AMORES IMPERFEITOS - Português

Transcrição

AMORES IMPERFEITOS - Português
1
AMORES IMPERFEITOS
Roteiro de Daniel J. ZIMERMAN
Maio/junho/julho de 2015
“Ninguém é perfeito até que você se apaixone por essa pessoa”.
William Shakespeare
EXT. SÃO PAULO – NOITE.
Legenda:
São Paulo, 2015
Imagens noturnas de
agitação.
São Paulo à noite: a cidade ferve
de
Barzinhos movimentados, restaurantes, casas de shows, cinemas,
teatros: tudo mostra o charme irresistível da cidade.
A agitação das ruas é colocada em contraponto com o sossego em
diversas residências: VEMOS gente que passa horas na frente de
um computador.
Desfilam pela tela várias pessoas diferentes (de cor, gênero,
idade, classe social), tendo em comum a tela de um computador bem
à frente delas.
Relógios de parede nas residências e no canto da tela dos
computadores reproduzidos na imagem mostram o transcurso do
tempo, indicando gente que atravessa a noite navegando na web.
O roteirista CACO SELIGMAN é o último a ser mostrado.
PLANO APROXIMADO de Caco: bocejando, ele acaba de massagear o
pescoço, alongando os músculos.
INT. ESCRITÓRIO DE CACO SELIGMAN/APARTAMENTO – NOITE.
CACO – 37 anos, barba e cabelos negros – escreve a primeira
linha de um script.
As letras enormes (fonte New Courier) ocupam boa parte da tela – a
página em branco de um processador de textos – e são digitadas
devagar, no PONTO-DE-VISTA de Caco, até formar a frase (em caixa
alta):
INT. ESCRITÓRIO DE TOM – DIA.
Acordes da música “OH, INTERNET” – interpretada por HANNAH
HART num videoclipe disponível na web – acompanham as
primeiras imagens que surgem na tela.
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CLOSE-UP do teclado de um laptop: a mão direita de Caco
pressiona a tecla que indica a passagem para a próxima linha.
VEMOS – ainda no PONTO-DE-VISTA de Caco – a segunda oração
digitada por ele (caixa mista, sem negrito):
TOM está navegando na Internet.
IRIS OUT TO:
INT. ESCRITÓRIO/APARTAMENTO DE TOM – NOITE.
TOM está no escritório dele – muitas estantes carregadas de
livros – na frente de seu laptop, visto de costas.
PLANO APROXIMADO de Tom: boa pinta, bem conservado, diante da
tela do laptop.
CAM aproxima-se na direção dele e enquadra a estante, com Tom
ao fundo, digitando.
CLOSE-UP de alguns livros: uma fila inteira de livros sobre
roteiros de cinema e TV (boa parte deles em inglês).
Ele (e NÓS, com ele, no mesmo PONTO DE VISTA) vai alternar a
navegação exclusivamente entre dois websites: YOUTUBE – em que é
exibido
o
clip
de
HANNAH
HART
e
Par
Perfeito
(www.parperfeito.com.br).
No site de encontros, Tom digita com rapidez, preenchendo os
campos vazios na área que descreve o tipo de mulher que ele
busca: sexo (F), faixa etária (30-39 anos) e localização (São
Paulo).
Hábitos: exercício (sim); bebida (não); fumo (não).
Dados
gerais: altura (1,50 a 1,85), peso (50kg-60kg), olhos
(qualquer cor), renda (acima de R$ 3 mil), formação acadêmica
(superior, pós-graduação), signo (qualquer um).
CLOSE-UP: O que você busca? (x) RELACIONAMENTO SÉRIO.
O internauta usa a barra de rolagem do laptop – o mouse é
visível – e VEMOS várias mulheres diferentes, todas na faixa
entre 30 e 40 anos: mulheres comuns, a maioria sem nenhuma
beleza; nenhuma muito bonita, que se destaque.
PONTO DE VISTA de Tom: sucessivos perfis de mulheres desfilam
pela tela. Entre elas, LUCIANA, CRISTIANE, SÔNIA, BÁRBARA,
ISABEL e VIRGÍNIA.
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Todas as personagens identificadas deverão ser interpretadas
pela mesma atriz, com caracterização visual inteiramente
diferente para cada personagem.
O mouse (na tela) clica em várias fotos de cada uma delas.
Cada foto é observada com muito interesse.
VEMOS as fotos de cada uma delas ocupando a tela inteira: é
possível identificar que os personagens são interpretados pela
mesma atriz.
Tom volta ao clip de HANNAH HART.
Novo retorno ao site de encontros: o internauta faz sua
escolha: é CRISTIANE (de biquíni minúsculo, na praia; elegante,
passeando num shopping; saindo para o trabalho; andando na rua).
VOLTAMOS ao clip uma vez mais.
CORTA PARA:
INT. SUÍTE DE MOTEL – DIA.
Tom e CRISTIANE estão se beijando. Estão nus, na cama. Ela
está muito excitada, ele também.
CRISTIANE
(sussurrando)
Ai meu amor. Amor da minha vida! Faz uma coisa pra
mim, faz.
TOM
O que você quiser eu faço, benzinho. O que você
quiser.
CRISTIANE
Aperta meu pescoço, vai. Aperte pra valer, meu amor.
Aperta com força. Eu gosto. Gosto muito, querido!
Sem graça, surpreso com o pedido, Tom aperta o pescoço da
moça, com muito receio de machucá-la.
CRISTIANE
Com força, querido! Com força, amor! Muita força!
Ele está visivelmente constrangido, mas não quer decepcionar a
mulher.
TOM
Calma. Eu vou apertar.
4
Aperta para valer: ela fica realmente
continua apertando o pescoço dela.
sufocada,
mas
ele
CRISTIANE
(muito sufocada, com dificuldade)
Ai, amor. Que delícia! Mais, amor! Mais! Mais!
Tom anima-se todo e aperta ainda mais.
Cristiane tem um orgasmo fortíssimo e desmaia.
Tom continua
gemendo.
apertando,
Ele para
seguida.
apertar
de
e
sem
a
afrouxar
penetra
de
e
a
uma
mulher
vez,
continua
gozando
em
Ela está com os olhos esbulhados, fora de órbita, emitindo
sons desarticulados.
Só então Tom percebe que ela está desacordada.
Ele entra em pânico.
TOM
Cristiane! Acorde, Cristiane! O que isso?! Meu Deus!
Será que eu a matei? Meu Deus do céu! Será que matei
essa maluca?
Ele levanta-se, desesperado, depois de colocar a cabeça no
peito dela, para ouvir o coração.
TOM
Acorda logo, menina! Acorda, pelo amor de Deus!
Cristiane começa a tossir: está viva.
Tom tem um enorme suspiro de alívio e deixa-se cair na cama,
absorvendo melhor o susto.
CORTA PARA:
CRÉDITOS INICIAIS em negro, metade à direita da tela, fundo
branco, letras no formato na redação do roteiro: é como se Tom
tivesse digitado toda a ficha técnica de apresentação do
filme.
Na metade à esquerda, acompanhamos imagens dos primeiros
encontros de Tom com mulheres que conheceu no site, sempre em
locais bacanas, nos Jardins.
5
Imagens românticas mostram TOM atencioso e gentil, revelando
um exímio sedutor em ação:
Tom beija a mão de uma acompanhante;
Tom puxa a cadeira para a acompanhante sentar-se;
Tom sai do carro e dá a volta, para abrir a porta para sua
acompanhante;
Tom e sua acompanhante bebem champanhe, enamorados;
Tom e sua acompanhante rindo com vontade, felizes;
Tom caminhando pelo ambiente amplo de um restaurante, até
encontrar-se com sua acompanhante: eles se abraçam e trocam
beijos carinhosos;
Tom e a acompanhante estão sentados lado a lado, ele com o
braço enlaçando-a.
Um garçom serve as taças de Tom e de sua acompanhante.
As acompanhantes de
vestidas, atraentes.
TOM
são
sempre
mulheres
lindas,
bem
Música de HANNAH HART.
Fim dos CRÉDITOS INICIAIS.
CORTA PARA:
INT. SUÍTE DE MOTEL – DIA.
Tom está de olho nas belas curvas do corpo de Cristiane, que
parece estar dormindo.
É “o” voyeur por excelência em ação, deleitando-se com prazer
imenso a vista do voluptuoso corpo de Cristiane.
De repente, a porta de acesso à suíte é arrebentada a golpes
de machado, para horror de Tom, que olha aterrorizado para o
estrago produzido pela lâmina.
Uma cabeça surge no enorme buraco feito na porta: é de um
sujeito barbudo, que lembra Jack Nicholson atuando em THE
SHINNING.
TOM
(em OFF)
6
Ei, você! Vamos com calma aí! O que é isso? Quem são
vocês?
(Tudo remete à cena famosa do filme de Kubrick, com o terror da mulher do
personagem de Nicholson)
A porta de entrada para a suíte acaba de ser inteiramente
arrebentada a machadadas e três policiais com coletes da
Polícia Civil entram de armas em punho.
Atrás deles, a delegada Sônia (um terceiro visual diferente da atriz
que interpreta todas as ex-namoradas de Tom, além de LUCIANA).
POLICIAIS
(em uníssono)
Polícia!
CORTA PARA:
EXT. RUAS DO FLAMENGO/RIO DE JANEIRO – DIA.
Uma viatura da polícia civil com a sirene ligada corre em alta
velocidade por ruas do Flamengo.
Tom está no banco de trás, ao lado de Cristiane e de um
policial.
CORTA PARA:
INT. CORREDOR DELEGACIA – DIA.
Imagem em CLOSE-UP da placa fixada na porta:
SALA DE INTERROGATÓRIO
INT. SALA/DELEGACIA/RIO DE JANEIRO – NOITE.
Sala pequena, luminária à mesa, mostrando Tom sentado com as
mãos para trás. Muita fumaça de cigarro.
(A construção da cena deve remeter a uma cena antiga de FILM NOIR, com
imagens expressionistas, muitas sombras).
Com o jato de luz no rosto, de chapéu, Tom não consegue ver
direito sua interlocutora, a delegada SÔNIA.
Ela quase sempre é enquadrada na penumbra, com silhueta
recortada, num efeito que busca transformá-la numa mulher
distante, misteriosa.
Sônia é voluptuosa, muito atraente, roupas justas, decote.
SÔNIA
7
Você não quis chamar seu advogado.
TOM
Eu não fiz nada de errado. Não preciso de advogado.
SÔNIA
Nós vimos tudo o que aconteceu naquele quarto de
motel. Está tudo gravado.
TOM
Muito cuidado ao brincar com câmeras, doutora. As
imagens podem vazar e cair na Internet.
SÔNIA
Não se preocupe. Sou cuidadosa com essas coisas.
TOM
Porque estou sendo preso?
SÔNIA
Você ainda não foi preso. Está detido. É diferente.
TOM
Tenho que pegar o avião das cinco.
SÔNIA
Ponte aérea?
TOM
É.
SÔNIA
São Paulo?
TOM
É.
SÔNIA
Por quê?
TOM
Moro em São Paulo, doutora. Aliás, você já deve
saber que eu não fiz nada errado.
SÔNIA
Eu adoro São Paulo. Gosto de ir passar finais de
semana lá.
TOM
Bom saber, doutora.
8
Uma pausa constrangedora.
SÔNIA
Você é gay?
TOM
(surpreso)
Não. Por que está perguntando?
SÔNIA
Se for, pode falar. Numa boa.
TOM
Se fosse, eu falaria.
SÔNIA
Falaria nada.
TOM
Escute. Eu não tenho preconceito. Cada um escolhe o
caminho que quiser. Não é da conta de ninguém.
SÔNIA
Você teve problema para sair do armário?
TOM
Eu não saí do armário nem pretendo sair, já disse.
SÔNIA
Jura que não é gay? Olhando em meus olhos?
TOM
Não vou jurar nada. Mas fique sabendo que minha
melhor amiga é gay.
SÔNIA
Lésbica?
TOM
200%.
SÔNIA
Você já transou com ela?
TOM
Não. Eu disse que ela é gay.
SÔNIA
Sapatão, você quer dizer.
TOM
9
Não gosto desse adjetivo. Ela é gay.
SÔNIA
Lésbica. Você realmente gosta dela?
TOM
Gosto sim. Ela é minha alma gêmea.
Esse negócio
apaixonado.
SÔNIA
de alma
gêmea
é
pra
quem
está
TOM
Nem sempre. Gêmea no sentido de fraternal, não no
romântico.
SÔNIA
Fala a verdade, Don Juan. Amor platônico?
TOM
Gay ou Don Juan? A senhora precisa se decidir.
SÔNIA
Pode ser os dois se cortar dos dois lados. Facão ou
espada?
Sônia aproxima seu rosto do rosto de Tom.
CLOSE-UP:
os
dois
com
os
rostos
bem
próximos,
numa
enquadramento que traduz a tensão sexual entre os dois, a
partir de uma atração mútua irresistível.
GRANDE
dele.
CLOSE-UP
da
língua
de
TOM,
deslizando
pelos
lábios
De repente um ruído fortíssimo: Sônia bateu com a mão na mesa,
com toda a força, dando um grande susto em Tom.
DISSOLVE PARA:
FLASHBACK.
EXT. BISTRÔ/SÃO PAULO – DIA.
Juliana - morena, com cabelos presos num corte pouco
convencional, 38 anos, linda, veste-se de forma masculina - e
Tom estão tomando café, num bistrô charmoso nos Jardins.
Legenda:
Há dois anos.
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JULIANA
Por que você não admite de uma vez? Poupe tempo e
energia a essa conversa tão edificante.
TOM
Não vou admitir algo
querida.
só
para
você
ficar
feliz,
JULIANA
É claro que você não vai admitir.
TOM
Não me acho machista. Nem um pouco. Gosto de mulher,
só isso. Não acho que o homem é superior em alguma
coisa à mulher. Muito pelo contrário.
JULIANA
Mentiroso. Você gosta de mulher bonita, o que é bem
diferente.
TOM
Quer dizer que ter bom gosto agora virou machismo?
JULIANA
Você não tem nenhum amigo gay.
TOM
Você não conta?
JULIANA
Amigo homem. E não adianta negar.
interessa por mulheres lindas. Se
machismo não sei mais o que é.
Você
isso
só se
não é
TOM
As capivaras também merecem ser felizes. Mas não
precisa ser comigo.
Juliana começa a demonstrar desconforto com a conversa.
JULIANA
(mau humorada)
Diz uma coisa. Você já beijou um homem? Beijo de
verdade, de língua.
TOM
Argh! Que nojo. Claro que não.
JULIANA
Tá vendo? Machismo.
11
TOM
Não
gosto
do
cheiro
de
homem.
heterossexual. Machista, não.
Isso
é
ser
JULIANA
Há alguma dúvida de que você pode ter muito prazer
se transar com um homem?
TOM
Todas as dúvidas. Não vejo a menor graça na bunda de
um homem.
JULIANA
E atrás?
TOM
Atrás o quê, minha querida?
JULIANA
Você já experimentou ‘lá’ atrás?
Tom não percebe a mudança no humor de Juliana. Não parece
prestar muita atenção: aéreo, distante.
TOM
Não, querida. Aquele orifício foi feito para saídas
e não para entradas.
JULIANA
Não é assim que você pensa sobre o orifício das
moças que você conquista.
TOM
(prestando mais atenção)
Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.
JULIANA
Você é machista, TONZINHO.
Mesmo sabendo que ia
adorar uma visitinha aí atrás, você se recusaria a
experimentar?
TOM
Claro. Definitivamente. Sem qualquer dúvida.
JULIANA
E é um chauvinista ainda por cima.
Tom não percebe, mas Juliana ficou irritada com a rigidez
dele.
TOM
12
(didático)
Nem
tudo
vale
a
pena
experimentar,
Juliana.
Experimentar algo que pode, eventualmente, bagunçar
a sua vida, ninguém experimenta. É como cocaína, por
exemplo.
JULIANA
(de cara fechada)
Não vejo a semelhança.
TOM
Não sou rico. Não vou ter dinheiro para comprar a
quantidade que vou querer consumir. Sei que é ótimo,
que dá uma segurança incrível, tão fantástica que
até Freud gostava. E não sei fazer nada pela metade.
Logo estaria ferrado. Para que vou entrar nessa?
JULIANA
Comparação um tanto idiota essa, hein?
TOM
(divagando, sem prestar atenção em Juliana, o que a
irrita ainda mais)
Só gosto de transar com mulher. Se for javali, mico
estrela ou um homo sapiens não serve para mim, OK?
Ponto final.
Juliana levanta-se, brava para valer.
JULIANA
Você é um machista calhorda, diga o que quiser.
Moderninho, descolado, mas não passa mesmo é de um
machista!
Juliana empurra a cadeira para trás (a cadeira cai e assusta as
pessoas no bistrô) e sai, pisando duro, sem olhar para trás.
Tom não fala nada, chocado, surpreso.
FIM DO FLASHBACK.
VOLTAMOS À SALA DE INTERROGATÓRIO.
Tom está impaciente.
TOM
Posso saber o que é que você está esperando para me
liberar?
SÔNIA
Vou pensar em seu caso.
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TOM
Escute: eu tenho muita
voltar a São Paulo.
coisa
pra
fazer.
Preciso
Tom olha as horas em relógio de pulso.
SÔNIA
Você é o principal suspeito
conhecido como “gostosão”.
de
ser
um
marginal
TOM
Não sou gostosão nenhum. Meu nome é Tom.
SÔNIA
Tom? Tipo Tom Jobim?
TOM
É.
SÔNIA
Que bobagem é essa? Antônio que é Antônio é Tonho ou
Tonico. É como chamar Chico de Frank.
TOM
Pau que bate em Frank também bate em Chico.
Tom repara nas belas pernas de Sônia.
TOM
Questão de opinião.
SÔNIA
Opinião é igual bunda. Todo mundo tem.
TOM
Sua percepção é impressionante, delegada. Acertou na
mosca.
SÔNIA
É claro que ninguém pode comer sua opinião, mas eu
já não posso dizer a mesma coisa em relação a sua
bunda. Não aqui, numa delegacia.
TOM
Não entendi o espírito da coisa.
SÔNIA
Você não imagina o sucesso que faria ali dentro.
Continue bancando o gostosão e vai ver o que vão
fazer com sua opinião.
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Tom parece derrotado.
O isqueiro dela cai no chão, ela se abaixa, proporcionando um
ângulo bem favorável a uma bela vista do decote dela.
Tom fica visivelmente atordoado com a sensualidade explosiva
da delegada Sônia.
Ela tira as sandálias, ficando descalça.
Tom fica de olho nos belos (e bem-feitos) pés dela.
PONTO DE VISTA de Tom, olhando os pezinhos de Sônia livres da
sandália.
TOM
Delegada. (pausa) Exatamente o que você quer saber?
SÔNIA
Tudo.
Tom não desgruda os olhos das pernas e do decote da delegada,
que parece não perceber.
TOM
Tudo é vago demais. Tudo e nada. A mesma coisa.
SÔNIA
Minha intuição nunca falhou nem é medíocre feito a
sua filosofia de botequim.
TOM
Falhou agora. Não sou esse gostosão.
SÔNIA
Leva jeito de ser. É todo ESTILOSO, sotaque
paulista, tem fala mansa. Sucesso com as mulheres?
Ela dá uma espiada na cintura de Tom, percebendo a ereção
dele.
Sônia dá um sorriso maroto e, surpreendentemente, dá uma
virada repentina, ficando de costas para Tom, que fica de olho
nas pernas dela, hipnotizado.
A moça usa uma saia muito sensual, com abertura entre as
pernas e Tom está ficando cada vez mais excitado.
SÔNIA
Gostosão, sedutor. O próprio. Ele trata as vítimas
com muito carinho.
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Tom continua olhando o corpo de Sônia com cobiça, aumentando
gradativamente a tensão sexual entre os dois.
Ela começa a perceber os olhares dele.
TOM
Exatamente o quê esse gostosão faz?
SÔNIA
Além de exercer a gostosura? De ser muito carinhoso
com as mulheres?
TOM
De preferência.
SÔNIA
Dá ‘o’ boa noite cinderela pra todas e depois rouba
todo o dinheiro delas. E os cartões de crédito.
TOM
E onde é que entra o carinho?
SÔNIA
Ele é muito gentil, carinhoso mesmo. As mulheres
ficam cativadas com o romantismo dele.
TOM
Ele não estupra as moças?
SÔNIA
Você acha que deveria estuprar?
Claro que
violência.
TOM
não. Sou
contra
qualquer
SÔNIA
(irônica)
Até parece. Você? Fala sério.
TOM
Não estou entendendo.
SÔNIA
Não se faça de bobo, senhor Gostosão.
TOM
Estupra ou não estupra?
SÔNIA
forma
de
16
Negativo. Só veste a roupa delas, dá umas voltas no
quarto e vai embora com a grana.
A tensão sexual começa a ficar muito evidente na atitude dos
dois, que parecem dois oponentes medindo forças: a femme
fatale e o bad man do film noir.
SÔNIA
Diz a verdade. Você é gay?
TOM
De novo essa estória?
SÔNIA
Não tente me enrolar.
TOM
Não estou tentando.
SÔNIA
Diz aqui. Sente prazer em fazer aquilo com aquelas
pobres criaturas?
TOM
Não fiz nada de errado, delegada. Não sou quem você
procura.
SÔNIA
Você marca com elas naquele site. Eu já conferi no
seu celular.
TOM
E desde quando entrar num site é proibido ou ilegal?
SÔNIA
Não venha com conversa fiada. Abre logo o jogo, que
eu facilito as coisas para você.
TOM
Delação premiada? Tipo LAVA-JATO?
SÔNIA
Se você fizer parte de uma quadrilha, sim. Porque
não?
TOM
Delegada, vamos direto ao ponto: eu não sou esse
gostosão que vocês estão procurando. Nunca fiz
nenhum mal a uma mulher.
SÔNIA
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Deixe de ser cara de pau. Papa Chico só tem um. Além
do mais, você é gay.
TOM
Não sou.
SÔNIA
É gay sim.
TOM
O que tem isso a ver?
SÔNIA
Então você admite?!
TOM
Não admito nada além da ilegalidade que a senhora
está cometendo ao me manter aqui contra a minha
vontade.
SÔNIA
Você só pode ser gay. Porque vestiria a roupa
daquelas mulheres? Por que não estupra nenhuma? Gay.
TOM
Eu não sou esse tal ‘gostosão’!
SÔNIA
Ótimo. Vai rodar a baiana, agora, vai? Liberte-se,
rapaz!
TOM
(contendo a indignação)
Eu jamais faria mal a uma mulher.
SÔNIA
Mentiroso!
TOM
Esse cara não deve ser gay. Se fosse mesmo,
estupraria as mulheres, será que você não enxerga?
SÔNIA
(pensativa)
Pode ser. Estupro não é ato de prazer. É violência.
E os gays costumam ser misóginos.
TOM
Eu adoro as mulheres. Sempre adorei. Pergunte aos
meus amigos.
18
SÔNIA
Há quanto tempo você procura mulher na Internet?
TOM
(desanimado)
Cinco anos.
E em cinco
Casanova.
SÔNIA
anos nenhuma
serviu?
Fala
sério,
TOM
Essas coisas de amor são complicadas.
SÔNIA
Elas queriam amor, seu pilantra. Não sexo.
TOM
Eu gostei de todas elas. Dei amor a todas elas.
SÔNIA
Mentira. Você não passa de um gay com problemas de
identidade. Isso explica tudo.
Tom levanta-se e caminha até a delegada. Fica bem perto dela.
TOM
(quase sussurrando)
Eu não sou gay.
SÔNIA
(sussurrando)
Estou começando a achar que não é mesmo.
TOM
(quase a beijando)
Eu gosto é de mulher.
SÔNIA
(suspirando)
Eu sei. Safado. Você não lembra mesmo de mim?
Tom olha com atenção para o rosto dela.
TOM
Suas feições são familiares, claro. Mas não lembra
alguém especial.
SÔNIA
Nós saímos juntos há três anos. Você nem se lembra,
filho da mãe.
Tom a beija com carinho. Ela fica calma. Beijam-se.
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EXT. TEATRO ANCHIETA/SESC CONSOLAÇÃO/SÃO PAULO – NOITE.
Uma fila enorme está formada a partir da bilheteria.
Zum-zum-zum de conversas simultâneas de todas as pessoas na
noite de estreia de um espetáculo.
INT. COXIAS DO TEATRO SESC/ANCHIETA – NOITE.
JULIANA, apreensiva, olha para o relógio. Está tensa.
CLOSE-UP no rosto de JULIANA.
INT. CORTINAS DO TEATRO – NOITE.
A cortina abre: começa o espetáculo.
INT. PALCO/TEATRO ANCHIETA/SÃO PAULO – NOITE.
Julieta está na sacada que dá para o jardim na residência dos
CAPULETO.
Banhada pela lua, linda, ela não percebe
escondido, olhando para ela com paixão.
que
Romeu
está
JULIETA
Romeu, Romeu! Ah! Por que és tu, Romeu? Renega seu
pai, despoja-te de teu nome; ou então, se não
quiseres, jura ao menos que amor me tens, porque uma
CAPULETO deixarei logo de ser.
ROMEU
(à parte)
Continuo ouvindo-a mais um pouco ou lhe respondo?
Juliana interrompe, entrando no palco.
JULIANA
Agora sim! A luz ficou perfeita. Parabéns, Mauro.
VEMOS Juliana chegar até o iluminador, quando ele está
acertando um dos holofotes.
Os dois se cumprimentam com carinho. Ela está cansada,
mas feliz.
JULIANA
Pessoal: vou ao meu camarim e volto em 5 minutos.
Fiquem tranquilos, temos tempo de sobra.
A atriz que interpreta JULIETA vem até ela e lhe dá um abraço
demorado, carinhoso.
20
JULIANA
(em voz baixa)
Obrigado, querida. Agora eu estou melhor. A luz
finalmente ficou como eu queria. Maurinho é um amor.
FLÁVIA
Deixe de ser perfeccionista. Está tudo ótimo. Vai
dar tudo certo!
Flávia beija Juliana nos lábios e sai. Juliana vai em direção
contrária.
ACOMPANHAMOS Juliana até o camarim dela. Todos – atores e
técnicos - estão concentrados em seu trabalho: é a estreia.
INT. CAMARIM/TEATRO/SÃO PAULO – NOITE.
Juliana entra.
renovado.
Está
visivelmente
exausta,
mas
de
ânimo
Acende um cigarro e traga demoradamente.
Pega o celular sobre a mesa e faz uma chamada.
CLOSE-UP: Juliana com o celular no ouvido. OUVIMOS os sons da
chamada no celular.
CORTA PARA:
EXT. AEROPORTO DE CONGONHAS/SÃO PAULO – ENTARDECER.
TOM parece exausto ao desembarcar. Sai do aeroporto e chama um
táxi.
OUVIMOS O SOM DA CHAMADA no celular dele, que corre na direção
de um táxi.
Tom tira o aparelho do bolso enquanto entra no táxi que parou
ao chamado dele.
Ele atende quando já está dentro do táxi.
INT. TÁXI – NOITE.
Tom se ajeita no carro.
TOM
(ao motorista)
Cerqueira Cesar.
JUJUZINHA?
HADDOCK
LOBO,
1210.
(ao
telefone)
21
A tela divide-se em duas metades, cada um numa metade, em
CLOSE-UP (os dois olhando em sentidos contrários, exatamente como se
estivessem em campo e contra campo), enquanto durar a conversa.
JULIANA
(satisfeita com a ligação)
Oi querido. E aí? Já chegou a Sampa?
TOM
Chegando. Tive alguns problemas no Rio, mas já está
tudo bem.
JULIANA
E como é que foi a reunião com o produtor?
TOM
Péssima. Paulo estava intratável. Ele estava se
preparando para ir a uma festa de travestis aqui em
São Paulo. (pausa) E a estreia? Tudo OK?
JULIANA
A loucura de sempre. Estou contando com você. Você
vem, não vem?
TOM
Não vai dar. Tenho uma entrevista de alto nível hoje
à noite.
JULIANA
Desmarca. Não quero nem saber.
TOM
Eu já expliquei. Você tem que entender.
JULIANA
Cancela. Estou precisando de você.
TOM
Nem pensar. Vai ser a entrevista de minha vida.
(pausa) Vou sair com Juliana Paes.
JULIANA
Não acredito que você vai fazer isso comigo.
TOM
Infelizmente, querida. O
hora de fazer a agenda.
JULIANA
(chateada)
amor
tem
precedência
na
22
Está certo, acredito. (pausa)
adiar? É a estreia, Tom.
Não
dá
mesmo
para
TOM
Vou à entrevista de hoje e depois passo no teatro.
Juro por Deus.
JULIANA
Não dá tempo.
TOM
Dá sim. Vou direto do aeroporto para a entrevista e
ela vai comigo à estreia.
JULIANA
(resignada)
Está certo.
meninos?
Você
é
mesmo
um
caso
perdido.
E
os
TOM
Já combinei com eles. Marcamos no teatro, às dez.
CORTA PARA:
INT. ANTESSALA/APARTAMENTO DE LUCIANA/POMPEIA – NOITE.
Num espelho de corpo inteiro, Luciana observa a si mesma,
retocando a maquiagem com os dedos molhados de saliva e vê uma
mulher linda, sofisticada, cosmopolita.
Satisfeita, ela pega a bolsa pequena que
aparador,
e
experimenta
poses
diferentes
acessório.
está sobre
carregando
o
o
CLOSE-UP da bolsa, um acessório de alto luxo, chique. Da mesma
cor da sandália dela. Ela está elegantíssima, com sensualidade
exuberante.
CONCEIÇÃO, corpulenta, uniformizada, aproxima-se.
LUCIANA
Qual é o problema, Conceição? Os gêmeos derrubaram o
quarto?
Derrubaram
quietinhos.
CONCEIÇÃO
não
senhora.
Eles
até
que
estão
CORTA PARA:
EXT. PRÉDIO DE LUCIANA/POMPÉIA/SÃO PAULO – DIA.
23
BORK e MADS – pilotando patinetes motorizadas e potentes –
aterrorizam as pessoas que passam perto do prédio, jogando a
máquina neles.
CORTA PARA:
INT. ANTESSALA/APARTAMENTO DE LUCIANA/POMPEIA – NOITE.
De volta
conversa.
à
sala
do
apartamento
de
Luciana:
continua
LUCIANA
Não me espere. Não garanto que volto hoje.
CONCEIÇÃO
E se eles perguntarem pela chave do armário?
LUCIANA
Eles não vão perguntar, pode ficar tranquila.
CONCEIÇÃO
Eu não entendo direito o que eles falam.
LUCIANA
Eles sabem falar português muito bem, mas fingem que
não sabem. Simplesmente ignore o que eles falarem em
outra língua.
CONCEIÇÃO
De onde eles vieram mesmo?
JULIANA
Do outro lado do mundo, minha filha.
CONCEIÇÃO
Por que eles ficam chamando a senhora de pai?
JULIANA
É uma estória longa. Depois eu conto. Agora estou
com pressa.
Luciana abre a bolsa e tira uma chave.
LUCIANA
(mostra a chave)
Tá vendo isso aqui? É a chave do armário. Vou levar.
Se eles tentarem arrebentar o armário me chame na
hora. Coloquei aqueles patinetes lá.
CLOSE-UP da chave na mão de Luciana.
a
24
CONCEIÇÃO
Será que eles vão conseguir dormir daquele jeito?
LUCIANA
Eles se virem. Não se preocupe.
CONCEIÇÃO.
Eles vão ficar daquele jeito a noite toda?
LUCIANA
Vão. Acha pouco? Se você quiser, pode servir um
pouco de cianeto de potássio a eles. Vai ser bom
para a asma.
CONCEIÇÃO
E isso é bom para asma?
LUCIANA
Você nem imagina. A melhor coisa do mundo. Eles vão
ficar quietinhos que é uma beleza.
CONCEIÇÃO
Cianeto do quê mesmo? A senhora podia escrever o
nome para mim? Tenho medo de esquecer.
LUCIANA
Amanhã você compra. Agora me deixe em paz. Já estou
atrasada.
OUVIMOS a campainha do interfone.
LUCIANA
É o meu táxi. Dê uma espiada naqueles psicopatas
antes de dormir. Precaução e caldo de galinha não
matam ninguém.
CORTA PARA
INT. QUARTO DOS GÊMEOS/APARTAMENTO LUCIANA – NOITE.
MADS e BORK – ruivos, descabelados, sardentos, nove anos da
idade – estão fortemente amarrados em duas cadeiras com
rodinhas, bem próximas.
Os dois estão amordaçados; MADS tenta encostar o pé na parede
para empurrar a cadeira dele, inutilmente.
BORK tenta livrar-se das tiras de fita isolante que o prendem,
também sem sucesso.
CORTA PARA:
25
Luciana sai e Conceição segue na direção do corredor que leva
aos quartos.
CORTA PARA:
INT. CORREDOR/APARTAMENTO DE LUCIANA/POMPEIA – NOITE.
Conceição
receosa.
aproxima-se
do
quarto
dos
gêmeos,
visivelmente
Ela para diante de uma porta que é diferente das demais: está
toda riscada, com danos visíveis na pintura e na madeira.
VEMOS o nome dos gêmeos
garrafais: BORK e MADS.
‘grafitado’
na
porta,
em
letras
Conceição olha pelo visor da porta e vê as cabeças dos gêmeos
na mesma posição em que os deixou.
PONTO DE VISTA de Conceição, no visor.
Mais tranquila, ela destranca
devagar, ainda com receio.
a
fechadura
e
abre
a
porta
Ela acende a luz e logo percebe que foi enganada: a imagem que
viu pelo visor da porta metálica era de dois bonecos e não dos
gêmeos (os bonecos usam os bonés que identificavam os gêmeos).
Conceição houve um ruído, olha para baixo e vê MADS (um dos
gêmeos ruivos e sardentos, de nove anos; MADS usa um boné amarelo e BORK um
boné vermelho) aplicando uma injeção na perna dela.
Ela grita, mas imediatamente fica grogue, dopada.
BORK leva Conceição pela mão até o quarto dele. A empregada
está visivelmente dopada.
MADS aponta o armário embutido.
BORK
Where did he put the closet’s key?
LEGENDA:
Onde ele colocou a chave do armário?
CONCEIÇÃO não entende.
CONCEIÇÃO
(aflita)
Sua mãe
entendo.
falou
para
MADS
vocês
falarem
do
jeito
que
26
Meu pai. Mãe, não!
BORK
Mãe, não! Pai!
MADS imita o ruído da patinete e finge que está pilotando a
máquina dele.
CONCEIÇÃO
Não pode. Patinete não pode.
MADS mostra para ela o armário embutido.
MADS
Patinete! Entendeu? Patinete!
CONCEIÇÃO
Patinete não pode! Sua mãe levou a chave.
BORK dá um beliscão nela, que grita de dor.
BORK
Pai! Pai!
CONCEIÇÃO
Pai! Seu pai!
BORK
Ele levou? Chave?
CONCEIÇÃO
Levou, sim. Juro por Deus! Na bolsa! Na bolsa!
CONCEIÇÃO toma mais uma injeção, aplicada por MADS. Dessa vez,
desmaia de uma vez.
MADS levanta-se e segue BORK, depois de ouvi-lo. Eles falam
português com perfeição, mas têm sotaque muito forte.
BORK
Será que ele levou mesmo a chave do armário?
MADS
Ele não tem direito de fazer isso com a gente.
BORK
Vamos à embaixada da Dinamarca, MADS. Vamos pedir
ajuda ao embaixador.
MADS
27
Não seja bobo. A embaixada fica em Brasília. Não há
nada que ninguém possa fazer. A lei está do lado
dele.
BORK
Ele não levou o carro. Vamos dar uma volta?
MADS
Genial! Vamos a um baile funk?
BORK
Seria fantástico, MADS.
entrar nesses bailes.
Mas
não
deixam
crianças
MADS
Usamos o casaco de novo. De óculos escuros dá para
entrar numa boa.
BORK
Tudo bem. Mas você fica embaixo dessa vez.
MADS
Mas você é mais forte!
BORK
Senão nada feito.
MADS
Ao baile funk!
BORK
Funk! funk! funk! funk! funk! funk! funk!
MADS
Funk! funk! funk! funk! funk! funk! funk!
Ensaiam alguns passos de dança.
MADS
E os patinetes?
BORK
Vamos deixar assim? Ele toma nossos patinetes e fica
por isso mesmo? Não! Eu quero vingança!
BORK começa a dançar algo que ele imagina ser funk.
MADS corre até seu aparelho de som (pequeno, mas potente) e
OUVIMOS uma música instrumental de funk.
MADS começa a dançar também.
28
Os dois são desengonçados, mas se divertem muito.
MADS
(dançando, desengonçado)
Vingança!
Vingança!
Vingança!
Vingança! Vingança!
Vingança! Vingança!
Vingança!
Vingança!
Vingança!
Vingança!
Vingança!
BORK
(dançando, mais desengonçado ainda)
Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança!
Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança!
Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança!
IRIS OUT TO:
Na trilha sonora, começam acordes de PRIVATE IDAHO, com a
banda B-52 (https://www.youtube.com/watch?v=Bvp97GWeLoc).
PLANO
APROXIMADO
de Caco no escritório dele (diferente do
à noite, digitando enquanto fuma um cigarro
de maconha ENORME.
escritório de Tom),
Ele está imerso numa grande nuvem de fumaça, rindo sozinho até
as lágrimas.
No laptop, roda o show ao vivo da banda B-52 no YouTube.
IRIS IN TO:
INT. GARAGEM/PRÉDIO DE LUCIANA – NOITE.
O carro de Luciana - um SUV HONDA esportivo azul e branco está estacionado na vaga dela.
A porta
BORK de
escuros
montados
do elevador abre-se e a estranha figura formada por
casaco até as canelas, de golas levantadas, óculos
e boné caminha desengonçada pela garagem: é BORK
nas costas de MADS (escondido pelo casaco).
Chegam até o carro e BORK observa toda a área da garagem,
constatando que estão sozinhos.
BORK abre o cassado e VEMOS como ele está sobre os ombros de
MADS, que está visivelmente mal humorado.
MADS
Você está engordando, BORK!
BORK está caindo ao chão, depois de pular de cima de MADS.
29
BORK
Não reclame, MADS. Seja profissional.
BORK entra no carro na posição do motorista e MADS dá a volta,
sentando-se no banco do carona depois de abrir e fechar a
porta.
INT. CARRO DE LUCIANA – NOITE.
BORK (de boné e óculos escuros) acomoda-se no banco do motorista,
sentado em algo que aumenta a estatura e permite a melhor
visibilidade a um motorista tão pequeno: de longe pode
perfeitamente passar por um adulto.
CLOSE UP na mão direita de BORK, ligando a ignição do carro de
Luciana.
Sentado em um banquinho, BORK (de boné) está ao volante. MADS
está agachado bem próximo: é ele quem vai cuidar dos pedais.
BORK
Pé na tábua, copiloto.
MADS
Providenciando o acelerador.
PLANO APROXIMADO mostra MADS pressionando o acelerador.
O carro sai da vaga e BORK o conduz pela garagem. Há vários
modelos mais caros, nenhum popular.
EXT. PRÉDIO DE LUCIANA – NOITE.
Dirigido por BORK, o carro ganha a rua e aumenta a velocidade.
O carro aproxima-se de um semáforo: PONTO DE VISTA de BORK.
PLANO APROXIMADO de BORK: o carro está parado no semáforo. Ao
lado dele, outro carro.
O ocupante do banco do carona no carro que para ao lado do
carro deles é um idoso, que olha incrédulo para BORK.
IDOSO
O quê? Sai daí, menino. Você não tem idade para
dirigir.
BORK
Relaxe, velhote. O carro tem câmbio automático. É
moleza.
IDOSO
30
Isso é um absurdo. Vou anotar a placa e denunciar ao
DETRAN.
BORK
Vá tomar sua sopa, Matusalém. Vê se não enche meu
saco.
IDOSO
Mal educado ainda por cima!
Os carros estão próximos. BORK coloca a mão para fora e dá um
beliscão no nariz do idoso, que fica irritadíssimo.
IDOSO
Você vai ver uma coisa, garoto!
O idoso começa a teclar um número no celular, depois de subir
o vidro da janela do carro.
BORK
Não
me
provoque,
Matusalém.
Senão
enfio
um
supositório de tungstênio nessa sua bunda murcha.
O idoso sobe o vidro lateral e começa a falar ao celular,
fitando BORK.
BORK levanta-se e abaixa as calças, mostrando a bunda sardenta
ao idoso.
CORTA PARA:
EXT. AVENIDA PAULISTA/SÃO PAULO – NOITE.
O carro conduzido por BORK para num semáforo. Distraído, ele
não repara que um sujeito armado se aproxima do carro.
O assaltante (JESUS) surge de repente, apontando um revólver
enorme para a cabeça de BORK.
JESUS
Vamos lá, doutor. Passe
relógio também.
a
grana
rapidinho.
E
o
BORK começa a rir, agradavelmente surpreso.
BORK
Um assalto! Que bacana! Olá, assaltante? Você não
reparou direito, mas eu não sou nenhum doutor.
BORK tira o
assaltante.
boné
e
os
óculos
escuros,
sorrindo
para
o
31
PLANO APROXIMADO de MADS, que se esconde do assaltante.
JESUS
E daí, seu pentelho? Passe logo a grana e o relógio
que a merda do sinal já vai abrir!
Sem que o assaltante perceba, MADS abre a porta do carona e dá
a volta, com um pedaço de pau na mão (15 cm).
Ele chega devagar atrás do assaltante e enfia o pedaço de pau
exatamente no centro na bunda dele, de baixo para cima.
O assaltante toma um susto e pula para frente.
MADS o empurra na direção de BORK, que sobe o vidro elétrico e
prende a cabeça do assaltante (no pescoço, pela garganta), tomandolhe o revólver.
MADS volta rápido e entra no carro.
JESUS
(voz em falsete)
Ei! Calma, menino! Calma! Calma!
Um spray de pimenta surge nas mãos de BORK, entregue por MADS.
O jato de spray atinge os olhos do assaltante, que começa a
gritar e a gemer de dor.
BORK dá partida no carro e arrasta o assaltante, que em nenhum
momento para de gritar.
CORTA PARA:
INT. CAFÉ PARIS/JARDINS/SÃO PAULO – NOITE.
Em noite de casa cheia, Tom está sentado, tomando um drink,
numa mesa ao fundo, que dá boa visão dos que entram.
Ele está visivelmente ansioso:
intervalos curtos demais.
olha
para
o
relógio
em
A atenção de Tom é desviada para uma mulher que está próxima
dele: é VILMA – interpretada por ROGÉRIA –, enfiada num
vestidinho preto apertadíssimo.
Ela usa uma meia-calça preta e salto alto e está com maquiagem
carregadíssima.
PLANO APROXIMADO de Vilma, de olho em Tom: olhar direto e
insistente para Tom.
32
VEMOS que Tom fica desconfortável com o olhar fixo de Vilma,
que não se incomoda nem um pouco, mantendo a insistência no
olhar.
PONTO DE VISTA de Vilma: Tom sorri para ela, sem graça.
CLOSE-UP de Vilma: fazendo um gesto obsceno com a língua,
olhando para Tom.
Um garçom percebe o que está acontecendo e ri com discrição,
comentando algo ao ouvido de um colega.
Tom fica cada vez mais apreensivo e sem graça. Olha em volta,
procurando alguém. Pega o celular e tecla.
TOM
(em voz baixa)
Leitão? Está
meteu!!?!
me
ouvindo?
Onde
foi
que
você
se
De costas para Tom, encoberto por uma pilastra, LEITÃO – 140
kg – atende seu celular.
JOÃO
(em um tom acima)
Câmbio. Estou aqui. Não precisa gritar.
Tom olha em todas as direções, mas não vê João.
TOM
Aqui onde? Não estou vendo você.
JOÃO
Atrás da pilastra.
Ele faz sinal com a mão balançando e Tom o localiza.
Vilma, por sua vez, continua olhando fixamente para Tom.
TOM
(ao celular)
O que você está esperando para entrar em
porquinha? A capivara está quase atacando.
ação,
JOÃO
A gente não tem certeza de que é ela. Pode ser
alarme falso, presidente.
TOM
(aterrorizado)
Só pode ser ela. A dona não para de olhar pra mim!
JOÃO
33
(sentindo-se um agente secreto em missão)
Positivo. É ela, sem dúvida. Câmbio. Você foi
enganado, presidente. Despiste a mocreia e vá ao
banheiro.
TOM
Vou sim. Ofereça um drinque pra ela, Leitão. Já fiz
sinal pedindo a conta. Se ela me seguir, você entra
em ação. Vou ao banheiro.
JOÃO
Positivo. Câmbio. Desligando.
Tom levanta-se e caminha na direção do corredor que conduz aos
toaletes.
Vilma o acompanha com o olhar e Leitão observa Vilma, que
repara em João.
João olha para Vilma e repara que ela observa Tom chegar ao
corredor e entrar no toalete masculino.
PLANO APROXIMADO: João faz sinais para Vilma, sugerindo que
Tom ficaria feliz se ela o seguisse; é bem enfático.
Vilma olha com simpatia para João.
Nesse momento, Luciana entra no café e se senta numa mesa ao
fundo.
Ao lado dela, LAERTE COUTINHO – cartunista da Folha que se
veste de mulher – dá uma entrevista a um repórter de TV:
refletor acesso, câmera ligada, repórter a postos.
João reconhece LAERTE e volta sua atenção para Vilma; repara
que ela observa Tom chegar ao corredor e entrar no toalete
masculino.
Repete-se a imagem já mostrada, mas agora em PLANO APROXIMADO:
João faz sinais para Vilma, sugerindo que Tom ficaria feliz se
ela o seguisse. Ela o segue.
Imagem congela.
IRIS OUT TO:
INT. ESCRITÓRIO CACO – NOITE.
Caco para de digitar. Coça a barba.
CACO
(lê na tela do laptop)
34
João faz sinais para Vilma, sugerindo
ficaria feliz se ela o seguisse.
que
Tom
Tom levanta-se e repete a frase.
CACO
(em OFF)
Hum-hum. Isso ficou uma merda.
Ele volta a digitar.
IRIS IN TO:
EXT. CAFÉ PARIS/JARDINS/SÃO PAULO – NOITE.
João – enorme, andando devagar - está saindo do café.
Ele vê Marco HELENIO – baixinho, muito magro, de cavanhaque,
escondido do outro lado da rua e atravessa a rua: é grande o
contraste visual entre os dois.
MARCO
E aí? Era a capivara mesmo?
JOÃO
Certeza absoluta. Hoje uma Raimunda vai comer carne
de carneiro com caviar.
MARCO
Eu diria que nos divertimos com a cara de Tom para
variar, Leitãozinho querido.
JOÃO
Foi demais aprontar essa roubada para ele ver como é
bom fazer isso com os outros.
MARCO
O que será que está rolando lá no banheiro?
JOÃO
(ironicamente)
Não sei. Talvez... Quem sabe a gente dá sorte... Um
estupro?
Voltam a rir com vontade.
Um táxi para diante do Café Paris e sai
imensa, bem pouco atraente, já sessentona.
dele
uma
mulher
Marco para de rir, fitando a mulher, que entra rápido no Café
Paris.
35
MARCO
Merda!
JOÃO
O que foi?
MARCO
Alguma coisa deu errado, Leitão.
JOÃO
Por quê? O que foi?
MARCO
Jogamos a capivara errada pra cima de Tom. Foi essa
mulher que chegou agora que eu convidei para a
entrevista com Tom.
JOÃO
E quem é a outra capivara?
IRIS OUT TO:
VOLTAMOS AO ESCRITÓRIO DE CACO. Ele acabou de digitar.
CACO
Beleza. Ficou redondo agora.
IRIS IN TO:
INT. CORREDOR DOS TOALETES/CAFÉ PARIS – NOITE.
Tom já está com a mão na maçaneta do toalete masculino quando
Vilma chega, apontando para ele um revólver calibre 22.
VILMA
Não, querido. Não é aí.
PLANO APROXIMADO de Tom: imóvel, sem olhar para trás. Ele fica
imóvel.
VILMA
Convém saber que essa coisinha aqui está carregada
com balas dum-dum.
TOM
(sem se virar)
O outro toalete é o feminino.
VILMA
E daí? Eu sou mulher. É lá que eu entro. E agora é
onde você vai entrar também.
36
Tom se vira para ela.
TOM
Estou certo de que houve um mal entendido aqui. Você
me conhece do Par Perfeito?
VILMA
Acabou a DR (discussão do relacionamento), bonitão.
Entra logo no banheiro senão enfio uma dum-dum no
seu rabo.
Tom volta-se para a porta do banheiro feminino e entra rápido,
seguido de perto por VILMA.
INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE.
Tom entra. Vilma tranca a porta.
TOM
O que você vai fazer? Vai me matar?
VILMA
Vai depender de você, garotão.
TOM
Fique tranquila. Nada de nervosismo. O que você quer
comigo, exatamente?
VILMA
Tire logo a roupa! A roupa, garotão!
TOM
O quê? Como assim? O que é que você vai fazer?
Ela começa a tirar a roupa.
Tom está constrangido, mas começa a despir-se também.
VILMA
Quanto você calça?
TOM
41
VILMA
Eu também. Tire os sapatos também.
Tom procura tapar o pênis.
VILMA
37
Deixe
de
ser
comprometida.
convencido,
garotão.
Eu
sou
TOM
Isso é um assalto? Você vai me deixar pelado aqui?
VILMA
A ideia é tentadora.
TOM
Não. Não é o caso, OK? Não, isso é um assalto. O que
é, então?
VILMA
Ainda não é um assalto. Vai ser daqui a pouco.
Os dois estão inteiramente nus.
Ela tira um boné da bolsa, põe na cabeça e começa a vestir a
roupa dele, começando com os sapatos.
VILMA
(ao comprovar que seus pés se encaixaram bem no calçado)
Beleza!
Vilma dá uma cutucada nele com a arma.
VILMA
Olha a dum-dum! Olha a dum-dum!
TOM
Eu não estou entendendo.
VILMA
Não precisa entender, garotão. Coloque a minha roupa
agora. E rápido! Estou atrasada!
Tom se veste rapidinho.
TOM
E os sapatos?
VILMA
Isso não é sapato, playboy. É sandália.
também. Fique elegante, componha-se!
Tom bate uma continência, automaticamente.
VILMA
Gostei de ver. Milico?
Ponha
38
TOM
Exército. Tenente. Núcleo de Preparação de Oficiais
da Reserva.
VILMA
Pois faça de conta que eu sou coronel e ponha minha
sandália também!
Tom obedece e coloca as sandálias. Quase cai: ele é
desajeitado, custa a equilibrar-se no salto alto da sandália.
(Tom lembra - pela falta de jeito e a masculinidade óbvia que continua a
ter mesmo vestido daquele jeito – o personagem de CARY GRANT em “A noiva
era ele” (I WAS A MALE WAR BRIDE), comédia ‘maluca’ de Howard Hawks,
lançado em 1949).
TOM
E agora?
Ambos estão de roupas trocadas.
VILMA
(rindo)
Você ficou uma graça, playboy. Uma pena não ter uma
peruca.
TOM
E agora?
VILMA
Agora você fica quietinho aqui. Não faz nenhum
barulho, senão eu volto e te dou um trato com a dumdum. Entendido?
Tira uma máscara de carnaval da bolsa, com o rosto de Barack
OBAMA e a coloca, escondendo o rosto.
Ela se olha no espelho.
VILMA
Estou parecendo homem, não estou?
Ela pega a carteira de Tom e tira algumas notas.
TOM
Pode ficar com o dinheiro, mas deixe os documentos.
Por favor.
VILMA
Você está cheio da grana, hein? É advogado?
TOM
39
Não. Roteirista.
VILMA
Roteirista? Que diabo de trabalho é esse?
TOM
Sou escritor. Escrevo estórias para cinema, o nome
disso é roteiro. Roteiro, roteirista.
VILMA
Não sou burra. Não precisa explicar tanto.
TOM
Foi você quem perguntou.
VILMA
Todo roteirista ganha bem?
TOM
Não. Só os melhores.
VILMA
Você ganha muita grana?
TOM
Não posso reclamar.
VILMA
Eu também não, playboy.
TOM
Tem certeza que você não é da área de teatro? Isso
aqui é uma espécie de pegadinha, é?
VILMA
Que conversar com uma dum-dum?
TOM
Não faço a menor questão.
VILMA
Que tipo de estória você escreve, playboy?
TOM
De todo tipo. (pausa)
vestido de mulher?
Você
vai
me
deixar
aqui,
VILMA
Dê-se por satisfeito por não levar uma dum-dum no
rabo. (pausa) Não saia daqui antes de meia hora.
40
TOM
Aonde eu iria vestido assim?
VILMA
Meia hora. Entendeu?
TOM
(blasè)
Se você fizer um diagrama vou entender melhor.
Vilma dá uma coronhada no nariz dele, que não chega a sangrar,
mas fica bem marcado.
Ela tira um batom da bolsa e chega perto dele, com a arma
apontada.
VILMA
Tem razão. Uma mulher tem que se cuidar. Faz assim,
faz.
Mostra a arma: Vilma faz o gesto com a boca que antecede o
batom.
Ele repete o gesto dela, oferecendo a boca e ela passa batom
nele.
Depois, passa
coronhada.
um
pó
branco
para
disfarçar
a
marca
da
PLANO APROXIMADO de Tom: ele está constrangidíssimo, mas com a
boca bem definida, com batom vermelho, fortíssimo.
VILMA
(saindo)
Não saia antes de meia hora, senão leva bala.
OUVIMOS o ruído de uma campainha. O ruído é insistente
IRIS OUT TO:
INT. ESCRITÓRIO DE CACO – NOITE.
Caco ouve o ruído da campainha, mas não parece ter pressa para
interromper o trabalho.
A campainha não para de tocar.
Caco levanta-se devagar, sem pressa alguma, e vai abrir a
porta.
41
Tão logo a porta se abre e ROGÉRIO SANTANA – interpretado por
ROGÉRIA (vestido de homem, cabelos curtos, corte masculino) – entra de
uma vez, sem falar nada.
ROGÉRIO
O que adianta ter celular se você nunca atende essa
porcaria?
CACO
Quem sabe assim você sossega e fica quieto no Rio?
Vá curtir a praia, meu querido. Larga do meu pé.
Caco senta-se no sofá pequeno, serve um cafezinho e Rogéria na
cadeira dele.
CACO
O prazo ainda não acabou. Tenho mais uma semana,
Rogério.
ROGÉRIO
Não aguentei de curiosidade. Quero ver como está
indo a coisa.
CACO
Você pode ver pela Internet. Mas só termina quando
acaba.
ROGÉRIO
Deixe de sacanagem. Sou produtor, tenho direito de
ver o trabalho. Peguei um avião só para vir falar
com você, sabia?
CACO
Não precisava. Tem telefone.
ROGÉRIO
Que você não atende nunca quando vê que sou eu.
CACO
Pegue um celular de um amigo. Com código de área
diferente de 21.
ROGÉRIO
Eu tenho meus direitos.
Caco levanta-se, irritado.
CACO
Vamos esclarecer uma coisa de uma vez por todas. Eu
não vou escrever nenhuma porcaria para agradar você
e sua turma.
42
ROGÉRIO
Ninguém falou em porcaria.
CACO
Não falou, mas ficou subentendido. Não vou jogar meu
nome no lixo para agradar uma merda de produtor.
ROGÉRIO
Não, meu bem. Se você fizer o que eu pedi você vai
agradar é ao seu gerente de banco. O que é que você
tem contra ganhar dinheiro, pode me dizer?
CACO
Nada contra, Rogério. Mas não espere palavrão nesse
script, OK? Nem cenas gratuitas de sexo. Nem piadas
de mau gosto com gays.
ROGÉRIO
Sei. E aí o que é que sobra? ... se é que sobra
alguma coisa?
CACO
Uma comédia maluca bem escrita, não uma
oportunista, vulgar. Disso ninguém precisa.
coisa
ROGÉRIO
Maluca por quê? O sujeito é doido?
A comédia é que é maluca. O personagem, não. Lembra
aquelas comédias antigas, em preto-e-branco?
ROGÉRIO
Atlântida?
CACO
Não, querido. Hollywood.
Hepburn. Anos 40. Sacou?
Cary
Grant.
Katherine
ROGÉRIO
E você acha que dá conta de escrever um negócio
desses?
CACO
Com uma mão só.
ROGÉRIO
(desconfiado)
Vamos ver o resultado. Depois a gente conversa.
IRIS IN TO:
43
INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE.
Tom - vestido com a roupa de Vilma, de batom, mas sem peruca tenta achar uma saída: vê uma janela que dá para os fundos.
PONTO DE VISTA de Tom, avaliando
janela: ele vê que é grande demais.
se
dá
para
passar
pela
o
movimento
Tom desiste de sair pela janela.
Olha-se no espelho e dá um grande suspiro.
Ele ajeita os cabelos e vai até a porta.
Cuidadosamente,
corredor.
Tom
abre
a
porta
e
espia
no
INT. CORREDOR/CAFÉ PARIS – NOITE.
A cabeça de Tom aponta na porta do toalete feminino.
O corredor está vazio.
Ele toma coragem, prende a respiração e sai.
Quando está na metade do corredor, vê Luciana, que vem em
direção ao toalete feminino.
É grande o susto de Tom ao topar com Luciana.
Confuso, sem saber
toalete masculino.
o
que
fazer,
ele
corre
na
direção
do
Um idoso – aquele que se irritou com BORK – sai do toalete
masculino na mesma hora e os dois trombam.
IDOSO
Desculpe. Eu não vi a senhora.
TOM
Eu
(tentando afinar a voz ao constatar a proximidade de Luciana)
é que peço desculpas. Porta errada! (risos) Tudo bem.
O idoso sai corredor afora e Tom volta-se para o banheiro
feminino, sem coragem para sair corredor afora.
Ele entra, seguido de perto por Luciana.
PONTO DE VISTA de Luciana, observando a trombada: ela vê Tom
entrar no toalete feminino e o idoso seguir pelo corredor na
direção dela.
INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE.
44
Tom entra no toalete e corre direto para um dos banheiros
disponíveis: entra e tranca a porta.
Luciana entra devagar e se posta diante do espelho. Começa a
retocar a maquiagem, sem preocupar-se com Tom.
Toca o celular que está na bolsa de Luciana. Ela o pega e
atende.
LUCIANA
(olha quem está chamando)
Fala, Conceição. Algum problema com os psicopatas?
CORTA PARA:
INT. QUARTO DOS GÊMEOS/APARTAMENTO/LUCIANA/SP – NOITE.
Conceição está amarrada numa cadeira, só de calcinha e sutiã.
O telefone fixo está perto do pé descalço dela.
PLANO APROXIMADO: com os dedos dos pés ela tecla um número.
OUVIMOS o sinal de chamada e, segundos depois, a voz de
Luciana.
LUCIANA
(em OFF)
Fala Conceição. Algum problema com os psicopatas?
Conceição começa a gemer, pois não consegue falar.
LUCIANA
(em OFF)
Conceição? Você está aí, mulher?! Fale alguma coisa,
pelo amor de Deus, mulher! Os tarados amarraram
você?
Conceição geme, concordando.
LUCIANA
(em OFF)
Você não pode falar? É isso?
Conceição geme, concordando.
LUCIANA
(em OFF)
Eles pegaram os patinetes?
Conceição geme, discordando.
LUCIANA
45
(em OFF)
Sei. Eles pegaram o meu carro?
Conceição geme, concordando com mais ênfase.
LUCIANA
(em OFF)
Tudo bem, Conceição. Eu tenho GPS, descubro logo
onde aqueles tarados foram parar.
Conceição geme de novo.
CORTA PARA:
INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE.
Luciana termina a ligação e consulta o GPS do aparelho.
CLOSE-UP do aparelho de GPS,
representa a posição do carro.
com
o
ponto
luminoso
que
CORTA PARA:
EXT. AVENIDA PAULISTA/NOITE – NOITE.
Os gêmeos seguem uma moto que leva JESUS na garupa.
BORK
Será que vai demorar muito? Não quero perder o baile
funk.
MADS
Não vai perder nada, BORK. O baile é bem mais tarde.
BORK
Maravilha! (pausa) Eles viraram a rua!
MADS
Eu acho que eles vão roubar uma casa. Senão ficariam
aqui mesmo, na avenida.
Você não acha que eles
ficariam aqui, BORK?
BORK
Pode apostar. Vai ser um assalto dos grandes.
MADS
Mas a gente pegou o revólver dele. Vamos devolver?
BORK
Tem hora que eu penso que você é um estúpido. Claro
que não dá para devolver nada. Aquele sujeito deve
estar doido para acertar as contas com a gente.
46
CORTA PARA:
EXT. CAFÉ PARIS/JARDINS – NOITE.
João e Marco HELENIO continuam do lado de fora do Café Paris.
JOÃO
Está demorando muito, Marquinho. Será que Tom se
entendeu com a capivara?
MARCO
Fala sério, Leitão. Lógico que não. Ele deve estar
azarando outra mulher qualquer. Estupro abre o
apetite. (risos)
Os dois riem com gosto.
João observa a chegada da moto conduzida por PILATOS, com
JESUS na garupa.
Eles escondem a moto atrás de um carro, mais adiante, mas
ainda no campo de visão de João.
JOÃO
Aqueles motoqueiros
coisa, Marquinho.
vão
aprontar
alguma.
Ali
tem
Os dois procuram fugir do campo de visão dos bandidos.
VEMOS PILATOS pegar dois revólveres do pequeno bagageiro da
moto e entregar um a Jesus.
JOÃO
(em voz alta)
Vamos chamar a polícia, Marquinho! Você viu? Eles
estão armados!
PILATOS ouve o que João falou, cutuca Jesus e os dois se
aproximam de João e Marco, que ficam trêmulos, morrendo de
medo.
PILATOS
Quem você disse que ia chamar, gordão?
JOÃO
O que isso!? Não precisa chamar ninguém. Bobagem.
Nós não temos nada com isso.
MARCO
Pode ficar tranquilo que aqui ninguém vai chamar a
polícia.
47
PILATOS dá uma coronhada fortíssima na cabeça de João e Marco
HELENIO sai correndo.
Jesus joga o revólver nas costas de Marco, que cai, mas se
levanta e foge.
PILATOS dá uma pancada na cabeça de Jesus.
JESUS
(a Marco, gritando)
Ai, ai, ai! Se você chamar a polícia a gente apaga
esse gordão!
PILATOS
(a Jesus)
Quer perder esse berro também, otário?!
PONTO DE VISTA de PILATOS: Marco foge a toda velocidade, sem
olhar para trás.
JESUS
Será que ele vai chamar a polícia?
PILATOS
Duvido. Ele sabe que o gordão está conosco.
JESUS
O que a gente vai fazer? Vamos desistir?
PILATOS
Agora não tem mais jeito. Vilminha está lá dentro,
esqueceu?
JESUS
Merda! É mesmo!
PILATOS
Vamos dar um tempo aqui fora e ver se o magrelo
chamou a polícia. Talvez ele não faça nada, com medo
da gente detonar esse saco de banha. Eu vou fazer o
serviço sozinho. Você fica aqui fora vigiando esse
gordão.
JESUS
E se ele acordar?
PILATOS
(irônico)
Aí você dá um beijo na bochecha dele, Jesus. Está
bom assim pra você?
48
IRIS OUT TO:
INT. ESCRITÓRIO CACO – NOITE.
Caco está fumando um cigarro de maconha, coçando a barba.
CACO
GPS? GPS? Será?
Ele dá uma espiada no i-phone.
CLOSE-UP do aparelho com um ponto luminoso em destaque no GPS.
IRIS IN TO:
VOLTAMOS AO TOALETE DO CAFÉ PARIS.
Luciana vê o ponto luminoso movendo-se.
CLOSE-UP do celular de Luciana, exatamente igual ao de Caco.
LUCIANA
Não é possível! Eles não podem estar aqui perto.
Luciana sacode o celular.
LUCIANA
Vou vender essa porcaria.
TOM
(voz natural)
Luciana?
Luciana olha para o banheiro de onde veio a voz: a porta está
trancada.
LUCIANA
Quem está aí? Vou chamar
toalete feminino, sabia?
a
segurança.
Aqui
é
o
TOM
(em OFF)
Claro que é, eu sei. Mas acredite em mim, por favor.
Eu não tive alternativa. Se você subir aqui ao lado
vai me ver. Juro que estou vestido. Não sou nenhum
tarado.
Ela entra no banheiro ao lado e sobe no vaso.
TOM
Pode olhar.
49
Luciana olha para onde está Tom.
Ele olha para ela e dá um TCHAUZINHO sem graça.
LUCIANA
Você é um travesti?
TOM
Não! De jeito nenhum! Deixe-me sair que eu explico
tudo. Pode ser? Promete que não vai gritar?
LUCIANA
Quem você está pensando que eu sou? Mais fácil você
gritar por socorro do que eu. Sou faixa preta de
judô, meu bem.
TOM
Ótimo. Posso sair numa boa?
LUCIANA
Você já fez o que tinha que fazer?
TOM
Eu só entrei aqui para me esconder, Luciana.
LUCIANA
Como você sabe meu nome?
TOM
Há uma explicação razoável, eu prometo. Posso sair?
LUCIANA
Claro que pode.
Constrangido, Tom sai.
LUCIANA
(rindo)
Tem certeza de que não é um travesti?
TOM
Você já viu algum travesti com esse corte de cabelo?
LUCIANA
Não. Você é mesmo o primeiro. (risos) Roubaram a sua
peruca?
TOM
(sério)
Não. A peruca, não. Roubaram as minhas roupas.
50
LUCIANA
E porque alguém faria uma coisa dessas?
TOM
Uma mulher da gangue pegou as minhas roupas para
fingir que é homem. Exatamente nesse momento o
restaurante deve estar sendo assaltado.
LUCIANA
(empalidecendo)
Tem certeza?
TOM
Absoluta. Pensei em escapar pela janela e chamar a
polícia, mas não me cabe.
LUCIANA
Deixe comigo que eu chamo agora mesmo.
TOM
Melhor não. Se a gente estivesse em Nova York seria
a coisa certa a fazer. Mas não aqui em São Paulo.
LUCIANA
Por que não?
TOM
Por que a polícia paulista é ainda pior do que
qualquer assaltante. A gangue pode fazer reféns,
matar alguém, entende?
LUCIANA
Eles são perigosos?
TOM
A mulher que pegou as minhas roupas é perigosa. Os
outros devem ser também.
LUCIANA
Está certo. Nada de polícia. E o que a gente vai
fazer? Ficar de braços cruzados?
TOM
É só o que a gente pode fazer. Eles vão limpar os
clientes e cair fora.
Tom vai até a porta do toalete e a tranca.
LUCIANA
Por que você fez isso?
51
TOM
É para nossa proteção. Fique tranquila.
LUCIANA
Tudo bem. Agora você vai dizer como é que adivinhou
meu nome. Não pense que eu me esqueci, senhor
travesti.
TOM
Quantas vezes eu vou
nenhum travesti?
ter
que
falar
que
não
sou
LUCIANA
Você é muito mal humorado.
TOM
Não dá para ter bom humor vestido desse jeito.
LUCIANA
Chega de enrolação. Você é meu vizinho? Mora no meu
prédio?
Não está me
encontros.
TOM
reconhecendo?
Sou
Tom,
do
site
de
LUCIANA
Tom? É mesmo você?
TOM
Em carne e osso.
LUCIANA
Meu Deus! É mesmo você, Tom.
Ela abraça Tom, aninhando-se nos braços dele.
LUCIANA
(fingindo fragilidade)
Ah, querido! Que bom que você está aqui para me
proteger.
EXT. CAFÉ PARIS – NOITE.
PILATOS e Jesus ainda conversando.
PILATOS
Fique de olho no gordão. Parece que ninguém chamou a
polícia.
JESUS
52
É. A barra por aqui está limpa como a consciência de
um pastor.
PILATOS
Você tem cada exemplo besta.
JESUS
(ares de inteligente, mas repetindo o que ouviu)
Claro que tem pastor que usa a igreja para lavar
dinheiro. Aliás, como é que se pode lavar dinheiro?
PILATOS
Você fique quieto aqui. Qualquer coisa, você
chama no celular. Não tire os olhos do gordão.
me
PLANO APROXIMADO: João continua desacordado.
JESUS
Sacanagem. Eu queria participar.
PILATOS
É melhor assim. A moto só dá para dois mesmo. Fique
na sua, só observando e caia fora antes da confusão.
Qualquer coisa você me chama no celular. Beleza?
JESUS
Beleza.
Os dois trocam um cumprimento batendo as mãos.
O carro dirigido por BORK passa devagar por Pilatos e Jesus.
Jesus não repara no motorista, mas PILATOS repara em BORK
disfarçado.
PONTO DE VISTA de Pilatos: BORK de óculos escuros e boné, ao
volante.
O carro estaciona bem mais à frente do ponto em que estão os
bandidos.
PONTO DE VISTA de BORK: observando o luminoso em que se lê
CAFÉ PARIS.
PILATOS atravessa a rua e se aproxima da moça que atua na
reserva das mesas, ao lado de um segurança forte, todo vestido
de preto.
PILATOS
(apontando a arma para o segurança)
Acabou o movimento
quietinhos e entrar.
de
hoje.
Vamos
ficar
bem
53
A moça e o segurança ficam imóveis.
PILATOS
Vamos lá. Devagar. E tranquem a porta depois de
entrar. Sem afobação, bem quietinhos. (ao segurança)
Meu companheiro está lá dentro, de modo que você não
tente bancar o espertinho, viu?
Todos entram e é trancada a porta de acesso ao bistrô.
Perto dali, BORK estaciona o carro.
IRIS OUT TO:
INT. ESCRITÓRIO DE CACO – NOITE.
Caco está digitando algo no laptop, quando toca a campainha do
celular.
Ele atende sem deixar de olhar para a tela no laptop.
CACO
Caco SELIGMAN. Pois não.
A porta se abre e Rogério entra escritório adentro, com o
celular dele no ouvido.
Os dois desligam seus celulares.
ROGÉRIO
Esqueci uma coisa importante, querido.
CACO
(sem paciência)
Vê se me esquece, Rogério. Eu ainda tenho uns dias.
Vê se me deixa trabalhar.
ROGÉRIO
Nessa crise toda, ninguém quer produzir um filme que
tenha muitos atores ou muitas locações. Jamais se
esqueça disso.
CACO
Vou escrever mais de cento e vinte páginas,
equivalentes a 150 no formato usado em LA. Dá uma
minissérie, sabia?
ROGÉRIO
O mesmo raciocínio vale para as séries. Aliás, vale
ainda mais para séries e minisséries.
CACO
54
OK, Rogério. Vou lembrar-me disso. Nada de muitos
personagens.
ROGÉRIO
Nada de muitas locações também. Faz de conta que é
você que vai tirar dinheiro de sua conta e produzir
o filme.
Começa a empurrar Rogério para fora do apartamento.
CACO
Prefiro fazer de conta que peguei o dinheiro que
havia em minha conta e fui para o Caribe.
Fecha e tranca a porta depois de Rogério ser colocado para
fora.
INT. CAFÉ PARIS/JARDINS – NOITE.
A casa está lotada.
CAM em FAST MOTION: em ritmo frenético, os clientes saem do
recinto, um a um, até que só permanecem no salão Laerte, o
cartunista da Folha de S. Paulo, o repórter de TV, o CABOMAN e
o CAMERAMAN, além dos garçons (dez).
CACO
(em OFF)
Tem garçom demais para cliente de menos.
Um a um, os garçons desaparecem instantaneamente, como num
passe de mágica. No lugar do último sai uma fumaça esverdeada.
CACO
(em OFF)
Opss. Tem que ficar pelo menos um.
Da mesma forma sumiu, reaparece o último garçom, que vai de
servir à mesa de LAERTE.
CACO
(em OFF)
Show de bola.
IRIS IN TO:
EXT. CAFÉ PARIS/JARDINS/SÃO PAULO – NOITE.
BORK e MADS aproximam-se devagar e surpreendem Jesus.
BORK dá choques elétricos nele e MADS joga spray de pimenta
nos olhos dele.
55
BORK bate o revólver (que tomou do marginal) no joelho dele, com
força e Jesus cai de joelhos.
PLANO APROXIMADO de Jesus, horrorizado ao reconhecer BORK e
MADS.
JESUS
Você!
BORK dá nele uma coronhada fortíssima e Jesus também desmaia.
MADS vê João caído no chão, desfalecido e o aponta para BORK.
BORK
E esse aí? Quem será?
MADS
(rindo)
Deve ser Orca, a Baleia Assassina.
MADS examina João.
BORK
Esse aí está mais para Bela Adormecida. Deixe o
príncipe aqui dar um beijo nele que logo acorda.
BORK regula o aparelho e dá um choque elétrico leve na bunda
de João, que acorda de uma vez.
JOÃO
Ei! O que houve? Cadê? Cadê?
Confuso, ele olha para BORK com os olhos arregalados.
BORK
Boa noite, senhor. O senhor está passando bem?
JOÃO
Quem são vocês?
BORK
Isso é informação demais para você, bolão.
João vê Jesus desmaiado perto dele.
JOÃO
(só então parece lembrar-se)
Eles vão assaltar o Café Paris!
BORK
(sorrindo)
Jura? Tem certeza?
56
MADS
(apontando Jesus)
Esse aí não assalta ninguém.
JOÃO
Vamos chamar a polícia!
BORK regula o aparelho de choques elétricos mais uma vez e dá
novo choque em João, que cai desmaiado outra vez, ao lado de
Jesus.
BORK
Nada de polícia, bolão. Nós é que vamos resolver
essa parada.
MADS
No que você está pensando, BORK?
Vamos entrar
bandidos.
BORK
pelos
fundos
e
dar
um
susto
nos
MADS
Vamos ficar famosos, BORK!
Entra na trilha a música
começam a dançar de novo.
de
funk
instrumental
e
os
BORK
Vamos ficar famosos! Vamos ficar famosos!
ficar famosos! Vamos ficar famosos! Vamos
famosos! Vamos ficar famosos!
Vamos
ficar
MADS
Vamos ficar famosos! Vamos ficar famosos!
ficar famosos! Vamos ficar famosos! Vamos
famosos! Vamos ficar famosos!
Vamos
ficar
dois
INT. CAFÉ PARIS/JARDINS/SÃO PAULO – NOITE.
O segurança e a recepcionista – com a arma de Pilatos apontada
– acabam de trancar a porta.
Pilatos dá um chute no segurança e empurra a recepcionista,
apontando uma das duas portas que há na antessala de acesso ao
salão onde ficam os clientes.
PILATOS
Que porta é essa?
SEGURANÇA
É o banheiro dos empregados.
PILATOS
57
E a outra?
RECEPCIONISTA
É a porta de entrada.
PILATOS
Para que duas portas de entrada? Uma só não basta?
Dá mais um chute no segurança.
PILATOS
Passa o celular! Rapidinho! Estou com pressa!
Os dois entregam seus celulares.
PILATOS
Entrem logo no banheiro. Vamos!
A recepcionista entra e logo em seguida o segurança.
Pilatos dá uma pancada forte com o revólver na cabeça do
segurança, que desmaia.
A recepcionista começa a gritar e também toma uma coronhada,
desfalecendo também.
Pilatos sai e tranca a porta com os dois lá dentro.
INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE.
Luciana e Tom ainda no toalete feminino. Ele tenta ouvir algo
do que imagina ser um assalto.
TOM
Merda! Não estou ouvindo nada!
LUCIANA
Engraçado. Está quieto demais. Vamos lá?
TOM
Nem pensar. Ficou maluca?
LUCIANA
E o que é que a gente faz?
TOM
Não há nada que nós possamos fazer. Vamos ficar
quietos aqui e esperar o fim do assalto.
LUCIANA
Detesto esperar sem fazer nada.
58
TOM
Eu também. A gente arruma alguma coisa para fazer. É
o mais prudente.
LUCIANA
Eu me sinto protegida estando com você, querido.
TOM
Adoro tomar conta de você, minha linda.
LUCIANA
(dengosa)
Você é sempre carinhoso assim, é?
Eles se olham bem de perto. Sentem o hálito um do outro e
vice-versa.
TOM
Não. Só quando estou ficando apaixonado.
LUCIANA
Está é?
TOM
Estou. Cada vez mais apaixonado.
LUCIANA
A porta está mesmo trancada?
TOM
(piscando para ela)
Trancadíssima.
Luciana dá uma olhada diferente para Tom. Ela repara nos rosto
dele, nas pernas bem feitas.
Tom também olha com interesse para Luciana, muito sensual no
vestidinho justo.
De repente os dois se atracam e começam a se beijar com ardor.
CORTA PARA:
EXT. FUNDOS DO CAFÉ PARIS – NOITE.
BORK e MADS descem de um
pequena, com uma janela.
muro
BORK enfia a cabeça na janela.
alto
e
se
veem
numa
área
59
INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE.
A cabeça de BORK aparece no basculante da janela, explorando o
ambiente.
Ele vê Tom e Luciana atracados.
Não reconhece
encoberto.
Luciana,
que
está
com
o
rosto
parcialmente
A cabeça de BORK desaparece no basculante.
EXT. FUNDOS DO CAFÉ PARIS – NOITE.
MADS aguarda o resultado da exploração feita por BORK.
MADS
E aí? Onde dá essa janela?
BORK
Legal! Acertamos na mosca! Acho que é o toalete
feminino do café. Eu vi duas mulheres se beijando,
argh! Que nojo!
MADS
Eca! Não tem nada mais feio do que duas mulheres se
beijando.
BORK
Aposto que tem sim, MADS. (pausa; subitamente animado)
Vamos apostar?
MADS
O que nós vamos apostar?
BORK
Se existe alguma coisa
mulheres se pegando.
MADS
Aposto que não.
BORK
Eu aposto que tem.
MADS
O quê?
BORK
Bunda de chimpanzé!
mais
feia
do
que
duas
60
MADS
Você ganhou dessa vez, seu cão sarnento!
Os dois batem as mãos no estilo das gangues de
americanos, com muitos estalos e ruídos bem sonoros.
filmes
E peidam juntos.
Os dois riem pra valer.
INT. CAFÉ PARIS/SÃO PAULO – NOITE.
Pilatos entra devagar no interior do salão e repara que o
repórter de TV está gravando uma entrevista com Laerte
Coutinho.
Pilatos esconde-se atrás de uma pilastra e presta atenção na
entrevista de Laerte.
REPÓRTER
O que significa a palavra CROSSDRESSER?
LAERTE
Significa que um sujeito gosta de usar roupas e
acessórios femininos.
REPÓRTER
É a mesma coisa que travesti?
Pilatos parece absorvido pela entrevista.
LAERTE
Absolutamente.
Travesti
tem
um
sentido
de
inadequação interior, uma conotação pejorativa, você
entende?
REPÓRTER
Não deixa de ser a realização de uma fantasia.
LAERTE
Exatamente. No carnaval muitos homens vestem-se de
mulher na base da gozação. Mas essa turma está mesmo
é realizando uma fantasia. E alguns certamente estão
querendo
mesmo
é
colocar
para
fora
sua
homossexualidade.
REPÓRTER
Foi difícil tomar a decisão de ser CROSSDRESSER?
LAERTE
Eu escolhi não viver a minha homossexualidade por
décadas. Não tinha mais como não ser eu.
61
Pilatos parece hipnotizado pelas coisas que Laerte fala.
REPÓRTER
Você sentiu preconceito com sua decisão?
LAERTE
Tive a minha primeira relação sexual aos dezessete
anos. Com um homem. Depois eu me casei três vezes e
tive três filhos.
REPÓRTER
Por quê?
PLANO APROXIMADO de Pilatos: ele está muito pensativo.
LAERTE
Por puro pânico. Não é que eu não tenha prazer ou
não tenha tido nenhum tipo de desejo por mulheres. É
que eu estava vivendo um estado de negação
permanente.
Pilatos começa a
jeito sonhador.
sonhar
de
olhos
abertos,
suspirando,
com
As imagens do sonho dele (a seguir) devem ser em sépia,
ligeiramente distorcidas, caracterizando o contraponto com a
‘realidade’.
Pilatos começa a imaginar-se num videoclipe, reproduzindo e
atualizando
o
filme
original
da
banda
QUEEN
(https://www.youtube.com/watch?v=f4Mc-NYPHaQ).
É uma cena apoteótica e imprevista de musical americano, com
coreografia inspirada no clip e locações diferentes, como um
novo clip feito com Pilatos dublado por Fred Mercury.
Não há absolutamente nada de pejorativo ou grotesco: PILATOS
está mesmo concentrado na execução da coreografia, como se
fosse o próprio FRED MERCURY; está feliz por estar fazendo o
vídeo do artista que ele adora.
CORTA PARA:
INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE.
Tom e Luciana continuam grudados.
BORK e MADS comprimem-se no
melhor o interior do toalete.
basculante,
tentando
observar
62
Durante um beijo Tom dá uma olhada na janela e repara nos
vultos de BORKS e MADS.
PLANO APROXIMADO: os vultos de MADS e BORK, no ponto de vista
de Tom.
Tom sussurra algo no ouvido de Luciana e ela responde, também
em voz baixa.
TOM
Tem alguém observando a gente. Não vire o rosto.
LUCIANA
Quem você acha que é? Será que é a polícia?
TOM
Não acredito. Se fosse a polícia isso aqui já teria
virado um inferno.
LUCIANA
O que você quer fazer?
TOM
Vamos chegando para perto da janela. Sem que ele
perceba. OK?
LUCIANA
Está certo. Vamos lá.
TOM
Devagar, senão ele percebe.
Tom e Luciana vão se aproximando do basculante, ainda abraços.
Os gêmeos continuam observando no basculante.
De repente, Tom dá um pulo
pegando BORK pelo pescoço.
e
enfia
a
mão
no
basculante,
TOM
Peguei!
BORK
Larga o meu pescoço! Me larga! Travesti desgraçado!
Tom segura firme.
BORK
Dá um choque nele, MADS. Jogue o spray nele!
63
Ao ouvir – e reconhecer - a voz dos meninos, Luciana corre
para o banheiro, em pânico.
Fica parcialmente dentro, com a cabeça de fora.
VEMOS que MADS aproxima o aparelho da mão de Tom e lhe dá uma
descarga elétrica.
Tom dá um grito de dor, mas volta-se com rapidez e pega MADS
de surpresa, tomando dele o aparelho elétrico.
BORK tenta borrifar o spray de
consegue tirar o rosto a tempo.
pimenta
em
Tom,
mas
ele
TOM
Temos dois durões aqui, hein? Vocês precisam de uma
lição.
Ato contínuo, Tom puxa o menino com força.
BORK, arrastado por Tom, cai no chão do toalete, atordoado.
Luciana entra de corpo inteiro no banheiro, trancando a porta.
MADS, assustado, fecha o basculante.
TOM
É um menino! É só um garoto. (pausa) Luciana? (olha em
todas as direções) Luciana?
PLANO APROXIMADO
assustada.
de
Luciana
dentro
do
banheiro,
LUCIANA
Eu estou aqui. Não quero ver ninguém!
TOM
Calma, minha linda. É só um menino.
No banheiro:
LUCIANA
Tire ele daqui! Tire ele daqui!
TOM
Ei, garota?! O que foi que houve? Qual é a encrenca?
LUCIANA
(em OFF)
Esse é o toalete feminino! Menino não pode ficar
aqui!
TOM
ainda
64
Está certo. Calma. Vou resolver isso.
Luciana continua presa no banheiro.
BORK começa a recuperar-se do tonteio.
BORK
Ai, ai, ai, ai, ai.
TOM
O que você está fazendo aqui, menino?
BORK
Você é um travesti?
TOM
O que você acha?
BORK
Cadê sua peruca?
Ajuda BORK a levantar-se.
E dá um puxão de orelhas forte nele.
BORK
Ai, ai, ai, ai, ai.
TOM
Responda logo senão eu arranco fora a sua orelha.
BORK
Meu nome é BORK.
TOM
Quem estava com você ali atrás (aponta o basculante)?
BORK
Por que você quer saber?
Mais um puxão de orelhas e mais um grito de dor.
TOM
Eu: perguntas. Você: respostas. Estamos entendidos?
BORK faz sinal que sim com a cabeça.
BORK
Fuja! Vá embora, MADS!
Tom vira o nariz dele para cima (como fazia MOE, dos Três Patetas) e
BORK grita de dor mais uma vez.
65
BORK
Ai, ai, ai, ai, ai.
TOM
Você é abusado, hein cabeça de fogo?
BORK
Por favor, pare! Pare, por favor! MADS: faça alguma
coisa!
MADS
(com a cabeça no basculante)
Fazer o quê, BORK?
TOM
Saia daí você também, pentelho!
BORK
Não saia, MADS! Não saia!
Tom dá um longo suspiro.
TOM
OK. Que ele fique lá. Vamos conversar primeiro.
BORK
Travesti!
Tom dá uma tapa no rosto de BORK, que fica surpreso.
TOM
Você vai parecer um ser humano educado nem que eu
tenha que dar-lhe uma surra.
BORK
Vou denunciar você, tia. Vou denunciar você baseado
no estatuto do adolescente.
Tom dá mais uma bofetada nele.
TOM
Se me chamar de tia outra vez vou bater com a mão
fechada. Entendeu?
BORK
Entendi.
TOM
66
Vamos começar tudo de novo, OK? Eu pergunto e você
responde. Nada de gracinhas, que a minha paciência
já acabou.
BORK fica quieto.
Tom dá mais uma bofetada em BORK.
TOM
Tem uma coisa que me tira do sério, sabe qual? É
menino mal educado. Entendeu?
BORK
Entendi.
TOM
Bom. Vamos lá. Sem mentiras senão leva bolacha. O
que você e aquele outro cabeça de fogo estão fazendo
aqui?
BORK
Nós viemos ver o assalto. Depois vamos a um baile
funk.
TOM
Vocês sabem que o restaurante está sendo assaltado?
Como ficaram sabendo?
BORK
(com as bochechas vermelhas)
É uma estória longa, tia. Opa! Desculpe! Tia, não!
Não me bata mais, por favor!
Tom faz menção de bater de novo (BORK recua), mas não faz isso.
BORK
Sem sacanagem. Tio.
TOM
Assim está melhor. (pausa)
passarinho cantar.
Vamos
lá.
Quero
ver
o
BORK
Eu e meu irmão seguimos um sujeito que veio para cá
com um amigo dele. Lá na Avenida Paulista.
TOM
Seguiram como?
BORK
De carro.
67
TOM
Vocês estão com motorista? Carro de quem?
BORK
O carro é de meu pai. Eu é que sou o motorista.
TOM
Onde aprendeu a dirigir?
BORK
Em Copenhagen. Minha mãe ensinou.
TOM
Dinamarca?
BORK
É. Eu e meu irmão MADS nascemos lá.
TOM
Seu pai está sabendo que você dirige por aí?
BORK
A essa altura ele já deve saber.
TOM
E ele não se importa?
BORK
Ele se importa sim. A gente pega o carro escondido
dele. Sem ele saber.
TOM
Você é bem esperto, cabeça de fogo. Muito esperto.
Mas ainda não me disse exatamente o que vocês dois
vieram fazer aqui no Café Paris.
BORK
Nós viemos surpreender os assaltantes e impedir o
assalto.
Tom começa a rir.
Ele bate com o nó dos dedos na cabeça de BORK.
Tem alguém
merda?
TOM
aqui?
Tem
alguém
nessa
cabecinha
de
BORK dá um chute no saco de Tom e corre para o basculante,
tentando escapar.
68
Tom dobra-se, gemendo de dor, mas alcança BORK e faz a mesma
coisa nele.
O garoto deita no chão, gemendo.
TOM
Além de mal educado você por acaso é burro também?
Como é que você pretende impedir o assalto, posso
saber?
BORK
Nós temos uma arma.
TOM
De verdade?
BORK
Claro que é de verdade. De mentira não teria nenhuma
utilidade.
TOM
É de seu pai?
BORK
Não. Nós tomamos do bandido que a gente seguiu.
TOM
Tomaram?
BORK
Sim. Esses bandidos são muito incompetentes, você
não acha?
TOM
Acho. E onde está essa arma?
BORK aponta o basculante.
BORK
MADS! Passe a arma.
VEMOS o enorme COLT 44 despontar no basculante.
Tom pega o revólver,
alcance de BORK.
olha
com
atenção
e
coloca
TOM
UAU! É verdade! Vocês deram conta do marginal!
BORK
E aí? Vamos lá resolver logo essa parada?
longe
do
69
TOM
Quem resolve isso é a polícia. Ninguém sai daqui.
Vamos esperar acabar esse assalto aqui.
BORK
E aquela mulher que você estava beijando?
TOM
O que é que tem ela?
BORK
(aponta o único banheiro com porta fechada)
Por que ela fica trancada lá?
TOM
Ela está com vergonha de você, cabeça de fogo. Isso
aqui é o toalete feminino, deu pra sacar?
MADS aponta a cabeça no basculante.
MADS
Por que você está se vestindo de mulher?
TOM
Eu conto depois que você entrar e me explicar o que
é que dois gêmeos da Dinamarca vieram fazer aqui.
(estende a mão para MADS) Fechado?
Ainda atrás do basculante, desconfiado, MADS aperta a mão de
Tom.
BORK
Venha se juntar a nós, MADS. (zombeteiro:) A tia aqui
é gente boa.
MADS entrega o tubinho de gás pimenta e o aparelho que dá
choques elétricos a Tom, que o ajuda a passar pelo basculante.
Tom regula o aparelho de choques.
E dá uma descarga em BORK.
TOM
(dando uma descarga em BORK)
Você já me cansou a beleza,
realmente empatados agora.
menino.
Estamos
PLANO APROXIMADO: BORK tremendo sob a ação dos choques, com
cabelo arrepiado.
IRIS OUT TO:
70
INT. ESCRITÓRIO DE CACO – NOITE.
Caco diante do laptop. Na trilha, outra música do B-52.
A fumaça de maconha está concentrada em torno dele, que está
rindo do que acabou de escrever.
Toca o celular.
A tela se parte em duas metades: Caco e Rogério (na casa dele):
ROGÉRIO
Tem alguém vivo no meio dessa fumaça toda?
CACO
Insônia brava, hein?
ROGÉRIO
Estou preocupado, Caco. De verdade.
CACO
É meu método de trabalho. Pode ter certeza:
vegetal não me atrapalha em nada. Pelo contrário.
ROGÉRIO
Não é isso. Por mim você pode fumar
Tarantino inteiro que não estou nem aí.
o
o
Quentin
CACO
Ainda tenho três dias. Já deixei de cumprir algum
prazo?
ROGÉRIO
Você chegou à metade do segundo ato e até agora nada
de assalto.
CACO
A encrenca agora é o assalto? A merda do assalto?
ROGÉRIO
Você esvaziou o lugar, Caquinho querido. Esse
assalto está demorando muito e quando acontecer não
vai ter graça nenhuma.
CACO
Mas não foi você quem pediu para reduzir o número de
personagens?
ROGÉRIO
71
De pra você entender muito
espertinho para cima de mim.
bem.
Não
se
faça
de
CACO
Você tem que mudar seu modelo mental, Rogério. Pare
de pensar que o espectador é burro.
ROGÉRIO
Pode não ser burro. Mas é conservador. Que fixação é
essa com travesti, homem? Diz aqui para o papai:
você está pensando em sair do armário?
IRIS IN TO:
INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE.
MADS ataca Tom, que o segura pelo pescoço e, mantendo-o preso,
Tom dá mais um choque elétrico em BORK.
BORK desmaia e Tom o apoia para evitar que ele bata a cabeça
na parede, colocando-o com cuidado no chão.
MADS
O que você fez com meu irmão?
MADS corre até BORK e balança o corpo dele, desesperado.
MADS
BORK! Você está bem, BORK? BORK?!
MADS começa a chorar.
TOM
Calma, menino. Não precisa chorar. Ele está bem. É
bom para acalmar ele um pouco. Seu irmão é muito
tenso.
MADS
(com raiva)
Por que você fez isso com ele? Meu irmão é incapaz
de fazer mal a alguém.
TOM
Deu para perceber, cabeça de fogo. Relaxe. Vamos
bater um papo.
VAMOS ao BOX em que Luciana está fechada: ela está fazendo
relaxamento
muscular,
em
busca
de
uma
posição
mais
confortável, pois é muito apertado lá dentro.
VOLTAMOS a Tom e BORK.
MADS
72
O meu nome é MADS.
TOM
Número dois está bom pra mim.
MADS
(apontando a direção do salão)
Você não está curioso
acontecendo lá dentro?
para
saber
o
que
está
TOM
Provavelmente não está acontecendo nada. O assalto
já deve ter acabado.
MADS
Está quieto demais para um lugar que foi assaltado,
você não acha?
TOM
Nisso eu concordo com você, número dois.
MADS
Você ainda não respondeu minha pergunta.
TOM
Não me visto sempre assim, cabeça de fogo.
MADS
Você também é transexual?
CORTA PARA:
PLANO APROXIMADO de Luciana (ainda
assustando-se com a pergunta de MADS.
trancada
no
banheiro),
TOM
Eu não sou transexual nem também. ‘Também’ por quê?
MADS
Nosso pai também é transexual. Mas ele não gosta
dessa palavra.
TOM
Eu também não. Mas é melhor do que travesti.
MADS
Traveco é pior ainda.
TOM
E o que você acha
constrangimento?
disso?
Tem
algum
tipo
de
73
MADS confirma que BORK está mesmo desmaiado.
MADS
Eu não dou importância para isso. Ter duas mães até
que seria bom, já que uma está morta. É matemática
pura, não?
TOM
Seria?
MADS
Nossa mãe morreu
Copenhagen.
de
câncer
há
dois
anos.
Em
TOM
Por isso vocês vieram para Sampa. Ficar com seu pai.
PLANO APROXIMADO
ouvindo.
de
Luciana,
emocionada
com
o
que
está
MADS
Minha mãe conheceu meu pai há muito tempo, quando
ela era muito jovem. Ela nunca mais teve contato com
ele, mas o advogado dela veio ao Brasil e trouxe
BORK e eu.
TOM
Vocês não gostam de morar em São Paulo?
MADS
Eu gosto. Mas BORK quer voltar para Copenhagen.
PLANO APROXIMADO: Luciana está
atrás da porta do banheiro.
atenta,
ouvindo a conversa,
TOM
Vocês têm parentes lá?
MADS
Não. Nenhum parente. Na verdade o problema é outro.
TOM
BORK não aceita a identidade sexual de seu pai?
MADS
Ele diz que não. Mas eu sei que o problema não é
esse.
TOM
Você está esperando que eu implore? Não estou com
essa vontade toda de saber qual é o problema de
Número Um.
74
MADS
BORK sente falta de carinho. Nossa mãe era muito
carinhosa e nosso pai é sempre muito distante. BORK
fica revoltado.
CLOSE-UP: Luciana, pensativa,
sempre no banheiro.
continua
ouvindo
a
conversa,
TOM
Mas isso não incomoda você.
MADS
Não. Cada pessoa é de um jeito. É civilizado
respeitar a orientação sexual do outro, não?
TOM
Você é um sujeito bem razoável, Número Dois. Você
bem que podia ser o macho alfa da dupla.
MADS
(rindo)
E você acha que não tentei? BORK é mais forte do que
eu.
Batidas na porta interrompem a conversa.
Tom acha que é Luciana.
Encosta o ouvido na porta do banheiro em que ela está.
TOM
Luciana? É você?
DO LADO DE DENTRO do sanitário.
LUCIANA
Eu o quê?
OUVIMOS mais batidas na porta.
VOLTAMOS AO AMBIENTE PRINCIPAL, fora dos BOX dos sanitários.
TOM
(bate na porta)
Esquece. Vou ver quem é. Fique aí.
Tom pede silêncio (com gestos) vai até a porta de saída do
toalete e encosta o ouvido direito na porta.
Novas batidas.
75
A PARTIR DAQUI, VAMOS para dentro e para fora do toalete,
acompanhando Vilma e Tom em lados diferentes da porta: um de
dentro a outra de fora.
VILMA
Ei você aí do banheiro! Está ouvindo, playboy? Abra
a porta. Precisamos conversar.
TOM
Você já levou meu dinheiro e a minha roupa. O que
mais você quer?
VILMA
Conversar. Vou devolver sua grana.
TOM
Converse daí mesmo.
VILMA
Abre essa merda logo senão eu mando uma dum-dum e
arrebento essa porta.
Tom vai até BORK e puxa o corpo dele para o box ao lado do que
é ocupado por Luciana.
TOM
(a MADS, sussurrando)
Entre aqui também! Rápido, Número Dois!
MADS pega a arma e a oferece para Tom, que não aceita ficar
com o revólver.
Tom esconde a arma.
MADS insiste e ele fica com o spray de pimenta.
Tom abre a porta e Vilma entra.
VILMA
Que cheiro esquisito é esse?
TOM
Você queria o quê? Chanel número 5? Até Marilyn
Monroe fazia cocô fedido.
VILMA
(aspirando o ar)
Não. Tem alguma coisa diferente aqui. Parece pimenta.
Ela olha as duas portas fechadas.
76
VILMA
Tem alguém aí com você?
Tom fica tenso.
TOM
Você disse que queria conversar.
VILMA
Quero mesmo. Tire a roupa, por favor.
TOM
Outra vez?
VILMA
Outra vez, sim. Qual é o problema? Gostou da minha
roupa?
TOM
Esse assalto está virando uma anarquia.
ficar pelado aqui de jeito nenhum.
Não
vou
VILMA
Quem disse que você tem que ficar pelado?
TOM
E que roupa eu vou vestir?
VILMA
Você é nervoso demais. Uma dum-dum vai acalmar você,
playboy.
TOM
Você vai mesmo devolver a minha roupa?
VILMA
Não vou devolver merda nenhuma. Estou
assim. (pausa) Pilatos! Entre, Pilatos.
muito
bem
Pilatos entra. Parece diferente, um pouco distante.
TOM
Pilatos?
PILATOS
(distraído)
Algum problema? É Pilatos sim.
TOM
Um nome bem pitoresco esse seu. Seu pai é evangélico?
77
PILATOS
Como é que você sabe?
TOM
Eu conheci um pastor chamado Sinédrio Espírito
Santo. Ele me disse que tinha um filho com nome de
Pilatos.
PILATOS
Mundo pequeno esse. Está vendo como tem a mão de
Jesus em tudo?
VILMA
Tire a roupa logo, playboy. É ele que vai usar meu
vestidinho.
TOM
Esse vestido não cabe nesse sujeito de jeito nenhum.
Vilma dá um chute no saco de Tom, que geme com vontade.
Pilatos parece estar em dúvida.
VILMA
Mais respeito, playboy.
TOM
E Herodes? Tem algum Herodes na família?
PILATOS
Cale a boca. Estou pensando.
TOM
Família grande, hein?
VILMA
Qual é a encrenca agora?
Tom começa a tirar o vestidinho.
PILATOS
Pode parar.
Tom olha para Vilma.
VILMA
(a Pilatos)
Parar por quê?
PILATOS.
78
Ele está certo. Eu vou ficar ridículo nesse vestido.
Olha só (mostra Tom). Patético. Não quero ser uma
caricatura grosseira, Vilminha.
TOM
(a Vilma)
Eu também não quero ser uma caricatura grosseira.
Vilminha.
VILMA
Vilminha é a sua mãe, playboy.
VILMA
(a Pilatos)
Vamos embora, PI. Isso aqui não dá mais caldo. Onde
é que foi parar o filho da mãe do Jesus?
TOM
PI? E a minha roupa?
Vilma
Vou ficar com ela. Algum problema?
TOM.
Nenhum. Absolutamente nenhum.
VILMA
Cadê Jesus? Ele já chamou o táxi?
TOM
Táxi? Táxi pra quê?
PILATOS
Já está esperando.
TOM
Vocês não acham isso precário demais?
PILATOS
Do que esse traveco está falando?
VILMA
Fale em língua de gente, playboy.
TOM
Táxi? Hummm. Assaltante que se preze não anda de
táxi.
VILMA
Qual é o seu problema? Não cabe todo mundo na moto
de Jesus.
79
TOM
Não haveria, por acaso, nenhum BARRABÁS?
Pilatos aperta o saco de Tom.
TOM
O que é isso, PI? Ficou maluco?
VILMA
Vamos logo embora, PI. Eu estou quase perdendo a
paciência com esse traveco.
PILATOS
Não admito gozação com minha família.
VILMA
O irmão mais novo dele se chama BARRABÁS.
TOM
E o mais velho é você?
PILATOS
Vamos deixar de conversa fiada.
TOM
E o assalto?
VILMA
Não tem mais assalto. Pilatos desistiu do assalto.
PILATOS
Desisti mesmo. A partir de agora sou uma mulher de
respeito, não assalto mais.
TOM
O quê? Desistiu? (a Vilma) Você me trancou aqui esse
tempo todo vestido de mulher e agora diz que não tem
assalto?!
VILMA
Não sei o que deu na cabeça dele. O assalto era para
conseguir dinheiro para fazer a cirurgia.
TOM
Ele está doente?
PILATOS
Tenho cara de quem está doente?
Tom olha fixamente para Pilatos.
80
TOM
Doente não. Mas parece estar num estado de euforia
talvez um tanto neurótico.
PILATOS
Admito uma euforia moderada. Também não é para
menos. Desistir da cirurgia é uma libertação. Estou
sentindo uma alegria incontrolável.
Pilatos beija Tom com carinho.
VILMA
Ele ia fazer uma cirurgia para deixar de ser homem.
TOM
Não vai mais?
MADS
(em OFF, atrás da porta do banheiro)
Cirurgia de REDESIGNAÇÃO Sexual.
TOM
(baixinho, batendo o nó
banheiro em que MADS está)
dos
dedos
de
leve
Cale a boca, Dois.
PILATOS
Quem é Dois?
TOM
(a Pilatos, baixinho)
Depois eu te conto.
VILMA
Mas não vai mais ter operação nenhuma.
TOM
Não?
VILMA
Ele desistiu e quem manda é ele.
PILATOS
Quem disse isso?
TOM
Ela.
PILATOS
Não. Antes dela.
MADS
na
porta
do
81
(em OFF, atrás da porta do banheiro)
Cirurgia de REDESIGNAÇÃO sexual.
PILATOS
(aponta o banheiro)
Isso.
VILMA
Tem alguém aí.
MADS aponta a cabeça na porta do banheiro.
MADS
Não vale a pena cortar fora o pinto. Você nunca mais
vai ter um orgasmo.
PILATOS
O que esse menino está fazendo aí?
TOM
Fique quietinho aí, cabeça de fogo! (a Pilatos) É meu
sobrinho. O menino é gay, usa o banheiro feminino e
está com vergonha.
PILATOS
Que bobagem, criança. Ninguém aqui liga pra essas
coisas. (pausa; a MADS) Mas você está certíssima. Por
isso eu resolvi não cortar fora meu pingolim.
TOM
Melhor não tirar mesmo e continuando a poder gozar.
PILATOS
Não quero mais saber de violência. E não vou fazer
uma violência contra meu próprio corpo.
TOM
É razoável. Se eu fosse gay e travesti não tiraria
de jeito nenhum o meu pinto.
MADS
(em OFF)
Eu também jamais tiraria.
TOM
Mas você nem sabe como é um orgasmo. Já fez dez
anos?
MADS
(em OFF)
Ainda não. Mas tem algumas coisas que a gente não
precisa experimentar para saber que é bom.
82
TOM
Por outro lado tem certas coisas que a gente não
quer experimentar mesmo sabendo que pode ser bom.
VILMA
Vamos parar de conversa fiada.
distribuir a dum-dum daqui a pouco.
Vou
começar
PILATOS
Quero ser uma mulher delicada e gentil.
carreira como criminoso chegou ao fim:
apontou-me o caminho.
a
Minha
Jesus
VILMA
(rindo)
Jesus e o
entrevista.
traveco
que
está
lá
dentro
dando
TOM
Mais um traveco? Nunca vi tanto travesti. De que
traveco você está falando?
VILMA
E eu sei? (aponta Pilatos). Pergunte a ele.
PILATOS
Ela! Ele, não! Ela!
VILMA
Faz menos de quinze minutos que você virou mulher,
caralho! Não é fácil acostumar! Você pensa que é
fácil?!!
Vilma sai batendo a porta.
TOM
Ela sempre é brava assim?
Pilatos olha para Vilma com imenso carinho.
PILATOS
Dá pra resistir?
TOM
Vocês...?
PILATOS
Somos. Casamos há vinte e cinco anos.
TOM
83
E agora? Como é que vai ser?
PILATOS
Vai ser o quê?
TOM
Parece que você resolveu mudar de lado recentemente.
Não foi por isso que ela saiu?
PILATOS
Bobagem. Para ela não faz diferença.
TOM
Vocês não... (gesto que indica sexo)?
PILATOS
Não. Ela é lésbica.
TOM
E funcionava antes?
PILATOS
Funcionava antes e vai continuar funcionado agora.
Talvez passe a funcionar melhor ainda.
TOM
Por quê?
PILATOS
Por que nós sempre fomos grandes amigos. Agora vamos
dividir as roupas e até os homens, quem sabe?
TOM
Que coisa. Você lida com isso com uma naturalidade
incrível, hein?
PILATOS
Sexo implica em posse. Em disputa de poder. Melhor
deixar para quem não tem importância na sua vida.
TOM
Sabe que você pode ter razão? Incrível o seu
raciocínio.
PILATOS
É como a educação dos filhos. É coisa séria demais
para ficar na responsabilidade dos pais.
TOM
Incrível, PI. Você
aventuras de PI.
PILATOS
é
demais.
São
incríveis
as
84
Aventuras de PI? Você disse isso mesmo?
TOM
(sem graça)
Não deixa de ser uma aventura a vida de PI, não é
mesmo?
PILATOS
Eu podia ter ficado sem essa. Estava tudo indo tão
bem. Aventuras de PI? Eu mereço isso?
TOM
Minha inspiração foi prejudicada pelos últimos
acontecimentos. Aventura mesmo é a minha. Você não
sabe nem metade da missa.
A cabeça ruiva de MADS aparece debaixo da porta do banheiro.
MADS
PI?
Pilatos abaixa-se e olha para MADS.
MADS
Você fez a coisa certa. Mandou bem.
PILATOS
Valeu. Criança: faça valer o que aprendeu aqui hoje.
Luciana bate na porta do banheiro.
TOM
É a minha namorada. Deve estar cansada de ficar
trancada lá, PI.
PONTO DE VISTA DE Tom, vendo a cabeça de Pilatos, que continua
abaixado desde que começou a conversa com MADS.
PILATOS
(de cabeça abaixada)
Isso aqui está movimentado, hein?
TOM
(abaixado também)
Uma incrível
imaginar.
coincidência,
a
senhora
nem
pode
PILATOS
Porque ela não sai? Por acaso, ela é parente da
criança ruiva (aponta o banheiro em que está MADS)?
TOM
85
Não. Ela está com muitos gases, é só isso.
PILATOS
Eu vou embora antes que os gases comecem a dar o ar
da graça. Quer ficar com meu número?
Pilatos estende a ele um cartão de visita.
TOM
Obrigado, não, PI. Não precisa. Mas obrigado assim
mesmo.
PILATOS
Fique com ele. Vai que você muda de ideia? Nunca se
sabe.
Tom ri.
TOM
É. Nunca se sabe. Boa sorte, PI.
Antes mesmo que Pilatos tivesse saído do ambiente, Luciana já
abria a porta do banheiro em que ficara um bom tempo, correndo
na direção da porta, tentando (e conseguindo) passar por Tom.
CORTA PARA:
INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE.
MADS ajuda BORK a crescer
INT. CORREDOR/TOALETES/CAFÉ PARIS – NOITE.
Tom aponta rápido no corredor e corre atrás de Luciana.
TOM
Luciana! Espere! Por favor, Luciana! Luciana!
EXT. CAFÉ PARIS/JARDINS/SÃO PAULO – NOITE.
Tom segue em perseguição a Luciana,
extensão do café e sai na rua.
que
atravessa
toda
a
Ao sair, ela pega um táxi e vai embora.
Tom chega correndo, sem ver Luciana no táxi. Olha para um
lado, para o outro.
Ele sente falta dos óculos: está apertando os olhos.
86
PONTO DE VISTA de Tom: uma confusão logo adiante, com imagens
ligeiramente desfocadas.
Três viaturas policiais fazem prisões bem perto dali: é o que
parece a Tom.
VEMOS que os presos são todos travestis, tratados com rudeza,
mas sem violência pelos policiais.
Vários travestis foram retirados de um prédio e estão sendo
encaminhados para as viaturas.
Um menino passa por perto e olha para Tom vestido de mulher.
O ator é o mesmo que interpreta MADS, mas aqui tem cabelos e
olhos negros. Mas é MADS.
MENINO
O que a senhora está esperando para cair fora daqui?
TOM
Por que você diz isso, menino?
MENINO
A polícia está prendendo tudo quanto é travesti. Não
convém ficar circulando por aí, minha senhora.
Tom assusta-se.
TOM
Meu Deus! Será que o mundo endoidou de vez? Por que
estão prendendo os travestis? Eduardo Cunha virou
presidente do Brasil? Jânio Quadros voltou?
MENINO
Calma. Não é pra valer. Eles estão levando todos os
travecos da cidade para uma festa.
TOM
Meu Deus! Que loucura! E de quem é essa festa?
MENINO
De quem eu não sei, mas quem está organizando tudo é
um produtor de cinema chamado Rogério Santana.
TOM
Eles vão fazer um filme?
MENINO
Não. O cara que organiza tudo é produtor de cinema,
mas amigo do peito do governador. É ele que
seleciona os travecos para a festa do figurão.
87
Tom começa a olhar fixamente para o menino.
PLANO APROXIMADO do menino, no PONTO DE VISTA de Tom.
TOM
Olhe para mim, menino. Eu conheço você de algum
lugar, não conheço?
PLANO APROXIMADO de Tom olhando para o MENINO.
CLOSE-UP do menino, exatamente igual a MADS, mas de cabelos (e
sobrancelhas) pretos e idêntico corte de cabelo, com visual
europeu.
MENINO
Eu não conheço a senhora não. Nunca vi a senhora
antes, posso garantir. A senhora é inesquecível.
TOM
Para de me chamar de senhora!
MENINO
Do que prefere ser chamada?
TOM
Chamado! Chamada, não! Sou homem! Macho!
Tom tenta puxar o cabelo dele, para ver se é peruca. MADS
chega para trás, com agilidade, escapando.
MENINO
EPA! O que a senhora está querendo fazer?
TOM
Tem certeza de que eu nunca vi você antes?
MENINO
Absoluta.
Tom começa a encarar o menino.
TOM
Se piscar você já me conhece. Certo?
MENINO
Certo.
TOM
Isso é peruca? Fala. Estou morrendo de curiosidade.
MENINO
88
Claro que não! Eu sou uma criança! Não preciso de
peruca! A senhora é uma ingrata! Mil raios caiam em
minha cabeça se eu mereço tamanha injustiça!
TOM
Menos, menino. Menos. Está valendo. Quem piscar
primeiro está com a razão. Um... Dois... (pausa)...
Três!
PLANO APROXIMADO: os rostos dois estão bem próximos. Nenhum
deles pisca.
O menino solta um peido e
CLOSE-UP DE Tom, piscando.
TOM
Golpe baixo, menino. Você me distraiu.
MENINO
Convém a senhora começar a correr. Tive a impressão
de ver um PM apontando para a senhora.
TOM
Jura?
MENINO
Precisa jurar? Minha palavra não basta?
Tom não pensa duas vezes e sai correndo.
Nisso, um cão pastor dispara atrás dele, que entra num boteco
berrando feito louco.
Ele descobre um fundo falso (a garçonete sinaliza para ele), levanta
uma espécie de alçapão e entra no subsolo.
A garçonete sai de trás do balcão e ajeita o tapete sobre o
alçapão rapidamente, quando entra o cão pastor, bufando de
ferocidade.
Dois policiais surgem devagar, sem qualquer pressa.
O cão fareja todo o local e chega ao tapete; morde o tapete,
tentando chamar a atenção dos guardas.
Enfim os soldados chegam.
SOLDADO UM
Por onde foi o travesti?
89
A garçonete faz sinal negativo com a cabeça.
O cão fica mordendo o tapete.
Um dos soldados manda o animal parar: o bicho fica imóvel,
obediente.
Os soldados vão embora.
EXT. BECO – NOITE.
Num beco escuro, VEMOS a silhueta de Tom, que sai do que
parece ser um alçapão, ganhando a rua.
Sem tempo para respirar, ele sai correndo em busca de um táxi.
Sem fôlego, para um pouco para retomar a respiração.
Encostado na parede tentando recuperar o fôlego, Tom não
percebe que um sujeito gordo, mal encarado, aproxima-se dele
por trás.
É uma cópia perfeita do Orson Welles policial de A MARCA DA
MALDADE: rosto deformado pela bebida, mal encarado, sujo.
STEADY-CAM: PONTO DE VISTA do homem que se aproxima de Tom.
VEMOS a sombra dele projetada na parede: um homem enorme,
figura ameaçadora.
CLOSE-UP no rosto do homem: uma pinta preta horrível logo
acima dos lábios; a língua do gordo sai da boca, tocando
repetidas vezes a pinta, que tem alguns fios de cabelo
salientes.
(Mais
FILM
NOIR:
distorcidas).
sobras
expressionistas,
apuro
visual,
sombras
Mais acima, no terceiro andar, dependurados na janela
arriscando-se a cair, quatro garotos na faixa de 19/20 anos
olham para baixo e observam Tom desde o momento em que o gordo
ficou de olho nele.
Uma fumaça espessa está em volta deles, que compartilham um
cigarro de maconha.
Os rapazes começam a divertir-se com a situação em que Tom
encontra-se.
PONTO DE VISTA dos garotos: o gordo atraca-se a Tom, que não
consegue livrar-se do abraço.
90
TOM
O que é isso? Calma aí, meu chapa!
O gordo continua tentando beijar Tom a qualquer custo, mas sem
conseguir. Na trilha sonora, as risadas ensandecidas dos
rapazes, que estão quase passando mal de tanto rir de Tom.
Os lábios do gordão aproximam-se perigosamente dos lábios de
Tom, entre uma mordidinha e outra que ele dá em si mesmo, na
pinta peluda - em CLOSE-UP.
O espectador deve sentir o mesmo terror que sente Tom naquele
momento.
É enorme a força que o gordo faz para conseguir aproximar-se
do rosto de Tom e a força que esse faz para resistir a isso.
O equilíbrio é grande e o suspense vai crescendo.
E o suspense será compartilhado com os rapazes que param de
rir, na expectativa do que vai ocorrer: o gordo vai conseguir
beijar Tom?
Os rapazes explodem numa nova onda de gargalhadas.
GORDO
Dá um beijinho, minha pombinha! Dá um beijinho no
papai, dá!
Calma aí!
vendo?
Eu
TOM
não
sou
mulher!
O
senhor
não
está
GORDO
Vem cá, docinho. Vem cá, minha pombinha.
Quando o gordão está quase subjugando Tom – a milímetros dos
lábios do escritor – um dos rapazes não consegue equilibrar-se
(porque está rindo de forma descontrolada) na sacada e quase cai.
PLANO APROXIMADO do rapaz desequilibrando-se.
PLANO APROXIMADO da tentativa do gordo beijar Tom.
O rapaz ao lado do que se desequilibrou tenta segurá-lo e
também perde o equilíbrio, arrastando o terceiro, que pede
ajuda para o quarto – que tenta puxá-lo e também é arrastado:
os quatro caem bem perto de onde Tom sofre com o gordo.
91
PONTO DE VISTA de Tom, que fica em dúvida entre escapar do
gordo ou prestar atenção no que pode ser uma queda EM CIMA
dele.
CLOSE-UP: os lábios quase se tocando.
Na trilha sonora, destaque para os gritos de pânico dos
rapazes ao perceberem que iriam cair e do gordo, que fica
morrendo de medo de ser atingido.
Os quatro caem em cima de sacos de lixo bem ao lado do gordo e
de Tom. Não se machucam.
A queda dos rapazes distraiu o gorducho e Tom aproveita-se e
empurra o gordo, dando nele uma joelhada nos testículos.
Uma sirene de carro-patrulha toca e dois dos rapazes levantamse e saem correndo, com muito custo, pisoteando o gordo.
Tom levanta-se e corre na direção da saída do beco, indo atrás
dos dois rapazes.
O gordo permanece gemendo no chão.
Um dos rapazes desmaia, e o gordo – mesmo sentindo dores
terríveis - finalmente consegue o beijo que tentou dar em Tom.
O amigo dele, bem perto, faz uma careta de nojo.
Tom, já na rua, vê uma viatura policial.
PONTO DE VISTA de Tom: os soldados colocam dois travestis no
camburão.
Tom esconde-se para não ser visto.
TOM
Filho da mãe! Gordo desgraçado! (pausa) Filho da mãe!
Tom começa a atravessar
vestido de mulher.
Um carro surge de repente
dirigido pelos gêmeos.
a
rua,
na
desconfortável
frente
dele:
é
o
por
estar
Honda
SUV
PONTO DE VISTA de Tom: o carro vindo para cima dele, BORK em
pânico.
Milagrosamente, Tom escapa do choque.
O carro dirigido pelos garotos para e uma viatura começa a se
aproximar.
92
BORK, de boné e óculos escuros, acelera, tirando rápido o
carro de lá.
A viatura não lhe dá qualquer importância.
PONTO DE VISTA de BORK: Tom afastando-se
voltando para o beco.
cada
vez
mais,
Tom vê BORK afastando-se; para um pouco, pensativo, e entra no
beco.
Tom está apoiado na parede, procurando esconder-se na sombra.
REPARA, então, na prisão de dois travestis, forçados a entrar
num camburão por dois policiais militares.
TOM
Meu Deus! Agora estão mesmo prendendo os travestis!
Tom cola-se à parede, de costas, aterrorizado por constatar
que o garoto estava certo.
De repente, a cabeça de um cão pastor alemão surge no breu,
latindo furiosamente, indo em direção ao assustado Tom, que
recua o quanto pode.
Repentinamente, o cão pula em Tom.
A confusão de Tom é terrível.
Ele rola abraçado ao cão e enfia um dos dedos num dos olhos do
animal, arrancando o órgão e fugindo na direção da viatura
policial.
OUVIMOS o ganido desesperado do choro do cão, enquanto Tom
surge correndo diante da viatura, entrando como um raio dentro
do camburão antes que os policiais fechassem a porta.
SOLDADO
Está com pressa, hein, Rafaela?
Tom entra e fica imóvel num cantinho, assustado.
SOLDADO
Tudo certo aí?
TRAVESTI UM
Tudo certo. Pode fechar. Já estamos atrasadas.
A viatura parte, com a sirene ligada.
93
INT. VIATURA POLICIAL – NOITE.
Na viatura, dois travestis excessivamente
companhia a Tom, olhando-o com desconfiança.
pintados
fazem
TRAVESTI UM
O que foi que houve? Roubaram a sua peruca?
TOM
Não. Não uso peruca.
O travesti olha Tom de cima a embaixo, desaprovando o que vê.
TRAVESTI UM
Você está bem largada, filhinha.
fizeram a você?
O
que
foi
que
TOM
Nada de excepcional. (pausa) Eu não sou travesti.
TRAVESTI UM
Não?
TRAVESTI DOIS
Eu também não.
TOM
Nada contra. Mas não sou mesmo.
O travesti UM, com grande agilidade, pula por trás de Tom,
enquanto o outro tenta imobilizar as mãos dele.
Tom dá um grito: um travesti abaixa a calcinha dele e o outro
chega bem perto da bunda, olhando na direção do ânus de Tom.
O travesti usa as mãos e faz um exame bem visual do ânus de
Tom, que esperneia com vontade.
CLOSE-UP do travesti: examinando o rabo de Tom.
TRAVESTI DOIS
É. Parece que é virgem mesmo.
Liberam Tom, que sobe a calcinha e olha ressentido para o
travesti UM.
TOM
(frio, com ódio)
Você não vai ter outra chance, verme!
TRAVESTI UM
94
Apertadinho. É marinheiro de primeira viagem mesmo.
TRAVESTI DOIS
(olhando para o travesti um)
Uma virgem tem o seu valor. Ah, tem sim.
TRAVESTI UM
Que medo. Estou morrendo de medo. Vingativa!
TRAVESTI DOIS
Carne fresca. Fresquinha da silva. Deal?
TRAVESTI UM
Deal.
Os dois travestis batem as mãos: têm um acordo.
TOM
Para onde a gente está indo?
TRAVESTI UM
Pela rapidez com que você entrou na carruagem achei
que soubesse. Cinderela.
TOM
Para a festa do produtor de cinema.
TRAVESTI UM
Não. Nós vamos para a festa do governador.
TRAVESTI DOIS
Maquiagem de graça, uísque doze anos, champanhe.
Quer mais ou está bom pra você, filhinha?
TOM
Não se trata da mesma festa?
TRAVESTI DOIS
Não qualquer festa, minha filha. “A” festa.
TRAVESTI UM
“The party”, entendeu, baby?
E onde é
travesti?
que
TOM
entra
o
governador?
Ele
gosta
TRAVESTI DOIS
Quem não gosta?
TRAVESTI UM
A festa é dele. Faz todo ano. E adora travesti.
de
95
TRAVESTI DOIS
Eles pegaram literalmente todos os travestis da
cidade para abrilhantar a festa de aniversário do
governador.
TOM
É a mesma festa. O sujeito que organiza é produtor
de cinema.
TRAVESTI DOIS
Pode até ser, mas quem manda é o governador. Graças
a Deus.
TRAVESTI UM
Trate de arrumar uma peruca, meu bem. Suas orelhas
são lindas, mas esse cabelo (olha para Tom com
enfado)... Ninguém merece. Sem peruca, sem chance.
A viatura para bruscamente.
A porta do camburão é aberta e dois garçons ajudam a puxar Tom
e os travestis.
INT. FUNDOS/PALÁCIO/SÃO PAULO – NOITE.
Tom, distraído, observa o ambiente: tudo remete aos bastidores
da organização de uma festa bacana, de alto nível.
Garrafas de uísque e de champanhe para todo lado, salgadinhos,
refrigerantes etc.
Um dos travestis aproxima-se de um garçom e fala ao ouvido
dele.
TRAVESTI UM
Eu quero falar com o Sargento SEXTA.
GARÇOM
O que você quer com ele?
TRAVESTI UM
Eu e a minha amiga arranjamos carne fresca para o
governador.
O garçom olha para Tom, que distraído, pega uma banana e
começa a comer.
GARÇOM
Tem certeza? Não parece grande coisa.
TRAVESTI UM
96
É a inauguração dela.
O garçom fala algo num fone de ouvido e, logo depois, um negão
de quase dois metros aparece.
SEXTA-FEIRA
Quem me procurou?
TRAVESTI UM
Euzinha aqui.
SEXTA-FEIRA
É você mesma?
TRAVESTI UM
Não. Ela. (aponta Tom)
SEXTA-FEIRA
Você tem certeza de que ela é de boa procedência?
TRAVESTI UM
Garanto. É moça de família.
SEXTA-FEIRA tira cinco notas de cem dólares e dá ao travesti.
Faz sinal para três homens vestidos como ele, todo de negro,
da equipe de segurança do governador.
Os três pegam Tom e começam a conduzi-lo em direção ao prédio.
TOM
Vamos com calma aí. Sem violência. Por favor, me
levem ao alguém da segurança. Está havendo em engano
terrível aqui.
SEGURANÇA
Pode deixar. Vamos levar você à segurança. Vamos lá.
TOM
Vamos aonde, posso saber?
SEGURANÇA
À sala de maquiagem, claro. Você não quer
encontrar o governador vestido assim, quer?
ir
TOM
Qual é o problema? Eu acho que estou muito bem.
SEGURANÇA
O problema é que nós gostamos de gente bem vestida,
bem produzida.
97
TOM
Eu vou só se for obrigado. Daqui eu não saio!
Um soldado dá com um cassetete na cabeça de Tom.
TOM
A menos que haja um bom motivo.
SOLDADO
Esse motivo aqui é bom o suficiente?
TOM
Vamos lá falar com o sargento, por gentileza.
O soldado dá um beliscão na bunda de Tom, que tenta evitar sem
sucesso.
SOLDADO
Depois da festa a gente acaba de acertar as contas,
princesa.
CORTA PARA:
INT. CAMARIM – NOITE.
Tom está sendo maquiado por
vestido, sem trejeitos gays.
CHIQUINHO,
cabeleireiro
bem
Já está totalmente produzido, maquiado com competência.
Chiquinho afasta-se e sugere a Tom que se levante.
CHIQUINHO
Gostou? Sou um gênio, não sou?
Tom agora usa um salto alto e um vestidinho preto, com cinta
liga e tudo.
TOM
Eu quero falar com o chefe da segurança. Por favor,
preciso falar com ele agora. Só concordei com esse
negócio porque você me prometeu falar com ele.
CHIQUINHO
Tudo bem.
Chiquinho pega o celular e faz uma ligação.
CHIQUINHO
Eu é que resolvo essas
Rogério, menina.
coisas.
Trabalho
para
o
98
TOM
Rogério é o chefe da segurança?
CHIQUINHO
Não. Rogério é o organizador da festa. O provedor de
travestis para o governador. (lixa as unhas) O chefe
da segurança é o sargento Sexta-Feira. (convencido)
fui eu quem indicou. Cria minha.
TOM
Por favor. Fale ao Rogério que eu estou vivendo um
filme de terror.
CHIQUINHO
Tá de sacanagem comigo?
TOM
Não. Por quê?
Rogério é
governador.
CHIQUINHO
produtor de
cinema
além
de
amigo
do
TOM
Eu sei. Ele vai entender o que eu estou passando.
Juro por Deus que eu não sou travesti.
Chiquinho senta-se e acende um cigarro.
CHIQUINHO
Fuma?
TOM
Não. Obrigado.
CHIQUINHO
Você não é mesmo travesti, certo?
TOM
Não. Nunca fui.
CHIQUINHO
Eu já sei de onde conheço você. Você é amigo do
Fernando, delegado da civil. Não é?
TOM
Sou sim! Nossa, que alívio!
CHIQUINHO
Imaginei mesmo. Como é que você se meteu com aqueles
dois travestis? Você faz programa com eles?
99
TOM
Eu não sou garoto de programa. Não tenho nem idade
para isso, não vê?
CHIQUINHO
Bobagem. Você está INTEIRAÇO. É uma pena. O
governador é boa pessoa. Ele poderia fazer você
feliz. Você é bem o tipo dele. Ele gosta de homem
peludo, sofisticado.
Ajude-me a
Fernando.
TOM
sair daqui.
Em
homenagem
ao
doutor
CHIQUINHO
O que eu levo nisso?
TOM
Minha gratidão. E a do Fernando, que vale bem mais.
CHIQUINHO
Não sei qual é a utilidade de sua gratidão, mas vou
te ajudar. Algo me diz que você se meteu numa
confusão desgraçada.
TOM
Quanto a isso não há a menor dúvida.
Chiquinho faz
aproxima-se.
sinal
a
um
garçom,
pela
janela.
O
garçom
CHIQUINHO
Leve esse cara para onde ele te pedir, Maurício.
(entrega a ele uma chave) Volte logo, menino. Senão você
perde a festa. (a Tom) Vá! Vá embora, antes que eu me
arrependa!
Tom sai pela janela mesmo e corre em direção ao garçom.
A moto de Chiquinho está próxima.
Tom sobe na garupa e a moto parte, não encontrando
dificuldades para sair da área reservada do Palácio dos
Bandeirantes.
EXT. NOITE/MORUMBI/SÃO PAULO – NOITE.
A moto avança pela Avenida Morumbi.
100
Tom, feliz e aliviado, respira o ar puro da noite, deliciandose com o passeio.
IRIS OUT TO:
INT. ESCRITÓRIO CACO/SÃO PAULO – NOITE.
Caco levanta-se e pega uma cerveja no frigobar.
Toma e gole e assenta-se de novo.
CACO
Está na hora da onça beber água.
IRIS IN TO:
EXT. HOTEL CINCO ESTRELAS/JARDINS/SÃO PAULO – NOITE.
BORK (óculos escuros, boné) traz o carro de Luciana (que vai atrás),
auxiliado por MADS, que não aparece, mas cuida dos pedais.
O porteiro do hotel abre a porta do carro para ela, que desce
e caminha majestosa na direção do elevador.
Todos param para admirá-la – ela caminha em SLOW MOTION, num
vestidinho sensual, bem cortado para exibir as pernas
espetaculares.
INT. QUARTO DE HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE.
Tom, vestido com um smoking preto, elegantíssimo, fuma maconha
com uma piteira, encontrando dificuldades para conseguir
tragar.
Toca a campainha. Ele coloca um bilhete debaixo da porta.
INT. CORREDOR DO HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE.
Luciana, do outro lado da porta, vê o bilhete e interrompe o
gesto de tocar campainha.
Curiosa, ela pega o envelope e tira uma folha de papel, em que
há algo escrito.
Ela lê, dá um suspiro e abre a porta, entrando devagar.
INT. QUARTO DE HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE.
Luciana entra e acende a luz. O ambiente está vazio.
Ela vê uma taça de champanhe e um cigarro de maconha, muito
bem enrolado.
101
Luciana senta-se, acende o cigarro, bebe da
devagar a metade do conteúdo, de uma vez só.
taça
e
sorve
Dá um arroto bastante sonoro e peida, movendo o corpo para a
esquerda, levantando a parte direita das nádegas para cima:
parece natural e espontâneo esse movimento dela.
Ela
traga
profundamente,
enquanto
revelando o corpo espetacular.
despe-se
lentamente,
Ao contrário da maioria das brasileiras, Luciana não raspa os
pelos pubianos.
É peluda, embora bem cortada, asseada e Tom repara isso. Ele
gosta e deixa claro.
TOM
(em OFF)
Não quero que tire as sandálias. Quero você mais
alta.
LUCIANA
(em OFF)
Por quê? Posso saber?
TOM
(em OFF)
Não pode não.
LUCIANA
(em OFF)
Você usou um verbo entre dois substantivos
negação. Você nega o que está pedindo.
de
TOM
(em OFF)
Não pode sim.
LUCIANA
(em OFF)
Agora está certo. A sandália fica.
Os dois riem, deliciados um com a presença do outro.
Ela só não tira as sandálias: fica inteiramente nua.
Dá um último gole na taça (bebe tudo de uma vez), apaga o cigarro
(cinzeiro) e abre a porta.
INT. QUARTO DO HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE.
102
Escuro total.
Mas VEMOS a silhueta do corpo de Luciana, tateando, tentando
caminhar no escuro, com a dificuldade natural.
LUCIANA
Tom? Cadê você, querido?
O vulto de Tom, visível para o espectador, aproxima-se de
repente de Luciana.
LUCIANA
Ah, você está aqui.
Tom coloca a mão direta no ombro esquerdo de Luciana; os dois
estão quase de rosto colado, sentindo de perto a respiração do
outro, que deve ser ressaltada na trilha sonora.
Os dois estão fortemente atraídos: o tesão deve gerar uma
tensão natural em dois corpos que nunca se tocaram de forma
tão íntima.
IRIS OUT TO:
INT. ESCRITÓRIO CACO – DIA.
Caco está trabalhando com o laptop.
CORTA PARA:
INT. QUARTO HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE.
No quarto às escuras, Tom e Luciana começam a se tocar, bem
aos poucos.
CACO
(em OFF)
Essa cena ia funcionar melhor se eles nunca tivessem
se beijado antes. Merda.
CORTA PARA:
VEMOS a tela do laptop de Tom, que digita uma frase e depois
seleciona com amarelo o texto digitado:
TEXTO
ATENÇÃO: VOLTAR ao segundo ato e excluir a cena do
beijo de Tom em Luciana no toalete feminino.
PLANO APROXIMADO de Caco, digitando algo no laptop.
CACO
103
Vamos lá de novo.
CORTA PARA:
INT. QUARTO HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE.
Tom e Luciana beijam-se de forma sensual, delicada, que evolui
aos poucos para algo mais visceral, físico.
Os dois exploram os corpos um do outro devagar, ilustrados em
closes e planos aproximados dos dois amantes, sempre no
escuro.
De repente, os dois se atracam com sofreguidão, como se o
mundo fosse acabar.
Os dois estão atracados e
penetração frontal.
Tom
a levanta para facilitar a
LUCIANA
Não! Aí não. Atrás. Eu gosto mais atrás.
Luciana muda
desgrudar-se.
de
posição:
TOM
Você é maravilhosa,
deliciosa.
fica
minha
de
costas
linda.
para
ele,
sem
Maravilhosa,
Fazem amor à exaustão, na posição que ela queria.
IRIS OUT TO:
INT. ESCRITÓRIO DE CACO – MANHÃ.
Caco digitando num dia normal de trabalho.
Caco, como sempre, com cara de sono, cara de alguém que está
exausto.
PONTO DE VISTA de Caco: alguém chama no SKYPE.
O mouse é acionado e ele vê o rosto de Rogério na tela: eles
estão conectados em tempo real.
ROGÉRIO
Estou começando a ficar
Realmente preocupado.
preocupado,
CACO
Qual é a encrenca dessa vez?
ROGÉRIO
meu
querido.
104
Menino: que fixação na fase anal, hein?!
CACO
Não fique apenas no óbvio. Detesto coisas óbvias,
abomino clichês. E faço questão de subtexto.
ROGÉRIO
Onde é que tem subtexto aqui, meu caro? Eu não vi
subtexto nenhum. Por falar nisso, tire meu nome. Não
gostei nem um pouco brincadeira.
CACO
Relaxa. Eu tiro.
ROGÉRIO
Esse negócio de um roteirista escrevendo um roteiro
em que o protagonista é outro roteirista. Não sei.
Está confuso. Parece cinema francês.
CACO
O espectador é mais inteligente do que você pensa.
Quando é que vocês vão perder essa mania de pensar
que o espectador de cinema é burro?
ROGÉRIO
Vai com tudo, meu Quentin Tarantino. É bom. Mas
pense com calma no que eu estou falando.
CACO
Ela só transa lá atrás porque é homem.
ROGÉRIO
Homem?
CACO
É. Ela fez cirurgia de mudança de sexo. Cortou fora
o pinto e fez uma xota novinha em folha.
ROGÉRIO
Como assim?
Rogério para de falar e fica pensativo.
ROGÉRIO
Homem? Será? Tem certeza? Isso me escapou.
CACO
Não se lembra dos gêmeos falando nele? Em casa? E
depois no toalete um dos dois falou da cirurgia.
Lembrou?
105
ROGÉRIO
Tem razão. Todo mundo já sabe que Luciana é homem.
CACO
Todo mundo, quem, cara pálida?
ROGÉRIO
Todo mundo.
CACO
Nem todo mundo. O principal interessado não sabe.
Ele ainda
homem?
ROGÉRIO
não percebeu
que
está
interessado
num
CACO
A graça está justamente aí.
ROGÉRIO
Tecnicamente é um eunuco. Feito aquele careca de
“GAMES OF THRONES”. É um idiota o seu Tom. Transou
com um homem e não percebeu.
CACO
Você também não sacou.
ROGÉRIO
Mas eu não transei. Admita. Seu alter ego é um burro
mesmo.
CACO
E você sabe o que é um alter ego?
ROGÉRIO
Sei o sentido geral da coisa. E seu roteirista é
burro, pronto e acabou.
CACO
Mais avoado do que burro.
ROGÉRIO
Estou curioso para saber no que vai dar esse chamego
seu com o travesti.
CACO
Só você, cara-pálida?
ROGÉRIO
Eu tenho esse direito.
106
CACO
Não
fique
esperando
sacanagem
panfletária,
politicamente correta. Não é um discurso político
pró-GLS.
ROGÉRIO
Muita gente vai achar que é.
CACO
Não estou preocupado com isso. O que me preocupa é a
insegurança de Luciana. (pausa). Tenho que voltar ao
trabalho.
ROGÉRIO
Eu já vou embora, majestade.
fazer um pedido. Só mais um.
Prometo.
Mas
quero
estória.
Evangélico
CACO
Fala logo.
ROGÉRIO
Pare de envolver religião na
também vai ao cinema, sabia?
Está certo.
católico.
CACO
Onde
se
falou
evangélico
leia-se
ROGÉRIO
E o pastor Sinédrio?
CACO
Padre Sinédrio, Rogério. O homem agora
Deixe-me trabalhar pelo amor de Deus!
é
padre.
Caco se levanta, pega uma pílula colorida num vidrinho, bebe o
comprimido com água e acende mais um cigarro de maconha.
IRIS IN TO:
INT. SALA APARTAMENTO LUCIANA/POMPEIA – NOITE.
É tarde da noite (a TV está sintonizada no show de Serginho Groisman,
que entrevista o ator CACO CIOCLER) e Luciana não parece interessada
no aparelho, que está sem som.
Ela parece melancólica, triste.
MADS e BORK, de pijamas, entram na sala em silêncio.
MADS
107
Boa noite, mãe.
BORK
Boa noite, mãe.
LUCIANA
Boa noite, MADS. Boa noite, BORK. (pausa) O que vocês
estão esperando para me dar um abraço?
Os garotos abraçam Luciana.
Os três se beijam ao mesmo tempo, brincando.
BORK
Aposto vinte reais que chego primeiro à minha cama.
MADS
Você vai ficar sem sua aposta, BORK. Nossa mãe quer
conversar comigo.
BORK vai em direção do corredor.
BORK
Está certo. Vê se não demora, hein?
MADS
Não vou demorar-me, BORK. Pode ir treinando.
LUCIANA
Treinando o quê?
MADS
Dormir. A gente treina dormir e acaba dormindo no
meio do treinamento.
LUCIANA
E sempre dá certo?
MADS
Sempre. Nós somos muito disciplinados.
LUCIANA
Estou precisando de um método desses para dormir.
MADS
Insônia de novo?
LUCIANA
De novo.
MADS
Eu acho que você deveria procurá-lo.
108
LUCIANA
Procurar quem?
MADS
A verdade tem que ser encarada nos olhos, mãe.
LUCIANA
Quem disse isso?
MADS
Minha mãe. Quando ela soube que estava com câncer
avançado.
LUCIANA
Deve ter sido muito difícil para todos vocês.
MADS
BORK sofreu mais do eu e minha mãe. Eu sou mais frio
nessas coisas.
LUCIANA
Impossível. Você é um garoto sensível, maduro.
MADS
Eu sou bem racional. É preciso ser prático senão a
vida leva a gente para onde a gente não quer.
LUCIANA
Vou parar de gastar dinheiro com psicanalista. Você
é mil vezes mais inteligente do que o analista.
MADS
Então siga meu conselho e vá falar com Tom.
LUCIANA
Talvez ele não queira falar comigo. Não me procurou
mais.
MADS
Duvido.
LUCIANA
Você tem falado com ele?
MADS
Toda hora. No whatsapp. Eu e BORK.
LUCIANA
Ele falou alguma coisa a meu respeito?
109
MADS
Ele não sabe que você é nossa mãe. Conversa com a
gente falando de você, mas sem saber de quem se
trata de verdade. Falamos de você de vez em quando.
LUCIANA
(sorrindo)
Ele disse que está apaixonado?
MADS
Mil vezes.
LUCIANA
Mas ele não sabe.
MADS
Que você nasceu diferente e se transformou na mais
bela mulher do mundo? Não. Não sabe.
LUCIANA
Você é um amor.
Luciana abraça MADS bem apertado.
MADS
Mas você tem que ter coragem e procurá-lo. Ele tem o
direito de saber a verdade.
LUCIANA
E se ele não me aceitar?
MADS
Acho que ele vai aceitar. De boa. Mas você tem que
correr o risco. Não há alternativa.
CORTA PARA:
EXT. PRÉDIO DE LUCIANA/POMPEIA/SÃO PAULO – NOITE.
Tom sai do prédio. O carro dele está estacionado perto.
Ao se aproximar, Tom percebe dois pneus vazios no carro dele.
MADS aparece atrás de um carro atrás.
MADS
Tom! Olhe lá, BORK! É Tom. Oi Tom! Tudo bem com
você?
BORK aparece logo depois: também estava escondido.
Ele vai em direção de Tom com um sorriso.
110
Ele olha para os pneus murchos e para os garotos.
TOM
Isso não se faz. Foram vocês?
MADS
A gente não sabia que era você.
BORK
Quem mandou vir sem avisar?
MADS
BORK, não seja mal educado!
BORK sorri para Tom, meio sem graça.
Desculpe
por
BORK
essa,
VÉIO. A gente vai resolver.
Me dá a chave que a gente
(estende a mão vazia para Tom)
resolve logo.
TOM
(dando uma palmada carinhosa na mão dele)
Você ainda não tem carteira de motorista, cabeça de
fogo.
Tom abraça MADS e depois dá um abraço em BORK.
TOM
Mas o que vocês estão fazendo aqui?
BORK
(aponta o prédio de Luciana)
A gente mora aqui, VÉIO.
Tom aponta para o mesmo prédio.
TOM
(arregalando os olhos)
Ali?
MADS
É. E você? Veio visitar a gente?
TOM
(confuso)
Não. Eu estava na casa de uma amiga minha.
MADS
Tchau, Tom! A gente vai pra casa. Minha mãe chamou.
TOM
111
Quem?
BORK
Minha mãe. Vamos subir. Apresentamos minha mãe para
você.
MADS
Vamos lá, Tom. Você vai adorar a minha mãe.
TOM
(confuso)
E seu pai?
BORK
(piscando, enigmático)
Você vai se dar SUPER bem com ele (ênfase aqui).
TOM
Com certeza, moçada. Com certeza. Mas vai ser outro
dia.
Tenho
que
ir.
Estou
atrasado
para
um
compromisso.
MADS
Vai comer alguém hoje, seu pilantra?
BORK finge que está fazendo sexo, rindo pra valer.
Tom não responde. Faz sinal a um táxi, que para diante dele.
Ele entra no carro e vai embora sem olhar para trás, sem falar
mais nada.
BORK
O que deu nele?
MADS
Será ficou bravo com a gente?
BORK
Foi mal o lance de esvaziar os pneus.
MADS
Vamos chamar alguém para arrumar o carro dele. Você
sobe e fala com nossa mãe?
BORK sai correndo.
BORK
Veja com o porteiro onde a gente pode pedir ajuda.
Eu não demoro.
MADS
112
Provavelmente vai ter que ficar para amanhã.
INT. TAXI/AVENIDA PAULISTA – NOITE.
Tom está quieto, com a cabeça a mil.
Soa a campainha do celular dele, avisando que chegou mensagem.
Ele olha para a tela do celular e lê.
LUCIANA
(em OFF)
Eu preferia que você soubesse de outra forma. Nunca
se esqueça de que eu amo você.
Tom coloca o celular no bolso e fica imóvel, pensativo.
IRIS OUT TO:
INT. ESCRITÓRIO DE CACO – DIA.
Caco está escrevendo, sempre ao som do B-52.
Toca a campainha: Caco levanta-se e atende à porta.
É a vizinha, BÁRBARA.
BÁRBARA
(dá um selinho nele)
Oiê! Tudo legal com você?
CACO
Tolerando.
BÁRBARA
Não me convida para entrar?
CACO
A sua visita seria maravilhosa, mas infelizmente o
momento é inoportuno. Estou trabalhando doze horas
por dia. Tenho que voltar ao trabalho, me desculpe,
sim?
Caco começa a fechar a porta e ela coloca o pé, evitando isso.
BÁRBARA
Deixe-me ao menos fazer um convite. Foi pra isso,
aliás, que vim importunar você.
CACO
Claro. Faça.
113
BÁRBARA
Vem passar o fim de semana comigo em Maresias. Três
amigas vão também. De homem, só você.
CACO
(pensativo)
Um programa imperdível, hein?
BÁRBARA
Eu não consigo pensar num adjetivo melhor. Vai ser
bom demais, querido. Na segunda cedo te deixo aqui,
são e salvo. Mas com um pouco menos de energia,
talvez.
CACO
Quem são suas amigas? Gente do teatro? Eu conheço?
BÁRBARA
Laura, Luísa e Adriana. Da minha turma de dança de
salão.
CACO faz cara de safado.
CACO
Elas são suculentas como você?
Eu tenho
querido.
BÁRBARA
bom gosto para
escolher
minhas
amigas,
CACO
O pior é que tem mesmo.
BÁRBARA
Pior por quê?
CACO
Infelizmente vou ter que dizer não. Tenho que
trabalhar feito doido nos próximos três dias. Fica
para a próxima.
BÁRBARA
Não acredito. Não acredito!
CACO
Pois pode começar a treinar para acreditar.
BÁRBARA
Você enlouqueceu? Pirou o cabeção, CACO SELIGMAN?
CACO
114
Lamento de coração. Mas trabalho é trabalho. Sou
profissional.
BÁRBARA
Você vai recusar esse convite, Caco SELIGMAN? Vai me
dispensar assim?
CACO
Vou. Com licença, benzinho. (Fecha a porta) Tenho que
trabalhar.
BÁRBARA
(em OFF, atrás da porta)
Não pense que isso vai ficar assim!
CACO
Depois a gente repete o fim de semana, lindeza.
BÁRBARA
(em OFF, atrás da porta)
Isso não vai ficar assim! Não pense que vai,
mocinho! Eu vou voltar! Pode aguardar que eu volto,
ah se volto!
Caco fecha a porta e volta a sentar-se diante da tela de seu
laptop.
PONTO DE VISTA de Caco, olhando para a tela de seu laptop.
Na tela, o perfil no site Par Perfeito de ISABEL – uma bela
morena de 39 anos –, com destaque para fotos em sequência.
CACO
Burro! Será que você não vai aprender nunca?
PLANO APROXIMADO: Foto de Isabel (sensual).
Tom e Isabel fazem amor apaixonado.
Caco volta a digitar. VEMOS as letras impressas por Caco:
Chuva torrencial.
DOIS MESES DEPOIS.
IRIS IN TO:
EXT. PRÉDIO DE TOM/CERQUEIRA CESAR/SÃO PAULO – NOITE.
Chuva torrencial.
115
O carro de Tom para diante do portão eletrônico e o porteiro
aciona a abertura automática, permitindo que Tom entre com o
carro.
INT. GARAGEM – NOITE.
Tom estaciona o carro dele numa vaga bem ao fundo, com três
carros trás do carro dele.
Ele sai do carro e pega o elevador.
INT. ELEVADOR – NOITE.
Tom, de cabelos molhados, aperta o andar 17.
INT. CORREDOR PRÉDIO DE TOM – NOITE.
Tom sai do elevador e abre a porta.
Ao abrir
trêmula.
a
porta,
ISABEL
surge
na
frente
dele,
pálida
TOM
Isabel? O que...?
ISABEL
Você me deixou trancada aqui. Eu estou sem comer há
três dias.
TOM
Meu Deus! Você ficou trancada aqui esse tempo todo?
ISABEL
(chorando)
Você me trancou aqui com a geladeira vazia. Eu quero
ir embora para minha casa...
TOM
Claro! Eu vou levar você até em casa. Vou pagar um
mês para compensar! Por favor, me desculpe!
ISABEL
Eu tenho que ir pra casa. Eu estou com fome, tenho
que ir embora.
TOM
Fique tranquila, Isabel. Vou levar você pra casa
agora mesmo. Vamos, vamos lá!
Soluçando, Isabel segue Tom.
e
116
EXT. CORREDOR/PRÉDIO DE TOM – NOITE.
Saem do apartamento dele e entram no elevador.
INT. GARAGEM/PRÉDIO DE TOM – NOITE.
Já na garagem, eles entram no carro de Tom, com Isabel no
banco do carona.
Tom liga o carro e eles saem da garagem no piso 3.
Sobem e chegam ao piso 2, prosseguindo até o piso 1.
No piso 1, Tom para o carro, desce o vidro e coloca a chave do
portão, girando-a.
O portão de saída começa a abrir.
A chuva é fortíssima.
INT. PORTARIA DO PRÉDIO DE TOM – NOITE.
O porteiro olha para o portão e vê que ele está aberto. Gira
uma chave e o portão começa a abrir.
VOLTAMOS À GARAGEM.
Tom vê o portão começar a fechar e para o carro a 10 cm do
portão.
Olha na direção do porteiro e faz sinais ao funcionário, que
não o vê. Ele puxa o freio de mão, mas não engrena primeira
marcha.
CLOSE-UP: freio de mão parcialmente puxado.
Quando está descendo a rampa olha para cima e olha para o
próprio carro.
PONTO DE VISTA de Tom: ele vê o carro imóvel.
Tom chega ao lugar certo, no piso intermediário entre os pisos
1 e 2 (garagens), coloca a chave na fechadura que abre o portão
e gira, observando que o portão se abriu mais uma vez.
Quando já começava a voltar ao carro,
automóvel começou a descer a rampa.
PONTO DE VISTA
carro.
Tom
percebe
que
o
de Tom, olhando para Isabel, que ficou no
117
Corre na direção do carro, subindo a rampa e tentando segurar
o carro que descia, mas o peso é grande demais e ele é
prensado pelo automóvel contra a parede.
Isabel entra em pânico com o início do movimento do carro sem
motorista e começa a gritar, enlouquecida de medo.
O carro desce a rampa, deixando Tom no chão, todo arranhado
por ter sido prensado contra a parede pelo automóvel.
PONTO DE VISTA de Tom, caído no chão, olhando para baixo: ele
vê seu carro descendo rapidamente pela rampa do piso 1,
encaminhando-se para a rampa do piso 2 e finalmente alcançando
a rampa do piso 3.
Ele vê os pés de Isabel quase colados ao teto.
As pernas de Isabel estão viradas para cima e ela grita como
se fosse ser morta a qualquer momento.
O carro de Tom choca-se violentamente com os dois carros que
estavam no percurso dele.
Um terceiro carro também é atingido.
O barulho é terrível.
Isabel não para de gritar.
Tom começa a descer a segunda rampa, escorrega no piso molhado
e cai espetacularmente. Com muita dificuldade chega ao carro,
no piso 3.
Ele tenta acalmar a moça, mas não consegue: ela está
alucinada. Ao ver que Tom abriu a porta, ela sai correndo como
louca.
TOM
Você está bem, Isabel?
Ela sobe as três rampas sem parar de gritar e sai do prédio ao
ver que o portão da garagem está aberto.
TOM
Espere aí, Isabel! Eu vou levar você em casa!
Ao ver que ela não para, Tom para e fica sem saber o que
fazer, olhando para baixo e dimensionando o tamanho do
estrago.
TOM
118
Merda. Vou gastar uma fortuna para consertar todos
esses carros.
TOM
(gritando)
Isabel! Espera aí! Eu vou chamar um táxi para você.
Isabel!
O porteiro, assustado, aparece de repente.
PORTEIRO
O senhor está ferido?
TOM
(olha para seus arranhões no braço)
Nada importante.
PORTEIRO
O que foi que aconteceu aqui?
TOM
Nem me fale. Vou para meu apartamento. Você explica
ao síndico essa merda toda.
PORTEIRO
(coçando a cabeça)
Mas eu não sei o que aconteceu!
TOM
Inventa qualquer coisa. Diz que eu vou pagar o
conserto. Não precisa fazer boletim de ocorrência.
A noite evoluiu e a lua deu lugar ao sol.
CORTA PARA:
INT. QUARTO/APARTAMENTO DE TOM – NOITE.
Quarto às escuras.
LEGENDA:
Uma semana ANTES.
JULIANA
Eu estou um pouco nervosa.
Tom
Eu também. É natural.
JULIANA
Será?
119
TOM
Tem certeza que quer fazer isso? Ainda dá tempo de
desistir.
JULIANA
Tenho.
TOM
Não vai brochar?
JULIANA
Quem tem que se preocupar com isso é você, que tem
um brinquedinho de montar. O meu é de abrir. (risos)
TOM
A gente tem que experimentar. Você não acha?
JULIANA
Acho.
TOM
Mas isso fica aqui. Só entre nós. Fechado?
JULIANA
Fechado. Nada de contar pra ninguém.
TOM
Ninguém. Nem para seu analista.
JULIANA
E aí? Já tirou a roupa?
TOM
Tirei.
JULIANA
Que tal acender a luz do banheiro? Desse jeito nem
enxergo você.
VEMOS o vulto de Tom indo até o banheiro, nu.
Ele volta e pula rápido na cama. Os dois estão debaixo do
lençol.
JULIANA
(risos)
O que você está fazendo, espertinho?
TOM
(risos)
Nós viemos aqui pra fornicar ou para conversar?
120
Os dois não param de rir.
JULIANA
Nossa! Que palavra horrível. Será que Eduardo Cunha
também fala ‘fornicar’?
TOM
Lógico. Todo evangélico usa essa palavra. Está na
bíblia. Em inglês soa bem melhor: Fornication.
Fornication!
JULIANA
Vamos fazer uma coisa?
TOM
O que foi? Mudou de ideia? No fornication?
JULIANA
Vamos assumir que a gente vai fornicar. Numa boa.
Sem lençóis.
TOM
100% pelados?
JULIANA
200%.
TOM
OK. Quem sai primeiro?
JULIANA
Os dois ao mesmo tempo. Quando eu falar já.
TOM
OK. Pode falar.
JULIANA
Já!
Os dois descobrem-se de uma vez e veem-se frente a frente
pelados.
Olham firme um no olho do outro.
Repentinamente os dois tem um acesso de riso simultâneo.
EXT. VARANDA APARTAMENTO DE TOM/SÃO PAULO – DIA.
Tom, Juliana, João e Marco tomam café da manhã e fumam um
cigarro de maconha que circula de mão em mão.
121
MARCO
Resumindo: você foi atropelado pelo próprio carro.
JOÃO
Uma façanha e tanto, mesmo para um sujeito voltado
para o próprio umbigo.
MARCO
Nem Cristiano Ronaldo conseguiria uma proeza dessa
magnitude. Ficará registrado nos anais da diretoria
se todos os senhores diretores concordarem.
JOÃO
Eu concordo.
TOM
Não me furtaria jamais à verdade dos fatos. Que seja
feito o registro para a posteridade.
JULIANA
ARGH! Meu estômago vai se embrulhar. Vocês são tão
metódicos quanto é a maçonaria. Ai que cheiro de
naftalina, meu Deus!
CORTA PARA:
INT. ELEVADOR – DIA.
Tom desce no elevador, que está lotado. Os garotos olham pare
ele com admiração e trocam olhares entre si, rindo com vontade
infantil.
TOM
(em OFF)
Enfim. Eu virei o cara mais popular do prédio. Teve
gente que me pediu autógrafo. Virei uma celebridade
instantânea. Tiraram fotos comigo, fizeram SELFIES.
Um garoto se aproxima e tira uma foto com Tom, como se ele
fosse uma celebridade.
VOLTAMOS AO APARTAMENTO DE TOM. Continua a reunião.
TOM
(baixinho, no ouvido de Marco)
Enrolo mais um BECK, senhor secretário geral?
MARCO
(baixinho também, no ouvido de Tom)
Vamos deixar para depois que acabar a reunião.
122
JULIANA
E a empregada? O que foi feito dela?
MARCO
Que empregada?
JULIANA
Qual haveria de ser, seu MOCORONGO?
MARCO
A moça não é empregada dele?
TOM
Não é mais.
MARCO
Você transou com a própria empregada?
JULIANA
Vocês são dois ogros.
JOÃO
Negativo. A moça virou empregada depois de transar
com o presidente.
JULIANA
Mas onde é que foi parar a mulher naquele temporal?
TOM
Desapareceu. Evaporou. Escafedeu-se graças a Deus.
Nunca mais ouvi falar. Ela morava em Cotia. Deve ter
ido a pé. Ela disse que não tinha dinheiro.
JOÃO
Ser pobre é foda.
JULIANA
Pobre e doida, quer dizer.
TOM
É. É bem esse o caso de Isabel e sua fuga numa noite
de chuva.
Fuga numa
demais?
JULIANA
noite de chuva?
Não
soa
melodramático
TOM
Ela fugiu de mim, coitadinha. Atribuiu a mim aquele
terrível acidente.
123
JULIANA
(irônica)
Quanta injustiça existe nesse mundo. O freio de mão
não funciona e deixa você numa situação difícil.
MARCO
Mas gostaria de deixar registrado que ainda você
saiu no lucro.
JOÃO
Lucro em quê?
MARCO
(a TOM)
Você não disse que ela foi a melhor bimbada de sua
carreira artística?
JULIANA
Registrado aonde, seu energúmeno?
TOM
Que se registre na ata e cumpra-se a vontade do
senhor secretário-geral.
JULIANA
Você desperta meus instintos mais primitivos, Marco
HELENIO.
TOM
Gastei quase dez mil com o conserto dos carros.
Perdi uma namorada maravilhosa. Onde é que está o
lucro, posso saber?
MARCO
Você não teve que pagar nada à empregada. Não deixa
de ser lucro.
JOÃO
Algumas vezes eu fico com a impressão de que a gente
fica repetindo as coisas o tempo todo.
MARCO
O que a gente está repetindo?
JOÃO
Essa estória da empregada já deu o que tinha que
dar. Vamos ao que interessa.
TOM
Que a pauta seja retomada. Bola pra frente.
124
JOÃO
Essa reunião foi convocada para debater assuntos de
segurança nacional
JULIANA
Segurança nacional? Que bobagem é essa, agora?
MARCO
Os cães ladram, mas a caravana passa.
Tom suspira.
TOM
Até para a Secretaria de Segurança Pública Luciana é
mulher. Vocês ainda não entenderam que ela não tem
mais pinto?
JOÃO
O que em absoluto a transforma automaticamente em
mulher.
MARCO
Não mesmo.
JOÃO
Uma mulher tem ovário, tem vagina.
MARCO
E, ao que me consta, sua gueixa digital não tem nada
disso.
JOÃO
E tem perereca falsificada. (para os outros) Aquilo
deve ter um cheiro horrível.
MARCO
Eu, hein? Estou achando essa conversa toda muito
confusa.
TOM
(a João)
O cheiro que tem aquilo não é problema seu.
JOÃO
Deve ser um fedor danado aquilo, senhor secretáriogeral.
JULIANA
Até onde vocês pretendem continuar com essa conversa
idiota?
MARCO
125
Até onde, porquinha?
JOÃO
(olhando para Tom)
Presidente.
TOM
(olhando para Juliana)
Acabou esse assunto. Não interessa se Luciana é
homem ou mulher nem se tem xota fedorenta. É assunto
meu e não admito discutir com vocês. Ponto final!
Tom ficou mesmo irritado. A explosão assustou os amigos.
JOÃO
Você vai encontrar com ela de novo?
TOM
Vou. Claro que vou.
JULIANA
Quando? Posso saber?
TOM
Que merda de promiscuidade é essa? Minha vida agora
virou um reality-show?
JOÃO
O
assunto
será
definitivamente
sepultado
na
diretoria. Mas é preciso ter uma conclusão. O que
vai ser?
MARCO
Vamos fechar a reunião de hoje com uma moção de
agravo. Depois avaliamos a questão de segurança
nacional.
JULIANA
Dá pra deixar de lado a burocracia? Essa bobagem já
está cansando a minha beleza.
JOÃO
O ser humano é ritualístico. Tem que ter liturgia,
solenidade. Fica mais realista, é mais realista.
JULIANA
Vocês são dois retardados. Não dá para levar a sério
toda essa bobagem de liturgia.
TOM
126
Gostaria de deixar registrado nos anais da diretoria
que o jiló presidencial foi feito para saídas, não
para entradas.
JOÃO
Tem anal demais aqui nessa reunião.
JULIANA
Estou cercada por palermas. Eu me sinto uma idiota
participando dessa bobagem.
INT. SALA APARTAMENTO DE TOM/POMPEIA – NOITE.
Tom está tomando um uísque e fumando um cigarro de maconha.
Está ouvindo THE SINNERMAN, com Nina Simone.
O celular dele toca.
Tom pega o aparelho e atende.
TOM
Está certo. Onde?
LUCIANA
Naquele café em Vila Madalena. O que você vai sempre.
TOM
Combinado. Vou pra lá agora mesmo.
CORTA PARA:
EXT/PRÉDIO DE LUCIANA/POMPEIA/SÃO PAULO – NOITE.
Luciana sai da garagem do prédio dela, dirigindo ela mesma o
carro.
EXT/RUAS DE VILA MADALENA/SÃO PAULO – NOITE.
Luciana segue dirigindo pelas ruas do bairro; ela e Tom seguem o
mesmo caminho, em sentidos diferentes.
CORTA PARA:
EXT. CAFÉ BOULANGE/VILA MADALENA/SP – NOITE.
Tom e Luciana estacionam seus carros.
IRIS OUT TO:
EXT. CAFÉ BOULANGE/VILA MADALENA/SP – DIA.
127
Caco está tomando seu café da manhã, digitando em seu laptop.
IRIS IN TO:
EXT. CAFÉ BOULANGE/VILA MADALENA/SP – NOITE.
Tom e Luciana tomam champanhe, numa mesa mais isolada.
TOM
Se você não tivesse ligado eu iria procurar você.
LUCIANA
Não é fácil lidar com essa situação. Mas quero
resolver isso logo. A imaginação da gente é uma
coisa terrível.
TOM
Segundo os sábios da época de Zoroastro,
problemas nascem junto com as soluções.
os
LUCIANA
Será? Prefiro pensar que o medo da coisa é sempre
pior do que a própria coisa.
TOM
Vamos ser sinceros e diretos, minha querida? Vamos
resolver tudo isso de uma forma harmônica, à altura
das pessoais legais que somos?
LUCIANA
Também prefiro.
TOM
Eu venho procurando uma mulher especial em minha
vida há muito tempo, Luciana. Tive um casamento
horrível, que me deixou escaldado demais.
Você
sofreu
decepção?
LUCIANA
muito,
querido?
Teve
TOM
É. Uma grande decepção.
LUCIANA
Faz quanto tempo que isso aconteceu?
TOM
Doze anos.
LUCIANA
uma
grande
128
Quantas namoradas nesse período?
TOM
Namoradas mesmo? De verdade?
LUCIANA
Não namoro necessariamente. Compromisso: é o que eu
quero dizer.
TOM
Bom. Namoro mesmo foi só um.
LUCIANA
Há quanto tempo?
TOM
Seis anos. Ela era viúva.
LUCIANA
Por que não deu certo? Ela também machucou você?
TOM
Eu não dei a ela a oportunidade de fazer isso. Saí
fora, fugi da raia.
LUCIANA
Você a deixou?
TOM
É. Uma mulher maravilhosa. E eu a perdi.
LUCIANA
Foi só um namoro?
TOM
Não. Teve outro. Um ano depois da viúva.
LUCIANA
E também não deu certo?
TOM
Pode dizer que não.
LUCIANA
O que deu errado?
TOM
Eu. Eu dei errado e venho dando errado há muito
tempo.
LUCIANA
129
Por que, meu amor?
TOM
Por que eu inventei motivos
deixei mulheres maravilhosas.
que
não
existiam
e
LUCIANA
Você percebe que se sabotou?
TOM
Você acertou. Essa é a verdade. Eu me sabotei.
LUCIANA
Sei como é isso. Sei muito bem.
TOM
O que você sabe?
LUCIANA
Sei que eu quero você. Sei que eu quero amar, ser
amada. Você está disposto a não se sabotar mais?
TOM
Você vai me ajudar? Vai me compreender?
Ela aperta as mãos dele.
LUCIANA
Claro, querido.
TOM
Eu achava que não conseguiria mais amar. Foi preciso
encontrar você para entender muitas coisas que
aconteceram em minha vida. Eu estou apaixonado. Não
foi fácil admitir isso, mas a verdade é essa.
Porque
homem?
foi
LUCIANA
tão difícil?
Só
porque
eu
sou
nasci
TOM
É justamente isso que estou tentando explicar
você. O problema está em mim. Não em você.
a
LUCIANA
Tenho muito medo de você não me aceitar como eu sou.
TOM
Sabe de uma coisa? Não tenha mais esse medo. É
possível que eu tenha vencido meus fantasmas
interiores só porque você é... Assim, como é.
130
LUCIANA
...homem ou mulher... Vamos usar as palavras certas.
Sem subterfúgios, por favor.
TOM
É difícil explicar, eu mesmo não entendo direito o
que está acontecendo.
LUCIANA
Explicar o quê?
TOM
O que mais me atrai em você é justamente o fato de
ser como é.
LUCIANA
Por quê?
TOM
Sua insegurança comigo. Seu medo de que eu não
aceite
você
como
é.
Essa
vulnerabilidade
me
apaixona... me seduz.
LUCIANA
Você me quer exatamente do jeito que eu sou?
TOM
Sem mudar absolutamente nada. Você é perfeita para
mim exatamente como é.
LUCIANA
Mas por quê? Eu não entendo.
TOM
Com você eu me aceito como eu sou. Querendo você
comigo, eu me sinto mais à vontade comigo mesmo.
LUCIANA
Agora eu entendo. Você me ama.
TOM
...como? Não foi isso que eu disse.
LUCIANA
Você não disse que quer casar comigo?
TOM
Eu até quero, mas eu ainda não disse isso.
LUCIANA
Acabou de dizer.
131
TOM
Acho que não.
LUCIANA
Isso é um pedido de casamento?
TOM
É. É um pedido formal de casamento.
LUCIANA
Não tão formal, já que não tem aliança para a noiva.
TOM
Depois a gente resolve isso. Mas a minha aliança
está aqui (mostra a mão direita).
CLOSE-UP das mãos de Tom.
LUCIANA
Estou sentindo a minha aliança.
CLOSE-UP das mãos de Luciana.
TOM
Eu também sinto a minha.
TOM
Mas há uma coisa.
LUCIANA
Sempre há um “mas”. Que “mas” é esse?
TOM
Minha amiga. Juliana.
LUCIANA
O que tem ela?
TOM
É uma pessoa que preciso ver sempre. Ela vai morar
no Rio. Você topa ir também?
LUCIANA
Vamos deixar as coisas bem claras. Ir para o Rio
significa exatamente o quê?
TOM
Mudar de cidade. Só isso.
LUCIANA
Você ama sua amiga Juliana? É isso?
132
TOM
Não do jeito que você está pensando. Ela é minha
alma gêmea.
LUCIANA
Mesmo sem romance, sem tesão?
TOM
Mesmo.
LUCIANA
Não ligo mesmo - se é o que você quer e vocês são
univitelinos. Somos adultos. Quem sabe mais adiante
a gente não experimenta algumas coisas novas (dá uma
piscadinha sensual)?
IRIS OUT TO:
INT. ESCRITÓRIO DE CACO – NOITE.
Caco digita a última frase do terceiro ato:
PONTO DE VISTA de Caco, digitando devagar.
TEXTO:
BORK e MADS vão à frente e voltam, rindo com
Juliana. Luciana segue junto com eles. Todos estão
felizes.
VEMOS o mouse fechando o arquivo do processador de texto em
que estava sendo escrito o roteiro.
A sala está imersa em fumaça de maconha.
CACO dá um longo suspiro.
CACO
Praticamente um dia antes do prazo. Caco: Caco, você
é foda.
TOCA a campainha. Ele olha as horas.
CLOSE-UP do relógio: são 2 horas e 15 minutos.
Caco vai até a porta e coloca o ouvido na madeira.
CACO
Rogério? É você?
133
A atriz que representa
interpreta
a
delegada
mencionadas.
a POLICIAL é
Sônia
e
as
a mesma atriz que
demais
personagens
Mas aqui a roupa dela combina mais com a profissão: colete da
Polícia Civil, jeans, camiseta e rabo-de-cavalo.
POLICIAL
(em OFF)
Polícia Civil!
CACO
O quê? Quem é?
POLICIAL
(em OFF)
Delegada Virgínia Fonseca, da SEPTUAGÉSIMA OITAVA
DELEGACIA DE POLÍCIA CIVIL, nos Jardins. Abra a
porta, por favor.
CACO
(pálido, assustado)
Polícia? O que vocês querem comigo?
POLICIAL
Viemos prender o senhor. Abra a porta!
Caco olha a fumaça da maconha,
conseguir diluir a fumaça.
abana
em
desespero,
CACO
O lar é inviolável. Vocês não podem entrar!
POLICIAL
(em OFF)
A ordem de prisão que está na minha mão diz que sim.
Foi expedida por um juiz.
CACO
Contra mim?
POLICIAL
(em OFF)
O seu nome é Carlos Alberto SIGELMAN?
CACO
É.
POLICIAL
(em OFF)
O senhor é judeu?
sem
134
CACO
Sou. A senhora é nazista?
POLICIAL
(em OFF)
O senhor é circuncidado, não é?
CACO
O que isso tem a ver? Que loucura é essa? (pausa) Meu
Deus! Estão perseguindo os judeus outra vez?
POLICIAL
(em OFF)
É ou não é?
CACO
Sou. Claro. A senhora jura que não é neonazista?
POLICIAL
(em OFF)
A Polícia não está perseguindo judeus. Só um judeu
em particular.
CACO
Eu conheço o dito cujo?
OUVIMOS o disparo de um tiro.
Caco entra em pânico, achando que foi ferido. Leva um tempo
para perceber que está ileso.
POLICIAL
(em OFF)
O próximo vai acertar se o senhor não abrir essa
porta logo!
Eu conheço
estranha.
CACO
a senhora?
Sua
voz
não
me
parece
POLICIAL
(em OFF)
Pode ser da televisão. Eu dou muitas entrevistas.
Caco fica pensativo.
CACO
(inseguro)
Será?
POLICIAL
(em OFF)
135
Isso não faz diferença! Abra já essa porta por que o
senhor está preso.
CACO
Não é certo prender as pessoas assim, desse jeito,
em plena casa delas, sem avisar.
CORTA PARA:
PASSAMOS AO OUTRO LADO DA PORTA.
A delegada está com o ouvido colado à porta, da mesma forma
que CACO estava.
POLICIAL
(irônica)
Da próxima vez marco com uma semana de antecedência
e telefono um dia antes. Está bom assim, senhor
Carlos Alberto?
A tela parte-se em duas metades, separadas pela porta. Do lado
esquerdo, Caco; de frente pra ele, cara na porta, a policial.
POLICIAL
O senhor está sendo procurado pela lei há muitos
anos. Não adianta tentar fugir. O senhor está
cercado! Abra logo essa porta.
CACO
Há um mal entendido, delegada e isso com certeza
isso vai ser esclarecido. Eu não fiz nada, garanto
que não fiz.
POLICIAL
No Carandiru ninguém fez nada também.
CACO
Mas eu não fiz mesmo. Vocês precisam acreditar em
mim... Pelo amor de Deus!
Os policiais batem com força na porta.
POLICIAL
Abra logo a porta!
Tom abana a fumaça, desesperado.
Tenta por todos os meios expulsar a fumaça
apartamento, que está com a janela aberta.
CACO
para
fora
do
136
O lar é inviolável!
POLICIAL
Deixe de ser cínico, seu filho da mãe. Abra a porta
ou vamos derrubar essa merda!
Caco fica confuso.
CACO
Delegada Sônia? É você?
Silêncio.
CACO
Claro que não é a delegada Sônia. Que burrice a minha.
Há fumaça demais: ele com um cigarro acesso. Ele cheira o
cigarro.
CACO
Será que essa merda está estragada?
Ele apaga o cigarro num cinzeiro, com nojo.
Batem na porta de novo, com força e estridência.
POLICIAL
(em OFF)
Abra essa porta! Polícia Civil com mandado judicial.
Caco fica mais confuso ainda, começando a entrar em pânico.
CACO
(amedrontado)
É você, delegada Sônia?
A tela divide-se em duas metades iguais, dividida ao meio pela
mesma porta que divide Caco da delegada.
Os dois estão grudados na porta. VEMOS outros policiais com a
delegada, representada pela mesma atriz que interpretar a
delegada Sônia.
POLICIAL
(em OFF)
Não sou nenhuma delegada Sônia. Meu nome é Virgínia.
CACO
(visivelmente confuso)
Mas você também é delegada?
POLICIAL
137
(em OFF)
Que diferença faz? Mas sou delegada sim. Abra logo
essa porta!
CACO
Mil desculpas, doutora. Eu estou confuso. Por favor,
me diga... Por que a senhora quer me prender?
POLICIAL
O senhor está me gozando?
CACO
Não! Juro que não! Por favor, me diga.
POLICIAL
O senhor...
CACO
Você.
POLICIAL
... O senhor é procurado por dois crimes. Um mais
grave do que o outro. Qual prefere ouvir primeiro?
CACO
Que merda. Não faz diferença. Qualquer uma.
POLICIAL
Homicídio doloso. Primeiro.
Tom está desesperado: não consegue remover a fumaça de maconha
e começa a acreditar que realmente vai ser preso.
CACO
Não pode ser! Claro que não pode! Eu nem saí de casa
nos últimos dias.
Tom com o ouvido colado à porta.
O senhor
porta?
vai
POLICIAL
abrir ou
CACO
Doloso mesmo? É pior
diferença.
vou
do
ter
que
que
arrebentar
culposo?
Esqueci
a
a
POLICIAL
(em OFF)
O seu crime provavelmente foi involuntário. Mas sua
vizinha morreu mesmo e foi cometido um crime.
138
TOM
Crime? A velhota morreu?
POLICIAL
(em OFF)
Minha avó senhor SELIGMAN. Mais respeito.
CACO
(coçando a cabeça, doidão)
Merda! Quero dizer, mil desculpas. Perdão, perdão!
Eu estou confuso demais... Meu Deus, isso é doido
demais... O que houve com ela?
POLICIAL
Pulou da janela. Matou-se.
CACO
Isso é suicídio. Porque o culpado sou eu?
POLICIAL
A maconha de seu apartamento foi toda para o dela.
Ela ficou muito doida, mas muito doida demais.
CACO
Como assim? (noutro tom) Que maconha?
POLICIAL
Não seja besta: dá pra sentir o cheiro lá em
Itaquera. A coitadinha de minha avó ficou doidona,
tirou a roupa e pulou.
Caco, encostado na porta, deixa o corpo escorrer, desanimado,
derrotado.
CACO
Essa estória está mal contada. Ninguém fica doidão e
pula pra morrer.
POLICIAL
O juiz acha que ela ficou eufórica demais com a
maconha. Mais do que devia. E morreu por isso.
CACO
Eufórica? Maconha não dá euforia.
POLICIAL
Eu sei. Mas o juiz acha que
porque parou de sentir dores.
CACO
Dores? Que estória é essa?
ela
ficou
eufórica
139
POLICIAL
Ela estava com câncer em estado avançado. A maconha
tirou as dores dela.
CACO
(baixinho)
Que situação absurda, meu Deus. Se eu coloco isso
num roteiro iriam me chamar de incompetente o resto
da vida.
Caco olha para a janela aberta.
CACO
Um ótimo motivo, você há de convir. Eu pularia
também. Você deveria era ficar agradecida a mim.
POLICIAL
(em OFF)
Eu estou. Mas o juiz não gostou de tanta maconha na
cara de minha avó, que também é avó dele, já que ele
é meu irmão. Além do mais o senhor já está com a
barra suja.
CACO
Barra suja?
POLICIAL
O outro crime, o senhor já esqueceu?
CACO
(desanimado de novo)
Qual outro?
POLICIAL
Assalto à mão armada, sedução mediante má fé e roubo
do vestido das vítimas, além de cartões de crédito e
dinheiro.
CACO
Mentira. Nunca usei vestido.
POLICIAL
Usou sim. Temos fotos suas quando estava vestida de
travesti. E as vítimas identificaram que o senhor é
circuncidado, já que viram o senhor pelado.
CACO
Isso é cascata. Ninguém prestaria atenção nisso!
POLICIAL
Você não conhece as mulheres, senhor Carlos Alberto?
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CACO
Conheço muito bem. E uso roupa de mulher se
quiser. Vivo numa democracia ou os corruptos
acabaram com ela?
eu
já
POLICIAL
Pode usar até fantasia de Penélope Charmosa, mas tem
que ir comprar na loja. Seduzir mulheres inocentes e
roubá-las é coisa muito feia e dá cadeia.
CACO
Meu lar é inviolável. Seu irmão está com raiva, mas
deve a mim as últimas alegrias da pobre velhota.
POLICIAL
Mais respeito. Se não abrir essa porta vou arrombar.
CACO
Eu conheço a lei. Vocês não podem provar nada.
POLICIAL
Porque você acha que o juiz mandou prender você? É
claro que nada tem a ver com nossa avó, que de pobre
velhota não tinha nada, por sinal.
CACO
Por quê? Nem imagino.
POLICIAL
Porque há provas concretas e robustas contra você,
seu pilantra. O senhor roubou o dinheiro das
coitadas. Fim da linha.
CACO
Foi por necessidade. Você não faz ideia de como eu
sou mal pago.
POLICIAL
O senhor é professor?
CACO
Não. Roteirista de cinema.
POLICIAL
Porque o senhor não foi para a televisão? Eles pagam
uma fortuna lá.
CACO
Não faltou vontade. Faltou padrinho.
POLICIAL
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O senhor não vai mesmo abrir a porta?
CACO
Não. Ninguém me tira daqui. O lar é inviolável.
A TELA VOLTA A FICAR INTEIRA.
Repete-se exatamente a mesma cena de invasão do motel, com a
alusão ao filme de KUBRICK, “O ILUMINADO”.
CORTA PARA:
OUVIMOS os primeiros acordes de I WANT TO BREAKE FREE, a banda
QUEEN, Fred Mercury no vocal.
Tom e Luciana seguem de mãos dadas.
Os gêmeos andam de patinete, com capacetes leves.
Mas não atropelam ninguém.
BORK e MADS vão à frente e voltam, rindo com Luciana.
Os três estão felizes.
Todos estão felizes.
CORTA PARA:
O videoclipe de PILATOS
apresentado antes.
para
I
WANT
TO
BREAKE
FREE,
já
Ao longo do clip efeitos de computação gráfica colocam as
cabeças dos demais atores no lugar da cabeça de Pilatos.
Por fim, na última sequência do clipe, Pilatos aparece vestido
como um governador de província romana, executando os mesmos
passos que executava quando vestido como Fred Mercury no
videoclipe original.
FIM
CRÉDITOS FINAIS.
Maio/Junho/Julho/Agosto 2015.