Ler em pdf - Monja Coen

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Passosdarealizaçãoespiritual:oboieopastor
FaustinoTeixeira
PPCIR‐UFJF
Introdução
Assim como ocorre nas tradições cristã e islâmica, com mestres como
João da Cruz (1542‐1591), Teresa de Ávila (1515‐1582) e Farid ud‐Din Attar
(1142‐1220), também a tradição zen apresenta abordagens que tratam do
processo de realização espiritual do ser humano. Um dos exemplos apontados
encontra‐se na série de dez imagens, com seus respectivos comentários,
conhecidacomo“oboieopastor”.Essasclássicaspinturas,atribuídasaomestre
zen Seïkyo (Ching‐chu), remontam à dinastia Sung1, e retratam as fases do
progresso espiritual. Inicialmente eram seis imagens, mas elas se perderam.
Outra série de imagens retomando o mesmo tema foi também descoberta, e
eramoito,concluindocomocírculovazio2.
Asériedeimagensqueserãotrabalhadasaquinesteartigosãoatribuídas
aomongeepintorShûbun(1432‐1460–períodoAshikaga),quetalveztenhase
inspirado,porrazõesestilísticas,numaversãomaisantigadeautoriadomestre
zen chinês, Guo´an Shiyuan (século XII) 3 . Os comentários em prosa que
acompanhamasimagenssãodeautoriadeZekkaiChûshin(1336‐1405),quese
tornou o sexto abade de Shôkoku‐ji em 1392. O conjunto de imagens e
comentários serviram como base essencial de iniciação à prática de meditação
budista. Os comentários sobre o tema elaborados por Shizuteru Ueda em
diversas produções serviram como referência fundamental para o
desenvolvimento deste trabalho, de forma especial as reflexões presentes na
obraZenyFilosofía4etrêsoutrosartigospublicadosemsequência,ondeotema
vemigualmentedesenvolvido5.
AsdezimagensdeShûbun,queseencontramconservadasnomosteirode
Shôkoku‐ji em Kyoto, ganharam grande divulgação no Japão. Constituem peças
fundamentais para tratar o delicado processo que envolve a caminhada do ser
humanoembuscadosi‐mesmosegundoaperspectivadoZenBudismo.Otema
1EomestrerelacionadoéKaku‐anShji‐en(Kuo‐anShih‐yuan),daescolaRinzai.
2DaisetzTeitaroSUZUKI.EssaissurleBouddhismeZen.PremièreSérie.Paris:AlbinMichel,1972,
p.436.Vertambém:Id.Manualedibuddhismozen.Roma:Ubaldini,1976,p.95‐110.
faz menção a quatro séries de imagens da caça ao boi: as atribuídas a Kaku‐an
(relacionadas ao pintor Shûbun), a Seikyo, a Jitoku e de um autor desconhecido. Cf. Manualedi
buddhismozen,p.96.
4ShizuteruUEDA.ZenyFilosofía.Barcelona:Herder,2004.
5ShizuteruUEDA.ONadaabsolutonoZenemEckharteemNietzsche.In:AntonioFLORENTINO
NETO & Oswaldo GIACOIA Jr (Orgs). Onadaabsolutoeasuperaçãodoniilismo:osfundamentos
filosóficosdaEscoladeKyoto.Campinas:PHI,2013,p.205‐237;ShizuteruUEDA.Lebouddhisme
zen et Maïtre Eckhart. In: Julie CASTEIGT (Ed). MaîtreEckhart. Paris: Cerf, 2012, p. 343‐361;
ShizuteruUEDA.Silencioyhablaenelbudismozen.In:ÓscarPUJOLyAmadorVEGA(Eds).Las
palavras del silencio. El lenguaje de la ausencia en las distintas tradiciones místicas. Madrid:
Trotta,2006,p.13‐38.Eainda:
https://www.youtube.com/watch?v=bj0lCPyO9eg(acessoem05/01/2015)
3Suzuki
1
central desenvolvido relaciona‐se ao processo do despertar: o tornar‐se
verdadeiramente humano na descoberta do si mesmo essencial. Como assinala
Ueda,“ofundamentalnozenéodespertarparaaverdadedosimesmoerealizar
oeuverdadeiro.Obudismozenentendequeoeuverdadeiroé´oeusemeu`”6.
1.Aprocuradoboi
Nasériedeimagensqueseseguem,doispersonagensestãopresentes:o
boieopastor.Opastorrepresentaoserhumanonasuapermanentebuscaem
atingiroseuverdadeirosi‐mesmo.Porsuavez,oboisimbolizaosi‐mesmoque
estásendotemporariamentebuscadopelohumano.Nemsempreoboiaparece
nas figuras apresentadas, como nesta primeira que se revela ao olhar. Em
verdade,oboiapareceapenasemquatrodasimagens.
Naprimeirailustraçãooquevemoséopastorqueiniciasuabusca.Neste
momento inaugural ele ainda se encontra perdido e disperso. A imagem
apresentada relaciona‐se com a dinâmica que envolve a caminhada do ser
humano. Inicialmente aparece a questão fundamental em torno de algo que
escapa ao sujeito ou que não foi ainda detectado por ele. É o momento da
perguntaprimeira,emtornodoacessoaessealgotãoimportanteparaosujeito,
mas que ele ainda não consegue captar com clareza. Trata‐se do primeiro
arranqueexistencial,dadúvidapreambularouindagação,dasuspeitaemtorno
de um modo determinado de existência, quando o sujeito levanta a pergunta
sobre a densidade de seu eu: a dúvida sobre a sua realidade e verdade. A
primeiraimagemrelatajustamenteisto.Oiníciodeumaindagaçãoqueinterpela
e incomoda o sujeito. Mas é assim que se inicia o processo da busca do
verdadeirosimesmo.Estaindagaçãoessencialvemcarregadadeumadinâmica
existencial:“despertarparaomorrerouparaavida”7.
O si verdadeiro já se delineia nesse primeiro momento, quando a
perguntainicialvemlançada,jogadanotempo.Eoprocessoquelevaàpossível
resposta não é linear nem simplificado. Muitas vezes, essa dinâmica de busca
vempontuadaporangústiaoumesmodesespero,quandoosujeitonãoconsegue
encontrar acolhida ou refúgio. No início o que ocorre é o titubeio: não se sabe
onde andar ou o que fazer. Não se trata de uma pergunta que se restringe ao
6ShizuteruUEDA.Zenyfilosofia,p.101.
7ShizuteruUEDA.Onadaabsolutonozen...,p.212.
2
domíniointelectual,masalgoqueenvolvetodaaexistênciaequepodelançaro
sujeito no desespero. E isto pode durar tempo. A pista de acesso ao caminho
podeaconteceremumano,cincoanos,dezanos.Oimportanteémanteracesaa
vontadeefirmarcomteimosiaodesejodabusca.
Curioso perceber que a indagação filosófica começa assim, com uma
atitude de admiração. O ato de filosofar se inicia com um “afastar‐se”, não das
coisas concretas, mas das interpretações usuais que são tecidas sobre elas. É
quandoosujeitodespertaparaomirandum,ouseja,paraumapercepçãodistinta
e singular que destoa da ocular sobre a vida diária e comum. É um momento
ímpar, quando uma nova indagação provoca a busca por transparência, para
alémdasnecessidadesmaisimediatasdavida,numhorizontenovo,nummundo
maisprofundo,maisessencial,mais“invisível”8.
2.Oencontrardaspegadasdoboi
Naprimeirafiguraopastorestavaaindadesviadodesimesmo,perdido
na“imensidãoempoeirada”.Nãoconseguiaencontraralgoquepudesseorientar
a sua busca. Ao seu redor apenas “o canto das cigarras entre as árvores”, num
ambiente marcado por densa névoa9. Com a nova imagem uma mudança
acontece: surge um rastro, uma alusão. Ele consegue encontrar as pegadas do
boi,mesmonãosendoaindacapazdediscernirsobreoautênticoeoinautêntico.
Consegue acessar agora “parte do significado da verdade”, o que nem sempre
ocorre com aqueles que se lançam numa busca. Depois de tanta aventura uma
luz se anuncia: Ah... são estes rastros! Olhe! E os traços são encontrados
justamente no momento em que nos defrontamos com palavras que nos
interpelameapontamcaminhospossíveis,nosaludemvertentesnovidadeiras.
Osgrandesmestreszensublinhamqueavidacotidianaémarcadapelos
passos simples: levantar, comer, dormir... e morrer. Às vezes o buscador passa
portodasuaexistênciasemperceberasmarcasdeseumundointerior,maspode
tambémocorrerumaaberturaemrazãodeumasugestão,deumaalusão,deum
acontecimento,deumensinamentoquesedáaolongodocaminho,edeforma
8JosefPIPER.Queéfilosofar?Queéacadêmico?SãoPaulo:EPU,1981,p.26‐27.
9Paraoacessoaoscomentáriosdasdezimagenscf.ShizuteruUEDA.Zenyfilosofia,p.137‐158
(El buey e el boyero. Una antigua historia Zen china); Antonio FLORENTINO NETO & Oswaldo
GIACOIA Jr (Orgs). Onadaabsolutoeasuperaçãodoniilismo..., p. 241‐250 (Uma antiga história
Zen chinesa com gravuras japonesas do século XV). As referências aos comentários no texto
serãotomadasdessasobras.
3
muitasvezessutileinesperada.Eentãoorastroseevidencia.Nomomentoem
queseconsegueencontrarumaverdadeirapista,umasaída,ossentidosganham
uma acuidade distinta. É quando se passa a escutar e sentir, verdadeiramente,
aquela palavra. A compreensão inicial pode ainda ser prejudicada pela
imaturidade: a luz se anuncia mas escapa. Já ocorre, entretanto, um primeiro
passodetransformação,quandosecolocaparaosujeitoaimportânciaessencial
de uma prática contínua, que envolve todos os sentidos. Isto vem nomeado no
zen como zazen, a meditação sentada. Como sinaliza Ueda, o zazen vem
complementado no budismo pelo samu, que é o despojamento no serviço
prático, e o sanzen, que a interlocução de aprendizado com o outro, em
particularcomomestre10.
Apráticameditativa,emparticularozazen,revela‐secomocaminhopor
excelêncianométododoZenbudismo.Nadademuitocomplexo,apenassentar‐
se(shikantaza)edeixar‐sehabitarpelotecidointerdependentedoreal.Aprática
contínua,ouGyôji–comoanomeouomestreDôgen‐,revela‐secomoo“lugarde
confluência da presença de todas as coisas em uma situação ominiabarcante,
total”11.Estapráticanãoéexclusivadoserhumano,masenvolvetodososseres
do universo. São, porém, os humanos aqueles que se esqueceram dessa “teia
cósmica”, ou cuja memória de sua originação interdependente falhou, daí a
importânciadeatravésdapráticacontínuarealizaresseesforçopararetornaro
caminhodesuaperspectivaoriginal,devoltaàsuaprópriacasa12.
O zazen acontecenãoapenas quando se senta para meditar, mas traduz
um posicionamento vital que ocorre a todo o tempo, desde quando nos
levantamos e nos colocamos em relação com os outros, trabalhando e vivendo
ativamente. A dimensão dessa prática, que não é só teórica, vem retratada na
terceiraimagem.
10ShizuteruUEDA.Zenyfilosofia,p.109.
11José Carlos MICHELAZZO. Desapego e entrega: atitudes centrais da meditação Zen‐budista e
suasressonânciasnospensamentosdeEckhartedeHeidegger.Rever,Ano11,n.2,jul./dez.2011,
p.145.
12Ibidem,p.147.
4
3.Oencontrodoboi
Trata‐seagoradomomentoemqueopastorvêoboi,quandoentãocapta
suaformaesuavoz.Eaoabrirosolhoseacionaravisãosedácontadequeestá
diantedesimesmo:“jánãohálugarondeoboipossaesconder‐se”.Ossentidos
oscilantes ganham nova vitalidade quando capturados pela voz do boi e uma
nova sintonia se firma: “O boi, em sua totalidade, orienta agora todo agir do
pastor.Eleorientademodotãoimprescindível,comoosalparaaáguadomar,e
comoacorparaatintadopintor”.Opastor,tocadopelamaravilhosapaisagem,
põe‐seacorrer,ardentemente,masoboiescapa.Nãoháaindaposseoudomínio,
mas já se sente a proximidade de sua presença, o brilho de sua cor. Há que
capturá‐lo,eparatanto,aexigênciadeacionartodasasenergiasdossentidos.Na
simbologia zen é o momento por excelência da prática, de sua continuidade e
perseverança. De nada adiantaria ter chegado até aqui e abandonar a
empreitada.
4.Acapturadoboi
O boi vem agora capturado, mas aindaresiste. Ele que estava por muito
tempo“escondidoemumaregiãodistanteedeserta”reageaopastor.Falaainda
forte“odesejodoaromadosbrotosdopasto”,eateimosianãocedefacilmente
lugaraodomínioqueseanuncia.Aopastorcabeatenacidadeeaseveridadede
um empenho essencial. Por fim, consegue laçar o animal e retê‐lo com vigor. A
imagem traduz um novo momento da prática, de agonia e combate. Os traços
apresentadosdenotamdinamicidade,sobretudocomotensionamentodacorda.
Oquevigoraentreospersonagensétensãoeconflito.Aunidadeseanuncia,mas
ainda sob resistência e oposição. O boi busca escapar a todo custo, e assim
fazendo entra em conflito com seu interlocutor. A tensão é visível. Fazendo a
5
analogiacomozen,essemomentotraduzopassodaimpregnaçãodapráticana
existência,masadualidadeaindamostraasuaface:sãodoiscorposquelutam
avidamente. De um lado, o corpo que anseia a inserção serena na prática; de
outro, o corpo dominado pelas paixões e desejos. São dois corpos que se
frontejam,traduzindoumcampodetensões.Defato,comoexercíciodaprática
aspaixõessereforçam.Adinâmicadozazennãorevelaapenaspassividade,mas
tambémagonia,lutaempedernidacontraaspaixõesqueseagigantam.Apazdos
sentidos não se alcança sem luta e tenacidade. No processo de encarnação da
práticaécomoseencontrássemosdoiscorposquesecombatem.Eparasuperar
isso, perseverando na prática, é necessário tempo e constância. Não se sabe
quantotemporequeressecombate.Oimportanteécontinuarcomaprática,pois
sóassimpode‐sepassarparaonívelseguinte.Háummododedizernatradição
zen: praticar preocupando‐se, praticar inquietando‐se. O que isto quer dizer?
Nãosedeveentenderapráticanemcomoumpasseiooucomocoisaaprazível,
mascomoumprocessoqueenvolvelutaecombate.
5.Odomardoboi
Aconstânciadopastorfoidecisivaparaoadestramentonecessário.Com
a rédea firme e a paciência duradoura o pastor acaba conseguindo vencer a
hesitação e amansar o boi. Como assinala o comentário que acompanha a
gravura,“nodespertartudosetornaverdadeiro,naerrânciatudosetornanão
verdadeiro”.Oconflitoganhaagorapacificação,eosdoiscorposantesemlitígio
ganhamnovasintonia.Trata‐sedeumresultadoqueadvémdapráticacontínua.
Emvezdetensão,oqueocorreagoraérelaxamento,retomadadaunidade,eisto
vem representado pela corda afrouxada. Não existe mais a virulência anterior.
Vistosobopontodevistadaprática,afigurarevelaumacoisamuitoimportante:
ofatodequemesmoconsiderandoozazencomofundamental,enquantobasee
eixo da prática, há que entender que é toda a existência cotidiana que deve
tornar‐se prática. Não pode haver distinção entre o momento da prática e o
momento da não‐prática. O ser humano deve estar inserido na teia cósmica,
conscientedestaligação,assimcomoopeixeestáinterpenetradocomaágua,e
estarelaçãoéconstitutivaparaasuavida.Peixeeáguaformamumcontínuo,em
unidadenãodualística,noexercíciovivoecosturadopelapráticadanatação.No
momento em que esta unidade vem quebrada, “a essência do peixe, sua
piscidade, desaparece”13. Como assinalado num dito zen, a prática do zazen
13JoséCarlosMICHELAZZO.Desapegoeentrega,p.147.
6
ocorre mesmo quando não se faz zazen. Ou seja, o zazen envolve toda a
existência. Trata‐se de uma meditação que se desdobra na vida prática, no
movimentodetodososdias.Ainscriçãoverdadeiranozen,eopenetraremsua
verdade,éalgoqueenvolvetodoocotidiano:
“Serealmentedesejaispenetraraverdadedozen,fazei‐oenquantoestaisdepé
ou andando, dormindo ou sentados, enquanto falais ou ficais em silêncio, ou
quando estais ocupados nos diversos afazeres do trabalho cotidiano. Quando
tiverdesfeitoisso,procuraissaberdequeméadoutrinaqueestaisseguindoou
queSutrasestaisestudando”14.
Mesmo no continuar do movimento há espaço para a tranquilidade e
calma,paraadinâmicadeacomodação.Eaquisevêumacoisamuitoimportante:
doma‐seoboiporlongotempo.
6.Avoltaparacasanodorsodoboi
Aimagemagoratraduzumaintensaserenidade.Ocontrastecomaquarta
figuraémarcante.Opastortorna‐seentãoumcomoanimal,enocampodesta
unidade não há lugar para altercação. Montado no boi ele canta uma antiga
cançãodelenhadoresetocaasuaflauta,comofazemascriançasdaspequenas
cidadesdointerior.Éoquerelataocomentáriodapresentefigura.Aforçadesta
união é de intensidade impar, e nada ao redor pode desviar a atenção: “se
alguém o chama ele (o pastor) sequer olhar. Se alguém o puxa pela manga da
camisa,mesmoassimelenãoquerparar”.Eleéalguémquesimplesmentesenta
econtemplaocéuazul.
Um aspecto importante nesta imagem relaciona‐se com a ideia de
retornaràcasa,derecolher‐seàhabitação.Opastorretornaàcasamontadono
boi.Estáagoraunidoasimesmo,reinaumaharmoniaentreoeueoesimesmo.
E uma harmonia que reverbera no ambiente. Ela vem expressa pelo toque da
flauta, num som que traduz a teia de relação entre todas as coisas. A unidade
entre o boi e o pastor indica ainda a presença de duas existências que são
vizinhasmasdistintas.Masnãoháaindatotalgarantiadepazderradeira,poisa
14D.T.SUZUKI.Adoutinazendanão‐mente.SãoPaulo:Pensamento,1993,p.92‐93.
7
possibilidadederecaídapermanecevigente.Opastorpodeaindacairdoboiese
dar mal. Os grandes mestres zen sublinham a importância da permanente
atenção, do zelo contínuo na prática meditativa. Nada impede que ao chegar a
umgrauintensodealegriaesatisfaçãovenhaopraticantesofrerumrevés.Isto
significa que em momento algum, mesmo naquele que anuncia uma grande
liberdade, a prática pode deixar de acontecer. O caminho se faz no caminho, e
estacondiçãodeperegrinaçãopermanenteéumdadoessencial.Nãopodehaver
sentimento de aquisição ou posse, de garantia de chegada ou de orgulho
plenificador. Em verdade, todo e qualquer sentimento de posse deve ser
rechaçadoradicalmente.Comodizoditadotradicional:“SeencontraresoBuda,
mate‐o”.Paraatradiçãozen,esseéumpontoextremamentesensíveleperigoso:
o risco da hybris totalitária e da desmesura. Não pode haver consciência de
chegada,mesmonaproximidadedahabitação.Aquiaparecepelaprimeiraveza
palavra “casa”, no sentido de retorno à casa. É uma palavra muito importante,
poisestáaindicarolugarfundamentalemqueseencontrasituadooverdadeiro
si.
7.Oboifoiesquecidoeopastorpermanece
Procedendo a hermenêutica das ilustrações, com o aporte de Shizuteru
Ueda, verifica‐se que as sete primeiras figuras retratam em progressão os
momentos singulares que traduzem os ensinamentos budistas como a
meditação,adisciplinaeaunificaçãonabem‐aventurança.ComoindicaUeda,“o
caminho da primeira até a sétima estação é ao mesmo tempo o processo de
desprendimento do eu‐sou‐eu”15. Mas na compreensão do Zen‐budismo não
ocorre ainda a realização plena do si‐mesmo, o que só irá ocorrer na oitava
estação.
Na sétima ilustração o pastor encontra‐se só. Se antes havia o boi, que
passageiramente vinha designado como indicador do caminho, agora o boi
desapareceeopastor“seencontracomoumapepitabrilhanteretiradadamina,
oucomoaluaque,sedesvencilhandodasnuvens,reaparece”.Istovemindicado
no comentário da ilustração. Na verdade, quem se encontra ali, devotado em
meditação,nãoémaisopastor,masohomemqueserevelaasimesmo,comoo
verdadeirosi(Jiko).Écomoseoboitivesseadentradoohomem.Aquisedá,de
certa forma, a realização da pergunta que tinha sido colocada antes. É quando
começa o discurso do budismo em geral e do zen em particular. Aqui ocorre
15ShizuteruUEDA.OnadaabsolutonoZen...,p.169.
8
também um grave problema para o budismo: a consciência do tornar‐se si
verdadeiro.Aquestãoenvolveoriscodequejuntoaessatomadadeconsciência
venha em seu bojo o retorno do velho eu. Na imagem vemos o homem em
postura de veneração diante da lua, como agradecendo pelo fato de ter
conseguido alcançar essa unidade consigo mesmo. É alguém que se encontra
agora“existindodemodo´calmoesereno`,comoseuprópriosenhorentreocéu
eaterra,comoéditonoprefáciorespectivo”16.
Há agora um posicionamento de reconhecimento: depois de toda a luta,
conseguiu‐sechegaraqui.Ejustonestemomentoocorreumapossívelfendaou
fissura, algo que nem sempre se revela perceptível. Numa outra versão da
imagem,ohomemnãoestávenerandoalua,masdormindopacificamente.Como
seagoraosonofossepermitido,umavezalcançadaaconsciênciadachegadaeo
mistério da união consigo mesmo. Até esta imagem, verifica‐se um claro
processológico:dainquietudeinicial,dabuscadosrastrosdoboi,doencontro
comoboi,desuacapturaedomesticação.Sãotodassituaçõesarticuladas.Algo
que é fácilcaptar. Agora, a partirdestanovafase,verifica‐se um salto de nível.
Começaentãoalgodediversoeradicalmentediferente.
8.Oesquecimentocompletodoboiedopastor
Afiguraqueagoraemergeéadocírculovazio,doradicalesquecimento
doboiedopastor.Éomomento daapófasedodesejo,quandotodoopassado
vemabandonado,comsuasambiçõesouvolições:tudoomais“seesvaziousem
deixar vestígios”. É o que também indica o comentário que acompanha a
imagem: “Não se detenha com prazer no lugar onde Buda mora. Passe
rapidamentepelolugarondeBudamora”.Naoitavaestação,oqueocorreéum
“decisivoedeterminadosaltoaonadaabsoluto,aondenãohámaisnempastor
que procura nem boi que é procurado, nem homem nem Buda, nem dualidade
nemunidade”17.Comessailustraçãofirma‐seumaestaçãoespiritualnova.
16Ibidem,p.166.
17Ibidem, p. 170. Como indica Ueda, o nada traduz “a quintessência da negação de qualquer
possíveldesignaçãopredicativa”:ShizuteruUEDA.Zenefilosofia,Palermo:L´Epos,2006,p.236.
UmaanalogiapodeserfeitacomMestreEckhart:“OstermosdenegaçãoemEckhart,quelevama
teologia negativa aos seus limites extremos, deixam sentir o ar gélido de uma abertura
particularmente clara, mas tensa e infinita; ao mesmo tempo, como o cume de uma montanha
alta que ao tocar a abóbada celeste se desvanece negando a si mesma. Este ar gélido é quase
comooardoZen”:Ibidem,p.178.
9
EmclássicoprefáciopublicadoporC.G.Jung emobradeDaisetzTeitaro
Suzuki,elefazadistinçãoentreosimesmoeoeu.ParaJung,osi‐mesmoéalgo
bemdiversodoeu,dealcancemaioremaisamplo.Ele“englobaaexperiênciado
eu e, por isso mesmo, o ultrapassa”. O si‐mesmo “é uma experiência de mim
próprio,aqual,entretanto,jánãoévividasobaformadeumeumaisamploou
maisalto,esimsobaformadeumnão‐eu”18.
Não há mais vestígios do eu na oitava ilustração, mas a irrupção do
verdadeiro si‐mesmo, o que corresponde ao incondicional despojamento de si
mesmo, à incondicional abnegação. Nesse momento, todas as experiências ou
conhecimentos anteriores escapam sem deixar vestígios, incluindo também as
aquisiçõesreligiosas.Ohumano“devetornar‐seoseusi‐mesmoeBudanaforma
maissimplese,deumavezportodas,entrarnonadapuro,ouseja,no´grande
morrer`,comosediznoZen‐budismo”19.
Nesta imagem, o boi desaparece, como também o homem que tinha
absorvidooboi.Edesaparecetambémosiverdadeiro.Tudodesapareceesóo
nada brilha. Com base no budismo mahayana este momento corresponde ao
nível (ou posição) do ku, ou seja, do vazio (sunyata). É o momento do nada
absoluto. Do ponto devista do praticante, esta situação é vista como a “grande
morte” (Taishi)20. Na figura em tela está representado o momento “não sendo
eu” (“non essendo io”). Ou seja, o eu que não sendo eu é eu. Agora vive‐se,
propriamente,omomentodo“nãosendo”.
A figura reflete o círculo vazio, dentro do qual não há nada desenhado.
Trata‐se do nada absoluto, infinito, que também não é nada, mas que
simultaneamente envolve uma plenitude peculiar: um nada mergulhado no
infinitamenteaberto21.Atuacomo“negaçãoinfinita,comoumradicalnemisso
nemaquilo,comonegaçãodetodotipodedualidade,assimcomodeunidade”22.
Pode‐setalvezaventaraideiadequealuaobservadanafiguraanterioreraesse
“mero nada vazio”, percebido como anseio profundo do sujeito em estado de
18C.G.JUNG.Psicologiaereligiãooriental.SãoPaulo:CírculodoLivro,1990,p.78.
19Shizuteru UEDA. O nada absoluto no Zen..., p. 170. Esse “morrer maior” ou “grande morrer”
equivaleaoúltimodeixardo“ego”.Namísticacristã,comM.Porete,EckhartouSilesius,fala‐se
inclusive em “deixar Deus”, se esvaziar de Deus, de forma a romper com o lugar mesmo onde
Deus pudesse atuar. Cf. M.PORETE. Oespelhodasalmassimples. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 158
(92,9); M.ECKHART. Sermões alemães 1. Bragança Paulista/Petrópolis: São Francisco/Vozes,
2006,p.289e290(Sermão52);AngelusSILESIUS.Ilpellegrinocherubico.CiniselloBalsamo:San
Paolo,1989,p.176(PQII,92).SegundoUeda,esse“deixarDeus”equivaleao“últimodeixardo
´ego`”. Trata‐se para ele do “extremo ápice da negação existencial absoluta”, que encontra
parentesco com o “matar o Buda”, ou o “matar o mestre do Zen”: cf. Shizuteru UEDA. O nada
absolutonoZen...,p.179.
20Essa“grandemorte”ou“mortefundamental”ganhasemelhançacoma“pobrezamaisextrema”
dequefalaEckhartemseuSermãoAlemão52.Issosignifica“lançar‐seasimesmono´deserto`
sem Deus. Mas este deserto é ao mesmo tempo o lugar onde jorra a fonte da ´vida pura sem
porquê`”:ShizuteruUEDA.OnadaabsolutonoZen...,p.180‐181.
21NavisãodeHôsekiSchinichiHisamatsu,aofalarsobreo“Nada”,oZenbudismoapontapara
algoqueestáalémdoêxtaseoudauniomystica,envolvendouma“situaçãodeplenaconsciência”,
relacionada ao samadhi, num patamar onde sujeito e objeto encontram‐se inseparavelmente
unidos:Lapienezzadelnula.SullaessenzadelbuddismoZen.Genova:Melangolo,1993,p.20.
22ShizuteruUEDA.Zenyfilosofia,p.102.
10
meditação23. Justamente em favor da busca desse eu verdadeiro, revestido de
profundo desprendimento, é que se explica essa sede de penetração no puro
nada.Esseéosignificadoda“grandemorte”,quenãoésódoeuegocêntrico,mas
do eu mesmo. Daí ter Goethe exclamado com vigor em sua Nostalgia de bem
aventurança(DivãOcidental‐Oriental):“Morreedevém”(Stirbeundwerde),ou
então“Morreechegaaser”.Aafirmaçãodonadaabsolutotraduznaverdadea
libertação de todo pensamento substancializante e a transparência de um si‐
mesmo abnegado. Trata‐se da ruptura da ideia do “eu sou eu”, com suas auto‐
intoxicaçõesderivantes:oódiocontraosoutros,contrasimesmoeacobiça24.
Oqueesteciclodeimagensintroduzcomonovidadeparaareflexãoéque
o círculo vazio não vem entendido como o fim do caminho. Se assim ocorresse
poderiadarumaideiadevazioextremamentenegativo.Comoseoexercíciode
despojamentoapresentadonasfigurasanterioresdesembocassenumnihilsem
sentido. O oitavo quadro, na verdade, não implica em nihilismo absoluto, mas
apontaparaummeiotermolivredoseredonada.Essemesmonadaquetudo
nadifica é, de algum modo, “o nada que gera a afirmação”25. É com base na
experiênciaradicaldonadaedoesvaziamentoqueumnovohorizontepodese
firmarcomsentido,comotãobemexpressonesseditoZen:
“AntesqueeupenetrassenoZen,
asmontanhasnadamaiseramsenãomontanhas
eosriosnadaanãoserrios.
QuandoaderiaoZen,
asmontanhasnãoerammaismontanhas
nemosrioseramrios.
MasquandocompreendioZen,
asmontanhaseramsómontanhas
eosrios,sórios”26.
9.Oretornoaofundamentodaorigem
Após passar pelo mergulho essencial no nada absoluto, a subjetividade
renasceemsuaperspectivaelemental,comotoquesingulardeumfundamento
novidadeiro. O ego empírico passa por radical transformação, anulando‐se a si
23ShizuteruUEDA.OnadaabsolutonoZen...,p.189.
24Ibidem,p.169.
25Ibidem,p.192.
26ThomasMERTON.Zeneasavesderapina.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,1972,p.129.
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mesmo e renascendo numa dimensão totalmente distinta. O sujeito vem agora
habitadoporumnovoconhecimento,queétranscendentalenãodiscriminante.
Trata‐se do conhecimento prajna. Neste estado, “todo o Ser transformou‐se no
vastoeilimitadoespaçodoVazio,ondecoisaalgumapodeserapreendidacomo
algo definido”27. É o momento sublime do retorno à origem, ao fundamento. A
imagem apresentada é singular, um lugar “cego e surdo”, habitado apenas pelo
fluirdorioepelapresençadaflor.Oriosimplesmentefluieaflorsimplesmente
floresce.Nadaalémdisso.
Ovaziorepresentadonafiguraanterioreraumvazioemmovimento,um
vazio gerador. A passagem por esse estado essencial transformou o sujeito e a
sua mirada. O olhar capta agora uma dimensão que estava antes ocultada,
possibilitando veras coisas como verdadeiramentesão.Não se trata, na figura,
de uma paisagem unicamente natural, mas de uma imagem que traduz o
verdadeirosi,averdadeiraformadesi.Enquantonaimagemanteriortínhamosa
representação da “Grande morte” (“não sendo eu” – “non essendo io”), aqui
temos o momento em que o eu “não sendo eu” é verdadeiramente eu. É uma
espécie de renascimento, ou ressurreição, como indica Ueda. Trata‐se de um
concretizar‐se, figurativamente, fenomenicamente, daquele mesmo Nada
Absoluto.Representandoissocomoutraspalavras,écomoquandoobservamos
asflores.Vendoasflores,esquecemosdenósmesmoseadmiramosasflores.Eaí
estão só as flores. Nesse esquecimento de si e nesta emergência, aparecimento
das flores, das coisas, vistas como coisas, vem configurada concretamente esta
nona figura. Também aí o correr do rio indica a dimensão lúdica desse “não
sendo eu”. Ou dito de outra forma, nós somos o rio e nos tornamos o rio, e
esquecemos de nós mesmos. Nos deixamos habitar e transportar pelo rio que
vemos. Não é somente algo que vemos ali, mas somos por ele totalmente
absorvidos.
O “não sendo” da figura anterior, representado de forma abstrata, vem
agora representado pelas coisas, de forma bem concreta. O verdadeiro si
reapareceaquicomonãosi.Eistopodeserassimconfigurado:“eunãosendoeu,
sou eu”. A quebra do dualismo sujeito/objeto, representado na figura anterior,
vem agora retomada como “ressurreição” a partir do nada28. A árvore que
floresceeorioquefluisimbolizameencarnamoeudespojado,ouseja,osem‐eu
do eu, ou ainda o “jogo da liberdade do eu sem eu”. Assim como há
desprendimentonorioquefluiounafloraçãogratuita,oeutambémfloresceem
seudesprendimento.ComoindicaUeda,oZenpercebeumaforçaorigináriano
florescer,ereconheceumaconexãoexistencialquevinculaesseflorescercoma
aberturainfinitadosujeitoquandodefato“afetado”pelascoisas.Aoparticipar
desse simples acontecimento – as flores florescem – o ser humano “pela força
presencial dessa percepção, vem reduzido a nada e despertado de novo para a
vida,florescendojuntocomasflores”29.
27ToshihikoISUTSU.Haciaunafilosofiadelbudismozen.Madrid:Trotta,2009,p.39.
28ShizuteruUEDA.Zenyfilosofia,p.103.
29Ibidem,p.130.
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10.Oentrarnomercadocommãosabertas
A última figura é bem simbólica. Nela aparece um caminhante que se
encontra com um jovem. Ele emerge com sua natureza irradiante, o peito
descoberto e os pés descalços. O rosto vem carregado com o pó da terra e sua
cabeçaadornadacomcinzas.Éalguémqueprocededeumaestirpeestrangeirae
vemdelonge.Masnadaneletraduzdesânimooucansaço.Eleseapresentacom
seu sorriso largo, iluminador, e uma perspectiva amigável. Os comentários que
acompanhamailustraçãoindicamessehorizonteaberto.Emseutrajetodevida
visita agora “bares ou quiosques de peixes para fazer com que os homens
bêbadossedespertemparasimesmos”.
Na imagem apresentada, o velho caminhante – que é o verdadeiro si –
encontra com um jovem que está apenas iniciando sua jornada espiritual. O
interessedocaminhantenãoestávoltadoparasimasparaooutro.Éalguémque
passoupelaexperiênciadodesapegoedespojamentoradical.Alguémqueagora
vive a experiência do “eu sem eu como eu”. O seu único foco de interesse é o
outro. É o que a figura indica claramente: alguém que entra no mercado, na
cidade,comasmãosabertas;alguémque“deixacair”osbraços,suavemente,o
que na tradição budista significa gesto de doação. E o seu doar não é um doar
qualquer coisa, mas um simplesmente estar ali, disponível e atento. Para o
jovem,ofatodeencontraroandarilhodestemodosignificaviverumacompleta
transformação. Estar diante de alguém que não doa qualquer coisa. Esse
momentodeencontrorepresentaparaojovemapossibilidadededesvendarseu
própriocaminho,oseuprópriofuturo,asuaprópriaidentidademaissecreta.O
ancião oferece ao jovem o caminho a ser percorrido. Oque para um significaa
décimaestação,paraooutroéodespertarparaaprimeiraestação.
Se a oitava figura representava o Nada Absoluto ou o Vazio, a nona
desvendavaomundodaNatureza,eestaúltimaomundodaHistória.Nestenovo
momento,deinterlocuçãodialogal,ogestoquemarcaoencontroéasaudação.
Osdoisamigosseinclinamumdiantedooutro,eofazemdeformaprofundae
reverencial. Na perspectiva tradicional japonesa, o inclinar‐se guarda um
significadomuitoespecial.Reclinar‐sesignificaretornaraonada,àorigem,para
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então voltar rejuvenescido a si mesmo. É o momento onde os interlocutores
deixamdesersimesmosparadeixarem‐sehabitarpelaalteridade.Aocomentar
sobre isso, Ueda indica que este gesto de saudação é bem mais profundo que
umameracortesia.Aoinclinar‐seosujeitorompecomoseueunaprofundidade
do“entre”,ondenãohánemeunemtu.Apartirdessazonadeprofundidade–
quetambémpodeseridentificadacomonadaoucomaausênciadefundamento
– ele retorna de forma radicalmente despojada. Isso significa que a relação
dialogal vem penetrada pelo nada do nem‐eu‐nem‐tu30. Por parte do ancião, o
queocorreéum“abandononoencontrocomooutrodesdesímesmo”31.
O “nada” aqui vem entendido em sua dinamicidade global, como aquele
espaçodo“entre”quemotivaaafirmaçãodoverdadeirosi.Quandoseassinala
nocomentário(figura10)queoanciãovemdeuma“estirpeestrangeira”,deum
territóriodesconhecido,oquesequerprovavelmenteindicaréqueeleprocede
donadaabsoluto,ouseja,passoupelaradicalexperiênciadodespojamento.Daí
adinâmicadeseuencontroserpontuadapelahospitalidademaisessencial,pelo
cuidadofundamental.Eocuriosoéqueasquestõesqueelelevantasãoasmais
simples possíveis, nascidas da dinâmica mais cotidiana, do território da
humildade:“Deondevocêvem?”,“Qualoseunome?”,“Comovaivocê”,“Vocêjá
comeu?”,“Vocêvêasflores?”.Tudomuitosimples,comonasmaisbelashistórias
doZen.Sãoperguntascotidianas,despojadasediscretas.
Omovimentoqueacompanhaaúltimafiguraéaqueledosujeitoquesai
desimesmopararetornarasimesmo.Tudoparachegaraumaconclusãoqueé
profundamentesimples:eusoueu.Masaquiestamosdiantedeumaidentidade
queatravessouovaledonadaerenasceucomliberdadeegratuidadesingulares.
E renasceu no solo vivo do cotidiano elementar. É na percorrida estrada do
mundo, no calor vital do tempo e no encontro com outras pessoas que o
verdadeirosi‐mesmodesdobraasuaexistência,enãonumnirvanadeslocadoou
mal situado. O que ocorre, como dizem os grandes mestre, é o nirvana‐em‐
samsara. Aquele modo de ser, que passou pelo embaraço do nada, desperta
agora sereno para o envolvimento no mundo, sem perder jamais a referência
daquelenadainaugural.Nadécimaestação,queéaúltimadeumlongopercurso,
o tema pontual é o do encontro entre pessoas. Agora “o verdadeiro si‐mesmo,
ressuscitado do nada, age e joga entre homem e homem como uma dinâmica
abnegadado´entre`”32.
(Publicado em: Faustino Teixeira Org. Mística e Literatura. São Paulo: Fonte
Editorial,2015,p.15‐30)
......
30ShizuteruUEDA.Zenefilosofia.Palermo:L´Epos,2006,p.246‐247.
31ShizuteruUEDA.Zenyfilosofia,p.103.
32ShizuteruUEDA.OnadaabsolutonoZen...,p.173.Veraindap.175.
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