A Viuvinha, de José de Alencar: Um Romance

Transcrição

A Viuvinha, de José de Alencar: Um Romance
A Viuvinha, de José de Alencar: Um Romance Pedagógico
The Little Widow, by José de Alencar: A Pedagogical Novel
Mirian Aparecida Deboni 1
RESUMO
Neste estudo, analisa-se o discurso pedagógico do narrador do romance A Viuvinha, de José de Alencar, que, ao orientar as condutas sociais
dos personagens, faz com que a obra assuma um caráter de exemplaridade a seus leitores.
Palavras-chave: Século XIX. Ficção. Romantismo. Exemplaridade.
ABSTRACT
This study aims to analyze the pedagogical discourse present in the
novel The Little Widow, by José de Alencar. When orienting the characters’ social conducts, the author makes the novel play an exemplary
role for its readers.
Keywords: 19th Century. Fiction. Romanticism. Exemplarity.
1 INTRODUÇÃO
O romance A Viuvinha foi publicado inicialmente em folhetins,
no jornal Diário do Rio de Janeiro, nos dias 21, 22, 23 e 26 de abril, 18
de maio e 29 de junho de 18572. Segundo Magalhães Júnior (1977,
p. 97), a publicação do folhetim foi suspensa sem que o jornal forne1 Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Professora na FACDO e no ITPAC.
Email: [email protected].
2 As datas de publicação do folhetim foram retiradas da obra: MENEZES, Raimundo de. José de
Alencar: literato e político. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1977.
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cesse qualquer explicação aos leitores. Três anos depois, em 1860, a
obra teve sua primeira edição, juntamente com a segunda edição de
Cinco Minutos, em um único volume, impressa pela Tipografia Soares
& Irmão.
Apesar desses contratempos, a obra parece ter agradado ao
público brasileiro dos Oitocentos, já que teve cinco edições em vida
do autor:
1.ª edição – Rio, 1860. Saiu no mesmo volume a 2.ª ed. de Cinco
Minutos, e desde então ambos foram editados juntos. Na página
de rosto vem impresso: J. de Alencar.
2.ª edição – Garnier, Rio, 1865 (informação de Mário de Alencar).
3.ª edição – Não conseguimos nenhuma informação. Deve ter saído em 1868 ou 1869.
4.ª edição – Impressa em Paris na Tipografia Portuguesa de Simão
Façon e Comp., e editada por B. L. Garnier, Rio, e E. Belhatte, Paris.
Não tem data na folha de rosto.
5.ª edição – Deve ter saído em 1877 ou pouco antes, porque a 2.ª
ed. de As Minas de Prata (1877) anuncia diante da folha de rosto do
1.ª vol.: Cinco Minutos – A Viuvinha, 5.ª ed., br. 2$000, enc. 3$000.
(ALENCAR, 1957, p. 335).
Em relação à sua estrutura narrativa, A Viuvinha possui um
narrador em primeira pessoa que finge estar contando a história de
Carolina, uma amiga de sua esposa, a uma prima, identificada na obra
somente pela letra inicial de seu nome:
A D...
Janeiro de 1857.I
Se passasse há dez anos pela praia da Glória, minha prima, antes
que as novas ruas que abriram tivessem dado um ar de cidade às
lindas encostas do morro de Santa Teresa, veria de longe sorrir-lhe entre o arvoredo, na quebrada da montanha, uma casinha de
quatro janelas com um pequeno jardim na frente. (ALENCAR, 2002,
p. 51).
Durante todo o texto, este narrador mantém sua identidade oculta. No entanto, Alencar havia escrito outro romance – Cinco
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Minutos - cujo narrador dirige-se a uma prima contando-lhe a história
de seu casamento com Carlota. Em A Viuvinha, há alusão a essa personagem como sendo esposa do narrador e amiga íntima de Carolina.
Além disso, em Cinco Minutos, o narrador dirige-se a uma prima, que
certamente é a mesma do romance A Viuvinha, visto que a inicial de
seu nome é a mesma, o que nos leva a crer que ambos os romances
possuem o mesmo narrador. Vejamos como esses dados são apresentados na narrativa:
Jorge e sua mulher são hoje nossos vizinhos; têm uma fazenda perfeitamente montada. Para evitar a curiosidade importuna e indiscreta, haviam imediatamente abandonado a corte.
[...]
Carlota é amiga íntima de Carolina. Elas acham ambas um pouco de
semelhanças na sua vida; é a felicidade depois de cruéis e terríveis
provanças. As nossas famílias se visitam com muita frequência; e
posso dizer-lhe que somos uns para os outros a única sociedade.
Isto lhe explica, D..., como soube todos os incidentes desta história.
(ALENCAR, 2002, p. 96).
Ao colocar um narrador que se dirige a uma prima contando-lhe os fatos da vida de seus vizinhos, Alencar busca criar a ilusão de
que o “leitor lê o romance não como quem lê um livro escrito para ser
um romance, mas como quem surpreende uma conversa que não lhe é
dirigida.” (LAJOLO, 2002, p. 3). O emprego desse artifício narrativo demonstra a intenção do autor de que suas histórias fossem lidas como
histórias que de fato aconteceram. Tanto que é constante, por parte
do narrador, a afirmação de que está narrando uma história verídica.
É uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é
uma história e não um romance. Perdão minha prima; não zombe das minhas utopias sociais; desculpe-me esta distração; volto
ao que sou – simples e fiel narrador de uma pequena história.
(ALENCAR, 2002, p. 11).
É interessante notar que, na segunda transcrição, o narrador,
após uma pequena digressão na narração, na qual discute o poder re-
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generador do amor, interrompe o assunto e cobra de si mesmo o papel
que lhe cabe como narrador de uma história verídica, ou seja, o de ser
fiel aos fatos que lhe foram narrados. Ao posicionar-se dessa forma,
o narrador não admite que seu discurso seja posto à prova. Por isso,
mesmo admitindo que o caráter do personagem pode parecer inverossímil, apoia-se na veracidade dos fatos narrados com vistas a obter a
confiança da suposta prima, o que podemos pensar como uma estratégia de Alencar para obter a plena credibilidade dos leitores.
O desejo de atribuir caráter verídico à narrativa também pode
ser percebido no fato de que o narrador cogita a possibilidade de sua
interlocutora conhecer uma das personagens da história que lhe contava, visto que se tratava de uma pessoa conhecida no Rio de Janeiro:
Chamavam-na a Viuvinha.
A senhora deve tê-la encontrado muitas vezes, minha prima, no
tempo em que começou a frequentar a sociedade. Estava ela então
no brilho de sua beleza. Na menina gentil e graciosa encarnara a
natureza a mulher com todo o luxo das formas elegantes, com toda
a pureza das linhas harmoniosas. (ALENCAR, 2002, p. 11).
No entanto, pode-se pensar que a suposta prima sabia da
história da Viuvinha, mas não conhecia seus detalhes, e que o intuito
do narrador ao escrever a ela é justamente o de contá-los. Segundo o
narrador, há entre sua família e a de Jorge certa cumplicidade e suas
esposas têm um passado muito semelhante, o que explica, por sua
vez, como teve acesso aos detalhes da história. Essas informações fornecidas à suposta prima reforçam a ilusão de que a história contada é
verdadeira.
Além desses recursos, há outros pelos quais o narrador busca
atribuir veracidade à história que conta, a saber: as citações de lugares
públicos e de construções públicas que ocorreram na cidade do Rio de
Janeiro e as inúmeras marcas temporais – datas, circunstâncias históricas – com que compõe o romance. O que Alencar busca com esses
recursos é convencer o leitor de que o narrador de A Viuvinha nada
mais faz do que contar uma história ocorrida na vida real.
A narração, por sua vez, ao receber a conotação de uma his-
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tória que ocorreu de verdade, torna-se mais produtiva para a intenção de José de Alencar de que seu romance possa orientar as condutas sociais, por isso seu narrador possui um discurso pedagógico,
pelo qual julga e condena os personagens utilizando-se de suas ações
como exemplos. No romance A Viuvinha, o autor busca demonstrar,
utilizando-se da história de Jorge, quais as punições que cabem a uma
pessoa que não soube administrar corretamente a herança recebida e,
por isso, perde-a, ficando em estado de extrema pobreza.
Aparentemente, a grande tópica do livro é a comovente história de amor entre Jorge e Carolina. No entanto, o que nos saltou aos
olhos, nas reiteradas leituras do romance, é que sua grande tópica está
no discurso pedagógico de seu narrador, que se utiliza dos erros de
Jorge como exemplo de conduta condenável. As atitudes empregadas
pelo personagem para recuperar a honra de seu pai e a confiança de
Carolina, como a simulação da morte, a troca de nome, a viagem para
os Estados Unidos, o trabalho, são descritas como equivalentes a atos
de penitência, de sofrimento, de súplica, de desgraça, ou seja, como
punições cabíveis a esse personagem e, por extensão, aos que se comportarem da mesma forma que ele. No entanto, esse mesmo narrador
didático mostra-se aparentemente benevolente com esse personagem
ao descrevê-lo sempre como um homem que errou, mas que apesar
de tudo manteve sua alma pura e sua honra. Nesse sentido, o narrador
destaca que Jorge, arrependido de seus erros, sujeita-se a uma vida
de privações e sacrifícios como meio de recuperar o amor de Carolina
e a salvar a honra de seu pai, considerada um tanto exagerada para
uma pessoa dessa posição social, arrependido de seus erros e honrado
como Jorge. Pode-se perceber ainda que, mesmo mostrando-se o personagem arrependido, honrado, e de boa índole, o narrador considera
que deve ser punido, reafirmando o caráter pedagógico da obra.
Para entender o que estamos afirmando, devemos fazer um
pequeno resumo do enredo do romance. Jorge, após a morte de seu
pai, herdou uma fortuna e, nos dois primeiros anos, seu tutor, o Sr.
Almeida, havia cuidado de seus bens. Depois de atingir a maioridade,
o personagem lança mão de sua fortuna, gastando-a em atos festivos.
Após esse período, Jorge, arrependido de seus erros, apaixona-se por
Carolina e prepara-se para casar-se, mas é informado por seu tutor
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que estava totalmente pobre. Mesmo assim se casa com Carolina, mas
é impedido de levar adiante este casamento, simulando uma morte
para que possa dedicar-se ao trabalho, vivendo de forma clandestina,
até recuperar sua honra e o amor dessa jovem. O enredo assim resumido nos parece muito simples e trivial, no entanto por sua leitura
temos uma ampla visão da sociedade de que seu autor fazia parte,
mais especificamente, das relações dessa sociedade com o trabalho, o
dinheiro, a honra e a mulher.
No capítulo inicial do romance, o narrador nos conta de forma
exemplar quais foram as atitudes de Jorge que o levaram à perda de
sua fortuna:
Chegando à maioridade, Jorge tomou conta de seu avultado patrimônio e começou a viver essa vida dos nossos moços ricos, os
quais pensam que gastar o dinheiro que seus pais ganharam é uma
profissão suficiente para que dispensem de abraçar qualquer outra. Temos, infelizmente, muitos exemplos dessas esterilidades a
que se condenam homens que, pela sua posição independente,
podiam aspirar a um futuro brilhante.
Durante três anos, o moço entregou-se a esse delírio do gozo que
se apodera das almas ainda jovens, saciou-se de todos os prazeres,
satisfez todas as vaidades.
As mulheres lhe sorriam, os homens o festejaram; teve amantes,
luxo, e até essa glória efêmera, auréola passageira que brilha algumas horas para aqueles que pelos vícios e pelas suas extravagâncias excitam um momento a curiosidade pública. (ALENCAR, 2002,
p. 52).
É nítido o tom moralista com o qual o narrador vai descrevendo as atitudes do personagem. A palavra que melhor representa
o caráter de condenação é o substantivo “esterilidade”, que dá à ação
de Jorge uma ideia de improdutividade. Entretanto, se o narrador, a
princípio, apresenta-se julgando somente a Jorge, acaba por estender
o alcance de seu discurso moralista a outras pessoas. Assim, ao deixar
claro que as atitudes do personagem são comuns a outros homens,
como o faz na transcrição acima, reafirma a seus leitores a veracidade
dos fatos narrados, ao mesmo tempo em que amplia o alcance de seu
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julgamento.
Por outro lado, o narrador, assim se comportando, procura de
certa forma isentar o personagem da responsabilidade de seus atos ao
demonstrar que, apesar de tudo, ele manteve sua alma pura e que se
comportou de forma incorreta por estar dominado por um verdadeiro
estado de dormência e embriaguez:
Durante três anos, o moço entregou-se a esse delírio do gozo que
se apodera das almas ainda jovens; saciou-se de todos os prazeres,
satisfez todas as vaidades.
As mulheres lhe sorriram os homens o festejaram; teve amantes,
luxo, e até essa glória efêmera, auréola passageira que brilha algumas horas para aqueles que pelos seus vícios e pelas suas extravagâncias excitam um momento a curiosidade pública.
Felizmente, como quase sempre sucede, no meio das sensações
materiais, a alma se conservara pura; envolta ainda na sua virgindade primitiva, dormira todo o tempo em que a vida parecia ter-se
concentrado nos sentimentos e só despertou quando, fatigado pelos excessos do prazer, gasto pelas emoções repetidas de uma existência desregrada, o moço sentiu o tédio e o aborrecimento, que é
a última fase dessa embriaguez do espírito. (ALENCAR, 2002, p. 52).
Outra circunstância que na narrativa se mostra funcionalmente eficaz para reabilitar a imagem de Jorge é o amor que viria a nutrir
por Carolina no momento em que a conhece na igreja. Como em um
passe de mágica, o personagem arrepende-se de todas as suas faltas.
Se inverossímil na vida real, nesse romance, o amor à primeira vista
tem o poder de regenerar o personagem:
Uma circunstância bem simples modificou a sua existência.
Levantou-se um dia depois de uma noite de insônia em que todas
as recordações de sua vida desregrada, todas as imagens das mulheres que o haviam seduzido perpassaram como fantasmas pela
sua imaginação, atirando-lhe um sorriso de zombaria e de escárnio.
Daí a pouco o sino da igrejinha da glória começou a repicar alegremente; esse toque argentino, essa voz prazenteira de sino, causou-lhe uma impressão agradável.
Vieram-lhe tentações de ir à missa.
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II
Alguns instantes depois Jorge subia a ladeira e entrava na igreja.
A modesta simplicidade do templo impôs-lhe respeito; ajoelhou;
não rezou, porque não sabia, mas lembrou-se de Deus e elevou o
seu espírito desde a miséria do homem até a grandeza do criador.
Quando se ergueu, parecia-lhe que se tinha libertado de uma
opressão que o fatigava; sentia um bem estar, uma tranquilidade
de espírito indefinível.
Nesse momento viu ajoelhada ao pé da grade que separa a capela,
uma menina de quinze anos, quando muito: o perfil suave e delicado, os longos cílios que vendavam seus olhos negros e brilhantes,
as tranças que realçavam a sua fronte pura, o impressionaram.
Jorge esperava apenas esquecer de toda a sua vida passada, apagar
completamente os vestígios desses tempos de loucura, para casar-se com aquela menina e dar-lhe a sua alma pura e sem mancha.
(ALENCAR, 2002, p. 53).
Em primeiro lugar, é curioso notar que as mudanças na vida do
personagem tenham começado justamente a partir de sua entrada na
igreja. A descrição de seu encontro com Carolina deixa ainda mais clara
a intenção do narrador de demonstrar a imagem do personagem regenerado e arrependido de seus atos. Isto porque, para ele, Jorge nunca deixou, como ele mesmo diz na última transcrição, de possuir uma
alma pura e sem mancha, apesar de todos os desatinos que cometeu.
Por sua vez, a mudança de atitude do narrador, que em um primeiro momento é severo ao julgar e condenar as atitudes de Jorge, para
um segundo momento, em que se mostra mais benevolente, quando
procura demonstrar que o personagem, mesmo errando, manteve ainda sua alma pura, encontra sua explicação na origem de seu enunciado. Tratando-se de um narrador que é da mesma classe social que o
personagem e, além de tudo, é homem, seu discurso irá direcionar-se
no sentido de mostrar que, apesar de o personagem ter cometido alguns desatinos em sua juventude, seus erros não são tão graves que
não possam ser redimidos através de simples acontecimentos, como a
entrada em uma igreja e o amor por uma jovem. Ao descrever essas
cenas, é nítido o intuito do narrador de deixar clara essa imagem de
Jorge; “Como o amor purifica, D...! Como dá forças para vencer ins-
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tintos e vícios contra os quais a razão, a amizade e os seus conselhos
severos foram impotentes e fracos!” (ALENCAR, 2002, p. 53).
No entanto, se a Jorge são permitidas certas extravagâncias
porque configuram atos típicos do universo masculino e de sua classe
social, sendo facilmente regenerado pelo amor, o mesmo não ocorre
quando suas atitudes interferem na esfera econômica de sua vida. O
grande conflito do romance se dá quando o Sr. Almeida, na véspera
do casamento de Jorge, vai até sua casa e revela a ele que suas ações
passadas haviam-no deixado pobre. Vejamos um trecho desse diálogo
entre o Sr. Almeida e o personagem:
- Conheço que o incomodo; mas é preciso. Durante este primeiro
ano, em que ainda tive esperanças de o fazer voltar à razão, não
houve meio que não empregasse, não houve estratagema de que
não lançasse mão. Responda-me, não é exato?
- Alguma vez o neguei?
- Diga-me do fundo da sua consciência: julga que um pai no desespero podia fazer mais por um filho do que eu fiz pelo senhor?
- Juro que não! disse Jorge, estendendo a mão.
- Pois bem, agora é preciso que lhe diga tudo.
- Tudo?
- Sim; ainda não concluí. Os seus desvarios de três anos arruinaram
a sua fortuna.
- Eu o sei.
- As suas apólices voaram uma após outras e foram consumidas em
jantares, prazeres e jogos.
- Resta-me, porém, a minha casa comercial.
- Resta-lhe, continuou o velho, carregando sobre esta palavra, a sua
casa comercial, mas três anos de má administração deviam naturalmente ter influído no estado dessa casa.
- Parece-me que não.
- Sou negociante e sei o que é o comércio. Depois que o vi finalmente voltar à vida regrada, quis ocupar-me de novo dos seus negócios; indaguei, informei-me e ontem terminei o exame da sua
escrituração, que obtive de seus caixeiros quase por um abuso de
confiança. O resultado tenho-o aqui.
- O velho pousou mão sobre a carteira.
- E então? perguntou Jorge com ansiedade.
O Sr. Almeida, fitando no moço um olhar severo, respondeu lenta-
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mente à sua pergunta inquieta:
- O senhor está pobre! (ALENCAR, 2002, p. 58).
Por esta longa transcrição, vemos que o verdadeiro motivo
que fazia das ações do passado um fator de condenação para o personagem era o fato de ter ficado pobre e de macular a honra de seu
pai, não pagando a quem ele devia antes de morrer. Tanto é verdade o
que afirmamos que o personagem, antes de ter conhecimento de que
havia perdido tudo, inclusive sua casa comercial, estava feliz e radiante
porque iria casar-se com Carolina, apesar de ter consciência de que a
vida que tivera no passado não fora muito digna, conforme podemos
observar no trecho abaixo, que é narrado logo após a revelação de sua
pobreza pelo seu tutor, o Sr. Almeida:
Havia duas horas que a felicidade lhe sorria com todas as suas cores
brilhantes, que ele via o futuro através de um prisma fascinador;
e poucos instantes tinham bastado para transformar tudo isto em
uma miséria cheia de vergonha e de remorsos.
As oscilações da pêndula, que na véspera respondiam alegremente
às palpitações de seu coração, a bater com a esperança da ventura,
ressoavam agora tristemente, como os dobres monótonos de uma
campa, tocando pelos mortos.
(...)
Podia, ele, desgraçado, miserável, escarnecido, iludir ainda por um
dia esse coração e ligar essa vida de inocência e de flores à existência de um homem perdido?
Não: seria um crime, uma infâmia, que a nobreza de sua alma repelia; sentia-se bastante desgraçado, é verdade, mas essa desgraça
era o resultado de uma falta, de uma bem grave falta, mas não de
um ato vergonhoso.
O seu casamento, pois, não podia mais efetuar-se; o seu dever, a
sua lealdade, exigiam que confessasse a D. Maria e à sua filha as
razões que tornavam impossível esta união. (ALENCAR, 2002, p.
60- 61).
Até a revelação de que estava pobre, não havia nenhum impedimento em seus atos passados que o fizesse desistir de casar-se com
Carolina. Mediante a revelação de sua pobreza e da desonra de seu
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pai, a situação torna-se mais complicada e o personagem vê-se moral
e economicamente impedido de unir-se ao seu grande amor. O narrador procura deixar claro que é devido à desonra do pai de Jorge que
ele se mostra impedido de casar-se com Carolina, devendo recuperá-la para unir-se a seu grande amor. Mas, se, por um lado, a busca da
honra perdida caracteriza o personagem como um homem digno, por
outro lado camufla a verdadeira causa que o impede de casar-se, ou
seja, a sua pobreza. Como em outros romances de Alencar, podemos
observar que o casamento para essa sociedade é como um verdadeiro
mercado justificável pelo amor. O interdito econômico demonstra, por
sua vez, a preocupação do autor em preservar intacta esta instituição.
E como a regra dita que cabe ao homem guardar a honra da
mulher e que seria muito constrangedor para Carolina ser deixada nas
vésperas de suas núpcias, Jorge, mesmo sabendo de sua situação, casa-se; porém, impedido de realizar seu grande amor, simula, no dia
seguinte ao casamento, uma morte, deixando-a viúva.
Pelos fatos assim descritos, é possível visualizar como o narrador é insistente em demonstrar a imagem do personagem como um
homem que, ainda que tenha errado, se apresenta arrependido e honrado. A cena da noite de núpcias é mais uma prova disto. Nesta cena,
Jorge nega-se a consumar seu casamento com Carolina, justamente
por achar que não era digno e que esse ato seria uma profanação.
Aqui, também, o modo como a cena é descrita reafirma-nos que, sob
o ponto de vista do narrador, Jorge era, apesar da pobreza, um homem
digno. Vejamos uma pequena parte da cena em que é descrita a angústia do personagem:
Era a porta do quarto de sua noiva.
Duas ou três vezes dera um passo para dirigir-se àquela porta e hesitara; temia profanar o santuário da virgindade; julgava-se indigno
de penetrar naquele templo sagrado de um amor puro e casto.
Finalmente tentou um esforço supremo; revestiu-se de toda a sua
coragem e atravessou a sala com passo firme, mas lento e surdo.
(ALENCAR, 2002, p. 65).
Por essa cena, podemos inferir como o tema do amor e a re-
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presentação da mulher se dá no romance. Em relação ao amor, é sempre descrito como algo celestial, divino. Nunca há cenas mais sensuais
entre Carolina e Jorge, a não ser um leve beijo na fronte, as mãos que
se unem. O amor é concebido como união de almas e não de corpos
e, no romance, é fator de purificação para o personagem. Já a mulher
tem uma imagem de algo sagrado, casto, santo e puro.
No desenlace da cena, Jorge acaba não tendo relações com
sua esposa e, mais para o final do livro, ficamos sabemos que havia
colocado algo na bebida de Carolina para que ela dormisse.
O modo como narra as cenas do casamento deixa transparecer a tentativa do narrador de mostrar a imagem de um personagem
que, apesar de seus erros, conservou-se honrado e que o agravante
nas suas ações era que elas o tinham levado a perder sua fortuna. Isso
porque, para uma sociedade em que o dinheiro serve como seu “talismã”, como uma “chave de ouro” que tudo resolve, o estado de pobreza
é descrito como sendo uma desgraça e uma fatalidade na vida desse
personagem:
Era um homem arrependido que cumpria a penitência do trabalho,
depois de ter gasto o seu tempo e os seus haveres em loucuras e
desvarios. Era um filho da riqueza, que, tendo esbanjado a sua fortuna, comprava, com sacrifício do seu bem-estar, o direito de poder
realizar uma promessa sagrada.
(...)
Para um homem habituado aos cômodos da vida, a essa existência
da gente rica, que tem a chave de ouro que abre todas a portas,
o talismã que vence todos os impossíveis, essa palavra pobre é a
desgraça, é mais do que a desgraça, é uma fatalidade. (ALENCAR,
2002, p. 76).
Assim sendo, podemos pensar que, quando os erros desse
personagem não acarretam em danos materiais, sua honra pode ser
reabilitada de forma simples, como pelo aparecimento de um grande
amor, viabilizando-se assim seu casamento. Agora, quando as faltas
dos personagens têm uma dimensão muito grande, como a perda de
uma fortuna, cabe a ele, como forma de recuperar sua herança e sua
honra, passar por algumas situações difíceis, através das quais possa
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redimir suas faltas. Isto porque, nos romances de José de Alencar os
personagens não são tão ruins que não possam regenerar-se. Há sempre em suas obras a oportunidade e a necessidade de remissão para os
que se comportaram de forma incorreta, mas, nos casos mais graves,
a regeneração se dá por um caminho mais tortuoso e por isso mesmo
mais exemplar.
Tratando-se de um romance que quer a todo momento orientar as condutas sociais, a obra assume um caráter de exemplaridade e,
neste universo, os que não se comportam conforme as leis da sociedade devem ser punidos. A ideia é simples, Jorge não se comportou
de forma correta ao gastar toda a fortuna de seu pai e, mesmo que
tenha mantido a alma limpa, conforme o narrador sempre cita, e tenha se mostrado arrependido de tudo, não pode ainda ser absolvido
porque seu erro acarretou-lhe um mal maior, a perda da honra de seu
pai e de sua fortuna; por isso deve ser punido, através de uma vida de
miséria e sacrifício, para que possa purgar todos os seus erros e servir
de exemplo: “Contudo, como já se havia de alguma maneira preparado
para uma vida laboriosa pelo tédio que lhe deixaram os seus anos de
loucura, aceitou com uma espécie de resignação o castigo que lhe deva
a Providência.” (ALENCAR, 2002, p. 58).
Nesse sentido, podemos ver que a descrição que o narrador
fará do modo como Jorge se propõe a recuperar a honra de seu pai e
o amor de Carolina receberá a conotação por parte deste narrador de
uma verdadeira via-crucis. Ao apresentar a vida do personagem como
uma forma de expiar seu pecado, o discurso do narrador apresenta um
caráter pedagógico, pelo qual deixa bem claro quais serão as amargas
consequências que cabem àqueles que se comportam de forma semelhante a Jorge. É como se o narrador estivesse dizendo: “Veja bem
o que acontece com quem se comporta como Jorge. Olha só que vida
dura para quem perde uma herança.”
Pelo modo como o narrador descreve esse processo à sua prima, o personagem passará por pelo menos dois momentos que marcaram sua via-crucis particular: um primeiro, que se dá ainda em seu
meio social e consiste na impossibilidade de efetivar sua união com
Carolina, na simulação da morte e na troca do nome; um segundo momento, que se dará quando o personagem já se encontra no espaço
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que lhe cabe como homem pobre e leva uma vida de pobreza, submetendo-se a uma habitação e uma alimentação muito precárias e ao
mais penoso de todos os castigos, o trabalho.
A primeira desgraça a que o personagem é submetido é a impossibilidade de dar continuidade ao casamento com Carolina devido
à sua desonra e sua situação econômica. Percebe-se, como já dissemos
acima, que o dinheiro é essencial à felicidade e, mesmo que haja amor
entre os personagens, ele é insignificante diante de uma vida certa de
privações e sofrimento. Note-se, entretanto, que a atitude de Jorge de
não consumar o seu casamento mantendo Carolina virgem é descrita
como um ato de lealdade e honra por seu narrador:
A pobre menina, que o amava, que dormia tranquilamente embalada por algum sonho prazenteiro, que esperava com a inocência
de um anjo e a paixão de uma mulher a hora dessa ventura suprema de duas almas a confundirem-se num mesmo beijo!
Podia ele, desgraçado, miserável, escarnecido, iludir ainda por um
dia esse coração e ligar essa vida de inocência e de flores à existência de um homem perdido?
Não: seria um crime, uma infâmia, que a nobreza de sua alma repelia; sentia-se bastante desgraçado, é verdade, mas essa desgraça
era o resultado de uma falta, de uma bem grava falta, mas não de
um ato vergonhoso.
O seu casamento, pois, não podia mais efetuar-se; o seu dever, a
sua lealdade, exigiam que confessasse a D. Maria e à sua filha as razões que tornavam impossível esta união. (ALENCAR, 2002, p. 61).
Os outros três acontecimentos que na vida de Jorge semanticamente se equivalem, e que são descritos pelo narrador como uma
forma de expiação para seus erros, são: a morte, metafórica é claro,
que se dá quando o personagem, após saber de sua situação de pobreza, é aconselhado por seu tutor a simular uma morte, a fim de clandestinamente recuperar a honra de seu pai; a troca de nome, que ocorre
logo após sua morte, quando começa a trabalhar como comerciante;
e, por fim, sua viagem ao exterior, que ocorre também logo após a
simulação de sua morte com ajuda do Sr. Almeida. Os três, em seu conjunto, demonstram que não há mais espaço para um homem pobre e
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falido em uma sociedade em que o dinheiro dita as regras de convívio
social.
A mudança do nome, por sua vez, de Jorge para Carlos, como
ficou conhecido no meio comercial em que trabalhava, marca também
a total perda da identidade desse personagem. Funcionando como
uma metáfora, a mudança de nome é marca de uma mudança social
e geográfica e não só um disfarce para que sua verdadeira identidade
não fosse percebida. É interessante notar, também, que o narrador, até
o momento em que o personagem resolva seus conflitos e volte a sua
vida normal, o nomeia como sendo Carlos. Isto porque busca ser fiel
aos mínimos detalhes da história contada à sua prima.
Já a morte, mesmo que metafórica, marca o desaparecimento
do personagem do meio dos ricos, um meio ao qual não mais se adequava: “Jorge era o verdadeiro nome desse moço que morrera para
o mundo e que, durante cinco anos, vivera como um estranho sem
família, sem parentes, sem amigo, ou como uma sombra errante condenada à expiação de suas faltas.” (ALENCAR, 2002, p. 84).
Além disso, nos romances de Alencar os seus personagens
nunca despendem horas diárias com atividades relacionadas ao trabalho. No entanto, o personagem, para recuperar a honra de seu pai, precisa trabalhar. Assim sendo, Alencar argutamente suspende a narrativa
com o recurso da simulação da morte do personagem, que reaparece,
depois de passados cinco anos, com mais da metade do dinheiro necessário para recuperar as apólices de seu pai, e a simulação da morte
é explicada como sendo uma ideia do Sr. Almeida, para que Jorge pudesse clandestinamente trabalhar: “Cinco anos decorreram depois dos
tristes acontecimentos que acabamos de narrar. Estamos na Praça do
Comércio.” (ALENCAR, 2002, p. 71).
Vê-se, desse modo, que o trabalho é apresentado como morte
a quem por ele cabe ganhar a vida. E tratando da relação entre autor e
público, era assunto evitado, certamente pelo seu caráter enfadonho
e inadequado para um público para o qual a leitura era uma forma
de entretenimento: “Seria longo descrever a vida desse moço, morto
para o mundo e existindo, contudo, para sofrer; durante cinco anos,
alimentou-se de recordações e de uma esperança que lhe dava forças
e coragem para lutar.” (ALENCAR, 2002, p. 86).
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A mudança para os Estados Unidos, por conselho do Sr.
Almeida, por sua vez, marca também o desaparecimento do personagem de um espaço que não lhe cabe mais.
Uma vez definido o espaço que cabe a esse personagem, o
narrador começa a demonstrar a desgraça e a vida precária que Jorge
levou quando voltou dos Estados Unidos para recuperar de vez as apólices de seu pai e limpar sua honra. Aqui estamos em um segundo momento de expiação das faltas do personagem.
A casa do personagem é descrita como um lugar o mais pobre
possível. O personagem deve pagar o luxo de outrora com a pobreza
de hoje:
Entrando em seu aposento, Carlos fechou a porta de novo; e, sentando-se em um tamborete que havia perto da carteira, escondeu
afronte nas mãos com um gesto de desespero.
O aposento era de uma pobreza e nudez que pouco distava da miséria. Entre as quatro paredes que compreendiam o espaço de uma
braça esclarecido por uma janela estreita, via-se a cama de lona pobremente vestida, uma mala de viagem, a carteira e o tamborete.
(ALENCAR, 2002, p. 77).
Sua refeição diária é, ainda, mais miserável que sua casa e,
segundo as observações do próprio narrador, equivale ao valor de uma
esmola e um pouco mais do que se gastava com a refeição de um negro naquela época:
Terminadas as suas contas, esse homem, que acabava de guardar uma soma avultada, que naquele mesmo dia tinha ganho
6:000$000 líquidos, abriu uma gaveta, tirou quatro moedas de cobre, meteu-as no bolso do colete e dispôs-se a sair.
Aquelas quatros moedas de cobre eram um segredo da expiação
corajosa, da miséria voluntária a que se condenara um moço que
sentia a sede do gozo e tinha ao alcance da mão com que satisfazer
por um mês, talvez por um ano, todos os caprichos de sua imaginação.
Aquelas moedas de cobre eram o preço do seu jantar; eram a taxa
fixa e invariável da sua segunda refeição diária; eram a esmola que
a sua razão atirava ao corpo para satisfação da necessidade indecli-
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nável da alimentação. (ALENCAR, 2002, p. 78).
Mas o que é descrito como o pior dos castigos ainda está por
ser enunciado, sendo ele o trabalho. É nítido no diálogo entre Jorge e o
Sr. Almeida, logo após o anúncio de que estava pobre, o desprezo que
se tinha por essa atividade:
Contudo, como já se havia de alguma maneira preparado para uma
vida laboriosa pelo tédio que lhe deixaram os seus anos de loucura,
aceitou com uma espécie de resignação o castigo que lhe dava a
Providência.
-Estou pobre, disse ele, respondendo ao Sr. Almeida, não importa;
sou moço, trabalharei e, como meu pai, hei de fazer fortuna.
O velho abanou a cabeça com uma certa ironia misturada de tristeza. (ALENCAR, 2002, p. 52).
O modo como o Sr. Almeida gesticula, após a declaração de
Jorge que iria trabalhar para recuperar sua fortuna, por si só demonstra o desprezo que se tinha pelo trabalho, o que é coerente com o pensamento da época segundo o qual esta atividade carregava o estigma
da escravidão.
Dessa forma, o trabalho é sempre descrito pelo narrador através de palavras que denotam a ideia de penitência, sacrifício, fazendo
com que pareça o pior dos castigos cabíveis ao personagem:
Era um homem arrependido que cumpria a penitência do trabalho,
depois de ter gasto o seu tempo e os seus haveres em loucuras e
desvarios. Era um filho da riqueza, que, tendo esbanjado a sua fortuna, comprava, com sacrifício do seu bem-estar, o direito de poder
realizar uma promessa sagrada. (ALENCAR, 2002, p. 68).
É interessante notar, ainda, que o narrador qualifica o universo
do pobre e a própria vida do personagem através de vocábulos ligados
à ideia de sofrimento, de martírio, de penitência, e de desgraça, enfim,
um verdadeiro purgatório adequadíssimo para os que precisam expiar
seus pecados.
O modo como descreve a trajetória do personagem para recu-
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perar sua fortuna é muito eficaz como configuração de um ambiente
penoso reservado aos que não seguem as normas de conduta impostas pela sociedade. O ambiente, assim descrito, faz com que o caráter
pedagógico da obra seja mais eficaz ao demonstrar como sofre aquele
que não sabe cuidar de seus bens materiais, ao mesmo tempo em que
demonstra, por parte da sociedade, uma total descrença na força do
trabalho.
O discurso do narrador, por um lado, tem um efeito altamente
pedagógico ao ser responsável pela configuração plástica de um espaço de sofrimento e penitência reservado àqueles que se comportam
como da mesma maneira que Jorge; por outro lado, o mesmo discurso
nos deixa inferir que a punição imposta ao personagem, como o trabalho, por exemplo, é demasiadamente penosa a uma pessoa de sua
posição social, mas o que não deixa, por sua vez, de reiterar o caráter
pedagógico da obra. Há uma fala do Sr. Almeida que talvez ilustre o
que estamos inferindo. O Sr. Almeida, ao dialogar com Jorge sobre o
lugar onde o personagem costumava jantar, o demonstra como um
lugar demasiadamente pobre, denotando a ele um castigo exagerado imposto ao personagem, isto porque para o narrador, apesar de o
personagem ter errado, é sempre um homem arrependido e honrado,
como procuramos demonstrar na cena do casamento:
-É aqui que costuma jantar. E por isso adivinho qual tem sido a sua
existência, durante estes cinco anos. Impôs-se a si mesmo o castigo
da sua antiga prodigalidade; puniu o luxo de outrora com a miséria
de hoje. É nobre, mas é exagerado. (ALENCAR, 2002, p. 80).
Se Jorge sofre para expiar seus pecados, parece que, em relação ao seu trabalho, não precisa fazer muitos esforços para recuperar
as apólices de seu pai. No final do romance ficamos sabendo que o
Sr. Almeida é quem ajuda Jorge a recuperar as últimas apólices da firma de seu pai, o que demonstra que o trabalho não é suficiente para
regenerar a honra do personagem e muito menos para enriquecê-lo,
cabendo a um personagem rico, como Sr. Almeida, salvar um pobre,
como Jorge. O menosprezo por uma atividade que já se sabe de antemão que não rende nada e que não é suficiente para recuperar fortuna
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ou honra alguma explica, por sua vez, a razão por que a apresentação
do trabalho e a vida do personagem se fazem presentes através de um
caráter tão penoso e sacrificante.
Depois de estabelecida sua honra, chega ao fim a sua via-crucis. Porém, parece-nos que agora começa a tortura de Carolina. Mas
antes de analisarmos como isso se deu, devemos fazer algumas considerações em relação a essa personagem.
Apesar de a obra receber como título o nome com que
Carolina ficou conhecida na sociedade após a “morte” de seu marido,
temos lido a sua história através da narração da vida de Jorge, o que é
explicável tratando-se de um narrador masculino. Ademais, a mulher,
após seu casamento, perde sua identidade, o que explica o desaparecimento momentâneo da personagem. Somente depois de restabelecida a situação econômica de Jorge, Carolina volta à cena no romance,
no capítulo XV, em que nos é apresentada como a digna esposa que,
mesmo com a morte de seu marido, guarda, ainda, veneração por sua
imagem:
Tinha decorrido um ano.
Começou a viver dentro de seu coração, com as reminiscências do
seu amor, como uma sombra que se sentava a seu lado, que lhe
murmurava ao ouvido palavras sempre repetidas e sempre novas
sonhava no passado, diferente nisso das outras moças, que sonhavam no futuro. (ALENCAR, 2002, p. 98).
A situação de Carolina é um tanto diferente das outras mulheres que habitam o romance de Alencar. Carolina é viúva, aliás, a única
jovem viúva protagonista de seus romances. O estado civil de Carolina
lhe dava possibilidade de casar-se novamente. Entretanto, veremos
que ela se comporta como uma mulher ainda casada, buscando a todo
momento delimitar o espaço que lhe serve como esposa. Veremos que
é constante o cruzamento entre o presente – como o espaço da viúva
– e o passado – o espaço reservado a Carolina como da esposa. Em
primeiro lugar, a roupa preta – que representa seu estado de viúva – é
imposta pela personagem como um interdito a qualquer aproximação
de outro homem. O próprio quarto da personagem serve como um
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espaço que delimita a influência exterior, sendo o espaço reservado às
recordações de seu passado.
No entanto, há uma circunstância que gera um maior conflito
na vida de Carolina: o aparecimento de certo homem que vem deixar
em sua janela uma flor todas as noites. Esse acontecimento desequilibra os limites dados por ela ao que denominei como o espaço do
presente e o espaço do passado. Carolina, que a princípio resistia a
tudo, começa a ceder à situação, mas tenta resistir a essa paixão por
sentir que devia lealdade à memória de seu marido. Mesmo que acabe
por apaixonar-se, há o interdito da memória, a honra e o dever com
seu marido, que serão os responsáveis pela delimitação do espaço da
viúva.
Podemos pensar que o autor, ao colocar Carolina nesse pequeno dilema entre a paixão a um desconhecido e a honra do falecido,
procura demonstrar que, mesmo depois da morte de seu marido, a
personagem deve honrar a sua imagem. O espaço do interdito que a
Viuvinha cria para si reforça a concepção de que a mulher deve submeter-se a seu marido, na condição de seu dono e senhor, mesmo que
morto. É nítido na atitude de Carolina um comportamento semelhante
à maioria das mulheres casadas que aparecem nos romances do século XIX, ou seja, a entrega total a seu marido, após seu casamento, a
ponto de perder sua identidade, bem de acordo com a ideologia que
perpassa outros romances de Alencar em que a finalidade da mulher é
casar-se e viver para seu marido.
2 CONCLUSÃO
Entretanto, a obra apresenta um final feliz: Carolina volta a viver com seu marido e a situação é normalizada. Agora sim, podemos
dizer que o suplício de Jorge e de Carolina chegou ao fim. No entanto,
depois de tanto sofrimento, parece-nos que a eles só resta a felicidade
em um lugar bem recluso da sociedade. E é neste sentido que se mudam para um bairro afastado da cidade a fim de não serem importunados pelos curiosos. Aqui, como em outros romances de Alencar, os
lugares distanciados servem como localidades escolhidas para os que
de certa forma transgrediram a ordem social e para os menos avanta-
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jados economicamente: o bairro de Santa Teresa e o Centro como o
lugar dos economicamente menos favorecidos e Laranjeiras, Botafogo,
como os lugares dos que possuem uma posição econômica melhor. A
própria protagonista da obra vive em Santa Teresa, onde se dá o início
do romance, e Jorge, ao ter que se submeter a uma vida de privações
para recuperar a honra de seu pai e o amor de Carolina, acaba morando em um pequeno sótão, na Rua da Misericórdia. Ao mudar de vida, o
personagem deve necessariamente mudar de endereço. E é no Centro
da cidade, no comércio, que vai purgar seus pecados através do trabalho. É interessante que o personagem, que deva purgar seus pecados,
vá morar, justamente, em uma rua que tem por nome Misericórdia,
sugestivo para quem a vida é descrita como sendo de sofrimentos.
Depois de tanto sofrimento, lamentações, desgraças, martírios, a santa paz volta a reinar. O narrador termina por contar a história
à sua prima e, por sua vez, o romance cumpre seu intuito de orientar
as condutas sociais. O nosso texto também chega ao fim, apesar da
angústia e da certeza de ter deixado de analisar muitos aspectos importantes que estão nas entrelinhas e linhas do romance.
REFERÊNCIAS
ALENCAR, José de. Cinco minutos e a viuvinha. São Paulo: Ática, 2002.
______. Obras Completas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. v. 3.
LAJOLO, Marisa. O Alencar dos primeiros tempos. In: ALENCAR, José
de. A viuvinha. São Paulo: Ática, 2002.
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. José de Alencar e sua época. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977.
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