Baixar - Programa de Pós-graduação em Crítica Cultural

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Baixar - Programa de Pós-graduação em Crítica Cultural
Fórum Nacional de Crítica Cultural 2
Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos
PÓS-CRÍTICA/DEDC/UNEB II, Alagoinhas — BA, 18 a 21 de novembro de 2010
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL
TRILOGIA SUJA DE HAVANA: VERDADES DESMASCARADAS1
Mariana Barbosa Batista2
Roberto Henrique Seidel3
Introdução
Pedro Juan Gutiérrez, escritor, escultor, pintor e também poeta, possui inúmeras habilidades e se envereda por diversos campos artísticos. Nascido em Matanzas (Cuba), em 1950,
começou a trabalhar aos 11 anos de idade, vendeu sorvete, serviu ao exército cubano, foi trabalhador agrícola até trilhar sua trajetória como jornalista e escritor. Escreveu O rei de Havana (1999), Animal tropical (2000), Nosso GG em Havana (2004), O ninho da serpente: memórias do filho do sorveteiro (2005), Coração mestiço (2007) e Trilogia suja de Havana
(1998), seu livro mais divulgado. Além disso, é autor do livro de contos Melancolia dos leões
e dos de poesia como Esplendidos peces plateados, Fuego contra los herejes, Yo y una lujuriosa negra vieja, Lulú la perdida y otros poemas de John Snake e Morrer em Paris. É de se
destacar que o autor recebeu já diversos prêmios4.
Descrito pelo Jornal New Yok Times como “A lewd, impious and brilliant novel of
con-temporary Cuba”5, o romance Trilogia suja de Havana, de Pedro Juan Gutiérrez, desde
seu lançamento em 1998, vem conquistando respeito e proporcionando renome ao autor na
literatura mundial. Com sua linguagem embutida de realidade e crueldade, o romance consegue romper com os padrões da literatura do século XXI. Como o próprio autor descreve, ele
acredita numa arte “atormentada, cheia de pesadelos e desespero”. Para ele, o decorativo, a
beleza do que é comum não lhe interessa e fazer arte significava ir além dos padrões, o rompimento faz dessa arte algo novo e realmente relevante.
1
Trabalho resultante da disciplina de Fundamentos da Teoria Literária, sob a responsabilidade do Prof. Dr. Roberto H. Seidel, no curso de Especialização em Estudos Literários, da Universidade Estadual de Feira de Santana
— UEFS.
2
Estudante do curso de Especialização em Estudos Literários, da Universidade Estadual de Feira de Santana —
UEFS. E-mail: [email protected]; [email protected].
3
Orientador; Prof. Adjunto de Teoria Literária do Curso de Letras, da Especialização em Estudos Literários e do
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural — PPGLDC/UEFS; Docente Colaborador do
Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural — Pós-Crítica/UNEB II. E-mail: [email protected].
4
Animal tropical (Prêmio Afonso García-Ramos de Romance 2000, na Espanha, atribuido conjuntamente pelo
Cabildo de Tenerife e Editorial Anagrama) e Carne de cão (ganhador do prêmio no Itália Narrativa Sur del
Mundo).
5
Tradução nossa: “Um romance lúbrico, irreverente e brilhante da Cuba contemporânea”.
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A Trilogia suja de Havana é escrita em forma de contos, nos quais não há uma linearidade. A descrição é feita sob uma ótica ampla e singular de Cuba. Não há personagens fixos,
apenas o narrador-personagem Pedro Juan é significativo. Este personagem é um exjornalista, capaz de qualquer coisa para sobreviver e obcecado por sexo. Sendo um livro “quase que autobiográfico”, o autor Pedro Juan descreve em entrevista ao Jornal do Brasil o que o
motivou na escrita desta obra:
Faz trinta e cinco anos que não convém falar nada de desagradável nem preocupante
nos jornais. Tudo tem de estar bem. Uma sociedade-modelo não pode ter crimes
nem coisas feias. Mas a verdade é que é preciso saber. Se não tem toda a informação
não se pode pensar, nem decidir, nem opinar. A gente se transforma num tonto, capaz de a-creditar em qualquer coisa. Por isso eu estava tão desiludido com o jornalismo e come-cei a escrever uns relatos muito crus. Em tempos tão dilacerados não
se pode escrever com suavidade (GUTIÉRREZ, 2003 — grifo nosso).
Nesse estudo, portando, buscar-se-á, por intermédio desses “relatos crus”, revelar es-sa
forma contemporânea de Pedro Juan Gutiérrez. Nesta, a escrita já não se baseia apenas em
padrões estéticos, formas e normas; o que interessa é retratar a realidade sem masca-ramentos
ou adornos. Trata-se de uma obra polêmica, densa e que, embora, escrita sem rebuscamento,
consegue revelar vertentes diversas dessa literatura em constante transfor-mação, perpassada
pelo realismo, naturalismo, neo-realismo, hiper-realsimo, até se encon-trar nessa contemporaneidade.
1 Realismo X Naturalismo
1.1 Realismo
O Realismo surge na segunda metade do século XIX, com o objetivo de transformar a
forma com que se escrevia na época, deixando para trás os moldes românticos de um estilo
que tematizava preponderantemente o amor platônico e idealizava a mulher; invade o mundo
literário com uma nova linguagem: a do objetivismo e da impessoalidade na escrita. Há a necessidade de inserir nessas produções a impressão de uma verdade constituinte do reflexo
total da realidade. Embora deseje essa realidade, há uma busca de uma perfeição formal, essa
mergulhada no pessimismo, visto que os valores burgueses e as crenças religiosas entravam em descrédito, encontrando no racionalismo a tradução da análise dessa sociedade: “Arrancar-lhe a máscara hipócrita, eis o propósito do romance realista” (MOISÉS,
1996, p. 25).
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Não se buscava fugir da realidade, o interesse era apontar as falhas e não mais omitilas. Essa visão nova servia como forma de estimular transformações nas instituições e no próprio comportamento humano. Os heróis dão espaço a pessoas comuns com problemas, limitações e repletas imperfeições.
O romance realista foi uma grande máquina de desfazer ilusões. A seu tempo e em
seu lugar estas personagens, de que está cheia a ficção realista, foram figuras da verdade. Livraram-se de tradições envelhecidas, não eram enganadas pela moral, e pagavam a sua clarividência como o envelhecimento do coração (SCHWARZ, 1977, p.
53).
1.2 Naturalismo
O naturalismo segue vinculado com as teorias cientificistas e ideológicas européias,
tais como, o evolucionismo, o determinismo, o positivismo e o socialismo. Essas teorias científicas determinam o caráter sociológico e biológico: o primeiro é determinado pelo meio e o
segundo pelo determinismo de raça e dos temperamentos hereditários. A perspectiva evolucionista de Charles Darwin inspirava os naturalistas. Estes acreditavam ser a seleção natural que impulsionava a transformação das espécies. Este traço pode ser encontrado no seguinte trecho da personagem, como descreve o narrador Pedro Juan, de Trilogia suja de Havana: “A vida é assim, meu senhor, um processo de seleção de descarte” (p. 15)6.
Os escritores naturalistas certas vezes recorrem a personagens patológicos a fim de apresentar protagonistas com características doentias, criminosas, histéricas, maníacas e bêbadas. Assim ocorre em Trilogia suja de Havana de Pedro Juan Gutiérrez; nessa sua obra autobiográfica, descreve o protagonista isento de escrúpulos e obcecado por sexo (PALLONTTINI, 2002, p. 96):
Dada a enorme sucessão de cenas de sexo descritas — e sem que isso implique nenhum moralismo, que de fato não existe — o autor-narrador-personagem faz de si
mesmo um esplêndido atleta sexual, cujas façanhas, naturalmente, a ninguém é dado
comprovar, já que, a essa altura, acabaram por ser confundidas com a ficção.
Pedro Juan enquadra-se na literatura contemporânea. Entretanto, traz marcas do realismo e do naturalismo ao retratar objetivamente a realidade. No realismo, a mulher era criticada por sua ociosidade que a levava ao adultério, ao idiotismo ou à prostituição. E, a partir
do naturalismo, o sexo passa a ser tratado como uma necessidade biológica feita por interesse, dinheiro ou mera distração. Veja-se como o narrador-autor-personagem o coloca: “ali
estavam todos pecando. Pecando freneticamente. Um negro e uma negra trepavam, senta-dos
6
Citações da obra Trilogia suja de Havana serão indicadas, daqui para adiante, meramente entre parênteses.
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de frente um para o outro em cima do muro do Malecón” (p. 174). Para o autor, o sexo é algo
instintivo, primitivo:
É que o sexo não é para gente escrupulosa. O sexo é um intercâmbio de líquidos, de
flu-ídos, de saliva, hálito e cheiros fortes, urina, sêmen, merda, suor, micróbios, bactérias. Ou não é. Se é só ternura e espiritualidade etérea, reduz-se a uma paródia estéril do que poderia ser. Nada (p. 11).
Para Massaud Moisés (1996, p. 28), a visão pessimista, ao se instalar no pensar realista, utiliza a ciência para apoiar os ideais do romance naturalista, destacando seus “aspectos
patológicos, anormais, conduzindo, não raro, ao obsceno ou asqueroso”. A partir daí, o homem passa a ser um caso patológico, um personagem esférico, por agir instintivamente pela
sobrevivência, trazendo como descrição de suas personagens definições grotescas ou zoomórficas, assim como na definição feita por Gutiérrez: “Os primeiros que se aproximaram do
cadáver esmagado contra o asfalto foram os cachorros vira-latas. Comeram um bom pedaço
do cérebro sangrento e quente. Acharam um belo pitéu para o desjejum” (p. 110).
Segundo Alfredo Bosi (1995, p. 169), o realismo se tingirá de naturalismo, no romance e no conto, sempre que fizer personagens e enredos submeterem-se ao destino cego das leis
naturais: “O escritor realista tomará a sério as suas personagens e se sentirá no dever de descobrir-lhes a verdade, no sentido positivista de dissecar os móveis do seu comportamen-to”.
No século XX, todas essas definições de realismo e naturalismo passam a ter um signifi-cado
mais amplo, ultrapassando aspectos biológicos e psicológicos que eram marcas desses movimentos literários; passa-se a considerar a sociedade globalizada, e em todos os seus aspectos
políticos, econômicos e culturais. A literatura, portanto, passa a representar essas mudanças,
revelando um realismo, ainda mais abrangente e sem fantasias do que o do séc. XIX.
2 Neo-realismo
A realidade, para cada artista, aparece de forma distinta; cada um possui um conceito
diferenciado, não podendo defini-la definitivamente. O neo-realismo (novo realismo) surge
“como resposta artístico-literária às desigualdades sociais geradas pela crise econômica mundial dos finais de 1929” (ORIHUELA, 2005, p. 76), superando a visão do homem como um
ser individual. O mundo social do neo-realismo não fica restrito apenas ao psicológico ou
biológico do realismo, passa a integrar a sociedade global no plano econômico, político, histórico e cultural. Bosi compreende o neo-realismo como “um novo realismo. É um realismo
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mais amplo, mais abrangente que o realismo estrito. Por essa abrangência, o neo-realismo
pode ser denominado também de ‘realismo absoluto’” (BOSI apud ORIHUELA, 2005, p. 77).
O neo-relismo tem como característica valorizar a razão em detrimento da fantasia. “O
que acontece na narrativa é semelhante ao que acontece no mundo real. Se o narrado não aconteceu na realidade, na vida e no mundo reais, poderia ter acontecido” (ORIHUELA, 2005,
p. 78). Busca, portanto, denunciar e descrever racionalmente o mundo e suas concre-tudes.
Essa narrativa deve ser feita tratando de fatos verossímeis, semelhantes à realidade, sem ocultá-la ou maquiá-la. Outra característica herdada é a análise psicológica das perso-nagens, dos
comportamentos violentos, chocantes e patológicos do naturalismo, denunci-ando e criticando
a sociedade. “O neo-realismo, pois, é ‘arte viva’. Vive em toda obra artísti-ca que se manifesta como uma crítica do mundo (nacional e internacional) injusto e violento, objetivando, romântico-realistamente, a construção de um mundo humano” (ORIHUELA, 2005, p. 79).
3 Hiper-realismo
O hiper-realismo, também conhecido como realismo fotográfico ou foto-realismo, é
um estilo de pintura e escultura, que procura mostrar uma abrangência muito grande de detalhes, tornando a obra mais detalhada do que uma fotografia ou do que a própria realidade. É
definido como a “arte como cópia fotográfica da realidade”. Esse termo remete a uma tendência artística que tem lugar no final da década de 1960, sobretudo em Nova York e na Califórnia, nos Estados Unidos.
Trata-se da retomada do realismo na arte contemporânea, contrariando as direções
a-bertas pelo minimalismo e pelas pesquisas formais da arte abstrata. Menos que um
re-cuo à tradição realista do século XIX, o “novo realismo” finca raízes na cena contempo-rânea, dizem os seus adeptos, e se beneficia da vida moderna em todas as suas dimen-sões: é ela que fornece a matéria (temas) e os meios (materiais e técnicas)
de que se va-lem os artistas (HIPER-REALISMO. In: ENCICLOPÉDIA Artes Visuais Itaú Cultural, 2005).
Os termos hiper-realismo ou foto-realismo, como preferem alguns, permitem flagrar a
ambição de atingir a imagem em sua clareza objetiva, com base em certo diálogo cerrado com
a fotografia: “É natural que um autor escolha a forma como contará sua história e a forma
como apresentará seus personagens, mas, aqui voltamos ao ponto inicial: dado que ele escolhe
a autobiografia, ficamos necessariamente presos à noção de realismo fotográfico (PALLOTTINI, 2002, p. 97).
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Essa clareza fotográfica mencionada por Renata Pallottini é uma marca na obra de Gutiérrez. O autor apresenta a obra como uma autobiografia, na qual suas personagens são o reflexo da realidade, são temas recorrentes do dia-a-dia e são as formas mais simples que lhe
dão a ferramenta para a escrita: “me sentia bem naquele cortiço pestilento, com aquelas pessoas nada cultas, nada inteligentes, que não sabiam porra nenhuma de nada, que resol-viam —
ou estragavam — tudo aos gritos, aos palavrões, com violência, com pancada. Assim era. À
merda, tudo” (p.46).
4 Narrador X autor
Para Pedro Juan, o livro é uma máquina de ideias capaz de promover dúvida e assombro dentro de nós. A fama de sua linguagem marcada pela sinceridade profunda e um realismo exacerbado consegue traduzir essa necessidade em promover uma literatura sem moldes
ou maquiagens. Com a visão pragmática e desafiadora do seu fazer literário, defende a ideia
de que o escritor certas vezes orbita entre o divino e o diabólico. Gutiérrez falou so-bre o ofício de ser escritor na Bienal do Livro do Rio, em 2005: “A vida de um escritor é caó-tica, confusa, vertiginosa, porque suas explicações também o são”. Em Trilogia suja de Ha-vana, Pedro Juan escreve um romance autobiográfico, o narrador personagem também leva seu nome.
Portanto, para ele a escrita está repleta de traços íntimos e acontecimentos reais. Em entrevista
ao Jornal O Globo revela:
Gosto que a literatura seja convincente e crível. No que escrevo, fundem-se realidade e ficção. Não deve haver fronteira, uma linha que diferencie ficção e realidade.
Gosto de mesclar tudo e confundir o leitor. Meus livros são autobiográficos, mesclam ficção, en-saios, memórias (GUTIÉRREZ, 2005. [online]).
Essa mistura entre ficção e realidade é que faz com que a obra de Pedro Juan tenha essa singularidade. O leitor se rende ao autor, envolto nessa sedução de personagens fortes, viris
e reais; não há uma compreensão do que de fato aconteceu ou o que foi criado pelo escritor.
Em outra entrevista, ao se lhe perguntar se ele acreditava que a melhor ficção seria mais real
do que o jornalismo, ele responde: “acho que a boa literatura deve ser convincen-te. Eu utilizo
e manipulo a realidade que conheço, me baseando nas circunstâncias. E crio uma nova realidade, a partir da realidade ‘real’” (GUTIÉRREZ, 2003. [online]).
José Saramago, em texto publicado na Revista Cult (1998, p. 26), declara que, em sua
concepção, “a figura do narrador não existe, e [...] que só o autor exerce função narrativa real
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na obra de ficção, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro”. Portanto, Sarama-go acredita que é o autor que influencia suas personagens, posto que este não difere delas. Não há
separação entre os dois, ambos permutam por uma só alma, um só corpo. Apesar de que Gutiérrez expresse isso de uma forma um pouco distinta, não há como deixar de perce-ber certa
simetria com o que Saramago coloca. Veja-se como o próprio Gutiérrez se descre-ve em entrevista ao Jornal O Globo:
Não se deve confundir o escritor com os personagens. Os personagens são uma
grande mentira. O escritor é um grande mentiroso. Os melhores, com mais graça,
são os que mentem e exageram. A literatura, ao falar de sexo ou do que quer que seja, deve ser em primeiro lugar agradável, amena, fácil de ler. Mas, acima de tudo,
deve ser um exercício de reflexão e pensamento. Quando o leitor termina um livro
deve ter idéias novas, uma visão nova sobre a vida. Esse é o interesse de se ler (GUTIÉRREZ, 2005. [online]).
O autor escreve a fim de despertar o interesse do leitor, seja com verdades concretas
ou “verdades simuladas”, dentro de contextos diversos. Esse é o ofício do escritor: descrever
de forma simples a realidade. E é a reflexão daquilo que o rodeia que o faz viver intensamente. Essa convivência lhe traz o alimento para a sua alma e para sua escrita. Veja-se como
ele o expressa em entrevista
Un escritor lo único que hace es reflexionar sobre lo que más conoce: la gente, los
veci-nos, los amigos, las mujeres, el barrio o la ciudad en que vive. Me tocó una etapa muygrave en mi país en los años 90, a la caída del Muro de Berlín, con mucha
hambre y mise-ria. Y ahí, en esa situación, escribí casi todos mis libros. Ahora, más
relajado y ya sin hambre, sigo escribiendo, pero siempre con tensión y sexo y rebeldía porque soy así. No me gusta ser de otra manera. Entonces escribo tal como soy
(GUTIÉRREZ, 2010)7.
A arte, para Pedro Juan, é essa confusão de sentimentos capazes de promover sensações adversas no ser humano. E assim é sua escrita, repleta de tormentas, e, tal como o de-fine
Saramago, “O romance é uma máscara que esconde e, ao mesmo tempo, revela os tra-ços do
romancista” (SARAMAGO, 1998, p. 27). A mensagem surge a partir da realidade de cada
um, sendo um processo “irracional e ilógico” e afirma que, quando não escreve, “arre-benta e
explode”. Para ele, fazer arte é escrever e mostrar histórias que o apaixonem, mes-mo que
essa não seja de fato a realidade. Essa seria a missão da arte.
5 Arte
7
Tradução nossa. “Um escritor a única coisa a fazer é refletir sobre o que mais conhece: a gente, os vizinhos, os
amigos, o bairro ou a cidade em que vive. Me tocou uma etapa muito grave em meu país nos anos 90, a queda do
Muro de Berlim, com muita fome e miséria. E assim, nessa situação, escrevi quase todos meus li-vros. Agora,
mas relaxado e já sem fome, sigo escrevendo, porém sempre com tensão e sexo e rebeldia porque sou assim. Não
gosto de ser de outra maneira. Então escrevo tal como sou”.
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O texto literário apresenta uma diversidade de signos, dos quais a escrita se compõe e
é essa pluralidade que promove uma compreensão dos distintos sentidos que a narrativa pode
tomar, sejam estes claros ou estejam nas entrelinhas do texto. Pedro Juan faz com que esses
signos se tornem transparentes, numa linguagem coloquial e atormentada.
Não me interessa o decorativo, nem o bonito, nem o doce, nem o delicioso. Por isso
sempre duvidei de uma escultora que foi minha mulher durante algum tempo. Havia
em sua escultura um excesso de paz para que pudesse ser boa. A arte só serve para
alguma coisa se é irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e desespero. Só uma
arte irritada, indecente, violenta, grosseira, pode nos mostrar a outra face do mundo,
a que nunca vemos ou nunca queremos ver, para evitar incômodos a nossa consciência (p. 102 — grifo nosso).
Cabe, portanto, ao escritor tocar nas feridas da sociedade, sem temê-las e, por intermédio desse espaço, as mudanças e os questionamentos passam a permear a mente do leitor.
Para o autor, o dever primordial desse fazer literário está na quebra de barreiras. Na bienal do
livro de Pernambuco em 2009, Pedro Juan afirma que “todo aquele que queira ser escritor
deve ter claro que sua missão essencial é romper sempre um pouco com a fronteira do silêncio”. Portanto, cabe a ele denunciar as mazelas dessa sociedade. Faz ainda uma comparação
entre sua escrita, a origem de suas obras e com o escritor brasileiro: “Meus li-vros são focados
não em Cuba, mas em um bairro específico chamado Centro Havana. Um processo parecido
com o de Paulo Lins, no livro Cidade de Deus, obra adaptada ao cinema por Fernando Meirelles e Kátia Lund”. Perceba essa relação na obra homônima:
O principal personagem do filme Cidade de Deus não é uma pessoa. O verdadeiro
prota-gonista é o lugar. Cidade de Deus é uma favela que surgiu nos anos 60, e se
tornou um dos lugares mais perigosos do Rio de Janeiro, no começo dos anos 80.
Para contar a es-tória deste lugar, o filme narra a vida de diversos personagens, todos vistos sob o ponto de vista do narrador, Buscapé. Este, um menino pobre, negro,
muito sensível e bastante amedrontado com a ideia de se tornar um bandido; mas
também, inteligente suficien-temente para se resignar com trabalhos quase escravos
(PIERRY, 2006, p. 1).
A realidade apresentada na obra de Paulo Lins é semelhante àquela abordada por Gutiérrez, pois em ambos há personagens pobres, marginalizados e escravizados pelo sistema.
No entanto, a maior relevância se dá ao lugar em que estes indivíduos estão inseridos. O ambiente, em especial, o “Centro Havana”, no caso de Gutiérrez, é que compõe essa atmos-fera
densa de personagens reais e sólidos. Estes são o retrato da miséria, do descaso e do desrespeito político e social. Portanto, sua literatura está impregnada dessa densidade: “na-da de paz
e tranquilidade. Quem consegue o repouso no equilíbrio está perto demais de Deus para ser
artista” (p. 102).
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Sua literatura é classificada por alguns no chamado realismo sujo, que foi descrito pelo próprio autor, em entrevista à Revista Bravo (1999 [online]), como “um estilo que indaga
as zonas mais baixas e sujas da realidade”. Para o autor, descrever essa realidade é o que lhe
dá vida, mas esse ofício nem sempre agrada, pois as pessoas estão acostumadas com o belo,
uma alegoria irreal da sociedade. Descreve a realidade tal como ela se apresenta, muda apenas nomes, revelando: “este é meu ofício: revolvedor de merda. Ninguém gosta disso. Não
tapam o nariz quando passa o caminhão do lixo?” (p. 101).
Ao tratar da literatura feita por Pedro Juan, percebe-se que este tende a valorizar grupos sociais marginalizados, perseguidos ou ignorados pela sociedade por conta das crenças e
moralismos dominantes. Assim, a partir do viés de problematização das relações de gênero,
dentro do contexto de tratamento das questões de sexualidade, o termo heteronormativi-dade
— que vem do grego hetero, “diferente”; e de norma, “esquadro”, em latim — pode ser de
grande utilidade. Esse termo esse é frequentemente usado em debates pós-moder-nistas e feministas. Aqueles que empregam este conceito frequentemente apontam para as dificuldades
enfrentadas pelos sujeitos que mantêm um ponto de vista dicotômico da sexua-lidade, meramente calcado no masculino e no feminino, quando a realidade da sexualidade humana é muito mais complexa, indo para além da mera dicotomia macho-fêmea. Nas obras de Gutiérrez, a
heteronormatividade é constantemente questionada8.
6 Realidade nua e crua
É a partir dessa realidade sem máscaras, desnuda e controversa que Pedro Juan consegue retratar através da literatura sua “verdade”, não importa qual seja ela: “A realidade pode
ser vulgar, feia, incômoda e inquietante, mas tenho que aceitá-la porque é realidade”, afirma.
Para o escritor, portanto, não importa que sua literatura tenha traços vulgares, o que interessa
é o “espírito da época”, as pessoas e suas inquietações; é preciso tocá-las com simplicidade,
mas com firmeza. Perceba-se:
Rogelio tinha acabado de morrer e imaginei muitas coisas de sua vida. Não é um
bom conto. A realidade é melhor. No duro. A gente a aceita como está na rua. Agarra-a com as duas mãos e, se a força dá, ergue-a e a deixa cair sobre a página em
branco. Pronto, é fácil. Sem retoques (p. 100).
8
Sobre esta questão, veja-se o trabalho de Souza (2009), que analisa a personagem travesti Sandra no ro-mance
O rei de Havana, do Gutiérrez.
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Descrito pela Revista Bravo como “a figura mais talentosa da nova e rebelde literatura
cubana”, Gutiérrez consegue descrever, sem qualquer moralismo, as sucessivas cenas de sexo,
nas quais se comporta como um exímio atleta sexual, a fim de revelar suas façanhas. Busca
escandalizar o leitor, como afirma Renata Pallottini (2002, p. 95), no artigo “Havana por lentes sujas”: “o autor, explicitamente, segue a trilha aberta por Henry Miller: muito sexo, muita
miséria”. Gutiérrez consegue romper totalmente com os padrões, suas descri-ções dão um ar
malicioso e espontâneo a sua obra, mostrando uma liberdade que contrasta com aquele país.
Aí me ocorreu fazer aquilo de que eu gosto sempre: entrar nela por trás e, de pé, fazer com que ela se dobrasse da cintura para cima. Isso me deixa louco. Mas quando
ela fez o que eu pedi, suas nádegas se abriram e do cu saiu um grande fedor de merda fresca. Ti-nha cagado. Sou porco, mas nem tanto. Aquilo me baixou o pau e me
deu uma fúria ter-rível (p. 223).
Ao contrário do que acontecia no romantismo, em que a mulher era idealizada, o realismo de Pedro Juan descreve a mulher forma completamente diferenciada, pois não a concebe pelos padrões de beleza estabelecidos. Diz detestar perfumes e maquiagens: “Não gos-to
de mulheres bonitas, nem limpas, nem perfumadas. Nem as educadas e finas. Gosto das sujas,
com suor, que não raspam os sovacos, e com muito pelo por todo o lado” (p. 223). Tal visão é
impensável para os padrões sociais. Gutiérrez revela a mulher por diversas vezes co-mo prostituta, biscateira ou como uma eventual companheira do prazer: “de forma que tem comida e
dólares, e é isso que as mulheres querem. Amor não existe mais!” (p. 85). Ainda que esta mulher apresente-se como voluptuosa e interesseira, isto surge como reflexo da realidade vivida
pela sociedade cubana, pois era preciso fazer de tudo pra sobreviver diante da miséria testemunhada, e os meios usados não importavam.
7 Silêncio sobre a realidade de Cuba
Gutiérrez deixa claro que não fala de política; entretanto, em toda a sua obra há marcas da crítica ao governo cubano, ainda que estas sejam dissimuladas e estejam nas entrelinhas do seu texto. Em entrevista à Revista Veja, o escritor cubano diz ter “horror à política”,
mas esta talvez fosse a maneira de continuar a produzir sua literatura em um regime repressor.
A crise era violenta e penetrava até o menor cantinho da alma da gente. A fome e a
mi-séria são como um iceberg: a parte mais importante não se vê a olho nu. “Mas é
preciso ir aos poucos, companheiro, sem perder o controle. Pouco a pouco nos inserimos nesse mundo complexo e na economia de mercado, mas sem abandonar os
princípios, etc.” Ah, caralho! Os inesquecíveis anos 90! [...] (p. 115).
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Vivendo na Cuba dos anos 90, durante o boicote econômico imposto pelos Estados Unidos, Pedro Juan descreve a miséria, a fome e a falência do sistema público do país, por meio
do seu pequeno universo. Até então Cuba era amparada pela União Soviética com ali-mentos,
combustível e medicamentos. No entanto, após o embargo econômico norte-americano, Cuba
vê-se excluída e deslocada das outras nações. Gutiérrez, a partir dos confli-tos sociais que o
cercam, do seu dia-a-dia e dos acontecimentos diversos, aproveita para tecer comentários,
denunciando indiretamente toda a degradação humana dessa popula-ção, como descrito na
citação abaixo:
É a realidade desta área da cidade. Se você caminha por Centro Habana e La Habana
Vie-ja, se dá conta de que há muita pobreza, miséria, prostituição. Minha literatura
se de-senvolve nesta região. E não me interessam outros lugares, por uma razão literária. Não me interessa fazer sociologia, antropologia, história, jornalismo. Me interessa fazer lite-ratura, ficcionalizar a realidade. E a literatura se faz no conflito. Me
interessam as pesso-as que vivem na beira do abismo, que têm todo dia que achar
um dólar para sobreviver, e que buscam esse dólar seja como for (GUTIERREZ,
2001).
O interessante na escrita de Gutiérrez é que, embora descreva a miséria vivenciada pelos cubanos, ele não faz uma crítica aberta ao governo. É algo que surge nas entrelinhas de
suas narrações. Críticas aparecem alegoricamente a partir da forma simples e chocante com
que relata suas experiências. Em alguns episódios, trata das mazelas dessa sociedade por intermédio da ironia: “O governo queria controlar a crise recolhendo tudo: pesos e dólares. Para
mim, a miséria e a fome tinham aumentado. Lógico, estavam guardando todo o dinhei-ro nas
arcas do rei” (p. 94). Este rei é representado, obviamente, pela figura do presidente Fidel Castro que, enquanto a sociedade penava por causa do bloqueio, mantinha as aparên-cias de um
regime perfeito e igualitário. Gutiérrez usa personagens secundários pra fazer essa crítica,
criando diálogos sem que ele pronunciasse seu descontentamento com o gover-no. Veja-se:
“A solução para qualquer problema é impor regulamentos, grades, barreiras, disciplina, controle. É insuportável, Pedro Juan”. Só falei assim: “Você vai acabar louco,
cara. Eu não agüento nem comigo, imagine se me envolvo também com os políticos,
que são uns filhos da puta e sempre fazem o que lhes dá na telha. É assim em todo
lugar. A política é a arte de enganar bem”. E ele me respondeu, muito zangado: “Por
isso é que estamos assim. Por causa desse pessimismo, desse conformismo. É preciso enfrentar e denunci-ar. É preciso dizer a verdade”. O sujeito era um flagelo e estava puto. Falava sempre a mesma coisa. Se continuasse assim, ia acabar entrado no
eletrochoque (p. 91 — grifos nossos).
Ainda que exista essa marca política implícita em sua obra, o autor prefere afirmar que
não escreve sobre política, mas utiliza-se de argumentos fortes e enfáticos ao dizer que “a
política é a arte de enganar”. Essa afirmativa contradiz a postura do escritor, pois, embora este
não esteja envolto na política, ele também compreende que ao governo coube apenas submeAnais eletrônicos | 156
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ter a população aos mandos e desmandos daquela ditadura; e, portanto, enganar fazia parte,
pois favorecia a permanência da dominação. Assim acontecia com a imprensa, pois a censura
impedia que fossem publicadas notícias que contradiziam essa imagem de “governo perfeito”.
Crimes não eram noticiados, nem a miséria, nem a fome pela qual sofria a população. O seguinte trecho ilustra isso:
Era um crime passional. Como em qualquer lugar. Mas aqui isso não é publicado na
im-prensa porque faz trinta e cinco anos que não convém falar nada de desagradável
nem preocupante nos jornais. Tudo tem de estar bem. Uma sociedade-modelo não
pode ter crimes nem coisas feias (p. 82).
Era essa sociedade perfeita que o governo pretendia mostrar, pois não desejavam que
suas mazelas e que as consequências advindas dessa política de repressão se espalhassem ao
mundo. O interesse era permanecer com a imagem dessa tão sonhada sociedade-modelo, impecável e inabalável. Ainda hoje não se pode falar claramente e criticar a política. Conhecido
mundialmente por suas obras, Pedro Juan não admite ser escritor em seu país, seus livros não
foram lançados na ilha e nem divulgados nela, conforme relata em entrevista à Revista Playboy:
Os livros não são publicados em Cuba. Por sorte! Calculo que haja uns 400 exemplares ilegais no país, que os estrangeiros trazem e fazem circular de mão em mão.
Outro dia apareceu um deles no meu bairro. Um amigo o leu e veio me falar: “Homem, aqui está o bairro inteiro!” E eu gritei: “Esconde isso, porra! Eles me matam
se vêem suas histórias publicadas”. Claro que eu troco os nomes, mas estão todos lá,
facilmente identificáveis. (GUTIÉRREZ, 2001. [online]).
Essa realidade descrita por Gutiérrez ainda não é aceita em Cuba. E, na década de 90,
era mais grave: lá não se falava em fome (“consegui um pedaço de pão e um pouco de água
com açúcar” [p. 227]), nas condições miseráveis de moradia e, nem mesmo, na busca pela
sobrevivência que consistia em empregos desumanos (“faz dias que não temos sabão”
[p.227]) ou a venda do próprio corpo, como descrito no seguinte trecho:
Abri o álbum. Era uma coleção de mulheres peladas. Umas trezentas, pelo menos.
Em todas as posições. Negras, mulatas, brancas, morenas, loiras. Alegres, sérias.
Algumas em duplas, se beijando ou se abraçando ou se tocando os peitos. — O que
é isto, Rene? — Putas, cara. Um catálogo de putas. Tem muitos taxistas que andam
com essas fotos por causa dos turistas. Fazem publicidade do produto por aí, o turista escolhe, eles levam o cara para o lugar exato (p. 18).
O turismo sexual em Cuba é algo estrondoso, embora o governo não admita sua existência. A verdade é que faz “vista grossa”, ainda que puna severamente aquele que acaso seja
flagrado praticando prostituição. Contraditoriamente, esse mesmo dinheiro ganho com os turistas faz com que a economia cubana funcione. O próprio narrador-personagem envolve-se
na prostituição para sobreviver, o que o leva à prisão. Graças a alguns dólares que tinha receAnais eletrônicos | 157
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bido de suas clientes, consegue diminuir a pena cumprida. Essa realidade não se restringe
apenas à sociedade cubana, visto que são constantes em nosso cotidiano. Pedro Juan, em entrevista ao Jornal do Brasil, fala sobre as afinidades entre o povo brasileiro e o cubano:
Encontrei uma zona do planeta muito parecida com minha terra caribenha. A cor das
pessoas, seu modo de falar, vestir, de andar. O mesmo modo de sorrir sedutoramente. O mesmo modo de viver a noite. E a pobreza excessiva e dolorosa, até escandalosa. Tu-do igual a Cuba. Vi muitíssimas pessoas muito pobres, como em meu bairro e
em meu país, mas com alegria, com humildade, com bondade, capaz de viver generosamente sua vida com grande espiritualidade. E, para mim, espiritualidade não é
só orar a Deus e aos santos todo dia, mas também desfrutar com alegria a música e a
dança, as cores, o sexo, a bondade e o amor, em cada minuto, saber agradecer esta
vida magnífica que nos foi dada (GUTIÉRREZ, 2001. [online]).
São muitas as realidades e cada país, cada nação reflete o povo que nele vive. Cabe ao
escritor tratar com clareza e leveza dessas angústias e das necessidades de sua sociedade. Pedro Juan Gutiérrez diz que não faz política, por considerá-la tendenciosa e circunstancial. Já a
literatura, esta sim é política, porque fala da pólis, da coletividade. Portanto, o escritor tem o
ofício de escrever e contar histórias, e, para Gutiérrez, “escreve-se como se vive”. Essa realidade contraditória em que estamos inseridos faz com que sintamos necessidade de mostrar
nossas experiências.
Reafirmamos assim a radicalidade da experiência da linguagem, que sempre será políti-ca — contra o homem nu —, porque linguagem só funciona assim; porque algo
só está no lugar de algo para alguém. [...] Dessa forma, quando acreditamos no ser
humano do-tado de linguagem, afirmamos o animal literário, o animal cultural e o
animal político (SEIDEL, 2007, p. 152 — grifos do original).
A esse homem nu, entende-se o indivíduo revelando seus caracteres básicos, assim
como ocorre em Trilogia suja de Havana: o homem sem máscaras diante da dura realidade.
Isso se evidencia a partir dos indivíduos em que nos tornamos, da linguagem que incorporamos, das experiências que vivenciamos e da cultura que adquirimos. Gutiérrez consegue, através de sua obra, apresentar esse animal literário, cultural e político, capaz de adequar-se a
qualquer ambiente e dificuldade desse mundo tão real e contraditório. O próprio autor fala
sobre essa arte de escrever: “no fundo na minha literatura talvez exista uma necessidade de
mostrar para as pessoas que este é o mundo em que estamos vivendo. E ele é terrível” (GUTIÉRREZ, 2001 [online]).
Referências
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GUTIÉRREZ, Pedro Juan. Trilogia suja de Havana. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo:
Cia. das Letras, 1999.
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GUTIÉRREZ, Pedro Juan. Coração mestiço. Entrevista a Gunter Axt. Revista Cult, 2008. [online]. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/website/news.asp?edt Code=7FBAAAEBD16E-40FB-BB4D-A8929099FA3B&nwsCode=F64C79B6-6DA8-4FBE-86E64C4E2247E72A.
GUTIÉRREZ, Pedro Juan. Pedro Juan Gutiérrez fala sobre o ofício do escritor durante a Bienal do Livro. Entrevista Releases, 3 out. 2009. [online]. Disponível em: http://www.bienal
per-nambuco.com/pedro-juan-gutierrez-fala-sobre-o-oficio-do-escritor—durante-a-bienal.
GUTIÉRREZ, Pedro Juan. Entrevista a Mariana Barbosa Batista, 2010. 1 mensagem de email. [Texto em anexo ao presente trabalho].
E-mail:
BATISTA, Mariana Barbosa. Perguntas. [Mensagem pessoal]. Mensagem recebida de <[email protected]>, em 22 ago. 2010.
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Anexos
Entrevista
ao
autor,
por
e-mail
Pedro
Juan
Gutierrez
<webmas-
[email protected]> 18 de agosto de 2010 08:04
Para: [email protected]
Muchas gracias, Mariana, por tu interés.
Dedico muy poco tiempo a internet, pero si tienes alguna
pregunta concreta sobre mi obra la puedo contestar con mucho
gusto. En cambio, me gustaría saber, de un modo breve, qué te gusta y qué no te gusta en
mis libros.
En mi website puedes encontrar mucha información actualizada.
Gracias de nuevo y un saludo cordial. Pedro Juan.Pedro Juan — 12:05
Muchas gracias, Mariana, abajo intercalo mis respuestas. Un saludo cordial---Pedro Juan.
2010/8/22 mariana barbosa <[email protected]>
Para o “escritor Pedro Juan” o que é mais importante em sua obra? O que o influenciou a escrever uma “arte atormentada e cheia de desespero”?
R: Un escritor lo único que hace es reflexionar sobre lo que más conoce: la gente, los vecinos, los amigos, las mujeres, el barrio o la ciudad en que vive. Me tocó una etapa muy grave
en mi país en los años 90, a la caída del Muro de Berlín, con mucha hambre y miseria. Y ahí,
en esa situación, escribí casi todos mis libros. Ahora, más relajado y ya sin hambre, sigo escribiendo, pero siempre con tensión y sexo y rebeldía porque soy así. No me gusta ser de otra
manera. Entonces escribo tal como soy.
Em que movimento literário enquadra Trilogia suja de Havana? Caso não o enquadre em
nenhum movimento, quais foram eles que o influenciaram?
R: No sé nada de movimientos literarios, ni me interesan. Fui periodista durante 26 años y
sólo sé escribir, es decir, no me gusta analizar lo que escribo. Pero de todos modos en mi es-
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crictura han influido mucho algunos narradores norteamericanos como Hemingway. Truman
Capote, Grace Paley, etc. y otros más clásicos como Chejov, Isaac Babel, Maupassant y hasta el Dostoievsky de “Crimen y Castigo”.
Em entrevista ao “Jornal do Brasil” em 2003, confessou achar fascinante os livros de Clarice
Lispector, disse gostar também de Rubem Fonseca e Paulo Lins. No entanto, percebo uma
semelhança entre tua escrita e a de Jorge Amado (escritor baiano). Conhece alguma obra dele? O que acha dessa comparação?
R: Sí, sobre todo “Gabriela, clavo y canela”. Y en 2008 estuve unos días en Salvador de Bahía y todas las noches paseaba ante su casa y me contaban cómo era de borracho y mujeriego. Un gran tipo, pero prefiero la experimentación de Clarice, la locura de Paulo Lins y lo
“raro” de Rubem. Así como en Chile prefiero mil veces a Nicanor Parra y a Violeta Parra
que a Pablo Neruda y Gabriela Mistral.
Un saludo afectuoso y mucho éxito, chau---Pedro Juan------
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