sentidos10

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sentidos10
OFERTA
SENTIDOS 10
Auto
da
Feira
Gil Vicente
PORTUGUÊS
ANA CATARINO
CÉLIA FONSECA
ISABEL CASTIAJO
MARIA JOSÉ PEIXOTO
Auto da Feira
Gil Vicente
FIXAÇÃO DE TEXTO
António José Saraiva,
(apresentação e leitura)
Teatro Gil Vicente,
Lisboa, Dinalivro,
ed. revista, 1988,
pp. 265-299.
NOTAS
António José Saraiva,
Teatro de Gil Vicente,
Lisboa, Manuscrito
Editores, 1984.
Auto da Feira
Figuras: Mercúrio1, Tempo, Serafim, Diabo, Roma2, Amâncio Vaz, Denis
Lourenço, Branca Anes, Marta Dias, Tesaura, Juliana, Dorotea, Móneca, Gilberto,
Nabor, Mateus, Justina, Vicente, Leonarda, Merenciana, Teodora e Giralda.
Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu assento,
diz:
Mer.
5
10
15
20
1
Pera que me conheçais,
e entendais meus partidos,
todos quantos aqui estais
afinai bem os sentidos,
mais que nunca, muito mais.
Eu sou estrela do céo,
e despois vos direi qual,
e quem me cá descendeo,
e a quê, e todo o al3
que me a mi aconteceo.
E porque a estronomia4
anda agora mui maneira,
mal sabida e lisonjeira,
eu, à honra deste dia,
vos direi a verdadeira.
Muitos presumem saber
as operações dos céos,
e que morte hão-de morrer,
e o que há-de acontecer
aos anjos e a Deos,
nas suas palavras é “estrela do céo” e “Deos das mercadorias”;
será também o organizador da Feira; 2 primeira cliente da Feira,
personagem alegórica; 3 tudo o que; o resto; 4 astronomia;
25
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e ao mundo e ao diabo.
E que o sabem têm por fé.
E eles todos em cabo
terão um cão polo rabo,
e não sabem cujo é.
E cada um sabe o que monta
nas estrelas que olhou;
e ao moço que mandou,
não lhe sabe tomar conta
d’um vintém que lh’entregou.
Porém quero-vos pregar,
sem mentiras nem cautelas,
o que per curso d’estrelas
se poderá adivinhar,
pois no céo nasci com elas.
E se Francisco de Melo5,
que sabe ciência avondo6,
diz que o céo é redondo,
e o sol sobre amarelo,
diz verdade, não lh’o escondo.
5
Francisco de Melo, matemático e astrólogo muito conceituado,
mestre dos filhos de D. Manuel; 6 sabe muito sobre ciência
1
Gil Vicente
45
50
Que se o céo fora quadrado,
não fora redondo, senhor.
E se o sol fora azulado,
d’azul fora a sua cor,
e não fora assi dourado.
E porque está governado
per seus cursos naturais,
neste mundo onde morais
nenhum homem aleijado,
se for manco e corcovado,
não corre por isso mais.
Et quantum ad stella Mars, speculum belli, et Venus,
Regina musicae, secundum Joannes Monteregio11:
90
95
55
60
65
70
75
80
85
2
E assi os corpos celestes
vos trazem tão compassados,
que todos quantos nacestes,
se nacestes e crecestes,
primeiro fostes gerados.
E que fazem os poderes
dos sinos resplandecentes?
Fazem que todalas7 gentes
ou são homens ou mulheres
ou crianças inocentes.
Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer, Capricornius
positus in firmamento coeli:
100
E porque Saturno8 a nenhum
influi vida contina,
a morte de cada um
é aquela de que se fina,
e não d’outro mal nenhum.
Outrossi o terremoto,
que às vezes causa perigo,
faz fazer ao morto voto
de não bulir mais consigo,
cantá de seu próprio moto9.
105
110
E a claridade encendida
dos raios piramidais
causa sempre nesta vida
que quando a vista é perdida,
os olhos são por demais.
E que mais quereis saber,
desses temporais e disso,
senão que, se quer chover,
está o céo pera isso,
e a terra pera a receber?
A lua tem este jeito:
vê que clérigos e frades
já não têm ao Céo respeito,
mingua-lhes10 as santidades,
e crece-lhes o proveito.
Mars12, planeta dos soldados,
faz nas guerras conteúdas,
em que os reis são ocupados,
que morrem de homens barbados
mais que mulheres barbudas.
E quando Vénus declina,
e retrograda em seu cargo,
não se paga o desembargo13
no dia que s’ele assina,
mas antes per tempo largo.
115
7
E quanto ao Touro e Carneiro,
são tão maus d’haver agora,
que quando os põe no madeiro,
chama o povo ao carniceiro
«senhor», c’os barretes fora.
Despois do povo agravado,
que já mais fazer não pode,
invoca o sino do Bode,
Capricórnio chamado,
porque Libra não lhe acode14.
E se este não hás tomado,
nem touro, carneiro assi,
vai-te ao sino do pescado,
chamado Piscis em latim,
e serás remediado.
E se piscis não tem ensejo,
porque pode não no haver,
vai-te ao sino do Cranguejo,
Signum Cancer, Ribatejo,
que está ali a quem no quer.
todas; 8 Saturno é, segundo a mitologia greco-latina, o Tempo, pai
de todos os deuses e homens: e, simultaneamente, o nome de um
astro; 9 na medida em que isso depende da sua própria vontade;
10
talvez deva ler-se “minguam-lhes”; diminuem-lhes; 11 Joannes
Monteregio, célebre astrónomo alemão; 12 Marte (forma latina);
13
despacho (de um requerimento ou pretensão oficial); 14 Touro,
Carneiro (Aries em latim), Bode (Capricórnio), Pescado (Piscis, Peixes),
Caranguejo (Cancer em latim) são nomes de signos do Zodíaco.
O Autor toma-os comicamente como nomes de carnes e peixes para
alimentação. Libra, também nome de um signo, significa em latim
Balança, mas está tomado no sentido de dinheiro. As duas estrofes
aludem à carestia da vida
Auto da Feira
Sequuntur mirabilia Jupiter, Rex regum, dominus
dominantium.
120
125
Júpiter, rei das estrelas,
deos das pedras preciosas,
mui mais precioso qu’elas,
pintor de todalas rosas,
rosa mais fermosa delas;
é tão alto seu reinado,
influência e senhoria,
que faz per curso ordenado
que tanto val um cruzado
de noite como de dia.
155
130
E faz que ũa nao veleira
mui forte, muito segura,
que inda que o mar não queira,
e seja de cedro a madeira,
não preste sem pregadura.
160
Et quantum ad duodecim domus Zodiacus, sequitur
declaratio operationem suam.
135
140
145
150
No Zodíaco acharão
doze moradas palhaças,
onde os sinos estão
no inverno e no verão,
dando a Deos infindas graças.
Escutai bem, não durmais,
sabereis per conjeituras15
que os corpos celestiais
não são menos nem são mais
que suas mesmas granduras.
E os que se desvelaram,
se das estrelas souberam,
foi que a estrela que olharam,
está onde a puseram,
e faz o que lhe mandaram.
E cuidam que Ursa maior,
Ursa minor e o Dragão,
e Lepus, que tem paixão,
porque um corregedor
manda enforcar um ladrão?
165
170
175
180
15
Não, porque as constelações
não alcançam mais poderes,
que fazer que os ladrões
sejam filhos de mulheres,
e os mesmos pais varões.
E aqui quero acabar.
E pois vos disse até ’qui
o que se pode alcançar,
quero-vos dizer de mi,
e o que venho buscar.
Eu são Mercúrio, senhor
de muitas sabedorias,
e das moedas reitor,
e deos das mercadorias:
nestas tenho meu vigor.
Todos tratos e contratos,
valias, preços, avenças,
carestias e baratos,
ministro suas pretenças,
até as compras dos sapatos.
E porquanto nunca vi
na corte de Portugal
feira em dia de Natal,
ordeno ũa feira aqui
pera todos em geral.
Faço mercador-mor
ao Tempo, que aqui vem,
e assi o hei por bem.
E não falte comprador,
porque o Tempo tudo tem.
conjeturas
3
Gil Vicente
Entra o Tempo, e arma ũa tenda com muitas cousas,
e diz:
Tem.
185
190
195
200
205
4
Em nome daquele que rege nas praças
d’Anvers e Medina16 as feiras que têm,
começa-se a feira chamada das Graças,
à honra da Virgem parida em Belém17.
Quem quiser feirar,
venha trocar, qu’eu não hei-de vender18.
Todas virtudes qu’houverem mister19,
nesta minha tenda as podem achar,
a troco de cousas que hão-de trazer.
Todos remédios especialmente
contra fortunas ou adversidades
aqui se vendem na tenda presente,
conselhos maduros de sãs calidades20.
Aqui se acharão
a mercadoria d’amor e rezão,
justiça e verdade, a paz desejada21,
porque a Cristandade é toda gastada
só em serviço da openião.
Aqui achareis o temor de Deos,
que é já perdido em todos estados;
aqui achareis as chaves dos Céos,
muito bem guarnecidas em cordões dourados.
E mais achareis
soma de contas, todas de contar
quão poucas e poucos haveis de lograr22
as feiras mundanas; e mais contareis
as contas sem conto qu’estão por contar.
210
215
16
E porque as virtudes, senhor Deos, que digo,
se foram perdendo de dias em dias,
com a vontade que deste ò23 Messias
memoria24 o teu anjo que ande comigo,
Senhor, porque temo
ser esta feira de maos compradores,
porque agora os mais sabedores
fazem as compras na feira do Demo,
e os mesmos diabos são seus corretores.
em Anvers (Antuérpia) e Medina del Campo realizavam-se duas
das mais importantes feiras da Europa; 17 que pariu em Belém;
18
como se verá na continuação, trata-se de uma feira de trocas
e não de compras a dinheiro; 19 de que precisarem; 20 qualidades;
espécies; 21 a Europa era, nesta época, assolada pelas guerras entre
Carlos V e Francisco I de França. Em maio de 1527, Roma foi tomada
e saqueada pelas tropas de Carlos V. Havia ainda a dissidência protestante; 22 ter proveito; 23 ao; 24 forma do verbo memoriar; lembrar
Auto da Feira
Entra um Serafim enviado por Deos a petição do
Tempo, e diz:
Ser.
220
225
À feira, à feira, igrejas, mosteiros,
pastores das almas, Papas adormidos!
Comprai aqui panos, mudai os vestidos,
buscai as çamarras dos outros primeiros,
os antecessores.
Feirai o carão25 que trazeis dourado,
ó presidentes do Crucificado!
Lembrai-vos da vida dos santos pastores
do tempo passado.
Ó Príncipes altos, império facundo26,
guardai-vos da ira do Senhor dos Céos!
Comprai grande soma do temor de Deos
na feira da Virgem, Senhora do mundo,
exemplo da paz,
pastora dos anjos, luz das estrelas.
À feira da Virgem, donas e donzelas,
porque este mercador sabei que aqui traz
as cousas mais belas!
230
235
250
Tem.
Dia.
Tem.
255
Dia.
260
265
Quero-me fazer à vela
nesta santa feira nova.
Verei os que vêm a ela,
e mais verei quem m’estrova29
de ser eu o maior dela.
És tu também mercador,
que a tal feira t’ofereces?
Eu não sei se me conheces?…
Falando com salvanor30,
tu diabo me pareces.
Falando com salvos rabos31,
inda que me tens por vil,
acharás homens cem mil
honrados, que são diabos,
que eu não tenho nem ceitil32.
E bem honrados, te digo,
e homens de muita renda,
que tem dívedo33 comigo.
Pois não me tolhas a venda,
que não hei nada contigo.
Entra um Diabo com ũa tendinha diante de si, como
bofolinheiro27, e diz:
Dia.
240
245
Eu bem me posso gavar28,
e cada vez que quiser,
que na feira onde eu entrar
sempre tenho que vender ,
e acho quem me comprar.
E mais vendo muito bem,
porque sei bem o que entendo;
e de tudo quanto vendo
não pago sisa a ninguém
por tratos que ande fazendo.
25
semblante; 26 eloquente. A palavra parece ter, por vezes, em Gil
Vicente, um significado meramente encarecedor e nobilitante, próximo de grande, poderoso; 27 vendedor ambulante de bugigangas;
28
gabar; 29 estorva; 30 com licença. A palavra passou a designar
também uma parte do corpo, o traseiro, cujo nome se evitava pronunciar em certas circunstâncias; 31 é uma paródia da expressão
salvanor; 32 moeda, fração do real. “Não ter alguém em dois ceitis”
é achar que alguém não presta para nada; 33 “ter dívedo com alguém”: ser parente ou muito relacionado com alguém
5
Gil Vicente
Tempo (ao Serafim):
Tem .
Dia.
270
275
280
Ser.
Dia.
285
290
295
Senhor, em toda maneira
acudi a este ladrão,
que há-de danar a feira.
Ladrão? Pois haj’eu perdão,
se vos meter em canseira!
Olhai cá, anjo de bem:
eu, como cousa perdida,
nunca me tolhe ninguém
que não ganhe minha vida,
como quem vida não tem.
Vendo dessa marmelada,
e às vezes grãos torrados.
Isto não releva nada;
e em todolos mercados
entra a minha quintalada34.
Muito bem sabemos nós
que vendes tu cousas vis…
I35 há de homens ruins
mais mil vezes que não bôs36,
como vós mui bem sentis.
E estes hão-de comprar
disto que trago a vender,
que são artes de enganar,
e cousas pera esquecer
o que deviam lembrar.
Que o sages37 mercador
há-de levar ao mercado
o que lhe compram milhor;
porque a ruim comprador
levar-lhe ruim borcado38.
305
E mais as boas pessoas
são todas pobres a eito;
e eu por este respeito
nunca trato em cousas boas,
porque não trazem proveito.
Toda a glória de viver
das gentes é ter dinheiro,
e quem muito quiser ter
cumpre-lhe de ser primeiro
o mais ruim que puder.
310
E pois são desta maneira.
os contratos dos mortais,
não me lanceis vós da feira
onde eu hei-de vender mais
que todos, à derradeira.
300
6
Ser.
Dia.
315
320
Ser.
325
Dia.
Às vezes vendo virotes41,
e trago d’Andaluzia
naipes com que os sacerdotes
arreneguem cada dia,
e joguem até os pelotes42.
Não venderás tu aqui isso,
que esta feira é dos céos:
vai lá vender ao abisso43,
logo, da parte de Deos.
Senhor, apelo eu disso!
Se eu fosse tão mao rapaz,
que fizesse força a alguém,
era isso muito bem;
mas cada um veja o que faz,
porque eu não forço ninguém.
Se me vem comprar qualquer
clérigo, ou leigo, ou frade
falsas manhas de viver,
muito por sua vontade,
senhor, que lhe hei-de fazer?
330
335
E se o que quer bispar44
há mister45 hipocresia,
e com ela quer caçar,
tendo eu tanta em perfia,
porque lh’a hei-de negar?
E se ũa doce freira
vem à feira
por comprar um inguento46,
com que voe do convento,
senhor, inda que eu não queira
lhe hei-de dar aviamento47.
340
345
Mer.
Dia.
350
Venderás muito perigo,
que tens nas trevas escuras.
Eu vendo prefumaduras39,
que, pondo-as no embigo40,
se salvam as criaturas.
Alto, Tempo! aparelhar48,
porque Roma vem à feira.
Quero-me eu concertar,
porque lhe sei a maneira
de seu vender e comprar…
Auto da Feira
Entra Roma, cantando:
Rom.
355
Sobre mi armavam guerra;
ver quero eu quem a mi leva.
Três amigos que eu havia,
sobre mi armam prefia49;
ver quero eu quem a mi leva50.
Fala
360
365
370
Vejamos se nesta feira,
que Mercúrio aqui faz,
acharei a vender paz,
que me livre da canseira
em que a fortuna me traz.
Se os meus me desbaratam,
o meu socorro onde está?
Se os Cristãos mesmos me matam,
a vida quem m’a dará,
que todos me desacatam?
Pois s’eu aqui não achar
a paz firme e de verdade
na santa feira a comprar,
cant’a mi dá-me a vontade
que mourisco hei-de falar51.
34
parte numa mercadoria (dava-se este nome à parte da pimenta
que certos particulares podiam carregar por conta própria nas
naus da Índia)
35
aí
36
bons
37
sensato; prudente
38
brocado; também se emprega no sentido geral de pano
39
perfumes
40
umbigo
41
seta curta
42
certa peça de vestuário; “vender até o pelote” é equivalente a
“vender até a camisa”
43
abismo; inferno
44
ser bispo (em Gil Vicente, tem uma intenção satírica)
45
precisa
46
unguento
47
arranjo de vida
48
preparar
49
porfia; teimosia
50
a cantiga alude às lutas dos príncipes cristãos pela posse
de Roma e os “três amigos” são provavelmente o rei de França,
Carlos V, e a fação do Papa, de cujas guerras resultou o saque de
Roma
51
os turcos ameaçavam gravemente a Europa e Roma mostra-se
receosa de ainda vir a ser ocupada pelos muçulmanos
7
Gil Vicente
Dia.
Rom.
375
Dia.
380
Rom.
Dia.
385
390
395
400
Senhora, se vos prouver,
eu vos darei bom recado…
Não pareces tu azado
pera trazer a vender
o que eu trago no cuidado.
Não julgueis vós pola cor,
porque em al52 vai o engano;
ca53 dizem que sob mao pano
está o bom bebedor:
nem vós digais mal do ano.
Eu venho à feira dereita
comprar Paz, Verdade e Fé.
A verdade pera quê?
Cousa que não aproveita,
e avorrece, pera que é?
Não trazeis bôs fundamentos
pera o que haveis mister54;
e a segundo são os tempos,
assi hão-de ser os tentos,
pera saberdes viver.
E pois agora à Verdade
chamam Maria Peçonha,
e parvoíce à vergonha,
e aviso à ruindade,
peitai55 a quem vo-la ponha,
a ruindade, digo eu.
E aconselho-vos mui bem,
porque quem bondade tem
nunca o mundo será seu,
e mil canseiras lhe vêm.
Rom.
420
405
410
430
Dia.
435
415
8
E como formos avindos
nos preços disto que digo,
vender-vos-ei como amigo
muitos enganos infindos,
que aqui trago comigo.
E pois já sei o teu jeito,
quero ir ver que vai cá.
As cousas que vendem lá
são de bem pouco proveito
a quem quer que as comprará…
Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio, e diz:
Rom.
440
Ser.
450
455
58
Porque a troco do amor
de Deos, te comprei mentira,
e a troco do temor
que tinha da sua ira,
me deste o seu desamor.
E a troco da fama minha
e santas prosperidades,
me deste mil torpidades60.
E quantas virtudes tinha
te troquei polas maldades.
425
445
Vender-vos-ei nesta feira
mentiras vinta três mil,
todas de nova maneira,
cada ũa tão sutil56,
que não vivais em canseira:
mentiras pera senhores,
mentiras pera senhoras,
mentiras pera os amores,
mentiras que a todas horas
vos naçam57 delas favores.
Tudo isso tu vendias,
e tudo isso feirei,
tanto que inda venderei,
e outras sujas mercancias59,
que por meu mal te comprei.
Tão honrados mercadores
não podem leixar61 de ter
cousas de grandes primores62;
e quanto eu houver mister
deveis vós de ter, senhores.
Sinal é de boa feira
virem a ela as donas tais;
e pois vós sois a primeira,
queremos ver que feirais
segundo vossa maneira.
Ca63, se vós a paz quereis,
senhora, sereis servida,
e logo a levareis
a troco de santa vida.
Mas não sei se a trazeis…
Porque, Senhora, eu me fundo
que quem tem guerra com Deos,
não pode ter paz c’o mundo;
porque tudo vem dos céos,
daquele poder profundo.
Auto da Feira
Rom.
460
Ser.
465
A troco das estações
não fareis algum partido,
e a troco de perdões,
que é tesouro concedido
pera quaisquer remissões?
Oh! vendei-me a paz dos céos,
pois tenho o poder na terra!
Senhora, a quem Deos dá guerra,
grande guerra faz a Deos,
que é certo que Deos não erra.
500
505
Dia.
470
Rom.
Mer.
475
480
Rom.
Mer.
485
490
495
Vede vós que Lhe fazeis,
vede como O estimais,
vede bem se O temeis…
Atentai com quem lutais,
que temo que caireis.
Assi que a paz não se dá
a troco de jubileus64?
Ó Roma, sempre vi lá
que matas pecados cá,
e leixas viver os teus.
Tu não te corras de mi:
mas com teu poder facundo65
assolves a todo o mundo,
e não te lembras de ti,
nem vês que te vás ao fundo.
Ó Mercúrio, valei-me ora,
que vejo maos aparelhos66!
Dá-lhe, Tempo, a essa Senhora
o cofre dos meos conselhos:
e podes-te ir muito embora.
Um espelho i67 acharás,
que foi da Virgem sagrada.
Co’ele te toucarás,
porque vives mal toucada,
e não sintes como estás:
e acharás a maneira
como emendes a vida.
E não digas mal da feira,
porque tu serás perdida,
se não mudas a carreira.
510
Não culpes aos reis do mundo,
que tudo te vem de cima,
polo que fazes cá em fundo68:
que, ofendendo a causa prima69,
se resulta o mal segundo.
E também o digo a vós,
e a qualquer meu amigo,
que não quer guerra consigo:
tenha sempre paz com Deos,
e não temerá perigo.
Prepósito, Frei Sueiro,
diz lá o exempro velho:
«dá-me tu a mi dinheiro,
e dá ao demo70 o conselho».
52
tudo o que; o resto; 53 porque; 54 não vindes bem orientada
para alcançar o que vos faz falta; 55 forma do verbo peitar: pagar; subornar; 56 subtil; esperta; 57 nasçam; 58 estar de acordo; 59 mercadorias; 60 torpeza; ação vergonhosa; desonra (plural); 61 deixar; 62
perfeições. Aplica-se especialmente a ditos espirituosos e galantes;
63
porque; 64 nesta fala, Roma alude à questão da remissão de penas do Purgatório mediante certas cerimónias, como as visitas às
igrejas (estações) ou a Roma (jubileus) em certas datas, ou mediante dádivas em dinheiro ou ainda mediante penitências. Por estas
formas, alcançam-se os perdões ou indulgências, que constituíam
para Roma uma importante fonte de benefícios; 65 eloquente.
A palavra parece ter, por vezes, em Gil Vicente, um significado meramente encarecedor e nobilitante, próximo de grande, poderoso;
66
preparos; prenúncios; 67 aí; 68 nestes versos apresenta-se a tese
de Carlos V: a guerra não é dos reis, mas sim dos abusos de Roma;
69
Deus; 70 Diabo
9
Gil Vicente
Depois de ida Roma, entram dous lavradores,
um per nome Amâncio Vaz, e outro Denis Lourenço, e diz:
Ama.
Den.
Ama.
515
Den.
Ama.
Den.
Ama.
520
525
Compadre, vás tu à feira?
À feira, compadre.
Assi,
ora vamos eu e ti
ò longo desta ribeira.
Bofá71, vamos.
Folgo72 bem
de te vir aqui achar!
Vás tu lá buscar alguém,
ou esperas de comprar?
Den.
Ama.
540
Den.
545
Isso te quero contar,
e iremos patorneando73,
e er também aguardando
polas moças do lugar.
Compadre, enha74 mulher
é muito destemperada,
e agora, se Deos quiser,
faço conta de a vender,
e dá-la-ei por quase nada.
550
555
530
535
10
Qu’eu quando casei com ela
diziam-me: – étega75 é;
e eu cuidei pola abofé
que mais cedo morresse ela,
e ela anda inda em pé.
E porque era étega assim
foi o que m’a mim danou76:
avonda77 qu’ela engordou
e fez-me étego a mim.
560
71
Tens boa mulher de teu!
Não sei que tu hás, amigo…
S’ela casara contigo,
renegaras tu com’eu,
e dixeras o que eu digo.
Pois, compadre, cant’à minha,
é tão mole e desatada,
que nunca dá peneirada78,
que não derrame a farinha.
E não põe cousa a guardar,
que a tope quando a cata;
e por mais que homem se mata,
de birra não quer falar.
Trás d’ũa pulga andará
três dias, e oito, e dez,
sem lhe lembrar o que fez,
nem tão-pouco o que fará,
Pera que t’hei de falar?
Quando ontem cheguei do mato
pôs ũa enguia a assar,
e crua a leixou levar,
por não dizer sape a um gato.
Quant’a mansa, mansa é ela:
dei-me logo conta disso!
exclamação: boa-fé; também pode significar em verdade. O verso
significa “vamos, então!”; 72 alegro-me; 73 cavaqueando; 74 minha
(linguagem rústica); 75 héctica: atingida por uma doença debilitante; 76 causou dano; 77 em suma; bastar; 78 peneirar a farinha
Auto da Feira
Ama.
565
Den.
570
Ama.
575
580
Den.
585
A minha te digo eu
que se a visses assanhada…
Parece demoninhada79…
ante S. Bertolameu!
Já siquer80 terá esprito…
Mas renega da mulher
que ò tempo do mester81
não é cabra nem cabrito.
A minha tinh’eu em guarda
pera bem de minha prol,
cuidando que era ourinol,
e tornou-se-me bombarda.
Folga tu que ess’outra tenhas,
porque a minha é tal perigo,
que por nada que lhe digo
logo me salta nas grenhas.
Então tanto punho seco
me chimpa nestes focinhos!
Eu chamo pelos vezinhos,
e ela nego dar-me em xeco82.
Isso é de coraçuda83!
Não cures de a vender:
que se alguém te mal fizer
já sequer tens quem te acuda.
Mas a minha é tão cortês
que se viesse ora à mão
que m’espancasse um rascão,
não diria: – «Mal fazês.»
Mas antes s’assentaria
a olhar como eu bradava.
Todavia a mulher brava
é, compadre, a que eu queria.
590
595 Ama.
Den.
Ama.
600
Juro-t’eu que mais val isso
cinquenta vezes qu’ela.
Pardeos84! Tanto me farás,
que feire a minha contêgo…
Se queres feirar comêgo,
vejamos que me darás.
Mas antes m’hás-de tornar,
pois te dou mulher tão forte,
que te castigue de sorte
que não ouses de falar,
nem no mato, nem na corte.
605
610
Den.
Ama.
Den.
Ama.
615
Outro bem terás com ela:
quando vieres da arada,
comerás sardinha assada,
porqu’ela jenta a panela.
Então geme, pardeus, si,
diz que lhe dói a moleira.
Eu faria por maneira
que esperasse ela por mi.
Que lhe havias de fazer?
Amâncio Vaz, eu o sei bem…
Denis Lourenço, ei-las cá vêm.
Vamo-nos nós esconder,
vejamos que vêm catar85,
qu’elas ambas vêm à feira.
Mete-te nessa silveira,
qu’eu daqui hei-de espreitar.
Vem Branca Anes a brava, e Marta Dias a mansa,
e vem dizendo a brava:
620
625
Bra.
Pois casei má hora, e nela,
e com tal marido, prima…
Comprarei cá ũa gamela,
par’ò ter debaixo dela,
e um grão penedo em cima.
Porque vai-se-me às figueiras,
e come verde e maduro;
e quantas uvas penduro
jeita86 nas gorgomeleiras87:
parece negro monturo.
79
endemoninhada; 80 sequer; ao menos; 81 na ocasião em que é
preciso; 82 talvez seja uma variante de seco; 83 animosa; 84 interjeição: por Deus; 85 procurar; 86 deitar; 87 goelas
11
Gil Vicente
Vai-se-me às ameixieiras,
antes que sejam maduras.
Ele quebra as cereijeiras,
ele vendima as parreiras,
e não sei que faz das uvas.
Ele não vai à lavrada,
ele todo o dia come,
ele toda a noite dorme,
ele não faz nunca nada,
e sempre me diz que há fome!
630
635
Jesu! Jesu! Posso-te dizer,
e jurar e tresjurar,
e provar e reprovar,
e andar e revolver,
que é milhor pera beber,
que não pera maridar.
O demo que o fez marido!
Que assi seco como é
beberá a torre da Sé:
então arma um arruído
assi debaixo do pé!…
640
645
650
Ama.
675
Den.
680 Ama.
Den.
Den.
Mar.
Bra.
655
660
665
Den.
Ama
670
Den.
12
Pois bom homem parece ele.
Aquela é a minha froxa.
Deu-t’ele a fraldilha roxa?
Milhor lh’esfole eu a pele,
que homem há i da puxa!
Ò diabo que o eu dou,
que o leve em fatiota,
e o ladrão que mo gabou!
E o frade que me casou
inda o veja na picota88!
E rogo à Virgem da Estrela,
e à santa Gerjalém89,
e òs choros da Madanela,
e à asninha de Belém,
que o veja eu ir à vela
pera donde nunca vem.
Compadre, nô mais sofrer!
Sai de lá desse silvado.
Pera eu ser arrepelado
não havi’eu mais mester!
E não n’hás tu de vender?
Tu dizes que qués feirar…
Isso me parece a mi
muito milhor que eu ir lá.
Oh que couces que me dá,
quando me colhe sob si!
Cant’àquela si, dará…
[Diabo para as mulheres]
685
Dia.
Mar.
690
Mar.
Não qu’ela se me tomar,
leixar-m’-á quando quiser!
Mas dêmo-las à má estrea90;
e voto que nos tornemos.
E er depois tornaremos
com as cachopas d’aldea.
Entonces91 concertaremos92.
Dia.
Mar.
Dia.
Mar.
695
Mulheres, vós que quereis?
Nesta feira que buscais?
Queremo-la ver, nô mais,
pera ver em que tratais,
e as cousas que vendeis.
Tendes vós aqui anéis?
Quejandos93? De que feição?
D’uns que fazem de latão.
Pera as mãos, ou pera os péis94?
Não… Jesu! Nome de Jesu!
Deus e homem verdadeiro!
Foge o diabo, e Marta diz:
Mar.
700
Bra.
Mar.
Bra.
705
Mar.
Nunca eu vi bofalinheiro95
tão prestes tomar o mu96!
Branc’Anes, mana, crê tu
que, como Jesu é Jesu,
era este o diabo inteiro!
Não é ele pau de boa lenha,
nem lenha de bom madeiro…
Bofá97, nunqu’ele cá venha!
Viagem de João Moleiro,
que foi pola cal da azenha98!
Pasmada estou eu de Deos
fazer o demo merchante99!
Mana, daqui por diante
não caminhemos nós sós.
Auto da Feira
710
Bra.
715
S’eu soubera quem ele era,
fizera-lhe bom partido:
que me levara o marido,
e quanto tenho lhe dera,
e o toucado e o vestido.
Inda que mais não levara
desta feira, em extremo
me alegrara e descansara,
se o vira levar o demo,
e que nunca mais tornara.
Mar.
Bra.
Ser.
750
Bra.
Ser.
755
Porque, inda que era diabo,
fizera serviço a Deos,
e a mi mercê em cabo;
e viera-me dos céos,
como vem a frol100 ao nabo.
720
Bra.
760
Vão-se ao Tempo, e diz Marta:
725
Mar.
Ser.
730
Mar.
735
Ser.
Bra.
740
Mar.
Bra.
Ser.
745
88
Dizei, Senhores de bem,
nesta tenda que vendeis?
Esta tenda tudo tem.
Vede vós o que quereis,
que tudo se fará bem.
Conciência quereis comprar,
de que vistais vossa alma?
Tendes sombreiros101 de palma
muito bons pera segar102,
e tapados pera a calma?
Conciência digo eu,
que vos leve ao paraíso.
Não sabemos nós qu’é isso.
Dai-o ò decho por seu,
que já não é tempo disso.
Tendes vós aqui burel103,
do pardo, de lã meirinha?
Eu queria ũa pucarinha
pequenina pera mel.
Esta feira é chamada
das Virtudes em seus tratos.
pelourinho; forca; 89 Jerusalém; 90 desejar a má estrea a alguém:
desejar a sua má sorte; 91 então; 92 ajustaremos; 93 de que modo;
de que qualidade; 94 pés; 95 vendedor ambulante de bugigangas;
96
fugir; 97 exclamação: boa-fé; também pode significar em verdade; 98 Gil Vicente parece aludir a alguma história folclórica de um
moleiro que foi arrastado pela água na calha da azenha e nunca
Das virtudes? E há ’qui patos?
Quereis feirar a cevada
quatro pares de sapatos104?
Oh piadoso Deos eterno!
Não comprareis pera os céos
um pouco d’amor de Deos
que vos livre do inferno?
Isso é falar per pincéos105.
Esta feira não se fez
para as cousas que quereis.
Pois cant’a essas que vendeis,
daqui afirmo outra vez
que nunca as vendereis.
Porque neste sigro106 em fundo
todos somos negligentes:
foi ar que deu polas gentes,
foi ar que deu polo mundo,
de que as almas são doentes.
E se o hão de correger
quando for todo danado,
muito cedo se há-de ver
que já ele não pode ser
mais torto nem aleijado.
Vamo-nos, Marta, à carreira,
que as moças do lugar
virão cá fazer a feira.
Que estes não sabem ganhar,
nem têm cousa que homem queira.
765
770
Mar.
775
780
Bra.
Eu não vejo aqui cantar,
nem gaita, nem tamboril,
e outros folgares mil,
que nas feiras soem107 d’estar.
E mais feira de Natal,
e mais de Nossa Senhora,
e estar todo Portugal…
S’eu soubera qu’era tal,
não estivera eu cá agora.
mais voltou. Assim desejam as mulheres que o Diabo desapareça;
mercador; 100 flor; 101 chapéus; 102 ceifar; 103 certo tipo de pano
que se usava no luto; 104 quereis trocar por cevada quatro pares
de sapatos; 105 parece significar palavras bonitas mas sem sentido;
106
século, no sentido de mundo terreno. O verso significa: “cá em
baixo neste mundo”; 107 costumam
99
13
Gil Vicente
Vêm à feira nove moças dos montes, e três mancebos, todas com cestos nas cabeças cobertos cantando,
e como chegam, se assentam por ordem a vender;
e diz-lhe o
Ser.
785
Tes.
790
Jul.
Mer.
Tes.
795
Dor.
Mon.
800
805
Pois vindes vender à feira,
sabei que é feira dos céos;
por tal vendei de maneira
que não ofendais a Deos,
roubando a gente estrangeira.
Responde-lhe, Leonarda,
tu Justina, ou Juliana.
Mas responda-lhe Giralda,
Tesaura, ou Merenciana.
Responde-lhe, Teodora,
porque creo que a ti crea.
Responda-lhe Dorotea,
pois que mora
junto c’o Juiz d’aldea.
Móneca responderá,
que falou já com senhor.
Responde-lhe tu, Nabor,
contigo s’entenderá,
ou Denisio, ou Gilberto,
qualquer de vós outros três.
E não vos embaraceis nem torveis,
porque é certo
que bem vos entendereis.
[Gilberto para o Serafim]
Gil.
810
Ser.
815
820
Gil.
Ser.
Gil.
Ser.
Gil.
Ser.
825
Gil.
Nab.
830
14
Estas cachopas não vêm
à feira nego a folgar,
e trazem de merendar
nesses cestos que i têm.
Mas pois, quanto ao que entendo,
sois, samica108, anjo de Deos,
quando partistes dos céos,
que ficava Ele fazendo?
Ficava vendo o seu gado.
Santa Maria! Gado há lá?
Oh Jesu! como o terá
O Senhor gordo e guardado!
E há lá boas ladeiras,
como na serra d’Estrela?
Si.
E a Virgem que fazia ela?
A Virgem olha as cordeiras,
e as cordeiras a ela.
E os Santos de saúde
todos, a Deus louvores?
Si.
E que léguas haverá
daqui à porta do Paraíso,
onde São Pedro está?
Lá vêm ò redor das vinhas
compradores a comprar,
samica, ovos e galinhas.
Auto da Feira
Dor.
Não lhe hei-de vender as minhas,
que as trago pera dar.
Mat.
Vem dous compradores, um per nome Vicente,
e outro Mateus, e diz a Justina:
Mat.
835
Jus.
Mat.
Jus.
840
845
Mat.
Jus.
Vic.
850
Leo.
Vós rosa do amarelo,
mana, tendes i queijadas?
Tenho vosso avô marmelo.
Conhecei-lo?
Aqui estão, emborilhadas109!
Estade, má ora, quêdo,
pela vossa negra vida!
Menina, não hajais medo…
Vós sois mais engrandecida
que Branca de Figueiredo.
Se trazeis ovos, meus olhos,
não mos vendais a ninguém.
Andar em burra e ter bem!
Ouvide ora o rasca-piolhos
azeite no micho, em que vem!
Minha vida Leonarda,
traz caça pera vender?
Vossa vida negra e parda!
Não lhe abastará comer
da vaca com da mostarda?
875
880
Vic.
Mon.
885
Vic.
Mon.
890
Vic.
Mon.
895
Mat.
Gir.
Vic.
855
Leo.
Vic.
860
Leo.
Vic.
Leo.
865
Mat.
870
Teo.
108
E a mesa de meu senhor
irá sem ave de pena?
Quem? E vós sois comprador?
Pois nem grande nem pequena
não matou o caçador.
Matais-me vós logo bem
com dous olhinhos qu’eu digo…
Mais vos mata a vós o trigo,
porque não vale a vintém,
e traz mau micho consigo.
Vós fazeis de mim rascão110…
Pàção111 vos fizestes vós;
porém bem vos vimos nós
guardar bois no Alqueidão.
Que vindes vender à feira,
Teodora, alma minha,
minha alma, minha canseira?
~ galinha?
Trazeis algua
Som112 voss’alma galinheira?
talvez; porventura; 109 embrulhadas; enredadas; 110 tunante;
tipo ordinário. Gil Vicente aplica-o à criadagem da corte; 111 cortesão, homem do paço; 112 sou: forma do verbo ser;
900
Mat.
Gir.
905
Vic.
910
Vic.
Jul.
Jul.
Vic.
Jul.
Vic.
Que má ora cá viestes
pera quem vos pôs no paço!
Senhora, eu que vos faço,
que vos agastais113 tão prestes?
Dizei-me vós, Teodora,
trazeis vós tal cousa e tal
deste jeito, muit’embora?
Mas lá dessoutro metal
não falam à lavradora…
Senhora Móneca, trazeis
algum cabrito recente?
Não bofé, Senhor Vicente:
quisera ora trazer três,
de que vós foreis contente.
Juro à santa cruz de palha
que hei-de ver o que aqui está!
Não revolvais aramá,
que não trago nemigalha114!
Não me façais descortês,
nem queirais ser tão garrida115!
Pola vossa negra vida!
Olhade como é cortês!
Oh! que lhe saia má saída!
Giralda, eu achar-vos-ei
dous pares de passarinhos?
Irei por eles aos ninhos,
entonces os venderei:
comereis vós estorninhos116?
Respondeis como mulher
muito de sua vontade.
Pois digo-vo-la verdade:
pássaros hei-de vender?
Olhai aquela piedade!
Senhora minha Juliana,
peço-vos que me faleis
discreta palenciana117,
e dizei-me que vendeis.
Vendo favas de Viana.
Tendes alguns laparinhos?
Si, de porca.
Nem coelhos?
Quereis comprar dous francelhos,
pera caçardes ratinhos?
Quero, polos Evangelhos!
113
aborreceis; 114 migalha; nada; 115 tem o sentido do francês coquette; 116 pássaro; 117 palaciana; educada
15
Gil Vicente
915
Mat.
Tes.
Mat.
920
Tes.
925
Mat.
Tes.
Mat.
930
Vic.
Mer.
935
Vic.
Mer.
Vic.
Mer.
Vós Tesaura, minha estrela,
não viríeis cá em vão…
Pois si, vossa estrela vos er118 ’ela…
como aquilo é de rascão!
Mas como isso é de donzela!
Porém vá já como vai,
e casemo-nos, senhora.
Pois casai co’ele, casai…
Casar má-ora, meu pai,
casar má-ora!
Porém trazeis algum pato?
E quanto dareis por ele?
Hui! e ele revolve o fato!
Olho mau se meta nele!
Não trazeis vós o qu’eu cato119.
Merenciana deve ter
neste cesto algum cabrito.
Não m’haveis de revolver,
senão pardeos que dê grito
tamanho, que haveis de ver.
Eu hei-de ver que trazeis.
Se vós no cesto bulis…
Senhora, que me fareis?
Um «aque-delrei», ouvis?
Não sejais vós descortês.
e tão bons olhos com’eu,
sem isso casará bem.
Ser.
960
Teo.
965
970
975
Pois porque viestes ora
cansar à feira de pé?
Porque nos dizem que é
feira de Nossa Senhora:
e vedes aqui porquê.
E as graças que dizeis
que tendes aqui na praça,
se vós outros as vendeis,
a Virgem as dá de graça
aos bons, como sabeis.
E porque a graça e alegria
a madre da consolação
deu ao mundo neste dia,
nós vimos com devação121
a cantar-lhe ~
ua folia.
E pois que já descansamos
assi em boa maneira,
moças, assi como estamos,
demos fim a esta feira,
primeiro que nos partamos.
Alevantam-se todas, e ordenadas em folia cantaram
a cantiga seguinte, com que se despediram:
CANTIGA
940
Vic.
Mer.
945
Mat.
Vic.
Mat.
Vic.
Não quero senão amores,
pois vosso, senhora, sô.
Amores de vosso avô,
o da ilha dos Açores…
Andar, aramá120 vós só!
Primeiro coro
Blanca estais colorada,
Virgem sagrada.
Em Belém vila do amor
da rosa naceu a flor:
Virgem sagrada.
Vamo-nos daqui, Vicente.
Bofá vamos.
Nunca vi tal feira.
Vamos comprar à ribeira,
que anda lá a cousa mais quente.
Segundo coro
Em Belém vila do amor
naceo a rosa do rosal:
Virgem sagrada.
Primeiro coro
Da rosa naceo a flor,
pera nosso Salvador:
Virgem sagrada.
Vão-se os compradores, e diz o Serafim às moças:
Ser.
950
Todas
Ser.
Dor.
955
16
Vós outras quereis comprar
das virtudes?
Senhor, não.
Saibamos por que rezão.
Porque no nosso lugar
não dão por virtudes pão.
Nem casar não vejo eu
por virtudes a ninguém…
Quem tiver muito de seu,
Segundo coro
Naceo a rosa do rosal,
Deus e homem natural:
Virgem sagrada.
118
partícula de reforço por vezes associada a também. Em Gil
Vicente, é um arcaísmo característico da linguagem dos camponeses;
119
procuro; 120 em má hora; 121 devoção