HAICKEL, BRAGA E CORRÊA: CANTO CORAL DA
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HAICKEL, BRAGA E CORRÊA: CANTO CORAL DA
HAICKEL, BRAGA E CORRÊA: CANTO CORAL DA NOVA POESIA BRASILEIRA “No es la voz de mi abuelo ni ninguna outra voz de domínio e mando”. Rafael Alberti A paixão pela viagem, e, por extensão, por quanto propicia de descoberta do humano e de multiplicação de horizontes, que conduziu o jovem Goethe, de excursão em excursão, pelos caminhos do mundo, tem um espaço garantido na história da literatura universal. Como ponte entre o si mesmo e o outro, a sua natureza é realmente fascinante, em razão do que, potencialmente, possui de curso para o não mais plural, capacitado a transfigurar a vida, tornando a terra a residência de todo o homem, reinventado como o ser de cidadania menos estrangeira possível e imaginável. Evetuchenko, poeta e prosador soviético, reclamante da política de transparência, desde os instantes oficialmente conclusivos do reinado stalinista, constitui bem um exemplo digno de ser mencionado, da permanência do argonauta em cada homem, a despeito do conflito que ele possa, como ser condicionado, vivenciar, entre o que nele são raízes e o que nele são asas. Viajante contumaz, destes conhecedores de uma centena, ou quase, de países, preserva o artista em questão, o qual também foi, tanto quanto Goethe, memorialista, só que precoce, o sentimento de aventurada intimidade com o ainda estranho. Com os brasileiros não seria diferente, até mesmo por descenderem, seja na vertente ibérica, seja na vertente africana, de imigrantes de longo curso, voluntários ou compulsórios, para a América. Não seria legítimo o esquecimento da ideologia marinheira dos portugueses, a quererem justificar a vida pela navegação, chegando ao extremo de contraporem a precisão do navegar à desnecessidade do viver. O Brasil, enquanto país subdesenvolvido, de experiência capitalista de extração dependente e periférica e recorte selvagem e patrimonialista, não poderia deixar de exprimir o conflito das raízes com as asas, presente no itinerário de sua elite dominante, negadora do nacional e afirmadora do alienígena, optando pelo vôo curto da submissão reflexa à consciência realmente estrangeira. Arrisco-me, não obstante a pouquidão de conhecimentos que declaro ter, sobre literatura brasileira, perfeitamente desculpável em um argentino viajante, ainda em busca de uma visão cultural da latinidade americana, a considerar o Brasil detentor de três trajetórias, entre as raízes e as asas, no mínimo curiosas: as de Gonçalves Dias, Joaquim Nabuco e Mário de Andrade. Gonçalves Dias, detentor de asas européias, a procurar as raízes nacionais até mesmo para morrer. Joaquim Nabuco, em contacto aristocrático com asas, sobretudo francesas, quase exilado - só aparentemente - das raízes nacionais. Mário de Andrade, fundindo dialeticamente as raízes nacionais com as asas universais e reconhecendo-se como um tupi tangedor de alaúdes. Quiçá o sentido desta digressão esteja apenas na modesta proclamação de que sou um platino, a quem o destino reservou o signo da viagem, e pode, movido a asas, percorrer com alegria o mundo, levando no coração a alma de Buenos Aires, presente na música de Astor Piazzola, este milagre sem paralelo entre nós, contemporaneamente – desculpem-me os brasileiros! – de raízes aladas. A confissão de que percorro o mundo com alegria logo adquire substância, se confesso que o seu mais recente produto é a minha amizade intelectual com os poetas aqui reunidos em tríplice aliança: Joaquim Haickel, Pedro Braga e Rossini Corrêa. Sucede que viajei para Brasília, na comitiva argentina presente a um simpósio internacional de literatura, ali realizado, ensejo no qual travamos conhecimento, para felicidade minha, que pude, privando da companhia de três escritores jovens, responsáveis e inteligentes, mitigar o ceticismo pelo qual estava tomado, no tocante ao futuro moral, literário e político deste continente, grávido de madrugada a reclamarem o nascimento de pelo menos uma alvorada, com o resgate do direito à esperança. Que mais falarei? Direi que representam, os três, no plano literário, uma confirmação dos frutos da esperança. Neste Saltério de Três Cordas, que não é um torneio de frautas, com concorrência, vencedoras e vencidos, à semelhança do existente entre Menalcas e Palêmon, na III Bucólica, de Virgílio, os três cantores, amigos entre si, nascidos no Maranhão, a província da tradição de inteligência no Brasil, estão, no sentido filosófico, em busca da harmonia, esta aspiração universal, perpassadora da história da humanidade, aqui perseguida de maneira elogiável. De mais a mais, confesso, não consigo disciplinar em mim o restante de entusiasmo juvenil, que, com três quartos de século de existência, conservo, ao testemunhar o congraçamento entre intelectuais, ainda mais quando escrevem uma obra comum, provando também ser possível, neste domínio, muitas vezes assaltado pelo egotismo sem fronteiras, a fraternidade entre os homens. Feliz do Brasil, onde Jorge Lima e Murilo Mendes escreveram um livro em parceria. Muito mais feliz a minha Argentina, na qual Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges escreveram livros em parceria: muitos, vários, diversos. Ao perguntar a mim mesmo o que mais falarei deles, tenho que responder, de maneira conscienciosa, que discuti-los tem que ser, necessariamente, discutir o seu discurso poético, expressão, esta, à qual recorro sem um milímetro de concessão às estruturas mal resolvidas do formalismo contemporâneo, crítico que sou, à maneira da tradição clássica francesa, encarnada na cultura brasileira, modernamente e sem reacionarismo, pelo saudoso Tristão de Athayde, mestre consumado de mais, muito mais de uma geração de estudiosos do fenômeno literário. Joaquim Haickel é poeta, Jovem ainda, vivenciou a experiência de editor da revista Guarnicê. Como poeta, publicou os livros O Quinto Cavaleiro e Manuscritos. Enquanto contista, é autor dos seguintes títulos: Confissões de uma Caneta; Garrafa de Ilusões e Clara Cor-de-Rosa. Bacharel em Direito, estreou na política me 1983, como o mais novo deputado estadual do Brasil. Atualmente, é deputado federal constituinte. Tem em projeto a escritura de um romance, versando sobre a diáspora da família Haickel no mundo. A tragédia é um símbolo distintivo de sua consciência do rela. Ao trágico, há o somatório de uma permanente presença de um sentimento de melancolia, gizando momentos fugazes repletos de poesia e humanidade, e como que para sempre perdidos, em razão do drama da existência, os quais, nada obstante, o artista, já na dimensão de um memorialista, ambiciona resgatar, para, com o facho de seu verbo, quando instantaneamente possível, reiluminar o real, colocando-nos defronte do espelho de seu espectro caleidoscópico. Exemplo típico desta síntese de tragédia, melancolia e memória, a qual entrecorta a sua atividade criadora, é o poema ora transcrito: “Riscando algumas palavras acabo formando poemas, murro na cristaleira, a quebrar xícaras da infância” Aparentemente escrito à mão livre, o seu poemário, fingimento do simples (Riscando algumas palavras/acabo formando poemas), conquista um nível de complexidade que permite o delineamento de um auto-retrato questionador de si mesmo. Senão vejamos: “Freei Ei, frei! Desci. O poema Pisado saiu correndo. Mancando.” Estes momentos do poema, ora pisado, ora correndo, secamente contrapropostas ao mancando do último verso, bem revelam a consciência do autor, de que o poema, artefacto e constructo, não só precisa ser elaborado, como adquire, enquanto texto, independência em relação a seu autor, em termos relativos. Reiterando duplamente. “Quando se tira mais do que põe o poema vira escultura.” E: “P.S: não esquecer: levar o poema novo para amolar”. Joaquim Haickel, na verdade, é um poeta dotado de tom coloquial, o que também o aproxima da temática amorosa, cujo desafio é enfrentar o visível, surrealisticamente. O poder da sugestão preside os mais diferentes recantos de sua poesia, desde a chegada de uma noite até a armação de uma barraca, em torno da qual a ambulante vende a si e aos seus produtos, passando pela constatação da vinda de um filho e pela descrição do cotidiano de um padre, do amém e da amante. Assim explode o seu angustiado surrealismo. “Suicida seduzido pela janela. Ninguém ninguém para segurar pela asa Do caixão.” Quanto a Pedro Braga é poeta e ensaísta. É autor de uma novela inédita, em véspera de publicação, intitulada Batevento. Como ensaísta, publicou recentemente o volume A Ilha Afortunada. Já o poeta, sua estréia dá-se aqui nesta antologia substantiva, em um destes milagres da literatura brasileira, semelhante ao registrado com a tardia aparição de Mauro Motta em livro, acontecida em 1952, compensada pela maestria verbal de que ora portador com o clássico Elegias. Professor e pesquisador, realizou estudos graduados e pós-graduados em Sociologia e Comunicações, na Sorbonne e outros centros de altos conhecimentos de Paris. Atualmente é assessor do Gabinete Civil da Presidência da República. Artista de extração ibérica, no âmbito das influências mais gerais, sua poesia, tanto erudita quanto confessional, constitui a criação de uma geografia lírica, em uma ponte com movimento de mão dupla, de fino recorte entre o íntimo e o público. Comprometida com a beleza, nela estão fundidos elementos sutis de captação do real, seja no nível psicológico, seja no nível sociológico, da vida. Há instantes em que o seu verso é um retrato composto de nuanças e camadas, tirando da noite a matéria clara do canto. Eis dois deles: “À noite na Praia Grande é sossego, só calma; um silêncio da pedra vivalma”. E: “À noite no Ribeirão, Todos os casais são pardos; ouvem-se gritos de gatos a se amar”. Entremeada de significâncias, a sua poética de homem cosmopolita, na tradição tribuziana, decanta com largueza de vistas a província (O mundo não vias pequenino/ A província para ti era mirante/ De alto sobradão bem construído:/ Vias tudo com grandeza de Poeta) intermediando, entre raízes e asas, a ilha e o continente. O drama humano está no particular e no universal: “O Joaquim do armazém, o Manuel da quitanda. a Rosinha da feira, Maria, Don’Ana se ligam no mesmo destino dos barqueiros, catraieiros carregadores da estiva: A Praia Grande é assim: Imenso barco à deriva”. O pão do verbo de Pedro Braga é o flagelo humano, com o qual ele não tem, cantor ético, nenhum comprazimento. Ao contrário, distante de toda e qualquer alienação, explicita, e até mesmo renova, o seu compromisso incessante com a humanização do homem, a sua causa das causas, pela qual, imolando-se, houve quem fizesse, de sua roubada vida, semente do sonho. O poeta é vigília: “Morre o grito, morre a fala, grito surdo a conspirar. Surda fala clandestina procurei-te em terra e mar. Procurei-te e não estavas não cessei de te buscar”. A sua canção, marcada ainda pela alada celebração ao amor, ao sexo e à mulher, vincula-se a toda uma vertente espiritualista da poesia brasileira, que neste século encontrou, em Tasso da Silveira, Augusto Meyer, Sérgio Milliet e Cecília Meireles, vozes privilegiadas, que a levaram a alturas respeitáveis. Eis a tarefa duradoura, que ele tem diante de si: a de desenvolvê-la. Sim, duradoura. “E se o Poeta um dia morre a poesia nâo desaparece!” Finalmente, Rossini Corrêa é poeta, ensaíta e novelista. Como poeta, publicou os livros Canto Urbano da Silva e Sinfonia Internacional para a Pátria América: Liberdade. Sua produção ensaística compreende os seguintes títulos: Pela Cidade do Homem (Uma Interpretação de Bandeira Tribuzi); Mudança Social no Nordeste e 1945: A Lição da Transição no Brasil. Enquanto novelista, autor de O Prêmio Nobel, permanece inédito. No momento, escreve um romance ainda sem título. Pesquisador e professor - é bacharel em Direito, bacharel em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia. Atualmente, acumula as funções de Chefe e Coordenador do Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas de Natureza Cultural, no Ministério da Cultura. Artista de estatuto complexo, a sua poesia transita, com extrema plasticidade, do lírico ao épico, com a palavra, formalmente equilibrada, a transfigurar o quanto nela explode com compulsão de vôo, magia e infinito. Trata-se, portanto, de um poeta genesíaco, que escreve como que a inventar, entre a angústia e a esperança, o sonho do mundo e o sopro vital que o percorre, norteado pelo compromisso humano com o amor e com a virtude. Revelação disto é a pintura do seu cancioneiro, símbolo universal de uma e todas as mulheres: “Que tudo em ti seja amarelo: Menos o sorriso. O fogo do abraço. por exemplo. E o ouro dos grandes gestos.” Como todo cântico seminal, a poesia de Rossini Corrêa é um feixe de significâncias, o qual esplende, como fruto de uma semente que elaborou processualmente a sua gestação da vida, resgatada pela palavra, fora da qual não há salvação. Uma passagem característica dos valores de concisão, densidade e pluralismo verbais ora referidos, é a seguinte: “Preso a teu arco, estou: como negá-lo? E dele aqui mais de três vezes falo. Húmus de vozes no teu corpo embalo E como canto, ó arco-íris! Eu galo...” Há, em sua criação literária, sem dúvida, uma proposta neo-romântica. Fico deveras satisfeito, não apenas em reconhecê-la, como em proclamá-la, neste fim de século e nestee fim de milênio, de constrangedora desumanização do homem. É um neo-romantismo dotado de consciência crítica e entreaberto ao convívio com o realismo, ora trágico, ora mágico. Neo-romantismo que está na ressonância ibérica destes versossuperlativos. “Dança a pavana comigo, por entre vales e montes. Neles, serei teu amigo, E doas amanhãs defrontes. Canta Ravel e o Bolero E os pássaros pacifica: tu saberás porque quero, e espero, dizer-te: fica... A ti jamais falarei: eu tenho, ou mesmo, eu venho. A ti direi sempre: é teu. Assim, eu ninho, eu vinho”. Poesia feita com palavras, sentimentos e pensamentos, dela recolho excertos tocantes, entre muitos outros, capazes de configurarem a sua dimensão ética, mergulhada em uma espécie de místicas, na qual o sonho – com outra vida, outro mundo e outro homem – é o centro de todas as coisas. Deixo-as cantar: “Quero o homem preso a si mesmo (e renascido) Que ela apenas nunca seja livre De sua liberdade! (...) Triste é que, agora, cada qual não sabe para onde o homem vai. Alguém, entretanto, com olhos de asas, mais do que com chumbo nos pés escuta as praias do futuro: e como há marulho!” E: “E se houver tempo, àguas benditas, vinde a mim, azuis, verdes ou cinzentas, e de janeiro a dezembro, não matai, mas alimentai, esta sede de verdade e de justiça!” Contemplo, comovido, os originais da antologia poética Saltério de Três Cordas, e reflito sobre a vida e o mistério que a circunda. Como em mim mesmo, é crepúsculo na Calle Florida, de onde escrevo. Revigoro-me, entretanto, com o sabor da alvorada, pensando na poesia de Haickel, Braga e Corrêa, nas grandes amizades e no destino, que as entrelaça, permanentemente. Foi assim, um dia já distante, comigo também. Uma vida laboriosa e cercada pelos melhores fados, é o que desejo aos três, e não apenas no plano literário. Tenho consciência de que é fim de século, de milênio e de minha vida, logo mais... Termino com o chamamento dos deuses de minha devoção – Lorca, Borges, Alberti, Neruda e Unamuno – para lhes comunicar que a poesia sobreviveu e prosseguirá. Tenho dito Buenos Aires, 12 de junho de 1988. HERNANDEZ HERRERA DE NUNEZ Y NUNEZ