Ingmar Bergman, por um direito ao silêncio
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Ingmar Bergman, por um direito ao silêncio
Ingmar Bergman, por um direito ao silêncio – entrevista a André Queiroz por Camila Vieira Concordamos com Deleuze no que ele dizia acerca do quando da morte de um grande pensador: instante de alívio e estardalhaço da parte dos imbecis. Será então a hora de fazer a retrospectiva, dar um giro no corpo da obra e começar a amputá-la: cada qual dirá um tanto ‘sobre’ isto ou aquilo - os especialistas assumirão o seu papel no fazer dos obituários; os cadernos culturais elegerão os sucessores; as gentes de que a tudo se ocupam (no dizer das coisas) ensejarão o seu depoimento: ‘se se viu, quando viu, o quanto gostou’; outra será a gente, tosca celebridade, que se arvorará na grita dos insultos – afinal estando morto o autor, está-se livre para desdenhar da esquife, e então, como aqui, em terras brasilis, disse ‘aquele um qualquer que vende livros aos borbotões’ – m’a que é um fracasso na escritura: ‘vi, mas era chato’. Outro foi quem uma vez sugeriu: ‘deixar que se diga, se pense, se fale’. Bela recomenda. Ainda e, sobretudo, se se trata daqueles que quando falam, falam ‘sobre’. Nota-se que nunca se estivera ‘com’. Nunca se ousara o pensar ‘desde’. Aqui, agora, quando da necessidade de aprumar a dor e o susto na certeza do não-mais que a morte inaugura, buscamos esta conversa, para tão logo, voltarmos ao silêncio, que cremos, bem atende em ser a casa da palavra em desuso. 1. Se considerarmos que o cinema surgiu em 1895 com os irmãos Lumière, podemos concluir que Bergman trabalhou mais da metade da história do cinema, testemunhando não só inovações tecnológicas como outras propostas estéticas de cineastas de seu tempo. Como o senhor situaria Bergman na história do cinema? Qual sua importância e o seu legado para o cinema contemporâneo? Diria que Bergman é daqueles cineastas que põem o cinema a pensar. E não digo isto como quem afirma: é um cinema para pensadores; ou o que www.andrequeiroz.art.br seria ainda pior: um cinema que nos faz pensar. Creio que, todo modo, qualquer cinema faça pensar. Mesmo o mais tolo, o mais banal. Ainda que o que se pense de imediato seja: vou embora da sessão! Bergman convoca o próprio cinema a se pensar, a tomar a si próprio como matéria de pensamento, o que é já dizer: depois daqui, um outro, nunca mais o mesmo, como se lhe furtassem o mapa de suas evidências. E então, um outro cinema. Particularmente eu diria que me confunde uma questão como esta – a pergunta pela importância, a pergunta pelo legado. Não digo que não entenda o que se pergunta aqui. Mas creio que devemos esgarçála, a questão, a um ponto mais denso. E então, vejamos: o que será que fica de uma obra? Ou ainda: será que uma obra deve durar para além de seu acontecimento fugidio e pontual, dos humores que a constrangeram a ser justo aquilo a que ela se tornou? Será que uma obra resiste para além das obsessões que duram o tempo de sua feitura? E digo isto como quem afirma que toda obra é da ordem de uma obsessão afirmada. Um autor é o seu obsecado gestor, aquele que a monta a partir de um campo problemático na qual a sua vida desliza. Aqui e ali com maior ou menor destreza. O cinema de Bergman se lança desde aí. Outros serão aqueles que o tomarão a si, que farão dele o que estiver ao seu dispor, ao jeito que lhes for o mais razoável, ou aos modos de sua obsessão, toda e qualquer. Woody Allen fez a seu modo o legado de Bergman que lhe coube. Walter Hugo Khouri também. E mesmo quem não faz cinema, quem não o realiza, a seu modo comporá o que virá a ser o legado de Bergman. Mas nada que isto diga respeito ao próprio Bergman como mandatário de sua recepção. 2. Gostaria que você me explicasse melhor de que maneira Bergman “toma o cinema como matéria de pensamento”. Em Antonioni (que curiosamente faleceu no mesmo dia que Bergman), os espaços vazios, os tempos mortos e os enquadramentos têm função de pensamento. É como se o próprio filme se tornasse o objeto problemático, mais que um meio de www.andrequeiroz.art.br Em primeiro lugar, eu diria que concordo com o que afirmas acerca de Antonioni: os espaços vazios, os tempos mortos. Mas note que, ao falar da função do pensamento, ou noutro termo, o pensar do pensamento em Antonioni, apontas algo que poderíamos evocar sob a alegoria da vertigem: o vazio, o tempo longuíssimo que parece arremeter aos buracos em que supostamente nada é o que se dá. Supostamente, porque o vazio, o buraco de tempo seria a condição inevitável do movimento. Do pensar do pensamento. A vertigem, a condição. O que dizer de Tarkovski senão esta convocação ao tempo morto. Em Stalker, por exemplo. Em Bergman, também o cinema se torna objeto problemático, e isto logo que a princípio de conversa, porque senão seria dizer que o que se faz não inscreveria a diferença de que eu falara na outra questão. Tornar problemático porque d’algum modo é já a condição do estar fazendo cinema. Isto nele, como também noutros, Antonioni e Tarkovski são exemplos, como Glauber e Júlio Bressane são também exemplos disto. Não se trata simplesmente de contar histórias. Mas parece forçoso que, aqui e ali, algo se conte, algo se expresse, algo se efetue. Mas o que dizer das formas do contar? Das formas de expressão? Das modulações que se promove? Um cinema de problemas... E isto porque seria desde um campo de problemas que algo se elabora – um certo cinema, uma certa literatura, uma certa expressão teatral. Ainda que talvez nada se resolva naquilo que se faça. Mas algo se elabora. Penso em A Hora do Lobo – aquelas alucinações da personagem de Max Von Sydow como modo de sua forma de expressão, a agonia que seria antes a da impossibilidade de tocar o outro de forma mais fronteiriça, mais de perto, e então, a solidão que é todo o tempo, mas que é também da ordem daquilo que convoca a um de fora (dehors) da personagem: não o que se lhe dá como experiência (como gordura, calosidade, como marcas pessoais), mas o que o convoca a que ele se precipite. E também a www.andrequeiroz.art.br personagem de Liv Ullmann na cena final deste mesmo filme: o olhar na câmera, o barulho do tempo na forma de um grande relógio marcando a cena, está ali a resolver-se algo? Está-se ali a afirmar a condição na que se é? Quem sabe se é do desamparo de que se trata, da solidão ontológica?! Bergman resolve isto de forma fílmica – basta notar todos os contornos da cena. Não diria que em Bergman seja, tal como falaste de Antonioni, uma questão de ideologia, qual seja, aquilo que lá se resolve, ou que lá se exponha – um cinema como representação do mundo, como se fosse Bergman querendo dizer isto ou aquilo, as suas verdades, ou as suas opiniões acerca do estado de coisas. Mas naquilo que ele apresenta, o que se apresenta é também carregado de tempos mortos, ou de espaços vazios, e agora eu já não digo na perspectiva dos enquadramentos, ou mesmo na angulatura possível a que se destinaria um certo plano, um certo modo de composição da coisa fílmica, tão somente. Diria que os quadros do que ele nos fornece são quadros que indicam claramente este campo problemático que está buscando se resolver, mas que sabe ser toda e qualquer resolução da ordem da precariedade, da incompletude. São quadros agônicos que escapam a cada instante daquilo que, a princípio, poderíamos procurar decodificar de forma estagnada, inerte, plena. E disto, a impossibilidade de pensarmos o que Bergman fez sob os termos de um método. Bergman implica o processo, e o supõe. 3. Os quatro primeiros filmes de Bergman - Crisis (1945), Chove em nosso amor (1946), Um barco para a Índia (1947), Música na noite (1948) foram feitos por encomenda, a partir de adaptações de peças. Nota-se que nesses filmes há influência forte do neo-realismo, movimento cinematográfico em moda na época. Em seu primeiro filme feito com roteiro próprio, Porto (1948), seu estilo pessoal emerge, pois aqui o mundo externo é relegado ao segundo plano em prol do mundo interior. O que, na sua biografia, tornou possível esse encontro com a subjetividade humana no início de sua carreira? Quais os primeiros temas que vão surgir? www.andrequeiroz.art.br Questão a saber seria: qual o lugar da assinatura numa obra coletiva, e será que o cinema remete seu temário a um suposto autor-único que o controlasse ao ponto de fazer dos possíveis que ele (obra fílmica) evoca, o retrato deste mesmo autor? Voltemos à questão: um filme sob encomenda. E a questão parece já afirmar algo: uma vez sob encomenda, não é Bergman. Mas vejamos: quem dirigiu o filme? Bergman. Mas será isto dizer que o diretor é o autor? Porque se o for, nada posteriormente mudará. Bergman permanecerá sob o estatuto de diretor - que supostamente imprime a sua marca. Ou será que tal marca se dividirá, por exemplo, com a direção de fotografia? Ou será que a marca impressa se distribuirá também com aquele que for o roteirista? E a questão que daí sairá será uma outra, veja bem: qual dos filmes de Bergman é mais explicitamente Bergman – os que ele dirigiu sob encomenda (sem ser o seu roteirista), ou os que ele não dirigiu (mas que assinava o roteiro), por exemplo: As melhores intenções (1992), com direção de Bille August? Ou ainda: será que um filme como Crianças de domingo, roteirizado por Bergman, e dirigido pelo seu filho Daniel seria mais próximo dele do que Infiel, roteiro de Bergman e dirigido por Liv Ullmann? Quem melhor conheceria Bergman a ponto de forjar a mímesis? Outra vez retomando a questão: será que Porto (1948) seria a sua estréia? Ou melhor, seria a estréia de seus fantasmas lançados à mesa, a estréia dos chistes desavisados, que o tomassem de súbito, como que num arrasto, e então ele se revelasse inteiro? Creio que não. 4. Pois bem, se é possível falarmos da assinatura, da marca que Bergman imprimiu mesmo em seus primeiros filmes, feitos por encomenda, o que a caracteriza? Enquanto inquietação artística, o que permanece presente nesses filmes, nos que ele fez com roteiro próprio e nos que ele apenas escreveu o roteiro, mas não dirigiu? www.andrequeiroz.art.br Mas veja que falei ‘supostamente’ a marca se faz. Diria, antes, que estás insistindo na questão já respondida, e a forma que sugeri ao respondê-la, noutro modo de dizer-te, era de que a questão talvez não valesse. Ênfase no ‘talvez’. Se alguém discordar em gênero, número, grau e forma, está certo, entendo. Apenas digo dos riscos que ela traz consigo, a questão. E isto pelo que ela já sugere como que líquido e certo. Pelo menos, os seus pressupostos: a idéia de um filme sob encomenda que trouxesse nele, no fato de uma demanda externa, o princípio de sua realidade que, talvez, acabasse por lhe constranger nos seus percursos ilimitados. Seria o caso de soltarmos os filmes numa inscrição bem mais extensa do que a inscrição autoral. E isto será forma de recusar também esta demanda interna. Nem o mundo objetivo, real (?), nem o sujeito atrás (agência fomentadora de sentidos e de valores), em recuo, de plantão. Claro está que há um certo “traçado” bergmaniano. Mas isto diria respeito a um olhar de depois a inferir, aos juízos que se lhe voltam desde bocas distantes (críticos, espectadores, um passante na rua mais atento, uma dona de casa entediada), a um olhar retroativo que buscasse enovelar tudo, todas as supostas alíneas que viesse a compor o que entendêssemos por cinema, e por Bergman. Dizer ‘isto é Bergman!’ é pressupor um mapa de possibilidades todo este já realizado, aplanado sobre uma superfície, bastante bem demarcado nas suas zonas de fronteira o tal mapa: ‘tem rosto em primeiro plano’ é Bergman, ‘traz temário reiterado acerca da morte’ é Bergman, ‘falta um clima cool’ é Bergman, ‘traz diálogos em profusão’ é Bergman. Não creio que seja assim. Seria apequená-lo. Depositá-lo no interior do claustro. Sugiro que o esgarcemos, o que é a via oposta. Podemos ler As Elegias de Duíno, de Rilke, e dizer ‘isto é Bergman’. Strindberg. Thomas Bernhardt. ‘Quem, se eu gritasse entre as legiões de anjos, me ouviria?’, Rilke, mas bem que poderia caber entre os praguejos de Anthonius Block, ou não? Enxergar Nietzsche nalgum Bergman, no pastor Thomas Ericsson de Luz de Inverno. ‘Que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância?’, www.andrequeiroz.art.br Jorge de Lima em Invenção de Orfeu, mas diga-me, será que não serias capaz de encontrar em Bergman, digo nos filmes de Bergman, lugar de depósito a este verso, a esta inflexão, mesmo e ainda que como epígrafe? Ou os percalços do Jô bíblico na personagem de Max von Sydow em A Fonte da Donzela. Ainda assim em fatiados, aqui e ali cabendo o grau elevado de expressão, noutras já tudo será o que foge pelos lados. São desde as bordas que se nos compomos, as zonas fluidificas nas que ensejamos um ponto, um traço - móvel, precário, fugidio o traço, o rosto, a assinatura. Voltemos aos filmes. Vejamos um exemplo: O Silêncio. Nele há trechos inteiros em que prevalece o olhar. O olhar da criança. De esguelha, o olhar. Atrás da porta na cena do sexo entre dois adultos. Está-se inteira no olhar a criança do filme. Como se estivesse à espreita. Mesma espreita que parece caber desde os olhos infantis das crianças de Fanny & Alexander a ponto de enxergar o mágico nas coisas, o pai morto que vem em visita. Uma marca de Bergman? Mas se falasses tudo o seu oposto de filmes diversos? Se repetisses as mesmas inferências que sugeri há pouco, ‘o falar demais das personagens’, ‘o primeiro plano no rosto’, e etecétera, aqui e ali eu diria ‘ok ok’, ou melhor, talvez eu dissesse ‘aqui, tudo bem’, ‘ali, não e não’. Onde então enquadraríamos Bergman? Entre o mais ou o menos, nas zonas de sentidos e signos plenos, ou seria nos interstícios em que tudo o que dele falamos resvala em corredeira para o lado e se perde? Veja bem, é isto um tanto o estatuto da criação, ou não seria? Ser capaz da incongruência como quem afronta e se deixa afrontar por um estranho estrangeiro (o que se é com relação a si mesmo). Não poderia ficar ileso aquele, aquilo que entendemos como autor, não é mesmo? Não poderia continuar lá intacto, sóbrio, esmerilhado, intocado no santo altar da inspiração a ver se baixa uma entidade luminosa, ou a ver se se encerra uma gestalt, ou a postos e em grita a dizer a si mesmo ‘Eureka!’ Pense em Foucault dizendo da autoria um dispositivo de controle: a escritura literária passando a ser assinada justo quando se percebe que por ali se davam entorses nos dispositivos de individuação e www.andrequeiroz.art.br então os registros de poder/saber dirão: ‘torna-te aquele que tu és’, e de imediato, ‘deixa que eu te catalogue, que eu te conheça!’. Coisas de fichário de polícia. Prefiro antes a surpresa, a errança, o assalto da incongruência se for o caso a abertura de um livro, a ida ao cinema, a assistência de um balé, de um teatro. Por exemplo, quando assisti a Saraband, o único dos filmes de Bergman que estive presente a uma estréia em cinema, eu já havia escutado coisas nos media que dizia ser ele a continuação do Cenas de um Casamento, os mesmos personagens, os mesmos atores. Como se aprontassem o terreno à novidade impossível: ‘Vá e reconheça, como quem pergunta: onde está o Wally? Vá e reconheça entre os muitos, o nome santo!’. Ok, fui. E tudo se me enganou. Bergman se me enganou. Os atores se me enganaram. Estavam todos lá, em conluio a dizer: ‘Me reconheces?’. Aquele filho crescido, aquela relação agônica com o pai, donde surgiram? Talvez me remendem: ‘da cabeça de Bergman!’, e isto dito assim de ‘bate-e-pronto’ talvez convencesse, mas será que Bergman se esquecera de que não havia este personagem em Cenas de um Casamento, que não havia esta relação naquele triângulo de outrora, e então dirão: ‘ele está senil!’, ótimo, ótimo, então é isto, a criação deve primar pela senilidade como condição de um seu constante esquecer-se. 5. Há quem goste de evocar Sartre e o existencialismo ao se analisar a obra de Bergman. Ele aceitava essa relação? Bergman se interessava pela filosofia de sua época? Desconheço se Bergman teve relações com Sartre. Ele devia estar ocupado em demasia para ficar destilando críticas acerca das filiações que se lhe atribuíam. Aliás, sempre e sempre será o dia exato, a hora certa e pontual para que se relacione A com B, ciclano e beltrano. Faz parte dos rituais de identificação: diga-me com quem tu andas e eu te direi do que padeces! Creio que Bergman aceitaria a si a multiplicidade dos nomes, ele www.andrequeiroz.art.br próprio a dizer: meu nome é legião! Outro modo, vejamos: Bergman era um homem culto, um leitor voraz. Estava atento ao que se fazia àquela época. Mas, com certeza, que sua atenção não se bastava à filosofia de sua época. Ou será que a face múltipla da morte - expressa em muitos de seus filmes - pode e deve se restringir a uma só, qual seja, ao absurdo da existência, à solidão no mundo, às afirmações libertárias da Chiquita Bacana do Braguinha? 6. Após anunciar sua despedida do cinema com Fanny & Alexander, Bergman pretendia voltar a fazer cinema com um projeto para filme mudo, com longas seqüências sem diálogo. Era a possibilidade de rompimento com o gênero de filme dialogado e teatral que até então desenvolvera. Por que ele não levou esse projeto adiante? Talvez porque suas obsessões fossem loquazes, e talvez mesmo porque àquela época, em plena efervescência conturbada das sociedades comunicação de massa não houvesse um sursis ao silêncio. Deleuze sugere isto. Não sobre Bergman. Mas sobre a impossibilidade de calar quando a tagarelice é trampolim ao poder... 7. Bergman sempre teve uma saúde frágil. Sofria de intensas dores de estômago, que o deixaram internado diversas vezes, e fortes crises de insônia. Houve períodos em que ele fez um filme por ano e ainda era envolvido com política cultural, chegando a ser conselheiro artístico da Svensk Filmindustri e inspetor na escola de cinema do Instituto Sueco do filme. Como ele conseguiu superar suas restrições físicas em atividades que exigiam esforço e disposição integral? Certamente que não seria com caminhadas matinais regadas a um cardápio diet/light/natureba. O inverno nórdico não recomenda. Mas vejamos uma forma de pensar tal questão: será do primado da saúde, a www.andrequeiroz.art.br bela compleição física, os órgãos todo a postos que emerge uma obra? Fico a pensar em Nietzsche em suas imensas dores de cabeça. E Artaud, o que dizer de Artaud? Muitas vezes a dor é a condição de fomento da obra, o seu esteio. Nietzsche se aposenta da Basiléia em 1879. Seu corpo não resistia aos infortúnios da vida acadêmica. Liberou-se à sua obra. Veja bem a ênfase na crase. Liberou-se à obra. Blanchot costumava dizer: quem convoca é a urgência da obra. Bergman está depositado nesta urgência que lhe convoca. Assim mesmo, vale ressaltar, uma obra não prescreve a plena saúde aquele que se lhe dá – como se ela sugerisse: vai, cuida do corpo, ajeita-te, e se os sintomas não desaparecerem, procure um médico! Isto bem que caberia numa campanha de obra solidária! Ou em um comercial de terceira linha para vender plano de saúde aos intelectuais! Mas vejamos um ponto curioso: falaste das dores de estômago. Quem sabe seja desde aí que se constrói as condições de uma obra. De uma moléstia de intestinos. E não é graça o que faço. Penso em Céline a dizer: tarefa inglória a da superação, exigência arcaica e contumaz, fazer superhomem dia e noite do sub-homem claudicante que nos deram. Bergman está aí. Precisamente aí. Pondo dedos, mãos e pés no charco de sua (nossa) condição. 8. Bergman afirmava que, durante toda sua infância e adolescência, o meio familiar, a escola da época e a vida calma e religiosa não o despertavam emocionalmente para o mundo. Acostumado com esse isolamento, a entrada no cinema e no teatro – que são artes de fruição imediata com o público - deve ter sido um choque para ele. Como ele reagia diante do que o público e a crítica diziam sobre sua obra? Com escárnio. Bergman envergava imenso mau-humor. Bom notar que o que mais o empanturrava em ira era a tolice. Sobretudo a tolice daqueles que buscavam aspectos de sua vida para lançar-lhe ao rosto como imprecações: estás desnudo de tuas vestes, eu te decifro sr. Ingmar! www.andrequeiroz.art.br Bergman nestas horas se recolhia. Cansaço, insônia. Revirava-se em culpa. Por vezes, entretanto, no ato mesmo de se revirar na ausência imensa de um sono apaziguador, eis que ele acabava por encontrar uma companheira ao seu lado. E veja bem que não era uma qualquer: Harriet Andersson, Ingrid Thulin, Bibi Andersson, Liv Ulmann. Claro está que cada qual à sua hora. Pelo menos, assim creio eu. Podemos dizer que filhos e amores eram o resultado indireto da crítica que lhe faziam. Pelo número elevado dos filhos, vemos que não eram poucas as críticas. 9. Apesar desse mau-humor em relação à crítica, Bergman não deixou de refletir sobre tal postura. No início do livro Imagens, ele comenta que achou pouco sinceras as respostas que deu aos jornalistas, que o entrevistaram para o livro Bergman sobre Bergman. “Segundo o texto, dou a impressão de não responder com sinceridade, mantendo-me o tempo todo cauteloso, até com um pouco de receio”. Isso me recorda o fastio de John Ford em relação às perguntas de Peter Bogdanovich, no documentário Directed by John Ford. Como é possível a interpretação da obra de um cineasta, que não “entrega os pontos”, que não se propõe a decifrar por completo sua própria obra? Sigamos caminhos bifurcados. Um, no que tange à primeira parte da questão. Bergman dizendo ‘menti’. Será que mentiu Bergman? E se se deu isto, quando que a mentira se encerrará? Quando ele resolveu olhar a fundo, submeter-se a uma espécie de auto-escrutíneo, e vasculhar-se, tornando-se, quem sabe, escrivão de si mesmo? Tudo então que ele escreverá a partir daí, neste percurso de leitura de si se justificaria aos olhares do mundo. Certo, é o mundo a sugerir que a verdade se destila em olhares retorcidos sobre o si-mesmo. Uma verdade emergindo de dentro. E veja que ainda se espera que ela, a verdade, não seja ácida! Que seja impostada ao estilo do mea culpa. ‘Não fui sincero, agora sou’. Qual das metades preferes? Aquela que dizia de si o que depois se recusará, ou a www.andrequeiroz.art.br que faz pressupor aos outros que se mentiu um dia, mas que, hoje, está-se consertado: ‘agora digo verdades!’. Vejamos, então, a outra parte da questão. Assim o dizes: ‘alguém que não entrega os pontos’, ‘que não se propõe a decifrar por completo a própria obra’, e então, o desfecho: ‘como interpretar?’ Entregar pontos? Decifrar-se no dentro da obra? Curioso pensar que sempre se está aquém. E curiosíssimo é pensar que se está aquém de si próprio: sempre mais a fundo o fundo. Penso num escritor português fabuloso, Vergílio Ferreira. É ele quem diz: nosso interior é todo vísceras. Buscar-se nelas, encharcar-se, todo fantasma deveria ser isto: composto no charco! Ter os pés sujos, a roupa fétida, o hálito pegajoso. ‘O como da interpretação?’, parece-me que cabia aqui ainda uma parte da questão, esta que perguntava pelo ‘como’ da interpretação, ‘como seria possível a interpretação?’, questão que se rebate noutra: ‘a quem a interpretação?’ Seria aos psicanalistas, talvez. Mas vejamos: fantasmas, charco, vísceras. Entendo que o preço da sessão fosse elevado! Dirão: teu sintoma é caro! O que será forma de dizer do preço das luvas de pelica, e do perfume francês para rebater... 10. “Acho que somos a soma do que lemos, do que vimos, do que vivemos. Eu sou uma pequena pedra de um grande edifício”, dizia Bergman. Em que edifício as obras de Bergman se consolidam? Se tivesse que apontar, que cineastas o influenciaram e quais ele influenciou? A noção de influência é precária, e perigosa. É forma de montarmos uma árvore genealógica da criação. É sabido da importância da obra de Victor Sjöström na Suécia na primeira metade do Século XX. Em Morangos Silvestres, lá está ele na figura do velho professor a esbarrar com o relógio das suas horas, e parece-me que podemos dizer, o relógio que lhe anunciava o sem tempo de sua condição. Bergman o está reverenciando. Sua personagem é maravilhosa. Ainda que desfilando sob o terreno arenoso das influências, categoria inóspita, diria que Woody Allen www.andrequeiroz.art.br reverencia Bergman em pelo menos três filmes: Maridos e Esposas; Hannah e suas irmãs; Interiores. Ele diz isto. Repito aqui porque ele diz tal coisa. François Ozon faz algo semelhante em Um amor em cinco tempos. São referências a algo que Bergman havia feito a seu modo, desde suas urgências, ao estilo de suas dores, no traço de uma imanência. 11. Bergman é lembrado como o cineasta da angústia, do desespero, da verborragia. No entanto, ele fez vários filmes de comédia. Que tipo de apreço ele tinha por esses filmes? Eles lhe satisfaziam? Mas veja que as comédias eram as mais verborrágicas das obras. Mas que falo? Não concordo com esta expressão: a verborragia. O que será que quer dizer? Que os filmes falam em demasia, ou que os textos saíam aos borbotões pela boca dos personagens? A questão fundamental a ser situada ali, no lugar da boca que fala, é a máscara plástica do rosto. Bergman é o ourives da rostidade. Ele está ali. Com o primeiro plano lá focado: o rosto a desmanchar. Será capaz de uma expressão aterradora em Face a Face, em Sonata de Outono, em Cenas de um Casamento. Mas também ali, nestes filmes, se faz presente a candura, a calmaria, a leveza. De um pólo a outro. Por vezes na faísca de um segundo. Eis a rostidade. A tarefa da reescritura do que somos desde as possibilidades várias da expressão. 12. De fato, Bergman procura sondar fisionomias, rostos, em vez de lugares ou ambientes. Aqui volto a John Ford que, ao ser perguntado o que queria encontrar filmando em desertos, respondeu: "a coisa mais interessante deste mundo: o rosto humano". Mas o que é pertinente a Bergman ao traçar essa cartografia do rosto? www.andrequeiroz.art.br Tudo aquilo que ele pôde no quando de sua realização. Isto lhe é pertinente. Agora, sobretudo agora, poderíamos dizer isto de forma mais completa, e também de forma mais petulante, como se falássemos: detemos o mapa dele, e de tal modo esta afirmação que o bom verbo é aquele que evoque a detenção. Afinal somos posteriores a sua morte, e podemos olhá-lo de viés, montarmos uma retrospectiva, dizer dele o que sequer ele o soube acerca de si: a data de sua morte. O que lhe é pertinente? – perdoa-me dizer, mas: eis uma falsa questão! Outra questão seria: o que vem a ser esta rostidade presente nos filmes? Mas tal questão não se deu. E então, calo-me quanto a isto. 13. Creio que coloquei mal a pergunta. Não se trata de saber o que é pertinente a Bergman – mesmo porque não saberemos o que, de fato, ele pretendia (e creio que já discutimos isso). Mas sim o que há de pertinente – no sentido de desdobramento sígnico – nesta cartografia do rosto, ou como desejar, nessa rostidade? Sigamos o que sugerem Deleuze & Guattari, em Mil platôs: o corpo não é questão de objetos parciais, mas de velocidades diferenciais. Não importa delimitar os traços identitários: aqui e ali, uma ruga; no canto esquerdo da boca, o repuxe; uma falha na sobrancelha direita; as orelhas em ponta, esticadas em abano. Seria o caso justo o inverso: o quanto que se escapa disto. Lembremos o quanto que se deserta disto - o homem pleno e definido, o homem como projeto da Modernidade, o homem incauto a realizar-se desde o trabalho que é morte lenta - num filme como Persona: as personagens como trânsfugas. Do que fogem as personagens? Fogem do si-mesmo que se lhas acometeu, que se lhas martelou nos pregos da moral. Cada qual a seu canto, cada qual a sugerir que se está encerrada no simesmo: a enfermeira benevolente e loquaz, a atriz votada a seu silêncio inquebrantável. O filme é a esteira de uma desconstrução. Nele, o que escoa senão as personagens inscritas no tempo? E se escoam, escoam de si mesmas. Revisitam-se no deserto do sem-lugar onde tudo é móvel, e www.andrequeiroz.art.br onde nada é o que deixa marcas. Outra vez, aqui, Deleuze & Guattari a dizer: O rosto é inumano no homem, desde o início; ele é por natureza close, com suas superfícies brancas inanimadas, seus buracos negros brilhantes, seu vazio e seu tédio. Rosto-bunker. A tal ponto que, se o homem tem um destino, esse será mais o de escavar ao rosto, desfazer o rosto e as rostificações, tornar-se imperceptível, tornar-se clandestino. Logo após, eles citarão a Henry Miller em Trópico de capricórnio: Eu não olho mais nos olhos da mulher que tenho em meus braços, mas os atravesso nadando, cabeça, braços e pernas por inteiro, e vejo que por detrás das órbitas desses olhos se estende um mundo inexplorado, mundo de coisas futuras. Curioso que as imagens evocadas nada que dizem respeito a um passado no tempo da infância, ou àquele charco de que falamos estarem depositados os nossos pés e fantasmas. Nada que se resolvesse em decifração retroativa, as chaves da existência a abrirem as portas de uma nossa percepção: percebermo-nos em análise. Nada que suponha uma porta a se abrir para dentro, e então uma outra porta, um vão estreito no que circulem os ares exaustos do que simulamos, e então, e somente então, um dia, qual seria este dia, o desanuviar do claustro no que estávamos perdidos, será que a representar a farsa rasteira do cotidiano? Mas qual a farsa, a fanfarra? Será (seria) o de que se decifra? Ou será (seria) a do decifrar como pragmática contumaz do nosso conhecermonos? O que é dizer: ou o do que se sabe, ou do suposto saber que diz os modos do conhecer-se? Nada que indique isto, as passagens supracitadas. Deleuze, Guattari, Henry Miller, Bergman. Mas seria também o caso de acrescentarmos alguns outros nomes a esta lista célebre: Artaud, Nietzsche, Foucault. Ou Blanchot, que sugere: lá onde se pensa encontrar o ser que a tudo explique, o núcleo que a tudo encerre, o que se nos dá é a fenda. A cesura. O neutro. Diria isto de Bergman: seu traço fino parece bordejar processos constituintes desde o qual, quem sabe, se chegue àquele que somos, o destino em Nietzsche, o tornar-te aquele que se é. No entanto, não é do sujeito que se está falando. Está-se falando de processos www.andrequeiroz.art.br de subjetivação nos quais se afirma como precário e fugidio o que comumente se toma como prévio e formal. Àquela cena dos rostos se superpondo em Persona não seria o modo de expressar a isto? 14. De alguma forma, seus filmes são resultado da interpretação dos atores, todos profissionais oriundos do teatro. Que importância a escolha do elenco exerce na construção da dramaturgia bergmaniana? Creio que a importância é imensa. Bergman era excelente diretor de atores. E ele se cansava de dizer: o lugar por excelência disto era o palco. E ele era um homem de teatro. 15. Em filmes como O Sétimo Selo, A Fonte da Donzela e O Olho do Diabo, o Deus de Bergman ainda era metafísico, cristão, criador, que regula a moral dos homens. A partir de Através de um Espelho, esse Deus parece se tornar ontológico, intrínseco ao homem, cabendo apenas ao ser humano a responsabilidade de suas ações no mundo. O que tornou possível essa mudança de perspectiva? Nos referidos filmes, sobretudo nos dois primeiros, há de se deixar claro que Bergman está procurando pensar desde planos de imanência distintos de grande parte de seus outros filmes. Eu não faria esta distinção um tanto apressada – o deus assim, o deus assado. Sétimo Selo, por exemplo, traça um quadro da alta Idade Média na que o Cruzado Antônius Block, o cavaleiro do filme, se vê face a uma angústia aterradora: eu que lutei em nome de Deus e que não o percebo senão nos seus milagres, eu que queria ver a face de Deus, falar-lhe de frente e que quando o busco apenas o que encontro é o não-ser que se me anuncia. Sua questão é a questão de todos que, inscritos naquele plano de imanência, se deixam atordoar de www.andrequeiroz.art.br forma vária. Por exemplo, o escudeiro Jons, que também não percebe Deus, evoca a todo instante a graça de poder se mexer, de se deslocar, a gravidade do movimento como afirmação. Também há a mulher enamorada do demônio ou de deus, há a igreja que a queima na chama da Inquisição. Veja bem que ali é o pensamento acerca da transcendência o que está em pauta. E o seu correlato: como posso mover-me no vazio? Tal questão ressurge em outro filme. Filme magnífico, diga-se de passagem. Chama-se Luz de inverno. Agora é outro o plano de imanência. Está-se depositado no período da guerra fria. O filme descreve este tempo. D’algum modo o descreve. Está-se numa pequenina aldeia sueca. E um pescador vai consultar o pastor porque ouviu dizer que a China fabricou a bomba atômica e que tudo depende dos humores de seus dirigentes. Será que há “Alguém” a interceder por nós. E então, o pastor Thomas Ericsson dirá para ele: deus morreu. Não há desígnio. Estamos livres do deusaranha que nos prendia em sua teia, que nos prendia com seu livrearbítrio. O desfecho do filme é fantástico. Convoco a que todos assistam a este filme. Aliás, para evocar o capítulo da famigerada influência de que já falamos, Bergman faz menção a outro filme como se fora referência deste. Trata-se de Diário de um padre, de Robert Bresson. Magnífico este filme. Mas atente às suas diferenças, às suas pontualidades, às suas assinaturas. 16. Em Persona, o corpo substitui a alma. A linguagem da protagonista (Elizabeth Vogler) se desagrega e sua comunicação se dá pela projeção no outro (Alma). Podemos dizer que a mudança de olhar em relação a Deus é o que vai possibilitar o aprofundamento da questão da responsabilidade ética dos personagens bergmanianos? Não vejo relação entre as partes da questão. Mas vejamos: a primeira parte se trata de algum trocadilho? Corpo/alma e os nomes das personagens? Diria mesmo o contrário: ali e sempre, tudo é corpo. Spinoza, Nietzsche, www.andrequeiroz.art.br Bergman. Eis uma tríade curiosa. Inadvertida aos ortodoxos. Mas é preciso rir deles, ou não será? Outra vez, pelo riso à ortodoxia, une-se a tríade arbitrária: Spinoza, Nietzsche, Bergman. Noutro instante, diríamos, o universo estaria cheio de deuses, ou de uma conspiração dos fantasmas a nos provocar sustos. Penso nas crianças de Fanny e Alexander. Mas são crianças, e a elas é dada a maravilhosa experiência da inocência. Até que as pragmáticas do depois as separe disto. Sobre a segunda metade da questão, de forma breve, eu diria talvez. 17. Talvez como? Não diria que este seja o vetor único: a responsabilidade ética como resultado de uma ausência que se faz inevitável. Prefiro pensar numa política, qual seja, a da afirmação da condição na que estamos como sendo aquilo de que se trata. Se se trata do acaso, afirmá-lo: o jogo de dados. Se se trata do trágico, um certo Bergman trágico, afirmá-lo. Tratase de uma ética, assim como de uma política. Creio que poderíamos buscar tais vetores desde os filmes de Bergman. 18. Nos filmes de Bergman, notamos referências a momentos de sua vida, tornando assim sua obra autobiográfica. Seu último longa-metragem, Saraband, foi feito como ajuste de contas com o lugar que representaram as figuras paterna e materna em sua vida, bem como o relacionamento conturbado com a ex-esposa Liv Ullmann. Bergman conseguiu dizer tudo o que sentia sobre si mesmo, ao longo de mais de 60 anos de carreira? Não tenho como concordar com esta questão. Sequer com o que ela afirma. E ainda menos com a sua premissa, aquilo ao qual ela se funda, o seu fundamento. Outra vez a vida pessoal. A questão que parece insistida: o autor, o autor, o autor. Como se a elucidação do autor, dos seus pequeninos dramas sujos, se toma prozac, se sofreu do desmame, se www.andrequeiroz.art.br sofria de amnésia, se apenas era capaz de um choro carpideiro uma vez em público pudesse enovelar os devires de uma obra. Outra vez, aqui, evoco Blanchot: o que torna uma obra possível é a morte do autor. Melhor ainda: a morte é um direito do autor. Não está dizendo Blanchot que o autor bom é autor morto. Veja bem!!! A questão é outra: trata-se de pensar o impessoal que é o sujeito de toda obra, o neutro o lugar a que se atinge a fala, a escritura. Creio que Bergman possa ter tido os seus casos, os seus complexos, os seus traumas. Mas o que isto importa? E ainda, será que não nos parece torpe tentar ler a sua obra por este viés? Como se fosse lá que ele se resolvesse, lá que ele se elaborasse, lá que se desse o seu laboratório clínico. Creio que é forma gasta uma tal maneira de se ler. E então, quando a forma é gasta é porque já esgotamos tudo o que havia para ser dito naquilo mesmo que estamos dizendo, e tal como lembra Benjamim, aí a palavra assume a si a função da tagarelice. Recobremos então o direito ao silêncio. 19. Apesar de você não concordar com a questão, o próprio Bergman afirmou em Imagens e no Laterna Mágica que vários de seus filmes remetem a momentos de sua biografia. Sobre Fanny & Alexander, Bergman escreveu em Imagens: “Nota-se logo no início da idéia que eu voltava ao mundo de minha infância. Aí está essa cidade com universidade, a casa da minha avó e a velha cozinheira, o judeu que morava num apartamento do pátio da mesma casa”. Pergunto: o que na obra de Bergman independe de sua biografia? Mas veja que já foi dito aqui que Bergman mentia. Será que mente o Bergman citado? Será uma mentira a mais? Sobre a questão propriamente dita, a obra a biografia, nada mais a dizer. Seria repetir-me. www.andrequeiroz.art.br André Queiroz é filósofo. Doutor em Psicologia Clínica. Professor no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Uff. Autor, entre outros, de Tela Atravessada – ensaios sobre cinema e filosofia (1999), Em direção a Ingmar Bergman (2007) e de Antonin Artaud, meu próximo (2007). Camila Vieira é jornalista de O Povo, e graduanda em Filosofia na UECE. www.andrequeiroz.art.br