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NOTÍCIAS
MAGAZINE
#1072 09.NOVEMBRO.2014
W W W. N OT I CI A S M AG A ZI N E . P T
JOSÉ CID
«SÓ NÃO CANTO
FADO DE
COIMBRA»
Débora Amorim
joga online quase
todos os dias.
«Nunca me senti
discriminada por
ser mulher.»
JOGOS
no feminino
JÁ NÃO É UMA QUESTÃO DE GÉNERO: HÁ CADA VEZ MAIS MULHERES,
DE TODAS AS IDADES, ATRAÍDAS PELOS JOGOS ELETRÓNICOS
SEMANAL, ESTA REVISTA FAZ PARTE INTEGRANTE DO DIÁRIO DE NOTÍCIAS N.º 53 168 E DO JORNAL DE NOTÍCIAS N.º 161/127. NÃO PODE SER VENDIDA SEPARADAMENTE
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Marta Dinis e Marcelo Carvalho
passavam horas a jogar Mortal Kombat.
Agora que vivem juntos, a paixão pelos
jogos eletrónicos continua a ocupar
boa parte do tempo do casal.
o comando
é delas
Os jogos eletrónicos já não são coisa de adolescentes
e de homens adultos. Graças ao mobile gamming,
o número de mulheres que joga está a crescer e há
uma revolução em curso que promete estilhaçar
os estereótipos de uma poderosa indústria, com a
mesma facilidade com que se rebentam bolas às cores
no Bubble Witch Saga. A poucos dias do início, em
Lisboa, de uma conferência internacional sobre jogos
eletrónicos, falámos com mulheres e especialistas
sobre este fenómeno cada vez mais natural.
TEXTO DE RUI PELEJÃO FOTOGRAFIAS DE ORLANDO ALMEIDA/GLOBAL IMAGENS
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REPORTAGEM
O MOBILE GAMMING (JOGO ELETRÓNICO EM TABLETS
OU SMARTPHONES) DEMOCRATIZOU E FACILITOU O ACESSO
AOS JOGOS E FEZ CRESCER O UNIVERSO DE MULHERES
A JOGAR NO MUNDO INTEIRO.
O
Débora Amorim tem 20 anos e joga quase todos os dias um jogo multiplayer
online que já lhe permitiu fazer alguns amigos na «vida real».
s bailes de carnaval e de verão
do Casino das Caldas da Rainha
eram o epicentro da vida social da
cidade nas décadas de 50 e 60 do
século passado. A estância termal
já tinha perdido muito da sua importância, mas o casino mantinha
o glamour e a exuberância do tempo em que a aristocracia e a alta burguesia iam a banhos às Caldas. Mas não era só por causa dos bailes
que Ana Paula Carvalho, Anabela Afonso e Fernanda
Branco frequentavam o casino.
«Era também por causa do jogo», explica Ana Paula. «Naquele tempo, havia nas Caldas umas velhotas muito finas e compostas, refugiadas da Segunda
Guerra Mundial, que jogavam à séria», diz Anabela
Afonso. «Nós éramos miúdas e começámos também
a jogar. Era jogo e bailes, praia pouco. Fui eleita Miss
Praia num daqueles verões sem nunca ter posto os pés
na praia. Passávamos os dia a jogar canasta, king ou
bom dia senhorita.»
O prazer do jogo, especialmente da canasta, acompanhou-as pela vida fora. Até entrarem na era do jogo
digital. «Tudo começou com a canasta no Yahoo», diz
Fernanda Branco. «Cada vez tínhamos mais dificuldade em reunir pessoas para uma mesa e o jogo online acabou por substituir as mesas que ainda vamos fazendo, mas cada vez mais esporadicamente.»
Rapidamente o leque de jogos eletrónicos se foi
abrindo, mas foi com o Facebook e com o fenómeno do
Farmville que as três amigas, entre os 57 e os 63 anos,
encontraram uma dinâmica comum. Susana Gambino acabou por juntar-se-lhes e aderir à febre das quintas virtuais. Rapidamente a vida agrícola tomou conta das conversas. «Às vezes, se estávamos com alguém
que não jogava, parecíamos de outro planeta, a falar
das vaquinhas, das cenouras e dos aviões que precisávamos para as nossas quintas.» Ana Rolim, que confessa nunca ter tido grande apetência pelo jogo, acabou por aderir à movida na era do Bubble Witch Saga,
que é agora o jogo que as une, «porque já não suportava ficar de fora das conversas!».
As latifundiárias virtuais das Caldas da Rainha
chegaram a ter várias explorações agrícolas ao mesmo tempo, «o que dava um trabalho danado, para ordenhar as vaquinhas, apanhar as colheitas e manter
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Ana Pacheco,
arquiteta paisagista
e ilustradora,
acredita que os
jogos eletrónicos
lhe oferecem um
bom imaginário
para o seu trabalho.
tudo a funcionar», recorda Ana Paula Carvalho. «Por
vezes pedíamos umas às outras para tratar das nossas
quintas quando íamos de férias, dávamos a password
do Facebook e tudo», acrescenta Susana Gambino.
O jogo eletrónico ocupa uma pequena, mas importante, parte do quotidiano destas mulheres. Telefonam umas às outras para pedir dicas e chegam a ter
uma rotina diária. «Agora jogamos ao Bubble Witch»,
diz Susana Gambino. «Depois de arrumar a cozinha
ou à noite distraio-me e divirto-me a estar ali uma ou
duas horas concentrada naquilo.» Os maridos não parecem importar-se muito com o tempo que elas passam em frente aos tablets ou aos monitores – o consumo de jogos eletrónicos alargou-se nos últimos anos
para outras plataformas, além do tradicional PC.
Mas não jogam. «Eles são uns infoexcluídos», diz Ana
Paula Carvalho entre gargalhadas. «O meu de vez em
quando começa com a conversa “Lá estás tu com o jogo das bolinhas”, mas não me chateia muito com isso.» «Eu jogo muito no tablet, enquanto o meu marido
está a ler, a ouvir música ou a ver filmes», acrescenta
Susana Gambino.
O CONSUMO DE JOGOS ELETRÓNICOS disparou na
última década, tornando-se um dos maiores fenómenos de consumo e de entretenimento, definindo novas formas de sociabilidade e convívio. Tradicionalmente o jogo é associado aos homens. Quantas vezes
já vimos grupos de mulheres a jogar dominó ou sueca nos bancos de jardim ou nas mesas dos cafés? As
O FUTURO DOS
JOGOS ELETRÓNICOS
EM LISBOA
W
omen on Games é um dos muitos painéis
de debate da Lisbon Game Conference,
que decorrererá no ISCTE-IUL nos próximos
dias 11 e 12 de novembro. A importância das
mulheres como consumidoras e o seu papel na
produção de conteúdos para jogos eletrónicos
é apenas um dos temas que durante dois dias
ocupará especialistas de várias áreas na conferência a decorrer em Lisboa. Pedro Sebastião,
um dos promotores da iniciativa, explica que
o objetivo é reunir a comunidade de desenvolvimento de jogos em Portugal, as start-ups
que se começam a dedicar ao mobile gaming
e também especialistas nacionais e internacionais em jogos eletrónicos, um mercado de
crescimento e que pode constituir boa opção
de carreira para muitos jovens. O programa
inclui workshops sobre modelação, animação,
projeto e desenvolvimento de jogos.
Informações em lisbongameconf.iscte-iul.pt.
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REPORTAGEM
mulheres preferem ser mais discretas nas rotinas de
jogo e há um certo estigma associado ao jogo eletrónico, ou se quisermos, um certo «sentimento de culpa» por queimar pestanas e horas nos jogos do Facebook – que muita gente joga, apesar de não o admitir. Candy Crush Saga é jogado todos os dias por 93
milhões de utilizadores, tendo-se tornado um sucesso maior do que o fenómeno Angry Birds (o jogo com
pássaros catapultados que deverão derrubar obstáculos, lançado pela empresa finlandesa Rovio Entertainment em 2009) nas diversas plataformas: Facebook, Android e iOS.
Se há coisa que a disseminação da tecnologia permitiu, foi implodir com alguns estereótipos – nomeadamente aquele que associa o jogador de videojogos a
adolescentes. O mobile gaming (jogo eletrónico em plataformas como os tablets ou smartphones) democratizou e facilitou o acesso aos jogos e fez crescer o universo de mulheres a jogar no mundo inteiro, o que tem
um impacto determinante numa indústria que, em
muitos aspetos, superou a cinematográfica, gerando
lucros anuais de quarenta mil milhões de euros.
Um estudo recente da Entertainement Software Association colocou as mulheres adultas no topo da «cadeia alimentar» dos consumidores de jogos nos EUA.
As mulheres representam 36 por cento do universo de
gammers, seguidas pelos homens adultos com 35 por
cento de share e dos tais adolescentes que se julgava serem os «reis do gaming», com apenas 17 por cento.
Outro dado interessante do estudo é que o segmento demográfico que mais cresceu no consumo
de jogos eletrónicos foi o das mulheres com mais de
50 anos (mais 32 por cento entre 2012 e 2013). Parece
que as amigas das Caldas da Rainha tipificam, à sua
escala, uma tendência global.
Mas as mulheres não se entretêm apenas a decorar a casa no The Sims, a trocar doces no Candy Crush
e a rebentar balões no Bobbles. Muitas estão também
AS MULHERES NÃO SE ENTRETÊM APENAS A DECORAR A CASA
NO THE SIMS OU A TROCAR DOCES NO CANDY CRUSH. MUITAS
ESTÃO TAMBÉM PRONTAS PARA A GUERRA E PARA DAR UMA
SOVA NOS RAPAZES NOS CHAMADOS HARDCORE GAMES, EM QUE
A INDÚSTRIA MAIS INVESTE EM DESENVOLVIMENTO E MARKETING.
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prontas para a guerra e para dar uma sova nos rapazes
nos chamados hardcore games, em que tradicionalmente a
indústria mais investe em desenvolvimento e marketing.
«Há uma ideia incorreta e não demonstrável que,
nos jogos eletrónicos, as mulheres só querem fazer
compras, vestir as bonecas, tagarelar ou jogar bonitinho», diz Elisabeth Hayes, investigadora da Universidade de Wisconsin e autora de um estudo intitulado Mulheres, videojogos e aprendizagem: Para lá dos
estereótipos. «Algumas até podem gostar da representação dessas atividades, mas elas também se divertem
a abater monstros, guiar carros desportivos, salvar o
mundo, construir impérios, recolher uma data de ouro e a vencerem o jogo, mesmo que ele seja violento.»
O mundo dos jogos eletrónicos já não é o «Clube
do Bolinha», onde menina não entra. As Luluzinhas
vão a jogo e armadas até aos dentes ou com as chuteiras calçadas.
ASSISTIR A UM JOGO DO REAL MADRID ao vivo para tentar melhorar as competências técnicas e táticas
no simulador de futebol FIFA não é para qualquer um.
Mas foi isso mesmo que fez Isabel Pires. «Jogo sempre
com o Real Madrid e depois de tanto treino já sou muito
difícil de bater no FIFA. Cheguei a ir ver um jogo ao vivo
para perceber melhor a tática e ver se o meu 4x3x3 estava bem montado», conta, orgulhosa, esta farmacêutica de 34 anos que não esconde a feroz competitividade. «Comecei com 13 anos a gastar moedas numa espécie de slot machine num café na Encarnação [Lisboa].
Ia lá com o meu namorado. Estava tão viciada naquilo,
que, depois de ele me levar a casa, eu saltava pela janela
e voltava ao café para tentar a minha sorte. Tanto tentei
que descobri a manha do jogo e comecei a ganhar muito dinheiro. Um dia saíram-me dez contos e foi nesse
dia que o Senhor Custódio foi dizer à minha avó que eu
andava a jogar nas máquinas a dinheiro.»
A propensão para o jogo é aliás um padrão comum
a muitas Lady Gammers. Há quase sempre um contexto e um historial que percorre os últimos trinta anos de
evolução do jogo eletrónico, desde os tempos do Pacman, dos salões de jogos de Arcade e flippers, das tardes
passadas a jogar Chuckie Egg no ZX Spectrum, as noites em branco com o Sim City ou o Civilization, evoluindo dos Game Boys às consolas da Nintendo, com o histórico Super Mario Bros a marcar uma geração, antes da
era das disquetes e CD no PC ou dos RPG (Role Playing
Game) e multiplayer online.
Ana Pacheco passou por todas essas etapas desde a
infância, em Portalegre. «Sempre adorei jogos eletrónicos. Quando a minha mãe nos comprou a primeira
consola Atari, os meus colegas da escola organizavam
excursões lá a casa para irem jogar», diz a arquiteta paisagista e ilustradora de 32 anos. «Depois passei por todas as etapas tecnológicas do jogo eletrónico até hoje.
Sou uma gammer há quase trinta anos e continuo a jogar regularmente. Agora prefiro descobrir jogos de estúdios independentes com narrativas mais elaboradas,
SELF MADE IN PORTUGAL
A
indústria dos jogos eletrónicos é dominada por
homens. Mas há exceções. Aos 40 anos, Susana
Landolt é CEO da Landka, uma start-up de Matosinhos
que lançou com sucesso um jogo chamado Back in
Time «destacado pela Apple e pelo New York Times e
um dos vencedores do World Summit Awards», explica
a engenheira química, também formada em Design da
Comunicação. A empresa lançou recentemente um
segundo jogo, Kiwaka, que contou com a colaboração da
Agência Espacial Europeia. «O jogo de astronomia gira
à volta de uma lenda antiga que diz que os pirilampos
transportam a luz das estrelas. À medida que se vão
completando constelações, vamos tendo acesso às
antigas histórias mitológicas. A história é contada no livro
interativo pela voz do ator Diogo Morgado e a aventura
continua no jogo.» Apesar de desvalorizar a importância
do género no desenvolvimento das aplicações da
sua empresa, Susana concorda que nas aplicações
pedagógicas é bom haver sensibilidade feminina. «Ainda
são as mães que mais acompanham o progresso escolar
dos filhos e essa experiência é importante para o design
e conceção de novos produtos educacionais.»
QUANDO O JOGO
FICA PATOLÓGICO
N
ão se sabe ao certo quantas pessoas afeta, mas a dependência de jogos online é um problema sério – que
começa também a preocupar os responsáveis do Serviço
Nacional de Saúde, que já está a formar profissionais
para dar resposta a às necessidades. «No jogo patológico existe uma incapacidade de resistir ao impulso de
jogar, que, momentaneamente, parece aliviar as tensões
sentidas, acompanhada de uma sensação de prazer e
euforia com fantasia de sucesso», diz o psicólogo José
Eduardo Silva, diretor de Villa Ramadas, instituição especializada no tratamento de vários tipos de dependências.
Nas situações mais extremas de dependência do jogo
eletrónico, há gammers que negligenciam a higiene e as
relações sociais, que abandonam o trabalho e os estudos
e há até casos documentados de subnutrição. «No casos
das mulheres que temos acompanhado, encontramos
uma autoestima fragilizada, insegurança, sentimentos de
vazio, inferioridade e de solidão, necessidade extrema de
reconhecimento social, em que o jogo online acaba por
ser um escape emocional, uma estratégia de compensação para lidar com este sofrimento psicológico. Entre
alguns acontecimentos que precipitam ou espoletam
este estado, podemos destacar processos de divórcio e
situações de perda ou traição.»
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aventuras gráficas e Role Playing Games. Os jogos ajudam-me na minha cultura visual e gráfica, importante
para o meu trabalho como ilustradora.»
Rita Espanha, socióloga e investigadora do ISCTE,
admite que apesar de não haver dados muito atualizados sobre o tipo de jogos que as mulheres preferem, «é
possível afirmar que essa diferenciação também terá
tendência para o esbatimento, sendo que muito provavelmente continuará a existir uma preferência marcada pelo género em alguns casos concretos (desporto e
ação mais para rapazes, jogos de construção e de simulação mais para raparigas)... mas claramente com tendência para se esbater. As novas gerações não são tão
sensíveis ao complexo do “menina não entra”».
Débora Amorim, por exemplo, está imersa há cerca
de um ano e meio num tipo de jogo tradicionalmente
«para rapazes». É um MOBA (Multiplayer Online Battle
Arena), chama-se League of Legends e reúne, em equipas de cinco jogadores online, avatares que vão combater num mundo imaginário: «É um jogo que requer estratégia e destreza. Cada jogo pode durar de meia hora
a uma hora e meia. Normalmente faço um à tarde e outro à noite», explica a jovem de 20 anos que trabalha numa fábrica de confeções. «Durante o jogo estamos em
comunicação com os outros jogadores, por Skype ou em
streaming. Alguns deles estão do outro lado do mundo.
O que gosto neste jogo é o desafio de ir melhorando o
meu nível. Também é giro encontrar pessoas com gostos comuns e até fazer amizades. Nunca me senti descriminada por ser mulher.»
MARTA DINIS VIVE COM MARCELO CARVALHO. Ao
contrário do que se passa com alguns maridos das senhoras do grupo das Caldas da Rainha, Marcelo e Marta partilham a paixão dos videojogos. Como este Injustice, que jogam agora. Catwoman, elegantemente vestida no seu fato de cabedal felino, desfere uma violenta
chicotada em Batman, que retribui sem cavalheirismo,
projetando um carro em chamas contra a sua adversária. Yoshi, um dos gatos lá de casa, batizado em homenagem ao dragão de Super Mario, passeia indolente pela sala, amuado com a batalha que tem lugar no grande
ecrã e que exige toda a atenção dos donos.
Marta não evita soltar um queixume quando Catwoman é vítima de mais um ato de violência doméstica de
Batman. «Ui, isso doeu!» A jogadora assume as dores
da heroína que controla no jogo, um dos muitos que este casal de namorados tem na sua estante, além de objetos de coleção que denunciam uma paixão antiga, como o primeiro Spectrum.
Na história do casal (ela tem 34, ele 35), os jogos eletrónicos ocupam um lugar curioso. «Conhecemo-nos
online e a primeira vez que fui a casa dos pais do Marcelo estivemos os dois a jogar Mortal Kombat. Quando
começámos a viver juntos, os jogos eletrónicos continuaram a ocupar uma parte importante do nosso
tempo livre. Agora jogamos coisas diferentes, porque
eu tenho mau perder, mas cada um respeita o tempo
e o espaço de jogo do outro», explica a adepta de Lara
Croft e do jogo Tomb Raider, um dos raros onde o herói
é uma personagem feminina.
«Houve uma altura em que jogámos muito ao Guitar
Hero e a jogos de combate, agora cada qual faz os seus
jogos», acrescenta Marcelo. «Em conjunto temos os puzzles físicos – outra das nossas paixões. Gerimos bem
o tempo de gaming. Eu por exemplo trabalho em casa
o dia todo, sou analista informático, e tenho bem delimitado o tempo que uso a jogar alguns dos meus jogos preferidos, de exploração e mapas, como o Uncharted ou o Grand Theft Auto V que levam muitas horas para completar.» No seu tempo livre, Marcelo desenvolve
também alguns jogos para Android.
Partilhar o prazer e o divertimento que os jogos eletrónicos podem oferecer é um fator de equilíbrio importante numa relação onde há pelo menos um gammer. O ideal é haver dois, como no caso de Marta e
Marcelo, ou de Isabel Pires e o seu ex-marido. «Jogávamos os dois horas a fio, especialmente jogos de futebol e de corridas de automóveis. Havia uma grande cumplicidade nisso. Ele chamava-me a Rainha das
Ovais, as pistas circulares no Grande Turismo e eu geria-lhe a carreira no jogo, comprando peças para o
carro, pneus, amortecedores e isso tudo. Era mesmo
uma grande camaradagem que acabou quando nos
separamos. Ele ficou com a PlayStation e passei só a
jogar quando vou a casa dos meus pais.»
Quando a relação com o gaming é desproporcionada pode gerar conflitos conjugais, como confessa
com humor a arquiteta Ana Pacheco: «Nunca mais
volto a ter um namorado que não jogue. Tive um que
Isabel Pires,
farmacêutica de
34 anos, foi ver um
jogo do Real Madrid
para melhorar o
seu esquema tático
no simulador de
futebol FIFA. Mas
do que ela gosta
mesmo é de jogos
de corridas
de carros.
NOS EUA, AS MULHERES REPRESENTAM 36 POR CENTO DO
UNIVERSO DE GAMMERS, SEGUIDAS PELOS HOMENS ADULTOS COM
35 POR CENTO DE SHARE E DOS ADOLESCENTES, QUE SE JULGAVA
SEREM OS «REIS DO GAMING», COM APENAS 17 POR CENTO.
FONTE: ENTERTAINEMENT SOFTWARE ASSOCIATION
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«O JOGO ELETRÓNICO E ONLINE é uma parte importante da ocupação do tempo de entretenimento»,
diz a socióloga Rita Espanha. «Isto acaba por influenciar o tipo de sociabilidade e também o tipo de aprendizagens. Mas não temos de ser conservadores nessas
matérias. É verdade que é tempo que, eventualmente,
deixa de ser dedicado a outras atividades, tradicionalmente mais reconhecidas, mas, na sociedade atual, o
tipo de sociabilidades que se constroem a partir dos
interesses partilhados são tão ou mais importantes do
que as de conveniência – como frequentar a mesma
escola ou viver no mesmo bairro.»
Os jogos eletrónicos começam também a ter utilização terapêutica, especialmente na terceira idade. NeuroRacer, por exemplo, é um jogo americano que está a
ser desenvolvido em cooperação com neurologistas e
psiquiatras e que estimula a destreza, a perceção espacial e a capacidade de memorização de pessoas entre os
70 e os 85 anos.
Mas também há aspetos menos positivos, como as
acusações de sexismo e misoginia desta indústria.
Um estudo da Universidade do Wisconsin corrobora uma destas teses, a de que os jogos representam as
mulheres como estereótipos – ou donzela em apuros
ou objeto sexual. De acordo com a investigação, 85 por
cento das personagens jogáveis são do género masculino. Mesmo no jogo Harry Potter foi preciso haver
uma onda de indignação dos fãs para a personagem de
Hermione passar a ser «jogável». A indústria dos jogos está consciente deste problema, e provavelmente
nos próximos anos vamos assistir ao aparecimento de
Ana Paula Carvalho,
Anabela Afonso,
Fernanda Branco,
Susana Gambino e
Ana Rolim assumem
sem complexos
o prazer de jogar.
Começaram há
muitos anos na
canastra do Yahoo
e agora trocam
dicas e truques para
passar níveis no
Puzzle Bobble.
RICARDO GRAÇA/GLOBAL IMAGENS
me estava sempre a snobar por eu estar a jogar. Dizia-me que isso era coisa de miúdos e que devia era ler livros e ir a exposições, enquanto ele estava na esplanada a ler jornais desportivos e eu só queria terminar
mais um nível do The Legend of Zelda.»
Na popular webserie americana House of Cards, a maquiavélica personagem do político Frank Underwood,
desempenhada pelo ator Kevin Spacey, termina muitos dos seus dias de intriga a jogar PlayStation para relaxar. Mais do que um genial golpe de product placement da Sony, este gesto quotidiano é comum a milhões de pessoas pelo mundo. Os videojogos oferecem
não só momentos de escape e descompressão como
melhoram competências e estimulam a atividade cerebral, desde que jogados com moderação. Há uma intensa atividade científica que estuda a influência dos
jogos no comportamento e no seu potencial de fitness
para o cérebro. Longe vão os tempos em que eram
apontados como indutores de violência, especialmente entre os jovens mais vulneráveis.
Para a infância, os jogos eletrónicos são cada vez
mais encarados como ferramentas de aprendizagem
que permitem, entre outras coisas, o desenvolvimento de apetência pelas ciências de computação, uma
das vocações mais procuradas no mercado de trabalho do século XXI.
mais heroínas como Lara Croft, até porque as mulheres representam já metade do mercado consumidor.
Sandra Páscoa, diretora de comunicação da PlayStation, admite que, apesar de a maior parte dos clientes da marca líder das vendas de consolas em Portugal serem homens, há cada vez mais mulheres a jogar
hardcore games. «Vemos isso nos torneios e campeonatos que promovemos, onde aparecem cada vez mais
raparigas. Depois há outro tipo de jogos que acabam
por conquistar mais mulheres, como o Singstar, que é
claramente um jogo social capaz de mobilizar pessoas de todas as idades e géneros. As aventuras gráficas
e os jogos de estilo cinematográfico são também um
bom exemplo de produtos que estão a captar cada vez
mais o interesse do público feminino.»
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«DEPOIS DE ARRUMAR
A COZINHA OU À NOITE,
DISTRAIO-ME E
DIVIRTO-ME ALI
UMA OU DUAS HORAS
CONCENTRADA A JOGAR
BUBBLE WATCH.»
SUSANA GAMBINO, 57 ANOS
Independentemente das polémicas sexistas ou das
diferenças de género em relação aos jogos eletrónicos,
uma coisa é certa: as mulheres jogam cada vez mais. Pelas mesmas razões que os homens: para descontrair,
descomprimir e até para se alienarem dos problemas do
quotidiano. Quando se está a jogar não se pensa em mais
nada a não ser no jogo, seja no Tetris, seja aos tiros de metralhadora num cadillac no Grand Theft Auto. «É uma espécie de ioga diário», conclui uma das jogadoras.
PRODUÇÃO DE MODA E CABELOS: FERNANDA BRITO. MAQUILHAGEM
COM PRODUTOS CLARINS: MARTA CRUZ. CABELOS: TARECA DIAS
DE ALMEIDA. A NOTÍCIAS MAGAZINE AGRADECE À PLAYSTATION
(PT.PLAYSTATION.COM), À GINGAJEANS (WWW.GINGAJEANS.COM)
E À H&M (WWW.HM.COM/PT).
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