Jean Pierre Kirsch Jr - Alinhamento e Legalização

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Jean Pierre Kirsch Jr - Alinhamento e Legalização
Centro Universitário de Belo Horizonte - UniBH
Jean Pierre Kirsch Jr.
ALINHAMENTO E LEGALIZAÇÃO: CANNABIS SATIVA
OS PROBLEMAS E LIMITAÇÕES PARA UMA POLÍTICA
INTERNACIONAL COMUM
Belo Horizonte
Junho de 2010
Jean Pierre Kirsch Jr.
ALINHAMENTO E LEGALIZAÇÃO: CANNABIS SATIVA
OS PROBLEMAS E LIMITAÇÕES PARA UMA POLÍTICA
INTERNACIONAL COMUM
Monografia apresentada ao Centro Universitário de Belo Horizonte
– UniBH como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em
Relações Internacionais.
Orientador: Professor Leando Rangel
Belo Horizonte
Junho de 2010
Resumo
O presente trabalho pretende discutir, em uma perspectiva internacional, as diversas políticas
existentes para tratamento da questão da cannabis sativa. Para tanto, ele se divide em três
fases. A primeira parte do artigo consiste em um breve histórico sobre o plantio e diferentes
fins de uma planta que, nos últimos cem anos, vem causando controvérsia política em função
de decisões de cunho muito mais político e econômico do que social. A segunda parte
considera o papel dos principais atores internacionais envolvidos, além do desalinhamento
político relativo ao comércio e consumo de cannabis, terapêutico e lúdico, analisando o
fenômeno, à luz do construtivismo, e de forma estrutural e holística, para explicar como tal
situação vem se configurando contemporaneamente. E por fim, uma solução será proposta
com base no que foi discorrido no presente artigo.
Palavras-chave: cannabis, desalinhamento político, controvérsias, consumo terapêutico e
lúdico, construtivismo.
Abstract
This paper intends to discuss in an international perspective, the variety of existing policies
for addressing the issue of cannabis. For this, it is divided into three phases. The first part of
the paper is a brief history of the plantation and the different uses of the plant that, in the last a
hundred years has caused political controversy due to decisions which have been more
political and economic than social. The second part considers the role of key international
players involved, besides the political misalignment on trade and consumption of cannabis,
therapeutic and recreational, analyzing the phenomenon in the light of constructivism, with a
structural and holistic approach, in order to explain how this situation has been built itself
contemporaneously. And finally, a solution is proposed based on what has been discoursed
throughout this article.
Key-words: cannabis, political misalignment,
recreational consumption, constructivism
controversies,
therapeutic
and
Alinhamento e Legalização: Cannabis Sativa
Os problemas e limitações para uma política internacional comum
Jean Pierre Kirsch Jr.1
Leandro de Alencar Rangel2
Introdução
Este artigo pretende analisar a conjuntura política internacional e a forma com
que os Estados administram o alinhamento político acerca da proibição e legalização
da cannabis e se existe a possibilidade da sociedade internacional chegar a uma decisão
comum, uma vez que o mesmo assunto tem sido tema de diversos tratados e objeto de
polêmica durante os últimos 100 anos. À medida que a política internacional é regida
por alguns Estados mais importantes e afetada por todo conjunto que constitui o
sistema, a escolha dos seguintes países que serão analisados é feita a partir desse
princípio.
Políticas estatais antagônicas e controversas serão discutidas, assim como um
breve histórico acerca do objeto de estudo abordado no seguinte artigo será
apresentado a respeito de cada país ou região, para que haja mais eficiência na
compreensão à luz dos argumentos teóricos construtivistas usados aqui como
ferramenta de análise. Essa abordagem histórica se preocupará em mostrar como a
cannabis foi difundida, usada, tanto terapeuticamente quanto para fins lúdicos,
marginalizada e/ou, em certos Estados, incorporada como algo a ser regulamentado e
estudado afim de que haja benefícios sociais e econômicos.
Estados com políticas opostas sejam elas proibitivas ou tolerantes, dividem suas
fronteiras. Essa dicotomia ideológica e territorial faz com que esses Estados que
adotam uma postura mais conservadora enrijeçam ainda mais seu comportamento
doméstico. O seguinte artigo discorrerá brevemente sobre esse fenômeno e mostrará
como esse relacionamento afeta domesticamente a política dos dois países.
1
2
Graduando em Relações Internacionais do Centro Universitário UNI-BH
Professor Orientador do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário UNI-BH
A cannabis, ao que se refere à legalização, proibição, tolerância e
descriminalização, tem causado controvérsias e descompasso entre as políticas estatais
no cenário internacional, uma vez que, em detrimento dos acordos internacionais
assinados, cada Estado parece agir de maneira autônoma, conforme seus próprios
interesses e capacidades. Será esse um comportamento fruto de imposições, restrições
e intervenções exógenas e que, mal sucedidas, fazem com que alguns países se
comportem de forma dúbia e contraditória?
O artigo analisará, à luz do Construtivismo, se o processo de intercâmbio
cultural, ideológico e econômico está contribuindo para a adoção de uma política
comum ou não, considerando os tratados, convenções e acordos mais importantes
acerca do tema concatenando fatos à análise proposta.
1) Histórico
1.1) Primeiras impressões
Baseado nos mais antigos relatos, a cannabis sempre foi importante para o
comércio e bem-estar das sociedades, de acordo com o professor Ernest L. Abel
(1980). A fibra do cânhamo tem sido usada para a fabricação de tecido, papel, cordas e
armas, como o arco e flecha, remédio, e droga psicoativa para fins lúdicos, além de ser
usada em rituais e fins religiosos. Suas sementes são usadas na fabricação de sabão,
óleo para lamparinas, tintas, alimento para pássaros e temperos domésticos.
Conforme Abel (1980), o relato mais antigo que se tem do uso da cannabis
remete-se a aproximadamente 10.000 anos atrás, em Taiwan. A planta também parece
ter sido usada na China, no século II antes de Cristo, para a confecção de roupas,
sapatos, arco e flechas, e por suas propriedades anestésicas. Suas propriedades
psicoativas foram, por muito tempo, usadas na Índia em rituais e cerimônias religiosas,
e era o ingrediente principal de três porções: bhang, ganja e charas. Seu uso foi
documentado na Ásia menor – na Turquia – aproximadamente 1000 anos antes de
Cristo. Tanto os romanos quanto os gregos documentaram sua eficácia enquanto
propriedade medicinal, principalmente no tratamento de dor de ouvido.
Seu uso, em particular no Oriente Próximo, deve ser detalhado pela sua
influência na formação do “misperception” (JERVIS, 1976)3 ao que diz respeito às
propriedades e efeitos da planta. Entre os séculos XI e XIII d.C, uma facção conhecida
como “Assassinos”, seguidores de Hasan-ibn-Sabah dominou o Oriente Próximo
promovendo um reinado de terror. Marco Pólo relatou que os Assassinos consumiam
drogas, porém ele não identificou essa droga como sendo Haxixe (sub-produto da
Cannabis), sendo assim, a droga, a principio, não ganhou o status de responsável por
impulsioná-los a serem violentos e perversos. De qualquer maneira, no século XIX,
um número de escritores europeus afirmou que a palavra “Assassino” era uma
derivação de Haxixe. Um link entre os dois fatos distintos, por conta disso, foi forjado,
associando a cannabis à violência; essa associação repetiu-se no século XX nos textos
anti-cannabis escritos por Harry Anslinger, antigo chefe do FBI (ABEL, 1980).
Na Idade Média a cannabis era usada tanto pelos seus efeitos psicoativos, quanto
pelo seu potencial comercial. Seu uso como uma droga capaz de alterar o estado
mental foi disseminado por todo Egito e parece datar por volta do século XIII. Na
Europa medieval o uso da Cannabis aparece como remédio particularmente usado no
tratamento de dor de dente, reumatismo e em partos de crianças. Seu papel em rituais
de feitiçaria resultou em um decreto papal no século XV que condenou a bruxaria
assim como o uso da planta supostamente usada em reuniões satânicas. Na realidade, a
importância de seu uso na Idade Média e na época de expansão colonial se deu na
fabricação de cordas e velas para navios. A Itália era o principal produtor, o que era
particularmente importante para o estabelecimento de cidades-estado como Viena, que
era detentora do poder marítimo (ABEL, 1980).
A importância histórica da cannabis novamente é evidenciada por um decreto
emitido por Henrique VIII em 1533, que estipulava que, para cada sessenta hequitares
de terra arável que um fazendeiro possuísse na Grã Bretanha, um quarto deveria ser
destinado à plantação de cannabis. A penalidade para quem não cumprisse seria três
chibatadas e quatro centavos (ABEL, 1980, p. 72-3). A Cannabis era claramente um
ingrediente vital para possibilitar o poder marítimo aspirante a explorar as riquezas do
novo mundo. Apesar das ameaças, os britânicos tiveram pouco sucesso no estímulo da
plantação de cannabis domesticamente, sendo mais bem-sucedidos em suas colônias
americanas.
3
Jervis contesta a posição da escolha racional nas relações internacionais, alegando que esta pode
prejudicar a percepção precisa do mundo real do jogo de modelos teóricos.
1.2) Período expansionista
Durante o século XVII, a cannabis indiana era a base dos acordos comerciais
entre os colonos americanos e, tão grande era a necessidade na marinha britânica de se
equipar, que James I assinou um decreto real, que instruía os colonos a aumentarem a
produção de cannabis para que pudessem atender às necessidades vigentes dos
dominadores ingleses (HINDMARCH, 1972).
O interesse na cannabis e em outras drogas foi estimulado por diários e jornais de
viajantes que descreviam seu uso na África, Ásia Menor e Índia, e por relatos de
soldados em exércitos coloniais que a experimentaram recreativamente enquanto
estavam em suas missões. Um dos primeiros relatos ocidentais sobre os efeitos da
cannabis foi de Garcia Da Orta, publicado em 1563, que descrevia os efeitos do Bhang
(uma poção ou bebida contendo cannabis). Essa publicação foi seguida por vários
outros livros publicados por aventureiros europeus, nessa mesma época do século XVI.
Esses trabalhos não foram importantes para a divulgação do que se sabia sobre as
propriedades psicoativas da planta, e sim para popularizar o “misperception” sobre a
droga. Por exemplo, a crença coletiva de que os efeitos de se consumir opium e bhang
eram idênticos pode ser datada dessa mesma época. Prova disso, segundo Abel (1980),
as mesmas informações aparecem nas obras do holandês John Huyghen van
Lisnchoten (1884)4 e do português Fray Sebastian. A ligação entre a cannabis e o
comportamento violento e perigoso também datam aproximadamente dessa mesma
época, particularmente dos escritos do orientalista Silvestre de Sacy (ABEL, 1980).
A expansão colonial e as guerras coloniais também trouxeram consigo um novo
entendimento na Europa do uso medicinal da planta (ABEL, 1980). Existem relatos de
que, por volta do século XVII, as propriedades medicinais da planta eram bem
conhecidas pelos profissionais da medicina e em 1682, a semente de cannabis foi
listada no “New London Dispensatory” (agência farmacológica britânica), como
remédio para tosse e icterícia (ABEL, 1980). A política que os Estados adotaram em
relação à cannabis foi socialmente construída, o que levou à formação de uma
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The voyage of John Huyghen van Linschoten to the East Indies : from the old English translation of
1598 : the first book, containing his description of the East (1885)
realidade material a qual moldou a forma que os atores estatais e não-Estatais passaram
a enxergá-la nesse momento.
Além disso, o fato da planta ter caído no gosto dos estudantes universitários,
escritores, artistas, tanto na Inglaterra quanto no Egito, contribuiu ainda mais para sua
popularização. Doces turcos feitos a partir da flor da planta, a qual é rica em suas
propriedades psicoativas, eram consumidos livremente nas ruas e universidades. No
século XIX, o haxixe foi usado pelo Clube Francês do Haxixe, que, entre outros, tinha
como membros Theophile Gautier, Alexandre Dumas, Victor Hugo e Eugene
Delacroix. Um pouco mais popular do que entre os ingleses, a planta era consumida e
acreditada por dar a eles novas experiências e inspirações que transporiam em obras
literárias, pois afirmavam que a planta tinha o poder de aumentar a criatividade e
potencializar a capacidade de criação (ABEL, 1980).
1.2) Período moderno
Aprofundando a análise histórica, outro importante aspecto da influência colonial
na disseminação da cannabis no oeste europeu pode ser visto no trabalho de W.B.
O´Shaughnessy (1839)5. Trata-se de um médico irlandês enviado à Índia o qual leva os
créditos pela introdução da cannabis na medicina ocidental. A Índia usava e fazia
experimentos com a planta para tratar de uma vasta gama de doenças, incluindo
reumatismo, cólera, tétano e epilepsia. O doutor estava entusiasmado e deslumbrado
com a eficácia da planta a ponto de convertê-la em uma forma mais apropriada para o
uso medicinal. Seu extrato foi amplamente prescrito em partos de crianças, enxaqueca,
insônia, tosse e tratamento de abstinência de ópio (ABEL, 1980).
De qualquer forma, o uso da cannabis no Ocidente para fins terapêuticos não se
estendeu por muito tempo depois da primeira década do século XX. Os profissionais
da medicina voltaram suas atenções para outras drogas e outros métodos de
administrá-las. A ciência da química orgânica possibilitou que drogas como a morfina
e a cocaína fossem isoladas, assim possibilitando a síntese de drogas como a heroína
(MUSTO, 1991). A seringa hipodérmica foi inventada em 1845 e possibilitou uma
5
O'Shaughnessy, W.B., 1839a. On the Preparations of the Indian Hemp, or Gunjah,
Transactions of the Medical and Physical Society of Bengal, 8, 1838-40, 421-461. Reprinted in
Mikuriya, 1973, 3-30.
administração mais eficiente de drogas. A morfina foi isolada em 1803 e
diferentemente da cannabis, ela era solúvel em água e injetável (ABEL, 1980).
O crescimento da indústria farmacêutica possibilitou a propaganda, distribuição e
produção em massa dessas novas drogas (MUSTO, 1991). Além do fato de que o
potencial efeito da cannabis comercialmente disponível no mercado variava
consideravelmente em relação à administração da mesma quantidade devido à
qualidade da droga (de acordo com a região e condições de plantação), o que veio a ser
percebido em pacientes que demonstravam reações adversas ao uso da mesma
(MANDERSON, 1993).
Em contraste a isso, posteriormente, drogas como morfina e a heroína foram
entusiasticamente abraçadas por médicos por causa dos seus efeitos de ação rápida e
por proverem alívio eficaz e rápido de dores; contudo, o uso esporádico da cannabis
para propósitos terapêuticos medicinais ainda permaneceu. Até o final da década de
1930 a indústria farmacêutica (Parke Davis, Eli Lilly e Squibb) comercializava
fórmulas cujos ingredientes eram extraídos da cannabis, para o tratamento de asma e
tensão causada por dores. Ela permaneceu na farmacologia estadunidense até 1942, e
na Austrália foi usada na produção de tinturas até metade da década de 1960
(CASWELL, 1992).
1.2) Ambiente contemporâneo
O interesse médico-científico pela cannabis era latente e relevante até pouco
tempo atrás. Nos Estados Unidos a atenção para com o assunto está sendo retomada,
como também a discussão das possibilidades do seu uso terapêutico para os
tratamentos dos efeitos colaterais nos tratamentos de câncer (quimioterapias), além de
servir para reduzir a pressão intra-ocular em pacientes que sofrem de glaucoma.
Paralelamente, alguns debates acerca do assunto também acontecem na mesma época
na Austrália e no Canadá (CASWELL, 1992).
Se o consumo não terapêutico da cannabis no final do século XIX, começo do
século XX, foi tido como um problema, isto se deu em relação ao uso da planta pelos
povos colonizados e minorias étnicas6. De qualquer maneira, em relação aos povos
colonizados, a atitude das potências ocidentais foi um tanto incoerente. Por exemplo, a
6
Pois esses eram sempre associados a violência e criminalidade.
cannabis foi amplamente usada na Índia e no Egito – ambos sob os auspícios da Grã
Bretanha – no Egito, oficiais locais e regulamentadores estrangeiros, incluindo os
turcos, tentaram reprimir o seu uso no século XIX. Os britânicos, que nada ganhavam
com os lucros derivados da cannabis egípcia, apoiaram essa decisão (SCHEERER,
2001).
Já na Índia, onde o governo britânico parecia ter, inicialmente, pouca
preocupação em relação ao uso da cannabis entre os indianos, os ingleses não
ostentavam essa complacência a troco de nada. Eles tinham sido generosamente
favorecidos financeiramente desde 1798, quando o governo licenciou a manufatura e a
venda de drogas provindas da cannabis e recebia uma considerável fonte de lucros
desse comércio. Em detrimento do lucro que a Grã Bretanha tinha com a produção e
comercialização da cannabis indiana, pressões endógenas e exógenas contribuíram
para a associação da cannabis com o aumento da violência, doenças e mazelas sociais.
Essas
pressões
eram
majoritariamente
exercidas
por
grupos
indianos
de
administradores locais e seus parceiros comerciais na Grã Bretanha, o que resultou no
estabelecimento de uma comissão de drogas na Índia (Indian Hemp Drugs
Commission) em 1893. A diminuição e perda de lucros caso a cannabis fosse banida
foi a razão principal para que a comissão considerasse que a proibição era
injustificada, uma vez que não havia evidências suficientes para provar os efeitos
maléficos e mazelas causadas pela planta, reforçando o importante papel da droga nas
religiões e cultura local, incluindo a vida social no sub-continente (SCHEERER,
2001).
O uso da cannabis pelas colônias africanas era ignorado pelas potências
coloniais. De qualquer forma, a África do Sul preocupava-se com o uso da cannabis
entre os indianos trazidos para trabalhar na colônia. Em 1870 uma lei entrou em vigor
proibindo os indianos de fumarem ou possuírem a planta. Nos Estados Unidos o
assunto remetia-se a grupos étnicos e minorias. Esses eram sempre associados à
criminalidade e violência. Há relatos de que os primeiros casos de uso recreativo da
cannabis nos Estados Unidos foi feito por refugiados mexicanos fugindo da revolução
no sudoeste do estado, a Revolução de 1910. As primeiras leis americanas,
contemplando esse tipo de comportamento, são datadas dessa época e dizem respeito a
esses estados. Futuramente seu uso foi disseminado nas comunidades negras. Por volta
de 1937 sua proibição vigorava em todo país (SCHEERER, 2001).
2) Questões teórico-analíticas
Entende-se, em uma perspectiva construtivista, que o holismo, também conhecido
por estruturacionismo, é fenômeno social e não pode ser decomposto às propriedades de
atores já existentes. Desta forma, o Holismo reconhece que os agentes possuem uma
parcela de autonomia e suas interações auxiliam na construção, reprodução e
transformação dessas estruturas. A observação central se coloca na construção social da
realidade. A natureza dos atores, suas identidades e interesses também são socialmente
construídos. Assim, os atores são produzidos e criados por seu ambiente cultural
(BARNETT, 2008).
Sendo assim, a construção social da realidade também molda aquilo que é visto
como ação legítima, aquilo que é considerado aceitável e não aceitável. A distinção
entre regras constitutivas e regulativas estabelece um paralelo com a distinção
conceitual entre a lógica da conseqüência e a lógica da adequação. A lógica da
conseqüência atribui ação aos custos antecipados e aos benefícios, tendo em mente o
fato de que os outros atores estão fazendo o mesmo. Por outro lado, a lógica da
adequação destaca o quanto os atores seguem as regras, sempre preocupados se suas
ações são legítimas ou não. As duas lógicas não são necessariamente distintas e nem
competem entre si, sendo que, aquilo que é visto como apropriado e também como
legítimo, pode afetar os custos possíveis de diferentes ações. Se um curso da ação é
visto como extremamente ilegítimo, ele carrega consigo um custo potencial mais alto
para aqueles que persistem em agir de maneira autônoma (BARNETT, 2008).
Portanto, a partir do exposto, pode-se aferir, de acordo com o Prof. Sebastian
Scheerer7, que há sérias análises que convincentemente mostram que o que existe de
consenso proibitivo relacionado à cannabis é fruto de um alto poder de coerção
exercido pela imposição moral de apenas um ator internacional, os Estados Unidos.
Há mais de um século essa política de “stick democracy”8 no controle de
narcóticos no mundo contemporâneo tem sido motivo de discussões e debates
desordenados que quase nunca mostram-se bem-sucedidos em seus resultados
(SCHEERER, 2001). Isso se deve, talvez, ao fato de o significado que os atores dão às
7
Diretor do Instituto de Criminologia da Universidade de Hamburgo, Alemanha, e professor do
Departamento de Criminologia
8
Expressão que ganhou notoriedade quando citada por Theodore Roosevelt, ao afirmar que os EUA
deveriam falar suavemente e carregar um grande porrete. A imprensa americana da época usava essa
expressão para se referir à política de Roosevelt para com os países da América Latina.
suas práticas e aos objetos que eles constroem derivam de uma cultura social, e não de
crenças particulares ou individuais. Assim, a cultura informa o significado que as
pessoas dão às suas ações (BARNETT, 2008).
O
significado
de
conceitos
tais
como
segurança,
direitos
humanos,
desenvolvimento, soberania, assim como a própria política de combate à cannabis,
pode ter diversos significados, sendo este o caso, tanto os atores estatais como os não
estatais possuem interpretações rivais dos significados desses conceitos. Não há
unanimidade quanto aos significados desses conceitos, assim, os atores tentam impor o
seu significado sobre os demais, para que os mesmos sejam aceitos coletivamente
(BARNETT, 2008).
Por conta disso, ocorrem desalinhamentos políticos e ideológicos entre Estados
fronteiriços, o que eventualmente causa problemas e distúrbios domésticos por conta
do que ocorre internamente no Estado vizinho. Como exemplo os Estados Unidos e
Canadá, o Brasil e a Argentina, os países que fazem fronteira com a Holanda, e que
não adotam uma política tão liberal quanto à holandesa. Por outro lado, o controle do
álcool é feito com certa homogeneidade internacionalmente. Com exceção de alguns
Estados teocráticos muçulmanos, existe um consenso e uma política restritiva que,
apesar de pequenas diferenças relativas à forma que são apresentadas no ordenamento
constitucional de cada Estado, conseguem atingir um resultado que é compatível e
desejado pelos que comercializam essa substância e permitem que ela seja consumida
livremente por maiores, seja de 18 ou de 21 anos (SCHEERER, 2001).
Acerca dessas questões, ao menos em termos de forma, Finnemore (1998) analisa
três casos de estudo: a adoção da burocracia cientifica política adotada pelos estados
depois de 1955; a aceitação de normas de bem estar reguladas pelo governo e a
aceitação dos Estados em relação ao que limita sua soberania e economia, permitindo a
redistribuição priorizando a produção de valores. Por conta disso, Finnemore
argumenta que as normas internacionais promovidas por organizações internacionais
podem decisivamente influenciar os princípios nacionais induzindo os Estados a
adotarem essas normas em suas políticas nacionais. Antagonicamente ao neo-realismo,
Finnemore discute que as mudanças causadas pelos estudos de casos não podem ser
explicadas pelo puro interesse nacional na maximização de poder. Elas devem ser
explicadas sob a luz do construtivismo com ênfase no papel central das normas na
sociedade internacional.
Tanto Finnemore quanto Wendt enfatizam a importância do ambiente
internacional na formação das identidades dos Estados, enquanto outros construtivistas
colocam mais ênfase no ambiente doméstico. Uma forma de entender melhor o cenário
atual aqui discutido é tentar entender como as normas internacionais têm efeitos
dissimilares em diferentes Estados e, a partir desse ponto, especular se os fatores
domésticos são responsáveis por tal variação. (JACKSON e SORENSEN, 2007).
A legalização das drogas, especialmente da cannabis sativa, tornou-se uma
resposta atraente, seja pela incapacidade ou ineficiência de coerção e proibição. Certo
é dizer que, até agora, todas as políticas adotadas foram ineficientes e que é necessário
que os Estados rediscutam formas alternativas para alcançar os seus interesses e, ao
mesmo tempo, satisfazer a opinião pública. Tanto os interesses dos Estados quanto a
satisfação social só poderão ser alcançados por meio de um discurso e de uma política
baseada na razão e na coerência (STONE, 2003).
A configuração e reconfiguração do mundo político, o interesse do
Construtivismo acerca da mudança global se apresenta a partir destes elementos.
Barnett fala sobre duas características da mudança global. Em primeiro lugar ele trata
da convergência de Estados em formas similares de organizar suas vidas, domésticas e
internacionais, e em segundo lugar, como as normas se tornam internacionalizadas e
institucionalizadas, em outras palavras, aceitas globalmente a ponto de constranger o
que atores estatais e não-estatais fazem e influenciar suas idéias quanto àquilo que é
considerado um comportamento legitimo (BARNETT, 2008).
2.1) Estados Unidos da América
Tanto a história da proibição da cocaína quanto a da cannabis ressaltam a
necessidade dos Estados prestarem mais atenção a fatos, condições e atores além dos
estadunidenses. A historiografia convencional da proibição da cannabis nos Estados
Unidos destaca a presença e o ativismo de Harry Anslinger em relação ao ato de
taxação da cannabis. De qualquer maneira, a proibição doméstica nos Estados Unidos
e o desenvolvimento de uma política coercitiva influenciaram internamente outros
Estados a reformularem suas próprias políticas em detrimento de diferentes
conjunturas sociais, econômicas e religiosas (SCHEERER, 2001).
Anslinger tornou-se o comissionário de narcóticos e entorpecentes dos Estados
Unidos em 1930, e o ato de taxação da cannabis foi assinado por Roosevelt somente
em 1937, porém, a Liga das Nações já havia incluído a planta no regime proibitivo da
convenção do ópio no início do ano de 1925. Quando a proibição da cannabis foi
colocada em escrutínio em Gênova, a Grã Bretanha e os Países Baixos abstiveram-se.
A Alemanha votou a favor da proibição após um acordo com o Egito sobre a
exportação de drogas manufaturadas. O único Estado que, em resposta aos resultados
negativos da pesquisa feita sobre os efeitos maléficos causados pelo consumo da
cannabis, foi Portugal, presumivelmente motivado pelos seus negócios na África. No
dia 19 de fevereiro do mesmo ano nove potências votaram a favor e sete contra a
moção de incluir a cannabis na convenção do ópio e, conseqüentemente, obrigar os
governos dos demais Estados a repassarem tais ordens para seus respectivos
ordenamentos nacionais (SCHEERER, 2001).
Existe uma forma alternativa de se pensar o conceito de poder. O poder não é
apenas a habilidade de um Estado de compelir outro a fazer o que ele deseja. As forças
do poder vão além da capacidade material, elas também abarcam a esfera ideológica.
Isso pode ser observado na questão da legitimidade, quando Estados, incluindo as
grandes potências, buscam a legitimidade. Legitimidade é uma crença de que os atores
estão agindo de acordo com e buscando valores da comunidade internacional. Desta
forma, quanto maior for a legitimidade, mais fácil será para o ator convencer os demais
a cooperar com suas políticas, fato observado na capacidade dos EUA de impor sua
política em relação às drogas desde o início do século XX. O contrário também é
verdadeiro, quanto menos legitimidade o ator tiver, mais custosa será a ação para ele
(BARNETT, 2008).
Em Gênova, a princípio, os Estados Unidos não exerceram papel de liderança,
pois não eram membros da Liga das Nações. O conselho do comitê realizou suas
primeiras três reuniões (sendo a primeira em maio de 1921), sem a participação efetiva
dos Estados Unidos, que se juntaram a tempo para a quarta reunião (realizada nem
janeiro de 1923). Até então os Estados Unidos não haviam assumido o papel central
ordenador dessa discussão, pelo menos, não aparecia na linha de frente dos debates
(SCHEERER, 2001).
Por sua vez, os principais atores envolvidos nesse debate foram a Itália, o Egito,
a África do Sul e a Turquia. Seus interesses sobre a proibição da cannabis no cenário
internacional não foram objetos de estudo sistemático o que torna a situação ainda
mais contraditória, ao que diz respeito à regulamentação da cannabis, cujas raízes se
estendem além do puritanismo e preocupação social (SCHEERER, 2001).
As teorias construtivistas aqui usadas permitem o questionamento de assuntos
que em princípio, são dados como definidos, assuntos que se apresentam de maneira
tão natural para a sociedade a ponto de suas idéias já estarem intrinsecamente
socializadas, estigmatizadas ou protegidas de alguma forma por tabus, pré e pós
conceitos, assim como acontece quando se remete ao assunto cannabis. A construção
social desses fatos dados como certos, faz com que os atores e os próprios indivíduos
tomem essas idéias como verdades. O Construtivismo também se preocupa com
caminhos alternativos, os quais ele enxerga como contingências, acidentes históricos,
intervenções humanas, forças no âmbito material e ideológico que podem levar à
mudança do curso da história(BARNETT, 2008). Segundo Wendt (1992), as diferentes
crenças e práticas vão gerar padrões divergentes e uma nova organização da política
mundial.
Rumo ao final do século XIX, a Grã Bretanha sofria forte pressão por parte dos
Estados Unidos e por parte da opinião pública mundial por conta da exportação de
ópio da Índia para a China, que por aqueles era considerada imoral e estava prestes a se
tornar ilícita. Havia também certa preocupação na Casa dos Comuns sobre os efeitos
do aumento generalizado do consumo da cannabis Indiana em grande parte do
subcontinente. Em resposta a tais demandas dos membros dos Comuns, o governo da
majestade britânica enviou uma nota ao governo da Índia pedindo o estabelecimento
de uma comissão oficial. Essa comissão produziu um dos mais completos relatórios
sobre a cannabis e os motivos de sua proibição. A comissão concluiu que a proibição
seria uma infração injustificada à liberdade e um ato questionável ao bem-estar público
(SCHEERER, 2001).
Mais de 100 Estados enviaram suas delegações para discutirem mais uma vez e
reafirmarem suas posições sobre a cocaína e o ópio. Essas discussões estenderam-se
até 1921. Até então, nenhum parecer ou observação sobre a cannabis havia sido feito.
Em 1924, o representante do Egito, El Guindy manifestou de forma eloqüente suas
preocupações concernentes aos perigos e problemas causados pelo Haxixe, um produto
derivado da cannabis, e exigiu a inclusão da planta na lista de substâncias proscritas.
Decidiu-se então, com o apoio brasileiro, formar uma subcomissão composta por um
especialista inglês, um francês, um indiano, um egípcio, um grego e um representante
brasileiro, Dr. Pedro Pernambuco. No decorrer dos estudos, os representantes da
Grécia, do Egito e do Brasil exigiram que o relatório tivesse o mesmo padrão de
controle com a cannabis que o ópio e a cocaína demandavam, ressaltando os perigos da
planta. Essa foi a oportunidade que o representante brasileiro teve para contribuir com
a proibição internacional da cannabis, quando ele apresenta sua tese comparando a
cannabis ao ópio e afirma veementemente que, segundo os cientistas “racistas” que o
orientavam, haveriam tantos problemas relacionados com a maconha entre os negros
que a ‘planta da loucura’ seria mais perigosa e causaria mais danos do que o ópio no
oriente (MILLS, 2003; pg. 152-187).
Isso mostra como a estrutura internacional molda as identidades, os interesses e
as políticas externas dos Estados, e como, tanto os Estados quanto os atores nãoestatais reproduzem essa estrutura e podem transformá-la. (BARNETT, 2008)
A erradicação das drogas era o ponto em comum que fazia com que os Estados
no primeiro momento se reunissem em convenções, para que em comum acordo
tentassem legislar sobre o tema. O proibicionismo a princípio pareceu ser a via mais
eficiente e rápida para o controle das drogas. O padrão de atividades internacionais que
sustenta os objetivos elementares da sociedade dos estados ou sociedade internacional
é entendido como ordem internacional. Para Hedley Bull (1995), sociedade de Estados
ou sociedade internacional possui o mesmo significado. Contudo, sistema
internacional é distinto de sociedade internacional. A sociedade internacional
pressupõe um sistema internacional, porém, um sistema internacional não pressupõe
necessariamente uma sociedade internacional. Isto deve-se ao fato de que estados
podem interagir dentro do sistema internacional através de acordos políticos e
econômicos, manter contato entre si, sem que haja um verdadeiro compartilhamento de
valores, de normas e regras (BULL, 1995).
Porém, embora levem em consideração as ações dos outros no momento de
calcularem as suas próprias ações, eles podem não ter consciência dos interesses e
valores comuns entre si, a despeito de respeitarem algumas regras para o bom
funcionamento das instituições. As características de uma sociedade internacional nem
sempre são fáceis de serem identificadas dentro de um determinado sistema
internacional. Pode haver questionamentos
quanto às normas e costumes
compartilhados, o que gera instabilidade no comportamento dos atores. Há mudança de
ideologia, seja pela mera confirmação de que a política vigente é ineficiente, ou pela
necessidade de adequação, à medida que a sociedade se transforma, fruto do
desenvolvimento tecnológico e descobertas cientificas (BULL, 1995).
“Um mundo livre das drogas, nós podemos” é o slogan de um acordo feito em
uma sessão especial da Assembléia Geral das Nações Unidas, em Nova York em 1998.
Havia um comprometimento dos países que se alinharam em prol desse tema:
rediscutirem-no em dez anos após esse encontro. A questão é que, dez anos após esse
encontro, segundo dados divulgados pela Comissão de Narcóticos e Drogas da ONU,
as drogas se tornaram mais baratas e mais acessíveis do que antes. Há um consenso
sobre a necessidade de um encontro político de alto nível, para que se faça uma revisão
e para que se discuta uma nova política, mais justa, mais racional, e que gere uma
abordagem mais eficiente no que diz respeito ao controle das drogas e da cannabis
sativa.9
O estado da Califórnia permite o consumo para fins terapêuticos, sendo que o
comércio oficial para fins recreativos permitiria a Califórnia arrecadar 200 milhões de
dólares anualmente. Minnesota, New Hampshire e Rhode Island, onde tramitam em
regime de urgência iguais projetos legislativos também pretendem legalizar a planta.
Essa atitude política de Schwarzenegger contagiou o partido de esquerda alemão, onde
também a crise financeira é a maior desde a reunificação do país, o mesmo considera a
opção por razões exclusivamente econômicas (STONE 2003).
2.2) Canadá
Sabe-se que a cannabis foi um dos primeiros produtos agrícolas a ser cultivado
pelos europeus em solo canadense. Nos séculos XVII e XVIII, grande quantidade de
cânhamo (fibra extraída do caule da planta) era necessária para a confecção de velas e
cordas para navios de guerra e mercantis europeus. Monarcas olhavam para o Novo
Mundo como uma fonte alternativa de cannabis. No inicio do século XVII o Chile
enviava cânhamo para a Espanha, a Nova Inglaterra produzia para a Grã-Bretanha e a
França por intermédio da “French Royal Warehouses” comprometeu-se a comprar
todo cânhamo que os fazendeiros canadenses conseguissem colher.
Durante essa época, generosas gratificações eram dadas àqueles fazendeiros
que cultivasses a planta, muitas taxas e impostos poderiam ser pagos com o caule da
planta e penalidades severas freqüentemente eram aplicadas àqueles fazendeiros que
não conseguissem produzir o bastante para atender as necessidades de seus
colonizadores. Muitas cidades modernas e regiões receberam seus nomes por causa de
suas principais plantações, incluindo Hampshire, Hempsteads e Hamptons. A maior
9
Disponível em http://www.un.org/Depts/dhl/pathfind/social/0909.htm, acesso em 25/05/2010, às 11:27.
dificuldade não estava em plantar e colher a planta, e sim em prepará-la para o
mercado. Máquinas sofisticadas usadas para separar a fibra do caule só foram
inventadas na década de 1920. (KAPLAN,1970)
A importância da cannabis foi diminuindo no século XIX, apesar das árvores a
princípio não substituírem o cânhamo como fonte de matéria prima para a fabricação
de papel, o advento da energia a vapor reduziu a demanda de cânhamo para a
fabricação de velas para os navios, além da invenção da máquina de separar a fibra do
algodão, que era muito mais simples e rápida do que o processo usado na separação da
fibra do cânhamo. Também foi no século XIX o nascimento do primeiro tratado
internacional acerca de substâncias psicoativas. Entre os anos de 1840-1900 a cannabis
também foi usada medico e terapeuticamente no Canadá, sendo eventualmente
encontrada em farmácias, onde eram vendidas com receitas médicas. Enquanto as
pessoas nos Estados Unidos foram apresentadas às propriedades psicoativas da
cannabis no começo do século XIX pelos imigrantes e etnias que se estabeleceram lá,
por meio do contato com outras culturas fora de seu território, não há nenhum registro
confiável de uso para outros fins que não médico da cannabis até pelo menos 1930
(GREEN, RALPH, 1975). Prova disso é que entre os anos de 1930-1946 houve
somente 25 condenações por posse de cannabis em todo o país (GREEN, MILLER,
1975). Em 1933, o detetive L.E Bowery do departamento de polícia de Witchita
afirmou que não se poderia negar o fato de que o hábito de fumar a flor da cannabis
estivesse comumente presente e se tornando prática comum pelos jovens nas cidades.
Mais tarde, em meados da década de 1960, o uso lúdico da cannabis já havia se
estabelecido em muitas universidades e entre alunos secundaristas10. (ABEL,p. 126)
Somente na última metade da década de 1960 o consumo no Canadá
assemelhou-se ao dos Estados Unidos. Em 1962, a Polícia Montada Real canadense
registrou somente 20 casos que tinham alguma ligação com a cannabis. Em 1968 o
número de casos relacionados à cannabis subiu para mais de 2300, e no inicio da
década de 1972 foi para algo em torno de 12000 condenações no Canadá. (GREEN e
MILLER, 1975).
Até 1960, as leis de imigração canadense proibiam imigrantes de outros países
– exceto Grã-Bretanha, EUA, e Europa de se estabelecerem no Canadá. Por conta
10
Isso pode ser relacionado ao envolvimento da América com a guerra do Vietnam, assim como o
surgimento do movimento hippie e suas vertentes psicodélicas, o crescimento dos jornais e tablóides
alternativos, e a atenção que a mídia estava dando as drogas.10
disso, até essa época, houve pouco contato dos canadenses com outras culturas que
fizessem uso da planta para fins além dos terapêuticos ao final da década de 60, o
governo canadense adotou uma política mais tolerante, multicultural, que permitia e
encorajava a imigração e a manutenção de vários aspectos culturais, étnicos que os
imigrantes traziam em sua bagagem. Os imigrantes estavam livres para expressarem e
desfrutarem dos seus costumes, religiões, comidas, roupas e recreações, e
principalmente, associarem uns aos outros para manterem suas práticas, isso não mais
seria visto como anti-canadense ou antipatriótico (KYMLICKA, 1995). De qualquer
modo, o aumento do uso lúdico da cannabis nas décadas de 1960 e 1970 ilustra
claramente o cenário doméstico social que estava começando a se deteriorar e novos
valores morais começavam a permear o assunto cannabis e seu consumo na sociedade.
Um movimento transnacional de uma gama de valores estava ocorrendo no Canadá,
em detrimento das leis que legitimavam ou proibiam o consumo da planta.11
No início da década de 1970, Le Dain Commission foi indicada para começar
um estudo completo e factual sobre o uso e os efeitos da cannabis. Ele concluiu que as
leis de proibição canadense tinham servido somente para criar uma subcultura com
pouco respeito à lei e à sua execução. Além disso, a capacidade de execução dessas
leis atravancava o sistema judiciário e fornecia base para a fundação de organizações
criminosas. Com isso, o uso lúdico e recreativo da planta continuou a crescer
vertiginosamente, especialmente entre os jovens na década de 1970. Em 1978, outro
documento foi anexado pela comissão responsável pelas leis relacionadas ao cultivo,
comercialização e uso da planta que recomendava mais uma vez que a planta fosse
descriminalizada e legalizada.12
Apesar do relatório de 197813 advogar a favor da descriminalização e
legalização da cannabis, em 1979, o Governo Liberal decidiu assinar a Convenção
sobre Substâncias Psicotrópicas das Nações Unidas(1971). O recém eleito Regan-Bush
e sua administração influenciaram incisivamente para que essa decisão fosse tomada,
para que, assim, o Canadá também pudesse corroborar em sua campanha “guerra
11
http://www.druglibrary.org/schaffer/Library/studies/cu/cu60. acesso em 25/05/2010, às 13:54
Ibid
13
De acordo com a organização Druglibrary, em 1979, sob a liderança do então Primeiro Ministro Joe
Clark, o governo progressista conservador de 1979-1980 percebeu que havia a pretensão de uma reforma
no código civil ao que dizia respeito a cannabis, mas o Governo Conservador foi derrotado antes que
pudessem fazer essas revisões. Um grande numero de estudos regionais foi conduzido tendo como
amostra diferentes populações através da década de 1970 no Canadá. Esses estudos mostraram que o
consume naquela época entre os estudantes estava se aproximando rapidamente de 25%, tendo seu pico
no ano de 1979, totalizando 30% dos estudantes entre a sétima serie e o ensino superior.
12
contra as drogas”. Assinando a convenção, automaticamente o governo canadense
interrompeu qualquer pretensão de descriminalização e legalização da cannabis. Esse
alinhamento político diminuiu as chances de conflitos com o seu vizinho.
De acordo com M. Kearney , da faculdade de antropologia da Califórnia,
embora a aceitação ou tolerância em relação ao consumo da cannabis no Canadá possa
ser atribuído a vários fatores, 1990 também pode ser descrita como a década de
imigração canadense. Assim, exatamente no final de 1960 meados de 1970, o aumento
permissivo acerca do uso da cannabis poderia ser potencialmente ligado às teorias
transnacionais de movimentos de valores culturais, o que expunha os canadenses a um
crescente aumento da exposição e aceitação de diferentes culturas e valores, como o
uso recreativo e terapêutico da cannabis.14 Kearney sugere que a implosão global
acontece quando imigrantes mudam-se de suas casas para outras nações e carregam
com eles suas práticas culturais que podem passar por transformações transnacionais, à
medida que eles se adaptam às novas culturas.
Apesar disso, em 1997 o governo canadense passou a adotar a política do
Controlled Drugs and Substances Act a qual previamente teve sua performance
criticada pelo The Canadian Police Association and The Canadian Bar Association em
função de seus resultados insatisfatórios na guerra contra as drogas.15 Com a fraca
performance de uma lei que tinha um conteúdo antagônico com a realidade doméstica,
e com toda sua mentalidade permissiva, os cinco anos seguintes seriam um cenário de
discussões fervorosas acerca da planta. Vários canadenses, nesse período de
controvérsia, dirigiram-se à polícia e aos tribunais desafiando o que eles chamavam de
leis antidrogas anacrônicas, com o pedido de permissão para poder consumir a planta
terapeuticamente, e em muitos casos a decisão foi a favor dos usuários.16
Consecutivamente, talvez conseqüentemente, a corte ordenou ao governo
federal que esclarecesse as leis relativas ao uso medicinal da cannabis, e em abril de
2001, o governo federal divulgou sua solução proposta para o uso terapêutico da
14
http://www.uam-antropologia.info/texto_kerney.pdf acesso em 24/05/2010, às 15:44.
http://www.druglibrary.org/schaffer/Library/studies/cu/cu60.html acesso em 24/05/2010, às 17:00.
16
Um dos casos mais significativos é o de Terrance Parker, que levou o governo canadense à adoção de
um sistema regulador que permitiu o uso medicinal da planta em 2001. Parker, que usa a cannabis como
uma forma de controlar suas convulsões epiléticas, havia sido preso inúmeras vezes desde 1987 por porte
de cannabis. Quando ele foi preso mais uma vez, em Ontario, em 1997, o juiz determinou que as pessoas
devem ter acesso aos tratamentos médicos necessários, sem precisarem temer a prisão.16 Dessa forma, no
dia 10 de dezembro de 1997, Parker se tornou o primeiro canadense a ser isento de acusação e
condenação por posse e cultivo de cannabis. Mais tarde, quando houve apelação para o caso, a Corte de
Apelação
de
Ontário
sustentou
o
posicionamento.
(http://www.ontariocourts.on.ca/decisions/2000/july/parker.htm)
15
planta. A regulação permitia acesso à planta a todos que dependiam dos processos e
condições médicas envolvidas. Ou seja, o requerimento para o uso terapêutico variava
de acordo com os sintomas relatados pelos pacientes e autorização médica17.
Paralelamente aos requerimentos do uso terapêutico, algumas religiões
reivindicaram o direito de poderem fazer o uso da planta, alegando que a liberdade
religiosa e as restrições para o consumo da planta feriam diretamente os direitos dos
cidadãos. Em Ontário, a igreja Church of the Universe foi uma das que começaram o
debate acerca do assunto. Eles afirmam que a proibição era inconstitucional, pois se
opunha ao uso sacramental de uma planta sagrada.18 A discussão sobre o uso religioso
da planta não obteve tanto sucesso quanto as alegações feitas para o uso terapêutico.19
A posição legal da cannabis está sob disputa no Canadá, de forma que as Cortes
Superiores e Apelativas em Ontário repetidamente declararam que as leis canadenses
acerca do assunto são fracas e ineficientes. Contudo, os desafios históricos às leis
federais não resultaram na deleção dos artigos apropriados do código penal canadense
e do Controlled Drugs and Substances Act o cultivo de cannabis no Canadá ainda é
ilegal, com exceções ao uso terapêutico. De qualquer maneira, o uso lúdico da
cannabis pelo público em geral é amplamente tolerado, e vigorosas campanhas de
legalização estão em andamento por toda nação. Várias pesquisas desde 2003 foram
feitas e pode-se concluir através delas que a grande maioria dos canadenses concorda
que o uso da cannabis para fins recreativos deve ser legalizado.20
2.3) Países da Europa
Um dos principais desafios dos países europeus em relação às drogas é conseguir
definir ações possíveis e viáveis dentro da União Européia. Acima de todas as
possibilidades, existem fatores que regem e limitam o comportamento dos Estados.
Alguns deles apresentados no Treaty of Rome and the Single European Act, e no
Tratado de Maastricht. Nesses dois casos, ambos elicitam a luta contra a adição em
drogas em termos de saúde pública (Artigo 129), além da cooperação nas áreas da
17
Amina Ali and Owen Wood. The Need for Weed: Medical Marijuana. CBC News. July 2001.
Disponível em: www.cbc.ca/news/indepth/background/medical_marijuana.html.
18
http://www.druglibrary.org/olsen/rastafari/op2000Guam26.html acesso em 25/05/2010, às 12:07.
19
http://www.420magazine.com/forums/canada/87286-canada-marijuana-laws.html acesso em
26/05/2010, às 13:14.
20
http://www.angusreid.com/polls/view/30688/canadian_majority_would_legalize_marijuana acesso em
26/05/2010, às 14:15.
justiça e nas questões internas. Mesmo com todo aparato de poder e administrativo da
U.E., a dialética faz com que seja também importante salientar a existência dos
obstáculos criados pelos próprios tratados, assinados ou que, eventualmente, serão
assinados, vide a forma que o estabelecimento de uma ordem pode afetar a soberania
interna de um Estado (ESTIEVENART, 1995).
Em todos os países da Europa, independentemente da forma com que a
sociedade, ou o Estado, lidam com o assunto, os usuários de drogas ilícitas são,
simultaneamente, objetos de repressão direta ou indireta, e/ou foco de medidas
médico-sociais. O problema a ser considerado pode não depender, a princípio, de um
estudo histórico e social, e sim, de uma abordagem que possibilita uma visão mais
futurista com base no que está acontecendo no exato momento. Georges Estievenart
(1995) afirma que se trata da ausência de uma tipologia de objetivos, o que torna
impossível racionalizar políticas e medidas de controle e prevenção e eventualmente
identificar os problemas e prioridades.
Seja para reduzir o uso abusivo das drogas, prevenir overdoses, reduzir a
proliferação de doenças transmissíveis, reduzir a incidência de formação de quadrilhas,
enfraquecer a máfia ou facilitar o acesso ao tratamento, a escolha da política a ser
adotada pode determinar abordagens diferentes e até mesmo contraditórias acerca do
objetivo aqui discutido. Não se deve afirmar que todos esses objetivos estão
simultaneamente dentro do mesmo princípio que motiva e possibilita a criação de
medidas legislativas. O que existe é uma imensa nebulosidade que dificulta
interpretações acerca do assunto, além de contradições dentro e fora dos blocos
regionais EUA e Europa (ESTIEVENART, 1995).
A falta de uma definição minuciosa de objetivos impede que se façam
considerações específicas sobre as várias formas de abordagem do fenômeno, tornando
mais difícil alcançar decisões regionais que tenham bases calcadas em escolhas
operacionais e racionais. Exemplo disso é que, em alguns Estados, procedimentos
criminais são usados para levar o usuário a ter contato com algum tipo de ajuda
terapêutica (ESTIEVENART, 1995). Talvez essa dificuldade seja justificada
baseando-se no fato de que a essência do Construtivismo é a consciência humana e seu
papel na vida internacional (BARNETT, 2008). Esse foco na consciência humana
sugere um compromisso com o Idealismo e o Holismo. O Idealismo diz que o papel
das idéias na política mundial tem que ser levado a sério, pois o mundo é definido
tanto por forças materiais quanto ideológicas, idéias essas sociais, e não individuais.
Aquilo que o indivíduo pensa é moldado por idéias estabelecidas coletivamente em
formas de conhecimento, símbolos, linguagens e regras. O Idealismo de forma alguma
rejeita a realidade material, pelo contrário, sua premissa é de que o significado e
construção dessa realidade material é dependente das idéias e da interpretação
(BARNETT, 2008). Partindo desse pressuposto então, pluralidade de molduras e
formas sociais contribui significantemente na desordem política internacional ao que
diz respeito a uma política de regulamentação da cannabis.
2.3) Brasil
No início do século XX, meados de 1910, a comunidade científica brasileira
começou a publicar artigos em congressos internacionais associando o comportamento
“natural” da população originária da África com os efeitos psicoativos da cannabis.
Cientistas como Rodrigues Dória e Francisco Iglesias afirmavam em seus artigos e em
congressos internacionais que os efeitos da cannabis sativa causariam degeneração
moral e demência, compulsão e vício, e que aqueles que a consumissem sofreriam de
loucura, psicose e se tornariam assassinos. Esses cientistas afirmavam que a forma que
os africanos naturalmente comportavam-se era caracterizada pela ignorância, má
vontade e preguiça para o trabalho com tendência a criminalidade. (ADIALA, 2006)
Idéias essas que foram difundidas doméstica e internacionalmente, uma vez que
essas atendiam a interesses não somente da ala mais conservadora da sociedade, mas
também de grupos e elites que competiam diretamente com os produtos derivados da
cannabis como óleo, tecido, um produto muito similar ao plástico. Além da indústria
farmacêutica e tabagista, que na época tinha um forte mercado em crescimento, tanto
nos Estados Unidos, quanto na Grã Bretanha. (ADIALA, 2006)
O processo de construção desse argumento científico, que era muito mais calcado
em interesses do que em evidências empíricas, serviu como ferramenta de dominação
americana em relação à população que migrava do México para os EUA, e outras
minorias que também migravam em busca de melhores condições econômicas. Essas
minorias traziam consigo sua bagagem cultural: crenças, religiões, costumes e vícios.
Para reforçar ainda mais o estigma criado sobre aqueles que consumiam a erva, o
governo americano começou a introduzir o assunto mais a fundo no meio científico de
forma pré-estipulada por eles próprios e pejorativamente referiam-se à planta como “o
veneno social” que deveria ser interpretado como uma psicose hetero-tóxica de
terminação em “ismo” como cannabismo ou maconhismo (ADIALA, 2006)
O Construtivismo também pode ser utilizado para identificar a maneira como a
identidade molda o interesse estatal. Assim, segundo Barnett (2008), a identidade
norte-americana molda os interesses nacionais, e então a estrutura do sistema
internacional apresenta suas estratégias para buscar esses interesses. Aprofundando o
pensamento, o contexto cultural é capaz de formar não apenas as identidades e
interesses dos atores, mas as próprias estratégias que eles usam para buscar seus
interesses.
2.4) Ambiente internacional
Parece haver uma brecha que nunca foi fechada entre as convenções das Nações
Unidas, a própria interpretação da organização sobre essas convenções, e a realidade
de vários Estados, que respondem de forma autônoma, ou pelo menos não cadenciada,
ao crescente uso lícito e ilícito da cannabis para propósitos terapêuticos ou
recreacionais. Todas as teorias, ou pelo menos, a maioria das teorias que falam sobre
regimes, normas, regras e valores internacionais estão ligadas pela crença de que a
existência de um regime internacional deve moldar as expectativas em relação ao
comportamento dos membros (BUZAN, 2004).
A atual posição legal é determinada por três convenções internacionais, a
convenção de 1961 (Single Convention on Narcotic Drugs), sendo emendada em 1972,
a Convenção sobre Drogas Psicotrópicas, realizada em 1971, e por fim a Convenção
Contra o Trafico de Drogas Ilícitas, Drogas Narcóticas e Substâncias Psicoativas
(Convention Against Illicit Traffic in Narcotic Drugs and Psychotropic Substances)
realizada em 1988. (UNDCP, 2002).
A Convenção de 1961 limita a produção, manufatura, exportação, importação,
distribuição, negociação e posse de substâncias controladas, ela também permite o uso
de substâncias controladas para fins medicinais e científicos, o que significa que a
prescrição de heroína, morfina, metadonina para viciados em heroína está dentro da
convenção (UNDCP, 2002).
De qualquer maneira, a convenção de 1988, especificamente determinou que a
posse de drogas ilícitas receitadas por médicos fosse transformada em ofensa criminal
sob a legislação doméstica dos Estados. Embora inicialmente obedientes, muitos
Estados, principalmente europeus, assumiram duas posturas antagônicas às resoluções
convencionais. Ou introduziam sanções administrativas para posse de drogas ilícitas,
ou simplesmente decidiram não endurecer a lei a esse respeito (UNDCP, 2002).
Existe uma forma de reorientação de alguns atores, consequente mudança da sua
percepção em relação aos fatos relacionados a esse assunto, o que conduz à
pavimentação de um caminho e à formação de uma nova realidade social. Há então o
surgimento de uma nova discussão e postura em relação às políticas adotadas em
muitos Estados signatários de acordos que determina abordagens mais duras e
repressivas, começa-se a consolidar a discussão sobre os benefícios de uma possível
descriminalização e legalização da planta.
As convenções das Nações Unidas prejudicaram as pesquisas relacionadas às
drogas e agora enfrentam algumas contradições e inconsistências, conforme apresenta
o artigo Making drug control ‘fit for purpose’: Building on the UNGASS decade Report by the Executive Director of the United Nations Office on Drugs and Crime, as
a contribution to the review of twentieth Special Session of the General Assembly,
March 7, 2008. É necessário resolver o conflito entre as convenções internacionais e
certas práticas de redução aos danos causados pelo consumo de drogas. Uma vez que a
necessidade de controlar a epidemia causada pelo vírus HIV nas décadas de 1980 e
1990 exigiu maiores cuidados das organizações internacionais, o que justificou, de
certa maneira, um descompasso por parte dos Estados, no que diz respeito a uma
política mais eficiente e homogênea às regras estabelecidas há meio século, antes do
aparecimento do vírus da AIDS (UNDCP, 2002).
Em um memorando confidencial não publicado, preparado a pedidos da INCB,
(The I n t e r n a t i o n a l N a r c o t i c s C o n t r o l B o a r d ) em 2002, peritos legais do
UNODC (United Nations on Drugs and Crimes), concluíram que21 pode-se até mesmo
discutir que os tratados de controles das drogas, como eles se apresentam hoje, se
apresentam fora de sincronia com a realidade, uma vez que, quando esses foram
ratificados não poderiam prever as novas ameaças22.
O ponto chave é identificar como o conhecimento que se configura em símbolos,
regras e conceitos molda a forma com a qual os indivíduos constroem e interpretam o
21
E/INCB/2002/W.13/SS.5, Flexibility of treaty provisions as regards harm reduction approaches,
prepared by the Legal Affairs Section of the UNDCP for the 75th session of the INCB, September 30,
2002.
22
Report of the International Narcotics Control Board for 2001, United Nations, New York 2002, par.
227. Report of the International Narcotics Control Board for 2008, United Nations, New York 2009, par.
29.
seu mundo. Diferente do Realismo, para o qual existe uma realidade fixa e imutável, o
Construtivismo apresenta o argumento de que não existe uma realidade única e
estabelecida, pelo contrário, os indivíduos são capazes, por meio de conhecimento
histórico e cultural, de construir e dar significado à realidade (BARNETT,2008).
Conforme o Report of the International Narcotics Control Board for 2001, o
segundo argumento é de que a obrigatoriedade de sanção penal por posse, venda e
cultivo (incluindo pequenas quantidades para uso pessoal) é um outro obstáculo para
se obter um melhor equilíbrio entre proteção e repressão. Mediante isso, os Estados
confrontam-se com assuntos relacionados à violência e a situação do sistema
carcerário, e começaram a redução gradual da ilicitude do cultivo. Como parte da
resolução e prevenção de conflitos, calcado no respeito aos direitos humanos, vários
Estados estão assumindo uma postura reformista23, é o caso da Argentina, Canadá,
México, Bélgica, Austrália, Holanda, Portugal, Espanha, etc.
O terceiro argumento é que países que desejam experimentar a regularização do
mercado da Cannabis, usando como framework a convenção da Organização Mundial
da Saúde sobre o controle de tabaco, deveriam ser permitidos fazê-lo, tendo em vista
que pesquisas científicas feitas pela OMC embasam o fato de ser menos prejudicial do
que as duas drogas previamente citadas. Estados que acreditam que a total proibição da
cannabis seja a melhor forma de proteger seu povo, devem, por sua vez, continuar com
sua política, como em alguns países Islâmicos continuam a banir o álcool.
Em 1921, autoridades legislativas brasileiras, por meio da lei federal nº 4.294,
alinharam-se ideologicamente à política estadunidense, aderindo-se dessa forma aos
acordos feitos nas Nações Unidas sobre repressão e controle de substâncias proscritas e
a burocratização dessa política. A lei penalizava o comerciante, porém tratava os
consumidores como vítimas e doentes. Embora houvesse pressão por parte das
autoridades relacionadas ao aparelho de repressão estatal, o assunto só seria
rediscutido em 1934, quando uma nova constituição foi promulgada24.
Um ponto fundamental a ser destacado nessa questão é que mesmo as grandes
potências freqüentemente sentem a necessidade de alterar suas políticas para que estas
sejam vistas como legítimas. Poder também vai além da capacidade de compelir os
demais a mudar o seu comportamento, ele envolve conhecimento, o estabelecimento
23
h t t p : / / w w w . t n i . o r g / d r u g s r e f o r m - d o c s / u n 3 0 0 9 0 2 . p d f acesso em 27/05/2010, às 02:15.
24
http://www.giesp.ffch.ufba.br/pesquisadores/sergio/tx_01.pdf acesso em 27/05/2010, às 23:14.
de significados, e a própria construção de identidades. Para o Construtivismo, as
estruturas têm a capacidade de gerar impacto causal, por possibilitarem certos tipos de
comportamentos e assim gerar tendências no sistema internacional (BARNETT, 2008).
O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), estima que 4%
dos adultos do mundo – algo em torno de 162 milhões de pessoas – usam cannabis
para fins lúdicos pelo menos uma vez durante o ano. Tal dado faz com que ela seja a
droga ilícita mais amplamente consumida em todo mundo. Em alguns países, mais da
metade da população jovem já experimentou, e apesar desses altos índices de
consumo, alguns fatos e verdades sobre a planta ainda permanecem obscuros, tanto ao
que diz respeito aos seus efeitos, quanto à política e o lobby que escondem-se na
sombra das razões sociais25.
De acordo com Peter Cohen, diretor do primeiro programa de pesquisas da
Universiteit van Amsterdam e diretor do CEDRO (Center for Drug Research), desde
1996, enquanto diferentes políticas públicas tentam lidar com assunto via
proibicionismo,
drogas
botânicas
psicotrópicas
têm
sido
desenvolvidas
e
potencializadas, em detrimento da política severa e restritiva que os Estados
inutilmente tentam impor26 (COHEN, 1999).
Um novo processo de formação de uma política que vem se moldando na parte
leste do bloco europeu abre discussão para outros Estados que já, ou ainda não
desenvolveram políticas próprias baseadas na realidade interna, sem se esquecerem da
corrente transnacionalização cultural, política, social e econômica, que os afeta direta e
indiretamente (COHEN, 1999).
Embora haja diferença na forma com que a América do Norte e Europa abordem
o assunto, com exceção dos Países Baixos, Dinamarca e Espanha, as diferenças não
são tão significativas assim. Esses outros países que são exceção já ganharam alguma
experiência real com uma política não proibitiva da cannabis, em contra partida à
política proibitiva na maior parte do resto do mundo. (COHEN, 1999)
A Organização Mundial de Saúde (WHO, em inglês) criou a agência “WHOEurope”, que se localiza em Copenhagen, que, até agora, pelo menos até onde se
concentram os pontos relacionados à ortodoxia proibicionista tradicional, tem se
mantido moderada, mas por outro lado, não demonstra muito interesse em encontrar
25
http://www.unodc.org/unodc/en/frontpage/why-should-we-care-about-cannabis.html, acesso em
27/05/2010 às 03:14.
26
http://www.cedro-uva.org/cohen/ acesso em 27/05/2010, às 03:50.
novas formas mais eficientes de controle que vão além do que já foi feito. As Nações
Unidas mantêm sua burocracia na Europa por intermédio das organizações UNICRI
(The United Nations Interregional Crime and Justice Research Institute) em Roma,
UNDCP (The United Nations International Drug Control Programme) em Viena, e o
novo programa de abuso das drogas da Organização Mundial da Saúde em (PSA) em
Gênova, além da Interpol, localizada em Lyon, que também produz constante pressão e
fortalece a corrente proibicionista27.
Muitos países europeus estão silenciosamente articulando-se internamente e
descobrindo seus próprios caminhos para lidar com a situação que há séculos faz parte
da sombra do contexto. Seja como a Holanda que assume que novas formas para lidar
com o assunto são urgentes, ou como Portugal que silenciosamente molda suas
vontades com suas possibilidades. Uma opção seria acionar no caso da Europa, os
princípios da União Européia de subsidiária, cujas decisões são tomadas nos níveis
mais próximos daqueles que são afetados. Muitos europeus argumentam sobre a
repatriação das leis em relação às drogas, para que então, como o álcool e o tabaco,
cada Estado pudesse criar leis que fossem apropriadas para sua população, normas e
princípios legais28.
Isso reforça o argumento de Peter Katzenstein (1996), que escreveu um livro
sobre o Japão onde desenvolveu um argumento construtivista sobre o papel das normas
domésticas na esfera da segurança nacional. Segundo o autor, a teorização sistêmica é
inadequada porque ela não discute a questão de como a constituição interna dos
Estados afeta seu comportamento no sistema internacional. Katzenstein analisa a
estrutura doméstica normativa e como ela influencia a identidade, interesse e política
do Estado.
Dessa forma, o problema de hoje não é mais aquele um dia discutido por E.H.
Carr, um dos que evitavam a esterilidade do realismo e a ingenuidade do liberalismo.
A presente escolha é mais complexa. Pode-se se manter intelectualmente ligado ao
mundo realista de estados que tendem sempre à balança de poder em um sistema
multipolar. Pode-se focar analiticamente nas instituições liberais e nos resultados
eficientes que as instituições podem ter na prospecção e coordenação das políticas
27
http://www.unodc.org/unodc/en/commissions/UNGASS/01-Preparations.html acesso em 27/05/2010,
às 13:24.
28
http://www.unodc.org/unodc/en/commissions/UNGASS/01-Preparations.html acesso em 27/05/2010,
às 04:14.
entre os Estados. Ou pode-se reconhecer a validade parcial dessas visões e ampliar a
perspectiva analítica para concluir que assim como a cultura, as identidades são fatores
causais importantes que ajudam a definir os interesses e a constituir os atores que
moldam a política de segurança nacional e a insegurança internacional.
(KATZENSTEIN, 1996).
Interesses econômicos, moralismo, racismo, xenofobia, seletividade penal e
preocupação com a saúde pública foram os pilares que historicamente sustentaram as
articulações políticas e diplomáticas que resultaram no comportamento atual
desorganizado e ineficaz das políticas Estatais, ao que diz respeito à proibição,
legalização e descriminalização das drogas. Saber disso é o primeiro passo para que
um novo debate seja criado, calcado em realismo científico empírico, observação e
interesses sociais, evitando assim políticas estéreis, sensacionalistas e tendenciosas,
que, por décadas, dominaram as discussões. (COSTA 2005)
As estruturas sociais são definidas, em parte, pelo entendimento, expectativas e
ou conhecimento compartilhados. Esses constituem os atores em uma situação e a
natureza de suas relações, tendam elas à cooperação ou ao conflito. O dilema da
segurança, por exemplo, é uma estrutura social composta de entendimentos
intersubjetivos nos quais os Estados são tão pouco confiáveis que eles geralmente
fazem as piores suposições em relação às intenções do outro, e como resultado,
definem seus interesses em termos de auto-ajuda. (WENDT, 1992)
Conclusão
Os principais acontecimentos históricos referentes à cannabis foram analisados à
luz do construtivismo. Assim, elementos políticos e sociais, como imposição moral,
formação de opinião pública – doméstica e internacional –, manipulação e criação de
leis que temporalmente atenderam e atendem a interesses de grupos seletos, a falta de
unanimidade acerca de temas como direitos humanos, segurança e interesse nacional, a
informação que disso se gerou conjuntamente com as respectivas análises, entre outras
questões, permitiram obter resultados que autorizam o pesquisador a apresentar um
determinado conjunto de conclusões.
Inicialmente, a repatriação da política acerca das drogas pode ser a forma mais
eficiente de mudar a política proibicionista global, como acordado nas convenções. As
convenções não devem ser sacras, mas devem ser vistas como instrumentos
atualizados e cheios de inconsistências e, por isso, suscetíveis às mudanças e
reestruturações, como afirmado em um documento sobre drogas das Nações Unidas
em 1997.29 Independentemente da capacidade que o ambiente internacional tem no
processo de formação cultural e até mesmo na formação das identidades de um Estado,
o mesmo deve agir de acordo com seus próprios interesses, e isso inclui, em grande
parte, questões econômicas liberais. Como pode ser inferido a partir do seguinte artigo,
a legalização e regulamentação taxativa sobre a Cannabis em alguns Estados podem
fazer uma enorme diferença no balanço final da economia doméstica, aumentando
significantemente sua receita.
De acordo com o centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas,
existem 1,1 bilhões de consumidores usuários de tabaco no mundo, e que 3,5 milhões
de pessoas morrem todos os anos como conseqüência de seu uso. Sabe-se também que
o álcool provoca setecentas e cinqüenta mil mortes todos os anos, além de enormes
danos causados à sociedade. No que se refere à cannabis, tal avaliação se torna
impossível pela falta de informações e dados confiáveis. É indiscutível, entretanto, que
o seu consumo provoca inúmeros problemas à saúde e se seu consumo aumentasse no
mesmo nível do consumo do álcool ou do tabaco, certamente o impacto na saúde
pública seria significativo. É impossível, com algum grau de precisão, prever o
tamanho de tal impacto.30
De qualquer maneira, todos os estudos científicos concordam que existem boas
razões para dizer que a cannabis não se compara ao álcool e ao tabaco em relação aos
danos e riscos à saúde pública e à saúde dos indivíduos. É o que também os autores do
artigo intitulado A comparative appraisal of the health and psychological
consequences of alcohol, cannabis, nicotine and opiate use, divulgado pela OMS em
28 de agosto de 1995, afirmam.
Antônio Maria Costa, diretor executivo da UNODC, afirmou que na verdade há
um espírito reformista pairando no ar, que torna as convenções pertinentes aos
propósitos e as adaptam a uma realidade que é consideravelmente diferente daquela da
época em que elas foram convocadas. Como existe um maquinário multilateral que
pode ser adaptado às convenções já disponíveis, tudo que os estados precisam é,
29
“Laws – and even the International Conventions – are not written in stone. They can be changed when
the democratic will of the nations so wishes it” http://www.tni.org/archives/archives_jelsma_athens
30
Boletim CEBRID (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas) número 32, março de
1998.
primeiramente, renovar o comprometimento da cooperação e do diálogo e dividir as
responsabilidades; segundo, desenvolver um comprometimento de base dessa reforma
fundamentado em evidências empíricas; e, finalmente, em terceiro, colocar em
andamento ações concretas que dão apoio às mencionadas políticas, indo além da mera
retórica e pronunciamento.
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