas. Deve
somar-se aí uma série de “semitismos” importantes como Hispānia e Hispalis. Brevemente,
será um demonstrativo-artigo IS animado, I neutro, às vezes com aspiração ou ataque suave.
Eis os pares como ibex, ibicis (*I-BẸK-) e bezerro (*BẸK-ẸRRO-), Itucci (*I-TUKKẸ “o
que é crasso, rico”) e Τύκκε, Igabrum (*I-GABRON “o que é caprino”) “Cabra” e o célt.
*GABROS, notam o elemento “móvel” ter flexão de género em contextos indo-europeus.
A origem última é obscura. Contudo, cabe apontar já que o espírito suave inicial faria
parte da fonologia céltica: num anel áureo achado nas Ilhas Sies lê-se um HE APRV que
talvez o indique. Proponho o célt. neutro *(H)Ẹ-GNĀTIO- “aquilo que tem nascido”, que
toma secundariamente o -S do masculino. Gaulês cisalpino, hespérico ou gálata, ainda é
difícil sabê-lo. Há outro nome similar, de cunho inequivocamente peninsular, Idatius, cuja
estrutura aponta para um *I-DĀTIOS “o posto, oferecido”, que cabe glosar “o concedido
pela graça divina”, da raiz indo-europeia *dhē-/dhō-/dhĕ- “pôr”.
LUGRIS
O amigo Monte-Rosso Devesa, galego e rioplatense charrua, é quem mais sabe de nomes
de família e linhagens galegos. Numa brilhante palestra que deu na última viagem a Buenos
Aires, de passagem opinou do sobrenome Lugris (v. g. do escritor de Sada Manuel Lugris
Freire) ser de origem “britânica”, céltica insular. Sem vagar para falá-lo então, por correio
pedi-lhe precisões. Informou-me ser dantes só da Corunha, das paróquias de Serantes e
Maianca, concelho de Oleiros. Nos livros da igreja (ab anno 1614), o primeiro é de 1647,
um Domingos de Logris que casa em Serantes, sem dizer os pais. Também aí, oito anos
depois, em 1655, casa Antónia de Logris, filha de Gonçalo e Maria Gómez. Tal Gonçalo
(pelo nome nado na Galiza), que nasceria entre 1600 e 1610, é o mais antigo Lugris-Logris
conhecido. Se os pais vieram de fora, seria uma geração antes ao menos. Monte-Rosso crê
virem dum marujo de Francis Drake, desertado em maio de 1589, no ataque à Corunha. É
de prova obscura, mas possível. Lembre-se o ambiente religioso; a não ser católico a custo
recebera-o a população local. Monte-Rosso acrescenta as grafias variar: Logris, Lugriys e
o atual Lugris, no que o U é metafonia do I tónico. Numa pesquisa rápida chega a vinculálo com Loughrea, ortografia inglesa duma vila irlandesa do sul de Connacht.
Por que o -S final?
Os mais dos nossos sobrenomes oxítonos em -I tónico acabam em sibilante, -S ou -Z (que
soam igual): Moniz, Estraviz-Estravis, Eiris, Solis, Roiz, e tantos de toponímia germânica
em -riz (Esmoriz, Baldariz, Escariz, Gomariz, Romariz, Sabariz, etc.). Alguns há em -il
(Adail, Gil e germânicos em -mil) ou -im (Bogarim, Landim, Machim, Lugim, Padim,
Marim...). Em final absoluto, galegos autóctones em -I não há.
*Logri tomaria o -S geral dos topónimos mais frequentes: Logris, depois Lugris. Tomou
-L ou -M também? É, no primeiro caso, segundo as leis de Grammont, *Logril dissimila
em *Logrim, convergindo para o *Logrim original. Quer *Logril > Logrim, quer *Logrim
original, cabe supor um atual Lugrim. No guia telefónico de Buenos Aires achei três Lugrin
(sic). Um deles informou-me o pai ser da Corunha.
Loch Rígh
Monte-Rosso vê aí a vila Loughrea de Galway (Gaillimh), Connacht, o que é verossímil.
Loughrea duplica um topónimo maior anglicizado doutro jeito, Lough Ree, lago sito entre
os condados de Roscommon (Ros Comáin), Longford (Longfort) e Westmeath (An Iarmhí),
que é raia de Connacht e Leinster. Como conciliá-lo? A vila reflete o lago e dá nome às
famílias. Os dous são o gaélico Loch Rígh “Lago do Rei”, do céltico *LOKU RĪGOS,
comparável aos galegos Castro-de-Rei, Outeiro-de-Rei ou Palas-de-Rei.
Existe o sobrenome na Irlanda? Nos guias telefónicos da Argentina achei seis Loughry,
forma dominante na Irlanda sobre as grafias Loughery, Loughrey e outras. Apesar da localização em Galway, no séc. XIX o sobrenome vê-se radicado claramente no Ulster, sobretudo em Donegal e Derry.
Loch Rígh soa [loxrī']. A entrar na Galiza em tempo sem gheada (apesar das fantasias
de Zamora Vicente), passaria a ser pronunciado com fonemas locais próximos. Em vez da
fricativa velar surda gaélica, pronunciariam [loγri'] com fricativa velar sonora, talvez bem
posterior, quase uvular. A chegada é difícil datá-la. Loch Rígh é gaélico antigo, médio e
moderno. De qualquer jeito, a grafia Logris algo precisa. A forte metafonia galega, sempre
operante, deixa-nos arredor do séc. XVI.
Quanta história esquecida!
Maravilha é que sumida torne a surgir. Quando chegou o irlandês Loch-Rígh? O ano 1589
recua mais de 50 anos o formigar dos irlandeses perseguidos vindos na busca de reforços,
sempre na esperança de expulsar os invasores. O tempo apagou-lhe as memórias, como a
de tantos de momento vencidos5. Tantos que bem valeria estudá-los: (grafias inglesas)
O'Brien, O'Callaghan ou Callahan, O'Connor, O'Donoju, os O'Neill de Maiorca, O'Reilly e
um longo et cetera. Chegarem por Galiza cabe explicá-lo pela situação fronteira, mas isso
não computa a tradição –certa ou não, aqui pouco dá– pela qual os goidélicos (“os Filhos
de Míl[id]”) vinham da Galiza (o país da Torre de Bregon, isto é, da Corunha-Brigantium).
Era como retornar à pátria mãe. Ridicularizada depois, abrigada só dos galegos da Cova
Céltica, hoje a tradição reverdece para meu assombro nos historiadores insulares.
MEIRELES
Perguntaram-me a origem do sobrenome da grande poetisa brasileira, e lamentei o vazio
na informação disponível. À primeira vista suponho-o sobrenome de origem toponímica.
Bem é certo que o topónimo não o pudemos situar; muitos pequenos lugares foram desaparecendo no decurso dos séculos.
Ainda bem, temos os recursos da gramática histórica, que nos levam para um étimo
reconstruído, que será *maiōrellīs, ablativo-locativo plural (caso frequentíssimo na toponímia baixo-latina) de *maiōrellī, por sua vez diminutivo acarinhante de maiōres “antepassados; os antigos”. Logo esse *maiōrellīs significaria “nos antigos”. Presta verossimilhança à interpretação a existência de abundantes paralelos semânticos.
5
Não apagou de todo as dos O´Donnell (Ó Domhnaill) de Buenos Aires, que muitos creem vindos diretamente de
Erim. O proteico Pacho O'Donnell (psicanalista, político, historiador) tem repetido que seus avós imediatos foram
galegos da Corunha, donde vieram antes do início do séc. XIX. Em 1806 um deles integrou o Terço de Galegos que
lutou nas invasões inglesas .
ORDONHO
Nome de quatro reis do primeiro reino da reconquista: Ordonho I, de 850 a 866; Ordonho
II, de 914 a 924; Ordonho III, de 951 a 956; e Ordonho IV, de 958 a 960. Hoje desusado
como nome de pia, subsiste só o patronímico como sobrenome ou nome de família.
Apesar da opinião que o tira do lat. Fortunius através da passagem pelo basco (Tibón),
é de clara e próxima origem céltica. Coromines já o tirava do célt. *ORDOS “martelo;
polegar” (DCE CeH I, 365. 13-15). O nome prova a subsistência do céltico para fins do
primeiro milénio cristão. Com efeito, *ORDONIOS era “o do Martelo (ou Polegar)”.
Martelo e polegar eram e são símbolos da força, como testemunham os nomes de Charles
Martel e Hernando del Pulgar. *ORDONIOS é também o étimo do gaélico antigo oirdne
“polegada”.
ORRACA
OU O FINAL DO CÉLTICO HESPÉRICO
1. Intriga a origem do sonoro nome, tamanho no medievo e depois subitamente banido;
trevas antes, trevas depois. Pouco dá o castelhano urraca “pega”, que para Coromines não
é outro que o antropónimo dado ao pássaro, que em toda a parte leva nome de mulher pelo
arremedo duma voz gárrula que se quer feminina. Surge no séc. XVI, quando já o nome de
mulher saíra do uso. Coromines, trás rechaçar hipóteses caducas, detém a pesquisa julgando-o pré-romano, “quiçá ibérico e mesmo acaso aparentado com o basco”. Qual costumava,
Coromines, a não chegar a termo certo, deixava campo ordenado, com dados suficientes
para acabar a busca. Tentá-la-emos, mas antes fixemos uns factos pertinentes, não computados, talvez úteis na hora de etimologizar.
2. Dados históricos
a) O nome aparece no séc. IX, abunda até o XIII e depois languidece até fins do séc. XIV.
b) Nos três primeiros séculos, as Orracas (e Urracas castelhanas) das crónicas são todas
mulheres de reis. Só após o séc. XIII, começam a levá-lo mulheres nem esposas de reis
nem reinantes.
c) Quanto ao espaço, dá-se em todo o Norte, de Galiza a Catalunha. Devo contestar respeitosa e firmemente o asserto do DCECeH de julgar raro o nome em galego-português e
ser empréstimo castelhano. Por caso, leva-o a filha de D. Afonso I de Portugal, casada
com Fernando II de Leão.
O segundo ponto é fulcral. A primeira que vejo, na Crónica Galega, é a mulher de Ramiro
I de Leão (rei de 842 a 850). Em Navarra chama-se assim a mulher de Garcia Éneguez (rei
de 851 a 870), morta duma lançada moura que lhe provoca o parto. No X destaca uma
filha de Sancho I de Navarra. Das quatro filhas que lhe nasceram, Sancha, Orraca, Maria e
Velasquita, só a segunda casa com rei, de Leão. Caso curioso é o das Orracas sucessivas
de D. Fernando II de Leão, uma a ementada filha do rei de Portugal, a outra Orraca López,
filha de Lopo senhor de Haro.
Notável é a rainha de Aragão entre 1137 e 1162. Ao nascer “disserom Dona Peroniela
(Petronila). Mas mudarom-lhe depois o nome et chamarom-lhe Dona Orraca. Et esta Dona
Peroniela foi casada com o conde Dom Reimom de Barcelona.” (Crónica Galega, pág. 291,
53). Por que lhe muda o nome? Nos IX, X e XI todas são esposas de reis; no XII duas já
reinam por direito próprio: Petronila-Orraca de Aragão e Orraca de Castela e Leão, rainha
per se de 1109 a 1126.
3. As variantes formais dos documentos
Orraca é nossa forma mais comum6. O O- átono é irrelevante como todos os átonos (sobretudo o final absoluto, que não segue o vocalismo lat.-vulg. “napolitano” e sempre soou U).
Diz mais o texto castelhano do Norte (Cantábria?) de 1285, que Coromines topa em M.
Pidal (Documentos Lingüísticos de España, 67. 18, 23, 24). Três vezes lê-se Vurraca e uma
vez Burraca. Veio-me daí a ocorrência que ainda me pasma e vou expor. A grafia nota uma
inicial semiconsoante, um uau em transe de fechar e consonantizar. Uau na península e no
séc. XIII soa insólito. Pode-se ignorá-lo, despachá-lo com um pretexto qualquer, ou cabe
seguir a indagar por ver que aguarda ao cabo do túnel.
4. Buscar o étimo, reconstruir o monstro
As grafias O-, U-, Vu- e Bu- convergem no fonema uau. Vurraca –a letra deve estudar-se
in situ– mostra a letra W, inventada dos anglo-saxões para o uau e rapidamente espalhada
alhures. Um copista insular é possível, mas não necessário. Bu- também representa uau,
limítrofe com a consoante7.
Falar de uau é ousado. Supõe o grupo WR-, não românico, doutras línguas indo-europeias: é inglês e foi germânico. E céltico; no insular subsistiu até perto do séc. VII: em
gaélico fez-se fr-, no britónico gwr-. Aqui não há WR-, há WRR-, de R símil ao inicial e
de evolução paralela: o substrato céltico reforçou o R- hispânico e gascão8. Leio Wrraca,
que noto WRaka. Não é palavra românica, bem que sumida em meio bilíngue. O resto é
fácil: -C- intervocálico vem de -CC-; reforço do R-/WR- e simplificação de geminadas são
solidários na lenição. Logo Orraca-Urraca-Vurraca-*WRaka nota ao étimo *WRAKKA.
Quadra buscar no pré-romano ou no germânico. Neste nada há. Os casos de lenição, paralelos aos substráticos dos romanços, induzem a busca no céltico.
5. *WRAKKĀ
Há vozes célticas deste feitio? Existem sim, e não posso crer não se notarem antes. O ant.
gaélico tinha fracc “mulher, esposa”, hoje só no escocês frag “id.”. No britónico há galês
gwrach “bruxa”, córn. ant. gruah, mod. gwrah, bret. méd. groach, mod. groac’h (Léon
grac’h) “velha”. Todas do étimo céltico a encabeçar o parágrafo: *WRAKKĀ “esposa”,
de câmbios semânticos fáceis de ver: “esposa”, sentido jurídico, deliu-se em “mulher”, que
resvalou erraticamente. A forma escocesa é “mulher, esposa”, cf. Thurneysen de conotações positivas: “a kind wife”.
Donde *WRAKKĀ? Era hipocorístico (var. carinhosa) de *WRAKŪ, WRAKONOS f.
“esposa”, voz só jurídica, donde galês gwraig (< *wrakī < *wrakū), córn. ant. grueg, greg,
6
Uma Orracca de duplo C (Coimbra 1094) só nota a erudição do copista, que sabia a equação latina da oclusiva
velar surda intervocálica do vulgar.
7
Ver Bráulio em 36, § 15, n. 17. Em textos do reino de Leão (a Galécia medieval) o uau interno grafa-se -BO-.
M. Pidal chama de anti-hiático o que decerto é uau implossivo: 944 Brabolio, patroním. Braboliz, 1097 Brabolio.
8
Jungemann, La Teoría del Sustrato y los dialectos hispano-romances y gascones, Madrid, 1955, p. 258.
méd. gurek, mod. gwrēg, bret. méd. gruec, mod. groek, grouek, Léon grek. A geração do
hipocorístico é usual: redução, geminação expressiva9, atrair do morfema -Ā, típico do
feminino. Para além não há étimo certo, mas Pedersen compara-o com lat. virgō, virginis,
próximo, não igual, que o Ernout-Meillet declara de origem ignota. Atina Pedersen: célt.
*WRAKŪ e lat. virgō não só têm feitios próximos, também semânticas contíguas. Noção
original é “esposa, desposada”, de puro conteúdo jurídico. O latim só focou o lapso entre o
contrato de esponsais e início da coabitação o céltico usou dele todo o tempo de vigor do
contrato matrimonial. Alucinação? Como tantas coincidências? Se chegamos aqui, sigamos.
A sequência seria: célt. comum *WRAKŪ, WRAKONOS > hipocorístico *WRAKKĀ >
célt. hespérico *wRaka, já lenizado, > romances orraca e urraca.
6. Corolários
a) Cada vez vemos melhor quão pouco sabemos do meio cultural e linguístico de fins do
primeiro milénio. Amiúde saltam dados pasmosos e seguimos a dizer que “o rei vai
vestido”.
b) Os montanheses iletrados da cornija cantábrica ainda falavam céltico. Só ficaram rastos
toponímicos (só escreviam latim); o não latino era invisível, mesmos os romances. Das
Orracas de reis surge a língua estar viva nos sécs. IX e X.
c) O Reino de Leão (sequela da Gallaecia para cristãos e muçulmanos) era âmbito rude e
iletrado. Os montanheses que só falavam céltico –arcaico e próximo do gaélico– nessa
língua residual chamavam de Esposa por excelência à do rei. Até o séc. XII foi só de
rainhas por casamento. Logo surgem desse nome duas rainhas per se. Petronila-Orraca é
dúbia: ementam a mudança de nome e a seguir o matrimónio com o conde de Barcelona.
A castelhana, rainha de 1109 a 1126, a meu ver já demonstraria opacidade: em céltico
chamariam-na *RĪGANĪ, não *WRAKKĀ.
d) Não se vê diferença entre cântabro e calaico: a voz é compartida pela cornija cantábrica10.
e) Ser *WRAKKĀ de Navarra e Aragão nota o céltico ainda ser língua franca popular,
misturada de romance mas com estruturas vivas, só em parte substituída na função pelo
latim, língua franca culta. Coincide o facto de Pompaelo e Barcino não dar os regulares
*Pamplon e *Barcelon, dos acusativos latinos Pompaelonem e Barcinonem, senão
Pamplona e Barcelona, dos acusativos célts. *POMPAILONAN e *BARKINONAN.
Assim é mais clara a etimologia barscunes-bascunes (Tovar). Isolados há muito, os bascos protegiam a identidade usando estruturalmente duas línguas, a própria e íntima, e a
externa ou franca. A franca primeiro foi o céltico –mais tempo do suposto–, depois superpondo-se latim, agora francês e castelhano. Esse uso não seria só dos bascos, também dos iberos.
9
10
Redução e geminação como a de Eporedorix a Eppos.
Nem entre calaico e lusitano, cf. Promontorium Artabrum (Plínio IV 113), Cabo da Roca, norte da foz do Tejo.
OSÓRIO
E O PATRONÍMICO OSORES
Nomes obscuros de ortografia incerta. Na Galiza abunda com SS. Quer dizer, no estado
espanhol correm Ossorio-Osorio (tom no O segundo) e o patronímico Ozores. Em Portugal
grafam Osório (também parece correr Osorio); o patronímico é Osores.
Pelo SS antes propusera o étimo ursorius “caçador de ursos”, que agora descreio. Foi o
patronímico português que me ofereceu a hipótese que julgo certa. Em Ozores, de tradição
castelhana, produzira-se metátese da antiga africada sonora final: Osórez > Ozores. Ser de
tradição castelhana não nega a origem galega do nome. Ana Ozores, a protagonista do
romance A Regenta, é asturiana de apelido galego.
Para dizê-lo pronto, a meu ver é voz semierudita tirada do “latim popular leonês” vivo
até fins do século XI (Leão era a Galécia romana). Nessa luz o étimo seria claro: o adjetivo
latino uxorius, a, um, cuja semântica é preciso desenvolver.
O Ernout-Meillet diz uxor ser “femme légitime prise par le mari... terme juridique e
familier”, cujo par nobre, coniux, não se usava em direito (“casar” dizia-se uxorem ducere).
Ora, se lembramos que matrimonium não era o que hoje matrimónio para nós, “sociedade
conjugal”, mas exatamente “filiação legítima”, concluiremos que o adjetivo uxoriu- “relativo à esposa”, na mente latina funcionava principalmente com o harmónico “da esposa
legítima”. Logo OSÓRIO não era outro que “nascido legitimamente, legítimo”.
SÁ e SAVEDRA
O apelativo sá
À raiz sē- “semear” unia o P. Sarmento sá “sementeira; geração, ninhada”, palavra quase de
todo desusada, mas ainda viva na toponímia e onomástica. Baseando-se nos usos de PonteVedra, o grã beneditino tirava-o do lat. (sata, de serō) “semeada; nascida”, o que era correto
só do ponto de vista semântico.
Apesar de escassa, sá ainda subsiste e registaram-na E. R. Gonçález e Leandro Carré.
Aquele define “sementeira; sazão, tempo de fazer as sementeiras”; e Carré “sazão, tempo da
sementeira”. Pudera supor-se eco de Sarmento, mas o apêndice ao dicionário de E. R. Gonçález agrega “geração nova. Nova ninhada de passarinhos ou doutros animalinhos numa
mesma temporada; fruto novo”, uso de Cangas de Morrazo, segundo Bernardino Granha.
Etimologia de sá
Ora, sata, além da semântica oportuna, não podia dar sá. O P. Sarmento muito fez ao fundar
a romanística. Sata só podia dar *sata. Prevaleceu logo a tese que aí via um germanismo.
Verossímil, sabia-se que sala viera pelo francês do germânico sal que mudou género e adiu
-a. Mas é possível que a voz já estivesse entre nós antes da queda dos N e L intervocálicos,
cf. topónimo Samil, de Saamir, e este de Salamiri, aparente genitivo latino de nome germânico de possessor (outra possibilidade ver-se-á alhures).
Quando se conheceu, tarde, a opinião de Sarmento, mais fácil foi buscar um compromisso, tentando acomodar os inoportunos usos subsistentes. Piel, generoso com Sarmento, aí
rendeu preito à tese germânica e torturou a semântica: o primeiro sala suevo ou gótico (mudado para feminino e com acréscimo de -a, como o segundo sala vindo séculos depois da
França!) passaria de “edifício com uma grande sala de recepção” a “parte do castelo habitada dos servos” (inversão do sentido), e depois a “parte do estábulo destinada aos animais
recém-nascidos” e daí para “ninhada”. De “ninhada, geração” viria “sementeira”, o sentido
mais testemunhado. Não cabe reprochar-lho ao Piel, nem a Coromines, que tanto fizeram
pela nossa cultura. Problema tão obscuro, que atingia à história galego-portuguesa, devia ser
melhor atendido por nós mesmos, que fomos os negligentes. Se construção forçada, ponhamo-nos já no caminho de revisar os dados, partindo da hipótese semântica mais provável,
reconstruindo um étimo físico e buscando a língua que admita a atribuição. Talvez não se
chegue ao definitivo, mas abriremos um caminho seguro e varrido de fantasias vãs.
Sá vem do antigo saa. Qual foi a consoante caída no hiato? Sem testemunhos nasais,
ficam as consoantes D e L. Cabe supor *SADA ou *SALA. Na primeira sílaba teremos uma
variante da raiz referida e na segunda o sufixo, que é a questão. Se o sufixo foi -DA, cabe
pensar no germ. *sēđa- “semente” (ie. *sēi-to-), improvável pelo timbre da primeira vogal.
Mais provável é o célt. *SALĀ, do ie. *sĕ-lo-, com o sufixo de SĪLON (de *sēilo-). Não há
rastos insulares: o galês had “semente” vem de *SATĀ ou *SATO-, e este do ie. *sĕ-to-.
Sobrenomes vários
As outras línguas ibéricas roboram com segurança a forma antiga: cast. Salas de los Infantes, Salanueva; cat. Salanova, Salavedra, Salavert (é mais provável referir-se à vegetação
do que à decoração); em basco Salaberri, Salazar (Salazahar). Aqui se vê o celtismo subsistir em basco: sala “devesa” (López Mendizábal). Em toda a parte vê-se duplo valor,
“sementeira, leira destinada a” e “colheita” > “geração”. O último prevalece em Saavedra
e os pares Salavedra e Salazar. Logo é certo o sá apelativo e os Sá, Sás, Saa, Saas (Zas),
Saavedra, etc. toponímicos e antroponímicos serem vozes que valem, valeram, “sementeira, sazão; geração”, cujo étimo céltico é a só resposta congruente.
SARAIVA
Saraiva é um dos grandes mistérios da linguística histórica galego-portuguesa. Estudou-o
o P. Sarmiento, mas depois não logrou atenção até Coromines, que emitiu várias hipóteses.
Na hesitação pendeu para uma etimologia envolvendo a raiz indo-europeia *sneigwh- “neve;
nevar”, que lhe impõe uma violenta contorção no radical, não aceitável sem precisas razões.
Cumpre ater-se aos dados históricos. No domínio coexistiram e coexistem saraiva e
sarávia (grafado sarabia). Cabe acrescentar que nas primeiras documentações, do séc. XIV,
já aparecem as duas formas. A metátese do iode sem alterar o A tónico nota ter-se dado em
data não muito recuada, em palavra semierudita (vigairo) ou trás encontro vocálico surgido
da queda de fonema intervocálico. Ao menos da perspetiva da gramática histórica, o protótipo seria *SARÁWĒNĀ ou *SERÁWĒNĀ. Nestas condições, cumpre transitar duas vias,
a busca da raiz apta e a congruência com o conteúdo semântico.
A raiz envolvida mais provável é *ser- “fluir” (Pokorny 909-910), que não tem dificuldade. Não é obrigado que o fluxo seja líquido. Daí pareceria vir a dúvida de Coromines. A
tradicional definição portuguesa, “chuva de pedra”, com o concurso necessário da lei de
gravidade, torna perfeitamente congruente aquele *SARÁWĒNĀ ou *SERÁWĒNĀ, adj.
céltico em -ĒNO- sobre um nome substantivo *SARAWO- que talvez já significasse o
mesmo, por um processo similar ao de saraiva > saraivada.
V A RE L A
É um sobrenome galego de grã difusão moderna na península e América. Está concentrado
mormente na província da Corunha. Os genealogistas falam nos arredores de Santiago como
solar do primeiro documentado. Também é frequente em Lugo e algo menos em Astúrias.
Na reconquista espalhou-se no sul peninsular, com maior abundância no ocidente.
Parece um diminutivo de vara, mas que como tal apelativo não o temos registado. Há
uma explicação simples das duas circunstâncias?
Do perspetiva linguística, é decerto diminutivo de vara, aliás por alguma razão desaparecido em tal função. Se nos pomos a estudar as causas que puderam determinar essas mudanças semânticas, pendemos a supor aí a presença da aceção vara “símbolo de autoridade”.
O homem galego-português, e a tradição linguística, muito cisma com o tópico do poder. A
meu ver aqui palpita a irónica contradição entre o positivo vara e a desinência diminutiva.
Prova e testemunho eloquente disso é o dizer português, hoje politicamente incorreto:
Se é varão, manda ele e ela não;
se é VARELA, ora manda ele, ora manda ela;
se é varunca, manda ela e ele nunca.
Certo que aí parece jogar-se com a palavra varão, mas a meu ver é uma mera paretimologia
inevitavelmente suscitada pela proximidade fónica. Existiria a metonímia vara “autoridade
(municipal)” e junto dela também *varela “autoridade subordinada”, talvez “vereador”. Se
assim, a ironia seria produto secundário da contradição inserida pela desinência diminutiva.
VASCO e VASQUES
Vasco e o patronímico Vasques eram Vaasco e Vaasquez no medievo. Entre os A elidarase um L, como nota o castelhano Velázquez (o pintor sevilhano era filho de português, decerto um Vasques). Tirando a desinência de patronímicos (que agora não estudamos), há
um tema pré-romano, cuja forma mais antiga foi BELAISKO-. O ditongo desta forma foi
geral, mas prontamente reduziu-se: BELASKO-.
Asseverou-se muito tempo que o nome era de origem basca, tirado do adj. beltz “negro”.
A hipótese aparece hoje desacreditada. O contexto mais antigo é céltico, no nome da vila
celtibérica chamada CONTREBIA BELAISCA. A celticidade certa do primeiro nome
(CONTREBIA “conjunto de casas”) faz verossímil a do segundo, aliás decerto indo-europeu segundo a desinência.
Pois que no céltico tinha inúmeros sinónimos para o conceito “raia, fronteira, limite”,
cabe ver aí um derivado de *BELĪ, genitivo BELIĀS “bordo, rebordo; lábio”, étimo do
gaélico antigo bil, genitivo bile “id.”. As bases da conjetura são fracas por bil não ter etimologia indo-europeia, mas brinda-lhe verossimilhança CONTREBIA ter estado situada
certamente na borda leste da Celtibéria, perto do Ebro, raia nessa altura dos célticos com
os ibéricos.
Em suma, Vasques vem de Vasco, e este do medieval Vaasco, resultado românico do
adjetivo pré-romano, decerto céltico, BELAISKO-, cujo masculino BELAISKOS cabe
arriscar que significaria “o homem da fronteira”. As conotações guerreiras da denominação
são cabalmente coerentes com o que sabemos, através da epopeia conservada pelos irlandeses, do ethos céltico.

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