Texto na Íntegra 3,3MB

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Texto na Íntegra 3,3MB
GUSTAVO FERREIRA MARTINS GOMES
Comunicação do espaço futuro: Brazil, o filme
MARÍLIA
2005
GUSTAVO FERREIRA MARTINS GOMES
Comunicação do espaço futuro: Brazil, o filme
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Comunicação da
UNIMAR – Universidade de Marília para
obtenção do grau de mestre em
Comunicação. Área de concentração:
Mídia e Cultura. Linha de Pesquisa:
Ficção na Mídia
Orientador: Prof. Dr. Romildo Sant’Anna
MARÍLIA
2005
UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E TURISMO
REITOR:
Márcio Mesquita Serva
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO:
COORDENADORA:
Professora Doutora Suely Fadul Villibor Flory
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO:
Mídia e Cultura
LINHA DE PESQUISA:
Ficção na Mídia
ORIENTADOR:
Professor Doutor Romildo Sant'Anna
G633c
GOMES, Gustavo Ferreira Martins
Comunicação do espaço futuro: Brazil, o filme /
Gustavo Ferreira Martins Gomes. – Marília : Unimar,
2005.
116f.
Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Comunicação,
Educação e Turismo da Universidade de Marília, 2005.
1. Mídia 2. Cinema 3. Futuro 4. Linguagem não-verbal
I. Gomes, Gustavo Ferreira Martins II. Comunicação do
espaço futuro: Brazil, o filme
CDD
– 302.23
Comunicação do espaço futuro: Brazil, o filme
Autor: Gustavo Ferreira Martins Gomes
Orientador: Professor Doutor Romildo Sant'Anna
Aprovado pela Comissão Examinadora
__________________________________________________________
ORIENTADOR: Professor Doutor Romildo Sant'Anna
__________________________________________________________
Professor Doutor Álvaro Hattnher
__________________________________________________________
Professor Doutor Antônio Manoel dos Santos Silva
Data da Apresentação: 21 de novembro de 2005.
Dedico este trabalho a Eli Maria de Freitas Ferreira, a
mulher que me ensinou a gostar de saber.
Agradeço
Ao meu orientador, Prof. Dr. Romildo Sant’Anna, que me
desafiou, me iluminou caminhos e que, sobretudo, por ser
“brasileiro, neto de pataxó”, nunca desistiu de mim, mesmo nos
meus momentos menos criativos e produtivos;
A todos os meus professores e colegas no curso de
mestrado que, direta ou indiretamente, me ajudaram a cumprir
este caminho;
Às pessoas próximas que me incentivaram acreditando em
mim muitas vezes mais do que eu mesmo.
Ao meu irmão Ricardo quem me ensinou a importância dos
letreiros finais dos filmes e que, sendo sempre melhor que eu em
tudo, me desafiou a crescer.
Levantou a vista para o rosto enorme. Levara quarenta anos para
aprender que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro. Oh, malentendido cruel e desnecessário! Oh, teimoso e voluntário exílio do peito
amantíssimo! Duas lágrimas cheirando a gim escorreram de cada lado do nariz.
Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente lograra
a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão.
George Orwell, 1984, [último parágrafo] p.277
“Nossa época é a primeira na História a prestar tanta atenção ao futuro
– o que é irônico, considerando que podemos não ter futuro nenhum.”
Arthur C. Clarke
No entiendo eso, replicó Sancho; sólo entiendo que, en tanto que
duermo, ni tengo temor, ni esperanza, ni trabajo, ni gloria; y bien haya el que
inventó el sueño, capa que cubre todos los humanos pensamientos, manjar que
quita la hambre, agua que ahuyenta la sed, fuego que calienta el frío, frío que
templa el ardor, y, finalmente, moneda general con que todas las cosas se
compran, balanza y peso que iguala al pastor con el rey y al simple con el
discreto. Sola una cosa tiene mala el sueño, según he oído decir, y es que se
parece a la muerte, pues de un dormido a un muerto hay muy poca diferencia.
Miguel de Cervantes. Don Quijote de la Mancha. Capítulo LXVIII.
Tema:
Comunicação não-verbal e imaginário no cinema sobre o futuro.
Resumo:
Este estudo analisa e investiga, baseado em teorias da Comunicação, como e quanto a
linguagem da cenografia – representação da arquitetura, do design e do urbanismo – auxilia
e/ou determina a construção da idéia de futuro apresentada em filmes de cinema ambientados
nesse tempo. Verificando se a linguagem não-verbal – cenografia – é coerente com a
linguagem verbal – script – podem ser analisadas as aplicações de diversas teorias da
Comunicação. A escolha da mídia "cinema" se deveu à sua universalidade, tanto de produção
quanto de recepção, e a definição pelo recorte da ficção científica ambientada no futuro partiu
do pressuposto de que essa idéia temporal está ligada à ancestralidade humana (onírico,
lúdico, mítico, místico). Além de lançar luz sobre as verificações do conceito de
verossimilhança nas linguagens cinematográficas e investigar a relação da mídia "cinema"
com as teorias mais atuais de mass media, o estudo permitiu, também, uma discussão sobre a
linguagem/comunicação
arquitetônica
a
partir
dos
significados
de
seus
elementos
apresentados na cenografia estudada. O filme escolhido como corpus da pesquisa foi Brazil, o
filme, de Terry Gilliam, de 1985.
Palavras-chave: mídias, cinema, futuro, linguagem não-verbal.
Abstract:
Based in communication theories, this study analyses and investigates how and how much the
scenographic language – architecture, design and town planning representation – helps and/or
determines the construction of the idea of future presented in films. If the non-verbal language
– the scenography – is coherent with the verbal one – the script -, the application of various
theories of communication can be analyzed. The study chose 'cinema' as the media to be
analyzed, due to its universality, which encompasses both production and reception. The focus
on science fiction set in the future is based on the assumption that this temporal idea is linked
to the human ancestrallity (oneiric, ludic, mythical, mystic). Besides throwing light on the
concept of verisimilitude in the cinematographic languages and investigating the relation of the
media 'cinema' with current mass media theories, this study will allow a discussion on the
architectural language/communication from the meaning of its elements presented in the
studied scenography. The film used as analytical object was Terry Gilliam's Brazil (1985).
Keywords: media, cinema, future, non-verbal language.
Sumário
I.
Introdução ________________________________________________ 09
II.
Brazil, o Filme _____________________________________________ 18
II.1. O que é Brazil _________________________________________ 19
II.2. Terry Gilliam __________________________________________ 20
II.3. Rupturas em Brazil _____________________________________ 22
II.3.1. Final Infeliz _________________________________________ 23
II.3.2. Onde e Quando _____________________________________ 24
II.3.3. Aquarela do Brazil ___________________________________ 25
II.3.4. Bug no Sistema _____________________________________ 28
II.3.5. Arquitetura e Design _________________________________ 30
II.3.6. Sonhos e Pesadelos _________________________________ 32
II.3.7. Breves Leituras _____________________________________ 39
III.
Propaganda Ideológica: a Construção da Idéia de Futuro_________ 48
III.1. Propaganda Ideológica no Futuro ________________________ 49
III.1.1 O que é Propaganda Ideológica________________________ 50
III.1.2. Propaganda Ideológica na Literatura de Ficção Científica__ 51
III.1.3. Propaganda Ideológica no Cinema de Ficção Científica ___ 53
III.2. Propaganda Ideológica em Brazil _________________________ 54
III.2.1. Cartazes em Brazil___________________________________ 55
III.2.2. O Prólogo: “Quero lhe falar sobre Tubos” _______________ 61
IV.
Arquitetura: a Idéia de Futuro na Construção ___________________ 66
IV.1. Análise da arquitetura em Brazil __________________________ 70
IV.1.1. As residências ______________________________________ 71
IV.1.2. Os locais de Trabalho ________________________________ 77
IV.1.3. Os espaços públicos_________________________________ 83
IV.1.4. Os espaços externos ________________________________ 88
IV.1.5. A sala de “confissões” ______________________________ 93
IV.2. O futuro é Barroco? ____________________________________ 96
V.
Considerações Finais _______________________________________ 101
Ficha Técnica (Brazil, o filme) ____________________________________ 109
Lista de Figuras________________________________________________ 111
Referências Bibliográficas _______________________________________ 113
Referências Filmográficas _______________________________________ 116
9
I. Introdução
O cenário, mais que um pano de fundo de natureza plástica ou ornamental,
deve ser expressão do ser, interagir com os elementos significacionais que
corporificam o discurso cinematográfico. Estrutura-se basicamente de elementos
arquitetônicos, aí se incluindo não só as formas da engenharia (paredes, colunas,
vigas, telhados) como as texturas, elementos cromáticos realçados pela luz, a
disposição interna dos objetos no ambiente e elementos decorativos que, enfim,
constituem a arquitetura como linguagem. Ela "conta" quem o personagem é, o que ele
sente, em que tempo psicológico ou cronológico ele vive. Comunica como a criatura
projeta para si e para o outro o sonho de si, no passado, no presente e no futuro. O
cenário, ou arquitetura cinematográfica, é elemento discursivo no mundo da criação
coletiva que constitui o cinema. Simbolizador do ser e estar no mundo, constitui o
cerne o íntimo, o espaço como ninho, e configura a existência do indivíduo, da
sociedade e instituições políticas e seus desejos, realidades, sonhos e ideologias.
A proposta que motivou este trabalho surgiu de uma provocação, em 1984,
quando foi sugerida uma reflexão sobre mídias na disciplina “Teoria da Informação e
Percepção”, em meu primeiro ano do curso de Arquitetura, na Universidade
Mackenzie. À época, o filme Blade Runner (1982 – direção de Ridley Scott), havia
mostrado um futuro assustador e opressivo, inovando em linguagem, mas
apresentando uma leitura pessimista em relação ao futuro já presente em obras
cinematográficas do início daquele século, como Metrópolis. O impacto das imagens
do filme sugeriu a idéia de se analisar a evolução do conceito de futuro através do
tempo, retratado na arquitetura como cenário em obras cinematográficas.
Pretendeu-se analisar a arquitetura – e, conseqüentemente, os espaços
urbanos e objetos que ambientam os filmes de ficção científica e as mensagens
culturais, sociais e artísticas contidas nessa linguagem arquitetônica. Ela é parte
integrante e fundamental da comunicação não-verbal no cinema: a cenografia.
Considerando que toda materialização do conceito de futuro parte da
elaboração criativa, por parte do autor, de um processo de desenvolvimento a partir do
momento da criação, envolvendo toda a bagagem cultural, social, política e científica
10
adquirida, percebe-se que tal “imagem” do futuro não é apenas fruto de processos
adivinhatórios ou fantasiosos, tendo vínculos com o presente e com o passado
recente, sendo uma reprodução ampliada e, às vezes, exagerada destes.
As afirmações anteriores embasam-se na observação de que, através do
século XX, o cinema teve inúmeras obras marcantes ambientadas no futuro e, de
maneira geral, mostram projeções diversas, abrangendo visões otimistas, pessimistas,
irônicas e céticas. Numa observação mais apurada, nota-se existir uma evolução
dessas visões e, de certa forma, as obras contemporâneas têm semelhanças
marcantes sob esse ponto de vista.
O estudo buscou verificar se existe uma coerência, dentro do conceito de
verossimilhança, entre a linguagem verbal e a não-verbal no cinema, quando da
construção da idéia de futuro e, então, quais reforços e destaques as imagens dão às
mensagens contidas no filme. Essa abordagem, se não é de todo inédita, busca
apresentar-se ao que já foi visto, sobre a elaboração do conceito de futuro a partir da
análise do processo evolutivo da arquitetura, design e urbanismo, tidos como
linguagem, considerando a comunicação do ambiente.
A importância desta pesquisa, a nosso ver, estaria em tentar clarear o
campo da comunicação do cinema, basicamente sobre aquilo que não é falado, mas
que, mais do que em qualquer outra mídia, é fundamental para a mensagem: o cenário
como linguagem. A afirmação “uma imagem vale por mil palavras” expressa, como a
maioria das sentenças do senso comum, uma realidade parcial: depende de qual
imagem e de quais palavras. Um breve aprofundamento na semiologia saussureana
ou na semiótica de Pierce é suficiente para referenciar a afirmação acima.
Note-se que, (...), o símbolo não é uma coisa singular, mas um geral.
Assim são as palavras. Isto é: signos de leis e gerais. A palavra mulher, por
exemplo, é um geral. O objeto que ele designa não é esta mulher, aquela mulher ou
a mulher do meu vizinho, mas toda e qualquer mulher. O objeto representado pelo
símbolo é tão genético quanto o próprio símbolo.1
1
O que é Semiótica, de Lúcia Santaella, p.67
11
Entretanto é natural que sejam necessários alguns parágrafos de texto de Aluísio
Azevedo ou de Eça de Queiroz para a descrição minuciosa de um ambiente, o que
pode ser expresso em poucos fotogramas. Suely Flory, em Entre textos e códigos, um
estudo da abertura de Os Maias: do romance à minissérie, dispõe:
O espaço, que se constitui, juntamente com o tempo, como uma das
categorias da narrativa, é criado na narrativa verbal através das palavras, o que
propicia uma inevitável indeterminação e incerteza, levando o leitor a recriar, em
sua mente, as imagens espaciais descritas. A construção fílmica, por outro lado,
tem no espaço uma dimensão ampla e complexa. Estabelece-se uma relação
isomórfica com os objetos, as paisagens, os figurinos e as dimensões e relações
espaciais do mundo real. O espaço em movimento (...) oferece um suporte ao
desenvolvimento da sucessão temporal da narrativa, pois a cada espaço
corresponde um tempo específico, possibilitando leituras e interpretações pela
proximidade ou superposição de ambientes e cenas, pelos recursos de focalização
e abertura, pela demora em objetos e cenários que falam por si, como signos
ideológicos que sublinham as características das personagens.2
Mas por que o cinema? Por que, do cinema, a cenografia? E por que, no
cinema, a ficção ambientada no futuro? Dentre as mídias, o cinema é talvez a mais
global. O mesmo filme, com as mesmas imagens e sons – apenas legendado em
casos específicos – é apresentado em todo o mundo, diversas vezes e por longos
períodos. Jornais, revistas, rádio e tv têm sempre uma abrangência espacial limitada.
Mesmo que a mesma notícia atinja o mundo todo, sempre há interpretações e
influências culturais em cada uma das edições feitas localmente, e sempre existe o
rápido consumo e obsolescência da informação. Essa universalidade do cinema
provoca uma forte capacidade de homogeneização da informação, característica única
e diferencial.
O direcionamento do foco do trabalho para a cenografia se justifica na
medida em que a quantidade de informações visuais no filme gera intertextos múltiplos
que, talvez, por esta inerente complexidade, ainda merecem análises e interpretações.
2
Entre textos e códigos, um estudo da abertura de Os Maias: do romance à minissérie, de Suely Flory,
in Comunicação: Veredas, p.114
12
A decisão pelo corte, no assunto, destacando filmes ambientados no futuro
se deve à compreensão de que as projeções e assunções que levam ao
estabelecimento do conceito de futuro nascem do onírico, do lúdico, dos temores e dos
mitos. Esta ligação do conceito de futuro com a ancestralidade humana foi verificada e
analisada quanto à possível geração de uma idéia universal de futuro. Dentre os
estudos realizados sobre os temas cinema, comunicação e futuro, existem várias
abordagens, inclusive complementares, que dão conta da prática cinematográfica, das
linguagens verbais e não-verbais na mídia, da comunicação do ambiente, das
referências visuais para construção do conceito de futuro. Falta, no conjunto desses
estudos, entretanto, uma definição da participação do cinema, enquanto mídia, na
construção ideológica do "poderia ser" e, conseqüentemente, sua influência direta na
sociedade atual (ou na época da execução do filme).
Pelo menos dois textos, de arquitetos, abordam o tema da Arquitetura como
cenário no cinema. Lineu Castello, na palestra Meu tio era um blade runner: ascensão
e queda da arquitetura moderna no cinema, discute a modernidade apresentada no
cinema, as influências deste moderno na sociedade e as extrapolações do presente
necessárias para se construir o futuro:
... a constante autocrítica que a Arquitetura se vê incitada a praticar ao
se deparar com as representações que dela faz o cinema, não pode parar e todos
os esforços de pesquisa devem se voltar a realimentá-la na direção de uma
constante evolução, mais do que para a revolução que quis ser o modernismo na
Arquitetura e Urbanismo. 3
Daniel Mangabeira da Vinha, no ensaio A participação da Arquitetura na
construção da idéia de futuro, transmitida pela sétima arte, verifica o quanto a
cenografia consegue influenciar na concepção do futuro apresentado no cinema e
sugere uma discussão sobre um possível feed-back:
Propondo o caos como forma inevitável de finalização de uma
sociedade, um cineasta pode propor à mesma que se reorganize para evitar o
inevitável. Foi assim com ‘Metrópolis’ e é assim com ‘Blade Runner’. Este tipo de
3
Meu tio era um blade runner: ascensão e queda da arquitetura moderna no cinema, de Lineu
Castello, http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq024/arq024_03.asp
13
questionamento que pode ser até imperceptível ao olho leigo é, na verdade, uma
profusão de idéias loucas e desvairadas, mas desmontam e se fixam em um lugar
que podemos chamar de presente. O presente é o passado do futuro. 4
Ambos os estudos apontam caminhos para uma visão das linguagens nãoverbais no cinema, mas se concentram na Arquitetura moderna e suas teorias, talvez
incorrendo em um desvio em que não se percebe a Arquitetura como sendo a
expressão artística que menos se isola no tempo-espaço. Não é apropriada, apesar de
possível e usual, a análise de uma obra arquitetônica isolada, sem buscar
compreender os diálogos dessa obra com seu entorno, tanto físico quanto histórico.
Não se tem, como que numa parede de museu, uma igreja gótica isolada, distante de
seus diálogos com o supermercado em frente, com os veículos velozes na avenida
lateral ou com o semáforo piscando seu eterno verde-amarelo-vermelho na esquina.
Portanto, a visão que se pretende neste trabalho é a mais abrangente possível quanto
às riquezas de justaposições de espaços – cheios/vazios -, objetos, luzes/sombras e o
arremate geral deste quebra-cabeças visual, o Urbanismo. A riqueza que se quer
atingir é a da conversa das arquiteturas atuais e antigas – todas presentes uma vez
que utilizadas – e a percepção de que a criação de um ambiente pode ter seu recorte
cronológico/histórico, mas é o seu uso adaptado no presente que vai comunicar sobre
a sociedade inserida neste espaço.
Tambien el centro de nuestras ciudades es con frecuencia un lugar
popular de choques y negociaciones culturales entre el tiempo homogéneo y
monótono de la modernidad y el de otros calendarios, los estacionales, los de las
cosechas, los religiosos. 5
Tanto Jesús Martin Barbero quanto Manuel Castells tratam da comunicação
do ambiente sob o paradigma informacional discutindo os fluxos e a rede de
informações que (re)dimensionaram a relação espaço-tempo. Em A sociedade em
4
A participação da Arquitetura na construção da idéia de futuro, transmitida pela sétima arte, de Daniel
Mangabeira da Vinha, http://www.unb.br/centros/cafau/art1/art1cinema.html
5
. La ciudad virtual. Transformaciones de la sensibilidad y nuevos escenarios de comunicación, de
Jesús Martin Barbero, p.29
14
Rede, Castells aprofunda-se no desenvolvimento de uma sociedade baseada na
comunicação em rede e analisa as novas configurações das relações que influenciam
até o Urbanismo e o crescimento das megalópolis. Barbero, no texto já citado (La
ciudad virtual) e em Os exercícios do ver – em co-autoria com Germán Rey – enfoca
os novos cenários de comunicação e discute o ‘ver’ como parâmetro conceitual dos
vínculos da cidadania com a comunicação e as mídias.
Ainda sobre a comunicação do ambiente, a simbologia e a informação do
espaço e dos objetos, Gaston Bachelard, em A poética do espaço, conceitua e reflete
sobre a poesia da imagem e imagem da poesia. Bachelard tem como contraponto e/ou
reafirmação Mircea Eliade que, em Imagens e símbolos, trata das ligações entre
imagens, mitos e símbolos e as modalidades do ser.
Na
última
década
foram
realizadas
algumas
pesquisas
bastante
enriquecedoras e que devem ser refletidas no presente trabalho. João Oswaldo Leiva
Filho, em B-a-ba cinematográfico6 (Dissertação de Mestrado), discorre sobre a
importância do processo de elaboração de uma linguagem no cinema. Fernão V. P. de
Almeida Ramos aborda, em sua Tese de Doutorado Imagens em movimento: fruição
espectorial no horizonte da presença7, as condições que de fato envolvem a produção
de uma imagem em movimento, analisando sua forma e fruição correspondentes. A
Tese de Doutorado Sociedade reconciliada: a utopia do século XXI. A produção de
significação no imaginário do cinema contemporâneo8, de Nizia Maria Alvarenga
estuda as tendências que estão se desenhando a partir do processo de mudanças
sociais em curso no conjunto das sociedades capitalistas ocidentais, por meio do
cinema. Márcia Cristina Marques Martins Ramos, em sua Dissertação de Mestrado
Elementos cenográficos nos filmes de Hitchcock: Os pássaros e Um corpo que cai9,
investiga a participação dos elementos cenográficos na narrativa de um filme e na
construção da poética de um autor, pressupondo identificá-los, considerando suas
articulações com os demais componentes na estrutura fílmica. O duplo e o simulacro
em Blade Runner e Matrix10, Dissertação de Mestrado de Maurício Vedovato, busca os
6
Escola de Comunicações e Artes - USP. Defesa em 26/11/1991
Escola de Comunicações e Artes - USP. Defesa em 15/05/1992
8
Faculdade De Filosofia, Letras e Ciencias Humanas - USP. Defesa em 16/10/1995
9
Escola de Comunicações e Artes - USP. Defesa em 17/12/1999
10
Escola de Comunicações e Artes - USP. Defesa em 27/02/2003
7
15
principais momentos em que o duplo e o simulacro vêm à tona nos dois filmes,
discutindo as estratégias utilizadas para que esses temas surjam.
Para se obter uma visão panorâmica – histórica e conceitual – do cinema
como arte e como indústria cultural, foram verificadas as visões de Noel Burch, em
Práxis do cinema, e de Antônio Costa, em Compreender o cinema.
O livro Teoria da comunicação de massa, de De Fleur e Ball-Rokeach,
apresenta, no capítulo “desenvolvimento do cinema”, um histórico desta mídia cuja
visão é complementada e ampliada com a análise do código cinematográfico feita por
Umberto Eco, em A estrutura ausente. Eco afirma:
A comunicação fílmica é a que melhor permite verificar certas hipóteses
e assunções do capítulo precedente. (articulação dos códigos visuais) 11
O ensaísta e escritor italiano desenvolve, então, um estudo da semiologia da
Arquitetura:
Se virmos na Semiologia não apenas a ciência dos sistemas de signos
reconhecidos como tais, mas a ciência que estuda todos os fenômenos da cultura
como se fossem sistemas de signos – baseando-nos na hipótese de que, na
realidade, todos os fenômenos de cultura sejam sistemas de signos, isto é, que a
cultura seja essencialmente comunicação - , verificaremos que um dos setores
onde ela tem sido mais desafiada pela realidade que procura dominar é o da
Arquitetura. 12
Sua contribuição ao estudo inclui uma relação espaço-tempo inovadora:
(...) a atividade lúdica de redescobrir significados para as coisas, ao
invés de exercitar-nos numa fácil filologia em relação ao passado, implica uma
invenção (não uma redescoberta) de códigos novos. O salto para trás transforma-
11
12
A estrutura ausente, de Umberto Eco. p.139
op.cit. , de Umberto Eco. p.187
16
se em salto para frente. A história, de ilusão cíclica, passa a ser projetação do
futuro. 13
Essa abordagem da semiologia da Arquitetura é enriquecida pela visão da
tese de livre-docência de Décio Pignatari, Por um pensamento icônico: semiótica da
arte e do ambiente urbano. Ambas são questionadas, todavia, por Milton José Pinto
que afirma, em Comunicação e Discursos:
A análise de discursos defende a idéia de que qualquer imagem, mesmo
isolada de qualquer outro sistema semiótico, deve ser sempre considerada como
sendo um discurso, recusando a categoria de ‘signos icônicos’ ou ‘ícones’ em que
são em geral classificadas pelos semiólogos.14
Apesar de o presente estudo não privilegiar o enfoque da Arquitetura como
processo construtivo, evitando a característica gramatical desta linguagem, mas
investigando seu aspecto comunicacional, é necessário identificar diacronicamente a
Arquitetura. Dois autores clássicos italianos contribuem para este reconhecimento.
Bruno Zevi, em Saber ver a Arquitetura, e Manfredi Tafuri, em Teorias e Histórias da
Arquitetura alimentarão este relato.
Uma outra aproximação diferenciada do tema e, portanto, enriquecedora, é
apresentada pelo geógrafo Jorge Luiz Barbosa que, em sua tese de doutorado As
paisagens crepusculares da ficção-científica: a elegia das utopias urbanas do
modernismo, faz uma reflexão crítica do modo de estar e ser urbano, tendo na relação
paisagem-imagem seu fundamento principal de investigação.
Objetivo geral deste trabalho, portanto, será analisar e investigar como e
quanto a linguagem da cenografia auxilia e/ou determina a construção da idéia de
futuro nos filmes de cinema ambientados no futuro. Os objetivos específicos são:
•
13
14
Investigar o conceito de futuro.
op.cit. , de Umberto Eco. p.214
Comunicação e Discursos, de Milton José Pinto. p.37
17
•
Estudar o conceito de verossimilhança na linguagem não-verbal da
cenografia no cinema.
•
Analisar a comunicação do ambiente – Arquitetura e Urbanismo – e sua
relação com a mídia.
O Trabalho desenvolve-se, então, ao longo de três capítulos – além da
Introdução e das Considerações Finais. No primeiro, apresenta-se o motivo pelo qual o
recorte do corpus do trabalho foi tão específico, ao escolher-se apenas um filme –
Brazil, o filme (Estados Unidos, Brazil, direção de Terry Gilliam, 1985) – para se
aprofundar o estudo. Um pouco da história da criação do filme e a importância da vida
do diretor no resultado do filme também são apresentados. Ainda no primeiro, são
discutidos aspectos fundamentais da narrativa do filme que constroem a riqueza
poética da obra. No segundo já se começa a discutir a construção da idéia de futuro
dentro de Brazil partindo-se para a análise da propaganda ideológica presente na
narrativa. No terceiro, discute-se a importância da Arquitetura na construção da idéia
de futuro, com enfoque na cenografia do filme estudado para a verificação das teses
apresentadas.
18
II. Brazil, o filme
No universo do cinema do século XX, existem, pelo menos, 20 ou 30
obras de grande impacto que tratam da vida humana em tempos vindouros e que
mereceriam um aprofundamento do estudo. Qual, então, o critério a se definir para
estabelecer o corte para estudo? O primeiro impulso foi estudar aquele filme que
despertou em mim o desejo de entender os realizadores de filmes, no estabelecimento
de uma “arte do futuro”, fruto de uma “sociedade do futuro”: Blade Runner, o Caçador
de Andróides (Estados Unidos, Blade Runner, direção de Ridley Scott, 1982). Aos
dezoito anos, preparando-me para o curso de Arquitetura, a Arquitetura e o Urbanismo
apresentados em Blade Runner me marcaram profundamente. Este impacto provocou
o interesse pelo gênero ficção científica, especialmente no cinema, e ambientados no
futuro.
Vinte e dois anos após este impacto, e mil filmes depois, estou
escrevendo, afinal, esta dissertação, com a consciência de que existem alguns
elementos que se encontram em quase todos e que interligam os filmes de ficção
ambientados em tempos que hão de vir. Apesar de correr um grande risco, atrevo-me
à generalização ao enumerar elementos encontráveis em quase todos esses filmes.
Em seus enredos existe sempre uma ordem social, aceita e imposta pela maioria, a
qual é desafiada ou subvertida por um elemento dissidente, consciente do perigo desta
“ordem” para a humanidade. Esta ordem a ser desafiada é de fato a representação
dos principais temores humanos à época da realização do filme. Assim, temos a
máquina1 (industrialização) como o vilão do começo do século XX. Ao longo do século,
vemos, então, desfilarem os 'novos’ vilões: guerra-guerra fria, autoritarismo2, controle
da liberdade individual3, pesquisas científicas4, computadores5, violência urbana6,
1
p.e. Metropolis(Alemanha, Metropolis, dir. Fritz Lang, 1926); Tempos Modernos (EUA, Modern Times,
dir. Charles Chaplin, 1936).
2
p.e. Farenheit 451 (França, Farenheit 451, dir. François Truffaut, 1966).
3
p.e. Alphaville (França, Alphaville, dir. Jean-Luc Goddard, 1965).
4
p.e. Solaris (União Soviética, Solaris, Andrei Tarkovsky, 1972); A Máquina do Tempo (EUA, Time
Machind, dir. George Pal, 1960).
5
p.e. Alphaville,; 2001, uma odisséia no espaço (EUA, 2001: A Space Odissey, dir. Stanley Kubrick,
1968).
6
p.e. Laranja Mecânica, (Inglaterra, A Clorkwork Orange, dir. Stanley Kubrick, 1971); Rollerball, Os
Gladiadores do Futuro (EUA, Rollerball, dir. Norman Jewison, 1975).
19
manipulação genética7, devastação ambiental8, clonagem9, inteligência artificial10,
mundos virtuais11. O desafio à “ordem” é um “aviso” do realizador do filme à
humanidade.
Quase todos os filmes são “iguais” em mensagem, mas como diz a
personagem Lisbela, em Lisbela e o Prisioneiro (Brasil, direção de Guel Arraes, 2004),
“o que importa não é o quê, é o como”. Portanto, o critério que adotei para estudo
detalhado da construção do futuro foi encontrar o filme cujo “como” se revestisse de
mais elementos poéticos e mais “contaminação” artística.
Quase que intuitivamente, a pesquisa foi gradativamente me levando
para o aprofundamento em Brazil, o Filme, de Terry Gilliam, de 1985. A princípio, este
era apenas um dos filmes a se analisar, mas a pesquisa acurada levou a descobertas
muito enriquecedoras e o foco do trabalho foi apontando para a obra de Terry Gilliam.
II.1. O que é Brazil
Afinal, o que é Brazil? As distribuidoras de cinema, vídeo e dvd, no
Brasil, classificaram Brazil, o Filme como aventura. No exterior, há críticos que
divergem e classificam o filme como comédia, aventura, ação ou ficção científica. O
motivo dessa divergência é compreendido logo nos primeiros momentos do filme. É
comédia, pois o humor negro está o tempo todo presente na tela. É ação ou aventura,
pois há perseguição, explosões, “mocinhos e bandidos” (apesar de não se ter certeza
de quem é o mocinho e quem é o bandido). Há romance, também. Há ficção científica
pois, aparentemente, a ação se passa no futuro. Mas este é apenas um dos grandes
jogos propostos: quando e onde se passa o filme? Não é no Brasil. Este é mais um
dos jogos.
Vamos à sinopse do Guia de Vídeo e DVD 2003:
7
p.e. THX 1138 (EUA, THX 1138, dir. George Lucas, 1971).
p.e. Mad Max (Austrália, Mad Max, dir. George Miller, 1981); Duna (EUA, Dune, dir. David Lynch,
1984).
9
p.e. Blade Runner, o Caçador de Andróides.
10
p.e. A.I. - Inteligência Artificial (EUA, A. I., dir. Steven Spielberg, 2001).
11
p.e. Matrix (EUA, Matrix, dir. Larry & Andy Wachowski, 1999)
8
20
Brazil, o Filme (Brazil, 1985, EUA) Direção: Terry Gilliam. Com: Jonathan Pryce,
Kim Greist, Robert De Niro, Katherine Helmond, Ian Holm. Numa sociedade do
futuro, burocrata aceita promoção e desafia o rígido controle estatal para
proteger sua amada, perseguida injustamente pelo sistema. Gilliam (Os Doze
Macacos) realizou um instigante e perturbador cruzamento entre ficção
científica e comédia de humor negro com essa produção estilizada, cuja direção
de arte, fotografia e figurinos são impecáveis. O rigoroso acabamento formal
serve de moldura para uma também rigorosa crítica aos sistemas totalitaristas,
com evidente parentesco do clássico 1984, de George Orwell. O elenco, com
Jonathan Price e de Niro à frente, é outro dos muitos destaques do filme. 131
min. Flash Star. Aventura.
12
É importante situar e contextualizar o filme. Para isto, é fundamental
focalizar o diretor, que além de dirigir, propôs o argumento, interagiu com o roteirista,
definiu a trilha sonora, opinou no casting e participou ativamente em quase toda a
criação da parafernália visual desenvolvida para o cenário e figurino.
II.2. Terry Gilliam
Terry Vance Gilliam, americano, nascido em 1940, em Minneapolis,
formou, de 1969 a 1974, junto com cinco ingleses, o grupo Monty Python que
apresentava o programa Monty Python’s Flying Circus na BBC inglesa. No grupo,
todos se revezavam como roteiristas e atores e o programa por eles criado
revolucionou o humor britânico de forma indelével. Os sketches criados pelo grupo
utilizavam o humor negro, o non-sense, e muita provocação com o status quo, a
burocracia e a família real.
A partir de 1974, o grupo iniciou a realização de filmes de longametragem para o cinema, produzindo Monty Python em Busca do Cálice Sagrado
(Inglaterra, Monty Python and the Holy Grail, 1974), parodiando as aventuras durante
as Cruzadas, A Vida de Brian (Inglaterra, Monty Python's Life of Brian, 1979), sobre
12
Guia de vídeo e DVD 2003, Editora Nova Cultural, p.94
21
um homem que nasce na manjedoura ao lado da de Jesus e é confundido com o
messias, O Sentido da Vida (Inglaterra, Monty Python's The Meaning of Life, 1983), em
que várias maneiras possíveis de enxergar a vida são apresentadas em sketches,
além de outros filmes feitos a partir da gravação de shows do grupo.
Assim como os demais do grupo, Terry Gilliam lançou-se em carreira
solo
e
realizou
os
filmes
Jabberwocky,
um
Herói
por
Acaso
(Inglaterra,
Jabberwocky,1977), uma comédia situada na Idade Média; Os bandidos do tempo
(Inglaterra, Time Bandits, 1981), um exercício humorístico de viagens no tempo; Brazil,
o Filme; As Aventuras do Barão de Münchausen (Inglaterra, Alemanha, Itália, The
Adventures of Baron Münchausen, 1989), uma refilmagem da história de um barão
tentando salvar sua cidade sitiada pelos turcos; Os Doze Macacos (EUA, 12
Monkeys,1995), uma das melhores concepções para viagens no tempo; e Medo e
Delírio (EUA, Fear and Loathing in Las Vegas, 1998), um filme corajoso e irreverente
sobre a decadência da sociedade americana. Percebe-se em Terry Gilliam uma
tendência recorrente sobre viagens no tempo e caracterizações de época tanto para o
passado quanto para o futuro.
O ponto de partida para Brazil, o Filme foi a visão de Gilliam de uma
cena em Port Talbot, uma cidade em Gales produtora de minério de ferro. Toda a
cidade é coberta de um pó cinza do minério, inclusive a praia. Gilliam viu na praia um
homem sentado nesta areia cinza, ouvindo a canção Brazil13 em um rádio portátil. A
idéia de uma música conseguir deixar, para o ouvinte, o mundo menos cinza provocou
Gilliam a criar um filme sobre um personagem que através de seus sonhos escapa da
vida burocratizada e sistemática em que vive.
13
Brazil, versão (1943), em inglês, da canção “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso (1939).
22
II.3. Rupturas em Brazil
A poética - que também pode ser chamada de função estética, ou
simplesmente Arte, conforme o autor, filósofo, teórico ou crítico14 - é, pois, a pedra de
toque que destaca Brazil, o Filme, das demais obras de cinema para esta análise. O
que distingue uma obra, fruto da engenhosidade humana, de uma outra qualquer,
fazendo com que seja considerada “arte” é um processo que me atrevo a chamar de
Traição & Recompensa. Todas as relações humanas são pautadas pela definição de
códigos, leis, tratos, contratos, os quais são estabelecidos para garantir padrões de
comportamento e permitir a convivência segura entre seres com desejos e
necessidades diferentes. Qualquer atentado ou ruptura de um código configura, então,
uma traição a um acordo prévio. A evolução cultural humana15 depende da expansão
das fronteiras do pensamento e esta só é atingida por meio da alteração na forma de
olhar o mundo. Evolução é mudança. Mas mudança é justamente o que é combatido
pelos códigos. Sendo assim, a traição ao código é essencial à evolução.
Entretanto, como afirmei, a poética é um processo, não um ato. A
traição é apenas parte desse processo. Se a ruptura do código se encerra em si
mesma é inócua, é frágil – mais frágil que o código – e resulta julgamento e punição. O
que completa o processo poético é a recompensa. Quando a ruptura do código
provoca um desvio, este “novo caminho”, paralelo ao código, produz a ambigüidade.
Este duplo sentido, que transforma o olhar sobre o código, amplia a possibilidade de
comportamento. Instaura-se uma dúvida sobre a validade única da verdade
estabelecida pelo código. Na resolução do enigma entre qual caminho é o correto é
que se expandem as fronteiras, pois, da aceitação de um “novo caminho” como
“também correto” e alternativo é que surge o sentimento de recompensa. Atrevo-me a
dizer que é esse processo, onde uma traição é “indenizada” por uma recompensa,
produzindo evolução cultural, o que se denomina Poética.
14
A distinção entre as acepções destes conceitos é tão tênue que, às vezes, o preciosismo necessário
para diferenciá-las tende a desviar o foco da crítica para o fundamental a ser analisado: a expressão
humana.
15
Poder-se-ia dizer que não apenas a evolução cultural humana, mas toda evolução da espécie
humana ou de qualquer elemento do universo –e até mesmo do próprio – depende de rupturas de
paradigmas e alterações de regras, mas este é um assunto que foge da abrangência deste estudo e da
capacidade deste estudioso.
23
II.3.1. Final Infeliz
A primeira e maior ruptura está na derrota do herói, ao final do filme.
Invertendo e subvertendo a maior característica da “narrativa clássica” do cinema
hollywoodiano, em Brazil, o herói (ou anti-herói) luta contra o opressor por motivos
pessoais (até banais, ao contrário da “grandeza de espírito” associada a um herói) e é
derrotado, sem sequer servir de mártir de um objetivo nobre. Esta ruptura, aliás,
provocou polêmica entre o diretor e Sidney Sheinberg, o presidente da Universal
Studios, a distribuidora do filme para os Estados Unidos. Uma batalha legal foi aberta
porque Sheinberg não acreditava no sucesso comercial de um filme sem um happy
ending. De posse da versão de Terry Gilliam, editores da Universal realizaram uma
nova edição onde o herói conseguiria conquistar sua garota-dos-sonhos e viverem
“felizes para sempre”. Gilliam não aceitou este "ultraje" e se utilizou da opinião da
crítica especializada para “espalhar” cópias de sua versão, desacreditando a versão
em que se passava a mensagem na qual, concordando-se com o sistema, o sonho se
torna realidade. A Universal teve que voltar atrás. Entretanto, não investiu em
publicidade e lançou o filme em poucos cinemas.
O trágico fim, inesperado para uma obra de cinema (pelo menos para
a clássica narrativa de Hollywood), não foge, porém, de sua principal influência. A obra
dialoga, sem tentar esconder suas raízes, com a obra 1984, de George Orwell (1948).
Aliás, não é por coincidência que o filme é rodado em 1984. Antes do título Brazil,
Gilliam considerou dar a seu filme o título 1984 e ½, uma alusão direta a sua maior
fonte e a uma de suas obras mais amadas, 8 e ½ (Itália, Otto Mezzo, direção de
Federico Felini, 1963). Apenas para olhos atentos de um pesquisador, Terry Gilliam
cravou, em uma rápida cena em que aparece um documento, a data em que se dá a
prisão de Buttle: 31 de junho de 1984 – apesar de ser uma data que não existe (o mês
de junho possui 30 dias) e o filme se passar na época do natal, esta data
aparentemente absurda foi escolhida por representar justamente o meio do ano 1984
(fig. 1). É apenas um detalhe, propositadamente quase imperceptível, para que se
sustente o enigma temporal do filme.
24
FIGURA 1 - "31 de junho de 1984"
II.3.2. Onde e Quando
Um enigma que o filme constrói desde seu início é sobre quando e
onde se passa a narração. Um letreiro inicial – que, em filmes de ficção científica, de
acordo com o esquema tradicional narrativo, costuma definir claramente o ano e a
cidade (país ou planeta) em que se passa a história – diz apenas: “8:49 PM
SOMEWHERE IN THE 20th CENTURY” (em algum lugar do século XX)16. Pode ser
qualquer lugar, ou talvez nenhum. Mas o que se sente, à medida que se desenrola a
história, é que pode ser todo lugar. Isto é, todo lugar pode vir a se tornar aquele lugar.
E pode ser em qualquer ano do século 20. Alguns elementos cenográficos remetem às
primeiras décadas do século: os filmes de cinema, a arquitetura com referências à
arquitetura nazista (anos 30), os veículos (O Messerschimitt com o qual Sam Lowry se
locomove é um veículo alemão dos anos 40), as roupas (o chapéu-sapato que Ida
Lowry usa é uma criação dos anos 30 e as roupas de Sam são típicas dos film-noir
dos anos 40 e 50). Todavia, a tecnologia utilizada, apesar da aparência non-sense dos
16
Esta brecha, provavelmente, levou algumas distribuidoras a não classificarem o filme com o gênero
“ficção científica”.
25
objetos tecnológicos (que será comentada adiante), remete às últimas décadas do
século. Este jogo entre elementos antigos e novos provoca uma espécie de “silepse17temporal”, aumentando o mistério sobre a época em que se passa o filme, e levando o
espectador a concluir intuitivamente que, se não é tempo algum conhecido, é um
futuro. Mas, se faltavam apenas 15 anos para o fim do século e aquele “futuro” era “no
século XX”, uma mensagem terrível se apresenta: “este é um futuro próximo, portanto
o que acontece aqui é um processo em andamento!”.
O que torna o quebra-cabeças mais intrigante é que a atemporalidade,
à qual o enigma do letreiro inicial remete e a intrincada parafernália visual confirma, é
característica das fábulas míticas: histórias e mitos desenvolvem-se no campo
temporal do “era uma vez”. Assim como em relação ao espaço, podemos estar em
algum tempo, ou qualquer tempo, ou mesmo em tempo nenhum.
II.3.3. Aquarela do Brazil
O mistério sobre o lugar da ação da história inicia-se muito antes da
projeção do filme, no título da obra. O filme se chama Brazil e, em nenhum momento,
na tela, se vê ou se fala sobre o Brasil. Já se sabe que o título vem da inspiração da
música para o diretor. Mas, antes disto, o que é que a música Brazil diz sobre Brasil?
Vamos comparar as letras das duas versões, a original e a versão em inglês:
Aquarela do Brasil (Ary Barroso, 1939)
Brasil, meu Brasil Brasileiro
Meu mulato inzoneiro
Vou cantar-te nos meus versos
O Brasil samba que dá
Bamboleio que faz gingar
O Brasil do meu amor
Terra do Nosso Senhor
17
Figura pela qual a concordância das palavras se faz de acordo com o sentido e não segundo as
regras da sintaxe.(Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa)
26
Abre a cortina do passado
Tira a Mãe Preta do Cerrado
Bota o rei Congo no congado
Canta de novo o trovador
A merencória luz da lua
Toda canção do meu amor
Quero ver essa dona caminhando
Pelos salões arrastando
O seu vestido rendado
Esse coqueiro que dá coco
É onde amarro a minha rede
Nas noites claras de luar
E essas fontes murmurantes
Onde eu mato a minha sede
Onde a lua vem brincar
Ô esse Brasil lindo e trigueiro
Ê o meu Brasil Brasileiro
Terra de samba e pandeiro
Brasil
Terra boa e gostosa da morena sestrosa
E de olhar indiferente
O Brasil samba que dá
Para o mundo se admirar
O Brasil do meu amor
Terra do Nosso Senhor
Brazil (S.K. Russell & Ary Barroso, 1943)
Brazil,
Brasil
Where hearts were entertaining June,
onde os corações se divertem em junho
We stood beneath an amber moon
nós estamos sob esse luar âmbar
And softly murmured, "Someday soon"
e murmurando: “algum dia em breve”
We kissed and clung together,
27
nos beijamos e abraçamos
Then, tomorrow was another day;
então, o amanhã era um outro dia
The morning found me miles away
a manhã me encontrou a milhas daqui
With still a million things to say.
com um milhão de coisas ainda por dizer
Now, when twilight dims the sky above,
e agora, quando o crepúsculo escurece o céu
Recalling thrills of our love,
relembrando a excitação de nosso amor
There's one thing I'm certain of
há uma coisa de que tenho certeza
Return I will to old Brazil.
retornarei ao velho Brasil.18
Se Barroso deseja uma declaração de amor ufanista e exagerada,
típica de quem “canta sua terra”, Russell aborda o tema com uma visão escapista,
citando “o velho” Brasil como local para amores tórridos, tropicais, longe de seu país
de origem. Estas duas abordagens apresentam um possível conceito sobre um “Brazil”
e um “Não-Brazil”. Apesar de que um artista culto e informado (caso do diretor Terry
Gilliam) saberia, em 1985, que o verdadeiro Brasil, país Sul-americano, não
representava paraíso algum e que estávamos apenas engatinhando para uma
democracia – mas com uma herança muito forte e recente de ditadura cruel e
torturadora –, no imaginário popular, leigo, do Hemisfério Norte, “Brasil” se refere ao
avesso da sociedade burocratizada e “regulamentada” do primeiro-mundo. Esta
discussão será retomada em III.2.
A trilha sonora é baseada quase que exclusivamente nessa música.
Três personagens, durante a trama, cantarolam partes da canção, geralmente em
momentos de descontração. Aqui, o diretor Terry Gilliam demonstra, mais uma vez,
muita habilidade no controle da comunicação. Gilliam estabelece um jogo muito
expressivo a partir de uma mesma linha melódica. Apoiando-se em diferentes arranjos
da canção, explora, por meio de nuanças, diversas possibilidades. Assim, quando
18
Tradução livre, de minha autoria.
28
aparecem imagens oníricas em que Sam surge como que um Ícaro sobre planícies na
busca de sua amada, essa imagem de seu sonho é preenchida sonoramente por um
arranjo suave de cordas, em um compasso lento, estendendo-se cada nota ao limite –
instrumentos de corda tocados com arcos têm como característica a continuidade
entre os acordes, o que permite uma interpretação de movimentos harmônicos (o vôo,
a dança, a corte à amada), conotando fluência, fluidez.
Por outro lado, a mesma música aparece como trilha sonora da
imagem da ‘fábrica de burocracia’ do departamento de Cadastro de Informações, do
Ministério da Informação. Utilizando somente as notas da introdução de “Aquarela do
Brasil”, em compasso rápido e arranjo baseado em instrumentos de sopro (notas
curtas e fortes) e percussão (acrescentando o acompanhamento significativo de uma
máquina de escrever como instrumento), atinge-se um clima de ritmo cadenciado,
veloz, quase caótico.
II.3.4. Bug no Sistema
A trama do filme tem seu início em um engano de nomes que provoca
a prisão equivocada de um inocente que morre por não resistir aos excessos de uma
seção de tortura durante seu “depoimento”. Além de expor o lado negro de um
governo autoritário onde se julga e se executa a pena sem direito a defesa, o filme
mostra a arrogância com que uma ditadura se livra de seus próprios erros. Apesar do
aspecto sombrio do tema da “pena de morte” para um inocente, o diretor constrói uma
metáfora para apresentar o engano do governo. Talvez seja melhor dizer que o diretor
“desconstrói” a metáfora, trabalhando com um trocadilho semântico. Em uma cena
hilariante, um funcionário do Ministério da Informação se põe em uma patética caça a
uma mosca em seu escritório. Como conseqüência, esmaga a mosca no teto. A mosca
morta se desprende do teto e cai dentro da máquina impressora provocando o erro de
grafia – o sobrenome Tuttle vira Buttle (fig. 2). A expressão bug, utilizada como falha,
erro de informação, materializa-se e transforma-se no próprio inseto (bug, em inglês).
29
FIGURA 2 - Bug no sistema
30
II.3.5. Arquitetura e Design
Outro aspecto impressionante do filme é a cenografia. O poder
onipresente e opressor se apresenta, também, na arquitetura dos órgãos públicos,
com enormes pés direitos e amplos salões nos ambientes de acesso do público,
apesar das minúsculas salas dos funcionários burocráticos. Semelha-se ao que Décio
Pignatari chama de “Semiótica do Poder” (1979, p. 153), cujos traços fundamentais se
caracterizam pelas palavras alto e grande que são os modos pelos quais se
estabelecem hierarquias no universo icônico.
Mas não é na óbvia “arquitetura do poder” que se encontram os
grandes significados da cenografia19. Toda arquitetura e o design mostrados em Brazil
apresentam como característica a extrapolação de uma tendência do fim do século
XX: o higt-tech pós-moderno, pós-industrial. Em Londres, no ano de 1984, estava em
construção talvez o mais célebre ícone da arquitetura de alta tecnologia. O arquiteto
inglês Richard Rogers, que já havia construído, junto com o arquiteto italiano Renzo
Piano, o ultra-moderno centro de artes Georges Pompidou, em Paris, erguia em um
antigo bairro londrino um edifício caracterizado por ter suas “entranhas” expostas
(tubos e dutos de ar-condicionado, elétrica, hidráulica, circulações verticais, serviços,
máquinas, estrutura de sustentação) (fig. 3). O estilo e a localização provocaram
polêmica suficiente para jogar o edifício no centro das sátiras e paródias de Terry
Gilliam.
Toda arquitetura em Brazil é permeada de tubos – o prólogo do filme
apresenta uma propaganda de televisão em que um senhor oferece às donas-de-casa
uma nova “linha de tubos”, “em centenas de cores diferentes, de acordo com seu
gosto pessoal”20 – e todos os objetos tecnológicos (computadores, aparelhos
domésticos, veículos) são compostos de peças antigas. Os computadores, somente
como exemplo, são construídos a partir de equipamentos obsoletos justapostos:
19
Como diz Suely Flory, em Do Regional ao Existencial: o Espaço como Personagem, in Comunicação
Veredas, nº 2 (2003, p. 400), “Os objetos, paisagens e animais são mensagens em sua materialidade,
em sua exterioridade, com sua própria presença, cuja simbologia ultrapassa o simples papel de
elementos decorativos. A simbolização sobrepuja a significação funcional imediata, (...) através do jogo
de imagens e das aproximações metonímicas e analogias metafóricas.” Aqui, Flory concorda com
Umberto Eco, em A Estrutura Ausente(1968).
20
“in hundreds of different colors, to suit your individual taste”.
31
máquinas de escrever, lentes de aumento, válvulas, correias, tubos de televisão preto
& branco. (fig. 4) Esta construção do novo pelo velho – oxímoro21 –, é uma
simbolização desmistificadora das tecnologias, que não criam algo senão objetos
transformados/reutilizados. A exposição agressiva de todos os componentes de cada
máquina é uma metáfora do que existe, hoje, escondido sob invólucros de aparência
tecnológica, nos equipamentos atuais.
FIGURA 3 - Lloyd’s Building – Guia do visitante
21
Figura que consiste em reunir palavras contraditórias; paradoxismo.(Novo Dicionário Aurélio da
Língua Portuguesa)
32
FIGURA 4 - Computador "do futuro"
II.3.6. Sonhos e Pesadelos
Baseado na imagem inspiradora de um homem, na praia, fugindo de
seu mundo cinzento ouvindo a canção Brazil, Terry Gilliam construiu um jogo entre
realidade e sonho, onde Sam Lowry, seu anti-herói, “sobrevive” ao “pesadelo” que é
sua vida, escapando dela através de seus sonhos. Surge aí a sensação da “espiral do
abismo onírico”: o simulacro de um sonho, dentro de uma realidade-pesadelo, dentro
de um filme-sonho22.
Brazil, o Filme é basicamente formado por quinze seqüências
intercaladas de “realidade” e “sonhos” do protagonista. Contrariando o senso comum,
Gilliam constrói uma “realidade” rica em metáforas, metonímias, non-sense, ilógica e
atemporalidade e “sonhos” com seqüências lógicas, conotações óbvias, demonstrando
a imaginação embotada de um funcionário público sem perspectivas.
22
Com a expressão “filme-sonho” refiro-me à presença, em Brazil, dos processos primários do
inconsciente descritos por Freud: condensação – imagens sobrepõem-se -, deslocamento – vários
elementos encontram-se em local inesperado -, falta de lógica racional – a lógica é desafiada, ainda que
ironicamente dentro do “possível” -, atemporalidade – já devidamente explicada anteriormente.
33
Tais segmentos narrativos de Brazil se compõem de sete seqüências
de realidade, sete seqüências de sonhos e a seqüência final, que causou a polêmica
briga entre o diretor e a distribuidora americana. Para a Universal Studios, a seqüência
final seria parte da realidade (mesmo com uma série de fatores irracionais – oníricos)
para que o protagonista tivesse final feliz. Para o diretor, a seqüência toda é fruto de
um estado de “demência” provocada por uma lobotomia. As ferramentas que se
encontram na mesa de apoio na hora da seção do “interrogatório” de Sam são, em sua
maioria, as mesmas usadas para cirurgias de lobotomia (fig. 5).
A “ferramenta” que Jack23 Lint empunha na direção de Sam Lowry é
um picador de gelo, usado para desligar as fibras do lobo prefrontal24. Compreende-se,
então que toda a seqüência iniciada com a morte de seu torturador, na verdade,
aborda de devaneios de uma mente “desligada” para se tornar controlada pelo
sistema.
O diálogo final entre o torturador Jack Lint e o Vice-Ministro da
Informação Mr. Helpmann confirma:
Helpmann: - Ele está em outro lugar, Jack.
Jack:
23
- Acho que tem razão, Mr. Helppmann. Ele se foi.25
O nome "Jack" lembraria a personagem "Jack, o estripador"
Método cirúrgico criado por Walter Freeman, em 1945. SABBATINI, R. M. E. A História da Lobotomia
em http://www.epub.org.br/cm/n02/historia/lobotomy_p.htm (acesso em 13 de agosto de 2004)
25
“He’s got away from us, Jack.” “I’m afraid you’re rigth, Mr Helpmann. He’s gone.”
24
34
FIGURA 5 - mesa de "confissões"
Mas se, por um lado, as seqüências de sonho são “burocráticas” em
seu desenvolvimento, mostrando a evolução da relação entre seu dia-a-dia e seus
desejos e frustrações, por outro, a seqüência final é rica em intertextualidade com
outros filmes que inspiraram o diretor.
FIGURA 6 - O Processo X Brazil
Apesar de ser na seqüência final onde se encontra a maioria das
referências, a intertextualidade está presente nos 142 minutos de projeção, dialogando
35
com o cinema e as artes em geral. Uma das mais explícitas referências fílmicas do
ambiente burocratizado de Brazil é o filme O Processo, de Orson Welles (1963), no
qual o ‘escritório’ onde Joseph K. trabalha é uma ‘fábrica’ onde pessoas datilografam
mecanicamente (fig. 6).
Mesmo em pequenos detalhes, como o fato da triste figura da esposa
de Archibald Buttle (o inocente preso e torturado até a morte), que é “sapateiro” (shoe
repair operative), remeter ao quadro Shoe repairer’s wife – woman in red de Chaïm
Soutine (1927) (fig. 7). No personagem Harvey Lime, vizinho da "meia-sala" de Sam,
que demonstra inspiração no personagem Harry Lime (Orson Welles), do filme O
Terceiro Homem (The Third Man, 1949, de Carol Reed). Ou no nome do protagonista,
Sam, que é o mesmo de um importante personagem (O pianista imortalizado na frase
“Play it, Sam”) de Casablanca, de Michael Curtiz (1943), filme que parece inspirar o
figurino de Brasil.
FIGURA 7 - A mulheres dos sapateiros
O cinema clássico americano é citado diversas vezes em Brazil, seja
explicitamente, como nos posters no quarto de Sam, nos filmes que passam na tv
(cena do banho de Jill Layton e no apartamento de Mrs. Buttle) ou nos filmes que os
funcionários do Ministério assistem clandestinamente (Casablanca e um bang-bang),
seja implicitamente, em detalhes.
36
Nas seqüências de sonho, temos referências do sonho do prólogo do
já citado 8 e ½ de Fellini, quando uma figura humana de pedra (alusão ao seu chefe,
Mr. Kurtzmann) puxa Sam que está preso a uma corda que o faz flutuar (fig. 8). Em
outro sonho de Sam, há uma luta contra um samurai26 e, após este estar vencido, sob
sua máscara surge o rosto do próprio Sam. Podemos perceber aí a semelhança deste
sonho com o sonho de prof. Borg em Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman (1957),
no qual o protagonista se vê deitado em um caixão.
FIGURA 8 - Oito e meio X Brazil
Na seqüência final é possível perceber, então, diversas influências às
quais Sam Lowry provavelmente esteve exposto em sua vida: as cenas de seu resgate
e sua fuga não fogem ao padrão das cenas de filmes de ação de Hollywood; a
presença de um Papai Noel no grupo de resgate se deve ao fato de a história se
passar na época das festas; enquanto o tiroteio ocorre, o porteiro do Ministério assiste
às cenas em seu monitor, de onde saem sons de vídeo-games típicos dos anos
oitenta; o sentimento revolucionário do protagonista é simbolizado por uma alusão à
famosa cena da escadaria de Odessa em Encouraçado Potenkim (União Soviética,
Bronenosets Potymkin, direção de Sergei Eisenstein, 1925). O carrinho de bebê é
ironicamente substituído por uma máquina de limpeza de piso (fig. 9);
26
Há um sutil trocadilho na personagem do samurai, cuja pronúncia pode ser assemelhada com “Sam
or I” (Sam ou eu) ou “Sam, you are I” (Sam, você sou eu).
37
FIGURA 9 - Brazil X Encourçado Potenkim
A
explosão
do
Ministério
provoca
uma
“queima
de
fogos”
comemorativa e uma chuva de documentos e formulários por toda a cidade,
transformando a burocracia em “confete”. Seu principal salvador, Tuttle, que odeia a
burocracia, é “engolido” pelos papéis do Ministério, significando que, dali em diante,
Sam estará sozinho para lutar; Sam foge para uma cerimônia de velório de Mrs.
Terrain, cujo corpo está decomposto por seus tratamentos para rejuvenescimento com
ácidos27. Sam é recebido por Spiro, o agressivo maitre do restaurante do início do
filme. Quando encontra sua mãe, ela está cercada de jovens homens que a cortejam
como na famosa cena de Os Homens Preferem as Loiras (EUA, Gentlemen Prefer
27
O pai de Terry Gilliam teve uma terrível experiência com tratamento com ácidos, quase perdendo uma
orelha.
38
Blondes, direção de Howard Hawks, 1953), em que Marilyn Monroe canta Diamonds
are a girl’s best friend.
Quando Ida Lowry, mãe de Sam, se volta para ele, o rosto é de Jill
Layton, em uma clara apresentação do complexo de Édipo de Sam. Logo em seguida
seu rosto é o de Ida, só que rejuvenescido por operações plásticas. Quando a polícia
entra no velório, Sam foge pulando dentro do caixão e cai vertiginosamente, como na
famosa cena de Um Corpo que Cai (EUA, Vertigo, direção de Alfred Hitchcock, 1958)
(fig. 10);
39
FIGURA 10 - Um Corpo que Cai X Brazil
Em sua fuga, várias luzes de néon apontam o caminho e, além da
polícia, Sam passa a ser perseguido por figuras que já haviam aparecido em seus
sonhos e pela família Buttle, reclamando pelo corpo do pai torturado. Sam escapa
subindo uma montanha de dutos (onde desponta uma cruz “redentora” de néon) e
alcança um muro onde se encontra uma porta;
Atrás da porta está uma casa como as que Jill Layton transporta com
seu enorme caminhão e Sam percebe que está sendo transportado por Jill (a esta
40
altura, de fato, já morta). Sam e Jill viajam para um cenário bucólico onde se instalam
e “vivem-felizes-para-sempre”, completando a visão paródica da narrativa clássica do
cinema de Hollywood.
II.3.7. Breves Leituras
Se estamos analisando a obra Brazil sob a ótica da Comunicação, é
necessário, para enriquecimento da discussão, olhar os conceitos da Semiótica para
ampliar a compreensão das diversas leituras possíveis do filme.
Lúcia Santaella, em O que é semiótica, afirma:
(...) todas as linguagens da imagem, produzidas através de máquinas
(fotografia, cinema e televisão...), são signos híbridos: trata-se de hipoícones
(imagens) e de índices. Não é necessário explicar porque são imagens, pois
isso é evidente. São contudo, também índices porque essas máquinas são
capazes de registrar o objeto do signo por conexão física. A respeito da
fotografia, Pierce esclarece: “O fato de sabermos que a fotografia é o efeito de
radiações partidas do objeto, torna-a um índice e altamente informativo”.
Embora o processo de captação da imagem televisiva seja diferente da
fotografia, o caráter inicial de conexão física, existencial e factual nele se
mantém.
28
Em A Estrutura Ausente, Umberto Eco complementa:
O código fílmico não é o código cinematográfico; o segundo codifica a
reprodutibilidade da realidade por meio de aparelhos cinematográficos, ao
passo que o primeiro codifica uma comunicação ao nível de determinadas
regras narrativas. Não há dúvida que o primeiro se apóia no segundo, assim
como o código estilístico-retórico se apóia no código lingüístico, como léxico do
outro. É mister, porém, distinguirmos os dois momentos: a denotação
cinematográfica da conotação fílmica. A denotação cinematográfica é comum o
cinema e à televisão, o que levou Pasolini a aconselhar que essas formas
comunicacionais fossem designadas em bloco, não como cinematográficas,
28
op. cit. Lucia Santaella. pp.69-70
41
mas como “audiovisuais”. A observação é aceitável, mas note-se que na análise
da comunicação audiovisual estamos diante de um fenômeno comunicacional
complexo que põe em jogo mensagens verbais, mensagens sonoras e
mensagens icônicas. Ora, as mensagens verbais e as sonoras, embora se
integrem profundamente para determinarem o valor denotativo e conotativo dos
fatos icônicos (e sejam por ele influenciadas), nem por isso deixam de apoiar-se
em códigos próprios e independentes, catalogáveis alhures (...). Já a
mensagem icônica, apresentando-se sob a forma característica do ícone
temporalizado (ou em movimento), assume características que devem ser
consideradas à parte.
29
Se devemos considerar as imagens, em um todo, mas mais
especificamente na fotografia, no cinema e na televisão, como sendo naturalmente um
signo, independente do possível signo retratado nesta imagem, fica clara a
sobreposição de significantes, que resulta em um outro significante. Se um girassol é
um signo (sin-signo dicente) da posição do sol no momento presente, a imagem
reproduzida deste mesmo girassol, passa a ser até um Símbolo dicente, cuja premissa
ou proposição pode ser: se houve um girassol, houve, em certo tempo uma posição
relativa do sol àquele girassol, mas não a esta imagem presente. No cinema, na
televisão e em certas utilizações específicas da fotografia (publicidade, por exemplo)
este signo – imagem que resulta em uma proposição – pode vir a ser,
intencionalmente, um argumento: tanto um silogismo quanto um sofisma.
Umberto Eco volta a enriquecer esta discussão ao afirmar que o que
não pode ser usado para mentir não pode ser objeto de investigação semiótica:
A semiótica se refere a tudo que pode ser considerado como um signo.
Um signo é tudo que pode ser tomado como substituto significante de algo
mais. Este algo mais não tem que necessariamente existir ou verdadeiramente
estar em algum lugar no momento em que o signo o substitui. Assim, a
semiótica é em princípio a disciplina que estuda tudo que pode ser utilizado com
o objetivo de mentir. Se algo não pode ser usado para mentir, inversamente,
não pode ser utilizado para dizer a verdade: não pode ser utilizado, de fato,
29
op. cit. Umberto Eco. pp.139-40
42
para dizer nada. Penso que a definição de uma teoria da mentira deva ser vista
como um atraente programa abrangente para a semiótica geral.
30
Apesar de soar, a princípio, como uma falácia, por negar a existência
de qualquer verdade sem seu oposto – a mentira –, a afirmação de Eco joga luz sobre
a ficção fílmica, uma vez que tudo ou quase tudo retratado no cinema de ficção é um
como se. Em se tratando da chamada ficção científica, mormente aquelas
ambientadas no futuro, teremos uma impressionante cadeia de significantes: um dado
elemento do cenário é um objeto dinâmico que, em sua composição cenográfica,
passa a ser um signo, cujo interpretante é parte de um possível ambiente do futuro, o
qual, por sua vez, assume o papel de objeto dinâmico onde a imagem da tela de
projeção é um signo produzindo como interpretante a idéia de futuro.
Brazil tem em Terry Gilliam um diretor que declara, em citações
travestidas de comicidade metalingüística, o conhecimento do poder da semiótica da
imagem. Em uma cena de ação, já comentada em III.6., na qual o personagem-herói
entra junto a um grupo de prováveis terroristas em batalha contra a polícia oficial, uma
longa seqüência remete claramente – despudoradamente copiando – à mais famosa
seqüência de O encouraçado Potenkim, filme mais marcante do cineasta russo Sergei
Eisenstein. Neste conjunto de cenas, no filme soviético, durante o massacre de
populares em revolta pelas tropas do governo, na escadaria de Odessa, uma mãe
atingida e seu carrinho de bebê é mostrado descendo a longa escadaria. Já em Brazil,
em um tiroteio entre revolucionários e a polícia oficial, a pessoa atingida é uma
faxineira do Ministério de Informações, que deixa rolar escada a baixo uma grande
máquina de lavagem de piso. Essa intertextualidade, que remete a uma discussão
sobre o momento sóciopolítico da revolução russa com o momento sóciopolítico
"atual", explicita, de maneira divertida mas contundente, o apreço do diretor americano
pela obra do cineasta russo. Cabe rever a importância de Eisenstein na construção
das teorias semióticas:
Mencionar o cineasta Eisenstein, no entanto, significa termos de nos
deparar com a mais completa encarnação de um verdadeiro “artista intersemiótico” surgido na Rússia revolucionária e pós-revolucionária. Essa
30
Teoria da Semiótica, de Umberto Eco, in Imagem. Cognição, Semiótica, Mídia, de Santaella & Nöth. p.196
43
intersemiose está expressa na sua preocupação com a origem dos sistemas de
signos, na presença da literatura em suas reflexões sobre o cinema, na sua
prática do teatro e nos estudos das diversas artes, notadamente a pintura em
sua relação com o cinema, assim como nos experimentos, ainda no cinema
mudo, com os efeitos de som-imagem e na influência de um instigante
conhecimento do ideograma japonês e chinês sobre sua técnica de montagem
cinematográfica, além do conhecimento do teatro Kabuki e estampa japonesa,
tudo isso culminando numa constante preocupação com a síntese entre cinema
e a arte.31
Apreende-se no filme, de certa forma reforçando algo já difundido
pelo senso comum, que a idéia de Brazil é justamente o contrário do excesso de
burocracia, de controle governamental totalitário, da falta de espaço, da poluição, da
vida mecanizada.
Percebe-se a intencionalidade do autor na escolha do título como
signo. Mas o que impressiona, neste caso, é uma semiótica do avesso. Esta
concepção vale como constatação da existência de um interpretante do signo palavraBrazil que se refere não ao país Brasil enquanto objeto dinâmico. O signo Brazil, neste
caso, é interpretante do objeto dinâmico “não-país-super-industrializado” (primeiro
mundo?). Trata-se de uma significância do avesso do conhecido.
Estar acordado já é uma consciência de reação, que não se confunde
com cognição, pois sua apreensão se dá através da percepção direta, anterior
ao pensamento. Mero estado de alerta, consciência do outro, daquilo que não é
eu. Consciência dupla, bipolar. Tornamo-nos cônscios de nós mesmos ao nos
tornarmos conscientes do não-eu. Binariedade pura. Oposição ou confronto que
aparece até mesmo no senso de externalidade, da presença de um não-ego, de
algo fora de nós que acompanha qualquer percepção que temos das coisas e
que nos ajuda a distingui-la de um sonho, devaneio ou de uma alucinação.
32
Apesar desta conotação da palavra Brazil, os sonhos ou devaneios
do personagem principal no decorrer do filme vão se tornando cada vez mais
31
32
op. cit. Lucia Santaella. p.74
op. cit. Lucia Santaella. p.48
44
sombrios, mais pesadelos, conforme a trama vai se desenvolvendo e, neles, Sam vai
sendo engolido pela burocracia.
A leitura comparativa da letra original de Ari Barroso e da versão de
Russell (ver II.3.3) mostra a curiosa relação entre as intenções de cada compositor que
reforçam a noção de Brasil/não-Brasil apresentada anteriormente.
(…) toda a tradição pitagórica confiava a cada modo a conotação de um
ethos (no caso, tratava-se igualmente da estimulação de um comportamento),
como também observa La Barre. A conotação de um ethos encontra-se em
tradições musicais como a chinesa clássica e a indiana. Quanto à
conotatividade de grandes cadeias sintagmáticas musicais, pode aceitá-la
mesmo no que diz respeito à música moderna, embora vigore acertadamente a
advertência sobre a necessidade de as frases musicais não serem
consideradas como dotadas de valor semântico. Mas é difícil negar a certas
músicas estereotipadas conotações institucionalizadas: é o caso da música
thrilling (trilha musical), da música ‘pastoral’ ou ‘marcial’; assim como há, em
seguida, músicas tão ligadas a ideologias precisas que passam a assumir valor
conotativo indiscutível (a Marselhesa, a Internacional).
33
Além da escolha do título-música Brazil, já carregado de significados
enquanto interpretante imediato, Terry Gilliam estabelece um jogo de códigos a partir
de uma mesma linha melódica. Os diversos arranjos de uma mesma música para
acompanhar diferentes imagens, sugerem uma leitura semiótica da música, conceito
discutido por Lúcia Santaella:
Ao ouvirmos uma peça de música, se não somos conhecedores dos
diferentes códigos de composição musical (o que nos levaria também a outros
tipos de interpretação), a audição dessa música não produzirá em nós senão
uma série de qualidades de impressão, isto é, sensações auditivas, viscerais e
possivelmente correspondências visuais. É claro que podemos traduzir essas
sensações numa pseudo-significação ou interpretante dinâmico de primeiro
nível, isto é, emocional.
33
34
op. cit. Umberto Eco. p. 400
op. cit. Lucia Santaella. p. 60
34
45
Terry Gilliam faz uma interessante crítica da sociedade de
informações em seu filme. A presença massacrante e totalitarista do poder públicogoverno é inteiramente representada pela onipresença de um único órgão: o Ministério
de Informações. Subdivido em departamentos como Cadastramento de Informações,
Ajustamento de Informações e Recuperação de Informações, por exemplo, o Ministério
é representado publicamente por um Vice-Ministro (Deputy Minister) que se dirige ao
público com o poder de um mandante supremo do Governo. Esse poder onipresente e
opressor se apresenta, também, na arquitetura dos órgãos públicos, com enormes
pés-direitos e amplos salões nos ambientes de acesso do público – apesar das
minúsculas salas dos funcionários burocráticos. Décio Pignatari comenta a “Semiótica
do Poder” em um capítulo de sua tese de pós-Doutorado, Por um pensamento icônico:
semiótica da arte e do ambiente urbano:
Os traços fundamentais de uma semiótica do poder devem ser
buscados nos ícones enfeixados pelas palavras alto e grande: são os modos
pelos quais se estabelecem hierarquias no universo icônico e paratático.
Mesmo um close metamórfico (metonímico), numa foto, num filme ou num teipe,
implica o grande. Pode-se traçar uma linha de poder, num gráfico arquitetônico,
que, vindo da mítica torre de Babel, passa, sucessivamente, pelas pirâmides
egípcias, os zigurás caldeus, as pirâmides maias e incas, a acrópole grega, as
torres das igrejas cristãs, as chaminés da Primeira Revolução Industrial, os
arranha-céus e as torres de captação e emissão de sinais radiotelegráficos.
35
A visão da importância dos termos alto e grande de Pignatari foi
reafirmada em 11 de setembro de 2001, no ataque às Torres Gêmeas, quando o ícone
do poder americano, destruído, levou a reflexões muito além das perdas materiais e
humanas.
O grande erro burocrático do Ministério de Informações, que provoca
o mal-entendido – tendo como conseqüência a morte de um inocente, nas ‘seções de
interrogação’ – parte de uma parábola construída pela decomposição de uma metáfora
corrente no universo da Comunicação: o bug como ‘defeito’, problema, erro de
informação. A expressão bug, que, quando utilizada como falha, erro de informação, é
um signo (um símbolo remático? Um sin-signo dicente?), materializa-se e transforma35
Por um pensamento icônico: semiótica da arte e do ambiente urbano, de Décio Pignatari p. 153
46
se num signo do signo, numa espiral inspirada, onde o objeto dinâmico é um conceito
(o bug enquanto erro) e o objeto imediato é a própria mosca (o inseto enquanto ser).
Este paragrama Tuttle-Buttle36 nos remete à acepção do termo
paragrama utilizado por Julia Kristeva, em Introdução à Semanálise:
Sendo o duplo a seqüência mínima dos paragramas, a lógica dos
mesmos é diferente da ‘lógica científica’, da monológica, que evolui no espaço
0-1 e procede por identificação, descrição, narração, exclusão das contradições,
afirmação da verdade. Compreende-se, então, porque, no dialogismo dos
paragramas, as leis da gramática, da sintaxe e da semântica (que são leis da
lógica 0-1, portanto aristotélica, científica ou teológica), são transgredidas,
apesar de implícitas. Esta transgressão, ao absorver o 1 (o interdito), anuncia a
ambivalência do paragrama poético: ele é uma coexistência do discurso
monológico (científico, histórico, descritivo) e de um discurso destruidor deste
monologismo. Sem o interdito não existiria transgressão; sem o 1 não haveria
paragrama baseado no 2. O interdito (o 1) constitui o sentido, mas no momento
mesmo desta constituição, ele é transgredido numa díase oposicional, ou, de
maneira mais geral, na expansão da rede paragramática. Assim, no paragrama
poético, lê-se que a distinção censura-liberdade, consciente-inconsciente,
natureza-cultura, é histórica. Seria preciso falar de sua coabitação inseparável e
da lógica desta coabitação, da qual a linguagem poética é uma realização
evidente.
37
Aqui, uma passagem do livro O que é Semiótica, de Lúcia Santaella,
citando Saussure, nos faz refletir sobre a rigidez da lei dos legi-signos, que inviabiliza o
como se das linguagens não escritas:
Para Saussure, portanto, a língua é um sistema de valores diferenciais,
isto é, a língua é uma forma na qual cada elemento, desde um simples som
elementar (f, por exemplo, na palavra fato, ou g, na palavra gato), só existe e
adquire seu valor e função por oposição a todos os outros. Cada elemento,
portanto, só é o que é por diferença em relação àquilo que todos não são. O
valor é, por isso, determinado por suas relações no interior de um sistema.
36
38
conforme Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, paragrama: erro de grafia que consiste no
emprego de uma letra por outra.
37
Introdução à Semanálise, de Julia Kristeva pp. 99-100
38
op. cit. Lucia Santaella. p. 60
47
Um dos aspectos que mais chamam atenção na cenografia de Brazil, o
filme é a construção dos objetos utilitários. Todas as máquinas têm como característica
uma extrapolação da tendência pós-moderna arquitetônica, pós-industrial: a exposição
acintosa da estrutura e dos componentes acessórios – tubulações, equipamentos. A
exposição do genotexto dos objetos, por meio da demonstração agressiva de todos os
componentes de cada máquina é uma metáfora do que existe, já hoje, escondido sob
invólucros de aparência tecnológica, nos equipamentos atuais.
Esta exposição das entranhas, tão cara à arquitetura e ao design pósmodernos, é reflexo da - e reflete a - cultura da sociedade pós-moderna, expondo na
mídia suas entranhas em Reality Shows e programas televisivos sensacionalistas.
48
III. Propaganda Ideológica: a Construção da Idéia de Futuro
Para se compreender a construção do espaço psicológico em uma
obra de ficção científica é necessário entender como se dá a relação do homem com
seu ambiente na época retratada na obra. Esse espaço psicológico é construído
basicamente pela forma de comunicação entre as pessoas e, principalmente, pela
forma como o poder constituído - líderes, governo - se comunica com os liderados: a
propaganda ideológica.
As dúvidas e incertezas quanto ao futuro sempre afligiram o ser
humano e, de certa forma, estiveram presentes, no decorrer da História, em muitas
manifestações artísticas. Mas apenas a partir do século XIX é que a ficção científica
tomou corpo, a partir das obras de Julio Verne. Cinco Semanas em Balão, de 1863 foi
o primeiro sucesso desse visionário que, apesar da ciência rudimentar à sua volta,
previu, dentre outros inúmeros inventos, a televisão ('foto-telefoto'), antes do rádio; o
helicóptero, antes do avião; o fax; o dirigível; o cinema falado; o gravador; a iluminação
a néon; as calçadas rolantes; os diamantes sintéticos; o ar-condicionado; os arranhacéus; os mísseis teleguiados; os tanques de guerra; os submarinos (com propulsão
elétrica); os telescópios gigantescos; os veículos anfíbios; os grandes transatlânticos;
o avião; a caça submarina; o aproveitamento da luz e da água do mar para gerar
energia; o uso de gases como armas de guerra; o fuzil elétrico, o silencioso e o
explosivo definitivo.
Após as obras de Verne, as artes foram desafiadas a representar o
futuro. Muitos artistas investiram sua criatividade no intuito de prever os caminhos que
o homem viria a trilhar e alertar a humanidade para os perigos dessa trajetória. Quase
que em sua totalidade, as obras de arte que representam o futuro trazem em si os
medos do Homem. O perigo das guerras e suas armas cada vez mais destrutivas, o
risco da perda de liberdade pelo crescimento do poder de ditadores mais e mais
centralizadores e cruéis, o temor da automação do ser humano e o controle pelas
máquinas, a insegurança na superação e submissão às inteligências artificiais, a
desconfiança no desenvolvimento da engenharia genética e a clonagem, que geram
incertezas quanto à individualidade do ser, assim como a realidade virtual.
49
A literatura foi a mais pródiga das artes no campo da ficção científica,
mas sua maior popularidade veio, já no século XX, com o desenvolvimento das
histórias em quadrinhos, de onde surgiram inúmeros personagens de diversos
planetas e épocas alertando o Homem para os perigos dos descaminhos da ciência.
Mas a arte que mais se adaptou ao gênero da ficção científica foi o
cinema, com sua capacidade mágica de transportar os espectadores para qualquer
espaço e tempo. Desde A Viagem à Lua, de Georges Méliès, de 1902, considerado o
primeiro filme de ficção científica, até a trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski, o século
XX apresentou grandes obras (e algumas bastante medíocres, também) tendo o futuro
da humanidade como cenário.
Dentre os principais temores do homem quanto ao futuro, talvez o mais
recorrente seja a perda da liberdade individual por conta de um governo ditatorial e
centralizador. Mas o temor mais impressionante em termos visuais e, portanto, o que
causou mais impactos nas obras visuais, é o da perda de individualidade pelo
descontrole no uso das tecnologias. Este aspecto fica bastante claro nas obras de
cinema, ao longo do século XX.
III.1. Propaganda Ideológica no Futuro
Em Brazil, a construção do espaço psicológico se dá de forma
progressiva, desde o prólogo, principalmente através da propaganda ideológica
maciça do governo sobre os cidadãos.
A crítica do diretor ao sistema de governo aparece na ironia como o
Ministério da Informação massacra sutilmente cada um dos "governados" com frases e
slogans em cada ambiente do filme.
50
III.1.1 O que é Propaganda Ideológica
Antes de nos aprofundarmos neste assunto, é preciso diferenciar as
diversas propagandas. Grosso modo, toda propaganda tem por objetivo levar um
público espectador ou leitor ao consumo de algo. Seja pela divulgação de um produto
ou serviço ou pela criação de uma boa imagem do produtor deste produto ou serviço,
busca-se convencer o público de que isto, e não aquilo, deve ser consumido. Este
processo é conhecido como propaganda comercial, por envolver trocas comerciais e
dinheiro.
Outro processo de propaganda é aquele que trabalha com a imagem
dos políticos, visando à aceitação de uma pessoa ou grupo de pessoas (partidos
políticos) pelo público, resultando em votos. É conhecida como propaganda eleitoral e
se concentra basicamente nos períodos que antecedem os pleitos.
A terceira forma de propaganda, que é o interesse deste estudo, é a
propaganda ideológica, cujo aspecto é muito mais amplo e mais global, não se
empenhando apenas em estimular práticas e atos isolados de “consumo”.
De acordo com Nelson Jahr Garcia, a função da propaganda
ideológica “é a de formar a maior parte das idéias e convicções dos indivíduos e, com
isso, orientar todo o seu comportamento social. As mensagens apresentam uma
versão da realidade a partir da qual se propõe a necessidade de manter a sociedade
nas condições em que se encontra ou de transformá-la em sua estrutura econômica,
regime político ou sistema cultural.”1 Neste tipo de propaganda, já não são tão claros o
emissor ou os objetivos e o mecanismo para se obter eficiência é justamente estar
veiculado em locais de onde não se espera a propaganda.
1
O Que é Propaganda Ideológica, de Nelson Jahr Garcia. pp. 10-1
51
III.1.2. Propaganda Ideológica na Literatura de Ficção Científica
O fim do século XIX e o início do século seguinte foram férteis nas
descobertas das ciências da Comunicação e da Psicologia (assim como em todas as
demais ciências). O conhecimento dos mecanismos de comunicação e a elaboração
das principais teorias da psicologia trouxeram ferramentas que permitiram o uso em
larga escala de seus benefícios assim como possibilitaram a manipulação negativa. Os
governos totalitários do começo do século XX, que levaram à eclosão das duas
grandes guerras mundiais, tinham vasto conhecimento das novas teorias de controle
ideológico e se valeram destas técnicas para amalgamar multidões sob seus domínios.
Neste clima de ditaduras controladoras, dois escritores ingleses
escreveram dois dos principais livros de ficção ambientada no futuro jamais escritos.
Nestes livros, entre suas ferozes críticas aos métodos de despersonalização do
indivíduo, tecem um painel de como a propaganda ideológica pode minar quaisquer
aspirações de liberdade dos cidadãos.
Em 1932, Aldous Huxley escreveu Admirável Mundo Novo, uma
antiutopia em que a sociedade adora Henry Ford por seus métodos de produção. É
uma das alegorias, pois a “produção” de seres humanos, no livro, é realizada em série,
com controle de qualidade e pré-programação de forma a garantir a felicidade e a
gratidão ao sistema. A todo tempo se encontra o lema do Estado científico-totalitário:
“Comunidade, Identidade, Estabilidade”. Alusão clara ao lema da Revolução Francesa
(Liberdade, Igualdade, Fraternidade), este slogan aparentemente menos explícito que
o de 1789 se baseia em uma das características da propaganda ideológica que é a de
agir “assim, resumindo idéias em expressões ambíguas dos tipos mencionados.
Consegue-se, com isso, que cada um dos que ouvem a mensagem concorde com ela,
por acreditar que diga respeito a si e a seus interesses e necessidades, e acabe
apoiando o sistema econômico e o regime político.”2
Dezessete anos depois, George Orwell escreveria 1984, em que
descreve um mundo dominado por apenas três governos totalitários nos quais a
individualidade foi totalmente devassada e ninguém consegue evitar o massacre
2
op. cit., de Nelson Jahr Garcia. p. 33
52
diuturno de mensagens ideológicas por meio da “teletela”, ligada 24 horas por dia na
parede das casas, ao mesmo tempo que é constantemente vigiado pela Polícia do
Pensamento. Neste mundo absurdamente controlado, as crianças são incentivadas a
denunciarem os pequenos deslizes dos pais e todos reverenciam o Grande Irmão,
onipotente e onipresente. Controla-se a História, determinando-se, conforme o
interesse do Partido, o “passado” a ser divulgado. Neste ambiente terrível, a
propaganda ideológica é sufocante. Em todo lugar se lê “O Grande Irmão zela por ti”, o
tempo todo os cidadãos (se é que podem ser chamados assim) são incitados a ouvir e
cantar hinos, exige-se que sejam usadas as palavras certas sob pena de conspiração
caso sejam utilizadas palavras consideradas “antipáticas” pelo Partido. O lema do
Partido, que “encerra” a política do Socialismo Inglês (INGSOC) é: GUERRA É PAZ;
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO; IGNORÂNCIA É FORÇA.
Estas antíteses expõem um método de propaganda ideológica
bastante eficiente por associar, até como justificativa, um conceito considerado ruim a
outro (geralmente o contrário). Assim, “faz-se a guerra para garantir a paz”; “ter
liberdade exagerada significa não ter a segurança do zelo do Grande Irmão” e “não
questionar é ter mais energia concentrada para a realização dos ideais da sociedade”.
George Orwell demonstra grande conhecimento das técnicas de
controle ideológico pela propaganda, sendo que criou, por meio da teletela e a Imagem
do grande Irmão, uma das mais formidáveis metáforas do poder do Estado sobre o
indivíduo. Três anos antes Orwell havia escrito uma dos maiores best-sellers ingleses,
A Revolução dos Bichos, uma alegoria inspirada na Revolução Russa. Neste livro,
com muita ironia, Orwell expõe o processo de tomada do poder e os desvios dos
objetivos iniciais de uma revolução operária, com a traição dos ideais de igualdade por
aqueles que mais lutaram por eles. Na obra, percebe-se a distorção gradual dos “Sete
Mandamentos” dos animais. De acordo com os interesses dos líderes da Revolução,
os mandamentos, que seriam inicialmente:
1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo;
2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas ou tenha asas é amigo;
3. Nenhum animal usará roupas;
4. Nenhum animal dormirá em camas;
53
5. Nenhum animal beberá álcool;
6. Nenhum animal matará outro animal;
7. Todos os animais são iguais.
Transformou-se em:
1. Quatro pernas bom, duas pernas ruim (“Princípio essencial do Animalismo”,
processo de redução para simplificação e facilidade de assimilação);
2.
(reunido no anterior);
3. Nenhum animal usará roupas;
4. Nenhum animal dormirá em camas, com lençóis;
5. Nenhum animal beberá álcool, em excesso;
6. Nenhum animal matará outro animal, sem motivo;
7. Todos os animais são iguais, MAS UNS SÃO MAIS IGUAIS DO QUE OS
OUTROS. (Ao final, transformado em Mandamento Único, em um processo de
antítese no intuito de justificar as diferenças às quais os descaminhos da
Revolução teriam levado.)
III.1.3. Propaganda Ideológica no Cinema de Ficção Científica
Além de Brazil, dois filmes franceses podem ser citados como
possíveis exemplos de filmes onde se percebe um governo totalitário se valendo de
instrumentos de dominação ideológica. Ambos sobressaem por seus aspectos de
ambigüidade poética e criatividade. São obras onde o humor aparece como crítica, a
partir de ironia e sarcasmo: Alphaville, de Jean-Luc Godard, de 1965, e Farenheit 451,
de François Truffaut, de 1966.
No primeiro filme, um detetive é contratado para resgatar um cientista
aprisionado em Alphaville, uma cidade fora da Terra, dominada por Von Braun, um
cientista que determina que o amor e a individualidade são proibidos. Farenheit 451 é
a temperatura em que o papel incendeia. Partindo deste detalhe, Truffaut cria uma
sociedade onde os livros são proibidos por serem considerados nocivos às pessoas.
Nestes dois filmes franceses, a sociedade é dominada por governos totalitários e
54
ambos fazem críticas aos maiores ícones da segunda metade do século XX: as
tecnologias de informação e a televisão.
III.2. Propaganda Ideológica em Brazil
A
grande
charada
do
filme
Brazil
começa
a
se
desfazer,
aparentemente, quando se atenta à trilha sonora. Aqueles acordes que acompanham
diversas cenas, em arranjos variados são da canção Aquarela do Brasil, conhecida no
hemisfério norte como Brazil. Algumas vezes, no decorrer da trama, versos da versão
americana da música são cantados. Algo do mistério sobre o título do filme é
desvendado. A letra em inglês da canção fala de um lugar chamado Brasil para onde
se retornará para lembrar de um grande romance vivido. Brazil, então, se refere a um
lugar hipotético que está no imaginário do europeu e do norte-americano. Seria um
lugar tropical, com sol, samba, mulheres bonitas, em uma idéia contrária ao rigor da
burocracia e da vida mecanizada. Mas, todavia, um espectador mais culto saberia
perceber que o Brasil real, da época, vivia ainda uma ditadura marcada por tortura,
censura e uma burocracia ineficiente. Vê-se mais uma faceta neste tabuleiro: a cada
passo para se situar, um novo obstáculo. Esta insegurança quanto às informações do
filme levam o espectador à mesma angústia do protagonista.
Os criadores da obra dão, aos poucos, informações sobre o mundo em
que está transcorrendo a trama. O espectador tem que ir puxando cuidadosamente o
fio da meada, para desenrolar esse “novelo”. Faz parte do quebra-cabeças as
informações percebidas pelas diversas propagandas em cartazes afixados nos
ambientes internos e externos de Brazil. Geralmente enquadrados em segundo plano,
os cartazes demonstram a ideologia do governo naquele futuro. Sem que haja um
lema definido, os diversos slogans vão acrescentando sentido na metonímia de
governo apresentada. Pode se dizer que o governo, no filme, é apresentado em uma
metonímia porque todo o poder é apresentado apenas por um Ministério, o Ministério
da Informação – e seus departamentos.
55
Para compreender o ambiente político-social do enredo de Brazil, o
espectador precisa de um processo de desmontagem da retórica da propaganda
ideológica apresentada.
III.2.1. Cartazes em Brazil
A forma como o governo, em Brazil, divulga suas idéias e ideais para
que o cidadão aja e pense de acordo com o interesse do poder é através da fixação de
cartazes contendo slogans em todos os ambientes. O espaço cenográfico fica, assim,
extremamente carregado de propaganda ideológica. Apesar deste massacre de
ideologia, o diretor não coloca os cartazes em close. Desta forma, trabalha com a
construção do ambiente psicológico do futuro sob o mesmo mecanismo de persuasão
do governo em Brazil: a presença contínua e comum do ideário do Ministério da
Informação leva o cidadão a assumi-lo inconscientemente. As propagandas aparecem
distribuídas no cenário conforme a lista seguinte.
No Lobby do Ministério:
•
"The Truth Shall Make You Free" (A verdade vos libertará) – na
estátua. (frase é bíblica: João, capítulo 8)
•
"Information - The Key To Prosperity" (Informação: a chave da
prosperidade) – cartaz sobre os seguranças. (fig. 11)
•
"Help The Ministry Of Information Help You" (Ajude o Ministério
da Informação a Ajudar você) - poster na parede. (fig. 12)
•
"Be Safe: Be Suspicious" (Fique seguro, suspeite) - cartaz na
parede. (fig. 12)
•
"Loose Talk Is Noose Talk" (Conversa à toa é uma armadilha) poster na sala dos computadores. (fig. 13)
56
Na sala de Kurtzmann:
"Suspicion Breeds Confidence" (Suspeita traz confiança) -
•
placa. (fig. 14)
Nas Shangri La Towers:
"Happiness: We're all in it together" (Felicidade: estamos todos
•
juntos nisto) – Pôster, out-door (Foi copiado de uma propaganda
real, durante a depressão dos Estados Unidos). (fig. 15)
"Mellowfields. Top Security Holiday Camps. Luxury without fear.
•
Fun without suspicion. Relax in a panic free atmosphere." (Campos
de férias com segurança total: Prazer sem medo, diversão sem
suspeitas. Relaxe numa atmosfera livre de pânico) – propaganda
no muro em frente ao qual as crianças brincavam de tortura. (fig.
16)
Escritório do Sr. Lime:
•
"Trust in haste, Regret at leisure" (Confiança precipitada,
arrependimento adiado) - poster na parede. (fig. 17)
•
"Don't suspect a friend, report him" (Não suspeite de um amigo,
denuncie-o) - poster na parede (também visto nos escritórios de
Lint e Kutzmann). (fig. 18)
No escritório de Jack:
•
"Who can you trust?" (Em quem você pode confiar?) - poster na
parede. (fig. 19)
57
No complexo industrial:
"Power today. Pleasure tomorrow." (Poder hoje, prazer amanhã)
•
– out-door. (fig. 20)
“(3) consecutive hours without a time-loss accident” (Três horas
•
consecutivas sem um acidente com perda de tempo) – painel. (fig.
21)
•
"Mind that parcel. Eagle eyes can save a life." (Cuidado com
pacotes, olhos d águia podem salvar uma vida) - poster na parede.
(fig. 22)
FIGURA 11 - Informação: a Chave da Prosperidade
FIGURA 12 - Ajude o Ministério a Ajudar Você / Seja seguro, Suspeite
58
FIGURA 13 - Conversa à toa é uma armadilha
FIGURA 14 - Suspeita Traz Confiança
FIGURA 15 - Felicidade: Estamos Todos Juntos Nisto
59
FIGURA 16 - Campos de Férias com Segurança Total
FIGURA 17 - Confiança Precipitada, Arrependimento Adiado
FIGURA 18 - Não Suspeite de um Amigo, Denuncie-o
60
FIGURA 19 - Em Quem Você Pode Confiar?
FIGURA 20 - Poder Hoje, Prazer Amanhã
FIGURA 21 - 3 Horas Consecutivas sem Acidente com Perda de Tempo
61
FIGURA 22 - Cuidado com Pacotes
Percebe-se, nos exemplos mostrados, que a propaganda ideológica do
governo se utiliza de uma das formas de controle
mais interessantes, conforme
sustenta Garcia: a pressão psicológica, que “atua diretamente sobre os receptores,
afetando sua capacidade de análise, para que recebam as mensagens de propaganda
dentro de uma postura passiva e submissa.”3
Outro mecanismo eficiente de propaganda ideológica é a convocação
dos cidadãos a participarem de campanhas de forma ativa. Várias mensagens
apresentadas buscam esse resultado.
III.2.2. O Prólogo: “Quero lhe falar sobre Tubos”
Eduardo Peñuela Cañizal defende que é no prólogo que os diretores
têm seus maiores arroubos de experimentação poética. De um modo irônico, mas
recheado de exemplos, Peñuela explica que, durante o prólogo, o espectador leigo,
pouco afeito a ambigüidades estéticas, ainda está se “ajeitando à poltrona”, com pouca
atenção à tela. O cinéfilo, por sua vez, já está sorvendo toda e qualquer mensagem
subliminar.
3
op. cit., de Nelson Jahr Garcia. p. 57
62
Em 2002, Gilliam foi convidado pela empresa de artigos desportivos
Nike para dirigir dois filmes publicitários voltados para a Copa do Mundo de Futebol
que aconteceria na Ásia. O convite deveu-se à experiência do diretor em criar
ambientes inusitados, provocando uma impressão atemporal e, principalmente,
deixando uma ambigüidade quanto ao local do enredo. Na primeira das duas peças
publicitárias, os 24 melhores jogadores de futebol do mundo se encontram no porão de
um navio, um local secreto, para disputarem, dentro de uma grande jaula, o torneio
definitivo: equipes de três jogadores se enfrentam e quem leva um gol é eliminado.
Além do cenário opressivo que faz com que o jogo se compare a uma luta de feras, o
ritmo das imagens é hipnotizante, auxiliado pela trilha sonora – uma remixagem de um
sucesso de Elvis Presley (um jogo entre antigo e moderno, indefinindo a época do
acontecimento) – e o critério de agrupamento dos jogadores é mais racial do que por
nacionalidades (remetendo à idéia de um possível futuro onde já não haja nações ou
pátrias). A segunda peça retoma o tema, levando apenas 6 jogadores ao mesmo
porão, agora sem a jaula, para uma partida revanche em que o time que primeiro
atingir cem gols ganha. Ambos os filmes têm o ritmo alucinado de câmara, os cenários
ambíguos, enquadramentos excêntricos, o humor inteligente e um enredo elaborado,
característicos de Terry Gilliam e muito apropriados a uma publicidade mundial de uma
marca voltada aos jovens.
Terry Gilliam parece concordar com Eduardo Peñuela Cañizal e inicia
Brazil com uma propaganda na TV que, aparentemente, não tem conexão com o
enredo. Em uma TV, exposta em uma vitrina de loja, surge a marca e o slogan de uma
empresa: “Central Services, we do the work, you do the pleasure” (Central de Serviços,
nós trabalhamos, você se diverte). Em um cenário simples, despojado, um homem de
meia idade vestindo um terno se apresenta:
Hi there. I want to talk to you about ducts. Do your ducts seem oldfashioned, out of date? Central Services' new duct designs are now available in
hundreds of different colours to suit your individual tastes. Hurry now while
stocks last to your nearest Central Services showroom. Designer colours to suit
4
your demanding tastes. / Olá. Quero lhe falar sobre tubos. Seus tubos estão
parecendo fora-de-moda, ultrapassados? O design dos novos tubos da Central
de Serviços está agora disponível em centenas de diferentes cores para atingir
seus gostos individuais. Corra agora até o showroom da Central de Serviços
4
Tradução livre, de minha autoria.
63
mais próximo para aproveitar nossos estoques. Cores projetadas para atender
seu gosto exigente. (Fig. 23)
Logo em seguida, uma bomba explode na loja. Na TV danificada aparece a imagem do
Ministro da Informação em uma entrevista falando sobre terrorismo e as formas de
interrogatório utilizadas pelo Ministério.
Por que o filme começa com esta imagem? O que esta mensagem
publicitária acrescenta à formação da idéia de futuro ao espectador? Um pouco à
frente, o filme revela que Central Services é uma empresa estatal, centralizadora como
diz o nome, mas ineficiente e extremamente burocratizada, que cuida dos serviços
domésticos de instalação e manutenção de tubos e dutos. É uma alegoria do exagero
a que pode chegar uma ditadura, ao querer controlar até os serviços básicos de reparo
de um encanamento. Mas como já foi exposto, os tubos têm um papel importante nos
cenários e na crítica ao futuro da arquitetura e do design (ver II.3.5.).
Entretanto, além da aparente crítica à estética do exagero high-tech,
podemos compreender que existe uma metáfora dos tubos ligando tudo e funcionando
de forma orgânica. São grandes “intestinos” de um sistema beirando o colapso.
Como é defendido por Umberto Eco, a retórica oscila entre a
redundância e a informação.5 A propaganda, seguindo pela relação entre retórica e
ideologia, será eficiente se conseguir balancear dois elementos antagônicos: se, por
um lado, mais atenção chama quanto mais subverte as normas comunicacionais, por
outro, mais atinge os públicos-alvo quanto mais previsíveis as proposições de
arquétipos6. Sob este enfoque, analisando-se a propaganda da Central Services,
vemos que a peça produzida para vender tubos é redundante. Para o espectador do
filme Brazil, instaura-se uma indubitável estranheza pelo produto exposto, o que viola
nossas normas atuais de interesse de compra. Mas passado esse “incômodo”, após
entendermos o contexto no qual está inserida a propaganda, vemos que se trata de
um produto corriqueiro, e a mensagem está toda envolta em clichês da propaganda.
5
6
op. cit. Umberto Eco, p. 76
op. cit. Umberto Eco, p. 157
64
FIGURA 23 - Central Services - Propaganda
Um homem de meia idade sobriamente vestido, dirigindo-se à donade-casa, discorre sobre ornamentos “fora-de-moda” sendo substituídos por novos
elementos em “centenas de cores para se adequar ao seu gosto exigente”. Todos os
clássicos mecanismos de persuasão na linguagem da propaganda televisiva estão
nestes 20 segundos de publicidade, segundo Sérgio Raimundo Elias da Silva7:
PALAVRAS repetidas, verbos no presente do indicativo (simples), verbos no
7
Mechanisms of Persuation in the language of Television Ads, de Sérgio Raimundo Elias da Silva
65
imperativo para incentivar o consumo, adjetivos vagos, vocabulário coloquial. Esta
pequena peça publicitária assume o papel de apresentar, no prólogo de Brazil, toda a
sisudez e a previsibilidade de um sistema de governo ditatorial, rígido, tenso e
burocrático mesmo nas pequenas coisas do dia-a-dia. Tanto o cenário e o figurino,
quanto a postura e o tom de voz do apresentador são óbvios e conservadores,
evitando revolucionar idéias e costumes.
66
IV. Arquitetura: a Idéia de Futuro na Construção
A verdade. Devem os edifícios ser verdadeiros ou falsos? Devem ser
sinceros?
1
Considerando
o
prévio
conhecimento
do
espaço
psicológico
apresentado em Brazil, o filme, resta analisar se o cenário, o ambiente, a Arquitetura
apresentados comunicam aquela mesma mensagem. Verifiquemos se há coerência
entre os discursos verbal e não-verbal no filme.
Discutir-se-ão, neste capítulo, alguns aspectos da comunicação da
Arquitetura, uma vez que, como toda manifestação artística, a compreensão de todos
os possíveis significados de uma obra Arquitetônica é inatingível. Por se tratar de um
ofício cujo resultado é perene, a Arquitetura é utilizada por gerações e sociedades
distintas, cujas ideologias distinguem-se. Assim, os significados podem se alterar e a
mensagem percebida pode também mudar de acordo com os usos dos objetos
arquitetônicos. Umberto Eco corrobora:
Erraríamos em pensar que o significante arquitetônico, pela sua própria
natureza, seja levado a denotar uma função primeira estável enquanto que as
funções segundas variam ao longo do curso da história. Já o exemplo do
cruzamento ogival nos mostrou que até mesmo a função primeira pode sofrer
curiosos desencontros entre função denotada e função efetiva, e faz-nos pensar
que, com o passar do tempo, certas funções primeiras, perdendo toda eficácia,
já nem mesmo sejam denotadas aos olhos de destinatários desprovidos dos
códigos adequados.
2
Mas, antes de tudo, é preciso responder (ou ao menos tentar responder)
duas questões cruciais: “Arquitetura é arte?” e “Objetos arquitetônicos comunicam ou
funcionam?”
1
2
Saber ver a arquitetura, de Bruno Zevi, p.124
op. cit. de Umberto Eco, p.207
67
Quanto à primeira questão, parece, à priori, que a resposta é simples: sim, é
arte. Todos os textos que discutem a história da arte ou história da estética, ou ainda a
crítica da arte, incluem Arquitetura no rol das artes. Há sempre exemplos de obras
arquitetônicas para caracterizar os diversos períodos da história. Falar de Grécia
Antiga e não citar Partenon, falar de Idade Média sem comentar uma catedral gótica,
aludir o Renascimento sem lembrar Brunelleschi, apresentar o Barroco e não introduzir
Piazza São Pedro são falhas impensadas a qualquer crítico de artes. Mas há vozes
dissonantes, sendo talvez a mais estridente a de Umberto Eco:
Se os códigos arquitetônicos não podem permitir que eu ultrapasse tal
limite, neste caso a Arquitetura não é um modo de mudar a história e a
sociedade, mas um sistema de regras para dar à sociedade aquilo que ela
prescreve à Arquitetura.
Então a Arquitetura é um serviço, mas não no sentido em que é serviço
a missão do homem de cultura, que trabalha para propor continuamente novas
instâncias ao corpo social, e sim em que é serviço a limpeza pública, o
abastecimento de água, o transporte ferroviário; isto é, serviços que provêem
com elaborações técnicas sempre mais refinadas a satisfação de uma demanda
pré-constítuída.
Nesse caso a Arquitetura nem mesmo seria uma arte, se é próprio da
arte (...) propor à comunidade dos fruidores algo que ainda os surpreenda.
3
É, possivelmente, mais um momento de aporia de Eco, fazendo as vezes de
Sócrates, negando para poder reafirmar mais à frente. Contra esta categórica
afirmação – “Arquitetura nem mesmo seria uma arte” – encontram-se diversos autores
que, todavia, não negam peculiaridades específicas desta arte, como Zevi: “(...) o
caráter essencial da arquitetura - o que faz distingui-la das outras atividades artísticas está no fato de agir como um vocabulário tridimensional que inclui o homem”4.
Strickland acrescenta: “A arquitetura é uma forma de expressão única que combina
arte e ciência, beleza e praticidade”5. Janson (2001. p.830), quando comenta o
neoclassicismo e o romantismo diferencia: “Dado o caráter individualista do
romantismo, seria de esperar que a variedade de estilos reviventes (revival styles)
3
op. cit. de Umberto Eco, p.222
op. cit. de Bruno Zevi, p.17
5
Arquitetura Comentada, de Carol Strickland, p.IX
4
68
fosse maior na pintura, a mais pessoal e íntima das artes plásticas, que na arquitetura,
a mais comunitária e pública”6.
Jorge Coli, quando cita arquitetura em seu O que é arte, já responde – ao
incluí-la em livro com este título - sim à pergunta primeira, mas também a diferencia
das demais artes, talvez por um aspecto pouco comentado:
No caso da arquitetura, a vitalidade parece intervir sobretudo no fazer.
Precisa-se de um arquiteto para a concepção de tal ou qual projeto, público ou
privado, mais complexo ou mais ambicioso. Seu prestígio, o prestígio de seu
escritório garantir-lhe-á as encomendas, e evidentemente interferirá nos preços.
No entanto, diferente do quadro, a arquitetura não produz objetos culturais que
servem de refúgio monetário: o renome do arquiteto prestigia a encomenda,
mas não garante a permanência do valor comercial da obra. Um quadro,
assinado por Cézanne ou Picasso, é investimento seguro; um prédio, assinado
por Le Corbusier, Mies van der Rohe, Warchavchik, não garante coisa alguma,
não significa nenhuma valorização. Se há degradação social do contexto
urbano onde o edifício foi construído, não é a celebridade do arquiteto que o
salvará(...)
7
Zevi acrescenta, ainda, que o maior obstáculo à compreensão do diferencial
maior da arquitetura em relação à demais artes seja o vocabulário:
Falta um vocábulo que exprima um conceito fundamental, uma
qualidade notável da arquitetura, a livability, isto é, a habitabilidade num sentido
compreensivo, material, psicológico, e espiritual, da palavra. (...) Outros
"princípios" da arquitetura, a euritmia, a harmonia, a consonância, o ritmo, ou
estão implícitos nas qualidades acima enumeradas, ou são comuns a todas as
artes.
8
Sim, é arte. Sim, também, é uma arte diferente das demais artes. É arte
porque é uma expressão da natureza humana9. É diferente porque, mais do que
qualquer arte, depende da participação do Homem, não da mera contemplação. Isto é,
6
História Geral da Arte, de H. W. Janson, p. 830
O que é arte, de Jorge Coli. P.101
8
op. cit., de Bruno Zevi, p.124
9
Citado por Romildo Sant’Anna no curso Discurso Ideológico da Arte, Marília, 2003.
7
69
o que faz da Arquitetura – incluindo aí o design, e o urbanismo – uma arte única, de
utilidade intrínseca.
Começa-se, aí, a responder à segunda questão proposta. Em geral,
compreende-se que Arquitetura, antes de qualquer coisa, funciona. Mas este conceito
– ou preconceito – é rebatido por vários estudos. Roland Barthes diz que “a partir do
momento em que existe sociedade, todo uso se converte em signo daquele uso”.10
Umberto Eco emenda, a seguir, no mesmo texto:
Usar uma colher para levar o alimento à boca ainda é a execução de
uma função através do emprego de um artefato que a permite e promove: mas
dizer que o artefato "promove" a função indica que também ele assume uma
função comunicacional, comunica a função a executar; ao mesmo tempo o fato
de alguém usar a colher, aos olhos da sociedade que o observa, já se torna a
comunicação de uma adequação sua a certos usos (e não a outros, como o de
levar o alimento à boca com as mãos, ou sorvendo-o diretamente do recipiente).
A colher promove certo modo de comer e significa aquele modo de
comer, enquanto que a caverna promove o ato de buscar abrigo e comunica a
existência de uma função possível; ambos os objetos comunicam até mesmo
quando não são usados.
11
Mais à frente, arremata:
Neste sentido, o que permite o uso da Arquitetura (passar, entrar, parar,
subir, estender-se, debruçar-se, apoiar-se, segurar, etc.) não são apenas as
funções possíveis, mas antes de mais nada, os significados coligados que me
dispõem para o uso funcional.
12
Conclui-se, pois, que o uso é o que justifica o objeto arquitetônico, mas fica
claro que o que diferencia e o credencia como arte é o poder de comunicação de suas
possibilidades de uso e das posturas dos possíveis usuários frente ao objeto. O objeto
arquitetônico é arte, ainda que utilitário, porque comunica: comunica a expressão
humana, extrapolando as individualidades do criador e do usuário, sendo uma
10
Elementos de semiologia, Roland Barthes, apud op. cit. Umberto Eco. p.190
op. cit. Umberto Eco. p.190
12
op. cit. Umberto Eco. p.191-2
11
70
“radiografia” das instituições sociais, políticas, econômicas, culturais, religiosas,
científicas, filosóficas. Veja a opinião de Zevi:
A interpretação utilitária é conhecida: todos os edifícios devem
corresponder ao seu objetivo. Mas a discussão surge quando se quer precisar a
natureza do objetivo. Deixemos o Monumento de Lisícrates, ou a Coluna de
Trajano, ou todos os exemplos de arquitetura escultórica, (...) isto é, os edifícios
sem espaço interior. Mas qual é o intento de Taj Mahal senão o de um puro e
eterno tributo de amor de um homem à esposa? A interpretação utilitária possui
um sentido apenas se alargar os seus horizontes sobre o campo psicológico e
espiritual.
13
IV.1. Análise da arquitetura em Brazil
A análise a seguir buscará encontrar quais os traços que podem dar
um sentido de unidade para todos os ambientes apresentados no filme Brazil, com o
objetivo de entender quais são as características de sua arquitetura. Considerando
que se utilizam ambientes construídos ou adaptados especialmente para o filme (em
alguns casos, com usos diversos dos originais, como veremos a seguir), tentaremos
determinar quais as mensagens que se quiseram transmitir através destes espaços.
No filme, os ambientes foram divididos em cinco categorias, agrupados
pelas características de uso: as residências; os locais de trabalho; os espaços
públicos; os espaços externos e, por fim, a “sala de confissões” do Departamento de
Recuperação de Informações do Ministério de Informações, pelo aspecto trágico e
pela relevância do local na história do protagonista do filme.
13
op. cit. Bruno Zevi. p.108
71
IV.1.1. As residências
Como foi anunciado no início do filme, na propaganda discutida
anteriormente (sub-capítulo IV.2.2.), uma das características dos ambientes internos
em Brazil é a presença marcante dos dutos, tanto de ar-condicionado, quanto de
elétrica e hidráulica. Além do fator de exposição das instalações, como uma crítica ao
estilo hi-tech muito utilizado à época da produção do filme, os dutos conferem aos
cenários elementos de decoração causando efeito ornamental exagerado. Aliás, nos
ambientes apresentados em Brazil, há sempre uma grande quantidade de elementos
ornamentais, mesmo nos ambientes mais amplos, com grande carga de informações
visuais.
As residências que aparecem no filme são as dos principais
personagens: Sam Lowry, Ida Lowry, Jill Layton e Archibald Buttle. Os dois últimos,
vizinhos em um condomínio popular chamado Shangri la Towers, são proletários que
moram de forma simples, em pequenos apartamentos, mas com decoração
abundante, carregada de objetos decorativos (figuras 24 e 25). O apartamento de Sam
Lowry (figuras 26 e 27) é, entre as residências apresentadas, a mais despida de
decoração, e a mais carregada de paródias sobre as tecnologias “modernas”.
Entretanto, desde o começo do filme percebe-se que estas tecnologias falham o tempo
todo, transformando a vida do pequeno burocrata, organizado e metódico, em
sofrimento. É marcante a característica do apartamento do funcionário burocrata do
governo, onde sob a superfície exata das paredes esconde-se uma barafunda de
instalações caóticas, uma alegoria da vida do protagonista e, conseqüentemente, do
próprio governo, responsável pelo serviço público de “dutos”. Esses dutos também
podem ser compreendidos como uma metáfora de cordões umbilicais que ligam todos
os cidadãos, todos os ambientes, à mãe-governo.
72
FIGURA 24 - Residência Buttle
FIGURA 25 - Residência Jill Layton
73
FIGURA 26 - Residência Sam Lowry
FIGURA 27 - Residência Sam Lowry
Caracterizando o outro extremo da sociedade, aparece o apartamento
de Ida Lowry, uma residência ampla e luxuosíssima, carregada de elementos
decorativos de valor artístico (figuras 28 a 32). Com muitos espelhos, pequenos
móveis, muitos tecidos e tapetes, plantas e flores, é uma casa produzida para receber
convidados e comunicar a proximidade com o poder.
74
FIGURA 28 - Residência Ida Lowry
FIGURA 29 - Residência Ida Lowry
75
FIGURA 30 - Residência Ida Lowry
FIGURA 31 - Residência Ida Lowry
76
FIGURA 32 - Residência Ida Lowry
A importância de se analisar as residências de Brazil está em tentar
entender o íntimo de cada personagem, representado em seu próprio ambiente – sua
casa – que, apesar de ser mais pessoal, reflete a posição exata do indivíduo na
sociedade. A casa é sua “assinatura” espacial, comunica quem e o que é seu morador.
Conforme defende Gaston Bachelard, “Toda grande imagem simples revela um estado
de alma. A casa, mais ainda que a paisagem, é um ‘estado de alma’. Mesmo
reproduzida em seu aspecto exterior, ela fala de uma intimidade.”14 Antes, no mesmo
A Poética do Espaço, Bachelard afirma mais contundentemente a característica da
casa como um elo primitivo do morador com o universo: “Porque a casa é o nosso
canto do mundo. Ela é (...) o nosso primeiro universo.”15 Conforme a sabedoria
popular, "a casa é a cara do dono", acolhe-o e o revela.
Mas a casa, em Brazil, não é a casa que se deseja. Este “nosso
primeiro universo”, seguro, onde nos refugiamos das intempéries, é violado em Brazil.
Bachelard responde assim à questão sobre o mais precioso benefício da casa: “a casa
abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz”.16
Todas as residências no filme, entretanto, são invadidas por pessoas do governo. Não
há segurança na casa. O sonho não é seguro, não é tranqüilo. A residência, se por um
lado, retrata o universo íntimo, a personalização de cada indivíduo neste universo, por
14
A Poética do Espaço, de Gaston Bachelard. p.84
op. cit. de Gaston Bachelard. p.24
16
op. cit. de Gaston Bachelard. p.26
15
77
outro lado, em Brazil, demonstra a insegurança e a vulnerabilidade do indivíduo no
mundo, resultado de um sistema de governo “impessoalizante”. Um sistema
aniquilador da identidade e dos sonhos.
IV.1.2. Os Locais de Trabalho
A impressionante presença do Ministério da Informação em Brazil faz
com que quase todos os locais de trabalho apresentados no filme sejam integrantes do
Governo. Os locais onde Sam trabalha são completamente diferentes em suas
características físicas, mas perfeitamente complementares para descrever a “alma” do
Ministério da Informação. O departamento Cadastramento de Informações é
apresentado como uma enorme “fábrica de burocracia”, com uma circulação frenética
de pessoas e papéis, caótica e visivelmente ineficiente (figura 33). Considerado pelos
demais órgãos do governo como um setor menor, destinado aos funcionários sem
ambição, caracteriza-se pelo enorme número de arquivos, com paredes funcionando
como gavetas. Os funcionários, cientes do trabalho inútil, deliciam-se a ludibriar a
chefia assistindo a velhos filmes em seus computadores. O escritório do chefe,
localizado em posição mais alta, como as antigas salas dos feitores de fábrica,
personifica e comunica a figura medíocre de seu ocupante. Dentre a mobília, destacase um velho gaveteiro de madeira escura, com gavetas de tamanhos vários,
destinadas a documentos de tamanhos e importâncias distintos (figura 34).
78
FIGURA 33 - Departamento de Cadastramento
FIGURA 34 - Departamento de Cadastramento
Aqui cabe a citação de uma passagem de Bachelard, quando comenta
um romance de Henri Bosco:
Ali, pelo menos, tudo permanecia sólido e fiel. (...) Nada
que não fosse previsto, calculado para o uso, por um espírito meticuloso. E
que instrumento maravilhoso! Fazia as vezes de tudo: era uma memória e
uma inteligência. Nada impreciso ou fugidio nesse cubo tão bem trabalhado.
O que ali se colocava uma vez, cem vezes, dez mil vezes, podia ser
encontrado num piscar de olhos. Quarenta e oito gavetas! O bastante para
79
conter um mundo bem classificado de conhecimentos positivos. O Sr. CarreBenoît atribuía às gavetas uma espécie de poder mágico. “A gaveta”,
costumava dizer, “é o fundamento do espírito humano”.17
Bachelard avisa que o personagem de Henri Bosco é um homem
medíocre, no intuito de mostrar que a positividade da gaveta - tão importante no caso
departamento de Cadastramento de Informações – é uma necessidade do homem
inferior. O burocrata precisa de gavetas para organizar. Um documento sem uma
gaveta-destino não existe.
Em seu novo trabalho, fruto de sua promoção, Sam é destinado a uma
meia-sala, dividida com um ridículo personagem, no Departamento de Recuperação
de Informações. Setor responsável pela cobrança de dívidas relativas aos trâmites
burocráticos, a principal função dos funcionários é encontrar os “culpados” pelos
descaminhos dos documentos e, por meio de tortura, fazê-los confessar e assumir
suas dívidas. Neste setor, os funcionários demonstram seu medo frente ao poder do
chefe. Escondem-se em minúsculos cubículos dos quais saem para adular e seguir
ordens do chefe arrogante e impessoal. A Sam é destinada uma sala numerada, que o
identificará como funcionário – “seu próprio número, em sua própria porta e, atrás
desta porta, sua própria sala” (figura 35). A porta, entra aqui como um desafio. Pode
ser a solução de problemas ou o início de outros. Ser “dono” de uma porta, atrás da
qual há uma sala, é uma nova decisão, um recomeço. Bachelard anuncia “Como tudo
se torna concreto no mundo de uma alma quando uma simples porta vem proporcionar
as imagens de hesitação, da tentação, do desejo, da segurança, da livre acolhida, do
respeito! Narraríamos toda nossa vida se fizéssemos a narrativa de todas as portas
que já fechamos, que abrimos, de todas as portas que gostaríamos de reabrir.”18 A
sala “atrás da porta” é derivada da divisão de uma sala maior, onde uma divisória
metálica divide até os pôsteres e a mesa (figuras 36 e 37). Na outra metade (figura
38), Harvey Lime incorpora o funcionário público deste departamento: inseguro, falso,
pouco eficiente, impermeável a mudanças e tecnologias, apegado às pequenas
posses de seus poucos objetos. A metáfora (ou seria metonímia?) da meia-sala,
17
18
op. cit. de Gaston Bachelard. p.90
op. cit. de Gaston Bachelard. p.226
80
constrói perfeitamente a função a ser exercida por Sam: meio-funcionário, executando
meias-tarefas, de meias-verdades. A meia-sala comunica a imagem do "meio-ser".
FIGURA 35 - Departamento de recuperação de Informações
FIGURA 36 - Departamento de recuperação de Informações
81
FIGURA 37 - Departamento de recuperação de Informações
FIGURA 38 - Departamento de recuperação de Informações
Os demais escritórios apresentados são de funcionários de alto
escalão. A sala de Jack Lint, antigo colega de Sam, que subiu de cargo graças a sua
“ambição”, é, de fato, uma ante-sala da sala de “confissões”, onde ocorrem as sessões
de torturas. Sua decoração não lembra em nada esta sua função. Com uma
iluminação bastante contrastante, o ambiente é sóbrio e até aconchegante, onde uma
criança espera o pai terminar seu trabalho (figura 39). Na sala do Sr. Helpmann, o
Vice-Ministro da Informação, uma decoração simples, com objetos clássicos, é
iluminada com contrastes. Ligada a esta, a sala dos computadores com as fichas de
82
todos os “devedores” do governo (figura 40). As dimensões amplas e a sobriedade
comunicam a importância do cargo.
FIGURA 39 - Sala de Jack
FIGURA 40 - Sala de Mr. Helpmann
Um dos ambientes de trabalho significativos no filme é a sala do
cirurgião plástico Dr. Jaffe (figura 41). Ornamentada excessivamente, com elementos
tão supérfluos quanto sua ocupação, o ambiente é banhado por uma luz lateral que
destaca uns pontos e esconde outros. O excesso de cores e materiais predomina e
contamina os olhos.
83
FIGURA 41 - Consultório Médico
IV.1.3. Os espaços públicos
Aqui, analisaremos os espaços onde as pessoas “compram” os
serviços públicos – os lobbies do Ministério da Informação, o Restaurante e o Velório.
Os lobbies do Departamento de Cadastramento e do Departamento de
Recuperação de Informações comunicam, imediatamente, as características de seu
Ministério. Ambos têm proporções sobrehumanas, com enormes portas, enormes
escadarias, iluminação dramática vertical. A já citada teoria da “semiótica do poder”, de
Décio Pignatari, se faz presente. Mas, assim como as salas dos funcionários se
diferem nos dois departamentos, fruto da diferença de mensagem que cada
departamento pretende comunicar, os lobbies também se apresentam diferentes em
suas mensagens. O Departamento de Cadastramento, na sua insegurança e
desconfiança, exibe muita informação, muitos símbolos do poder e da dominação das
pessoas. Todos são filmados, revistados, verificados e "cheirados" por equipamentos
eletrônicos de segurança. (figuras 42 e 43)
84
FIGURA 42 - Lobby, Departamento de Cadastramento
FIGURA 43 - Lobby, Departamento de Cadastramento
No Departamento de Recuperação, um homem apenas, preso ao
centro do saguão, dialoga, de forma arrogante:
-“Quer ver minha identidade?”, diz Sam.
-“Não é necessário, senhor.”
-“Mas eu poderia ser qualquer um.”
-“Não, o senhor não poderia. Aqui é Recuperação de Informações...”
85
Mas o elevador não funciona bem, e a segurança, apesar da
demonstração, é falha (figuras 44 e 45).
FIGURA 44 - Lobby, Depto. de Recuperação de Informações
FIGURA 45 - Lobby, Depto. de Recuperação de Informações
O restaurante onde Sam encontra sua mãe para discutirem sobre sua
promoção também é marcado por um ambiente de pés direitos altíssimos e uma
decoração ornamental exagerada. Grandes dutos saem do chafariz central do salão.
Escadarias, iluminação pontual, paredes com janelas falsas provocam sensação de
movimento e velocidade. Os olhos não param frente ao ambiente. O exagero da
preocupação exclusiva com as aparências culmina quando, após uma explosão
86
terrorista na cozinha do restaurante, o maître se apressa em disfarçar o terror,
colocando um ridículo biombo separando a mesa de Sam de pessoas mutiladas, se
arrastando (figuras 46 e 47).
FIGURA 46 - Restaurante
FIGURA 47 - Restaurante
Apesar de ser uma imagem de sonho, já provocado pela lobotomia em
Sam, o ambiente do Velório da Senhora Terrain é também marcante por seus
excessos. As dimensões grandiosas, as elipses concêntricas no teto, embutindo
iluminação difusa, porém ofuscante, a grande quantidade de tecido negro, esvoaçando
87
artificialmente, as velas, as luzes de piso, o caixão rosa-pink, todos os elementos
apresentam uma decoração exageradamente carregada de informações. No caso,
informações redundantes (figuras 48 e 49). Assim como nos demais ambientes
públicos mencionados, o devaneio contempla a grandeza, e essa contemplação coloca
o sonhador para fora do mundo próximo, colocando-o em um mundo marcado pelo
infinito.
FIGURA 48 - Velório
FIGURA 49 - Velório
88
IV.1.4. Os espaços externos
Brazil, o filme não apresenta grandes planos dos ambientes urbanos. A
câmara sempre fechada, recorta as paisagens, obrigando o espectador a “montar” o
cenário fora da tela. Este recurso reforça a sensação geral de falta de controle, de
impossibilidade de participação nos processos decisórios. Trata-se de um jogo, em
que a cada movimento de câmera, a audiência testa sua capacidade de “criar o
cenário” para além da tela. Cada cena permite uma sensação de confirmação ou
violação do que teria sido criado na mente. A câmara só se afasta nos poucos
momentos em que aparecem cenas fora da cidade, na rodovia e na cena final, quando
Sam e Jill estão no campo, morando numa casa pré-fabricada.
Apesar de não ser possível ter-se uma visão abrangente da “cidade”
em que se passa o filme, pode-se intuir que existe um Centro Cívico, tomado por
edifícios do onipresente Ministério da Informação, próximo a um centro comercial. A
classe média e os funcionários públicos vivem em um bairro verticalizado, com ruas
como um condomínio, cobertas por andares superiores de apartamentos. As fábricas
ficam em um distrito separado, cuja estrada de acesso é vigiada e controlada por
barreiras policiais. Nas antigas e abandonadas estruturas de usinas nucleares foram
construídas as Shangri La Towers, conjunto de moradias populares, onde residem os
assalariados mal remunerados e a grande massa de desempregados.
Nesta “cidade” moderna, utópica e futurista, setorizada e perigosa,
destacam-se alguns cenários que merecem nota. As esplanadas em frente aos
grandes prédios públicos são estreitas em relação às dimensões do edifícios,
obrigando a visualização em perspectiva, o que aumenta a sensação de profundidade
e altura que, somada à decoração rebuscada e carregada das fachadas, apesar da
ornamentação aparentemente clássica, demonstra uma preocupação exagerada com
a imponência – remetendo à arquitetura das décadas iniciais do século XX: fascista e
nazista (figuras 50 e 51). A fachada do ambiente onde está ocorrendo o velório de Mrs.
Terrain também demonstra estas características (figura 52).
89
FIGURA 50 - Ministério da Informação
FIGURA 51 - Ministério da Informação
90
FIGURA 52 - Velório
O bairro verticalizado e adensado em que Sam mora e onde acontece
a cena de perseguição ao caminhão de Jill constitui-se de um cenário real, um enorme
condomínio de apartamentos, construído na França, em Marne la Valle (figuras 53 e
54). Hoje, a cidade abriga a EuroDisney. As ruas estreitas e sem céu, tomadas de
apartamentos por todos os lados, em que pessoas e veículos disputam o mesmo
espaço, aumentam ainda mais a imagem de insegurança e impessoalidade.
FIGURA 53 - Bairro de Classe Média
91
FIGURA 54 - Bairro de Classe Média
As Shangri La Towers, de fato, só aparecem no conjunto em uma
maquete. Representam uma brincadeira, uma espécie de humor negro, dos autores do
filme com a reutilização de estruturas de usinas nucleares para fins residenciais. A
forma circular com paredes parabólicas cria um choque visual com as bases de
apartamentos uniformes e padronizados. Este desequilíbrio entre as formas, a leveza
da forma superior – apesar do “peso” da função primitiva das torres – contrastando
com a “dureza” das caixas de apartamentos, provoca uma grande tensão no espaço.
Comunica o estilo de vida, contrastado entre o possível e o desejado (figura 55).
FIGURA 55 - Shangri La Towers
92
Entre os espaços externos, uma das mensagens mais contundentes
encontra-se na rodovia que leva ao complexo industrial onde Jill carrega seu
caminhão. A imagem da rodovia ladeada em toda sua extensão por out-doors que
impedem qualquer visualização da natureza totalmente destruída e tomada por
infinitas linhas de dutos assusta e faz refletir sobre como a propaganda pode mascarar
o mundo real. O que se vê não é o que se tem (figura 56). E, como quase tudo em
Brazil é filmado em plano médio (apesar de as figuras escolhidas para ilustrar o
presente trabalho serem, em sua maioria, em plano aberto), as poucas panorâmicas
fazem justamente o papel invertido da sensação de liberdade do espaço aberto,
externo. Em um ambiente em que tudo é exageradamente controlado (ou
aparentemente sob controle), a imensidão dos espaços externos provoca a
insegurança da agorafobia. O poeta francês Jules Supervielle, citado por Bachelard,
escreve: “O excesso de espaço sufoca-nos muito mais que a sua falta.”19 Frase
excelente para resumir estas sensações.
FIGURA 56 - Rodovia
19
op. cit. de Gaston Bachelard. p.223
93
IV.1.5. A sala de “confissões”
A cena final, em que Sam Lowry é submetido ao “tratamento”
definitivo, após o qual não será mais um elemento subversivo, é filmada em um
ambiente muito apropriado para a sensação de isolamento e desproteção. As
proporções enormes do ambiente e a forma das paredes com suas curvas estreitandose para o alto provocam vertigem e ampliam a sensação de altura (figuras 57 a 59).
Esta impressão de “aproximação do infinito” do teto remete ao impacto das abóbadas
ogivais góticas sobre os fiéis medievais: significa o poder de Deus sobre o Homem. O
posicionamento do poder instituído é o mesmo: se o gótico queria mostrar a força da
Igreja através do reforço da imagem de pequenez do homem dentro da “casa de
Deus”, na “sala de confissões”, a pequenez de Sam diante do Estado é reforçada pela
dimensão esmagadora do ambiente. J. Teixeira Coelho Netto expõe este conceito de
verticalidade do Gótico:
Há outros modos de encarar a verticalidade, e esta mesma
verticalidade do Gótico? Sim, e parecem bem mais adequados: um deles
baseia-se numa concepção (defendida por Hauser) segundo a qual o
verticalismo Gótico é, pelo contrário, manifestação do misticismo humano.
Numa catedral gótica se teria de tudo, menos racionalismo: nessa ‘nave
iluminada a caminho do paraíso’ se misturam a pretensão irracional de
elevar-se aos céus, de reverenciar irracionais e de afirmar-se um poder
irracional (poder que transparece no exterior da construção). Internamente,
prevalece uma atmosfera também igualmente mística, onde além dos
cantos, da música, do incenso, proliferam (e no exterior também) as figuras
mais irracionais (monstros, deformações) que a humanidade da época
conhecia. Tudo isto formando um conjunto que, como já se disse, visava
antes convencer pelos sentidos do que através de uma verdadeira
argumentação lógica e racional. Arquitetura mística, portanto, e não
racionalista; antes, talvez a mais irracionalista de todas...” 20
20
A Construção do Sentido na Arquitetura, de J. Teixeira Coelho Netto. pp. 75-6
94
FIGURA 57 - A sala de “confissões”
FIGURA 58 - A sala de “confissões”
95
FIGURA 59 - A sala de “confissões”
E o ambiente de insegurança ainda apresenta “reforços espaciais”. O piso no qual se
locomovem as pessoas é uma estreita passarela sobre uma estrutura metálica situada
a uma altura suficiente para provocar medo. As paredes, apesar de serem despojadas
de ornamentos, por serem de concreto aparente, demonstram as marcas das formas
de construção, o que produz uma textura geométrica mas que, ao acompanhar as
curvas das paredes, provocam um desenho em movimento, uma trama veloz sobre a
qual o olhar não consegue descansar.
Mas a maior sensação de desproteção figura justamente na forma
circular. Muitas teorias da arquitetura apontam a curva como sendo mais “quente”,
mais humana que a reta. “O ângulo é masculino e a curva é feminina”.21 O próprio
Bachelard explica como esse ambiente, formado por círculos e curvas pode ser tão
frio, tão inseguro: a total ausência de “cantos” leva ao desespero. Sem um cantorefúgio em que o ser possa se sentir respaldado, o ambiente torna-se inseguro. “Mas
em primeiro lugar o canto é um refúgio que nos assegura um primeiro valor do ser: a
imobilidade. Ele é o local seguro, o local próximo de minha imobilidade. O canto é uma
espécie de meia-caixa, metade paredes metade porta.”22 Para Sam, o círculo da sala
de "confissões" comunica o isolamento total, a ausência de refúgios. No centro do
grande círculo não há respostas, não há novos caminhos.
21
22
op. cit. de Gaston Bachelard. p. 154
op. cit. de Gaston Bachelard. p. 146
96
IV.2. O futuro é Barroco?
Os críticos e os historiadores da arte iniciaram a procura, em meados
do século XIX, de uma forma científica de análise artística, na busca de uma
abordagem rigorosa, a fim de se evitar o julgamento e procurar uma compreensão
objetiva da arte. O primeiro passo se dá com o suíço Heinrich Wölfflin, que publica, em
1888, Renascença e Barroco. Seu estudo inova, a priori, por elevar o período
conhecido como Barroco – de barrueco (pérola imperfeita), uma clara definição
pejorativa – ao status de produção artística autônoma, com seus próprios critérios,
formas e intenções – contrariando o que se havia estabelecido, até então: o Barroco
seria um derivado aberrante e decadente do período renascentista. Mas seu estudo
acrescenta um inventário estilístico, no qual, pela primeira vez, distinguem-se os dois
períodos da história da arte.
Em 1915, outro estudo de Wölfflin, Princípios Fundamentais da História
da Arte, amadurece as reflexões iniciadas em Renascença e Barroco e classifica os
dois períodos em cinco categorias, conforme apresentado no seguinte quadro:
Categorias
CLASSICISMO
BARROCO
Linear
Pictórico
Plano
Profundidade
Forma fechada
Forma aberta
Pluralidade
Unidade
Clareza
Obscuridade
QUADRO 1: Categorias segundo Heinrich Wölfflin
Em 1928, o pensador catalão Eugenio d’Ors escreve O Barroco e, com
inteligência e erudição, conclui que o barroco é um estilo que agrupa fenômenos
culturais cronologicamente distantes, mas que contém aspectos determinantes
comuns. Em sua colocação, d’Ors apresenta períodos barrocos ao longo da história da
97
arte, desde a pré-história até o tempo da publicação de seu estudo. Assim, a história
da arte seria uma sucessão de eras barrocas e não-barrocas.
Tanto Wölfflin quanto d’Ors são universalizantes, isto é, buscam
definições gerais para determinar estilos polarizados. Os conceitos são estáticos, se
agrupam, sem uma idéia de conseqüência e causalidade entre os períodos. Em 1934,
Henri Focillon publica A Vida das Formas. Afirma que existe um processo evolutivo em
todas as eras: a todo período artístico corresponde um momento de “estado primitivo”
no qual as formas se descobrem pouco a pouco; um momento de apogeu e
maturidade, o “classicismo”; e um momento de declínio onde o artista já não busca
mais e, não tendo mais o que acrescentar, complica, reelabora, excede, o “barroco”.
Em Focillon as formas possuem leis próprias, há uma história da arte independente da
História.
Tomando emprestadas de Wölfflin as características do Barroco em
Princípios Fundamentais da História da Arte, podemos verificar, analisando os
ambientes apresentados em Brazil, que toda a inspiração da criação dos cenários do
filme, consciente ou inconscientemente, remetem a uma arquitetura Barroca. Apesar
de todo reducionismo radical ter a tendência de ser pragmático, arriscando-se ao
leviano, o que se quer aqui não é simplesmente rotular-se com um estilo o trabalho de
cenografia do filme. Ao contrário, a idéia é associar as características da época do
estilo Barroco – e, conforme Wölfflin, os demais “períodos Barrocos da História”, como
o Gótico – com as características do “momento histórico” do futuro apresentado no
filme.
O interesse maior da arquitetura pictórica está em fazer
com que a forma básica se apresente em imagens as mais numerosas e
variadas possíveis. (p.86)
O
Barroco
desvaloriza
a
linha
enquanto
contorno,
multiplica as bordas, e enquanto a forma em si se complica e a ordenação
se torna mais confusa, mais difícil para as partes isoladas imporem seu
valor plástico: por sobre a soma das partes desencadeia-se um movimento.
(p.87)
98
Não é do interesse da arquitetura pictórica situar o edifício
de sorte a possibilitar sua observação por todos os lados, ou seja, como um
objeto tangível, como era o ideal da arquitetura clássica. (p.95)
(os interiores) Aqui é o campo ideal para os cenários e as
perspectivas, para os raios de luz e a escuridão da profundidade. Quanto
mais a luz for introduzida na composição como um fator independente, tanto
mais a arquitetura será do tipo pictórico visual. (p.95)
Com efeitos especiais de iluminação, (...), a realidade
espacial é acentuada artificialmente, para que disto resulte um efeito de
profundidade mais intenso. (p. 159)
... a construção barroca sempre se baseia em um impulso
de natureza dinâmica (...) os motivos de profundidade só se revelam na
alternância dos pontos de observação. (p.161)
O Barroco não pretende que o corpo do edifício se
imobilize num ponto de observação determinado. Truncando os ângulos, ele
consegue obter planos oblíquos, que orientam o olhar. (p.162)
O Barroco evita essa proporcionalidade exata, procurando
superar o efeito do acabamento completo com uma harmonia mais
dissimulada das partes. Quanto às proporções propriamente ditas, a tensão
e a insatisfação sobrepõem-se ao equilíbrio e à serenidade. (pp. 206-7)
O que o Barroco apresenta de novo não é, portanto, a
unificação de um modo geral, e sim aquele conceito de unidade absoluta, no
qual a parte, enquanto valor independente, é absorvida em grau maior ou
menor pelo todo. (p.253)
Para toda e qualquer sucessão de formas horizontais, o
barroco busca os agrupamentos unificantes. (p.263)
Não é verdade que o ser humano se compraz apenas com
o que é absolutamente claro; ele não tarda a exigir que se passe do claro ao
que nunca se revela inteiramente ao olhar. Por mais variadas que sejam as
transformações estilísticas do período pós-clássico, a todas é comum uma
particularidade curiosa: a imagem escapa, de algum modo, à compreensão
total. (p.304)
99
O Barroco tem grande predileção pelas intersecções. Ele
não se limita a ver a forma diante da forma, a interceptante e a interceptada,
mas saboreia a nova configuração que resulta dessas intersecções. (p.305)
O que o Barroco almeja é precisamente uma tensão que
nunca poderá ser desfeita. (p.308)23
Os trechos do livro de Wöllflin descrevem, como vemos, as principais
características dos ambientes, tanto internos como externos, tanto públicos quanto
privados, que nos apresentam os produtores de Brazil. Wölfflin termina seu livro com
um exemplo de comparação entre dois vasos, um renascentista e um barroco. O autor
conclui sobre a forma barroca: “qualquer que seja a nossa localização diante da obra,
jamais a forma se deixará apreender ou fixar por completo; a imagem “pictórica”
encerra algo de inesgotável para os olhos.”24
Mas, afinal, por que a arquitetura de um filme como Brazil se reveste
das características barrocas? Em quê o momento de Brazil - “em algum lugar do
século XX” – se assemelha ao Barroco propriamente dito ou aos períodos da História
em que o emocional predomina como expressão humana? Estas questões podem ser
respondidas por J. Teixeira Coelho Netto, em A Construção do Sentido na Arquitetura:
Que se pense na arquitetura barroca, especialmente na
arquitetura religiosa barroca. Produto da Contra-Reforma na luta contra o
protestantismo, surge quando a Igreja Católica encomenda especificamente
uma arquitetura com uma forma determinada para uma função específica
ambas destinadas a ela mesma, Igreja: tratava-se de dar formas de
encantamento, de sufocação sinestésica calculadas para fazer retornar à
sede católica os antigos adeptos desviados pela nova adversária e ao
mesmo tempo conquistar novos simpatizantes. E sob o ponto de vista da
Igreja, do produtor, a combinação existiu, pois deu resultados.25
23
Princípios Fundamentais da História da Arte, de Heinrich Wölfflin
op. cit. de Heinrich Wölfflin. p. 311
25
op. cit., de J. Teixeira Coelho Netto. p. 110
24
100
Em Brazil, esta idéia de Igreja apresentada por Coelho Netto é
substituída pelo Ministério da Informação, utilizando a arquitetura oficial, que inclusive
penetra nos espaços privados por meio dos tubos onipresentes, como parte da grande
propaganda ideológica maciça para manter próximos e conquistados, todos os
cidadãos.
Maria Aparecida Santilli, em trabalho que discute a poesia barroca
portuguesa, comenta sobre o temário barroco:
O temário da literatura seiscentista é um atestado dessa
influência contra-reformista: o medo da morte, a consciência do pecado, a
contrição, o desengano, a oscilação de sentimentos distintos, o claroescuro, o sentimento estóico de que os esforços humanos são inúteis, a
sensação do tempo e o conseqüente desejo de aproveitar a vida presente
(carpe diem)26.
Nada mais apropriado para representar um período de insegurança, de
medo, de sentimento de opressão, de dependência ao poder estabelecido – como o
que se apresenta em Brazil – do que a expressão artística de um período histórico
marcado pelos mesmos sentimentos. O futuro, pelo o menos o futuro de Brazil, é
Barroco.
26
Apresentação Poesia Barroca Portuguesa, de Maria Aparecida Santilli. p.16
101
V. Considerações Finais
O que se pretendia com este trabalho era analisar a comunicação
arquitetônica apresentada em obras de cinema ambientadas no futuro e verificar a
existência de coerência entre a linguagem verbal e a não-verbal, na construção da idéia de
futuro. A escolha do filme Brazil como corpus da pesquisa auxiliou o caminho por ser um
filme muito rico em mensagens implícitas, conteúdo e muito elaborado em imagem,
permitindo a análise e a comparação desejadas. As escolhas dos autores em que foi
baseada a pesquisa também auxiliou em muito o trabalho, pois a elucidação dos
"mistérios" do percurso só foi possível graças à riqueza dos textos encontrados.
Mas, entretanto, uma questão provavelmente continua restando, após este
mergulho nas entranhas do futuro construído na obra cinematográfica: seria este estudo,
incluindo suas conclusões, válido para aplicação em qualquer outra obra de cinema
ambientado no futuro? Será que existe um paralelo entre o filme analisado e seus pares,
ao longo da história do cinema? Será, afinal, que todos os "futuros", conforme se concluiu
neste trabalho, são Barrocos? Logicamente, não desejaremos determinar uma resposta
irrefutável a estas questões, assim como, humildemente, não pensamos jamais esgotar o
assunto, principalmente pelo fato de que ainda haveria inúmeros futuros a se analisar e
outros mais a serem criados. A pesquisa mostrou, ao longo de seu percurso, que a crítica
da arquitetura e da comunicação arquitetônica ainda têm muito a amadurecer e muitas
discussões hão de se acalorar em torno da matéria antes de se poder ter certezas
consolidadas de sua eficácia. Arquitetos, semiólogos, filósofos, críticos de arte, literatos,
antropólogos, psicólogos, engenheiros, artistas, geógrafos, historiadores, poetas e
curiosos hão de continuar se debruçando sobre as obras arquitetônicas e opinarão muito,
muitas vezes em opiniões diametralmente opostas, antes de haver consenso sobre o
processo de criação do espaço e o processo de leituras deste espaço. Mas também se
concluiu que há muito que se aprender e apreender desta arte relativamente nova apenas um século!: o cinema. Novas teorias surgem a cada instante, lendo e relendo as
obras criadas neste curto, mas profícuo espaço de tempo.
Apesar das aparentes incertezas, porém confiando na qualidade do
material existente à disposição desta pesquisa, voltamos ao ponto de partida do trabalho,
quando ainda se devorava informação avidamente, ainda sem noção dos percalços do
caminho, para assistirmos às mais consagradas obras de cinema ambientadas no futuro
102
com o intuito de verificar a validade das conclusões chegadas ao longo dos capítulos
deste estudo. As imagens que serão apresentadas, nas figuras seguintes, extraídas de
algumas destas obras, comparadas com as mensagens verbais expostas em cada uma
das obras nos permitem afirmar que, com maior ou menor consciência por parte dos
realizadores, os ambientes psicológicos criados nestes diversos futuros podem ser
caracterizados visualmente como "barrocos". Note-se que as aspas são fundamentais e se
justificam apenas com a leitura dos capítulos anteriores, nos quais o conceito de Barroco é
exposto como algo que, concordando com Eugenio D'ors, ultrapassa as datas
determinadas pelos historiadores da comunicação artística. Ainda deixamos como
proposta de novos estudos, para se analisar se todo e qualquer futuro para o homem
sempre foi e sempre será cercado de incertezas, inseguranças, sentimento de pequenez,
de finitude, levando a esta "irracionalidade-sentimental" do Barroco ou se, como foi
afirmado na introdução deste trabalho, o homem representa seu futuro como uma
extrapolação, uma reprodução exagerada do presente e, sendo assim, as obras de cinema
ambientadas no futuro se revestem deste "barroquismo" porque o século XX, com suas
tecnologias galopantes e dúvidas em torno da validade das mesmas é, também, um
período "barroco". A questão é: será que o Homem naturalmente enxerga um mundo
barroco ou o Homem está em um presente barroco, vendo, por isso, futuros barrocos?
FIGURA 60 - Metrópolis (Metropolis, ALE, 1926) de Fritz Lang
FIGURA 61 - Blade Runner, o Caçador de Andróides (Blade Runner, EUA, 1982)
de Ridley Scott
103
FIGURA 62 - 2001, uma odisséia no espaço (2001: A Space Odissey, ING, 1968)
de Stanley Kubrick
FIGURA 63 - Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, ING, 1971) de Stanley
Kubrick
104
FIGURA 64 - Duna (Dune, EUA, 1984) de David Lynch
FIGURA 65 - Barbarella (Barbarella, FRA/ITA, 1968) de Roger Vadim
105
FIGURA 66 - Solaris (Solaris, URS, 1972) de Andrei Tarkovsky
FIGURA 67 - THX 1138 ( THX 1138, EUA, 1971) de George Lucas
FIGURA 68 - Quinto Elemento, O (Fifth Element, The, FRA/EUA/ING, 1997) de Luc
Besson
FIGURA 69 - Doze Macacos, Os (12 Monkeys, EUA, 1995) de Terry Gilliam
106
FIGURA 70 - Batman (Batman, EUA, 1989) de Tim Burton
FIGURA 71 - Matrix (Matrix, EUA, 1999) de Larry & Andy Wachowski
As figuras 60 a 71 apresentam imagens de diversos filmes
ambientados no futuro e cujos cenários podem ser caracterizados como "barrocos".
Como contraponto a estas idéias e, principalmente, à conclusão deste
trabalho, apresento como imagens finais algumas cenas de Guerra nas Estrelas (Star
107
Wars, EUA, 1977, de George Lucas), no qual, também em um letreiro inicial
"provocativo", se apresenta um tempo e um local indefinido: "Há muito tempo, em uma
galáxia muito, muito distante..." O filme, então, estaria ambientado no passado e em
outros planetas. Mesmo assim, a imaginação humana, ao criar este ambiente tão
paralelo ao nosso Mundo, ainda utiliza inspiração barroca.
FIGURA 72 - Guerra nas Estrelas (Star Wars, EUA, 1977) de George Lucas
108
Uma parte de mim é todo mundo
Outra parte é ninguém, fundo sem fundo
Uma parte de mim é multidão
Outra parte estranheza e solidão
Uma parte de mim pesa, pondera
Outra parte delira
Uma parte de mim almoça e janta
Outra parte se espanta
Uma parte de mim é permanente
Outra parte se sabe de repente
Uma parte de mim é só vertigem
Outra parte linguagem
Traduzir uma parte na outra parte
Que é uma questão de vida e morte
Será arte?
Traduzir-se, de Ferreira Gullar
FIM
109
Ficha Técnica (Brazil, o Filme)
Título Original ____________________________________________ Brazil
Ano de Produção _________________________________________ 1985
Filmado nos LEE INTERNATIONAL FILM STUDIOS _____________ Wembey, Inglaterra
Terry Gilliam _____________________________________________ Diretor
Arnon Milchan ____________________________________________ Produtor
Patrick Cassavetti _________________________________________ Co-Produtor
Terry Gilliam/Tom Stoppard/Charles McKeown ________________ Roteiro
Roger Pratt ______________________________________________ Diretor de Fotografia
Julian Doyle______________________________________________ Edição
Michael Kamen ___________________________________________ Música Original
Norman Garwood _________________________________________ Projetista de Produção
George Gibbs ____________________________________________ Superv. de Efeitos Especiais
Richard Conway __________________________________________ Supervisor de Maquetes
Maggie Weston ___________________________________________ Cabelos e Maquiagem
James Acheson __________________________________________ Figurino
Jonh Beard/Keith Pain _____________________________________ Diretor de Arte
Graham Ford _____________________________________________ Gerente de Produção
Irene Lamb_______________________________________________ Direção de Casting
Margery Simkin ___________________________________________ Direção de Casting - EUA
Bill Weston ______________________________________________ Arranjo de Extras
Bill Hobbs _______________________________________________ Arranjo "Guerreiro Samurai"
Guy Traver _______________________________________________ Assistente do Diretor
Chris Thompson __________________________________________ 2º Assistente do Diretor
Richard Coleman _________________________________________ 3º Assistente do Diretor
David Garfath ____________________________________________ Operador de Câmera
Bob Doyle _______________________________________________ Gravação de Som
Paul Carr ________________________________________________ Mixagem de Regravação
Linda Bruce ______________________________________________ Gerente de Unidade
Peter Verard______________________________________________ Gerente de Construção
Ray Cooper ______________________________________________ Coordenador Musical
Rodney Glenn ____________________________________________ Editor de Som
Terry Connors ____________________________________________ Contador
Penny Eyles______________________________________________ Supervisor de Script
Margaret Adams __________________________________________ Coordenador de Produção
David Appleby ____________________________________________ Fotografia Still
110
Ficha Técnica (Brazil, o Filme)
Elenco
Jonathan Price ___________________________________________ Sam Lowry
Robert de Niro ____________________________________________ Harry Tuttle
Katherine Helmond ________________________________________ Mrs. Ida Lowry
Ian Holm_________________________________________________ Mr. Kurtzmann
Bob Hoskins _____________________________________________ Spoor
Michael Palin _____________________________________________ Jack Lint
Ian Richardson ___________________________________________ Mr. Warrenn
Peter Vaughan____________________________________________ Mr. Helpmann
Kim Greist _______________________________________________ Jill Layton
Jim Broadment ___________________________________________ Dr Jaffe
Barbara Hicks ____________________________________________ Mrs. Terrain
Charles Mackeon _________________________________________ Harvey Lime
Derrick O'Connor _________________________________________ Dowser
Katherine Pogson _________________________________________ Shirley
Bryan Pringh _____________________________________________ Spiro
Sheila Reid_______________________________________________ Mrs. Buttle
111
Lista de Figuras
Figura 1 - "31 de junho de 1984" ________________________________________ 24
Figura 2 - Bug no sistema______________________________________________ 29
Figura 3 - Lloyd's Building - Guia do visitante _____________________________ 31
Figura 4 - Computador "do futuro" ______________________________________ 32
Figura 5 - Mesa de "Confissões" ________________________________________ 33
Figura 6 - O processo X Brazil __________________________________________ 34
Figura 7 - As mulheres dos sapateiros ___________________________________ 35
Figura 8 - Oito e meio X Brazil __________________________________________ 36
Figura 9 - Encouraçado Potenkim X Brazil ________________________________ 37
Figura 10 - Um corpo que cai X Brazil ____________________________________ 39
Figura 11 - Informação: a chave da prosperidade __________________________ 57
Figura 12 - Ajude o Ministério a ajudar você / Seja seguro, suspeite __________ 57
Figura 13 - Conversa à toa é uma armadilha ______________________________ 58
Figura 14 - Suspeita traz Confiança______________________________________ 58
Figura 15 - Felicidade: estamos todos juntos nisso ________________________ 58
Figura 16 - Campos de férias com segurança total _________________________ 59
Figura 17 - Confiança precipitada, arrependimento adiado __________________ 59
Figura 18 - Não suspeite de um amigo, denuncie-o ________________________ 59
Figura 19 - Em quem você pode confiar? _________________________________ 60
Figura 20 - Poder hoje, prazer amanhã ___________________________________ 60
Figura 21 - 3 horas consecutivas sem acidente com perda de tempo _________ 60
Figura 22 - Cuidado com pacotes _______________________________________ 61
Figura 23 - Central Services - Propaganda ________________________________ 64
Figura 24 - Residência Buttle ___________________________________________ 72
Figura 25 - Residência Gil Layton _______________________________________ 72
Figura 26 - Residência Sam Lowry ______________________________________ 73
Figura 27 - Residência Sam Lowry ______________________________________ 73
Figura 28 - Residência Ida Lowry________________________________________ 74
Figura 29 - Residência Ida Lowry________________________________________ 74
Figura 30 - Residência Ida Lowry________________________________________ 75
Figura 31 - Residência Ida Lowry________________________________________ 75
Figura 32 - Residência Ida Lowry________________________________________ 76
Figura 33 - Departamento de Cadastramento______________________________ 78
Figura 34 - Departamento de Cadastramento______________________________ 78
Figura 35 - Departamento de Recuperação de Informações__________________ 80
Figura 36 - Departamento de Recuperação de Informações__________________ 80
Figura 37 - Departamento de Recuperação de Informações__________________ 81
Figura 38 - Departamento de Recuperação de Informações__________________ 81
Figura 39 - Sala de Jack _______________________________________________ 82
112
Figura 40 - Sala de Mr. Helpmann _______________________________________ 82
Figura 41 - Consultório médico _________________________________________ 83
Figura 42 - Lobby, Departamento de Cadastramento _______________________ 84
Figura 43 - Lobby, Departamento de Cadastramento _______________________ 84
Figura 44 - Lobby, Departamento de Recuperação de Informações ___________ 85
Figura 45 - Lobby, Departamento de Recuperação de Informações ___________ 85
Figura 46 - Restaurante________________________________________________ 86
Figura 47 - Restaurante________________________________________________ 86
Figura 48 - Velório ____________________________________________________ 87
Figura 49 - Velório ____________________________________________________ 87
Figura 50 - Ministério da Informação _____________________________________ 89
Figura 51 - Ministério da Informação _____________________________________ 89
Figura 52 - Velório ____________________________________________________ 90
Figura 53 - Bairro de classe média ______________________________________ 90
Figura 54 - Bairro de classe média ______________________________________ 91
Figura 55 - Shangri La Towers __________________________________________ 91
Figura 56 - Rodovia ___________________________________________________ 92
Figura 57 - A sala de "confissões" ______________________________________ 94
Figura 58 - A sala de "confissões" ______________________________________ 94
Figura 59 - A sala de "confissões" ______________________________________ 95
Figura 60 - Metropolis _________________________________________________ 102
Figura 61 - Blade Runner ______________________________________________ 102
Figura 62 - 2001, uma odisséia no espaço ________________________________ 103
Figura 63 - Laranja mecânica ___________________________________________ 103
Figura 64 - Duna______________________________________________________ 104
Figura 65 - Barbarella _________________________________________________ 104
Figura 66 - Solaris ____________________________________________________ 105
Figura 67 - THX 1138 __________________________________________________ 105
Figura 68 - O quinto elemento __________________________________________ 105
Figura 69 - Os doze macacos ___________________________________________ 105
Figura 70 - Batman ___________________________________________________ 106
Figura 71 - Matrix (trilogia) _____________________________________________ 106
Figura 72 - Guerra nas Estrelas _________________________________________ 107
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Referências Bibliográficas
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Alphaville (Alphaville, FRA, 1965, Mundial) de Jean-Luc Goddard.
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Batman (Batman, EUA, 1989, Warner) de Tim Burton.
Blade Runner, o Caçador de Andróides (Blade Runner, EUA, 1982 Warner) de Ridley Scott.
Brazil, o Filme (Brazil, EUA, 1985, FlashStar) de Terry Gilliam.
De Volta para o Futuro 2 (Back to the Future 2, EUA, 1989, CIC e Universal) de Robert Zemeckis.
Doze Macacos, Os (12 Monkeys, EUA, 1995, Columbia TriStar) de Terry Gilliam.
Duna (Dune, EUA, 1984, FlashStar) de David Lynch.
Encouraçado Potemkim (Bronenosets Potymkin, URS, 1925, Continental) de Sergei M. Eisenstein.
Guerra nas Estrelas (Star Wars, EUA, 1977, Fox) de George Lucas.
Farenheit 451 (Farenheit 451, França) de François Truffaut.
Fellini Oito e Meio (Otto Mezzo, ITA, 1963, Continental) de Federico Fellini.
Homens Preferem as Loiras, Os (Gentlemen Prefer Blondes, EUA, 1953, Fox) de Howard Hawks.
Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, ING, 1971, Warner) de Stanley Kubrick.
Mad Max (Mad Max, AUS, 1979, Warner) de George Miller.
Máquina do Tempo, A (Time Machine, EUA, 1960,Vídeo Arte) de George Pal.
Matrix (Matrix, EUA, 1999, Cinema) de Larry & Andy Wachowski.
Metrópolis (Metropolis, ALE, 1926, Continental) de Fritz Lang.
Processo, O (Trial, The, FRA/ITA/ALE, 1963, Top Tape e Continental) de Orson Welles.
Quinto Elemento, O (Fifth Element, The, FRA/EUA/ING, 1997, Columbia TriStar) de Luc Besson.
Rollerball, os Gladiadores do Futuro (Rollerball, EUA, 1975, Warner e Fox) de Norman Jewison.
Solaris (Solaris, URS, 1972, Taipan) de Andrei Tarkovsky.
Tempos Modernos (Modern Times, EUA, 1936, Continental) de Charles Chaplin.
Terceiro Homem, O (Third Man, The, Ing, 1949, Continental) de Carol Reed.
THX 1138 ( THX 1138, EUA, 1971, Warner) de George Lucas.

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