mitologia

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mitologia
MITOLOGIA
e RELIGIÃO
Célticas na Galiza
a deusa das sombras
O rio Escadevas, Guitiriz e os Curveiros
a viagem ao ocaso
Baronha, Nebra, Noal, Porto de Ozom,
Ró e Róis fazem conjunto
as batalhas míticas
Avegondo, Mavegondo, Culhergondo,
Betanços, Guísamo e Bergondo
A DEUSA DAS SOMBRAS
Um dos maiores abalos da minha vida teve-a ao analisar o nome do rio que se abeira da vila
de Guitiriz1, o Escadevas. Ao tentar reconstruir o étimo, dei com duas vias convergentes:
a) *(RĒNOS, SRUTUS) SKĀTÓ-DĒWĀS “(rio) da Deusa-das-Sombras”, um composto
bimembre de *SKĀTON (neut. sg.) “sombra; reflexo; fantasma”2 e DĒWĀ em genit.; ou
b) *(RĒNOS, SRUTUS) SKĀTON DĒWĀS, com SKĀTON genitivo do plural, o que é
quase igual mas construído doutro jeito. A Deusa das Sombras é claramente a Senhora do
Mundo Inferior, *MORIRĪGANĪ.
Todo o partido de Vilalva, nomeadamente Guitiriz, apresenta rastos de devoção à deusa
céltica como Senhora do Mundo Inferior. Limite provincial é a Serra da Loba, onde nasce
o rio Lavrada3. Lupa é o nome latino da deusa dos infernos. Do extremo sul do concelho é
Negradas: *Nigrātās metaforicamente “enlutadas”. Descreveram-me o Guitiriz balneário,
que não vi, como lugar paradisíaco com a só tacha do cheiro a enxofre, tradicionalmente
vinculado ao Mundo Inferior4.
Não acaba aí. Nos Curveiros, Trás-Parga, perto de Guitiriz, em 1910 achou-se uma
lapide dedicada a COVENTENA5, que Monteagudo supôs oferecida por um soldado galeco
que traria a devoção desde Britânia, onde, perto do Vallum Hadriani, há vários epígrafes a
KOWENTĒNĀ6. Esta pode analisar-se: o prefixo KO(M)-7, a raiz ie. *wen- “desejo;
1
Guitiriz é nome de possessor, do híbrido germano-latino *Wītirīcī “do Chefe Branco”. A colonização germânica
pode notar anterior cariz agreste. Neste rasgo insiste Ceçar: virá do híbr. celt.-lat. *cētiāriī “os do souto”.
2
Gaél. scáth n., galês mod. ysgawd, córn. ant. scod, br. ant. scot, mod. skeud. O céltico tinha Ā longo na raiz, do
ie. Ō (gr. σκότος “escuridão”, gót. skadus, ingl. shadow). Quadra falar no étimo de Escócia, declarado ignoto:
O gaél. ant. scot “irlandês”, pl. scuit, dat. pl. scottaib, é do baixo-lat. scottus ou scotus (circa 400). De scottus são
ingl. scot [skòt], ant. alto alem. scotto (al. Schotte), neerl. méd. Schotte, mod. Schot. E o cast. escueto e o gal.-port.
escoteiro (< *scottariu-), cf. Coromines (DCECeH, escueto). Em latim não há étimo. Antes e depois do popular
scottus, a forma regular nos textos era scōtus, donde fr. ant. escot e italiano scoto. Por que tal alternância? Talvez
algo na língua original topava dificuldades ao verter-se ao baixo-latim. O latim falado do séc. I d.C. não distinguia
vogais longas de breves e substituía a oposição com o timbre fechado das vogais que foram longas, e o aberto das
breves. Scottus e scōtus seriam dous intentos por refletir um O longo aberto não latino. Scōtus tinha a dificuldade
do O longo latino fechado. Scottus evitava o empeço pelo O breve latino, de timbre aberto, e T geminado alongava
a sílaba, atingindo assim equivalência acústica com a vogal longa que vejo no original. Com efeito, vejo o étimo
*skōtu- com Ō aberto. Como explicá-lo? Donde virá? Scottus-scōtus no primeiro milénio designava os irlandeses;
só depois os caledónios, trás a vinda dos irlandeses fundadores do reino de Dál Riata, que trouxeram a língua gaélica
arredor do ano 500. O vocábulo Scottus-scōtus nasceria na Britânia bilingue celto-latina, que recebia as invasões dos
irlandeses por toda a costa leste de muito atrás. Breve, nasceria no céltico britânico e daí passaria ao latim local, deste
ao latim continental e às línguas germânicas. Cabe datar os empréstimos entre o séc. I d.C. e arredores do ano 400,
tempo dos primeiros documentos. Justo desde o séc. I, o britano virara Ā em Ō aberto. Há voz céltica desse perfil?
Justo *SKŌTO- era a forma britana antiga do *SKĀTON, étimo das neocélticas acima referidas. Além de “sombra”,
todas são metaforicamente “fantasma”. Os piratas pagãos da Irlanda, hirsutos irmãos dos britanos semi-romanizados,
já cristãos, eram por estes qualificados de “sombras, fantasmas” pelo arrepiante das suas acometidas ou talvez pela
tintura de guerra que ainda usavam, tal qual eles mesmos anos atrás.
3
O rio Lavrada não é de lavrar. Será variante do *LABRONĀ “divina Faladora” de várias Célticas, alterada pela
paretimologia de laborare; ou talvez do particípio *LABRATIĀ “Falada” (sentido ativo).
4
Atribui-se à memoria bíblica do vale de Ge-Hinnom, mas será simbolismo universal antigo, fundado no cheiro.
O teónimo lê-se COnVETENE. O primeiro N foi inserto ao declinar o céltico por paretimologia de conventus. Tem
-E por -AI de dat. sg. Ver meu Dos três Lugoves Arquienos..., em Grial, Vigo, nº 59, e Agália, nº 31, 1992, § 9. 2.
5
6
Na da fonte de Carrowburgh, no muro de Hadriano, é COVVENTINA, primícias da grafia VV para uau (séc. II ou
III d.C.). O relevo figura a deusa deitada numa folha de lírio-d’água a flutuar (Museu de Newcastle upon Tyne).
desejar” e desinência -ĒNĀ. Logo cabe traduzir “a da reunião amorosa”, mas para assegurá-lo e saber do que se trata cumpre pôr o contexto mítico.
O ano novo céltico iniciava no 1º de SAMONIS (“reunião”), próximo do nosso 1º de
novembro. Sabido é sobreviver ecos em Todos os Santos (e Defuntos) e em Hallowe’en.
SAMONIS deu o gaél. ant. samuin, samain, hoje samhain [sãuň]. Os celtas, e outros povos,
começavam os ciclos pela metade escura: a dia começava na queda do sol e o ano no início
do inverno (boreal)8.
O mês (e festival) dizia-se SAMONIS “reunião”. Que reunião? O encontro amoroso,
na beira de um rio no Mundo Inferior, da deusa única céltica, no aspecto de Senhora do
Mundo Inferior e da Guerra (*MORIRĪGANĪ “Rainha de espetros”), com Teutatis, Deus da
tribo, Pai dos homens e Senhor do Mundo Inferior, nomes antigos dos irlandeses Morrigain
e Dagda, gauleses Sucellos e Herecura, e hispânicos Endovellicos e Ataicina. A amorosa
cita tinha a sequela importante de a deusa subministrar depois ao seu amante os segredos
para vencer na próxima batalha mítica.
Vê-se a congruência desta *SKĀTÓDĒWĀ KOWENTĒNĀ, a Deusa das Sombras e a
par a da Reunião Amorosa. A proximidade de Guitiriz e Trás-Parga também integram e
consolidam os dados. Entre si e com Negradas, com o cheiro a enxofre e com a Serra da
Loba. Não é ousado supor que os nossos avós pagãos projetavam no Escadevas a cena do
mítico conúbio.
Um arroio a nascer em Friol que vai ao Parga é o Lavandeira, um nome latino repetido
inúmeras vezes em pequenos regatos. Na Galiza o sentido parece ter-se apagado, mas em
todos os países que fizeram parte do mundo céltico dura, mais ou menos viva, a memória
folclórica duma sobrenatural figura feminina que de noite lava no rio, quer as roupas, quer
as armas, quer os corpos, dos que pronto vão morrer. Na Escócia dizem serem mulheres
falecidas de parto, condenadas a lavar por todo o tempo que deveram ter vivido, mas isto é
secundário, pois a lavandeira é eco de Morrigain. As Lavandeiras eram as Lâmias que os
rústicos “apellant in fluminibus”, segundo São Martinho de Dume. Em gaélico chamam
bean-nighe “mulher da lavagem” à que veem lavando nas correntes solitárias.
7
Prefixo, prevérbio e preposição de companhia. Em céltico o som nasal caía ante W. A raiz *wen- (cf. lat. venus,
venēnum [< *venes-nom “poção amorosa”]) é freq. em célt.: *WENIĀ “parentesco; família”, Venta teón. e topón.
britânico (Venta Icenorum Caister, Venta Silurum Caerwent, Venta Belgarum Winchester).
8
O festival caía no tempo já frio em que, feita a colheita, se preparava a próxima semeadura. Interessa recordar
que o festival se associava com o elemento ar. Água, fogo, terra e ar não eram só dos gregos pré-socráticos; eram
categorias de apreensão da realidade de todos os indo-europeus e doutras culturas. *AMBÍWOLKĀ (“circumpurificação”), pelo primeiro de fevereiro, era da água. *BELTONIOS (“[mês] da morte [do ano escuro]”) girava arredor
dos fogos de primavera, no 1º de maio. *LUGUNĀSTADĀ (“matrimónio de Lugus”) celebrava as bodas com a Terra
o 1º de agosto. SAMONIS tinha pois que ver com o ar, quer dizer, com os espíritos.
BARONHA, NEBRA, NOAL,
PORTO DE OZOM, RÓ e RÓIS
FAZEM UM CONJUNTO
Mela disse que depois do Tâmaris vinha o porto de Ebora. Antes de identificar é preciso
traduzir. ÉBORĀ“a do teixo” é frequente, de *EBOROS “teixo”, no latim grafado eburus.
O teixo, perenifólio e longevo, sacratíssimo no mundo céltico, ia associado aos ritos funerais
como símbolo de ressurreição9. No Norte faz o papel do cipreste mediterrâneo. Onde estava?
Em Nebra, cujo N- é resto da prep. EN). Não é porto; era um teixido sacro, cujo porto era o
Porto de Ozom (grafado Porto do Som). Ozom foi *OKIONON “Divino Limite”10.
É claro termos aqui a sagrada beira ocidental, onde criam as almas embarcar para seguir
o curso do sol, numa das maneiras de conceber o Além, aqui dominante por riba doutras a
causa da situação geográfica. Entre Nebra e Porto de Ozom situa-se Noal (< lat. *Nōnāle“de Nōna”). Nōna era uma das três Parcas11. Ebora era bosque sagrado de teixos, *Nonalis
seria lugar de sacrifícios e rituais, entanto que Porto de Ozom (*KAUNOS OKIONĪ “Porto
da Sagrada Beira ou Limite”) seria tanto embarcadoiro real quanto mítico.
No conjunto sobranceia Baronha, castro e aldeia iluminados pelo gaél. báire m. “rumo;
viagem; intuito” (< *BĀRIOS), por sua vez do ie. *bhōr-io-, grau longo da raiz *bher“levar”. Foi *BĀRIONIĀ “a do Divino Rumo [para o Além]”.
Lembre-se a ria de Noia receber as águas do Tambre (Tâmaris-Tâmara “Tenebrosa”), o
rio das negras águas dos mortos. Sempre cri esta noção ser consequência trivial do mito do
rio infranqueável, fronteira entre cosmos e caos. Contudo, aqui há um destaque especial, ao
receber sem menoscabo visível o beneplácito dos mesmos ribeirinhos. Deve ser que, além
de rio de fervenças e corredeiras, corria para leste como o sol e vinha desaguar no oceano
onde veneravam o Sol poente e supunham as almas embarcarem para o Além. Logo Tâmara
enlaça com ÉBORA-Nonalis-OKIONON-BARIONIA. E ainda com a aldeia de Ró (Noia) e
o concelho de Róis, no leste desta terra, os dous procedentes do célt. ROUDO- “vermelho”,
cor do sangue, que o foi do luto na pré-história até fins da antiguidade12.
9
Dito galês: o homem vive 81 anos, o cervo 243, o melro 729, a águia 2187, o salmão 6561, o teixo 19.683 o mundo
inteiro 59.049. A progressão geométrica explica as Eboras.
10
Ozom, Oza, Ozão, vêm de *OKIĀ “borda; ângulo, canto, esquina” (> hápax gaél. ochae “oco da axila”). Ochair
(< *OKRIS f.) há o valor básico “borda”;os pares grecolatinos são “outeiro, cume”; raiz *ak- “agudo, afiado”. Na
Galiza é “linde; beira”.
11
Démões latinos do nascimento Nona “dos nove meses”, Decuma “do décimo, primeiro mês da vida” e Morta
“distribuidora de bens”. Depois assimilaram-se às Moiras gregas. Nona tingiu-se do valor da hora nona, a de deitarse. Decuma de final de série e Morta de morte, com a que antes nada tinha.
12
Ró < *ROUDO-; Róis < *ROUDĪS (híbrido em ablativo-locativo latino; em céltico *ROUDOBO). Paradoxalmente,
significava vida na morte (ressurreição), entre outros valores. No mesolítico era usual tingir os defuntos de vermelho,
e mais no neolítico. Depois substituiu-se a pintura por panos. O cadáver de Heitor fora envolto em túnicas purpúreas.
As romanas em sinal de dó punham na cabeça a rica, um pano vermelho. Esquecera-se que tingir de vermelho o
rosto do triumphator era num princípio ritual fúnebre destinado a deter os danos dos espíritos dos inimigos mortos
no combate. Ainda hoje se põe panos vermelhos na missa de defuntos por um pontífice.
AS BATALHAS MÍTICAS
AVEGONDO, MAVEGONDO, CULHERGONDO,
BETANÇOS, GUÍSAMO e BERGONDO
São topónimos a estudar juntos e nessa ordem, por razões semânticas, como se veremos.
Muito tempo me alucinaram, sem poder acreditar o que percebia.
Pondo-nos no caminho que desce do Meijão (Mesom) do Vento a Betanços, há um lugar
de nome enigmático, Avegondo, cujo étimo direi sem delonga: faz parte de uma estrutura
que se explica só: célt. *AD-WEGÓNITON “para embaixo da Batalha ou Matança”. Eis a
preposição AD, próxima da latina; a preposição e prefixo WE “sub”, variante hispana de
WO (< ie. *upo); e GONITON, deverbal do tema GONI- “ferir, abater; combater, matar”,
bem documentado na Galiza. É da raiz *gwhen- “combater; abater”, cf. germânico *gunþiō
“combate”, gr. φόνος “matança; homicídio” ou lat. (dē)fendō, (of)fendō. Em gaél. há guin
(< *GONI) “ferida, abatimento” substantivo e nome verbal de gonim “eu firo, abato”.
Quatro quilómetros adiante chega-se a Mavegondo. Este vem de *MA-WEGÓNITON.
Em gaélico, ma é conjunção condicional. Em geral as condicionais soem vir de advérbios de
afirmação: lat. sīc > sī, gr. εÆ. O velho sentido afirmativo, reforçador, a supor na língua mais
antiga, achamo-lo na partícula enclítica sânscrita -sma ou -smā “certamente, precisamente”,
e talvez no -met do lat. egomet. Logo *MA-WEGÓNITON significará “justamente embaixo
da Batalha”.
A estar no lugar justo, cumpre mirar arredor. Dos pontos cardeais julgavam-se “abaixo”
tanto o Norte, etimologicamente “inferior; infernal”, quanto o Oeste, onde o sol cai. Eram
pois “arriba” o Sul meridiano e o Leste a erguer-se. Perpendicularmente à mão direita, a
sueste, vê-se Culhergondo, de *KUKLEUROGÓNITON “a Batalha famosa ( = “que tem
sido ouvida”)”. Entre Mavegondo e Culhergondo está Meangos (< *mediānicōs), que vem
reforçar a estrutura. A raia do concelho de Avegondo faz um rodeio ectoplásmico e abrange
o lugar de Culhergondo, que aliás ficaria fora; isso comprova a persistência tradicional do
limite velho. Além dele, está o lugar de Cins, que é o híbr. *cinīs, abl.-loc. lat. do céltico
*KINĀ “a deste lado”, a respeito de Culhergondo. A seguir desde Mavegondo, no cabo está
Betanços, do célt. *WEÞANTION “substantium, que está (mais) abaixo” de um ie. *uposthantiom; vê-se do quê. Eis uma estrutura coerente que procura guardar a memória de uma
Batalha de singular importância. Antes de escrutar o sentido dos vestígios, deitemos uma
olhada noutro caso similar, em zona próxima, com o que talvez se articule.
Na autopista do Atlântico, no concelho de Bergondo, a uns 6 km. ao oeste de Betanços,
está Guísamo. Não há voz românica autóctone dessa sílaba inicial. Germânica não é. O seu
final é claramente de superlativo céltico. Donde virá Gui-? De *GONI-, com queda do N,
metafonia do I no O e elisão do ditongo emergente. Será *GONÍSAMON. Que significa?
“Batalhíssima, Matancíssima”, melhor, “a Batalha mais grande”. Pôr desinências de adjetivo a substantivos não é estranho; produz-se amiúde na busca de expressividade. Além de
Guísamo, seguindo ao norte, chegamos a Bergondo, que virá de *WERGÓNITON “além
da Batalha”, com WER “sobre” como o lat. super- em supertamaricos. Eis outra estrutura.
Logo na zona existia a memória de duas batalhas ou matanças, “a mais grande” e “a de
larga fama”. De que se trata? Pois chega ler um manual de mitologia céltica para ver que os
gaélicos falavam em duas batalhas míticas, a primeira e a segunda Batalha de Mag Tuired
(ingl. Moytirra). Tem-se discutido se dantes foram uma depois dobrada, ou se houve uma
histórica e a outra mítica; e houve mais. Hoje pensa-se as duas serem míticas e coexistentes.
Na primeira, Cét-cath Maige Tuired, os deuses recém-vindos conquistam a terra. É última
fase de um mito de criação, melhor, de começo do mundo (que não concebiam a criação ex
nihilo). Esta era a batalha dos deuses com os gigantes do caos.
Na segunda batalha, chamada Cath Dédenach Maige Tuired ou Cath Tánaiste Maige
Tuired, os deuses da 1ª e 2ª funções lutam contra os da 3ª, e a guerra acaba em armistício
e pacífica convivência. Logo é paralelo céltico da guerra dos Asir e Vanir nórdicos na Edda.
Não cabe abundar; leia-se a obra de Dumézil (acautelamos contra as opiniões mitológicas
de T. F. O’Rahilly, meritíssimo historiador).
Disse-se a localização irlandesa das batalhas na concreta geografia ser efeito tardio da
evemerização. Ora, desde os registos mais antigos, só tardamente alterados, os irlandeses
punham as duas na paróquia de Kilmactranny, pelo lago Arrow, Sligo. Convido a debruçarse no mapa da Irlanda. Pasma a semelhança do sítio com o da estrutura calaica que vimos
de descobrir. O seio marinho entre Connacht e Ulster parece-se com o das rias da Corunha,
Betanços, Ares e Ferrol, os dous virados ao noroeste. O testemunho calaico, insubornável
na antiga língua que o suporta, dirime a questão mitológica e faz recuar ao tempo pancéltico
o conteúdo do mito das duas batalhas e o uso de localizá-las. O uso, aliás, dá-se por todas
as partes: Estige, Averno, etc.
A leitura da estrutura calaica não acaba aí. O caso põe a perspetiva do que vem do sul e
vai a Betanços ou Corunha, o que envolve a boa parte dos calaicos ártabros. Se fosse uma
estrutura só dos brigantes, viria do centro, da Corunha. Se fosse de brigantes distantes a
peregrinar ao centro, viria do oeste. No caso de ser reflexo trazido por irlandeses dalguma
época, fora estrutura estática, como na tradição gaélica (mas na Escócia, colonizada de
irlandeses, não a vejo reproduzida). Logo a perspetiva do sul confirmaria ser património do
conjunto dos ártabros, ao menos.
Qual a equivalência gaélica de *GONÍSAMON “matança mais grande, matancíssima”?
A primeira, criacional, acabada em rota total dos Fir Bolg-Gigantes, seria a de Guísamo,
lugar próximo do mar, de desembarco. A segunda, mais desenvolvida na Irlanda, muito
mais conhecida e narrada (o que quadra com “famosa”) seria a de Culhergondo, a de maior
mediterraneidade.
A estrutura geográfica calaica é mais complexa que a gaélica, que põe as duas batalhas
num lugar, e tem todo o cariz da autoctonia. Tem mesmo a aparência de ser mais antiga
que a insular. O que pode significar um empréstimo do sul ao norte. Mas não abundemos
nestas matérias que só aos irlandeses parecem interessar.

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