Jean Pierre Kirsch Jr - Alinhamento e Legalização
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Jean Pierre Kirsch Jr - Alinhamento e Legalização
Centro Universitário de Belo Horizonte - UniBH Jean Pierre Kirsch Jr. ALINHAMENTO E LEGALIZAÇÃO: CANNABIS SATIVA OS PROBLEMAS E LIMITAÇÕES PARA UMA POLÍTICA INTERNACIONAL COMUM Belo Horizonte Junho de 2010 Jean Pierre Kirsch Jr. ALINHAMENTO E LEGALIZAÇÃO: CANNABIS SATIVA OS PROBLEMAS E LIMITAÇÕES PARA UMA POLÍTICA INTERNACIONAL COMUM Monografia apresentada ao Centro Universitário de Belo Horizonte – UniBH como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Relações Internacionais. Orientador: Professor Leando Rangel Belo Horizonte Junho de 2010 Resumo O presente trabalho pretende discutir, em uma perspectiva internacional, as diversas políticas existentes para tratamento da questão da cannabis sativa. Para tanto, ele se divide em três fases. A primeira parte do artigo consiste em um breve histórico sobre o plantio e diferentes fins de uma planta que, nos últimos cem anos, vem causando controvérsia política em função de decisões de cunho muito mais político e econômico do que social. A segunda parte considera o papel dos principais atores internacionais envolvidos, além do desalinhamento político relativo ao comércio e consumo de cannabis, terapêutico e lúdico, analisando o fenômeno, à luz do construtivismo, e de forma estrutural e holística, para explicar como tal situação vem se configurando contemporaneamente. E por fim, uma solução será proposta com base no que foi discorrido no presente artigo. Palavras-chave: cannabis, desalinhamento político, controvérsias, consumo terapêutico e lúdico, construtivismo. Abstract This paper intends to discuss in an international perspective, the variety of existing policies for addressing the issue of cannabis. For this, it is divided into three phases. The first part of the paper is a brief history of the plantation and the different uses of the plant that, in the last a hundred years has caused political controversy due to decisions which have been more political and economic than social. The second part considers the role of key international players involved, besides the political misalignment on trade and consumption of cannabis, therapeutic and recreational, analyzing the phenomenon in the light of constructivism, with a structural and holistic approach, in order to explain how this situation has been built itself contemporaneously. And finally, a solution is proposed based on what has been discoursed throughout this article. Key-words: cannabis, political misalignment, recreational consumption, constructivism controversies, therapeutic and Alinhamento e Legalização: Cannabis Sativa Os problemas e limitações para uma política internacional comum Jean Pierre Kirsch Jr.1 Leandro de Alencar Rangel2 Introdução Este artigo pretende analisar a conjuntura política internacional e a forma com que os Estados administram o alinhamento político acerca da proibição e legalização da cannabis e se existe a possibilidade da sociedade internacional chegar a uma decisão comum, uma vez que o mesmo assunto tem sido tema de diversos tratados e objeto de polêmica durante os últimos 100 anos. À medida que a política internacional é regida por alguns Estados mais importantes e afetada por todo conjunto que constitui o sistema, a escolha dos seguintes países que serão analisados é feita a partir desse princípio. Políticas estatais antagônicas e controversas serão discutidas, assim como um breve histórico acerca do objeto de estudo abordado no seguinte artigo será apresentado a respeito de cada país ou região, para que haja mais eficiência na compreensão à luz dos argumentos teóricos construtivistas usados aqui como ferramenta de análise. Essa abordagem histórica se preocupará em mostrar como a cannabis foi difundida, usada, tanto terapeuticamente quanto para fins lúdicos, marginalizada e/ou, em certos Estados, incorporada como algo a ser regulamentado e estudado afim de que haja benefícios sociais e econômicos. Estados com políticas opostas sejam elas proibitivas ou tolerantes, dividem suas fronteiras. Essa dicotomia ideológica e territorial faz com que esses Estados que adotam uma postura mais conservadora enrijeçam ainda mais seu comportamento doméstico. O seguinte artigo discorrerá brevemente sobre esse fenômeno e mostrará como esse relacionamento afeta domesticamente a política dos dois países. 1 2 Graduando em Relações Internacionais do Centro Universitário UNI-BH Professor Orientador do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário UNI-BH A cannabis, ao que se refere à legalização, proibição, tolerância e descriminalização, tem causado controvérsias e descompasso entre as políticas estatais no cenário internacional, uma vez que, em detrimento dos acordos internacionais assinados, cada Estado parece agir de maneira autônoma, conforme seus próprios interesses e capacidades. Será esse um comportamento fruto de imposições, restrições e intervenções exógenas e que, mal sucedidas, fazem com que alguns países se comportem de forma dúbia e contraditória? O artigo analisará, à luz do Construtivismo, se o processo de intercâmbio cultural, ideológico e econômico está contribuindo para a adoção de uma política comum ou não, considerando os tratados, convenções e acordos mais importantes acerca do tema concatenando fatos à análise proposta. 1) Histórico 1.1) Primeiras impressões Baseado nos mais antigos relatos, a cannabis sempre foi importante para o comércio e bem-estar das sociedades, de acordo com o professor Ernest L. Abel (1980). A fibra do cânhamo tem sido usada para a fabricação de tecido, papel, cordas e armas, como o arco e flecha, remédio, e droga psicoativa para fins lúdicos, além de ser usada em rituais e fins religiosos. Suas sementes são usadas na fabricação de sabão, óleo para lamparinas, tintas, alimento para pássaros e temperos domésticos. Conforme Abel (1980), o relato mais antigo que se tem do uso da cannabis remete-se a aproximadamente 10.000 anos atrás, em Taiwan. A planta também parece ter sido usada na China, no século II antes de Cristo, para a confecção de roupas, sapatos, arco e flechas, e por suas propriedades anestésicas. Suas propriedades psicoativas foram, por muito tempo, usadas na Índia em rituais e cerimônias religiosas, e era o ingrediente principal de três porções: bhang, ganja e charas. Seu uso foi documentado na Ásia menor – na Turquia – aproximadamente 1000 anos antes de Cristo. Tanto os romanos quanto os gregos documentaram sua eficácia enquanto propriedade medicinal, principalmente no tratamento de dor de ouvido. Seu uso, em particular no Oriente Próximo, deve ser detalhado pela sua influência na formação do “misperception” (JERVIS, 1976)3 ao que diz respeito às propriedades e efeitos da planta. Entre os séculos XI e XIII d.C, uma facção conhecida como “Assassinos”, seguidores de Hasan-ibn-Sabah dominou o Oriente Próximo promovendo um reinado de terror. Marco Pólo relatou que os Assassinos consumiam drogas, porém ele não identificou essa droga como sendo Haxixe (sub-produto da Cannabis), sendo assim, a droga, a principio, não ganhou o status de responsável por impulsioná-los a serem violentos e perversos. De qualquer maneira, no século XIX, um número de escritores europeus afirmou que a palavra “Assassino” era uma derivação de Haxixe. Um link entre os dois fatos distintos, por conta disso, foi forjado, associando a cannabis à violência; essa associação repetiu-se no século XX nos textos anti-cannabis escritos por Harry Anslinger, antigo chefe do FBI (ABEL, 1980). Na Idade Média a cannabis era usada tanto pelos seus efeitos psicoativos, quanto pelo seu potencial comercial. Seu uso como uma droga capaz de alterar o estado mental foi disseminado por todo Egito e parece datar por volta do século XIII. Na Europa medieval o uso da Cannabis aparece como remédio particularmente usado no tratamento de dor de dente, reumatismo e em partos de crianças. Seu papel em rituais de feitiçaria resultou em um decreto papal no século XV que condenou a bruxaria assim como o uso da planta supostamente usada em reuniões satânicas. Na realidade, a importância de seu uso na Idade Média e na época de expansão colonial se deu na fabricação de cordas e velas para navios. A Itália era o principal produtor, o que era particularmente importante para o estabelecimento de cidades-estado como Viena, que era detentora do poder marítimo (ABEL, 1980). A importância histórica da cannabis novamente é evidenciada por um decreto emitido por Henrique VIII em 1533, que estipulava que, para cada sessenta hequitares de terra arável que um fazendeiro possuísse na Grã Bretanha, um quarto deveria ser destinado à plantação de cannabis. A penalidade para quem não cumprisse seria três chibatadas e quatro centavos (ABEL, 1980, p. 72-3). A Cannabis era claramente um ingrediente vital para possibilitar o poder marítimo aspirante a explorar as riquezas do novo mundo. Apesar das ameaças, os britânicos tiveram pouco sucesso no estímulo da plantação de cannabis domesticamente, sendo mais bem-sucedidos em suas colônias americanas. 3 Jervis contesta a posição da escolha racional nas relações internacionais, alegando que esta pode prejudicar a percepção precisa do mundo real do jogo de modelos teóricos. 1.2) Período expansionista Durante o século XVII, a cannabis indiana era a base dos acordos comerciais entre os colonos americanos e, tão grande era a necessidade na marinha britânica de se equipar, que James I assinou um decreto real, que instruía os colonos a aumentarem a produção de cannabis para que pudessem atender às necessidades vigentes dos dominadores ingleses (HINDMARCH, 1972). O interesse na cannabis e em outras drogas foi estimulado por diários e jornais de viajantes que descreviam seu uso na África, Ásia Menor e Índia, e por relatos de soldados em exércitos coloniais que a experimentaram recreativamente enquanto estavam em suas missões. Um dos primeiros relatos ocidentais sobre os efeitos da cannabis foi de Garcia Da Orta, publicado em 1563, que descrevia os efeitos do Bhang (uma poção ou bebida contendo cannabis). Essa publicação foi seguida por vários outros livros publicados por aventureiros europeus, nessa mesma época do século XVI. Esses trabalhos não foram importantes para a divulgação do que se sabia sobre as propriedades psicoativas da planta, e sim para popularizar o “misperception” sobre a droga. Por exemplo, a crença coletiva de que os efeitos de se consumir opium e bhang eram idênticos pode ser datada dessa mesma época. Prova disso, segundo Abel (1980), as mesmas informações aparecem nas obras do holandês John Huyghen van Lisnchoten (1884)4 e do português Fray Sebastian. A ligação entre a cannabis e o comportamento violento e perigoso também datam aproximadamente dessa mesma época, particularmente dos escritos do orientalista Silvestre de Sacy (ABEL, 1980). A expansão colonial e as guerras coloniais também trouxeram consigo um novo entendimento na Europa do uso medicinal da planta (ABEL, 1980). Existem relatos de que, por volta do século XVII, as propriedades medicinais da planta eram bem conhecidas pelos profissionais da medicina e em 1682, a semente de cannabis foi listada no “New London Dispensatory” (agência farmacológica britânica), como remédio para tosse e icterícia (ABEL, 1980). A política que os Estados adotaram em relação à cannabis foi socialmente construída, o que levou à formação de uma 4 The voyage of John Huyghen van Linschoten to the East Indies : from the old English translation of 1598 : the first book, containing his description of the East (1885) realidade material a qual moldou a forma que os atores estatais e não-Estatais passaram a enxergá-la nesse momento. Além disso, o fato da planta ter caído no gosto dos estudantes universitários, escritores, artistas, tanto na Inglaterra quanto no Egito, contribuiu ainda mais para sua popularização. Doces turcos feitos a partir da flor da planta, a qual é rica em suas propriedades psicoativas, eram consumidos livremente nas ruas e universidades. No século XIX, o haxixe foi usado pelo Clube Francês do Haxixe, que, entre outros, tinha como membros Theophile Gautier, Alexandre Dumas, Victor Hugo e Eugene Delacroix. Um pouco mais popular do que entre os ingleses, a planta era consumida e acreditada por dar a eles novas experiências e inspirações que transporiam em obras literárias, pois afirmavam que a planta tinha o poder de aumentar a criatividade e potencializar a capacidade de criação (ABEL, 1980). 1.2) Período moderno Aprofundando a análise histórica, outro importante aspecto da influência colonial na disseminação da cannabis no oeste europeu pode ser visto no trabalho de W.B. O´Shaughnessy (1839)5. Trata-se de um médico irlandês enviado à Índia o qual leva os créditos pela introdução da cannabis na medicina ocidental. A Índia usava e fazia experimentos com a planta para tratar de uma vasta gama de doenças, incluindo reumatismo, cólera, tétano e epilepsia. O doutor estava entusiasmado e deslumbrado com a eficácia da planta a ponto de convertê-la em uma forma mais apropriada para o uso medicinal. Seu extrato foi amplamente prescrito em partos de crianças, enxaqueca, insônia, tosse e tratamento de abstinência de ópio (ABEL, 1980). De qualquer forma, o uso da cannabis no Ocidente para fins terapêuticos não se estendeu por muito tempo depois da primeira década do século XX. Os profissionais da medicina voltaram suas atenções para outras drogas e outros métodos de administrá-las. A ciência da química orgânica possibilitou que drogas como a morfina e a cocaína fossem isoladas, assim possibilitando a síntese de drogas como a heroína (MUSTO, 1991). A seringa hipodérmica foi inventada em 1845 e possibilitou uma 5 O'Shaughnessy, W.B., 1839a. On the Preparations of the Indian Hemp, or Gunjah, Transactions of the Medical and Physical Society of Bengal, 8, 1838-40, 421-461. Reprinted in Mikuriya, 1973, 3-30. administração mais eficiente de drogas. A morfina foi isolada em 1803 e diferentemente da cannabis, ela era solúvel em água e injetável (ABEL, 1980). O crescimento da indústria farmacêutica possibilitou a propaganda, distribuição e produção em massa dessas novas drogas (MUSTO, 1991). Além do fato de que o potencial efeito da cannabis comercialmente disponível no mercado variava consideravelmente em relação à administração da mesma quantidade devido à qualidade da droga (de acordo com a região e condições de plantação), o que veio a ser percebido em pacientes que demonstravam reações adversas ao uso da mesma (MANDERSON, 1993). Em contraste a isso, posteriormente, drogas como morfina e a heroína foram entusiasticamente abraçadas por médicos por causa dos seus efeitos de ação rápida e por proverem alívio eficaz e rápido de dores; contudo, o uso esporádico da cannabis para propósitos terapêuticos medicinais ainda permaneceu. Até o final da década de 1930 a indústria farmacêutica (Parke Davis, Eli Lilly e Squibb) comercializava fórmulas cujos ingredientes eram extraídos da cannabis, para o tratamento de asma e tensão causada por dores. Ela permaneceu na farmacologia estadunidense até 1942, e na Austrália foi usada na produção de tinturas até metade da década de 1960 (CASWELL, 1992). 1.2) Ambiente contemporâneo O interesse médico-científico pela cannabis era latente e relevante até pouco tempo atrás. Nos Estados Unidos a atenção para com o assunto está sendo retomada, como também a discussão das possibilidades do seu uso terapêutico para os tratamentos dos efeitos colaterais nos tratamentos de câncer (quimioterapias), além de servir para reduzir a pressão intra-ocular em pacientes que sofrem de glaucoma. Paralelamente, alguns debates acerca do assunto também acontecem na mesma época na Austrália e no Canadá (CASWELL, 1992). Se o consumo não terapêutico da cannabis no final do século XIX, começo do século XX, foi tido como um problema, isto se deu em relação ao uso da planta pelos povos colonizados e minorias étnicas6. De qualquer maneira, em relação aos povos colonizados, a atitude das potências ocidentais foi um tanto incoerente. Por exemplo, a 6 Pois esses eram sempre associados a violência e criminalidade. cannabis foi amplamente usada na Índia e no Egito – ambos sob os auspícios da Grã Bretanha – no Egito, oficiais locais e regulamentadores estrangeiros, incluindo os turcos, tentaram reprimir o seu uso no século XIX. Os britânicos, que nada ganhavam com os lucros derivados da cannabis egípcia, apoiaram essa decisão (SCHEERER, 2001). Já na Índia, onde o governo britânico parecia ter, inicialmente, pouca preocupação em relação ao uso da cannabis entre os indianos, os ingleses não ostentavam essa complacência a troco de nada. Eles tinham sido generosamente favorecidos financeiramente desde 1798, quando o governo licenciou a manufatura e a venda de drogas provindas da cannabis e recebia uma considerável fonte de lucros desse comércio. Em detrimento do lucro que a Grã Bretanha tinha com a produção e comercialização da cannabis indiana, pressões endógenas e exógenas contribuíram para a associação da cannabis com o aumento da violência, doenças e mazelas sociais. Essas pressões eram majoritariamente exercidas por grupos indianos de administradores locais e seus parceiros comerciais na Grã Bretanha, o que resultou no estabelecimento de uma comissão de drogas na Índia (Indian Hemp Drugs Commission) em 1893. A diminuição e perda de lucros caso a cannabis fosse banida foi a razão principal para que a comissão considerasse que a proibição era injustificada, uma vez que não havia evidências suficientes para provar os efeitos maléficos e mazelas causadas pela planta, reforçando o importante papel da droga nas religiões e cultura local, incluindo a vida social no sub-continente (SCHEERER, 2001). O uso da cannabis pelas colônias africanas era ignorado pelas potências coloniais. De qualquer forma, a África do Sul preocupava-se com o uso da cannabis entre os indianos trazidos para trabalhar na colônia. Em 1870 uma lei entrou em vigor proibindo os indianos de fumarem ou possuírem a planta. Nos Estados Unidos o assunto remetia-se a grupos étnicos e minorias. Esses eram sempre associados à criminalidade e violência. Há relatos de que os primeiros casos de uso recreativo da cannabis nos Estados Unidos foi feito por refugiados mexicanos fugindo da revolução no sudoeste do estado, a Revolução de 1910. As primeiras leis americanas, contemplando esse tipo de comportamento, são datadas dessa época e dizem respeito a esses estados. Futuramente seu uso foi disseminado nas comunidades negras. Por volta de 1937 sua proibição vigorava em todo país (SCHEERER, 2001). 2) Questões teórico-analíticas Entende-se, em uma perspectiva construtivista, que o holismo, também conhecido por estruturacionismo, é fenômeno social e não pode ser decomposto às propriedades de atores já existentes. Desta forma, o Holismo reconhece que os agentes possuem uma parcela de autonomia e suas interações auxiliam na construção, reprodução e transformação dessas estruturas. A observação central se coloca na construção social da realidade. A natureza dos atores, suas identidades e interesses também são socialmente construídos. Assim, os atores são produzidos e criados por seu ambiente cultural (BARNETT, 2008). Sendo assim, a construção social da realidade também molda aquilo que é visto como ação legítima, aquilo que é considerado aceitável e não aceitável. A distinção entre regras constitutivas e regulativas estabelece um paralelo com a distinção conceitual entre a lógica da conseqüência e a lógica da adequação. A lógica da conseqüência atribui ação aos custos antecipados e aos benefícios, tendo em mente o fato de que os outros atores estão fazendo o mesmo. Por outro lado, a lógica da adequação destaca o quanto os atores seguem as regras, sempre preocupados se suas ações são legítimas ou não. As duas lógicas não são necessariamente distintas e nem competem entre si, sendo que, aquilo que é visto como apropriado e também como legítimo, pode afetar os custos possíveis de diferentes ações. Se um curso da ação é visto como extremamente ilegítimo, ele carrega consigo um custo potencial mais alto para aqueles que persistem em agir de maneira autônoma (BARNETT, 2008). Portanto, a partir do exposto, pode-se aferir, de acordo com o Prof. Sebastian Scheerer7, que há sérias análises que convincentemente mostram que o que existe de consenso proibitivo relacionado à cannabis é fruto de um alto poder de coerção exercido pela imposição moral de apenas um ator internacional, os Estados Unidos. Há mais de um século essa política de “stick democracy”8 no controle de narcóticos no mundo contemporâneo tem sido motivo de discussões e debates desordenados que quase nunca mostram-se bem-sucedidos em seus resultados (SCHEERER, 2001). Isso se deve, talvez, ao fato de o significado que os atores dão às 7 Diretor do Instituto de Criminologia da Universidade de Hamburgo, Alemanha, e professor do Departamento de Criminologia 8 Expressão que ganhou notoriedade quando citada por Theodore Roosevelt, ao afirmar que os EUA deveriam falar suavemente e carregar um grande porrete. A imprensa americana da época usava essa expressão para se referir à política de Roosevelt para com os países da América Latina. suas práticas e aos objetos que eles constroem derivam de uma cultura social, e não de crenças particulares ou individuais. Assim, a cultura informa o significado que as pessoas dão às suas ações (BARNETT, 2008). O significado de conceitos tais como segurança, direitos humanos, desenvolvimento, soberania, assim como a própria política de combate à cannabis, pode ter diversos significados, sendo este o caso, tanto os atores estatais como os não estatais possuem interpretações rivais dos significados desses conceitos. Não há unanimidade quanto aos significados desses conceitos, assim, os atores tentam impor o seu significado sobre os demais, para que os mesmos sejam aceitos coletivamente (BARNETT, 2008). Por conta disso, ocorrem desalinhamentos políticos e ideológicos entre Estados fronteiriços, o que eventualmente causa problemas e distúrbios domésticos por conta do que ocorre internamente no Estado vizinho. Como exemplo os Estados Unidos e Canadá, o Brasil e a Argentina, os países que fazem fronteira com a Holanda, e que não adotam uma política tão liberal quanto à holandesa. Por outro lado, o controle do álcool é feito com certa homogeneidade internacionalmente. Com exceção de alguns Estados teocráticos muçulmanos, existe um consenso e uma política restritiva que, apesar de pequenas diferenças relativas à forma que são apresentadas no ordenamento constitucional de cada Estado, conseguem atingir um resultado que é compatível e desejado pelos que comercializam essa substância e permitem que ela seja consumida livremente por maiores, seja de 18 ou de 21 anos (SCHEERER, 2001). Acerca dessas questões, ao menos em termos de forma, Finnemore (1998) analisa três casos de estudo: a adoção da burocracia cientifica política adotada pelos estados depois de 1955; a aceitação de normas de bem estar reguladas pelo governo e a aceitação dos Estados em relação ao que limita sua soberania e economia, permitindo a redistribuição priorizando a produção de valores. Por conta disso, Finnemore argumenta que as normas internacionais promovidas por organizações internacionais podem decisivamente influenciar os princípios nacionais induzindo os Estados a adotarem essas normas em suas políticas nacionais. Antagonicamente ao neo-realismo, Finnemore discute que as mudanças causadas pelos estudos de casos não podem ser explicadas pelo puro interesse nacional na maximização de poder. Elas devem ser explicadas sob a luz do construtivismo com ênfase no papel central das normas na sociedade internacional. Tanto Finnemore quanto Wendt enfatizam a importância do ambiente internacional na formação das identidades dos Estados, enquanto outros construtivistas colocam mais ênfase no ambiente doméstico. Uma forma de entender melhor o cenário atual aqui discutido é tentar entender como as normas internacionais têm efeitos dissimilares em diferentes Estados e, a partir desse ponto, especular se os fatores domésticos são responsáveis por tal variação. (JACKSON e SORENSEN, 2007). A legalização das drogas, especialmente da cannabis sativa, tornou-se uma resposta atraente, seja pela incapacidade ou ineficiência de coerção e proibição. Certo é dizer que, até agora, todas as políticas adotadas foram ineficientes e que é necessário que os Estados rediscutam formas alternativas para alcançar os seus interesses e, ao mesmo tempo, satisfazer a opinião pública. Tanto os interesses dos Estados quanto a satisfação social só poderão ser alcançados por meio de um discurso e de uma política baseada na razão e na coerência (STONE, 2003). A configuração e reconfiguração do mundo político, o interesse do Construtivismo acerca da mudança global se apresenta a partir destes elementos. Barnett fala sobre duas características da mudança global. Em primeiro lugar ele trata da convergência de Estados em formas similares de organizar suas vidas, domésticas e internacionais, e em segundo lugar, como as normas se tornam internacionalizadas e institucionalizadas, em outras palavras, aceitas globalmente a ponto de constranger o que atores estatais e não-estatais fazem e influenciar suas idéias quanto àquilo que é considerado um comportamento legitimo (BARNETT, 2008). 2.1) Estados Unidos da América Tanto a história da proibição da cocaína quanto a da cannabis ressaltam a necessidade dos Estados prestarem mais atenção a fatos, condições e atores além dos estadunidenses. A historiografia convencional da proibição da cannabis nos Estados Unidos destaca a presença e o ativismo de Harry Anslinger em relação ao ato de taxação da cannabis. De qualquer maneira, a proibição doméstica nos Estados Unidos e o desenvolvimento de uma política coercitiva influenciaram internamente outros Estados a reformularem suas próprias políticas em detrimento de diferentes conjunturas sociais, econômicas e religiosas (SCHEERER, 2001). Anslinger tornou-se o comissionário de narcóticos e entorpecentes dos Estados Unidos em 1930, e o ato de taxação da cannabis foi assinado por Roosevelt somente em 1937, porém, a Liga das Nações já havia incluído a planta no regime proibitivo da convenção do ópio no início do ano de 1925. Quando a proibição da cannabis foi colocada em escrutínio em Gênova, a Grã Bretanha e os Países Baixos abstiveram-se. A Alemanha votou a favor da proibição após um acordo com o Egito sobre a exportação de drogas manufaturadas. O único Estado que, em resposta aos resultados negativos da pesquisa feita sobre os efeitos maléficos causados pelo consumo da cannabis, foi Portugal, presumivelmente motivado pelos seus negócios na África. No dia 19 de fevereiro do mesmo ano nove potências votaram a favor e sete contra a moção de incluir a cannabis na convenção do ópio e, conseqüentemente, obrigar os governos dos demais Estados a repassarem tais ordens para seus respectivos ordenamentos nacionais (SCHEERER, 2001). Existe uma forma alternativa de se pensar o conceito de poder. O poder não é apenas a habilidade de um Estado de compelir outro a fazer o que ele deseja. As forças do poder vão além da capacidade material, elas também abarcam a esfera ideológica. Isso pode ser observado na questão da legitimidade, quando Estados, incluindo as grandes potências, buscam a legitimidade. Legitimidade é uma crença de que os atores estão agindo de acordo com e buscando valores da comunidade internacional. Desta forma, quanto maior for a legitimidade, mais fácil será para o ator convencer os demais a cooperar com suas políticas, fato observado na capacidade dos EUA de impor sua política em relação às drogas desde o início do século XX. O contrário também é verdadeiro, quanto menos legitimidade o ator tiver, mais custosa será a ação para ele (BARNETT, 2008). Em Gênova, a princípio, os Estados Unidos não exerceram papel de liderança, pois não eram membros da Liga das Nações. O conselho do comitê realizou suas primeiras três reuniões (sendo a primeira em maio de 1921), sem a participação efetiva dos Estados Unidos, que se juntaram a tempo para a quarta reunião (realizada nem janeiro de 1923). Até então os Estados Unidos não haviam assumido o papel central ordenador dessa discussão, pelo menos, não aparecia na linha de frente dos debates (SCHEERER, 2001). Por sua vez, os principais atores envolvidos nesse debate foram a Itália, o Egito, a África do Sul e a Turquia. Seus interesses sobre a proibição da cannabis no cenário internacional não foram objetos de estudo sistemático o que torna a situação ainda mais contraditória, ao que diz respeito à regulamentação da cannabis, cujas raízes se estendem além do puritanismo e preocupação social (SCHEERER, 2001). As teorias construtivistas aqui usadas permitem o questionamento de assuntos que em princípio, são dados como definidos, assuntos que se apresentam de maneira tão natural para a sociedade a ponto de suas idéias já estarem intrinsecamente socializadas, estigmatizadas ou protegidas de alguma forma por tabus, pré e pós conceitos, assim como acontece quando se remete ao assunto cannabis. A construção social desses fatos dados como certos, faz com que os atores e os próprios indivíduos tomem essas idéias como verdades. O Construtivismo também se preocupa com caminhos alternativos, os quais ele enxerga como contingências, acidentes históricos, intervenções humanas, forças no âmbito material e ideológico que podem levar à mudança do curso da história(BARNETT, 2008). Segundo Wendt (1992), as diferentes crenças e práticas vão gerar padrões divergentes e uma nova organização da política mundial. Rumo ao final do século XIX, a Grã Bretanha sofria forte pressão por parte dos Estados Unidos e por parte da opinião pública mundial por conta da exportação de ópio da Índia para a China, que por aqueles era considerada imoral e estava prestes a se tornar ilícita. Havia também certa preocupação na Casa dos Comuns sobre os efeitos do aumento generalizado do consumo da cannabis Indiana em grande parte do subcontinente. Em resposta a tais demandas dos membros dos Comuns, o governo da majestade britânica enviou uma nota ao governo da Índia pedindo o estabelecimento de uma comissão oficial. Essa comissão produziu um dos mais completos relatórios sobre a cannabis e os motivos de sua proibição. A comissão concluiu que a proibição seria uma infração injustificada à liberdade e um ato questionável ao bem-estar público (SCHEERER, 2001). Mais de 100 Estados enviaram suas delegações para discutirem mais uma vez e reafirmarem suas posições sobre a cocaína e o ópio. Essas discussões estenderam-se até 1921. Até então, nenhum parecer ou observação sobre a cannabis havia sido feito. Em 1924, o representante do Egito, El Guindy manifestou de forma eloqüente suas preocupações concernentes aos perigos e problemas causados pelo Haxixe, um produto derivado da cannabis, e exigiu a inclusão da planta na lista de substâncias proscritas. Decidiu-se então, com o apoio brasileiro, formar uma subcomissão composta por um especialista inglês, um francês, um indiano, um egípcio, um grego e um representante brasileiro, Dr. Pedro Pernambuco. No decorrer dos estudos, os representantes da Grécia, do Egito e do Brasil exigiram que o relatório tivesse o mesmo padrão de controle com a cannabis que o ópio e a cocaína demandavam, ressaltando os perigos da planta. Essa foi a oportunidade que o representante brasileiro teve para contribuir com a proibição internacional da cannabis, quando ele apresenta sua tese comparando a cannabis ao ópio e afirma veementemente que, segundo os cientistas “racistas” que o orientavam, haveriam tantos problemas relacionados com a maconha entre os negros que a ‘planta da loucura’ seria mais perigosa e causaria mais danos do que o ópio no oriente (MILLS, 2003; pg. 152-187). Isso mostra como a estrutura internacional molda as identidades, os interesses e as políticas externas dos Estados, e como, tanto os Estados quanto os atores nãoestatais reproduzem essa estrutura e podem transformá-la. (BARNETT, 2008) A erradicação das drogas era o ponto em comum que fazia com que os Estados no primeiro momento se reunissem em convenções, para que em comum acordo tentassem legislar sobre o tema. O proibicionismo a princípio pareceu ser a via mais eficiente e rápida para o controle das drogas. O padrão de atividades internacionais que sustenta os objetivos elementares da sociedade dos estados ou sociedade internacional é entendido como ordem internacional. Para Hedley Bull (1995), sociedade de Estados ou sociedade internacional possui o mesmo significado. Contudo, sistema internacional é distinto de sociedade internacional. A sociedade internacional pressupõe um sistema internacional, porém, um sistema internacional não pressupõe necessariamente uma sociedade internacional. Isto deve-se ao fato de que estados podem interagir dentro do sistema internacional através de acordos políticos e econômicos, manter contato entre si, sem que haja um verdadeiro compartilhamento de valores, de normas e regras (BULL, 1995). Porém, embora levem em consideração as ações dos outros no momento de calcularem as suas próprias ações, eles podem não ter consciência dos interesses e valores comuns entre si, a despeito de respeitarem algumas regras para o bom funcionamento das instituições. As características de uma sociedade internacional nem sempre são fáceis de serem identificadas dentro de um determinado sistema internacional. Pode haver questionamentos quanto às normas e costumes compartilhados, o que gera instabilidade no comportamento dos atores. Há mudança de ideologia, seja pela mera confirmação de que a política vigente é ineficiente, ou pela necessidade de adequação, à medida que a sociedade se transforma, fruto do desenvolvimento tecnológico e descobertas cientificas (BULL, 1995). “Um mundo livre das drogas, nós podemos” é o slogan de um acordo feito em uma sessão especial da Assembléia Geral das Nações Unidas, em Nova York em 1998. Havia um comprometimento dos países que se alinharam em prol desse tema: rediscutirem-no em dez anos após esse encontro. A questão é que, dez anos após esse encontro, segundo dados divulgados pela Comissão de Narcóticos e Drogas da ONU, as drogas se tornaram mais baratas e mais acessíveis do que antes. Há um consenso sobre a necessidade de um encontro político de alto nível, para que se faça uma revisão e para que se discuta uma nova política, mais justa, mais racional, e que gere uma abordagem mais eficiente no que diz respeito ao controle das drogas e da cannabis sativa.9 O estado da Califórnia permite o consumo para fins terapêuticos, sendo que o comércio oficial para fins recreativos permitiria a Califórnia arrecadar 200 milhões de dólares anualmente. Minnesota, New Hampshire e Rhode Island, onde tramitam em regime de urgência iguais projetos legislativos também pretendem legalizar a planta. Essa atitude política de Schwarzenegger contagiou o partido de esquerda alemão, onde também a crise financeira é a maior desde a reunificação do país, o mesmo considera a opção por razões exclusivamente econômicas (STONE 2003). 2.2) Canadá Sabe-se que a cannabis foi um dos primeiros produtos agrícolas a ser cultivado pelos europeus em solo canadense. Nos séculos XVII e XVIII, grande quantidade de cânhamo (fibra extraída do caule da planta) era necessária para a confecção de velas e cordas para navios de guerra e mercantis europeus. Monarcas olhavam para o Novo Mundo como uma fonte alternativa de cannabis. No inicio do século XVII o Chile enviava cânhamo para a Espanha, a Nova Inglaterra produzia para a Grã-Bretanha e a França por intermédio da “French Royal Warehouses” comprometeu-se a comprar todo cânhamo que os fazendeiros canadenses conseguissem colher. Durante essa época, generosas gratificações eram dadas àqueles fazendeiros que cultivasses a planta, muitas taxas e impostos poderiam ser pagos com o caule da planta e penalidades severas freqüentemente eram aplicadas àqueles fazendeiros que não conseguissem produzir o bastante para atender as necessidades de seus colonizadores. Muitas cidades modernas e regiões receberam seus nomes por causa de suas principais plantações, incluindo Hampshire, Hempsteads e Hamptons. A maior 9 Disponível em http://www.un.org/Depts/dhl/pathfind/social/0909.htm, acesso em 25/05/2010, às 11:27. dificuldade não estava em plantar e colher a planta, e sim em prepará-la para o mercado. Máquinas sofisticadas usadas para separar a fibra do caule só foram inventadas na década de 1920. (KAPLAN,1970) A importância da cannabis foi diminuindo no século XIX, apesar das árvores a princípio não substituírem o cânhamo como fonte de matéria prima para a fabricação de papel, o advento da energia a vapor reduziu a demanda de cânhamo para a fabricação de velas para os navios, além da invenção da máquina de separar a fibra do algodão, que era muito mais simples e rápida do que o processo usado na separação da fibra do cânhamo. Também foi no século XIX o nascimento do primeiro tratado internacional acerca de substâncias psicoativas. Entre os anos de 1840-1900 a cannabis também foi usada medico e terapeuticamente no Canadá, sendo eventualmente encontrada em farmácias, onde eram vendidas com receitas médicas. Enquanto as pessoas nos Estados Unidos foram apresentadas às propriedades psicoativas da cannabis no começo do século XIX pelos imigrantes e etnias que se estabeleceram lá, por meio do contato com outras culturas fora de seu território, não há nenhum registro confiável de uso para outros fins que não médico da cannabis até pelo menos 1930 (GREEN, RALPH, 1975). Prova disso é que entre os anos de 1930-1946 houve somente 25 condenações por posse de cannabis em todo o país (GREEN, MILLER, 1975). Em 1933, o detetive L.E Bowery do departamento de polícia de Witchita afirmou que não se poderia negar o fato de que o hábito de fumar a flor da cannabis estivesse comumente presente e se tornando prática comum pelos jovens nas cidades. Mais tarde, em meados da década de 1960, o uso lúdico da cannabis já havia se estabelecido em muitas universidades e entre alunos secundaristas10. (ABEL,p. 126) Somente na última metade da década de 1960 o consumo no Canadá assemelhou-se ao dos Estados Unidos. Em 1962, a Polícia Montada Real canadense registrou somente 20 casos que tinham alguma ligação com a cannabis. Em 1968 o número de casos relacionados à cannabis subiu para mais de 2300, e no inicio da década de 1972 foi para algo em torno de 12000 condenações no Canadá. (GREEN e MILLER, 1975). Até 1960, as leis de imigração canadense proibiam imigrantes de outros países – exceto Grã-Bretanha, EUA, e Europa de se estabelecerem no Canadá. Por conta 10 Isso pode ser relacionado ao envolvimento da América com a guerra do Vietnam, assim como o surgimento do movimento hippie e suas vertentes psicodélicas, o crescimento dos jornais e tablóides alternativos, e a atenção que a mídia estava dando as drogas.10 disso, até essa época, houve pouco contato dos canadenses com outras culturas que fizessem uso da planta para fins além dos terapêuticos ao final da década de 60, o governo canadense adotou uma política mais tolerante, multicultural, que permitia e encorajava a imigração e a manutenção de vários aspectos culturais, étnicos que os imigrantes traziam em sua bagagem. Os imigrantes estavam livres para expressarem e desfrutarem dos seus costumes, religiões, comidas, roupas e recreações, e principalmente, associarem uns aos outros para manterem suas práticas, isso não mais seria visto como anti-canadense ou antipatriótico (KYMLICKA, 1995). De qualquer modo, o aumento do uso lúdico da cannabis nas décadas de 1960 e 1970 ilustra claramente o cenário doméstico social que estava começando a se deteriorar e novos valores morais começavam a permear o assunto cannabis e seu consumo na sociedade. Um movimento transnacional de uma gama de valores estava ocorrendo no Canadá, em detrimento das leis que legitimavam ou proibiam o consumo da planta.11 No início da década de 1970, Le Dain Commission foi indicada para começar um estudo completo e factual sobre o uso e os efeitos da cannabis. Ele concluiu que as leis de proibição canadense tinham servido somente para criar uma subcultura com pouco respeito à lei e à sua execução. Além disso, a capacidade de execução dessas leis atravancava o sistema judiciário e fornecia base para a fundação de organizações criminosas. Com isso, o uso lúdico e recreativo da planta continuou a crescer vertiginosamente, especialmente entre os jovens na década de 1970. Em 1978, outro documento foi anexado pela comissão responsável pelas leis relacionadas ao cultivo, comercialização e uso da planta que recomendava mais uma vez que a planta fosse descriminalizada e legalizada.12 Apesar do relatório de 197813 advogar a favor da descriminalização e legalização da cannabis, em 1979, o Governo Liberal decidiu assinar a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas das Nações Unidas(1971). O recém eleito Regan-Bush e sua administração influenciaram incisivamente para que essa decisão fosse tomada, para que, assim, o Canadá também pudesse corroborar em sua campanha “guerra 11 http://www.druglibrary.org/schaffer/Library/studies/cu/cu60. acesso em 25/05/2010, às 13:54 Ibid 13 De acordo com a organização Druglibrary, em 1979, sob a liderança do então Primeiro Ministro Joe Clark, o governo progressista conservador de 1979-1980 percebeu que havia a pretensão de uma reforma no código civil ao que dizia respeito a cannabis, mas o Governo Conservador foi derrotado antes que pudessem fazer essas revisões. Um grande numero de estudos regionais foi conduzido tendo como amostra diferentes populações através da década de 1970 no Canadá. Esses estudos mostraram que o consume naquela época entre os estudantes estava se aproximando rapidamente de 25%, tendo seu pico no ano de 1979, totalizando 30% dos estudantes entre a sétima serie e o ensino superior. 12 contra as drogas”. Assinando a convenção, automaticamente o governo canadense interrompeu qualquer pretensão de descriminalização e legalização da cannabis. Esse alinhamento político diminuiu as chances de conflitos com o seu vizinho. De acordo com M. Kearney , da faculdade de antropologia da Califórnia, embora a aceitação ou tolerância em relação ao consumo da cannabis no Canadá possa ser atribuído a vários fatores, 1990 também pode ser descrita como a década de imigração canadense. Assim, exatamente no final de 1960 meados de 1970, o aumento permissivo acerca do uso da cannabis poderia ser potencialmente ligado às teorias transnacionais de movimentos de valores culturais, o que expunha os canadenses a um crescente aumento da exposição e aceitação de diferentes culturas e valores, como o uso recreativo e terapêutico da cannabis.14 Kearney sugere que a implosão global acontece quando imigrantes mudam-se de suas casas para outras nações e carregam com eles suas práticas culturais que podem passar por transformações transnacionais, à medida que eles se adaptam às novas culturas. Apesar disso, em 1997 o governo canadense passou a adotar a política do Controlled Drugs and Substances Act a qual previamente teve sua performance criticada pelo The Canadian Police Association and The Canadian Bar Association em função de seus resultados insatisfatórios na guerra contra as drogas.15 Com a fraca performance de uma lei que tinha um conteúdo antagônico com a realidade doméstica, e com toda sua mentalidade permissiva, os cinco anos seguintes seriam um cenário de discussões fervorosas acerca da planta. Vários canadenses, nesse período de controvérsia, dirigiram-se à polícia e aos tribunais desafiando o que eles chamavam de leis antidrogas anacrônicas, com o pedido de permissão para poder consumir a planta terapeuticamente, e em muitos casos a decisão foi a favor dos usuários.16 Consecutivamente, talvez conseqüentemente, a corte ordenou ao governo federal que esclarecesse as leis relativas ao uso medicinal da cannabis, e em abril de 2001, o governo federal divulgou sua solução proposta para o uso terapêutico da 14 http://www.uam-antropologia.info/texto_kerney.pdf acesso em 24/05/2010, às 15:44. http://www.druglibrary.org/schaffer/Library/studies/cu/cu60.html acesso em 24/05/2010, às 17:00. 16 Um dos casos mais significativos é o de Terrance Parker, que levou o governo canadense à adoção de um sistema regulador que permitiu o uso medicinal da planta em 2001. Parker, que usa a cannabis como uma forma de controlar suas convulsões epiléticas, havia sido preso inúmeras vezes desde 1987 por porte de cannabis. Quando ele foi preso mais uma vez, em Ontario, em 1997, o juiz determinou que as pessoas devem ter acesso aos tratamentos médicos necessários, sem precisarem temer a prisão.16 Dessa forma, no dia 10 de dezembro de 1997, Parker se tornou o primeiro canadense a ser isento de acusação e condenação por posse e cultivo de cannabis. Mais tarde, quando houve apelação para o caso, a Corte de Apelação de Ontário sustentou o posicionamento. (http://www.ontariocourts.on.ca/decisions/2000/july/parker.htm) 15 planta. A regulação permitia acesso à planta a todos que dependiam dos processos e condições médicas envolvidas. Ou seja, o requerimento para o uso terapêutico variava de acordo com os sintomas relatados pelos pacientes e autorização médica17. Paralelamente aos requerimentos do uso terapêutico, algumas religiões reivindicaram o direito de poderem fazer o uso da planta, alegando que a liberdade religiosa e as restrições para o consumo da planta feriam diretamente os direitos dos cidadãos. Em Ontário, a igreja Church of the Universe foi uma das que começaram o debate acerca do assunto. Eles afirmam que a proibição era inconstitucional, pois se opunha ao uso sacramental de uma planta sagrada.18 A discussão sobre o uso religioso da planta não obteve tanto sucesso quanto as alegações feitas para o uso terapêutico.19 A posição legal da cannabis está sob disputa no Canadá, de forma que as Cortes Superiores e Apelativas em Ontário repetidamente declararam que as leis canadenses acerca do assunto são fracas e ineficientes. Contudo, os desafios históricos às leis federais não resultaram na deleção dos artigos apropriados do código penal canadense e do Controlled Drugs and Substances Act o cultivo de cannabis no Canadá ainda é ilegal, com exceções ao uso terapêutico. De qualquer maneira, o uso lúdico da cannabis pelo público em geral é amplamente tolerado, e vigorosas campanhas de legalização estão em andamento por toda nação. Várias pesquisas desde 2003 foram feitas e pode-se concluir através delas que a grande maioria dos canadenses concorda que o uso da cannabis para fins recreativos deve ser legalizado.20 2.3) Países da Europa Um dos principais desafios dos países europeus em relação às drogas é conseguir definir ações possíveis e viáveis dentro da União Européia. Acima de todas as possibilidades, existem fatores que regem e limitam o comportamento dos Estados. Alguns deles apresentados no Treaty of Rome and the Single European Act, e no Tratado de Maastricht. Nesses dois casos, ambos elicitam a luta contra a adição em drogas em termos de saúde pública (Artigo 129), além da cooperação nas áreas da 17 Amina Ali and Owen Wood. The Need for Weed: Medical Marijuana. CBC News. July 2001. Disponível em: www.cbc.ca/news/indepth/background/medical_marijuana.html. 18 http://www.druglibrary.org/olsen/rastafari/op2000Guam26.html acesso em 25/05/2010, às 12:07. 19 http://www.420magazine.com/forums/canada/87286-canada-marijuana-laws.html acesso em 26/05/2010, às 13:14. 20 http://www.angusreid.com/polls/view/30688/canadian_majority_would_legalize_marijuana acesso em 26/05/2010, às 14:15. justiça e nas questões internas. Mesmo com todo aparato de poder e administrativo da U.E., a dialética faz com que seja também importante salientar a existência dos obstáculos criados pelos próprios tratados, assinados ou que, eventualmente, serão assinados, vide a forma que o estabelecimento de uma ordem pode afetar a soberania interna de um Estado (ESTIEVENART, 1995). Em todos os países da Europa, independentemente da forma com que a sociedade, ou o Estado, lidam com o assunto, os usuários de drogas ilícitas são, simultaneamente, objetos de repressão direta ou indireta, e/ou foco de medidas médico-sociais. O problema a ser considerado pode não depender, a princípio, de um estudo histórico e social, e sim, de uma abordagem que possibilita uma visão mais futurista com base no que está acontecendo no exato momento. Georges Estievenart (1995) afirma que se trata da ausência de uma tipologia de objetivos, o que torna impossível racionalizar políticas e medidas de controle e prevenção e eventualmente identificar os problemas e prioridades. Seja para reduzir o uso abusivo das drogas, prevenir overdoses, reduzir a proliferação de doenças transmissíveis, reduzir a incidência de formação de quadrilhas, enfraquecer a máfia ou facilitar o acesso ao tratamento, a escolha da política a ser adotada pode determinar abordagens diferentes e até mesmo contraditórias acerca do objetivo aqui discutido. Não se deve afirmar que todos esses objetivos estão simultaneamente dentro do mesmo princípio que motiva e possibilita a criação de medidas legislativas. O que existe é uma imensa nebulosidade que dificulta interpretações acerca do assunto, além de contradições dentro e fora dos blocos regionais EUA e Europa (ESTIEVENART, 1995). A falta de uma definição minuciosa de objetivos impede que se façam considerações específicas sobre as várias formas de abordagem do fenômeno, tornando mais difícil alcançar decisões regionais que tenham bases calcadas em escolhas operacionais e racionais. Exemplo disso é que, em alguns Estados, procedimentos criminais são usados para levar o usuário a ter contato com algum tipo de ajuda terapêutica (ESTIEVENART, 1995). Talvez essa dificuldade seja justificada baseando-se no fato de que a essência do Construtivismo é a consciência humana e seu papel na vida internacional (BARNETT, 2008). Esse foco na consciência humana sugere um compromisso com o Idealismo e o Holismo. O Idealismo diz que o papel das idéias na política mundial tem que ser levado a sério, pois o mundo é definido tanto por forças materiais quanto ideológicas, idéias essas sociais, e não individuais. Aquilo que o indivíduo pensa é moldado por idéias estabelecidas coletivamente em formas de conhecimento, símbolos, linguagens e regras. O Idealismo de forma alguma rejeita a realidade material, pelo contrário, sua premissa é de que o significado e construção dessa realidade material é dependente das idéias e da interpretação (BARNETT, 2008). Partindo desse pressuposto então, pluralidade de molduras e formas sociais contribui significantemente na desordem política internacional ao que diz respeito a uma política de regulamentação da cannabis. 2.3) Brasil No início do século XX, meados de 1910, a comunidade científica brasileira começou a publicar artigos em congressos internacionais associando o comportamento “natural” da população originária da África com os efeitos psicoativos da cannabis. Cientistas como Rodrigues Dória e Francisco Iglesias afirmavam em seus artigos e em congressos internacionais que os efeitos da cannabis sativa causariam degeneração moral e demência, compulsão e vício, e que aqueles que a consumissem sofreriam de loucura, psicose e se tornariam assassinos. Esses cientistas afirmavam que a forma que os africanos naturalmente comportavam-se era caracterizada pela ignorância, má vontade e preguiça para o trabalho com tendência a criminalidade. (ADIALA, 2006) Idéias essas que foram difundidas doméstica e internacionalmente, uma vez que essas atendiam a interesses não somente da ala mais conservadora da sociedade, mas também de grupos e elites que competiam diretamente com os produtos derivados da cannabis como óleo, tecido, um produto muito similar ao plástico. Além da indústria farmacêutica e tabagista, que na época tinha um forte mercado em crescimento, tanto nos Estados Unidos, quanto na Grã Bretanha. (ADIALA, 2006) O processo de construção desse argumento científico, que era muito mais calcado em interesses do que em evidências empíricas, serviu como ferramenta de dominação americana em relação à população que migrava do México para os EUA, e outras minorias que também migravam em busca de melhores condições econômicas. Essas minorias traziam consigo sua bagagem cultural: crenças, religiões, costumes e vícios. Para reforçar ainda mais o estigma criado sobre aqueles que consumiam a erva, o governo americano começou a introduzir o assunto mais a fundo no meio científico de forma pré-estipulada por eles próprios e pejorativamente referiam-se à planta como “o veneno social” que deveria ser interpretado como uma psicose hetero-tóxica de terminação em “ismo” como cannabismo ou maconhismo (ADIALA, 2006) O Construtivismo também pode ser utilizado para identificar a maneira como a identidade molda o interesse estatal. Assim, segundo Barnett (2008), a identidade norte-americana molda os interesses nacionais, e então a estrutura do sistema internacional apresenta suas estratégias para buscar esses interesses. Aprofundando o pensamento, o contexto cultural é capaz de formar não apenas as identidades e interesses dos atores, mas as próprias estratégias que eles usam para buscar seus interesses. 2.4) Ambiente internacional Parece haver uma brecha que nunca foi fechada entre as convenções das Nações Unidas, a própria interpretação da organização sobre essas convenções, e a realidade de vários Estados, que respondem de forma autônoma, ou pelo menos não cadenciada, ao crescente uso lícito e ilícito da cannabis para propósitos terapêuticos ou recreacionais. Todas as teorias, ou pelo menos, a maioria das teorias que falam sobre regimes, normas, regras e valores internacionais estão ligadas pela crença de que a existência de um regime internacional deve moldar as expectativas em relação ao comportamento dos membros (BUZAN, 2004). A atual posição legal é determinada por três convenções internacionais, a convenção de 1961 (Single Convention on Narcotic Drugs), sendo emendada em 1972, a Convenção sobre Drogas Psicotrópicas, realizada em 1971, e por fim a Convenção Contra o Trafico de Drogas Ilícitas, Drogas Narcóticas e Substâncias Psicoativas (Convention Against Illicit Traffic in Narcotic Drugs and Psychotropic Substances) realizada em 1988. (UNDCP, 2002). A Convenção de 1961 limita a produção, manufatura, exportação, importação, distribuição, negociação e posse de substâncias controladas, ela também permite o uso de substâncias controladas para fins medicinais e científicos, o que significa que a prescrição de heroína, morfina, metadonina para viciados em heroína está dentro da convenção (UNDCP, 2002). De qualquer maneira, a convenção de 1988, especificamente determinou que a posse de drogas ilícitas receitadas por médicos fosse transformada em ofensa criminal sob a legislação doméstica dos Estados. Embora inicialmente obedientes, muitos Estados, principalmente europeus, assumiram duas posturas antagônicas às resoluções convencionais. Ou introduziam sanções administrativas para posse de drogas ilícitas, ou simplesmente decidiram não endurecer a lei a esse respeito (UNDCP, 2002). Existe uma forma de reorientação de alguns atores, consequente mudança da sua percepção em relação aos fatos relacionados a esse assunto, o que conduz à pavimentação de um caminho e à formação de uma nova realidade social. Há então o surgimento de uma nova discussão e postura em relação às políticas adotadas em muitos Estados signatários de acordos que determina abordagens mais duras e repressivas, começa-se a consolidar a discussão sobre os benefícios de uma possível descriminalização e legalização da planta. As convenções das Nações Unidas prejudicaram as pesquisas relacionadas às drogas e agora enfrentam algumas contradições e inconsistências, conforme apresenta o artigo Making drug control ‘fit for purpose’: Building on the UNGASS decade Report by the Executive Director of the United Nations Office on Drugs and Crime, as a contribution to the review of twentieth Special Session of the General Assembly, March 7, 2008. É necessário resolver o conflito entre as convenções internacionais e certas práticas de redução aos danos causados pelo consumo de drogas. Uma vez que a necessidade de controlar a epidemia causada pelo vírus HIV nas décadas de 1980 e 1990 exigiu maiores cuidados das organizações internacionais, o que justificou, de certa maneira, um descompasso por parte dos Estados, no que diz respeito a uma política mais eficiente e homogênea às regras estabelecidas há meio século, antes do aparecimento do vírus da AIDS (UNDCP, 2002). Em um memorando confidencial não publicado, preparado a pedidos da INCB, (The I n t e r n a t i o n a l N a r c o t i c s C o n t r o l B o a r d ) em 2002, peritos legais do UNODC (United Nations on Drugs and Crimes), concluíram que21 pode-se até mesmo discutir que os tratados de controles das drogas, como eles se apresentam hoje, se apresentam fora de sincronia com a realidade, uma vez que, quando esses foram ratificados não poderiam prever as novas ameaças22. O ponto chave é identificar como o conhecimento que se configura em símbolos, regras e conceitos molda a forma com a qual os indivíduos constroem e interpretam o 21 E/INCB/2002/W.13/SS.5, Flexibility of treaty provisions as regards harm reduction approaches, prepared by the Legal Affairs Section of the UNDCP for the 75th session of the INCB, September 30, 2002. 22 Report of the International Narcotics Control Board for 2001, United Nations, New York 2002, par. 227. Report of the International Narcotics Control Board for 2008, United Nations, New York 2009, par. 29. seu mundo. Diferente do Realismo, para o qual existe uma realidade fixa e imutável, o Construtivismo apresenta o argumento de que não existe uma realidade única e estabelecida, pelo contrário, os indivíduos são capazes, por meio de conhecimento histórico e cultural, de construir e dar significado à realidade (BARNETT,2008). Conforme o Report of the International Narcotics Control Board for 2001, o segundo argumento é de que a obrigatoriedade de sanção penal por posse, venda e cultivo (incluindo pequenas quantidades para uso pessoal) é um outro obstáculo para se obter um melhor equilíbrio entre proteção e repressão. Mediante isso, os Estados confrontam-se com assuntos relacionados à violência e a situação do sistema carcerário, e começaram a redução gradual da ilicitude do cultivo. Como parte da resolução e prevenção de conflitos, calcado no respeito aos direitos humanos, vários Estados estão assumindo uma postura reformista23, é o caso da Argentina, Canadá, México, Bélgica, Austrália, Holanda, Portugal, Espanha, etc. O terceiro argumento é que países que desejam experimentar a regularização do mercado da Cannabis, usando como framework a convenção da Organização Mundial da Saúde sobre o controle de tabaco, deveriam ser permitidos fazê-lo, tendo em vista que pesquisas científicas feitas pela OMC embasam o fato de ser menos prejudicial do que as duas drogas previamente citadas. Estados que acreditam que a total proibição da cannabis seja a melhor forma de proteger seu povo, devem, por sua vez, continuar com sua política, como em alguns países Islâmicos continuam a banir o álcool. Em 1921, autoridades legislativas brasileiras, por meio da lei federal nº 4.294, alinharam-se ideologicamente à política estadunidense, aderindo-se dessa forma aos acordos feitos nas Nações Unidas sobre repressão e controle de substâncias proscritas e a burocratização dessa política. A lei penalizava o comerciante, porém tratava os consumidores como vítimas e doentes. Embora houvesse pressão por parte das autoridades relacionadas ao aparelho de repressão estatal, o assunto só seria rediscutido em 1934, quando uma nova constituição foi promulgada24. Um ponto fundamental a ser destacado nessa questão é que mesmo as grandes potências freqüentemente sentem a necessidade de alterar suas políticas para que estas sejam vistas como legítimas. Poder também vai além da capacidade de compelir os demais a mudar o seu comportamento, ele envolve conhecimento, o estabelecimento 23 h t t p : / / w w w . t n i . o r g / d r u g s r e f o r m - d o c s / u n 3 0 0 9 0 2 . p d f acesso em 27/05/2010, às 02:15. 24 http://www.giesp.ffch.ufba.br/pesquisadores/sergio/tx_01.pdf acesso em 27/05/2010, às 23:14. de significados, e a própria construção de identidades. Para o Construtivismo, as estruturas têm a capacidade de gerar impacto causal, por possibilitarem certos tipos de comportamentos e assim gerar tendências no sistema internacional (BARNETT, 2008). O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), estima que 4% dos adultos do mundo – algo em torno de 162 milhões de pessoas – usam cannabis para fins lúdicos pelo menos uma vez durante o ano. Tal dado faz com que ela seja a droga ilícita mais amplamente consumida em todo mundo. Em alguns países, mais da metade da população jovem já experimentou, e apesar desses altos índices de consumo, alguns fatos e verdades sobre a planta ainda permanecem obscuros, tanto ao que diz respeito aos seus efeitos, quanto à política e o lobby que escondem-se na sombra das razões sociais25. De acordo com Peter Cohen, diretor do primeiro programa de pesquisas da Universiteit van Amsterdam e diretor do CEDRO (Center for Drug Research), desde 1996, enquanto diferentes políticas públicas tentam lidar com assunto via proibicionismo, drogas botânicas psicotrópicas têm sido desenvolvidas e potencializadas, em detrimento da política severa e restritiva que os Estados inutilmente tentam impor26 (COHEN, 1999). Um novo processo de formação de uma política que vem se moldando na parte leste do bloco europeu abre discussão para outros Estados que já, ou ainda não desenvolveram políticas próprias baseadas na realidade interna, sem se esquecerem da corrente transnacionalização cultural, política, social e econômica, que os afeta direta e indiretamente (COHEN, 1999). Embora haja diferença na forma com que a América do Norte e Europa abordem o assunto, com exceção dos Países Baixos, Dinamarca e Espanha, as diferenças não são tão significativas assim. Esses outros países que são exceção já ganharam alguma experiência real com uma política não proibitiva da cannabis, em contra partida à política proibitiva na maior parte do resto do mundo. (COHEN, 1999) A Organização Mundial de Saúde (WHO, em inglês) criou a agência “WHOEurope”, que se localiza em Copenhagen, que, até agora, pelo menos até onde se concentram os pontos relacionados à ortodoxia proibicionista tradicional, tem se mantido moderada, mas por outro lado, não demonstra muito interesse em encontrar 25 http://www.unodc.org/unodc/en/frontpage/why-should-we-care-about-cannabis.html, acesso em 27/05/2010 às 03:14. 26 http://www.cedro-uva.org/cohen/ acesso em 27/05/2010, às 03:50. novas formas mais eficientes de controle que vão além do que já foi feito. As Nações Unidas mantêm sua burocracia na Europa por intermédio das organizações UNICRI (The United Nations Interregional Crime and Justice Research Institute) em Roma, UNDCP (The United Nations International Drug Control Programme) em Viena, e o novo programa de abuso das drogas da Organização Mundial da Saúde em (PSA) em Gênova, além da Interpol, localizada em Lyon, que também produz constante pressão e fortalece a corrente proibicionista27. Muitos países europeus estão silenciosamente articulando-se internamente e descobrindo seus próprios caminhos para lidar com a situação que há séculos faz parte da sombra do contexto. Seja como a Holanda que assume que novas formas para lidar com o assunto são urgentes, ou como Portugal que silenciosamente molda suas vontades com suas possibilidades. Uma opção seria acionar no caso da Europa, os princípios da União Européia de subsidiária, cujas decisões são tomadas nos níveis mais próximos daqueles que são afetados. Muitos europeus argumentam sobre a repatriação das leis em relação às drogas, para que então, como o álcool e o tabaco, cada Estado pudesse criar leis que fossem apropriadas para sua população, normas e princípios legais28. Isso reforça o argumento de Peter Katzenstein (1996), que escreveu um livro sobre o Japão onde desenvolveu um argumento construtivista sobre o papel das normas domésticas na esfera da segurança nacional. Segundo o autor, a teorização sistêmica é inadequada porque ela não discute a questão de como a constituição interna dos Estados afeta seu comportamento no sistema internacional. Katzenstein analisa a estrutura doméstica normativa e como ela influencia a identidade, interesse e política do Estado. Dessa forma, o problema de hoje não é mais aquele um dia discutido por E.H. Carr, um dos que evitavam a esterilidade do realismo e a ingenuidade do liberalismo. A presente escolha é mais complexa. Pode-se se manter intelectualmente ligado ao mundo realista de estados que tendem sempre à balança de poder em um sistema multipolar. Pode-se focar analiticamente nas instituições liberais e nos resultados eficientes que as instituições podem ter na prospecção e coordenação das políticas 27 http://www.unodc.org/unodc/en/commissions/UNGASS/01-Preparations.html acesso em 27/05/2010, às 13:24. 28 http://www.unodc.org/unodc/en/commissions/UNGASS/01-Preparations.html acesso em 27/05/2010, às 04:14. entre os Estados. Ou pode-se reconhecer a validade parcial dessas visões e ampliar a perspectiva analítica para concluir que assim como a cultura, as identidades são fatores causais importantes que ajudam a definir os interesses e a constituir os atores que moldam a política de segurança nacional e a insegurança internacional. (KATZENSTEIN, 1996). Interesses econômicos, moralismo, racismo, xenofobia, seletividade penal e preocupação com a saúde pública foram os pilares que historicamente sustentaram as articulações políticas e diplomáticas que resultaram no comportamento atual desorganizado e ineficaz das políticas Estatais, ao que diz respeito à proibição, legalização e descriminalização das drogas. Saber disso é o primeiro passo para que um novo debate seja criado, calcado em realismo científico empírico, observação e interesses sociais, evitando assim políticas estéreis, sensacionalistas e tendenciosas, que, por décadas, dominaram as discussões. (COSTA 2005) As estruturas sociais são definidas, em parte, pelo entendimento, expectativas e ou conhecimento compartilhados. Esses constituem os atores em uma situação e a natureza de suas relações, tendam elas à cooperação ou ao conflito. O dilema da segurança, por exemplo, é uma estrutura social composta de entendimentos intersubjetivos nos quais os Estados são tão pouco confiáveis que eles geralmente fazem as piores suposições em relação às intenções do outro, e como resultado, definem seus interesses em termos de auto-ajuda. (WENDT, 1992) Conclusão Os principais acontecimentos históricos referentes à cannabis foram analisados à luz do construtivismo. Assim, elementos políticos e sociais, como imposição moral, formação de opinião pública – doméstica e internacional –, manipulação e criação de leis que temporalmente atenderam e atendem a interesses de grupos seletos, a falta de unanimidade acerca de temas como direitos humanos, segurança e interesse nacional, a informação que disso se gerou conjuntamente com as respectivas análises, entre outras questões, permitiram obter resultados que autorizam o pesquisador a apresentar um determinado conjunto de conclusões. Inicialmente, a repatriação da política acerca das drogas pode ser a forma mais eficiente de mudar a política proibicionista global, como acordado nas convenções. As convenções não devem ser sacras, mas devem ser vistas como instrumentos atualizados e cheios de inconsistências e, por isso, suscetíveis às mudanças e reestruturações, como afirmado em um documento sobre drogas das Nações Unidas em 1997.29 Independentemente da capacidade que o ambiente internacional tem no processo de formação cultural e até mesmo na formação das identidades de um Estado, o mesmo deve agir de acordo com seus próprios interesses, e isso inclui, em grande parte, questões econômicas liberais. Como pode ser inferido a partir do seguinte artigo, a legalização e regulamentação taxativa sobre a Cannabis em alguns Estados podem fazer uma enorme diferença no balanço final da economia doméstica, aumentando significantemente sua receita. De acordo com o centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, existem 1,1 bilhões de consumidores usuários de tabaco no mundo, e que 3,5 milhões de pessoas morrem todos os anos como conseqüência de seu uso. Sabe-se também que o álcool provoca setecentas e cinqüenta mil mortes todos os anos, além de enormes danos causados à sociedade. No que se refere à cannabis, tal avaliação se torna impossível pela falta de informações e dados confiáveis. É indiscutível, entretanto, que o seu consumo provoca inúmeros problemas à saúde e se seu consumo aumentasse no mesmo nível do consumo do álcool ou do tabaco, certamente o impacto na saúde pública seria significativo. É impossível, com algum grau de precisão, prever o tamanho de tal impacto.30 De qualquer maneira, todos os estudos científicos concordam que existem boas razões para dizer que a cannabis não se compara ao álcool e ao tabaco em relação aos danos e riscos à saúde pública e à saúde dos indivíduos. É o que também os autores do artigo intitulado A comparative appraisal of the health and psychological consequences of alcohol, cannabis, nicotine and opiate use, divulgado pela OMS em 28 de agosto de 1995, afirmam. Antônio Maria Costa, diretor executivo da UNODC, afirmou que na verdade há um espírito reformista pairando no ar, que torna as convenções pertinentes aos propósitos e as adaptam a uma realidade que é consideravelmente diferente daquela da época em que elas foram convocadas. Como existe um maquinário multilateral que pode ser adaptado às convenções já disponíveis, tudo que os estados precisam é, 29 “Laws – and even the International Conventions – are not written in stone. They can be changed when the democratic will of the nations so wishes it” http://www.tni.org/archives/archives_jelsma_athens 30 Boletim CEBRID (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas) número 32, março de 1998. primeiramente, renovar o comprometimento da cooperação e do diálogo e dividir as responsabilidades; segundo, desenvolver um comprometimento de base dessa reforma fundamentado em evidências empíricas; e, finalmente, em terceiro, colocar em andamento ações concretas que dão apoio às mencionadas políticas, indo além da mera retórica e pronunciamento. Bibliografia ABEL Ernest. Marihuana: The First Twelve Thousand Years, Nova York. 1980. 308p BLICKMAN, Tom e JELSMA, Martin. Drug policy reform in practice – Experiences with alternatives in Europe and the US. Transnational Institute – TNI BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica. Brasília: EDUNB, IPRI; São Paulo: IOESP, 2002. 361p. BUZAN, Berry. 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