Ingmar Bergman, por um direito ao silêncio

Transcrição

Ingmar Bergman, por um direito ao silêncio
Ingmar Bergman, por um direito ao silêncio
– entrevista a André Queiroz por Camila Vieira
Concordamos com Deleuze no que ele dizia acerca do quando da morte de
um grande pensador: instante de alívio e estardalhaço da parte dos
imbecis. Será então a hora de fazer a retrospectiva, dar um giro no corpo
da obra e começar a amputá-la: cada qual dirá um tanto ‘sobre’ isto ou
aquilo - os especialistas assumirão o seu papel no fazer dos obituários; os
cadernos culturais elegerão os sucessores; as gentes de que a tudo se
ocupam (no dizer das coisas) ensejarão o seu depoimento: ‘se se viu,
quando viu, o quanto gostou’; outra será a gente, tosca celebridade, que
se arvorará na grita dos insultos – afinal estando morto o autor, está-se
livre para desdenhar da esquife, e então, como aqui, em terras brasilis,
disse ‘aquele um qualquer que vende livros aos borbotões’ – m’a que é um
fracasso na escritura: ‘vi, mas era chato’. Outro foi quem uma vez sugeriu:
‘deixar que se diga, se pense, se fale’. Bela recomenda. Ainda e,
sobretudo, se se trata daqueles que quando falam, falam ‘sobre’. Nota-se
que nunca se estivera ‘com’. Nunca se ousara o pensar ‘desde’. Aqui,
agora, quando da necessidade de aprumar a dor e o susto na certeza do
não-mais que a morte inaugura, buscamos esta conversa, para tão logo,
voltarmos ao silêncio, que cremos, bem atende em ser a casa da palavra
em desuso.
1. Se considerarmos que o cinema surgiu em 1895 com os irmãos Lumière,
podemos concluir que Bergman trabalhou mais da metade da história do
cinema, testemunhando não só inovações tecnológicas como outras
propostas estéticas de cineastas de seu tempo. Como o senhor situaria
Bergman na história do cinema? Qual sua importância e o seu legado
para o cinema contemporâneo?
Diria que Bergman é daqueles cineastas que põem o cinema a pensar. E
não digo isto como quem afirma: é um cinema para pensadores; ou o que
www.andrequeiroz.art.br
seria ainda pior: um cinema que nos faz pensar. Creio que, todo modo,
qualquer cinema faça pensar. Mesmo o mais tolo, o mais banal. Ainda que
o que se pense de imediato seja: vou embora da sessão! Bergman
convoca o próprio cinema a se pensar, a tomar a si próprio como matéria
de pensamento, o que é já dizer: depois daqui, um outro, nunca mais o
mesmo, como se lhe furtassem o mapa de suas evidências. E então, um
outro cinema. Particularmente eu diria que me confunde uma questão
como esta – a pergunta pela importância, a pergunta pelo legado. Não digo
que não entenda o que se pergunta aqui. Mas creio que devemos esgarçála, a questão, a um ponto mais denso. E então, vejamos: o que será que
fica de uma obra? Ou ainda: será que uma obra deve durar para além de
seu acontecimento fugidio e pontual, dos humores que a constrangeram a
ser justo aquilo a que ela se tornou? Será que uma obra resiste para além
das obsessões que duram o tempo de sua feitura? E digo isto como quem
afirma que toda obra é da ordem de uma obsessão afirmada. Um autor é o
seu obsecado gestor, aquele que a monta a partir de um campo
problemático na qual a sua vida desliza. Aqui e ali com maior ou menor
destreza. O cinema de Bergman se lança desde aí. Outros serão aqueles
que o tomarão a si, que farão dele o que estiver ao seu dispor, ao jeito que
lhes for o mais razoável, ou aos modos de sua obsessão, toda e qualquer.
Woody Allen fez a seu modo o legado de Bergman que lhe coube. Walter
Hugo Khouri também. E mesmo quem não faz cinema, quem não o realiza,
a seu modo comporá o que virá a ser o legado de Bergman. Mas nada que
isto diga respeito ao próprio Bergman como mandatário de sua recepção.
2. Gostaria que você me explicasse melhor de que maneira Bergman “toma o
cinema como matéria de pensamento”. Em Antonioni (que curiosamente
faleceu no mesmo dia que Bergman), os espaços vazios, os tempos
mortos e os enquadramentos têm função de pensamento. É como se o
próprio filme se tornasse o objeto problemático, mais que um meio de
www.andrequeiroz.art.br
Em primeiro lugar, eu diria que concordo com o que afirmas acerca de
Antonioni: os espaços vazios, os tempos mortos. Mas note que, ao falar da
função do pensamento, ou noutro termo, o pensar do pensamento em
Antonioni, apontas algo que poderíamos evocar sob a alegoria da
vertigem: o vazio, o tempo longuíssimo que parece arremeter aos buracos
em que supostamente nada é o que se dá. Supostamente, porque o vazio,
o buraco de tempo seria a condição inevitável do movimento. Do pensar
do pensamento. A vertigem, a condição. O que dizer de Tarkovski senão
esta convocação ao tempo morto. Em Stalker, por exemplo. Em Bergman,
também o cinema se torna objeto problemático, e isto logo que a princípio
de conversa, porque senão seria dizer que o que se faz não inscreveria a
diferença de que eu falara na outra questão. Tornar problemático porque
d’algum modo é já a condição do estar fazendo cinema. Isto nele, como
também noutros, Antonioni e Tarkovski são exemplos, como Glauber e
Júlio Bressane são também exemplos disto. Não se trata simplesmente de
contar histórias. Mas parece forçoso que, aqui e ali, algo se conte, algo se
expresse, algo se efetue. Mas o que dizer das formas do contar? Das
formas de expressão? Das modulações que se promove? Um cinema de
problemas... E isto porque seria desde um campo de problemas que algo
se elabora – um certo cinema, uma certa literatura, uma certa expressão
teatral. Ainda que talvez nada se resolva naquilo que se faça. Mas algo se
elabora. Penso em A Hora do Lobo – aquelas alucinações da personagem
de Max Von Sydow como modo de sua forma de expressão, a agonia que
seria antes a da impossibilidade de tocar o outro de forma mais fronteiriça,
mais de perto, e então, a solidão que é todo o tempo, mas que é também
da ordem daquilo que convoca a um de fora (dehors) da personagem: não
o que se lhe dá como experiência (como gordura, calosidade, como
marcas pessoais), mas o que o convoca a que ele se precipite. E também a
www.andrequeiroz.art.br
personagem de Liv Ullmann na cena final deste mesmo filme: o olhar na
câmera, o barulho do tempo na forma de um grande relógio marcando a
cena, está ali a resolver-se algo? Está-se ali a afirmar a condição na que se
é? Quem sabe se é do desamparo de que se trata, da solidão ontológica?!
Bergman resolve isto de forma fílmica – basta notar todos os contornos da
cena. Não diria que em Bergman seja, tal como falaste de Antonioni, uma
questão de ideologia, qual seja, aquilo que lá se resolve, ou que lá se
exponha – um cinema como representação do mundo, como se fosse
Bergman querendo dizer isto ou aquilo, as suas verdades, ou as suas
opiniões acerca do estado de coisas. Mas naquilo que ele apresenta, o que
se apresenta é também carregado de tempos mortos, ou de espaços
vazios, e agora eu já não digo na perspectiva dos enquadramentos, ou
mesmo na angulatura possível a que se destinaria um certo plano, um
certo modo de composição da coisa fílmica, tão somente. Diria que os
quadros do que ele nos fornece são quadros que indicam claramente este
campo problemático que está buscando se resolver, mas que sabe ser
toda e qualquer resolução da ordem da precariedade, da incompletude.
São quadros agônicos que escapam a cada instante daquilo que, a
princípio, poderíamos procurar decodificar de forma estagnada, inerte,
plena. E disto, a impossibilidade de pensarmos o que Bergman fez sob os
termos de um método. Bergman implica o processo, e o supõe.
3. Os quatro primeiros filmes de Bergman - Crisis (1945), Chove em nosso
amor (1946), Um barco para a Índia (1947), Música na noite (1948) foram feitos por encomenda, a partir de adaptações de peças. Nota-se
que nesses filmes há influência forte do neo-realismo, movimento
cinematográfico em moda na época. Em seu primeiro filme feito com
roteiro próprio, Porto (1948), seu estilo pessoal emerge, pois aqui o
mundo externo é relegado ao segundo plano em prol do mundo interior.
O que, na sua biografia, tornou possível esse encontro com a
subjetividade humana no início de sua carreira? Quais os primeiros
temas que vão surgir?
www.andrequeiroz.art.br
Questão a saber seria: qual o lugar da assinatura numa obra coletiva, e
será que o cinema remete seu temário a um suposto autor-único que o
controlasse ao ponto de fazer dos possíveis que ele (obra fílmica) evoca, o
retrato deste mesmo autor? Voltemos à questão: um filme sob
encomenda. E a questão parece já afirmar algo: uma vez sob encomenda,
não é Bergman. Mas vejamos: quem dirigiu o filme? Bergman. Mas será
isto dizer que o diretor é o autor? Porque se o for, nada posteriormente
mudará. Bergman permanecerá sob o estatuto de diretor - que
supostamente imprime a sua marca. Ou será que tal marca se dividirá, por
exemplo, com a direção de fotografia? Ou será que a marca impressa se
distribuirá também com aquele que for o roteirista? E a questão que daí
sairá será uma outra, veja bem: qual dos filmes de Bergman é mais
explicitamente Bergman – os que ele dirigiu sob encomenda (sem ser o
seu roteirista), ou os que ele não dirigiu (mas que assinava o roteiro), por
exemplo: As melhores intenções (1992), com direção de Bille August? Ou
ainda: será que um filme como Crianças de domingo, roteirizado por
Bergman, e dirigido pelo seu filho Daniel seria mais próximo dele do que
Infiel, roteiro de Bergman e dirigido por Liv Ullmann? Quem melhor
conheceria Bergman a ponto de forjar a mímesis? Outra vez retomando a
questão: será que Porto (1948) seria a sua estréia? Ou melhor, seria a
estréia de seus fantasmas lançados à mesa, a estréia dos chistes
desavisados, que o tomassem de súbito, como que num arrasto, e então
ele se revelasse inteiro? Creio que não.
4. Pois bem, se é possível falarmos da assinatura, da marca que Bergman
imprimiu mesmo em seus primeiros filmes, feitos por encomenda, o que a
caracteriza? Enquanto inquietação artística, o que permanece presente
nesses filmes, nos que ele fez com roteiro próprio e nos que ele apenas
escreveu o roteiro, mas não dirigiu?
www.andrequeiroz.art.br
Mas veja que falei ‘supostamente’ a marca se faz. Diria, antes, que estás
insistindo na questão já respondida, e a forma que sugeri ao respondê-la,
noutro modo de dizer-te, era de que a questão talvez não valesse. Ênfase
no ‘talvez’. Se alguém discordar em gênero, número, grau e forma, está
certo, entendo. Apenas digo dos riscos que ela traz consigo, a questão. E
isto pelo que ela já sugere como que líquido e certo. Pelo menos, os seus
pressupostos: a idéia de um filme sob encomenda que trouxesse nele, no
fato de uma demanda externa, o princípio de sua realidade que, talvez,
acabasse por lhe constranger nos seus percursos ilimitados. Seria o caso
de soltarmos os filmes numa inscrição bem mais extensa do que a
inscrição autoral. E isto será forma de recusar também esta demanda
interna. Nem o mundo objetivo, real (?), nem o sujeito atrás (agência
fomentadora de sentidos e de valores), em recuo, de plantão. Claro está
que há um certo “traçado” bergmaniano. Mas isto diria respeito a um olhar
de depois a inferir, aos juízos que se lhe voltam desde bocas distantes
(críticos, espectadores, um passante na rua mais atento, uma dona de
casa entediada), a um olhar retroativo que buscasse enovelar tudo, todas
as supostas alíneas que viesse a compor o que entendêssemos por
cinema, e por Bergman. Dizer ‘isto é Bergman!’ é pressupor um mapa de
possibilidades todo este já realizado, aplanado sobre uma superfície,
bastante bem demarcado nas suas zonas de fronteira o tal mapa: ‘tem
rosto em primeiro plano’ é Bergman, ‘traz temário reiterado acerca da
morte’ é Bergman, ‘falta um clima cool’ é Bergman, ‘traz diálogos em
profusão’ é Bergman. Não creio que seja assim. Seria apequená-lo.
Depositá-lo no interior do claustro. Sugiro que o esgarcemos, o que é a
via oposta. Podemos ler As Elegias de Duíno, de Rilke, e dizer ‘isto é
Bergman’. Strindberg. Thomas Bernhardt. ‘Quem, se eu gritasse entre as
legiões de anjos, me ouviria?’, Rilke, mas bem que poderia caber entre os
praguejos de Anthonius Block, ou não? Enxergar Nietzsche nalgum
Bergman, no pastor Thomas Ericsson de Luz de Inverno. ‘Que culpa temos
nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância?’,
www.andrequeiroz.art.br
Jorge de Lima em Invenção de Orfeu, mas diga-me, será que não serias
capaz de encontrar em Bergman, digo nos filmes de Bergman, lugar de
depósito a este verso, a esta inflexão, mesmo e ainda que como epígrafe?
Ou os percalços do Jô bíblico na personagem de Max von Sydow em A
Fonte da Donzela. Ainda assim em fatiados, aqui e ali cabendo o grau
elevado de expressão, noutras já tudo será o que foge pelos lados. São
desde as bordas que se nos compomos, as zonas fluidificas nas que
ensejamos um ponto, um traço - móvel, precário, fugidio o traço, o rosto, a
assinatura. Voltemos aos filmes. Vejamos um exemplo: O Silêncio. Nele há
trechos inteiros em que prevalece o olhar. O olhar da criança. De esguelha,
o olhar. Atrás da porta na cena do sexo entre dois adultos. Está-se inteira
no olhar a criança do filme. Como se estivesse à espreita. Mesma espreita
que parece caber desde os olhos infantis das crianças de Fanny &
Alexander a ponto de enxergar o mágico nas coisas, o pai morto que vem
em visita. Uma marca de Bergman? Mas se falasses tudo o seu oposto de
filmes diversos? Se repetisses as mesmas inferências que sugeri há
pouco, ‘o falar demais das personagens’, ‘o primeiro plano no rosto’, e
etecétera, aqui e ali eu diria ‘ok ok’, ou melhor, talvez eu dissesse ‘aqui,
tudo bem’, ‘ali, não e não’. Onde então enquadraríamos Bergman? Entre o
mais ou o menos, nas zonas de sentidos e signos plenos, ou seria nos
interstícios em que tudo o que dele falamos resvala em corredeira para o
lado e se perde? Veja bem, é isto um tanto o estatuto da criação, ou não
seria? Ser capaz da incongruência como quem afronta e se deixa afrontar
por um estranho estrangeiro (o que se é com relação a si mesmo). Não
poderia ficar ileso aquele, aquilo que entendemos como autor, não é
mesmo? Não poderia continuar lá intacto, sóbrio, esmerilhado, intocado
no santo altar da inspiração a ver se baixa uma entidade luminosa, ou a
ver se se encerra uma gestalt, ou a postos e em grita a dizer a si mesmo
‘Eureka!’ Pense em Foucault dizendo da autoria um dispositivo de
controle: a escritura literária passando a ser assinada justo quando se
percebe que por ali se davam entorses nos dispositivos de individuação e
www.andrequeiroz.art.br
então os registros de poder/saber dirão: ‘torna-te aquele que tu és’, e de
imediato, ‘deixa que eu te catalogue, que eu te conheça!’. Coisas de
fichário de polícia. Prefiro antes a surpresa, a errança, o assalto da
incongruência se for o caso a abertura de um livro, a ida ao cinema, a
assistência de um balé, de um teatro. Por exemplo, quando assisti a
Saraband, o único dos filmes de Bergman que estive presente a uma
estréia em cinema, eu já havia escutado coisas nos media que dizia ser ele
a continuação do Cenas de um Casamento, os mesmos personagens, os
mesmos atores. Como se aprontassem o terreno à novidade impossível:
‘Vá e reconheça, como quem pergunta: onde está o Wally?
Vá e
reconheça entre os muitos, o nome santo!’. Ok, fui. E tudo se me enganou.
Bergman se me enganou. Os atores se me enganaram. Estavam todos lá,
em conluio a dizer: ‘Me reconheces?’. Aquele filho crescido, aquela
relação agônica com o pai, donde surgiram? Talvez me remendem: ‘da
cabeça de Bergman!’, e isto dito assim de ‘bate-e-pronto’ talvez
convencesse, mas será que Bergman se esquecera de que não havia este
personagem em Cenas de um Casamento, que não havia esta relação
naquele triângulo de outrora, e então dirão: ‘ele está senil!’, ótimo, ótimo,
então é isto, a criação deve primar pela senilidade como condição de um
seu constante esquecer-se.
5. Há quem goste de evocar Sartre e o existencialismo ao se analisar a obra
de Bergman. Ele aceitava essa relação? Bergman se interessava pela
filosofia de sua época?
Desconheço se Bergman teve relações com Sartre. Ele devia estar
ocupado em demasia para ficar destilando críticas acerca das filiações que
se lhe atribuíam. Aliás, sempre e sempre será o dia exato, a hora certa e
pontual para que se relacione A com B, ciclano e beltrano. Faz parte dos
rituais de identificação: diga-me com quem tu andas e eu te direi do que
padeces! Creio que Bergman aceitaria a si a multiplicidade dos nomes, ele
www.andrequeiroz.art.br
próprio a dizer: meu nome é legião! Outro modo, vejamos: Bergman era
um homem culto, um leitor voraz. Estava atento ao que se fazia àquela
época. Mas, com certeza, que sua atenção não se bastava à filosofia de
sua época. Ou será que a face múltipla da morte - expressa em muitos de
seus filmes - pode e deve se restringir a uma só, qual seja, ao absurdo da
existência, à solidão no mundo, às afirmações libertárias da Chiquita
Bacana do Braguinha?
6. Após anunciar sua despedida do cinema com Fanny & Alexander,
Bergman pretendia voltar a fazer cinema com um projeto para filme
mudo, com longas seqüências sem diálogo. Era a possibilidade de
rompimento com o gênero de filme dialogado e teatral que até então
desenvolvera. Por que ele não levou esse projeto adiante?
Talvez porque suas obsessões fossem loquazes, e talvez mesmo porque
àquela época, em plena efervescência conturbada das sociedades
comunicação de massa não houvesse um sursis ao silêncio. Deleuze
sugere isto. Não sobre Bergman. Mas sobre a impossibilidade de calar
quando a tagarelice é trampolim ao poder...
7. Bergman sempre teve uma saúde frágil. Sofria de intensas dores de
estômago, que o deixaram internado diversas vezes, e fortes crises de
insônia. Houve períodos em que ele fez um filme por ano e ainda era
envolvido com política cultural, chegando a ser conselheiro artístico da
Svensk Filmindustri e inspetor na escola de cinema do Instituto Sueco do
filme. Como ele conseguiu superar suas restrições físicas em atividades
que exigiam esforço e disposição integral?
Certamente que não seria com caminhadas matinais regadas a um
cardápio diet/light/natureba. O inverno nórdico não recomenda. Mas
vejamos uma forma de pensar tal questão: será do primado da saúde, a
www.andrequeiroz.art.br
bela compleição física, os órgãos todo a postos que emerge uma obra?
Fico a pensar em Nietzsche em suas imensas dores de cabeça. E Artaud, o
que dizer de Artaud? Muitas vezes a dor é a condição de fomento da obra,
o seu esteio. Nietzsche se aposenta da Basiléia em 1879. Seu corpo não
resistia aos infortúnios da vida acadêmica. Liberou-se à sua obra. Veja
bem a ênfase na crase. Liberou-se à obra. Blanchot costumava dizer:
quem convoca é a urgência da obra. Bergman está depositado nesta
urgência que lhe convoca. Assim mesmo, vale ressaltar, uma obra não
prescreve a plena saúde aquele que se lhe dá – como se ela sugerisse: vai,
cuida do corpo, ajeita-te, e se os sintomas não desaparecerem, procure
um médico! Isto bem que caberia numa campanha de obra solidária! Ou
em um comercial de terceira linha para vender plano de saúde aos
intelectuais! Mas vejamos um ponto curioso: falaste das dores de
estômago. Quem sabe seja desde aí que se constrói as condições de uma
obra. De uma moléstia de intestinos. E não é graça o que faço. Penso em
Céline a dizer: tarefa inglória a da superação, exigência arcaica e
contumaz, fazer superhomem dia e noite do sub-homem claudicante que
nos deram. Bergman está aí. Precisamente aí. Pondo dedos, mãos e pés
no charco de sua (nossa) condição.
8. Bergman afirmava que, durante toda sua infância e adolescência, o meio
familiar, a escola da época e a vida calma e religiosa não o despertavam
emocionalmente para o mundo. Acostumado com esse isolamento, a
entrada no cinema e no teatro – que são artes de fruição imediata com o
público - deve ter sido um choque para ele. Como ele reagia diante do
que o público e a crítica diziam sobre sua obra?
Com escárnio. Bergman envergava imenso mau-humor. Bom notar que o
que mais o empanturrava em ira era a tolice. Sobretudo a tolice daqueles
que buscavam aspectos de sua vida para lançar-lhe ao rosto como
imprecações: estás desnudo de tuas vestes, eu te decifro sr. Ingmar!
www.andrequeiroz.art.br
Bergman nestas horas se recolhia. Cansaço, insônia. Revirava-se em
culpa. Por vezes, entretanto, no ato mesmo de se revirar na ausência
imensa de um sono apaziguador, eis que ele acabava por encontrar uma
companheira ao seu lado. E veja bem que não era uma qualquer: Harriet
Andersson, Ingrid Thulin, Bibi Andersson, Liv Ulmann. Claro está que cada
qual à sua hora. Pelo menos, assim creio eu. Podemos dizer que filhos e
amores eram o resultado indireto da crítica que lhe faziam. Pelo número
elevado dos filhos, vemos que não eram poucas as críticas.
9. Apesar desse mau-humor em relação à crítica, Bergman não deixou de
refletir sobre tal postura. No início do livro Imagens, ele comenta que
achou pouco sinceras as respostas que deu aos jornalistas, que o
entrevistaram para o livro Bergman sobre Bergman. “Segundo o texto,
dou a impressão de não responder com sinceridade, mantendo-me o
tempo todo cauteloso, até com um pouco de receio”. Isso me recorda o
fastio de John Ford em relação às perguntas de Peter Bogdanovich, no
documentário Directed by John Ford. Como é possível a interpretação da
obra de um cineasta, que não “entrega os pontos”, que não se propõe a
decifrar por completo sua própria obra?
Sigamos caminhos bifurcados. Um, no que tange à primeira parte da
questão. Bergman dizendo ‘menti’. Será que mentiu Bergman? E se se deu
isto, quando que a mentira se encerrará? Quando ele resolveu olhar a
fundo, submeter-se a uma espécie de auto-escrutíneo, e vasculhar-se,
tornando-se, quem sabe, escrivão de si mesmo? Tudo então que ele
escreverá a partir daí, neste percurso de leitura de si se justificaria aos
olhares do mundo. Certo, é o mundo a sugerir que a verdade se destila em
olhares retorcidos sobre o si-mesmo. Uma verdade emergindo de dentro.
E veja que ainda se espera que ela, a verdade, não seja ácida! Que seja
impostada ao estilo do mea culpa. ‘Não fui sincero, agora sou’. Qual das
metades preferes? Aquela que dizia de si o que depois se recusará, ou a
www.andrequeiroz.art.br
que faz pressupor aos outros que se mentiu um dia, mas que, hoje, está-se
consertado: ‘agora digo verdades!’. Vejamos, então, a outra parte da
questão. Assim o dizes: ‘alguém que não entrega os pontos’, ‘que não se
propõe a decifrar por completo a própria obra’, e então, o desfecho: ‘como
interpretar?’ Entregar pontos? Decifrar-se no dentro da obra? Curioso
pensar que sempre se está aquém. E curiosíssimo é pensar que se está
aquém de si próprio: sempre mais a fundo o fundo. Penso num escritor
português fabuloso, Vergílio Ferreira. É ele quem diz: nosso interior é todo
vísceras. Buscar-se nelas, encharcar-se, todo fantasma deveria ser isto:
composto no charco! Ter os pés sujos, a roupa fétida, o hálito pegajoso.
‘O como da interpretação?’, parece-me que cabia aqui ainda uma parte da
questão, esta que perguntava pelo ‘como’ da interpretação, ‘como seria
possível a interpretação?’, questão que se rebate noutra: ‘a quem a
interpretação?’ Seria aos psicanalistas, talvez. Mas vejamos: fantasmas,
charco, vísceras. Entendo que o preço da sessão fosse elevado! Dirão: teu
sintoma é caro! O que será forma de dizer do preço das luvas de pelica, e
do perfume francês para rebater...
10. “Acho que somos a soma do que lemos, do que vimos, do que vivemos.
Eu sou uma pequena pedra de um grande edifício”, dizia Bergman. Em
que edifício as obras de Bergman se consolidam? Se tivesse que
apontar, que cineastas o influenciaram e quais ele influenciou?
A noção de influência é precária, e perigosa. É forma de montarmos uma
árvore genealógica da criação. É sabido da importância da obra de Victor
Sjöström na Suécia na primeira metade do Século XX. Em Morangos
Silvestres, lá está ele na figura do velho professor a esbarrar com o relógio
das suas horas, e parece-me que podemos dizer, o relógio que lhe
anunciava o sem tempo de sua condição. Bergman o está reverenciando.
Sua personagem é maravilhosa. Ainda que desfilando sob o terreno
arenoso das influências, categoria inóspita, diria que Woody Allen
www.andrequeiroz.art.br
reverencia Bergman em pelo menos três filmes: Maridos e Esposas;
Hannah e suas irmãs; Interiores. Ele diz isto. Repito aqui porque ele diz tal
coisa. François Ozon faz algo semelhante em Um amor em cinco tempos.
São referências a algo que Bergman havia feito a seu modo, desde suas
urgências, ao estilo de suas dores, no traço de uma imanência.
11. Bergman é lembrado como o cineasta da angústia, do desespero, da
verborragia. No entanto, ele fez vários filmes de comédia. Que tipo de
apreço ele tinha por esses filmes? Eles lhe satisfaziam?
Mas veja que as comédias eram as mais verborrágicas das obras. Mas que
falo? Não concordo com esta expressão: a verborragia. O que será que
quer dizer? Que os filmes falam em demasia, ou que os textos saíam aos
borbotões pela boca dos personagens? A questão fundamental a ser
situada ali, no lugar da boca que fala, é a máscara plástica do rosto.
Bergman é o ourives da rostidade. Ele está ali. Com o primeiro plano lá
focado: o rosto a desmanchar. Será capaz de uma expressão aterradora
em Face a Face, em Sonata de Outono, em Cenas de um Casamento. Mas
também ali, nestes filmes, se faz presente a candura, a calmaria, a leveza.
De um pólo a outro. Por vezes na faísca de um segundo. Eis a rostidade. A
tarefa da reescritura do que somos desde as possibilidades várias da
expressão.
12. De fato, Bergman procura sondar fisionomias, rostos, em vez de lugares
ou ambientes. Aqui volto a John Ford que, ao ser perguntado o que
queria encontrar filmando em desertos, respondeu: "a coisa mais
interessante deste mundo: o rosto humano". Mas o que é pertinente a
Bergman ao traçar essa cartografia do rosto?
www.andrequeiroz.art.br
Tudo aquilo que ele pôde no quando de sua realização. Isto lhe é
pertinente. Agora, sobretudo agora, poderíamos dizer isto de forma mais
completa, e também de forma mais petulante, como se falássemos:
detemos o mapa dele, e de tal modo esta afirmação que o bom verbo é
aquele que evoque a detenção. Afinal somos posteriores a sua morte, e
podemos olhá-lo de viés, montarmos uma retrospectiva, dizer dele o que
sequer ele o soube acerca de si: a data de sua morte. O que lhe é
pertinente? – perdoa-me dizer, mas: eis uma falsa questão! Outra questão
seria: o que vem a ser esta rostidade presente nos filmes? Mas tal questão
não se deu. E então, calo-me quanto a isto.
13. Creio que coloquei mal a pergunta. Não se trata de saber o que é
pertinente a Bergman – mesmo porque não saberemos o que, de
fato, ele pretendia (e creio que já discutimos isso). Mas sim o que há
de pertinente – no sentido de desdobramento sígnico – nesta
cartografia do rosto, ou como desejar, nessa rostidade?
Sigamos o que sugerem Deleuze & Guattari, em Mil platôs: o corpo não é
questão de objetos parciais, mas de velocidades diferenciais. Não importa
delimitar os traços identitários: aqui e ali, uma ruga; no canto esquerdo da
boca, o repuxe; uma falha na sobrancelha direita; as orelhas em ponta,
esticadas em abano. Seria o caso justo o inverso: o quanto que se escapa
disto. Lembremos o quanto que se deserta disto - o homem pleno e
definido, o homem como projeto da Modernidade, o homem incauto a
realizar-se desde o trabalho que é morte lenta - num filme como Persona: as
personagens como trânsfugas. Do que fogem as personagens? Fogem do
si-mesmo que se lhas acometeu, que se lhas martelou nos pregos da moral.
Cada qual a seu canto, cada qual a sugerir que se está encerrada no simesmo: a enfermeira benevolente e loquaz, a atriz votada a seu silêncio
inquebrantável. O filme é a esteira de uma desconstrução. Nele, o que
escoa senão as personagens inscritas no tempo? E se escoam, escoam de
si mesmas. Revisitam-se no deserto do sem-lugar onde tudo é móvel, e
www.andrequeiroz.art.br
onde nada é o que deixa marcas. Outra vez, aqui, Deleuze & Guattari a
dizer: O rosto é inumano no homem, desde o início; ele é por natureza
close, com suas superfícies brancas inanimadas, seus buracos negros
brilhantes, seu vazio e seu tédio. Rosto-bunker. A tal ponto que, se o
homem tem um destino, esse será mais o de escavar ao rosto, desfazer o
rosto e as rostificações, tornar-se imperceptível, tornar-se clandestino.
Logo após, eles citarão a Henry Miller em Trópico de capricórnio: Eu não
olho mais nos olhos da mulher que tenho em meus braços, mas os
atravesso nadando, cabeça, braços e pernas por inteiro, e vejo que por
detrás das órbitas desses olhos se estende um mundo inexplorado, mundo
de coisas futuras. Curioso que as imagens evocadas nada que dizem
respeito a um passado no tempo da infância, ou àquele charco de que
falamos estarem depositados os nossos pés e fantasmas. Nada que se
resolvesse em decifração retroativa, as chaves da existência a abrirem as
portas de uma nossa percepção: percebermo-nos em análise. Nada que
suponha uma porta a se abrir para dentro, e então uma outra porta, um vão
estreito no que circulem os ares exaustos do que simulamos, e então, e
somente então, um dia, qual seria este dia, o desanuviar do claustro no que
estávamos perdidos, será que a representar a farsa rasteira do cotidiano?
Mas qual a farsa, a fanfarra? Será (seria) o de que se decifra? Ou será
(seria) a do decifrar como pragmática contumaz do nosso conhecermonos? O que é dizer: ou o do que se sabe, ou do suposto saber que diz os
modos do conhecer-se? Nada que indique isto, as passagens supracitadas.
Deleuze, Guattari, Henry Miller, Bergman. Mas seria também o caso de
acrescentarmos alguns outros nomes a esta lista célebre: Artaud,
Nietzsche, Foucault. Ou Blanchot, que sugere: lá onde se pensa encontrar o
ser que a tudo explique, o núcleo que a tudo encerre, o que se nos dá é a
fenda. A cesura. O neutro. Diria isto de Bergman: seu traço fino parece
bordejar processos constituintes desde o qual, quem sabe, se chegue
àquele que somos, o destino em Nietzsche, o tornar-te aquele que se é. No
entanto, não é do sujeito que se está falando. Está-se falando de processos
www.andrequeiroz.art.br
de subjetivação nos quais se afirma como precário e fugidio o que
comumente se toma como prévio e formal. Àquela cena dos rostos se
superpondo em Persona não seria o modo de expressar a isto?
14. De alguma forma, seus filmes são resultado da interpretação dos atores,
todos profissionais oriundos do teatro. Que importância a escolha do
elenco exerce na construção da dramaturgia bergmaniana?
Creio que a importância é imensa. Bergman era excelente diretor de
atores. E ele se cansava de dizer: o lugar por excelência disto era o palco.
E ele era um homem de teatro.
15. Em filmes como O Sétimo Selo, A Fonte da Donzela e O Olho do Diabo, o
Deus de Bergman ainda era metafísico, cristão, criador, que regula a
moral dos homens. A partir de Através de um Espelho, esse Deus parece
se tornar ontológico, intrínseco ao homem, cabendo apenas ao ser
humano a responsabilidade de suas ações no mundo. O que tornou
possível essa mudança de perspectiva?
Nos referidos filmes, sobretudo nos dois primeiros, há de se deixar claro
que Bergman está procurando pensar desde planos de imanência distintos
de grande parte de seus outros filmes. Eu não faria esta distinção um tanto
apressada – o deus assim, o deus assado. Sétimo Selo, por exemplo, traça
um quadro da alta Idade Média na que o Cruzado Antônius Block, o
cavaleiro do filme, se vê face a uma angústia aterradora: eu que lutei em
nome de Deus e que não o percebo senão nos seus milagres, eu que
queria ver a face de Deus, falar-lhe de frente e que quando o busco apenas
o que encontro é o não-ser que se me anuncia. Sua questão é a questão de
todos que, inscritos naquele plano de imanência, se deixam atordoar de
www.andrequeiroz.art.br
forma vária. Por exemplo, o escudeiro Jons, que também não percebe
Deus, evoca a todo instante a graça de poder se mexer, de se deslocar, a
gravidade do movimento como afirmação. Também há a mulher
enamorada do demônio ou de deus, há a igreja que a queima na chama da
Inquisição. Veja bem que ali é o pensamento acerca da transcendência o
que está em pauta. E o seu correlato: como posso mover-me no vazio? Tal
questão ressurge em outro filme. Filme magnífico, diga-se de passagem.
Chama-se Luz de inverno. Agora é outro o plano de imanência. Está-se
depositado no período da guerra fria. O filme descreve este tempo.
D’algum modo o descreve. Está-se numa pequenina aldeia sueca. E um
pescador vai consultar o pastor porque ouviu dizer que a China fabricou a
bomba atômica e que tudo depende dos humores de seus dirigentes. Será
que há “Alguém” a interceder por nós. E então, o pastor Thomas Ericsson
dirá para ele: deus morreu. Não há desígnio. Estamos livres do deusaranha que nos prendia em sua teia, que nos prendia com seu livrearbítrio. O desfecho do filme é fantástico. Convoco a que todos assistam a
este filme. Aliás, para evocar o capítulo da famigerada influência de que já
falamos, Bergman faz menção a outro filme como se fora referência deste.
Trata-se de Diário de um padre, de Robert Bresson. Magnífico este filme.
Mas atente às suas diferenças, às suas pontualidades, às suas
assinaturas.
16. Em Persona, o corpo substitui a alma. A linguagem da protagonista
(Elizabeth Vogler) se desagrega e sua comunicação se dá pela projeção
no outro (Alma). Podemos dizer que a mudança de olhar em relação a
Deus é o que vai possibilitar o aprofundamento da questão da
responsabilidade ética dos personagens bergmanianos?
Não vejo relação entre as partes da questão. Mas vejamos: a primeira parte
se trata de algum trocadilho? Corpo/alma e os nomes das personagens?
Diria mesmo o contrário: ali e sempre, tudo é corpo. Spinoza, Nietzsche,
www.andrequeiroz.art.br
Bergman. Eis uma tríade curiosa. Inadvertida aos ortodoxos. Mas é preciso
rir deles, ou não será? Outra vez, pelo riso à ortodoxia, une-se a tríade
arbitrária: Spinoza, Nietzsche, Bergman. Noutro instante, diríamos, o
universo estaria cheio de deuses, ou de uma conspiração dos fantasmas a
nos provocar sustos. Penso nas crianças de Fanny e Alexander. Mas são
crianças, e a elas é dada a maravilhosa experiência da inocência. Até que
as pragmáticas do depois as separe disto. Sobre a segunda metade da
questão, de forma breve, eu diria talvez.
17. Talvez como?
Não diria que este seja o vetor único: a responsabilidade ética como
resultado de uma ausência que se faz inevitável. Prefiro pensar numa
política, qual seja, a da afirmação da condição na que estamos como
sendo aquilo de que se trata. Se se trata do acaso, afirmá-lo: o jogo de
dados. Se se trata do trágico, um certo Bergman trágico, afirmá-lo. Tratase de uma ética, assim como de uma política. Creio que poderíamos
buscar tais vetores desde os filmes de Bergman.
18. Nos filmes de Bergman, notamos referências a momentos de sua vida,
tornando assim sua obra autobiográfica. Seu último longa-metragem,
Saraband, foi feito como ajuste de contas com o lugar que representaram
as figuras paterna e materna em sua vida, bem como o relacionamento
conturbado com a ex-esposa Liv Ullmann. Bergman conseguiu dizer tudo
o que sentia sobre si mesmo, ao longo de mais de 60 anos de carreira?
Não tenho como concordar com esta questão. Sequer com o que ela
afirma. E ainda menos com a sua premissa, aquilo ao qual ela se funda, o
seu fundamento. Outra vez a vida pessoal. A questão que parece insistida:
o autor, o autor, o autor. Como se a elucidação do autor, dos seus
pequeninos dramas sujos, se toma prozac, se sofreu do desmame, se
www.andrequeiroz.art.br
sofria de amnésia, se apenas era capaz de um choro carpideiro uma vez
em público pudesse enovelar os devires de uma obra. Outra vez, aqui,
evoco Blanchot: o que torna uma obra possível é a morte do autor. Melhor
ainda: a morte é um direito do autor. Não está dizendo Blanchot que o
autor bom é autor morto. Veja bem!!! A questão é outra: trata-se de pensar
o impessoal que é o sujeito de toda obra, o neutro o lugar a que se atinge
a fala, a escritura. Creio que Bergman possa ter tido os seus casos, os
seus complexos, os seus traumas. Mas o que isto importa? E ainda, será
que não nos parece torpe tentar ler a sua obra por este viés? Como se
fosse lá que ele se resolvesse, lá que ele se elaborasse, lá que se desse o
seu laboratório clínico. Creio que é forma gasta uma tal maneira de se ler.
E então, quando a forma é gasta é porque já esgotamos tudo o que havia
para ser dito naquilo mesmo que estamos dizendo, e tal como lembra
Benjamim, aí a palavra assume a si a função da tagarelice. Recobremos
então o direito ao silêncio.
19. Apesar de você não concordar com a questão, o próprio Bergman
afirmou em Imagens e no Laterna Mágica que vários de seus filmes
remetem a momentos de sua biografia. Sobre Fanny & Alexander,
Bergman escreveu em Imagens: “Nota-se logo no início da idéia que eu
voltava ao mundo de minha infância. Aí está essa cidade com
universidade, a casa da minha avó e a velha cozinheira, o judeu que
morava num apartamento do pátio da mesma casa”. Pergunto: o que na
obra de Bergman independe de sua biografia?
Mas veja que já foi dito aqui que Bergman mentia. Será que mente o
Bergman citado? Será uma mentira a mais? Sobre a questão propriamente
dita, a obra a biografia, nada mais a dizer. Seria repetir-me.
www.andrequeiroz.art.br
André Queiroz é filósofo. Doutor em Psicologia Clínica. Professor no
Programa de Pós-graduação em Comunicação da Uff. Autor, entre outros,
de Tela Atravessada – ensaios sobre cinema e filosofia (1999), Em direção
a Ingmar Bergman (2007) e de Antonin Artaud, meu próximo (2007).
Camila Vieira é jornalista de O Povo, e graduanda em Filosofia na UECE.
www.andrequeiroz.art.br

Documentos relacionados