AMORES IMPERFEITOS - Português
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AMORES IMPERFEITOS - Português
1 AMORES IMPERFEITOS Roteiro de Daniel J. ZIMERMAN Maio/junho/julho de 2015 “Ninguém é perfeito até que você se apaixone por essa pessoa”. William Shakespeare EXT. SÃO PAULO – NOITE. Legenda: São Paulo, 2015 Imagens noturnas de agitação. São Paulo à noite: a cidade ferve de Barzinhos movimentados, restaurantes, casas de shows, cinemas, teatros: tudo mostra o charme irresistível da cidade. A agitação das ruas é colocada em contraponto com o sossego em diversas residências: VEMOS gente que passa horas na frente de um computador. Desfilam pela tela várias pessoas diferentes (de cor, gênero, idade, classe social), tendo em comum a tela de um computador bem à frente delas. Relógios de parede nas residências e no canto da tela dos computadores reproduzidos na imagem mostram o transcurso do tempo, indicando gente que atravessa a noite navegando na web. O roteirista CACO SELIGMAN é o último a ser mostrado. PLANO APROXIMADO de Caco: bocejando, ele acaba de massagear o pescoço, alongando os músculos. INT. ESCRITÓRIO DE CACO SELIGMAN/APARTAMENTO – NOITE. CACO – 37 anos, barba e cabelos negros – escreve a primeira linha de um script. As letras enormes (fonte New Courier) ocupam boa parte da tela – a página em branco de um processador de textos – e são digitadas devagar, no PONTO-DE-VISTA de Caco, até formar a frase (em caixa alta): INT. ESCRITÓRIO DE TOM – DIA. Acordes da música “OH, INTERNET” – interpretada por HANNAH HART num videoclipe disponível na web – acompanham as primeiras imagens que surgem na tela. 2 CLOSE-UP do teclado de um laptop: a mão direita de Caco pressiona a tecla que indica a passagem para a próxima linha. VEMOS – ainda no PONTO-DE-VISTA de Caco – a segunda oração digitada por ele (caixa mista, sem negrito): TOM está navegando na Internet. IRIS OUT TO: INT. ESCRITÓRIO/APARTAMENTO DE TOM – NOITE. TOM está no escritório dele – muitas estantes carregadas de livros – na frente de seu laptop, visto de costas. PLANO APROXIMADO de Tom: boa pinta, bem conservado, diante da tela do laptop. CAM aproxima-se na direção dele e enquadra a estante, com Tom ao fundo, digitando. CLOSE-UP de alguns livros: uma fila inteira de livros sobre roteiros de cinema e TV (boa parte deles em inglês). Ele (e NÓS, com ele, no mesmo PONTO DE VISTA) vai alternar a navegação exclusivamente entre dois websites: YOUTUBE – em que é exibido o clip de HANNAH HART e Par Perfeito (www.parperfeito.com.br). No site de encontros, Tom digita com rapidez, preenchendo os campos vazios na área que descreve o tipo de mulher que ele busca: sexo (F), faixa etária (30-39 anos) e localização (São Paulo). Hábitos: exercício (sim); bebida (não); fumo (não). Dados gerais: altura (1,50 a 1,85), peso (50kg-60kg), olhos (qualquer cor), renda (acima de R$ 3 mil), formação acadêmica (superior, pós-graduação), signo (qualquer um). CLOSE-UP: O que você busca? (x) RELACIONAMENTO SÉRIO. O internauta usa a barra de rolagem do laptop – o mouse é visível – e VEMOS várias mulheres diferentes, todas na faixa entre 30 e 40 anos: mulheres comuns, a maioria sem nenhuma beleza; nenhuma muito bonita, que se destaque. PONTO DE VISTA de Tom: sucessivos perfis de mulheres desfilam pela tela. Entre elas, LUCIANA, CRISTIANE, SÔNIA, BÁRBARA, ISABEL e VIRGÍNIA. 3 Todas as personagens identificadas deverão ser interpretadas pela mesma atriz, com caracterização visual inteiramente diferente para cada personagem. O mouse (na tela) clica em várias fotos de cada uma delas. Cada foto é observada com muito interesse. VEMOS as fotos de cada uma delas ocupando a tela inteira: é possível identificar que os personagens são interpretados pela mesma atriz. Tom volta ao clip de HANNAH HART. Novo retorno ao site de encontros: o internauta faz sua escolha: é CRISTIANE (de biquíni minúsculo, na praia; elegante, passeando num shopping; saindo para o trabalho; andando na rua). VOLTAMOS ao clip uma vez mais. CORTA PARA: INT. SUÍTE DE MOTEL – DIA. Tom e CRISTIANE estão se beijando. Estão nus, na cama. Ela está muito excitada, ele também. CRISTIANE (sussurrando) Ai meu amor. Amor da minha vida! Faz uma coisa pra mim, faz. TOM O que você quiser eu faço, benzinho. O que você quiser. CRISTIANE Aperta meu pescoço, vai. Aperte pra valer, meu amor. Aperta com força. Eu gosto. Gosto muito, querido! Sem graça, surpreso com o pedido, Tom aperta o pescoço da moça, com muito receio de machucá-la. CRISTIANE Com força, querido! Com força, amor! Muita força! Ele está visivelmente constrangido, mas não quer decepcionar a mulher. TOM Calma. Eu vou apertar. 4 Aperta para valer: ela fica realmente continua apertando o pescoço dela. sufocada, mas ele CRISTIANE (muito sufocada, com dificuldade) Ai, amor. Que delícia! Mais, amor! Mais! Mais! Tom anima-se todo e aperta ainda mais. Cristiane tem um orgasmo fortíssimo e desmaia. Tom continua gemendo. apertando, Ele para seguida. apertar de e sem a afrouxar penetra de e a uma mulher vez, continua gozando em Ela está com os olhos esbulhados, fora de órbita, emitindo sons desarticulados. Só então Tom percebe que ela está desacordada. Ele entra em pânico. TOM Cristiane! Acorde, Cristiane! O que isso?! Meu Deus! Será que eu a matei? Meu Deus do céu! Será que matei essa maluca? Ele levanta-se, desesperado, depois de colocar a cabeça no peito dela, para ouvir o coração. TOM Acorda logo, menina! Acorda, pelo amor de Deus! Cristiane começa a tossir: está viva. Tom tem um enorme suspiro de alívio e deixa-se cair na cama, absorvendo melhor o susto. CORTA PARA: CRÉDITOS INICIAIS em negro, metade à direita da tela, fundo branco, letras no formato na redação do roteiro: é como se Tom tivesse digitado toda a ficha técnica de apresentação do filme. Na metade à esquerda, acompanhamos imagens dos primeiros encontros de Tom com mulheres que conheceu no site, sempre em locais bacanas, nos Jardins. 5 Imagens românticas mostram TOM atencioso e gentil, revelando um exímio sedutor em ação: Tom beija a mão de uma acompanhante; Tom puxa a cadeira para a acompanhante sentar-se; Tom sai do carro e dá a volta, para abrir a porta para sua acompanhante; Tom e sua acompanhante bebem champanhe, enamorados; Tom e sua acompanhante rindo com vontade, felizes; Tom caminhando pelo ambiente amplo de um restaurante, até encontrar-se com sua acompanhante: eles se abraçam e trocam beijos carinhosos; Tom e a acompanhante estão sentados lado a lado, ele com o braço enlaçando-a. Um garçom serve as taças de Tom e de sua acompanhante. As acompanhantes de vestidas, atraentes. TOM são sempre mulheres lindas, bem Música de HANNAH HART. Fim dos CRÉDITOS INICIAIS. CORTA PARA: INT. SUÍTE DE MOTEL – DIA. Tom está de olho nas belas curvas do corpo de Cristiane, que parece estar dormindo. É “o” voyeur por excelência em ação, deleitando-se com prazer imenso a vista do voluptuoso corpo de Cristiane. De repente, a porta de acesso à suíte é arrebentada a golpes de machado, para horror de Tom, que olha aterrorizado para o estrago produzido pela lâmina. Uma cabeça surge no enorme buraco feito na porta: é de um sujeito barbudo, que lembra Jack Nicholson atuando em THE SHINNING. TOM (em OFF) 6 Ei, você! Vamos com calma aí! O que é isso? Quem são vocês? (Tudo remete à cena famosa do filme de Kubrick, com o terror da mulher do personagem de Nicholson) A porta de entrada para a suíte acaba de ser inteiramente arrebentada a machadadas e três policiais com coletes da Polícia Civil entram de armas em punho. Atrás deles, a delegada Sônia (um terceiro visual diferente da atriz que interpreta todas as ex-namoradas de Tom, além de LUCIANA). POLICIAIS (em uníssono) Polícia! CORTA PARA: EXT. RUAS DO FLAMENGO/RIO DE JANEIRO – DIA. Uma viatura da polícia civil com a sirene ligada corre em alta velocidade por ruas do Flamengo. Tom está no banco de trás, ao lado de Cristiane e de um policial. CORTA PARA: INT. CORREDOR DELEGACIA – DIA. Imagem em CLOSE-UP da placa fixada na porta: SALA DE INTERROGATÓRIO INT. SALA/DELEGACIA/RIO DE JANEIRO – NOITE. Sala pequena, luminária à mesa, mostrando Tom sentado com as mãos para trás. Muita fumaça de cigarro. (A construção da cena deve remeter a uma cena antiga de FILM NOIR, com imagens expressionistas, muitas sombras). Com o jato de luz no rosto, de chapéu, Tom não consegue ver direito sua interlocutora, a delegada SÔNIA. Ela quase sempre é enquadrada na penumbra, com silhueta recortada, num efeito que busca transformá-la numa mulher distante, misteriosa. Sônia é voluptuosa, muito atraente, roupas justas, decote. SÔNIA 7 Você não quis chamar seu advogado. TOM Eu não fiz nada de errado. Não preciso de advogado. SÔNIA Nós vimos tudo o que aconteceu naquele quarto de motel. Está tudo gravado. TOM Muito cuidado ao brincar com câmeras, doutora. As imagens podem vazar e cair na Internet. SÔNIA Não se preocupe. Sou cuidadosa com essas coisas. TOM Porque estou sendo preso? SÔNIA Você ainda não foi preso. Está detido. É diferente. TOM Tenho que pegar o avião das cinco. SÔNIA Ponte aérea? TOM É. SÔNIA São Paulo? TOM É. SÔNIA Por quê? TOM Moro em São Paulo, doutora. Aliás, você já deve saber que eu não fiz nada errado. SÔNIA Eu adoro São Paulo. Gosto de ir passar finais de semana lá. TOM Bom saber, doutora. 8 Uma pausa constrangedora. SÔNIA Você é gay? TOM (surpreso) Não. Por que está perguntando? SÔNIA Se for, pode falar. Numa boa. TOM Se fosse, eu falaria. SÔNIA Falaria nada. TOM Escute. Eu não tenho preconceito. Cada um escolhe o caminho que quiser. Não é da conta de ninguém. SÔNIA Você teve problema para sair do armário? TOM Eu não saí do armário nem pretendo sair, já disse. SÔNIA Jura que não é gay? Olhando em meus olhos? TOM Não vou jurar nada. Mas fique sabendo que minha melhor amiga é gay. SÔNIA Lésbica? TOM 200%. SÔNIA Você já transou com ela? TOM Não. Eu disse que ela é gay. SÔNIA Sapatão, você quer dizer. TOM 9 Não gosto desse adjetivo. Ela é gay. SÔNIA Lésbica. Você realmente gosta dela? TOM Gosto sim. Ela é minha alma gêmea. Esse negócio apaixonado. SÔNIA de alma gêmea é pra quem está TOM Nem sempre. Gêmea no sentido de fraternal, não no romântico. SÔNIA Fala a verdade, Don Juan. Amor platônico? TOM Gay ou Don Juan? A senhora precisa se decidir. SÔNIA Pode ser os dois se cortar dos dois lados. Facão ou espada? Sônia aproxima seu rosto do rosto de Tom. CLOSE-UP: os dois com os rostos bem próximos, numa enquadramento que traduz a tensão sexual entre os dois, a partir de uma atração mútua irresistível. GRANDE dele. CLOSE-UP da língua de TOM, deslizando pelos lábios De repente um ruído fortíssimo: Sônia bateu com a mão na mesa, com toda a força, dando um grande susto em Tom. DISSOLVE PARA: FLASHBACK. EXT. BISTRÔ/SÃO PAULO – DIA. Juliana - morena, com cabelos presos num corte pouco convencional, 38 anos, linda, veste-se de forma masculina - e Tom estão tomando café, num bistrô charmoso nos Jardins. Legenda: Há dois anos. 10 JULIANA Por que você não admite de uma vez? Poupe tempo e energia a essa conversa tão edificante. TOM Não vou admitir algo querida. só para você ficar feliz, JULIANA É claro que você não vai admitir. TOM Não me acho machista. Nem um pouco. Gosto de mulher, só isso. Não acho que o homem é superior em alguma coisa à mulher. Muito pelo contrário. JULIANA Mentiroso. Você gosta de mulher bonita, o que é bem diferente. TOM Quer dizer que ter bom gosto agora virou machismo? JULIANA Você não tem nenhum amigo gay. TOM Você não conta? JULIANA Amigo homem. E não adianta negar. interessa por mulheres lindas. Se machismo não sei mais o que é. Você isso só se não é TOM As capivaras também merecem ser felizes. Mas não precisa ser comigo. Juliana começa a demonstrar desconforto com a conversa. JULIANA (mau humorada) Diz uma coisa. Você já beijou um homem? Beijo de verdade, de língua. TOM Argh! Que nojo. Claro que não. JULIANA Tá vendo? Machismo. 11 TOM Não gosto do cheiro de homem. heterossexual. Machista, não. Isso é ser JULIANA Há alguma dúvida de que você pode ter muito prazer se transar com um homem? TOM Todas as dúvidas. Não vejo a menor graça na bunda de um homem. JULIANA E atrás? TOM Atrás o quê, minha querida? JULIANA Você já experimentou ‘lá’ atrás? Tom não percebe a mudança no humor de Juliana. Não parece prestar muita atenção: aéreo, distante. TOM Não, querida. Aquele orifício foi feito para saídas e não para entradas. JULIANA Não é assim que você pensa sobre o orifício das moças que você conquista. TOM (prestando mais atenção) Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. JULIANA Você é machista, TONZINHO. Mesmo sabendo que ia adorar uma visitinha aí atrás, você se recusaria a experimentar? TOM Claro. Definitivamente. Sem qualquer dúvida. JULIANA E é um chauvinista ainda por cima. Tom não percebe, mas Juliana ficou irritada com a rigidez dele. TOM 12 (didático) Nem tudo vale a pena experimentar, Juliana. Experimentar algo que pode, eventualmente, bagunçar a sua vida, ninguém experimenta. É como cocaína, por exemplo. JULIANA (de cara fechada) Não vejo a semelhança. TOM Não sou rico. Não vou ter dinheiro para comprar a quantidade que vou querer consumir. Sei que é ótimo, que dá uma segurança incrível, tão fantástica que até Freud gostava. E não sei fazer nada pela metade. Logo estaria ferrado. Para que vou entrar nessa? JULIANA Comparação um tanto idiota essa, hein? TOM (divagando, sem prestar atenção em Juliana, o que a irrita ainda mais) Só gosto de transar com mulher. Se for javali, mico estrela ou um homo sapiens não serve para mim, OK? Ponto final. Juliana levanta-se, brava para valer. JULIANA Você é um machista calhorda, diga o que quiser. Moderninho, descolado, mas não passa mesmo é de um machista! Juliana empurra a cadeira para trás (a cadeira cai e assusta as pessoas no bistrô) e sai, pisando duro, sem olhar para trás. Tom não fala nada, chocado, surpreso. FIM DO FLASHBACK. VOLTAMOS À SALA DE INTERROGATÓRIO. Tom está impaciente. TOM Posso saber o que é que você está esperando para me liberar? SÔNIA Vou pensar em seu caso. 13 TOM Escute: eu tenho muita voltar a São Paulo. coisa pra fazer. Preciso Tom olha as horas em relógio de pulso. SÔNIA Você é o principal suspeito conhecido como “gostosão”. de ser um marginal TOM Não sou gostosão nenhum. Meu nome é Tom. SÔNIA Tom? Tipo Tom Jobim? TOM É. SÔNIA Que bobagem é essa? Antônio que é Antônio é Tonho ou Tonico. É como chamar Chico de Frank. TOM Pau que bate em Frank também bate em Chico. Tom repara nas belas pernas de Sônia. TOM Questão de opinião. SÔNIA Opinião é igual bunda. Todo mundo tem. TOM Sua percepção é impressionante, delegada. Acertou na mosca. SÔNIA É claro que ninguém pode comer sua opinião, mas eu já não posso dizer a mesma coisa em relação a sua bunda. Não aqui, numa delegacia. TOM Não entendi o espírito da coisa. SÔNIA Você não imagina o sucesso que faria ali dentro. Continue bancando o gostosão e vai ver o que vão fazer com sua opinião. 14 Tom parece derrotado. O isqueiro dela cai no chão, ela se abaixa, proporcionando um ângulo bem favorável a uma bela vista do decote dela. Tom fica visivelmente atordoado com a sensualidade explosiva da delegada Sônia. Ela tira as sandálias, ficando descalça. Tom fica de olho nos belos (e bem-feitos) pés dela. PONTO DE VISTA de Tom, olhando os pezinhos de Sônia livres da sandália. TOM Delegada. (pausa) Exatamente o que você quer saber? SÔNIA Tudo. Tom não desgruda os olhos das pernas e do decote da delegada, que parece não perceber. TOM Tudo é vago demais. Tudo e nada. A mesma coisa. SÔNIA Minha intuição nunca falhou nem é medíocre feito a sua filosofia de botequim. TOM Falhou agora. Não sou esse gostosão. SÔNIA Leva jeito de ser. É todo ESTILOSO, sotaque paulista, tem fala mansa. Sucesso com as mulheres? Ela dá uma espiada na cintura de Tom, percebendo a ereção dele. Sônia dá um sorriso maroto e, surpreendentemente, dá uma virada repentina, ficando de costas para Tom, que fica de olho nas pernas dela, hipnotizado. A moça usa uma saia muito sensual, com abertura entre as pernas e Tom está ficando cada vez mais excitado. SÔNIA Gostosão, sedutor. O próprio. Ele trata as vítimas com muito carinho. 15 Tom continua olhando o corpo de Sônia com cobiça, aumentando gradativamente a tensão sexual entre os dois. Ela começa a perceber os olhares dele. TOM Exatamente o quê esse gostosão faz? SÔNIA Além de exercer a gostosura? De ser muito carinhoso com as mulheres? TOM De preferência. SÔNIA Dá ‘o’ boa noite cinderela pra todas e depois rouba todo o dinheiro delas. E os cartões de crédito. TOM E onde é que entra o carinho? SÔNIA Ele é muito gentil, carinhoso mesmo. As mulheres ficam cativadas com o romantismo dele. TOM Ele não estupra as moças? SÔNIA Você acha que deveria estuprar? Claro que violência. TOM não. Sou contra qualquer SÔNIA (irônica) Até parece. Você? Fala sério. TOM Não estou entendendo. SÔNIA Não se faça de bobo, senhor Gostosão. TOM Estupra ou não estupra? SÔNIA forma de 16 Negativo. Só veste a roupa delas, dá umas voltas no quarto e vai embora com a grana. A tensão sexual começa a ficar muito evidente na atitude dos dois, que parecem dois oponentes medindo forças: a femme fatale e o bad man do film noir. SÔNIA Diz a verdade. Você é gay? TOM De novo essa estória? SÔNIA Não tente me enrolar. TOM Não estou tentando. SÔNIA Diz aqui. Sente prazer em fazer aquilo com aquelas pobres criaturas? TOM Não fiz nada de errado, delegada. Não sou quem você procura. SÔNIA Você marca com elas naquele site. Eu já conferi no seu celular. TOM E desde quando entrar num site é proibido ou ilegal? SÔNIA Não venha com conversa fiada. Abre logo o jogo, que eu facilito as coisas para você. TOM Delação premiada? Tipo LAVA-JATO? SÔNIA Se você fizer parte de uma quadrilha, sim. Porque não? TOM Delegada, vamos direto ao ponto: eu não sou esse gostosão que vocês estão procurando. Nunca fiz nenhum mal a uma mulher. SÔNIA 17 Deixe de ser cara de pau. Papa Chico só tem um. Além do mais, você é gay. TOM Não sou. SÔNIA É gay sim. TOM O que tem isso a ver? SÔNIA Então você admite?! TOM Não admito nada além da ilegalidade que a senhora está cometendo ao me manter aqui contra a minha vontade. SÔNIA Você só pode ser gay. Porque vestiria a roupa daquelas mulheres? Por que não estupra nenhuma? Gay. TOM Eu não sou esse tal ‘gostosão’! SÔNIA Ótimo. Vai rodar a baiana, agora, vai? Liberte-se, rapaz! TOM (contendo a indignação) Eu jamais faria mal a uma mulher. SÔNIA Mentiroso! TOM Esse cara não deve ser gay. Se fosse mesmo, estupraria as mulheres, será que você não enxerga? SÔNIA (pensativa) Pode ser. Estupro não é ato de prazer. É violência. E os gays costumam ser misóginos. TOM Eu adoro as mulheres. Sempre adorei. Pergunte aos meus amigos. 18 SÔNIA Há quanto tempo você procura mulher na Internet? TOM (desanimado) Cinco anos. E em cinco Casanova. SÔNIA anos nenhuma serviu? Fala sério, TOM Essas coisas de amor são complicadas. SÔNIA Elas queriam amor, seu pilantra. Não sexo. TOM Eu gostei de todas elas. Dei amor a todas elas. SÔNIA Mentira. Você não passa de um gay com problemas de identidade. Isso explica tudo. Tom levanta-se e caminha até a delegada. Fica bem perto dela. TOM (quase sussurrando) Eu não sou gay. SÔNIA (sussurrando) Estou começando a achar que não é mesmo. TOM (quase a beijando) Eu gosto é de mulher. SÔNIA (suspirando) Eu sei. Safado. Você não lembra mesmo de mim? Tom olha com atenção para o rosto dela. TOM Suas feições são familiares, claro. Mas não lembra alguém especial. SÔNIA Nós saímos juntos há três anos. Você nem se lembra, filho da mãe. Tom a beija com carinho. Ela fica calma. Beijam-se. 19 EXT. TEATRO ANCHIETA/SESC CONSOLAÇÃO/SÃO PAULO – NOITE. Uma fila enorme está formada a partir da bilheteria. Zum-zum-zum de conversas simultâneas de todas as pessoas na noite de estreia de um espetáculo. INT. COXIAS DO TEATRO SESC/ANCHIETA – NOITE. JULIANA, apreensiva, olha para o relógio. Está tensa. CLOSE-UP no rosto de JULIANA. INT. CORTINAS DO TEATRO – NOITE. A cortina abre: começa o espetáculo. INT. PALCO/TEATRO ANCHIETA/SÃO PAULO – NOITE. Julieta está na sacada que dá para o jardim na residência dos CAPULETO. Banhada pela lua, linda, ela não percebe escondido, olhando para ela com paixão. que Romeu está JULIETA Romeu, Romeu! Ah! Por que és tu, Romeu? Renega seu pai, despoja-te de teu nome; ou então, se não quiseres, jura ao menos que amor me tens, porque uma CAPULETO deixarei logo de ser. ROMEU (à parte) Continuo ouvindo-a mais um pouco ou lhe respondo? Juliana interrompe, entrando no palco. JULIANA Agora sim! A luz ficou perfeita. Parabéns, Mauro. VEMOS Juliana chegar até o iluminador, quando ele está acertando um dos holofotes. Os dois se cumprimentam com carinho. Ela está cansada, mas feliz. JULIANA Pessoal: vou ao meu camarim e volto em 5 minutos. Fiquem tranquilos, temos tempo de sobra. A atriz que interpreta JULIETA vem até ela e lhe dá um abraço demorado, carinhoso. 20 JULIANA (em voz baixa) Obrigado, querida. Agora eu estou melhor. A luz finalmente ficou como eu queria. Maurinho é um amor. FLÁVIA Deixe de ser perfeccionista. Está tudo ótimo. Vai dar tudo certo! Flávia beija Juliana nos lábios e sai. Juliana vai em direção contrária. ACOMPANHAMOS Juliana até o camarim dela. Todos – atores e técnicos - estão concentrados em seu trabalho: é a estreia. INT. CAMARIM/TEATRO/SÃO PAULO – NOITE. Juliana entra. renovado. Está visivelmente exausta, mas de ânimo Acende um cigarro e traga demoradamente. Pega o celular sobre a mesa e faz uma chamada. CLOSE-UP: Juliana com o celular no ouvido. OUVIMOS os sons da chamada no celular. CORTA PARA: EXT. AEROPORTO DE CONGONHAS/SÃO PAULO – ENTARDECER. TOM parece exausto ao desembarcar. Sai do aeroporto e chama um táxi. OUVIMOS O SOM DA CHAMADA no celular dele, que corre na direção de um táxi. Tom tira o aparelho do bolso enquanto entra no táxi que parou ao chamado dele. Ele atende quando já está dentro do táxi. INT. TÁXI – NOITE. Tom se ajeita no carro. TOM (ao motorista) Cerqueira Cesar. JUJUZINHA? HADDOCK LOBO, 1210. (ao telefone) 21 A tela divide-se em duas metades, cada um numa metade, em CLOSE-UP (os dois olhando em sentidos contrários, exatamente como se estivessem em campo e contra campo), enquanto durar a conversa. JULIANA (satisfeita com a ligação) Oi querido. E aí? Já chegou a Sampa? TOM Chegando. Tive alguns problemas no Rio, mas já está tudo bem. JULIANA E como é que foi a reunião com o produtor? TOM Péssima. Paulo estava intratável. Ele estava se preparando para ir a uma festa de travestis aqui em São Paulo. (pausa) E a estreia? Tudo OK? JULIANA A loucura de sempre. Estou contando com você. Você vem, não vem? TOM Não vai dar. Tenho uma entrevista de alto nível hoje à noite. JULIANA Desmarca. Não quero nem saber. TOM Eu já expliquei. Você tem que entender. JULIANA Cancela. Estou precisando de você. TOM Nem pensar. Vai ser a entrevista de minha vida. (pausa) Vou sair com Juliana Paes. JULIANA Não acredito que você vai fazer isso comigo. TOM Infelizmente, querida. O hora de fazer a agenda. JULIANA (chateada) amor tem precedência na 22 Está certo, acredito. (pausa) adiar? É a estreia, Tom. Não dá mesmo para TOM Vou à entrevista de hoje e depois passo no teatro. Juro por Deus. JULIANA Não dá tempo. TOM Dá sim. Vou direto do aeroporto para a entrevista e ela vai comigo à estreia. JULIANA (resignada) Está certo. meninos? Você é mesmo um caso perdido. E os TOM Já combinei com eles. Marcamos no teatro, às dez. CORTA PARA: INT. ANTESSALA/APARTAMENTO DE LUCIANA/POMPEIA – NOITE. Num espelho de corpo inteiro, Luciana observa a si mesma, retocando a maquiagem com os dedos molhados de saliva e vê uma mulher linda, sofisticada, cosmopolita. Satisfeita, ela pega a bolsa pequena que aparador, e experimenta poses diferentes acessório. está sobre carregando o o CLOSE-UP da bolsa, um acessório de alto luxo, chique. Da mesma cor da sandália dela. Ela está elegantíssima, com sensualidade exuberante. CONCEIÇÃO, corpulenta, uniformizada, aproxima-se. LUCIANA Qual é o problema, Conceição? Os gêmeos derrubaram o quarto? Derrubaram quietinhos. CONCEIÇÃO não senhora. Eles até que estão CORTA PARA: EXT. PRÉDIO DE LUCIANA/POMPÉIA/SÃO PAULO – DIA. 23 BORK e MADS – pilotando patinetes motorizadas e potentes – aterrorizam as pessoas que passam perto do prédio, jogando a máquina neles. CORTA PARA: INT. ANTESSALA/APARTAMENTO DE LUCIANA/POMPEIA – NOITE. De volta conversa. à sala do apartamento de Luciana: continua LUCIANA Não me espere. Não garanto que volto hoje. CONCEIÇÃO E se eles perguntarem pela chave do armário? LUCIANA Eles não vão perguntar, pode ficar tranquila. CONCEIÇÃO Eu não entendo direito o que eles falam. LUCIANA Eles sabem falar português muito bem, mas fingem que não sabem. Simplesmente ignore o que eles falarem em outra língua. CONCEIÇÃO De onde eles vieram mesmo? JULIANA Do outro lado do mundo, minha filha. CONCEIÇÃO Por que eles ficam chamando a senhora de pai? JULIANA É uma estória longa. Depois eu conto. Agora estou com pressa. Luciana abre a bolsa e tira uma chave. LUCIANA (mostra a chave) Tá vendo isso aqui? É a chave do armário. Vou levar. Se eles tentarem arrebentar o armário me chame na hora. Coloquei aqueles patinetes lá. CLOSE-UP da chave na mão de Luciana. a 24 CONCEIÇÃO Será que eles vão conseguir dormir daquele jeito? LUCIANA Eles se virem. Não se preocupe. CONCEIÇÃO. Eles vão ficar daquele jeito a noite toda? LUCIANA Vão. Acha pouco? Se você quiser, pode servir um pouco de cianeto de potássio a eles. Vai ser bom para a asma. CONCEIÇÃO E isso é bom para asma? LUCIANA Você nem imagina. A melhor coisa do mundo. Eles vão ficar quietinhos que é uma beleza. CONCEIÇÃO Cianeto do quê mesmo? A senhora podia escrever o nome para mim? Tenho medo de esquecer. LUCIANA Amanhã você compra. Agora me deixe em paz. Já estou atrasada. OUVIMOS a campainha do interfone. LUCIANA É o meu táxi. Dê uma espiada naqueles psicopatas antes de dormir. Precaução e caldo de galinha não matam ninguém. CORTA PARA INT. QUARTO DOS GÊMEOS/APARTAMENTO LUCIANA – NOITE. MADS e BORK – ruivos, descabelados, sardentos, nove anos da idade – estão fortemente amarrados em duas cadeiras com rodinhas, bem próximas. Os dois estão amordaçados; MADS tenta encostar o pé na parede para empurrar a cadeira dele, inutilmente. BORK tenta livrar-se das tiras de fita isolante que o prendem, também sem sucesso. CORTA PARA: 25 Luciana sai e Conceição segue na direção do corredor que leva aos quartos. CORTA PARA: INT. CORREDOR/APARTAMENTO DE LUCIANA/POMPEIA – NOITE. Conceição receosa. aproxima-se do quarto dos gêmeos, visivelmente Ela para diante de uma porta que é diferente das demais: está toda riscada, com danos visíveis na pintura e na madeira. VEMOS o nome dos gêmeos garrafais: BORK e MADS. ‘grafitado’ na porta, em letras Conceição olha pelo visor da porta e vê as cabeças dos gêmeos na mesma posição em que os deixou. PONTO DE VISTA de Conceição, no visor. Mais tranquila, ela destranca devagar, ainda com receio. a fechadura e abre a porta Ela acende a luz e logo percebe que foi enganada: a imagem que viu pelo visor da porta metálica era de dois bonecos e não dos gêmeos (os bonecos usam os bonés que identificavam os gêmeos). Conceição houve um ruído, olha para baixo e vê MADS (um dos gêmeos ruivos e sardentos, de nove anos; MADS usa um boné amarelo e BORK um boné vermelho) aplicando uma injeção na perna dela. Ela grita, mas imediatamente fica grogue, dopada. BORK leva Conceição pela mão até o quarto dele. A empregada está visivelmente dopada. MADS aponta o armário embutido. BORK Where did he put the closet’s key? LEGENDA: Onde ele colocou a chave do armário? CONCEIÇÃO não entende. CONCEIÇÃO (aflita) Sua mãe entendo. falou para MADS vocês falarem do jeito que 26 Meu pai. Mãe, não! BORK Mãe, não! Pai! MADS imita o ruído da patinete e finge que está pilotando a máquina dele. CONCEIÇÃO Não pode. Patinete não pode. MADS mostra para ela o armário embutido. MADS Patinete! Entendeu? Patinete! CONCEIÇÃO Patinete não pode! Sua mãe levou a chave. BORK dá um beliscão nela, que grita de dor. BORK Pai! Pai! CONCEIÇÃO Pai! Seu pai! BORK Ele levou? Chave? CONCEIÇÃO Levou, sim. Juro por Deus! Na bolsa! Na bolsa! CONCEIÇÃO toma mais uma injeção, aplicada por MADS. Dessa vez, desmaia de uma vez. MADS levanta-se e segue BORK, depois de ouvi-lo. Eles falam português com perfeição, mas têm sotaque muito forte. BORK Será que ele levou mesmo a chave do armário? MADS Ele não tem direito de fazer isso com a gente. BORK Vamos à embaixada da Dinamarca, MADS. Vamos pedir ajuda ao embaixador. MADS 27 Não seja bobo. A embaixada fica em Brasília. Não há nada que ninguém possa fazer. A lei está do lado dele. BORK Ele não levou o carro. Vamos dar uma volta? MADS Genial! Vamos a um baile funk? BORK Seria fantástico, MADS. entrar nesses bailes. Mas não deixam crianças MADS Usamos o casaco de novo. De óculos escuros dá para entrar numa boa. BORK Tudo bem. Mas você fica embaixo dessa vez. MADS Mas você é mais forte! BORK Senão nada feito. MADS Ao baile funk! BORK Funk! funk! funk! funk! funk! funk! funk! MADS Funk! funk! funk! funk! funk! funk! funk! Ensaiam alguns passos de dança. MADS E os patinetes? BORK Vamos deixar assim? Ele toma nossos patinetes e fica por isso mesmo? Não! Eu quero vingança! BORK começa a dançar algo que ele imagina ser funk. MADS corre até seu aparelho de som (pequeno, mas potente) e OUVIMOS uma música instrumental de funk. MADS começa a dançar também. 28 Os dois são desengonçados, mas se divertem muito. MADS (dançando, desengonçado) Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! BORK (dançando, mais desengonçado ainda) Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! Vingança! IRIS OUT TO: Na trilha sonora, começam acordes de PRIVATE IDAHO, com a banda B-52 (https://www.youtube.com/watch?v=Bvp97GWeLoc). PLANO APROXIMADO de Caco no escritório dele (diferente do à noite, digitando enquanto fuma um cigarro de maconha ENORME. escritório de Tom), Ele está imerso numa grande nuvem de fumaça, rindo sozinho até as lágrimas. No laptop, roda o show ao vivo da banda B-52 no YouTube. IRIS IN TO: INT. GARAGEM/PRÉDIO DE LUCIANA – NOITE. O carro de Luciana - um SUV HONDA esportivo azul e branco está estacionado na vaga dela. A porta BORK de escuros montados do elevador abre-se e a estranha figura formada por casaco até as canelas, de golas levantadas, óculos e boné caminha desengonçada pela garagem: é BORK nas costas de MADS (escondido pelo casaco). Chegam até o carro e BORK observa toda a área da garagem, constatando que estão sozinhos. BORK abre o cassado e VEMOS como ele está sobre os ombros de MADS, que está visivelmente mal humorado. MADS Você está engordando, BORK! BORK está caindo ao chão, depois de pular de cima de MADS. 29 BORK Não reclame, MADS. Seja profissional. BORK entra no carro na posição do motorista e MADS dá a volta, sentando-se no banco do carona depois de abrir e fechar a porta. INT. CARRO DE LUCIANA – NOITE. BORK (de boné e óculos escuros) acomoda-se no banco do motorista, sentado em algo que aumenta a estatura e permite a melhor visibilidade a um motorista tão pequeno: de longe pode perfeitamente passar por um adulto. CLOSE UP na mão direita de BORK, ligando a ignição do carro de Luciana. Sentado em um banquinho, BORK (de boné) está ao volante. MADS está agachado bem próximo: é ele quem vai cuidar dos pedais. BORK Pé na tábua, copiloto. MADS Providenciando o acelerador. PLANO APROXIMADO mostra MADS pressionando o acelerador. O carro sai da vaga e BORK o conduz pela garagem. Há vários modelos mais caros, nenhum popular. EXT. PRÉDIO DE LUCIANA – NOITE. Dirigido por BORK, o carro ganha a rua e aumenta a velocidade. O carro aproxima-se de um semáforo: PONTO DE VISTA de BORK. PLANO APROXIMADO de BORK: o carro está parado no semáforo. Ao lado dele, outro carro. O ocupante do banco do carona no carro que para ao lado do carro deles é um idoso, que olha incrédulo para BORK. IDOSO O quê? Sai daí, menino. Você não tem idade para dirigir. BORK Relaxe, velhote. O carro tem câmbio automático. É moleza. IDOSO 30 Isso é um absurdo. Vou anotar a placa e denunciar ao DETRAN. BORK Vá tomar sua sopa, Matusalém. Vê se não enche meu saco. IDOSO Mal educado ainda por cima! Os carros estão próximos. BORK coloca a mão para fora e dá um beliscão no nariz do idoso, que fica irritadíssimo. IDOSO Você vai ver uma coisa, garoto! O idoso começa a teclar um número no celular, depois de subir o vidro da janela do carro. BORK Não me provoque, Matusalém. Senão enfio um supositório de tungstênio nessa sua bunda murcha. O idoso sobe o vidro lateral e começa a falar ao celular, fitando BORK. BORK levanta-se e abaixa as calças, mostrando a bunda sardenta ao idoso. CORTA PARA: EXT. AVENIDA PAULISTA/SÃO PAULO – NOITE. O carro conduzido por BORK para num semáforo. Distraído, ele não repara que um sujeito armado se aproxima do carro. O assaltante (JESUS) surge de repente, apontando um revólver enorme para a cabeça de BORK. JESUS Vamos lá, doutor. Passe relógio também. a grana rapidinho. E o BORK começa a rir, agradavelmente surpreso. BORK Um assalto! Que bacana! Olá, assaltante? Você não reparou direito, mas eu não sou nenhum doutor. BORK tira o assaltante. boné e os óculos escuros, sorrindo para o 31 PLANO APROXIMADO de MADS, que se esconde do assaltante. JESUS E daí, seu pentelho? Passe logo a grana e o relógio que a merda do sinal já vai abrir! Sem que o assaltante perceba, MADS abre a porta do carona e dá a volta, com um pedaço de pau na mão (15 cm). Ele chega devagar atrás do assaltante e enfia o pedaço de pau exatamente no centro na bunda dele, de baixo para cima. O assaltante toma um susto e pula para frente. MADS o empurra na direção de BORK, que sobe o vidro elétrico e prende a cabeça do assaltante (no pescoço, pela garganta), tomandolhe o revólver. MADS volta rápido e entra no carro. JESUS (voz em falsete) Ei! Calma, menino! Calma! Calma! Um spray de pimenta surge nas mãos de BORK, entregue por MADS. O jato de spray atinge os olhos do assaltante, que começa a gritar e a gemer de dor. BORK dá partida no carro e arrasta o assaltante, que em nenhum momento para de gritar. CORTA PARA: INT. CAFÉ PARIS/JARDINS/SÃO PAULO – NOITE. Em noite de casa cheia, Tom está sentado, tomando um drink, numa mesa ao fundo, que dá boa visão dos que entram. Ele está visivelmente ansioso: intervalos curtos demais. olha para o relógio em A atenção de Tom é desviada para uma mulher que está próxima dele: é VILMA – interpretada por ROGÉRIA –, enfiada num vestidinho preto apertadíssimo. Ela usa uma meia-calça preta e salto alto e está com maquiagem carregadíssima. PLANO APROXIMADO de Vilma, de olho em Tom: olhar direto e insistente para Tom. 32 VEMOS que Tom fica desconfortável com o olhar fixo de Vilma, que não se incomoda nem um pouco, mantendo a insistência no olhar. PONTO DE VISTA de Vilma: Tom sorri para ela, sem graça. CLOSE-UP de Vilma: fazendo um gesto obsceno com a língua, olhando para Tom. Um garçom percebe o que está acontecendo e ri com discrição, comentando algo ao ouvido de um colega. Tom fica cada vez mais apreensivo e sem graça. Olha em volta, procurando alguém. Pega o celular e tecla. TOM (em voz baixa) Leitão? Está meteu!!?! me ouvindo? Onde foi que você se De costas para Tom, encoberto por uma pilastra, LEITÃO – 140 kg – atende seu celular. JOÃO (em um tom acima) Câmbio. Estou aqui. Não precisa gritar. Tom olha em todas as direções, mas não vê João. TOM Aqui onde? Não estou vendo você. JOÃO Atrás da pilastra. Ele faz sinal com a mão balançando e Tom o localiza. Vilma, por sua vez, continua olhando fixamente para Tom. TOM (ao celular) O que você está esperando para entrar em porquinha? A capivara está quase atacando. ação, JOÃO A gente não tem certeza de que é ela. Pode ser alarme falso, presidente. TOM (aterrorizado) Só pode ser ela. A dona não para de olhar pra mim! JOÃO 33 (sentindo-se um agente secreto em missão) Positivo. É ela, sem dúvida. Câmbio. Você foi enganado, presidente. Despiste a mocreia e vá ao banheiro. TOM Vou sim. Ofereça um drinque pra ela, Leitão. Já fiz sinal pedindo a conta. Se ela me seguir, você entra em ação. Vou ao banheiro. JOÃO Positivo. Câmbio. Desligando. Tom levanta-se e caminha na direção do corredor que conduz aos toaletes. Vilma o acompanha com o olhar e Leitão observa Vilma, que repara em João. João olha para Vilma e repara que ela observa Tom chegar ao corredor e entrar no toalete masculino. PLANO APROXIMADO: João faz sinais para Vilma, sugerindo que Tom ficaria feliz se ela o seguisse; é bem enfático. Vilma olha com simpatia para João. Nesse momento, Luciana entra no café e se senta numa mesa ao fundo. Ao lado dela, LAERTE COUTINHO – cartunista da Folha que se veste de mulher – dá uma entrevista a um repórter de TV: refletor acesso, câmera ligada, repórter a postos. João reconhece LAERTE e volta sua atenção para Vilma; repara que ela observa Tom chegar ao corredor e entrar no toalete masculino. Repete-se a imagem já mostrada, mas agora em PLANO APROXIMADO: João faz sinais para Vilma, sugerindo que Tom ficaria feliz se ela o seguisse. Ela o segue. Imagem congela. IRIS OUT TO: INT. ESCRITÓRIO CACO – NOITE. Caco para de digitar. Coça a barba. CACO (lê na tela do laptop) 34 João faz sinais para Vilma, sugerindo ficaria feliz se ela o seguisse. que Tom Tom levanta-se e repete a frase. CACO (em OFF) Hum-hum. Isso ficou uma merda. Ele volta a digitar. IRIS IN TO: EXT. CAFÉ PARIS/JARDINS/SÃO PAULO – NOITE. João – enorme, andando devagar - está saindo do café. Ele vê Marco HELENIO – baixinho, muito magro, de cavanhaque, escondido do outro lado da rua e atravessa a rua: é grande o contraste visual entre os dois. MARCO E aí? Era a capivara mesmo? JOÃO Certeza absoluta. Hoje uma Raimunda vai comer carne de carneiro com caviar. MARCO Eu diria que nos divertimos com a cara de Tom para variar, Leitãozinho querido. JOÃO Foi demais aprontar essa roubada para ele ver como é bom fazer isso com os outros. MARCO O que será que está rolando lá no banheiro? JOÃO (ironicamente) Não sei. Talvez... Quem sabe a gente dá sorte... Um estupro? Voltam a rir com vontade. Um táxi para diante do Café Paris e sai imensa, bem pouco atraente, já sessentona. dele uma mulher Marco para de rir, fitando a mulher, que entra rápido no Café Paris. 35 MARCO Merda! JOÃO O que foi? MARCO Alguma coisa deu errado, Leitão. JOÃO Por quê? O que foi? MARCO Jogamos a capivara errada pra cima de Tom. Foi essa mulher que chegou agora que eu convidei para a entrevista com Tom. JOÃO E quem é a outra capivara? IRIS OUT TO: VOLTAMOS AO ESCRITÓRIO DE CACO. Ele acabou de digitar. CACO Beleza. Ficou redondo agora. IRIS IN TO: INT. CORREDOR DOS TOALETES/CAFÉ PARIS – NOITE. Tom já está com a mão na maçaneta do toalete masculino quando Vilma chega, apontando para ele um revólver calibre 22. VILMA Não, querido. Não é aí. PLANO APROXIMADO de Tom: imóvel, sem olhar para trás. Ele fica imóvel. VILMA Convém saber que essa coisinha aqui está carregada com balas dum-dum. TOM (sem se virar) O outro toalete é o feminino. VILMA E daí? Eu sou mulher. É lá que eu entro. E agora é onde você vai entrar também. 36 Tom se vira para ela. TOM Estou certo de que houve um mal entendido aqui. Você me conhece do Par Perfeito? VILMA Acabou a DR (discussão do relacionamento), bonitão. Entra logo no banheiro senão enfio uma dum-dum no seu rabo. Tom volta-se para a porta do banheiro feminino e entra rápido, seguido de perto por VILMA. INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE. Tom entra. Vilma tranca a porta. TOM O que você vai fazer? Vai me matar? VILMA Vai depender de você, garotão. TOM Fique tranquila. Nada de nervosismo. O que você quer comigo, exatamente? VILMA Tire logo a roupa! A roupa, garotão! TOM O quê? Como assim? O que é que você vai fazer? Ela começa a tirar a roupa. Tom está constrangido, mas começa a despir-se também. VILMA Quanto você calça? TOM 41 VILMA Eu também. Tire os sapatos também. Tom procura tapar o pênis. VILMA 37 Deixe de ser comprometida. convencido, garotão. Eu sou TOM Isso é um assalto? Você vai me deixar pelado aqui? VILMA A ideia é tentadora. TOM Não. Não é o caso, OK? Não, isso é um assalto. O que é, então? VILMA Ainda não é um assalto. Vai ser daqui a pouco. Os dois estão inteiramente nus. Ela tira um boné da bolsa, põe na cabeça e começa a vestir a roupa dele, começando com os sapatos. VILMA (ao comprovar que seus pés se encaixaram bem no calçado) Beleza! Vilma dá uma cutucada nele com a arma. VILMA Olha a dum-dum! Olha a dum-dum! TOM Eu não estou entendendo. VILMA Não precisa entender, garotão. Coloque a minha roupa agora. E rápido! Estou atrasada! Tom se veste rapidinho. TOM E os sapatos? VILMA Isso não é sapato, playboy. É sandália. também. Fique elegante, componha-se! Tom bate uma continência, automaticamente. VILMA Gostei de ver. Milico? Ponha 38 TOM Exército. Tenente. Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva. VILMA Pois faça de conta que eu sou coronel e ponha minha sandália também! Tom obedece e coloca as sandálias. Quase cai: ele é desajeitado, custa a equilibrar-se no salto alto da sandália. (Tom lembra - pela falta de jeito e a masculinidade óbvia que continua a ter mesmo vestido daquele jeito – o personagem de CARY GRANT em “A noiva era ele” (I WAS A MALE WAR BRIDE), comédia ‘maluca’ de Howard Hawks, lançado em 1949). TOM E agora? Ambos estão de roupas trocadas. VILMA (rindo) Você ficou uma graça, playboy. Uma pena não ter uma peruca. TOM E agora? VILMA Agora você fica quietinho aqui. Não faz nenhum barulho, senão eu volto e te dou um trato com a dumdum. Entendido? Tira uma máscara de carnaval da bolsa, com o rosto de Barack OBAMA e a coloca, escondendo o rosto. Ela se olha no espelho. VILMA Estou parecendo homem, não estou? Ela pega a carteira de Tom e tira algumas notas. TOM Pode ficar com o dinheiro, mas deixe os documentos. Por favor. VILMA Você está cheio da grana, hein? É advogado? TOM 39 Não. Roteirista. VILMA Roteirista? Que diabo de trabalho é esse? TOM Sou escritor. Escrevo estórias para cinema, o nome disso é roteiro. Roteiro, roteirista. VILMA Não sou burra. Não precisa explicar tanto. TOM Foi você quem perguntou. VILMA Todo roteirista ganha bem? TOM Não. Só os melhores. VILMA Você ganha muita grana? TOM Não posso reclamar. VILMA Eu também não, playboy. TOM Tem certeza que você não é da área de teatro? Isso aqui é uma espécie de pegadinha, é? VILMA Que conversar com uma dum-dum? TOM Não faço a menor questão. VILMA Que tipo de estória você escreve, playboy? TOM De todo tipo. (pausa) vestido de mulher? Você vai me deixar aqui, VILMA Dê-se por satisfeito por não levar uma dum-dum no rabo. (pausa) Não saia daqui antes de meia hora. 40 TOM Aonde eu iria vestido assim? VILMA Meia hora. Entendeu? TOM (blasè) Se você fizer um diagrama vou entender melhor. Vilma dá uma coronhada no nariz dele, que não chega a sangrar, mas fica bem marcado. Ela tira um batom da bolsa e chega perto dele, com a arma apontada. VILMA Tem razão. Uma mulher tem que se cuidar. Faz assim, faz. Mostra a arma: Vilma faz o gesto com a boca que antecede o batom. Ele repete o gesto dela, oferecendo a boca e ela passa batom nele. Depois, passa coronhada. um pó branco para disfarçar a marca da PLANO APROXIMADO de Tom: ele está constrangidíssimo, mas com a boca bem definida, com batom vermelho, fortíssimo. VILMA (saindo) Não saia antes de meia hora, senão leva bala. OUVIMOS o ruído de uma campainha. O ruído é insistente IRIS OUT TO: INT. ESCRITÓRIO DE CACO – NOITE. Caco ouve o ruído da campainha, mas não parece ter pressa para interromper o trabalho. A campainha não para de tocar. Caco levanta-se devagar, sem pressa alguma, e vai abrir a porta. 41 Tão logo a porta se abre e ROGÉRIO SANTANA – interpretado por ROGÉRIA (vestido de homem, cabelos curtos, corte masculino) – entra de uma vez, sem falar nada. ROGÉRIO O que adianta ter celular se você nunca atende essa porcaria? CACO Quem sabe assim você sossega e fica quieto no Rio? Vá curtir a praia, meu querido. Larga do meu pé. Caco senta-se no sofá pequeno, serve um cafezinho e Rogéria na cadeira dele. CACO O prazo ainda não acabou. Tenho mais uma semana, Rogério. ROGÉRIO Não aguentei de curiosidade. Quero ver como está indo a coisa. CACO Você pode ver pela Internet. Mas só termina quando acaba. ROGÉRIO Deixe de sacanagem. Sou produtor, tenho direito de ver o trabalho. Peguei um avião só para vir falar com você, sabia? CACO Não precisava. Tem telefone. ROGÉRIO Que você não atende nunca quando vê que sou eu. CACO Pegue um celular de um amigo. Com código de área diferente de 21. ROGÉRIO Eu tenho meus direitos. Caco levanta-se, irritado. CACO Vamos esclarecer uma coisa de uma vez por todas. Eu não vou escrever nenhuma porcaria para agradar você e sua turma. 42 ROGÉRIO Ninguém falou em porcaria. CACO Não falou, mas ficou subentendido. Não vou jogar meu nome no lixo para agradar uma merda de produtor. ROGÉRIO Não, meu bem. Se você fizer o que eu pedi você vai agradar é ao seu gerente de banco. O que é que você tem contra ganhar dinheiro, pode me dizer? CACO Nada contra, Rogério. Mas não espere palavrão nesse script, OK? Nem cenas gratuitas de sexo. Nem piadas de mau gosto com gays. ROGÉRIO Sei. E aí o que é que sobra? ... se é que sobra alguma coisa? CACO Uma comédia maluca bem escrita, não uma oportunista, vulgar. Disso ninguém precisa. coisa ROGÉRIO Maluca por quê? O sujeito é doido? A comédia é que é maluca. O personagem, não. Lembra aquelas comédias antigas, em preto-e-branco? ROGÉRIO Atlântida? CACO Não, querido. Hollywood. Hepburn. Anos 40. Sacou? Cary Grant. Katherine ROGÉRIO E você acha que dá conta de escrever um negócio desses? CACO Com uma mão só. ROGÉRIO (desconfiado) Vamos ver o resultado. Depois a gente conversa. IRIS IN TO: 43 INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE. Tom - vestido com a roupa de Vilma, de batom, mas sem peruca tenta achar uma saída: vê uma janela que dá para os fundos. PONTO DE VISTA de Tom, avaliando janela: ele vê que é grande demais. se dá para passar pela o movimento Tom desiste de sair pela janela. Olha-se no espelho e dá um grande suspiro. Ele ajeita os cabelos e vai até a porta. Cuidadosamente, corredor. Tom abre a porta e espia no INT. CORREDOR/CAFÉ PARIS – NOITE. A cabeça de Tom aponta na porta do toalete feminino. O corredor está vazio. Ele toma coragem, prende a respiração e sai. Quando está na metade do corredor, vê Luciana, que vem em direção ao toalete feminino. É grande o susto de Tom ao topar com Luciana. Confuso, sem saber toalete masculino. o que fazer, ele corre na direção do Um idoso – aquele que se irritou com BORK – sai do toalete masculino na mesma hora e os dois trombam. IDOSO Desculpe. Eu não vi a senhora. TOM Eu (tentando afinar a voz ao constatar a proximidade de Luciana) é que peço desculpas. Porta errada! (risos) Tudo bem. O idoso sai corredor afora e Tom volta-se para o banheiro feminino, sem coragem para sair corredor afora. Ele entra, seguido de perto por Luciana. PONTO DE VISTA de Luciana, observando a trombada: ela vê Tom entrar no toalete feminino e o idoso seguir pelo corredor na direção dela. INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE. 44 Tom entra no toalete e corre direto para um dos banheiros disponíveis: entra e tranca a porta. Luciana entra devagar e se posta diante do espelho. Começa a retocar a maquiagem, sem preocupar-se com Tom. Toca o celular que está na bolsa de Luciana. Ela o pega e atende. LUCIANA (olha quem está chamando) Fala, Conceição. Algum problema com os psicopatas? CORTA PARA: INT. QUARTO DOS GÊMEOS/APARTAMENTO/LUCIANA/SP – NOITE. Conceição está amarrada numa cadeira, só de calcinha e sutiã. O telefone fixo está perto do pé descalço dela. PLANO APROXIMADO: com os dedos dos pés ela tecla um número. OUVIMOS o sinal de chamada e, segundos depois, a voz de Luciana. LUCIANA (em OFF) Fala Conceição. Algum problema com os psicopatas? Conceição começa a gemer, pois não consegue falar. LUCIANA (em OFF) Conceição? Você está aí, mulher?! Fale alguma coisa, pelo amor de Deus, mulher! Os tarados amarraram você? Conceição geme, concordando. LUCIANA (em OFF) Você não pode falar? É isso? Conceição geme, concordando. LUCIANA (em OFF) Eles pegaram os patinetes? Conceição geme, discordando. LUCIANA 45 (em OFF) Sei. Eles pegaram o meu carro? Conceição geme, concordando com mais ênfase. LUCIANA (em OFF) Tudo bem, Conceição. Eu tenho GPS, descubro logo onde aqueles tarados foram parar. Conceição geme de novo. CORTA PARA: INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE. Luciana termina a ligação e consulta o GPS do aparelho. CLOSE-UP do aparelho de GPS, representa a posição do carro. com o ponto luminoso que CORTA PARA: EXT. AVENIDA PAULISTA/NOITE – NOITE. Os gêmeos seguem uma moto que leva JESUS na garupa. BORK Será que vai demorar muito? Não quero perder o baile funk. MADS Não vai perder nada, BORK. O baile é bem mais tarde. BORK Maravilha! (pausa) Eles viraram a rua! MADS Eu acho que eles vão roubar uma casa. Senão ficariam aqui mesmo, na avenida. Você não acha que eles ficariam aqui, BORK? BORK Pode apostar. Vai ser um assalto dos grandes. MADS Mas a gente pegou o revólver dele. Vamos devolver? BORK Tem hora que eu penso que você é um estúpido. Claro que não dá para devolver nada. Aquele sujeito deve estar doido para acertar as contas com a gente. 46 CORTA PARA: EXT. CAFÉ PARIS/JARDINS – NOITE. João e Marco HELENIO continuam do lado de fora do Café Paris. JOÃO Está demorando muito, Marquinho. Será que Tom se entendeu com a capivara? MARCO Fala sério, Leitão. Lógico que não. Ele deve estar azarando outra mulher qualquer. Estupro abre o apetite. (risos) Os dois riem com gosto. João observa a chegada da moto conduzida por PILATOS, com JESUS na garupa. Eles escondem a moto atrás de um carro, mais adiante, mas ainda no campo de visão de João. JOÃO Aqueles motoqueiros coisa, Marquinho. vão aprontar alguma. Ali tem Os dois procuram fugir do campo de visão dos bandidos. VEMOS PILATOS pegar dois revólveres do pequeno bagageiro da moto e entregar um a Jesus. JOÃO (em voz alta) Vamos chamar a polícia, Marquinho! Você viu? Eles estão armados! PILATOS ouve o que João falou, cutuca Jesus e os dois se aproximam de João e Marco, que ficam trêmulos, morrendo de medo. PILATOS Quem você disse que ia chamar, gordão? JOÃO O que isso!? Não precisa chamar ninguém. Bobagem. Nós não temos nada com isso. MARCO Pode ficar tranquilo que aqui ninguém vai chamar a polícia. 47 PILATOS dá uma coronhada fortíssima na cabeça de João e Marco HELENIO sai correndo. Jesus joga o revólver nas costas de Marco, que cai, mas se levanta e foge. PILATOS dá uma pancada na cabeça de Jesus. JESUS (a Marco, gritando) Ai, ai, ai! Se você chamar a polícia a gente apaga esse gordão! PILATOS (a Jesus) Quer perder esse berro também, otário?! PONTO DE VISTA de PILATOS: Marco foge a toda velocidade, sem olhar para trás. JESUS Será que ele vai chamar a polícia? PILATOS Duvido. Ele sabe que o gordão está conosco. JESUS O que a gente vai fazer? Vamos desistir? PILATOS Agora não tem mais jeito. Vilminha está lá dentro, esqueceu? JESUS Merda! É mesmo! PILATOS Vamos dar um tempo aqui fora e ver se o magrelo chamou a polícia. Talvez ele não faça nada, com medo da gente detonar esse saco de banha. Eu vou fazer o serviço sozinho. Você fica aqui fora vigiando esse gordão. JESUS E se ele acordar? PILATOS (irônico) Aí você dá um beijo na bochecha dele, Jesus. Está bom assim pra você? 48 IRIS OUT TO: INT. ESCRITÓRIO CACO – NOITE. Caco está fumando um cigarro de maconha, coçando a barba. CACO GPS? GPS? Será? Ele dá uma espiada no i-phone. CLOSE-UP do aparelho com um ponto luminoso em destaque no GPS. IRIS IN TO: VOLTAMOS AO TOALETE DO CAFÉ PARIS. Luciana vê o ponto luminoso movendo-se. CLOSE-UP do celular de Luciana, exatamente igual ao de Caco. LUCIANA Não é possível! Eles não podem estar aqui perto. Luciana sacode o celular. LUCIANA Vou vender essa porcaria. TOM (voz natural) Luciana? Luciana olha para o banheiro de onde veio a voz: a porta está trancada. LUCIANA Quem está aí? Vou chamar toalete feminino, sabia? a segurança. Aqui é o TOM (em OFF) Claro que é, eu sei. Mas acredite em mim, por favor. Eu não tive alternativa. Se você subir aqui ao lado vai me ver. Juro que estou vestido. Não sou nenhum tarado. Ela entra no banheiro ao lado e sobe no vaso. TOM Pode olhar. 49 Luciana olha para onde está Tom. Ele olha para ela e dá um TCHAUZINHO sem graça. LUCIANA Você é um travesti? TOM Não! De jeito nenhum! Deixe-me sair que eu explico tudo. Pode ser? Promete que não vai gritar? LUCIANA Quem você está pensando que eu sou? Mais fácil você gritar por socorro do que eu. Sou faixa preta de judô, meu bem. TOM Ótimo. Posso sair numa boa? LUCIANA Você já fez o que tinha que fazer? TOM Eu só entrei aqui para me esconder, Luciana. LUCIANA Como você sabe meu nome? TOM Há uma explicação razoável, eu prometo. Posso sair? LUCIANA Claro que pode. Constrangido, Tom sai. LUCIANA (rindo) Tem certeza de que não é um travesti? TOM Você já viu algum travesti com esse corte de cabelo? LUCIANA Não. Você é mesmo o primeiro. (risos) Roubaram a sua peruca? TOM (sério) Não. A peruca, não. Roubaram as minhas roupas. 50 LUCIANA E porque alguém faria uma coisa dessas? TOM Uma mulher da gangue pegou as minhas roupas para fingir que é homem. Exatamente nesse momento o restaurante deve estar sendo assaltado. LUCIANA (empalidecendo) Tem certeza? TOM Absoluta. Pensei em escapar pela janela e chamar a polícia, mas não me cabe. LUCIANA Deixe comigo que eu chamo agora mesmo. TOM Melhor não. Se a gente estivesse em Nova York seria a coisa certa a fazer. Mas não aqui em São Paulo. LUCIANA Por que não? TOM Por que a polícia paulista é ainda pior do que qualquer assaltante. A gangue pode fazer reféns, matar alguém, entende? LUCIANA Eles são perigosos? TOM A mulher que pegou as minhas roupas é perigosa. Os outros devem ser também. LUCIANA Está certo. Nada de polícia. E o que a gente vai fazer? Ficar de braços cruzados? TOM É só o que a gente pode fazer. Eles vão limpar os clientes e cair fora. Tom vai até a porta do toalete e a tranca. LUCIANA Por que você fez isso? 51 TOM É para nossa proteção. Fique tranquila. LUCIANA Tudo bem. Agora você vai dizer como é que adivinhou meu nome. Não pense que eu me esqueci, senhor travesti. TOM Quantas vezes eu vou nenhum travesti? ter que falar que não sou LUCIANA Você é muito mal humorado. TOM Não dá para ter bom humor vestido desse jeito. LUCIANA Chega de enrolação. Você é meu vizinho? Mora no meu prédio? Não está me encontros. TOM reconhecendo? Sou Tom, do site de LUCIANA Tom? É mesmo você? TOM Em carne e osso. LUCIANA Meu Deus! É mesmo você, Tom. Ela abraça Tom, aninhando-se nos braços dele. LUCIANA (fingindo fragilidade) Ah, querido! Que bom que você está aqui para me proteger. EXT. CAFÉ PARIS – NOITE. PILATOS e Jesus ainda conversando. PILATOS Fique de olho no gordão. Parece que ninguém chamou a polícia. JESUS 52 É. A barra por aqui está limpa como a consciência de um pastor. PILATOS Você tem cada exemplo besta. JESUS (ares de inteligente, mas repetindo o que ouviu) Claro que tem pastor que usa a igreja para lavar dinheiro. Aliás, como é que se pode lavar dinheiro? PILATOS Você fique quieto aqui. Qualquer coisa, você chama no celular. Não tire os olhos do gordão. me PLANO APROXIMADO: João continua desacordado. JESUS Sacanagem. Eu queria participar. PILATOS É melhor assim. A moto só dá para dois mesmo. Fique na sua, só observando e caia fora antes da confusão. Qualquer coisa você me chama no celular. Beleza? JESUS Beleza. Os dois trocam um cumprimento batendo as mãos. O carro dirigido por BORK passa devagar por Pilatos e Jesus. Jesus não repara no motorista, mas PILATOS repara em BORK disfarçado. PONTO DE VISTA de Pilatos: BORK de óculos escuros e boné, ao volante. O carro estaciona bem mais à frente do ponto em que estão os bandidos. PONTO DE VISTA de BORK: observando o luminoso em que se lê CAFÉ PARIS. PILATOS atravessa a rua e se aproxima da moça que atua na reserva das mesas, ao lado de um segurança forte, todo vestido de preto. PILATOS (apontando a arma para o segurança) Acabou o movimento quietinhos e entrar. de hoje. Vamos ficar bem 53 A moça e o segurança ficam imóveis. PILATOS Vamos lá. Devagar. E tranquem a porta depois de entrar. Sem afobação, bem quietinhos. (ao segurança) Meu companheiro está lá dentro, de modo que você não tente bancar o espertinho, viu? Todos entram e é trancada a porta de acesso ao bistrô. Perto dali, BORK estaciona o carro. IRIS OUT TO: INT. ESCRITÓRIO DE CACO – NOITE. Caco está digitando algo no laptop, quando toca a campainha do celular. Ele atende sem deixar de olhar para a tela no laptop. CACO Caco SELIGMAN. Pois não. A porta se abre e Rogério entra escritório adentro, com o celular dele no ouvido. Os dois desligam seus celulares. ROGÉRIO Esqueci uma coisa importante, querido. CACO (sem paciência) Vê se me esquece, Rogério. Eu ainda tenho uns dias. Vê se me deixa trabalhar. ROGÉRIO Nessa crise toda, ninguém quer produzir um filme que tenha muitos atores ou muitas locações. Jamais se esqueça disso. CACO Vou escrever mais de cento e vinte páginas, equivalentes a 150 no formato usado em LA. Dá uma minissérie, sabia? ROGÉRIO O mesmo raciocínio vale para as séries. Aliás, vale ainda mais para séries e minisséries. CACO 54 OK, Rogério. Vou lembrar-me disso. Nada de muitos personagens. ROGÉRIO Nada de muitas locações também. Faz de conta que é você que vai tirar dinheiro de sua conta e produzir o filme. Começa a empurrar Rogério para fora do apartamento. CACO Prefiro fazer de conta que peguei o dinheiro que havia em minha conta e fui para o Caribe. Fecha e tranca a porta depois de Rogério ser colocado para fora. INT. CAFÉ PARIS/JARDINS – NOITE. A casa está lotada. CAM em FAST MOTION: em ritmo frenético, os clientes saem do recinto, um a um, até que só permanecem no salão Laerte, o cartunista da Folha de S. Paulo, o repórter de TV, o CABOMAN e o CAMERAMAN, além dos garçons (dez). CACO (em OFF) Tem garçom demais para cliente de menos. Um a um, os garçons desaparecem instantaneamente, como num passe de mágica. No lugar do último sai uma fumaça esverdeada. CACO (em OFF) Opss. Tem que ficar pelo menos um. Da mesma forma sumiu, reaparece o último garçom, que vai de servir à mesa de LAERTE. CACO (em OFF) Show de bola. IRIS IN TO: EXT. CAFÉ PARIS/JARDINS/SÃO PAULO – NOITE. BORK e MADS aproximam-se devagar e surpreendem Jesus. BORK dá choques elétricos nele e MADS joga spray de pimenta nos olhos dele. 55 BORK bate o revólver (que tomou do marginal) no joelho dele, com força e Jesus cai de joelhos. PLANO APROXIMADO de Jesus, horrorizado ao reconhecer BORK e MADS. JESUS Você! BORK dá nele uma coronhada fortíssima e Jesus também desmaia. MADS vê João caído no chão, desfalecido e o aponta para BORK. BORK E esse aí? Quem será? MADS (rindo) Deve ser Orca, a Baleia Assassina. MADS examina João. BORK Esse aí está mais para Bela Adormecida. Deixe o príncipe aqui dar um beijo nele que logo acorda. BORK regula o aparelho e dá um choque elétrico leve na bunda de João, que acorda de uma vez. JOÃO Ei! O que houve? Cadê? Cadê? Confuso, ele olha para BORK com os olhos arregalados. BORK Boa noite, senhor. O senhor está passando bem? JOÃO Quem são vocês? BORK Isso é informação demais para você, bolão. João vê Jesus desmaiado perto dele. JOÃO (só então parece lembrar-se) Eles vão assaltar o Café Paris! BORK (sorrindo) Jura? Tem certeza? 56 MADS (apontando Jesus) Esse aí não assalta ninguém. JOÃO Vamos chamar a polícia! BORK regula o aparelho de choques elétricos mais uma vez e dá novo choque em João, que cai desmaiado outra vez, ao lado de Jesus. BORK Nada de polícia, bolão. Nós é que vamos resolver essa parada. MADS No que você está pensando, BORK? Vamos entrar bandidos. BORK pelos fundos e dar um susto nos MADS Vamos ficar famosos, BORK! Entra na trilha a música começam a dançar de novo. de funk instrumental e os BORK Vamos ficar famosos! Vamos ficar famosos! ficar famosos! Vamos ficar famosos! Vamos famosos! Vamos ficar famosos! Vamos ficar MADS Vamos ficar famosos! Vamos ficar famosos! ficar famosos! Vamos ficar famosos! Vamos famosos! Vamos ficar famosos! Vamos ficar dois INT. CAFÉ PARIS/JARDINS/SÃO PAULO – NOITE. O segurança e a recepcionista – com a arma de Pilatos apontada – acabam de trancar a porta. Pilatos dá um chute no segurança e empurra a recepcionista, apontando uma das duas portas que há na antessala de acesso ao salão onde ficam os clientes. PILATOS Que porta é essa? SEGURANÇA É o banheiro dos empregados. PILATOS 57 E a outra? RECEPCIONISTA É a porta de entrada. PILATOS Para que duas portas de entrada? Uma só não basta? Dá mais um chute no segurança. PILATOS Passa o celular! Rapidinho! Estou com pressa! Os dois entregam seus celulares. PILATOS Entrem logo no banheiro. Vamos! A recepcionista entra e logo em seguida o segurança. Pilatos dá uma pancada forte com o revólver na cabeça do segurança, que desmaia. A recepcionista começa a gritar e também toma uma coronhada, desfalecendo também. Pilatos sai e tranca a porta com os dois lá dentro. INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE. Luciana e Tom ainda no toalete feminino. Ele tenta ouvir algo do que imagina ser um assalto. TOM Merda! Não estou ouvindo nada! LUCIANA Engraçado. Está quieto demais. Vamos lá? TOM Nem pensar. Ficou maluca? LUCIANA E o que é que a gente faz? TOM Não há nada que nós possamos fazer. Vamos ficar quietos aqui e esperar o fim do assalto. LUCIANA Detesto esperar sem fazer nada. 58 TOM Eu também. A gente arruma alguma coisa para fazer. É o mais prudente. LUCIANA Eu me sinto protegida estando com você, querido. TOM Adoro tomar conta de você, minha linda. LUCIANA (dengosa) Você é sempre carinhoso assim, é? Eles se olham bem de perto. Sentem o hálito um do outro e vice-versa. TOM Não. Só quando estou ficando apaixonado. LUCIANA Está é? TOM Estou. Cada vez mais apaixonado. LUCIANA A porta está mesmo trancada? TOM (piscando para ela) Trancadíssima. Luciana dá uma olhada diferente para Tom. Ela repara nos rosto dele, nas pernas bem feitas. Tom também olha com interesse para Luciana, muito sensual no vestidinho justo. De repente os dois se atracam e começam a se beijar com ardor. CORTA PARA: EXT. FUNDOS DO CAFÉ PARIS – NOITE. BORK e MADS descem de um pequena, com uma janela. muro BORK enfia a cabeça na janela. alto e se veem numa área 59 INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE. A cabeça de BORK aparece no basculante da janela, explorando o ambiente. Ele vê Tom e Luciana atracados. Não reconhece encoberto. Luciana, que está com o rosto parcialmente A cabeça de BORK desaparece no basculante. EXT. FUNDOS DO CAFÉ PARIS – NOITE. MADS aguarda o resultado da exploração feita por BORK. MADS E aí? Onde dá essa janela? BORK Legal! Acertamos na mosca! Acho que é o toalete feminino do café. Eu vi duas mulheres se beijando, argh! Que nojo! MADS Eca! Não tem nada mais feio do que duas mulheres se beijando. BORK Aposto que tem sim, MADS. (pausa; subitamente animado) Vamos apostar? MADS O que nós vamos apostar? BORK Se existe alguma coisa mulheres se pegando. MADS Aposto que não. BORK Eu aposto que tem. MADS O quê? BORK Bunda de chimpanzé! mais feia do que duas 60 MADS Você ganhou dessa vez, seu cão sarnento! Os dois batem as mãos no estilo das gangues de americanos, com muitos estalos e ruídos bem sonoros. filmes E peidam juntos. Os dois riem pra valer. INT. CAFÉ PARIS/SÃO PAULO – NOITE. Pilatos entra devagar no interior do salão e repara que o repórter de TV está gravando uma entrevista com Laerte Coutinho. Pilatos esconde-se atrás de uma pilastra e presta atenção na entrevista de Laerte. REPÓRTER O que significa a palavra CROSSDRESSER? LAERTE Significa que um sujeito gosta de usar roupas e acessórios femininos. REPÓRTER É a mesma coisa que travesti? Pilatos parece absorvido pela entrevista. LAERTE Absolutamente. Travesti tem um sentido de inadequação interior, uma conotação pejorativa, você entende? REPÓRTER Não deixa de ser a realização de uma fantasia. LAERTE Exatamente. No carnaval muitos homens vestem-se de mulher na base da gozação. Mas essa turma está mesmo é realizando uma fantasia. E alguns certamente estão querendo mesmo é colocar para fora sua homossexualidade. REPÓRTER Foi difícil tomar a decisão de ser CROSSDRESSER? LAERTE Eu escolhi não viver a minha homossexualidade por décadas. Não tinha mais como não ser eu. 61 Pilatos parece hipnotizado pelas coisas que Laerte fala. REPÓRTER Você sentiu preconceito com sua decisão? LAERTE Tive a minha primeira relação sexual aos dezessete anos. Com um homem. Depois eu me casei três vezes e tive três filhos. REPÓRTER Por quê? PLANO APROXIMADO de Pilatos: ele está muito pensativo. LAERTE Por puro pânico. Não é que eu não tenha prazer ou não tenha tido nenhum tipo de desejo por mulheres. É que eu estava vivendo um estado de negação permanente. Pilatos começa a jeito sonhador. sonhar de olhos abertos, suspirando, com As imagens do sonho dele (a seguir) devem ser em sépia, ligeiramente distorcidas, caracterizando o contraponto com a ‘realidade’. Pilatos começa a imaginar-se num videoclipe, reproduzindo e atualizando o filme original da banda QUEEN (https://www.youtube.com/watch?v=f4Mc-NYPHaQ). É uma cena apoteótica e imprevista de musical americano, com coreografia inspirada no clip e locações diferentes, como um novo clip feito com Pilatos dublado por Fred Mercury. Não há absolutamente nada de pejorativo ou grotesco: PILATOS está mesmo concentrado na execução da coreografia, como se fosse o próprio FRED MERCURY; está feliz por estar fazendo o vídeo do artista que ele adora. CORTA PARA: INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE. Tom e Luciana continuam grudados. BORK e MADS comprimem-se no melhor o interior do toalete. basculante, tentando observar 62 Durante um beijo Tom dá uma olhada na janela e repara nos vultos de BORKS e MADS. PLANO APROXIMADO: os vultos de MADS e BORK, no ponto de vista de Tom. Tom sussurra algo no ouvido de Luciana e ela responde, também em voz baixa. TOM Tem alguém observando a gente. Não vire o rosto. LUCIANA Quem você acha que é? Será que é a polícia? TOM Não acredito. Se fosse a polícia isso aqui já teria virado um inferno. LUCIANA O que você quer fazer? TOM Vamos chegando para perto da janela. Sem que ele perceba. OK? LUCIANA Está certo. Vamos lá. TOM Devagar, senão ele percebe. Tom e Luciana vão se aproximando do basculante, ainda abraços. Os gêmeos continuam observando no basculante. De repente, Tom dá um pulo pegando BORK pelo pescoço. e enfia a mão no basculante, TOM Peguei! BORK Larga o meu pescoço! Me larga! Travesti desgraçado! Tom segura firme. BORK Dá um choque nele, MADS. Jogue o spray nele! 63 Ao ouvir – e reconhecer - a voz dos meninos, Luciana corre para o banheiro, em pânico. Fica parcialmente dentro, com a cabeça de fora. VEMOS que MADS aproxima o aparelho da mão de Tom e lhe dá uma descarga elétrica. Tom dá um grito de dor, mas volta-se com rapidez e pega MADS de surpresa, tomando dele o aparelho elétrico. BORK tenta borrifar o spray de consegue tirar o rosto a tempo. pimenta em Tom, mas ele TOM Temos dois durões aqui, hein? Vocês precisam de uma lição. Ato contínuo, Tom puxa o menino com força. BORK, arrastado por Tom, cai no chão do toalete, atordoado. Luciana entra de corpo inteiro no banheiro, trancando a porta. MADS, assustado, fecha o basculante. TOM É um menino! É só um garoto. (pausa) Luciana? (olha em todas as direções) Luciana? PLANO APROXIMADO assustada. de Luciana dentro do banheiro, LUCIANA Eu estou aqui. Não quero ver ninguém! TOM Calma, minha linda. É só um menino. No banheiro: LUCIANA Tire ele daqui! Tire ele daqui! TOM Ei, garota?! O que foi que houve? Qual é a encrenca? LUCIANA (em OFF) Esse é o toalete feminino! Menino não pode ficar aqui! TOM ainda 64 Está certo. Calma. Vou resolver isso. Luciana continua presa no banheiro. BORK começa a recuperar-se do tonteio. BORK Ai, ai, ai, ai, ai. TOM O que você está fazendo aqui, menino? BORK Você é um travesti? TOM O que você acha? BORK Cadê sua peruca? Ajuda BORK a levantar-se. E dá um puxão de orelhas forte nele. BORK Ai, ai, ai, ai, ai. TOM Responda logo senão eu arranco fora a sua orelha. BORK Meu nome é BORK. TOM Quem estava com você ali atrás (aponta o basculante)? BORK Por que você quer saber? Mais um puxão de orelhas e mais um grito de dor. TOM Eu: perguntas. Você: respostas. Estamos entendidos? BORK faz sinal que sim com a cabeça. BORK Fuja! Vá embora, MADS! Tom vira o nariz dele para cima (como fazia MOE, dos Três Patetas) e BORK grita de dor mais uma vez. 65 BORK Ai, ai, ai, ai, ai. TOM Você é abusado, hein cabeça de fogo? BORK Por favor, pare! Pare, por favor! MADS: faça alguma coisa! MADS (com a cabeça no basculante) Fazer o quê, BORK? TOM Saia daí você também, pentelho! BORK Não saia, MADS! Não saia! Tom dá um longo suspiro. TOM OK. Que ele fique lá. Vamos conversar primeiro. BORK Travesti! Tom dá uma tapa no rosto de BORK, que fica surpreso. TOM Você vai parecer um ser humano educado nem que eu tenha que dar-lhe uma surra. BORK Vou denunciar você, tia. Vou denunciar você baseado no estatuto do adolescente. Tom dá mais uma bofetada nele. TOM Se me chamar de tia outra vez vou bater com a mão fechada. Entendeu? BORK Entendi. TOM 66 Vamos começar tudo de novo, OK? Eu pergunto e você responde. Nada de gracinhas, que a minha paciência já acabou. BORK fica quieto. Tom dá mais uma bofetada em BORK. TOM Tem uma coisa que me tira do sério, sabe qual? É menino mal educado. Entendeu? BORK Entendi. TOM Bom. Vamos lá. Sem mentiras senão leva bolacha. O que você e aquele outro cabeça de fogo estão fazendo aqui? BORK Nós viemos ver o assalto. Depois vamos a um baile funk. TOM Vocês sabem que o restaurante está sendo assaltado? Como ficaram sabendo? BORK (com as bochechas vermelhas) É uma estória longa, tia. Opa! Desculpe! Tia, não! Não me bata mais, por favor! Tom faz menção de bater de novo (BORK recua), mas não faz isso. BORK Sem sacanagem. Tio. TOM Assim está melhor. (pausa) passarinho cantar. Vamos lá. Quero ver o BORK Eu e meu irmão seguimos um sujeito que veio para cá com um amigo dele. Lá na Avenida Paulista. TOM Seguiram como? BORK De carro. 67 TOM Vocês estão com motorista? Carro de quem? BORK O carro é de meu pai. Eu é que sou o motorista. TOM Onde aprendeu a dirigir? BORK Em Copenhagen. Minha mãe ensinou. TOM Dinamarca? BORK É. Eu e meu irmão MADS nascemos lá. TOM Seu pai está sabendo que você dirige por aí? BORK A essa altura ele já deve saber. TOM E ele não se importa? BORK Ele se importa sim. A gente pega o carro escondido dele. Sem ele saber. TOM Você é bem esperto, cabeça de fogo. Muito esperto. Mas ainda não me disse exatamente o que vocês dois vieram fazer aqui no Café Paris. BORK Nós viemos surpreender os assaltantes e impedir o assalto. Tom começa a rir. Ele bate com o nó dos dedos na cabeça de BORK. Tem alguém merda? TOM aqui? Tem alguém nessa cabecinha de BORK dá um chute no saco de Tom e corre para o basculante, tentando escapar. 68 Tom dobra-se, gemendo de dor, mas alcança BORK e faz a mesma coisa nele. O garoto deita no chão, gemendo. TOM Além de mal educado você por acaso é burro também? Como é que você pretende impedir o assalto, posso saber? BORK Nós temos uma arma. TOM De verdade? BORK Claro que é de verdade. De mentira não teria nenhuma utilidade. TOM É de seu pai? BORK Não. Nós tomamos do bandido que a gente seguiu. TOM Tomaram? BORK Sim. Esses bandidos são muito incompetentes, você não acha? TOM Acho. E onde está essa arma? BORK aponta o basculante. BORK MADS! Passe a arma. VEMOS o enorme COLT 44 despontar no basculante. Tom pega o revólver, alcance de BORK. olha com atenção e coloca TOM UAU! É verdade! Vocês deram conta do marginal! BORK E aí? Vamos lá resolver logo essa parada? longe do 69 TOM Quem resolve isso é a polícia. Ninguém sai daqui. Vamos esperar acabar esse assalto aqui. BORK E aquela mulher que você estava beijando? TOM O que é que tem ela? BORK (aponta o único banheiro com porta fechada) Por que ela fica trancada lá? TOM Ela está com vergonha de você, cabeça de fogo. Isso aqui é o toalete feminino, deu pra sacar? MADS aponta a cabeça no basculante. MADS Por que você está se vestindo de mulher? TOM Eu conto depois que você entrar e me explicar o que é que dois gêmeos da Dinamarca vieram fazer aqui. (estende a mão para MADS) Fechado? Ainda atrás do basculante, desconfiado, MADS aperta a mão de Tom. BORK Venha se juntar a nós, MADS. (zombeteiro:) A tia aqui é gente boa. MADS entrega o tubinho de gás pimenta e o aparelho que dá choques elétricos a Tom, que o ajuda a passar pelo basculante. Tom regula o aparelho de choques. E dá uma descarga em BORK. TOM (dando uma descarga em BORK) Você já me cansou a beleza, realmente empatados agora. menino. Estamos PLANO APROXIMADO: BORK tremendo sob a ação dos choques, com cabelo arrepiado. IRIS OUT TO: 70 INT. ESCRITÓRIO DE CACO – NOITE. Caco diante do laptop. Na trilha, outra música do B-52. A fumaça de maconha está concentrada em torno dele, que está rindo do que acabou de escrever. Toca o celular. A tela se parte em duas metades: Caco e Rogério (na casa dele): ROGÉRIO Tem alguém vivo no meio dessa fumaça toda? CACO Insônia brava, hein? ROGÉRIO Estou preocupado, Caco. De verdade. CACO É meu método de trabalho. Pode ter certeza: vegetal não me atrapalha em nada. Pelo contrário. ROGÉRIO Não é isso. Por mim você pode fumar Tarantino inteiro que não estou nem aí. o o Quentin CACO Ainda tenho três dias. Já deixei de cumprir algum prazo? ROGÉRIO Você chegou à metade do segundo ato e até agora nada de assalto. CACO A encrenca agora é o assalto? A merda do assalto? ROGÉRIO Você esvaziou o lugar, Caquinho querido. Esse assalto está demorando muito e quando acontecer não vai ter graça nenhuma. CACO Mas não foi você quem pediu para reduzir o número de personagens? ROGÉRIO 71 De pra você entender muito espertinho para cima de mim. bem. Não se faça de CACO Você tem que mudar seu modelo mental, Rogério. Pare de pensar que o espectador é burro. ROGÉRIO Pode não ser burro. Mas é conservador. Que fixação é essa com travesti, homem? Diz aqui para o papai: você está pensando em sair do armário? IRIS IN TO: INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE. MADS ataca Tom, que o segura pelo pescoço e, mantendo-o preso, Tom dá mais um choque elétrico em BORK. BORK desmaia e Tom o apoia para evitar que ele bata a cabeça na parede, colocando-o com cuidado no chão. MADS O que você fez com meu irmão? MADS corre até BORK e balança o corpo dele, desesperado. MADS BORK! Você está bem, BORK? BORK?! MADS começa a chorar. TOM Calma, menino. Não precisa chorar. Ele está bem. É bom para acalmar ele um pouco. Seu irmão é muito tenso. MADS (com raiva) Por que você fez isso com ele? Meu irmão é incapaz de fazer mal a alguém. TOM Deu para perceber, cabeça de fogo. Relaxe. Vamos bater um papo. VAMOS ao BOX em que Luciana está fechada: ela está fazendo relaxamento muscular, em busca de uma posição mais confortável, pois é muito apertado lá dentro. VOLTAMOS a Tom e BORK. MADS 72 O meu nome é MADS. TOM Número dois está bom pra mim. MADS (apontando a direção do salão) Você não está curioso acontecendo lá dentro? para saber o que está TOM Provavelmente não está acontecendo nada. O assalto já deve ter acabado. MADS Está quieto demais para um lugar que foi assaltado, você não acha? TOM Nisso eu concordo com você, número dois. MADS Você ainda não respondeu minha pergunta. TOM Não me visto sempre assim, cabeça de fogo. MADS Você também é transexual? CORTA PARA: PLANO APROXIMADO de Luciana (ainda assustando-se com a pergunta de MADS. trancada no banheiro), TOM Eu não sou transexual nem também. ‘Também’ por quê? MADS Nosso pai também é transexual. Mas ele não gosta dessa palavra. TOM Eu também não. Mas é melhor do que travesti. MADS Traveco é pior ainda. TOM E o que você acha constrangimento? disso? Tem algum tipo de 73 MADS confirma que BORK está mesmo desmaiado. MADS Eu não dou importância para isso. Ter duas mães até que seria bom, já que uma está morta. É matemática pura, não? TOM Seria? MADS Nossa mãe morreu Copenhagen. de câncer há dois anos. Em TOM Por isso vocês vieram para Sampa. Ficar com seu pai. PLANO APROXIMADO ouvindo. de Luciana, emocionada com o que está MADS Minha mãe conheceu meu pai há muito tempo, quando ela era muito jovem. Ela nunca mais teve contato com ele, mas o advogado dela veio ao Brasil e trouxe BORK e eu. TOM Vocês não gostam de morar em São Paulo? MADS Eu gosto. Mas BORK quer voltar para Copenhagen. PLANO APROXIMADO: Luciana está atrás da porta do banheiro. atenta, ouvindo a conversa, TOM Vocês têm parentes lá? MADS Não. Nenhum parente. Na verdade o problema é outro. TOM BORK não aceita a identidade sexual de seu pai? MADS Ele diz que não. Mas eu sei que o problema não é esse. TOM Você está esperando que eu implore? Não estou com essa vontade toda de saber qual é o problema de Número Um. 74 MADS BORK sente falta de carinho. Nossa mãe era muito carinhosa e nosso pai é sempre muito distante. BORK fica revoltado. CLOSE-UP: Luciana, pensativa, sempre no banheiro. continua ouvindo a conversa, TOM Mas isso não incomoda você. MADS Não. Cada pessoa é de um jeito. É civilizado respeitar a orientação sexual do outro, não? TOM Você é um sujeito bem razoável, Número Dois. Você bem que podia ser o macho alfa da dupla. MADS (rindo) E você acha que não tentei? BORK é mais forte do que eu. Batidas na porta interrompem a conversa. Tom acha que é Luciana. Encosta o ouvido na porta do banheiro em que ela está. TOM Luciana? É você? DO LADO DE DENTRO do sanitário. LUCIANA Eu o quê? OUVIMOS mais batidas na porta. VOLTAMOS AO AMBIENTE PRINCIPAL, fora dos BOX dos sanitários. TOM (bate na porta) Esquece. Vou ver quem é. Fique aí. Tom pede silêncio (com gestos) vai até a porta de saída do toalete e encosta o ouvido direito na porta. Novas batidas. 75 A PARTIR DAQUI, VAMOS para dentro e para fora do toalete, acompanhando Vilma e Tom em lados diferentes da porta: um de dentro a outra de fora. VILMA Ei você aí do banheiro! Está ouvindo, playboy? Abra a porta. Precisamos conversar. TOM Você já levou meu dinheiro e a minha roupa. O que mais você quer? VILMA Conversar. Vou devolver sua grana. TOM Converse daí mesmo. VILMA Abre essa merda logo senão eu mando uma dum-dum e arrebento essa porta. Tom vai até BORK e puxa o corpo dele para o box ao lado do que é ocupado por Luciana. TOM (a MADS, sussurrando) Entre aqui também! Rápido, Número Dois! MADS pega a arma e a oferece para Tom, que não aceita ficar com o revólver. Tom esconde a arma. MADS insiste e ele fica com o spray de pimenta. Tom abre a porta e Vilma entra. VILMA Que cheiro esquisito é esse? TOM Você queria o quê? Chanel número 5? Até Marilyn Monroe fazia cocô fedido. VILMA (aspirando o ar) Não. Tem alguma coisa diferente aqui. Parece pimenta. Ela olha as duas portas fechadas. 76 VILMA Tem alguém aí com você? Tom fica tenso. TOM Você disse que queria conversar. VILMA Quero mesmo. Tire a roupa, por favor. TOM Outra vez? VILMA Outra vez, sim. Qual é o problema? Gostou da minha roupa? TOM Esse assalto está virando uma anarquia. ficar pelado aqui de jeito nenhum. Não vou VILMA Quem disse que você tem que ficar pelado? TOM E que roupa eu vou vestir? VILMA Você é nervoso demais. Uma dum-dum vai acalmar você, playboy. TOM Você vai mesmo devolver a minha roupa? VILMA Não vou devolver merda nenhuma. Estou assim. (pausa) Pilatos! Entre, Pilatos. muito bem Pilatos entra. Parece diferente, um pouco distante. TOM Pilatos? PILATOS (distraído) Algum problema? É Pilatos sim. TOM Um nome bem pitoresco esse seu. Seu pai é evangélico? 77 PILATOS Como é que você sabe? TOM Eu conheci um pastor chamado Sinédrio Espírito Santo. Ele me disse que tinha um filho com nome de Pilatos. PILATOS Mundo pequeno esse. Está vendo como tem a mão de Jesus em tudo? VILMA Tire a roupa logo, playboy. É ele que vai usar meu vestidinho. TOM Esse vestido não cabe nesse sujeito de jeito nenhum. Vilma dá um chute no saco de Tom, que geme com vontade. Pilatos parece estar em dúvida. VILMA Mais respeito, playboy. TOM E Herodes? Tem algum Herodes na família? PILATOS Cale a boca. Estou pensando. TOM Família grande, hein? VILMA Qual é a encrenca agora? Tom começa a tirar o vestidinho. PILATOS Pode parar. Tom olha para Vilma. VILMA (a Pilatos) Parar por quê? PILATOS. 78 Ele está certo. Eu vou ficar ridículo nesse vestido. Olha só (mostra Tom). Patético. Não quero ser uma caricatura grosseira, Vilminha. TOM (a Vilma) Eu também não quero ser uma caricatura grosseira. Vilminha. VILMA Vilminha é a sua mãe, playboy. VILMA (a Pilatos) Vamos embora, PI. Isso aqui não dá mais caldo. Onde é que foi parar o filho da mãe do Jesus? TOM PI? E a minha roupa? Vilma Vou ficar com ela. Algum problema? TOM. Nenhum. Absolutamente nenhum. VILMA Cadê Jesus? Ele já chamou o táxi? TOM Táxi? Táxi pra quê? PILATOS Já está esperando. TOM Vocês não acham isso precário demais? PILATOS Do que esse traveco está falando? VILMA Fale em língua de gente, playboy. TOM Táxi? Hummm. Assaltante que se preze não anda de táxi. VILMA Qual é o seu problema? Não cabe todo mundo na moto de Jesus. 79 TOM Não haveria, por acaso, nenhum BARRABÁS? Pilatos aperta o saco de Tom. TOM O que é isso, PI? Ficou maluco? VILMA Vamos logo embora, PI. Eu estou quase perdendo a paciência com esse traveco. PILATOS Não admito gozação com minha família. VILMA O irmão mais novo dele se chama BARRABÁS. TOM E o mais velho é você? PILATOS Vamos deixar de conversa fiada. TOM E o assalto? VILMA Não tem mais assalto. Pilatos desistiu do assalto. PILATOS Desisti mesmo. A partir de agora sou uma mulher de respeito, não assalto mais. TOM O quê? Desistiu? (a Vilma) Você me trancou aqui esse tempo todo vestido de mulher e agora diz que não tem assalto?! VILMA Não sei o que deu na cabeça dele. O assalto era para conseguir dinheiro para fazer a cirurgia. TOM Ele está doente? PILATOS Tenho cara de quem está doente? Tom olha fixamente para Pilatos. 80 TOM Doente não. Mas parece estar num estado de euforia talvez um tanto neurótico. PILATOS Admito uma euforia moderada. Também não é para menos. Desistir da cirurgia é uma libertação. Estou sentindo uma alegria incontrolável. Pilatos beija Tom com carinho. VILMA Ele ia fazer uma cirurgia para deixar de ser homem. TOM Não vai mais? MADS (em OFF, atrás da porta do banheiro) Cirurgia de REDESIGNAÇÃO Sexual. TOM (baixinho, batendo o nó banheiro em que MADS está) dos dedos de leve Cale a boca, Dois. PILATOS Quem é Dois? TOM (a Pilatos, baixinho) Depois eu te conto. VILMA Mas não vai mais ter operação nenhuma. TOM Não? VILMA Ele desistiu e quem manda é ele. PILATOS Quem disse isso? TOM Ela. PILATOS Não. Antes dela. MADS na porta do 81 (em OFF, atrás da porta do banheiro) Cirurgia de REDESIGNAÇÃO sexual. PILATOS (aponta o banheiro) Isso. VILMA Tem alguém aí. MADS aponta a cabeça na porta do banheiro. MADS Não vale a pena cortar fora o pinto. Você nunca mais vai ter um orgasmo. PILATOS O que esse menino está fazendo aí? TOM Fique quietinho aí, cabeça de fogo! (a Pilatos) É meu sobrinho. O menino é gay, usa o banheiro feminino e está com vergonha. PILATOS Que bobagem, criança. Ninguém aqui liga pra essas coisas. (pausa; a MADS) Mas você está certíssima. Por isso eu resolvi não cortar fora meu pingolim. TOM Melhor não tirar mesmo e continuando a poder gozar. PILATOS Não quero mais saber de violência. E não vou fazer uma violência contra meu próprio corpo. TOM É razoável. Se eu fosse gay e travesti não tiraria de jeito nenhum o meu pinto. MADS (em OFF) Eu também jamais tiraria. TOM Mas você nem sabe como é um orgasmo. Já fez dez anos? MADS (em OFF) Ainda não. Mas tem algumas coisas que a gente não precisa experimentar para saber que é bom. 82 TOM Por outro lado tem certas coisas que a gente não quer experimentar mesmo sabendo que pode ser bom. VILMA Vamos parar de conversa fiada. distribuir a dum-dum daqui a pouco. Vou começar PILATOS Quero ser uma mulher delicada e gentil. carreira como criminoso chegou ao fim: apontou-me o caminho. a Minha Jesus VILMA (rindo) Jesus e o entrevista. traveco que está lá dentro dando TOM Mais um traveco? Nunca vi tanto travesti. De que traveco você está falando? VILMA E eu sei? (aponta Pilatos). Pergunte a ele. PILATOS Ela! Ele, não! Ela! VILMA Faz menos de quinze minutos que você virou mulher, caralho! Não é fácil acostumar! Você pensa que é fácil?!! Vilma sai batendo a porta. TOM Ela sempre é brava assim? Pilatos olha para Vilma com imenso carinho. PILATOS Dá pra resistir? TOM Vocês...? PILATOS Somos. Casamos há vinte e cinco anos. TOM 83 E agora? Como é que vai ser? PILATOS Vai ser o quê? TOM Parece que você resolveu mudar de lado recentemente. Não foi por isso que ela saiu? PILATOS Bobagem. Para ela não faz diferença. TOM Vocês não... (gesto que indica sexo)? PILATOS Não. Ela é lésbica. TOM E funcionava antes? PILATOS Funcionava antes e vai continuar funcionado agora. Talvez passe a funcionar melhor ainda. TOM Por quê? PILATOS Por que nós sempre fomos grandes amigos. Agora vamos dividir as roupas e até os homens, quem sabe? TOM Que coisa. Você lida com isso com uma naturalidade incrível, hein? PILATOS Sexo implica em posse. Em disputa de poder. Melhor deixar para quem não tem importância na sua vida. TOM Sabe que você pode ter razão? Incrível o seu raciocínio. PILATOS É como a educação dos filhos. É coisa séria demais para ficar na responsabilidade dos pais. TOM Incrível, PI. Você aventuras de PI. PILATOS é demais. São incríveis as 84 Aventuras de PI? Você disse isso mesmo? TOM (sem graça) Não deixa de ser uma aventura a vida de PI, não é mesmo? PILATOS Eu podia ter ficado sem essa. Estava tudo indo tão bem. Aventuras de PI? Eu mereço isso? TOM Minha inspiração foi prejudicada pelos últimos acontecimentos. Aventura mesmo é a minha. Você não sabe nem metade da missa. A cabeça ruiva de MADS aparece debaixo da porta do banheiro. MADS PI? Pilatos abaixa-se e olha para MADS. MADS Você fez a coisa certa. Mandou bem. PILATOS Valeu. Criança: faça valer o que aprendeu aqui hoje. Luciana bate na porta do banheiro. TOM É a minha namorada. Deve estar cansada de ficar trancada lá, PI. PONTO DE VISTA DE Tom, vendo a cabeça de Pilatos, que continua abaixado desde que começou a conversa com MADS. PILATOS (de cabeça abaixada) Isso aqui está movimentado, hein? TOM (abaixado também) Uma incrível imaginar. coincidência, a senhora nem pode PILATOS Porque ela não sai? Por acaso, ela é parente da criança ruiva (aponta o banheiro em que está MADS)? TOM 85 Não. Ela está com muitos gases, é só isso. PILATOS Eu vou embora antes que os gases comecem a dar o ar da graça. Quer ficar com meu número? Pilatos estende a ele um cartão de visita. TOM Obrigado, não, PI. Não precisa. Mas obrigado assim mesmo. PILATOS Fique com ele. Vai que você muda de ideia? Nunca se sabe. Tom ri. TOM É. Nunca se sabe. Boa sorte, PI. Antes mesmo que Pilatos tivesse saído do ambiente, Luciana já abria a porta do banheiro em que ficara um bom tempo, correndo na direção da porta, tentando (e conseguindo) passar por Tom. CORTA PARA: INT. TOALETE FEMININO/CAFÉ PARIS – NOITE. MADS ajuda BORK a crescer INT. CORREDOR/TOALETES/CAFÉ PARIS – NOITE. Tom aponta rápido no corredor e corre atrás de Luciana. TOM Luciana! Espere! Por favor, Luciana! Luciana! EXT. CAFÉ PARIS/JARDINS/SÃO PAULO – NOITE. Tom segue em perseguição a Luciana, extensão do café e sai na rua. que atravessa toda a Ao sair, ela pega um táxi e vai embora. Tom chega correndo, sem ver Luciana no táxi. Olha para um lado, para o outro. Ele sente falta dos óculos: está apertando os olhos. 86 PONTO DE VISTA de Tom: uma confusão logo adiante, com imagens ligeiramente desfocadas. Três viaturas policiais fazem prisões bem perto dali: é o que parece a Tom. VEMOS que os presos são todos travestis, tratados com rudeza, mas sem violência pelos policiais. Vários travestis foram retirados de um prédio e estão sendo encaminhados para as viaturas. Um menino passa por perto e olha para Tom vestido de mulher. O ator é o mesmo que interpreta MADS, mas aqui tem cabelos e olhos negros. Mas é MADS. MENINO O que a senhora está esperando para cair fora daqui? TOM Por que você diz isso, menino? MENINO A polícia está prendendo tudo quanto é travesti. Não convém ficar circulando por aí, minha senhora. Tom assusta-se. TOM Meu Deus! Será que o mundo endoidou de vez? Por que estão prendendo os travestis? Eduardo Cunha virou presidente do Brasil? Jânio Quadros voltou? MENINO Calma. Não é pra valer. Eles estão levando todos os travecos da cidade para uma festa. TOM Meu Deus! Que loucura! E de quem é essa festa? MENINO De quem eu não sei, mas quem está organizando tudo é um produtor de cinema chamado Rogério Santana. TOM Eles vão fazer um filme? MENINO Não. O cara que organiza tudo é produtor de cinema, mas amigo do peito do governador. É ele que seleciona os travecos para a festa do figurão. 87 Tom começa a olhar fixamente para o menino. PLANO APROXIMADO do menino, no PONTO DE VISTA de Tom. TOM Olhe para mim, menino. Eu conheço você de algum lugar, não conheço? PLANO APROXIMADO de Tom olhando para o MENINO. CLOSE-UP do menino, exatamente igual a MADS, mas de cabelos (e sobrancelhas) pretos e idêntico corte de cabelo, com visual europeu. MENINO Eu não conheço a senhora não. Nunca vi a senhora antes, posso garantir. A senhora é inesquecível. TOM Para de me chamar de senhora! MENINO Do que prefere ser chamada? TOM Chamado! Chamada, não! Sou homem! Macho! Tom tenta puxar o cabelo dele, para ver se é peruca. MADS chega para trás, com agilidade, escapando. MENINO EPA! O que a senhora está querendo fazer? TOM Tem certeza de que eu nunca vi você antes? MENINO Absoluta. Tom começa a encarar o menino. TOM Se piscar você já me conhece. Certo? MENINO Certo. TOM Isso é peruca? Fala. Estou morrendo de curiosidade. MENINO 88 Claro que não! Eu sou uma criança! Não preciso de peruca! A senhora é uma ingrata! Mil raios caiam em minha cabeça se eu mereço tamanha injustiça! TOM Menos, menino. Menos. Está valendo. Quem piscar primeiro está com a razão. Um... Dois... (pausa)... Três! PLANO APROXIMADO: os rostos dois estão bem próximos. Nenhum deles pisca. O menino solta um peido e CLOSE-UP DE Tom, piscando. TOM Golpe baixo, menino. Você me distraiu. MENINO Convém a senhora começar a correr. Tive a impressão de ver um PM apontando para a senhora. TOM Jura? MENINO Precisa jurar? Minha palavra não basta? Tom não pensa duas vezes e sai correndo. Nisso, um cão pastor dispara atrás dele, que entra num boteco berrando feito louco. Ele descobre um fundo falso (a garçonete sinaliza para ele), levanta uma espécie de alçapão e entra no subsolo. A garçonete sai de trás do balcão e ajeita o tapete sobre o alçapão rapidamente, quando entra o cão pastor, bufando de ferocidade. Dois policiais surgem devagar, sem qualquer pressa. O cão fareja todo o local e chega ao tapete; morde o tapete, tentando chamar a atenção dos guardas. Enfim os soldados chegam. SOLDADO UM Por onde foi o travesti? 89 A garçonete faz sinal negativo com a cabeça. O cão fica mordendo o tapete. Um dos soldados manda o animal parar: o bicho fica imóvel, obediente. Os soldados vão embora. EXT. BECO – NOITE. Num beco escuro, VEMOS a silhueta de Tom, que sai do que parece ser um alçapão, ganhando a rua. Sem tempo para respirar, ele sai correndo em busca de um táxi. Sem fôlego, para um pouco para retomar a respiração. Encostado na parede tentando recuperar o fôlego, Tom não percebe que um sujeito gordo, mal encarado, aproxima-se dele por trás. É uma cópia perfeita do Orson Welles policial de A MARCA DA MALDADE: rosto deformado pela bebida, mal encarado, sujo. STEADY-CAM: PONTO DE VISTA do homem que se aproxima de Tom. VEMOS a sombra dele projetada na parede: um homem enorme, figura ameaçadora. CLOSE-UP no rosto do homem: uma pinta preta horrível logo acima dos lábios; a língua do gordo sai da boca, tocando repetidas vezes a pinta, que tem alguns fios de cabelo salientes. (Mais FILM NOIR: distorcidas). sobras expressionistas, apuro visual, sombras Mais acima, no terceiro andar, dependurados na janela arriscando-se a cair, quatro garotos na faixa de 19/20 anos olham para baixo e observam Tom desde o momento em que o gordo ficou de olho nele. Uma fumaça espessa está em volta deles, que compartilham um cigarro de maconha. Os rapazes começam a divertir-se com a situação em que Tom encontra-se. PONTO DE VISTA dos garotos: o gordo atraca-se a Tom, que não consegue livrar-se do abraço. 90 TOM O que é isso? Calma aí, meu chapa! O gordo continua tentando beijar Tom a qualquer custo, mas sem conseguir. Na trilha sonora, as risadas ensandecidas dos rapazes, que estão quase passando mal de tanto rir de Tom. Os lábios do gordão aproximam-se perigosamente dos lábios de Tom, entre uma mordidinha e outra que ele dá em si mesmo, na pinta peluda - em CLOSE-UP. O espectador deve sentir o mesmo terror que sente Tom naquele momento. É enorme a força que o gordo faz para conseguir aproximar-se do rosto de Tom e a força que esse faz para resistir a isso. O equilíbrio é grande e o suspense vai crescendo. E o suspense será compartilhado com os rapazes que param de rir, na expectativa do que vai ocorrer: o gordo vai conseguir beijar Tom? Os rapazes explodem numa nova onda de gargalhadas. GORDO Dá um beijinho, minha pombinha! Dá um beijinho no papai, dá! Calma aí! vendo? Eu TOM não sou mulher! O senhor não está GORDO Vem cá, docinho. Vem cá, minha pombinha. Quando o gordão está quase subjugando Tom – a milímetros dos lábios do escritor – um dos rapazes não consegue equilibrar-se (porque está rindo de forma descontrolada) na sacada e quase cai. PLANO APROXIMADO do rapaz desequilibrando-se. PLANO APROXIMADO da tentativa do gordo beijar Tom. O rapaz ao lado do que se desequilibrou tenta segurá-lo e também perde o equilíbrio, arrastando o terceiro, que pede ajuda para o quarto – que tenta puxá-lo e também é arrastado: os quatro caem bem perto de onde Tom sofre com o gordo. 91 PONTO DE VISTA de Tom, que fica em dúvida entre escapar do gordo ou prestar atenção no que pode ser uma queda EM CIMA dele. CLOSE-UP: os lábios quase se tocando. Na trilha sonora, destaque para os gritos de pânico dos rapazes ao perceberem que iriam cair e do gordo, que fica morrendo de medo de ser atingido. Os quatro caem em cima de sacos de lixo bem ao lado do gordo e de Tom. Não se machucam. A queda dos rapazes distraiu o gorducho e Tom aproveita-se e empurra o gordo, dando nele uma joelhada nos testículos. Uma sirene de carro-patrulha toca e dois dos rapazes levantamse e saem correndo, com muito custo, pisoteando o gordo. Tom levanta-se e corre na direção da saída do beco, indo atrás dos dois rapazes. O gordo permanece gemendo no chão. Um dos rapazes desmaia, e o gordo – mesmo sentindo dores terríveis - finalmente consegue o beijo que tentou dar em Tom. O amigo dele, bem perto, faz uma careta de nojo. Tom, já na rua, vê uma viatura policial. PONTO DE VISTA de Tom: os soldados colocam dois travestis no camburão. Tom esconde-se para não ser visto. TOM Filho da mãe! Gordo desgraçado! (pausa) Filho da mãe! Tom começa a atravessar vestido de mulher. Um carro surge de repente dirigido pelos gêmeos. a rua, na desconfortável frente dele: é o por estar Honda SUV PONTO DE VISTA de Tom: o carro vindo para cima dele, BORK em pânico. Milagrosamente, Tom escapa do choque. O carro dirigido pelos garotos para e uma viatura começa a se aproximar. 92 BORK, de boné e óculos escuros, acelera, tirando rápido o carro de lá. A viatura não lhe dá qualquer importância. PONTO DE VISTA de BORK: Tom afastando-se voltando para o beco. cada vez mais, Tom vê BORK afastando-se; para um pouco, pensativo, e entra no beco. Tom está apoiado na parede, procurando esconder-se na sombra. REPARA, então, na prisão de dois travestis, forçados a entrar num camburão por dois policiais militares. TOM Meu Deus! Agora estão mesmo prendendo os travestis! Tom cola-se à parede, de costas, aterrorizado por constatar que o garoto estava certo. De repente, a cabeça de um cão pastor alemão surge no breu, latindo furiosamente, indo em direção ao assustado Tom, que recua o quanto pode. Repentinamente, o cão pula em Tom. A confusão de Tom é terrível. Ele rola abraçado ao cão e enfia um dos dedos num dos olhos do animal, arrancando o órgão e fugindo na direção da viatura policial. OUVIMOS o ganido desesperado do choro do cão, enquanto Tom surge correndo diante da viatura, entrando como um raio dentro do camburão antes que os policiais fechassem a porta. SOLDADO Está com pressa, hein, Rafaela? Tom entra e fica imóvel num cantinho, assustado. SOLDADO Tudo certo aí? TRAVESTI UM Tudo certo. Pode fechar. Já estamos atrasadas. A viatura parte, com a sirene ligada. 93 INT. VIATURA POLICIAL – NOITE. Na viatura, dois travestis excessivamente companhia a Tom, olhando-o com desconfiança. pintados fazem TRAVESTI UM O que foi que houve? Roubaram a sua peruca? TOM Não. Não uso peruca. O travesti olha Tom de cima a embaixo, desaprovando o que vê. TRAVESTI UM Você está bem largada, filhinha. fizeram a você? O que foi que TOM Nada de excepcional. (pausa) Eu não sou travesti. TRAVESTI UM Não? TRAVESTI DOIS Eu também não. TOM Nada contra. Mas não sou mesmo. O travesti UM, com grande agilidade, pula por trás de Tom, enquanto o outro tenta imobilizar as mãos dele. Tom dá um grito: um travesti abaixa a calcinha dele e o outro chega bem perto da bunda, olhando na direção do ânus de Tom. O travesti usa as mãos e faz um exame bem visual do ânus de Tom, que esperneia com vontade. CLOSE-UP do travesti: examinando o rabo de Tom. TRAVESTI DOIS É. Parece que é virgem mesmo. Liberam Tom, que sobe a calcinha e olha ressentido para o travesti UM. TOM (frio, com ódio) Você não vai ter outra chance, verme! TRAVESTI UM 94 Apertadinho. É marinheiro de primeira viagem mesmo. TRAVESTI DOIS (olhando para o travesti um) Uma virgem tem o seu valor. Ah, tem sim. TRAVESTI UM Que medo. Estou morrendo de medo. Vingativa! TRAVESTI DOIS Carne fresca. Fresquinha da silva. Deal? TRAVESTI UM Deal. Os dois travestis batem as mãos: têm um acordo. TOM Para onde a gente está indo? TRAVESTI UM Pela rapidez com que você entrou na carruagem achei que soubesse. Cinderela. TOM Para a festa do produtor de cinema. TRAVESTI UM Não. Nós vamos para a festa do governador. TRAVESTI DOIS Maquiagem de graça, uísque doze anos, champanhe. Quer mais ou está bom pra você, filhinha? TOM Não se trata da mesma festa? TRAVESTI DOIS Não qualquer festa, minha filha. “A” festa. TRAVESTI UM “The party”, entendeu, baby? E onde é travesti? que TOM entra o governador? Ele gosta TRAVESTI DOIS Quem não gosta? TRAVESTI UM A festa é dele. Faz todo ano. E adora travesti. de 95 TRAVESTI DOIS Eles pegaram literalmente todos os travestis da cidade para abrilhantar a festa de aniversário do governador. TOM É a mesma festa. O sujeito que organiza é produtor de cinema. TRAVESTI DOIS Pode até ser, mas quem manda é o governador. Graças a Deus. TRAVESTI UM Trate de arrumar uma peruca, meu bem. Suas orelhas são lindas, mas esse cabelo (olha para Tom com enfado)... Ninguém merece. Sem peruca, sem chance. A viatura para bruscamente. A porta do camburão é aberta e dois garçons ajudam a puxar Tom e os travestis. INT. FUNDOS/PALÁCIO/SÃO PAULO – NOITE. Tom, distraído, observa o ambiente: tudo remete aos bastidores da organização de uma festa bacana, de alto nível. Garrafas de uísque e de champanhe para todo lado, salgadinhos, refrigerantes etc. Um dos travestis aproxima-se de um garçom e fala ao ouvido dele. TRAVESTI UM Eu quero falar com o Sargento SEXTA. GARÇOM O que você quer com ele? TRAVESTI UM Eu e a minha amiga arranjamos carne fresca para o governador. O garçom olha para Tom, que distraído, pega uma banana e começa a comer. GARÇOM Tem certeza? Não parece grande coisa. TRAVESTI UM 96 É a inauguração dela. O garçom fala algo num fone de ouvido e, logo depois, um negão de quase dois metros aparece. SEXTA-FEIRA Quem me procurou? TRAVESTI UM Euzinha aqui. SEXTA-FEIRA É você mesma? TRAVESTI UM Não. Ela. (aponta Tom) SEXTA-FEIRA Você tem certeza de que ela é de boa procedência? TRAVESTI UM Garanto. É moça de família. SEXTA-FEIRA tira cinco notas de cem dólares e dá ao travesti. Faz sinal para três homens vestidos como ele, todo de negro, da equipe de segurança do governador. Os três pegam Tom e começam a conduzi-lo em direção ao prédio. TOM Vamos com calma aí. Sem violência. Por favor, me levem ao alguém da segurança. Está havendo em engano terrível aqui. SEGURANÇA Pode deixar. Vamos levar você à segurança. Vamos lá. TOM Vamos aonde, posso saber? SEGURANÇA À sala de maquiagem, claro. Você não quer encontrar o governador vestido assim, quer? ir TOM Qual é o problema? Eu acho que estou muito bem. SEGURANÇA O problema é que nós gostamos de gente bem vestida, bem produzida. 97 TOM Eu vou só se for obrigado. Daqui eu não saio! Um soldado dá com um cassetete na cabeça de Tom. TOM A menos que haja um bom motivo. SOLDADO Esse motivo aqui é bom o suficiente? TOM Vamos lá falar com o sargento, por gentileza. O soldado dá um beliscão na bunda de Tom, que tenta evitar sem sucesso. SOLDADO Depois da festa a gente acaba de acertar as contas, princesa. CORTA PARA: INT. CAMARIM – NOITE. Tom está sendo maquiado por vestido, sem trejeitos gays. CHIQUINHO, cabeleireiro bem Já está totalmente produzido, maquiado com competência. Chiquinho afasta-se e sugere a Tom que se levante. CHIQUINHO Gostou? Sou um gênio, não sou? Tom agora usa um salto alto e um vestidinho preto, com cinta liga e tudo. TOM Eu quero falar com o chefe da segurança. Por favor, preciso falar com ele agora. Só concordei com esse negócio porque você me prometeu falar com ele. CHIQUINHO Tudo bem. Chiquinho pega o celular e faz uma ligação. CHIQUINHO Eu é que resolvo essas Rogério, menina. coisas. Trabalho para o 98 TOM Rogério é o chefe da segurança? CHIQUINHO Não. Rogério é o organizador da festa. O provedor de travestis para o governador. (lixa as unhas) O chefe da segurança é o sargento Sexta-Feira. (convencido) fui eu quem indicou. Cria minha. TOM Por favor. Fale ao Rogério que eu estou vivendo um filme de terror. CHIQUINHO Tá de sacanagem comigo? TOM Não. Por quê? Rogério é governador. CHIQUINHO produtor de cinema além de amigo do TOM Eu sei. Ele vai entender o que eu estou passando. Juro por Deus que eu não sou travesti. Chiquinho senta-se e acende um cigarro. CHIQUINHO Fuma? TOM Não. Obrigado. CHIQUINHO Você não é mesmo travesti, certo? TOM Não. Nunca fui. CHIQUINHO Eu já sei de onde conheço você. Você é amigo do Fernando, delegado da civil. Não é? TOM Sou sim! Nossa, que alívio! CHIQUINHO Imaginei mesmo. Como é que você se meteu com aqueles dois travestis? Você faz programa com eles? 99 TOM Eu não sou garoto de programa. Não tenho nem idade para isso, não vê? CHIQUINHO Bobagem. Você está INTEIRAÇO. É uma pena. O governador é boa pessoa. Ele poderia fazer você feliz. Você é bem o tipo dele. Ele gosta de homem peludo, sofisticado. Ajude-me a Fernando. TOM sair daqui. Em homenagem ao doutor CHIQUINHO O que eu levo nisso? TOM Minha gratidão. E a do Fernando, que vale bem mais. CHIQUINHO Não sei qual é a utilidade de sua gratidão, mas vou te ajudar. Algo me diz que você se meteu numa confusão desgraçada. TOM Quanto a isso não há a menor dúvida. Chiquinho faz aproxima-se. sinal a um garçom, pela janela. O garçom CHIQUINHO Leve esse cara para onde ele te pedir, Maurício. (entrega a ele uma chave) Volte logo, menino. Senão você perde a festa. (a Tom) Vá! Vá embora, antes que eu me arrependa! Tom sai pela janela mesmo e corre em direção ao garçom. A moto de Chiquinho está próxima. Tom sobe na garupa e a moto parte, não encontrando dificuldades para sair da área reservada do Palácio dos Bandeirantes. EXT. NOITE/MORUMBI/SÃO PAULO – NOITE. A moto avança pela Avenida Morumbi. 100 Tom, feliz e aliviado, respira o ar puro da noite, deliciandose com o passeio. IRIS OUT TO: INT. ESCRITÓRIO CACO/SÃO PAULO – NOITE. Caco levanta-se e pega uma cerveja no frigobar. Toma e gole e assenta-se de novo. CACO Está na hora da onça beber água. IRIS IN TO: EXT. HOTEL CINCO ESTRELAS/JARDINS/SÃO PAULO – NOITE. BORK (óculos escuros, boné) traz o carro de Luciana (que vai atrás), auxiliado por MADS, que não aparece, mas cuida dos pedais. O porteiro do hotel abre a porta do carro para ela, que desce e caminha majestosa na direção do elevador. Todos param para admirá-la – ela caminha em SLOW MOTION, num vestidinho sensual, bem cortado para exibir as pernas espetaculares. INT. QUARTO DE HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE. Tom, vestido com um smoking preto, elegantíssimo, fuma maconha com uma piteira, encontrando dificuldades para conseguir tragar. Toca a campainha. Ele coloca um bilhete debaixo da porta. INT. CORREDOR DO HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE. Luciana, do outro lado da porta, vê o bilhete e interrompe o gesto de tocar campainha. Curiosa, ela pega o envelope e tira uma folha de papel, em que há algo escrito. Ela lê, dá um suspiro e abre a porta, entrando devagar. INT. QUARTO DE HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE. Luciana entra e acende a luz. O ambiente está vazio. Ela vê uma taça de champanhe e um cigarro de maconha, muito bem enrolado. 101 Luciana senta-se, acende o cigarro, bebe da devagar a metade do conteúdo, de uma vez só. taça e sorve Dá um arroto bastante sonoro e peida, movendo o corpo para a esquerda, levantando a parte direita das nádegas para cima: parece natural e espontâneo esse movimento dela. Ela traga profundamente, enquanto revelando o corpo espetacular. despe-se lentamente, Ao contrário da maioria das brasileiras, Luciana não raspa os pelos pubianos. É peluda, embora bem cortada, asseada e Tom repara isso. Ele gosta e deixa claro. TOM (em OFF) Não quero que tire as sandálias. Quero você mais alta. LUCIANA (em OFF) Por quê? Posso saber? TOM (em OFF) Não pode não. LUCIANA (em OFF) Você usou um verbo entre dois substantivos negação. Você nega o que está pedindo. de TOM (em OFF) Não pode sim. LUCIANA (em OFF) Agora está certo. A sandália fica. Os dois riem, deliciados um com a presença do outro. Ela só não tira as sandálias: fica inteiramente nua. Dá um último gole na taça (bebe tudo de uma vez), apaga o cigarro (cinzeiro) e abre a porta. INT. QUARTO DO HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE. 102 Escuro total. Mas VEMOS a silhueta do corpo de Luciana, tateando, tentando caminhar no escuro, com a dificuldade natural. LUCIANA Tom? Cadê você, querido? O vulto de Tom, visível para o espectador, aproxima-se de repente de Luciana. LUCIANA Ah, você está aqui. Tom coloca a mão direta no ombro esquerdo de Luciana; os dois estão quase de rosto colado, sentindo de perto a respiração do outro, que deve ser ressaltada na trilha sonora. Os dois estão fortemente atraídos: o tesão deve gerar uma tensão natural em dois corpos que nunca se tocaram de forma tão íntima. IRIS OUT TO: INT. ESCRITÓRIO CACO – DIA. Caco está trabalhando com o laptop. CORTA PARA: INT. QUARTO HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE. No quarto às escuras, Tom e Luciana começam a se tocar, bem aos poucos. CACO (em OFF) Essa cena ia funcionar melhor se eles nunca tivessem se beijado antes. Merda. CORTA PARA: VEMOS a tela do laptop de Tom, que digita uma frase e depois seleciona com amarelo o texto digitado: TEXTO ATENÇÃO: VOLTAR ao segundo ato e excluir a cena do beijo de Tom em Luciana no toalete feminino. PLANO APROXIMADO de Caco, digitando algo no laptop. CACO 103 Vamos lá de novo. CORTA PARA: INT. QUARTO HOTEL CINCO ESTRELAS – NOITE. Tom e Luciana beijam-se de forma sensual, delicada, que evolui aos poucos para algo mais visceral, físico. Os dois exploram os corpos um do outro devagar, ilustrados em closes e planos aproximados dos dois amantes, sempre no escuro. De repente, os dois se atracam com sofreguidão, como se o mundo fosse acabar. Os dois estão atracados e penetração frontal. Tom a levanta para facilitar a LUCIANA Não! Aí não. Atrás. Eu gosto mais atrás. Luciana muda desgrudar-se. de posição: TOM Você é maravilhosa, deliciosa. fica minha de costas linda. para ele, sem Maravilhosa, Fazem amor à exaustão, na posição que ela queria. IRIS OUT TO: INT. ESCRITÓRIO DE CACO – MANHÃ. Caco digitando num dia normal de trabalho. Caco, como sempre, com cara de sono, cara de alguém que está exausto. PONTO DE VISTA de Caco: alguém chama no SKYPE. O mouse é acionado e ele vê o rosto de Rogério na tela: eles estão conectados em tempo real. ROGÉRIO Estou começando a ficar Realmente preocupado. preocupado, CACO Qual é a encrenca dessa vez? ROGÉRIO meu querido. 104 Menino: que fixação na fase anal, hein?! CACO Não fique apenas no óbvio. Detesto coisas óbvias, abomino clichês. E faço questão de subtexto. ROGÉRIO Onde é que tem subtexto aqui, meu caro? Eu não vi subtexto nenhum. Por falar nisso, tire meu nome. Não gostei nem um pouco brincadeira. CACO Relaxa. Eu tiro. ROGÉRIO Esse negócio de um roteirista escrevendo um roteiro em que o protagonista é outro roteirista. Não sei. Está confuso. Parece cinema francês. CACO O espectador é mais inteligente do que você pensa. Quando é que vocês vão perder essa mania de pensar que o espectador de cinema é burro? ROGÉRIO Vai com tudo, meu Quentin Tarantino. É bom. Mas pense com calma no que eu estou falando. CACO Ela só transa lá atrás porque é homem. ROGÉRIO Homem? CACO É. Ela fez cirurgia de mudança de sexo. Cortou fora o pinto e fez uma xota novinha em folha. ROGÉRIO Como assim? Rogério para de falar e fica pensativo. ROGÉRIO Homem? Será? Tem certeza? Isso me escapou. CACO Não se lembra dos gêmeos falando nele? Em casa? E depois no toalete um dos dois falou da cirurgia. Lembrou? 105 ROGÉRIO Tem razão. Todo mundo já sabe que Luciana é homem. CACO Todo mundo, quem, cara pálida? ROGÉRIO Todo mundo. CACO Nem todo mundo. O principal interessado não sabe. Ele ainda homem? ROGÉRIO não percebeu que está interessado num CACO A graça está justamente aí. ROGÉRIO Tecnicamente é um eunuco. Feito aquele careca de “GAMES OF THRONES”. É um idiota o seu Tom. Transou com um homem e não percebeu. CACO Você também não sacou. ROGÉRIO Mas eu não transei. Admita. Seu alter ego é um burro mesmo. CACO E você sabe o que é um alter ego? ROGÉRIO Sei o sentido geral da coisa. E seu roteirista é burro, pronto e acabou. CACO Mais avoado do que burro. ROGÉRIO Estou curioso para saber no que vai dar esse chamego seu com o travesti. CACO Só você, cara-pálida? ROGÉRIO Eu tenho esse direito. 106 CACO Não fique esperando sacanagem panfletária, politicamente correta. Não é um discurso político pró-GLS. ROGÉRIO Muita gente vai achar que é. CACO Não estou preocupado com isso. O que me preocupa é a insegurança de Luciana. (pausa). Tenho que voltar ao trabalho. ROGÉRIO Eu já vou embora, majestade. fazer um pedido. Só mais um. Prometo. Mas quero estória. Evangélico CACO Fala logo. ROGÉRIO Pare de envolver religião na também vai ao cinema, sabia? Está certo. católico. CACO Onde se falou evangélico leia-se ROGÉRIO E o pastor Sinédrio? CACO Padre Sinédrio, Rogério. O homem agora Deixe-me trabalhar pelo amor de Deus! é padre. Caco se levanta, pega uma pílula colorida num vidrinho, bebe o comprimido com água e acende mais um cigarro de maconha. IRIS IN TO: INT. SALA APARTAMENTO LUCIANA/POMPEIA – NOITE. É tarde da noite (a TV está sintonizada no show de Serginho Groisman, que entrevista o ator CACO CIOCLER) e Luciana não parece interessada no aparelho, que está sem som. Ela parece melancólica, triste. MADS e BORK, de pijamas, entram na sala em silêncio. MADS 107 Boa noite, mãe. BORK Boa noite, mãe. LUCIANA Boa noite, MADS. Boa noite, BORK. (pausa) O que vocês estão esperando para me dar um abraço? Os garotos abraçam Luciana. Os três se beijam ao mesmo tempo, brincando. BORK Aposto vinte reais que chego primeiro à minha cama. MADS Você vai ficar sem sua aposta, BORK. Nossa mãe quer conversar comigo. BORK vai em direção do corredor. BORK Está certo. Vê se não demora, hein? MADS Não vou demorar-me, BORK. Pode ir treinando. LUCIANA Treinando o quê? MADS Dormir. A gente treina dormir e acaba dormindo no meio do treinamento. LUCIANA E sempre dá certo? MADS Sempre. Nós somos muito disciplinados. LUCIANA Estou precisando de um método desses para dormir. MADS Insônia de novo? LUCIANA De novo. MADS Eu acho que você deveria procurá-lo. 108 LUCIANA Procurar quem? MADS A verdade tem que ser encarada nos olhos, mãe. LUCIANA Quem disse isso? MADS Minha mãe. Quando ela soube que estava com câncer avançado. LUCIANA Deve ter sido muito difícil para todos vocês. MADS BORK sofreu mais do eu e minha mãe. Eu sou mais frio nessas coisas. LUCIANA Impossível. Você é um garoto sensível, maduro. MADS Eu sou bem racional. É preciso ser prático senão a vida leva a gente para onde a gente não quer. LUCIANA Vou parar de gastar dinheiro com psicanalista. Você é mil vezes mais inteligente do que o analista. MADS Então siga meu conselho e vá falar com Tom. LUCIANA Talvez ele não queira falar comigo. Não me procurou mais. MADS Duvido. LUCIANA Você tem falado com ele? MADS Toda hora. No whatsapp. Eu e BORK. LUCIANA Ele falou alguma coisa a meu respeito? 109 MADS Ele não sabe que você é nossa mãe. Conversa com a gente falando de você, mas sem saber de quem se trata de verdade. Falamos de você de vez em quando. LUCIANA (sorrindo) Ele disse que está apaixonado? MADS Mil vezes. LUCIANA Mas ele não sabe. MADS Que você nasceu diferente e se transformou na mais bela mulher do mundo? Não. Não sabe. LUCIANA Você é um amor. Luciana abraça MADS bem apertado. MADS Mas você tem que ter coragem e procurá-lo. Ele tem o direito de saber a verdade. LUCIANA E se ele não me aceitar? MADS Acho que ele vai aceitar. De boa. Mas você tem que correr o risco. Não há alternativa. CORTA PARA: EXT. PRÉDIO DE LUCIANA/POMPEIA/SÃO PAULO – NOITE. Tom sai do prédio. O carro dele está estacionado perto. Ao se aproximar, Tom percebe dois pneus vazios no carro dele. MADS aparece atrás de um carro atrás. MADS Tom! Olhe lá, BORK! É Tom. Oi Tom! Tudo bem com você? BORK aparece logo depois: também estava escondido. Ele vai em direção de Tom com um sorriso. 110 Ele olha para os pneus murchos e para os garotos. TOM Isso não se faz. Foram vocês? MADS A gente não sabia que era você. BORK Quem mandou vir sem avisar? MADS BORK, não seja mal educado! BORK sorri para Tom, meio sem graça. Desculpe por BORK essa, VÉIO. A gente vai resolver. Me dá a chave que a gente (estende a mão vazia para Tom) resolve logo. TOM (dando uma palmada carinhosa na mão dele) Você ainda não tem carteira de motorista, cabeça de fogo. Tom abraça MADS e depois dá um abraço em BORK. TOM Mas o que vocês estão fazendo aqui? BORK (aponta o prédio de Luciana) A gente mora aqui, VÉIO. Tom aponta para o mesmo prédio. TOM (arregalando os olhos) Ali? MADS É. E você? Veio visitar a gente? TOM (confuso) Não. Eu estava na casa de uma amiga minha. MADS Tchau, Tom! A gente vai pra casa. Minha mãe chamou. TOM 111 Quem? BORK Minha mãe. Vamos subir. Apresentamos minha mãe para você. MADS Vamos lá, Tom. Você vai adorar a minha mãe. TOM (confuso) E seu pai? BORK (piscando, enigmático) Você vai se dar SUPER bem com ele (ênfase aqui). TOM Com certeza, moçada. Com certeza. Mas vai ser outro dia. Tenho que ir. Estou atrasado para um compromisso. MADS Vai comer alguém hoje, seu pilantra? BORK finge que está fazendo sexo, rindo pra valer. Tom não responde. Faz sinal a um táxi, que para diante dele. Ele entra no carro e vai embora sem olhar para trás, sem falar mais nada. BORK O que deu nele? MADS Será ficou bravo com a gente? BORK Foi mal o lance de esvaziar os pneus. MADS Vamos chamar alguém para arrumar o carro dele. Você sobe e fala com nossa mãe? BORK sai correndo. BORK Veja com o porteiro onde a gente pode pedir ajuda. Eu não demoro. MADS 112 Provavelmente vai ter que ficar para amanhã. INT. TAXI/AVENIDA PAULISTA – NOITE. Tom está quieto, com a cabeça a mil. Soa a campainha do celular dele, avisando que chegou mensagem. Ele olha para a tela do celular e lê. LUCIANA (em OFF) Eu preferia que você soubesse de outra forma. Nunca se esqueça de que eu amo você. Tom coloca o celular no bolso e fica imóvel, pensativo. IRIS OUT TO: INT. ESCRITÓRIO DE CACO – DIA. Caco está escrevendo, sempre ao som do B-52. Toca a campainha: Caco levanta-se e atende à porta. É a vizinha, BÁRBARA. BÁRBARA (dá um selinho nele) Oiê! Tudo legal com você? CACO Tolerando. BÁRBARA Não me convida para entrar? CACO A sua visita seria maravilhosa, mas infelizmente o momento é inoportuno. Estou trabalhando doze horas por dia. Tenho que voltar ao trabalho, me desculpe, sim? Caco começa a fechar a porta e ela coloca o pé, evitando isso. BÁRBARA Deixe-me ao menos fazer um convite. Foi pra isso, aliás, que vim importunar você. CACO Claro. Faça. 113 BÁRBARA Vem passar o fim de semana comigo em Maresias. Três amigas vão também. De homem, só você. CACO (pensativo) Um programa imperdível, hein? BÁRBARA Eu não consigo pensar num adjetivo melhor. Vai ser bom demais, querido. Na segunda cedo te deixo aqui, são e salvo. Mas com um pouco menos de energia, talvez. CACO Quem são suas amigas? Gente do teatro? Eu conheço? BÁRBARA Laura, Luísa e Adriana. Da minha turma de dança de salão. CACO faz cara de safado. CACO Elas são suculentas como você? Eu tenho querido. BÁRBARA bom gosto para escolher minhas amigas, CACO O pior é que tem mesmo. BÁRBARA Pior por quê? CACO Infelizmente vou ter que dizer não. Tenho que trabalhar feito doido nos próximos três dias. Fica para a próxima. BÁRBARA Não acredito. Não acredito! CACO Pois pode começar a treinar para acreditar. BÁRBARA Você enlouqueceu? Pirou o cabeção, CACO SELIGMAN? CACO 114 Lamento de coração. Mas trabalho é trabalho. Sou profissional. BÁRBARA Você vai recusar esse convite, Caco SELIGMAN? Vai me dispensar assim? CACO Vou. Com licença, benzinho. (Fecha a porta) Tenho que trabalhar. BÁRBARA (em OFF, atrás da porta) Não pense que isso vai ficar assim! CACO Depois a gente repete o fim de semana, lindeza. BÁRBARA (em OFF, atrás da porta) Isso não vai ficar assim! Não pense que vai, mocinho! Eu vou voltar! Pode aguardar que eu volto, ah se volto! Caco fecha a porta e volta a sentar-se diante da tela de seu laptop. PONTO DE VISTA de Caco, olhando para a tela de seu laptop. Na tela, o perfil no site Par Perfeito de ISABEL – uma bela morena de 39 anos –, com destaque para fotos em sequência. CACO Burro! Será que você não vai aprender nunca? PLANO APROXIMADO: Foto de Isabel (sensual). Tom e Isabel fazem amor apaixonado. Caco volta a digitar. VEMOS as letras impressas por Caco: Chuva torrencial. DOIS MESES DEPOIS. IRIS IN TO: EXT. PRÉDIO DE TOM/CERQUEIRA CESAR/SÃO PAULO – NOITE. Chuva torrencial. 115 O carro de Tom para diante do portão eletrônico e o porteiro aciona a abertura automática, permitindo que Tom entre com o carro. INT. GARAGEM – NOITE. Tom estaciona o carro dele numa vaga bem ao fundo, com três carros trás do carro dele. Ele sai do carro e pega o elevador. INT. ELEVADOR – NOITE. Tom, de cabelos molhados, aperta o andar 17. INT. CORREDOR PRÉDIO DE TOM – NOITE. Tom sai do elevador e abre a porta. Ao abrir trêmula. a porta, ISABEL surge na frente dele, pálida TOM Isabel? O que...? ISABEL Você me deixou trancada aqui. Eu estou sem comer há três dias. TOM Meu Deus! Você ficou trancada aqui esse tempo todo? ISABEL (chorando) Você me trancou aqui com a geladeira vazia. Eu quero ir embora para minha casa... TOM Claro! Eu vou levar você até em casa. Vou pagar um mês para compensar! Por favor, me desculpe! ISABEL Eu tenho que ir pra casa. Eu estou com fome, tenho que ir embora. TOM Fique tranquila, Isabel. Vou levar você pra casa agora mesmo. Vamos, vamos lá! Soluçando, Isabel segue Tom. e 116 EXT. CORREDOR/PRÉDIO DE TOM – NOITE. Saem do apartamento dele e entram no elevador. INT. GARAGEM/PRÉDIO DE TOM – NOITE. Já na garagem, eles entram no carro de Tom, com Isabel no banco do carona. Tom liga o carro e eles saem da garagem no piso 3. Sobem e chegam ao piso 2, prosseguindo até o piso 1. No piso 1, Tom para o carro, desce o vidro e coloca a chave do portão, girando-a. O portão de saída começa a abrir. A chuva é fortíssima. INT. PORTARIA DO PRÉDIO DE TOM – NOITE. O porteiro olha para o portão e vê que ele está aberto. Gira uma chave e o portão começa a abrir. VOLTAMOS À GARAGEM. Tom vê o portão começar a fechar e para o carro a 10 cm do portão. Olha na direção do porteiro e faz sinais ao funcionário, que não o vê. Ele puxa o freio de mão, mas não engrena primeira marcha. CLOSE-UP: freio de mão parcialmente puxado. Quando está descendo a rampa olha para cima e olha para o próprio carro. PONTO DE VISTA de Tom: ele vê o carro imóvel. Tom chega ao lugar certo, no piso intermediário entre os pisos 1 e 2 (garagens), coloca a chave na fechadura que abre o portão e gira, observando que o portão se abriu mais uma vez. Quando já começava a voltar ao carro, automóvel começou a descer a rampa. PONTO DE VISTA carro. Tom percebe que o de Tom, olhando para Isabel, que ficou no 117 Corre na direção do carro, subindo a rampa e tentando segurar o carro que descia, mas o peso é grande demais e ele é prensado pelo automóvel contra a parede. Isabel entra em pânico com o início do movimento do carro sem motorista e começa a gritar, enlouquecida de medo. O carro desce a rampa, deixando Tom no chão, todo arranhado por ter sido prensado contra a parede pelo automóvel. PONTO DE VISTA de Tom, caído no chão, olhando para baixo: ele vê seu carro descendo rapidamente pela rampa do piso 1, encaminhando-se para a rampa do piso 2 e finalmente alcançando a rampa do piso 3. Ele vê os pés de Isabel quase colados ao teto. As pernas de Isabel estão viradas para cima e ela grita como se fosse ser morta a qualquer momento. O carro de Tom choca-se violentamente com os dois carros que estavam no percurso dele. Um terceiro carro também é atingido. O barulho é terrível. Isabel não para de gritar. Tom começa a descer a segunda rampa, escorrega no piso molhado e cai espetacularmente. Com muita dificuldade chega ao carro, no piso 3. Ele tenta acalmar a moça, mas não consegue: ela está alucinada. Ao ver que Tom abriu a porta, ela sai correndo como louca. TOM Você está bem, Isabel? Ela sobe as três rampas sem parar de gritar e sai do prédio ao ver que o portão da garagem está aberto. TOM Espere aí, Isabel! Eu vou levar você em casa! Ao ver que ela não para, Tom para e fica sem saber o que fazer, olhando para baixo e dimensionando o tamanho do estrago. TOM 118 Merda. Vou gastar uma fortuna para consertar todos esses carros. TOM (gritando) Isabel! Espera aí! Eu vou chamar um táxi para você. Isabel! O porteiro, assustado, aparece de repente. PORTEIRO O senhor está ferido? TOM (olha para seus arranhões no braço) Nada importante. PORTEIRO O que foi que aconteceu aqui? TOM Nem me fale. Vou para meu apartamento. Você explica ao síndico essa merda toda. PORTEIRO (coçando a cabeça) Mas eu não sei o que aconteceu! TOM Inventa qualquer coisa. Diz que eu vou pagar o conserto. Não precisa fazer boletim de ocorrência. A noite evoluiu e a lua deu lugar ao sol. CORTA PARA: INT. QUARTO/APARTAMENTO DE TOM – NOITE. Quarto às escuras. LEGENDA: Uma semana ANTES. JULIANA Eu estou um pouco nervosa. Tom Eu também. É natural. JULIANA Será? 119 TOM Tem certeza que quer fazer isso? Ainda dá tempo de desistir. JULIANA Tenho. TOM Não vai brochar? JULIANA Quem tem que se preocupar com isso é você, que tem um brinquedinho de montar. O meu é de abrir. (risos) TOM A gente tem que experimentar. Você não acha? JULIANA Acho. TOM Mas isso fica aqui. Só entre nós. Fechado? JULIANA Fechado. Nada de contar pra ninguém. TOM Ninguém. Nem para seu analista. JULIANA E aí? Já tirou a roupa? TOM Tirei. JULIANA Que tal acender a luz do banheiro? Desse jeito nem enxergo você. VEMOS o vulto de Tom indo até o banheiro, nu. Ele volta e pula rápido na cama. Os dois estão debaixo do lençol. JULIANA (risos) O que você está fazendo, espertinho? TOM (risos) Nós viemos aqui pra fornicar ou para conversar? 120 Os dois não param de rir. JULIANA Nossa! Que palavra horrível. Será que Eduardo Cunha também fala ‘fornicar’? TOM Lógico. Todo evangélico usa essa palavra. Está na bíblia. Em inglês soa bem melhor: Fornication. Fornication! JULIANA Vamos fazer uma coisa? TOM O que foi? Mudou de ideia? No fornication? JULIANA Vamos assumir que a gente vai fornicar. Numa boa. Sem lençóis. TOM 100% pelados? JULIANA 200%. TOM OK. Quem sai primeiro? JULIANA Os dois ao mesmo tempo. Quando eu falar já. TOM OK. Pode falar. JULIANA Já! Os dois descobrem-se de uma vez e veem-se frente a frente pelados. Olham firme um no olho do outro. Repentinamente os dois tem um acesso de riso simultâneo. EXT. VARANDA APARTAMENTO DE TOM/SÃO PAULO – DIA. Tom, Juliana, João e Marco tomam café da manhã e fumam um cigarro de maconha que circula de mão em mão. 121 MARCO Resumindo: você foi atropelado pelo próprio carro. JOÃO Uma façanha e tanto, mesmo para um sujeito voltado para o próprio umbigo. MARCO Nem Cristiano Ronaldo conseguiria uma proeza dessa magnitude. Ficará registrado nos anais da diretoria se todos os senhores diretores concordarem. JOÃO Eu concordo. TOM Não me furtaria jamais à verdade dos fatos. Que seja feito o registro para a posteridade. JULIANA ARGH! Meu estômago vai se embrulhar. Vocês são tão metódicos quanto é a maçonaria. Ai que cheiro de naftalina, meu Deus! CORTA PARA: INT. ELEVADOR – DIA. Tom desce no elevador, que está lotado. Os garotos olham pare ele com admiração e trocam olhares entre si, rindo com vontade infantil. TOM (em OFF) Enfim. Eu virei o cara mais popular do prédio. Teve gente que me pediu autógrafo. Virei uma celebridade instantânea. Tiraram fotos comigo, fizeram SELFIES. Um garoto se aproxima e tira uma foto com Tom, como se ele fosse uma celebridade. VOLTAMOS AO APARTAMENTO DE TOM. Continua a reunião. TOM (baixinho, no ouvido de Marco) Enrolo mais um BECK, senhor secretário geral? MARCO (baixinho também, no ouvido de Tom) Vamos deixar para depois que acabar a reunião. 122 JULIANA E a empregada? O que foi feito dela? MARCO Que empregada? JULIANA Qual haveria de ser, seu MOCORONGO? MARCO A moça não é empregada dele? TOM Não é mais. MARCO Você transou com a própria empregada? JULIANA Vocês são dois ogros. JOÃO Negativo. A moça virou empregada depois de transar com o presidente. JULIANA Mas onde é que foi parar a mulher naquele temporal? TOM Desapareceu. Evaporou. Escafedeu-se graças a Deus. Nunca mais ouvi falar. Ela morava em Cotia. Deve ter ido a pé. Ela disse que não tinha dinheiro. JOÃO Ser pobre é foda. JULIANA Pobre e doida, quer dizer. TOM É. É bem esse o caso de Isabel e sua fuga numa noite de chuva. Fuga numa demais? JULIANA noite de chuva? Não soa melodramático TOM Ela fugiu de mim, coitadinha. Atribuiu a mim aquele terrível acidente. 123 JULIANA (irônica) Quanta injustiça existe nesse mundo. O freio de mão não funciona e deixa você numa situação difícil. MARCO Mas gostaria de deixar registrado que ainda você saiu no lucro. JOÃO Lucro em quê? MARCO (a TOM) Você não disse que ela foi a melhor bimbada de sua carreira artística? JULIANA Registrado aonde, seu energúmeno? TOM Que se registre na ata e cumpra-se a vontade do senhor secretário-geral. JULIANA Você desperta meus instintos mais primitivos, Marco HELENIO. TOM Gastei quase dez mil com o conserto dos carros. Perdi uma namorada maravilhosa. Onde é que está o lucro, posso saber? MARCO Você não teve que pagar nada à empregada. Não deixa de ser lucro. JOÃO Algumas vezes eu fico com a impressão de que a gente fica repetindo as coisas o tempo todo. MARCO O que a gente está repetindo? JOÃO Essa estória da empregada já deu o que tinha que dar. Vamos ao que interessa. TOM Que a pauta seja retomada. Bola pra frente. 124 JOÃO Essa reunião foi convocada para debater assuntos de segurança nacional JULIANA Segurança nacional? Que bobagem é essa, agora? MARCO Os cães ladram, mas a caravana passa. Tom suspira. TOM Até para a Secretaria de Segurança Pública Luciana é mulher. Vocês ainda não entenderam que ela não tem mais pinto? JOÃO O que em absoluto a transforma automaticamente em mulher. MARCO Não mesmo. JOÃO Uma mulher tem ovário, tem vagina. MARCO E, ao que me consta, sua gueixa digital não tem nada disso. JOÃO E tem perereca falsificada. (para os outros) Aquilo deve ter um cheiro horrível. MARCO Eu, hein? Estou achando essa conversa toda muito confusa. TOM (a João) O cheiro que tem aquilo não é problema seu. JOÃO Deve ser um fedor danado aquilo, senhor secretáriogeral. JULIANA Até onde vocês pretendem continuar com essa conversa idiota? MARCO 125 Até onde, porquinha? JOÃO (olhando para Tom) Presidente. TOM (olhando para Juliana) Acabou esse assunto. Não interessa se Luciana é homem ou mulher nem se tem xota fedorenta. É assunto meu e não admito discutir com vocês. Ponto final! Tom ficou mesmo irritado. A explosão assustou os amigos. JOÃO Você vai encontrar com ela de novo? TOM Vou. Claro que vou. JULIANA Quando? Posso saber? TOM Que merda de promiscuidade é essa? Minha vida agora virou um reality-show? JOÃO O assunto será definitivamente sepultado na diretoria. Mas é preciso ter uma conclusão. O que vai ser? MARCO Vamos fechar a reunião de hoje com uma moção de agravo. Depois avaliamos a questão de segurança nacional. JULIANA Dá pra deixar de lado a burocracia? Essa bobagem já está cansando a minha beleza. JOÃO O ser humano é ritualístico. Tem que ter liturgia, solenidade. Fica mais realista, é mais realista. JULIANA Vocês são dois retardados. Não dá para levar a sério toda essa bobagem de liturgia. TOM 126 Gostaria de deixar registrado nos anais da diretoria que o jiló presidencial foi feito para saídas, não para entradas. JOÃO Tem anal demais aqui nessa reunião. JULIANA Estou cercada por palermas. Eu me sinto uma idiota participando dessa bobagem. INT. SALA APARTAMENTO DE TOM/POMPEIA – NOITE. Tom está tomando um uísque e fumando um cigarro de maconha. Está ouvindo THE SINNERMAN, com Nina Simone. O celular dele toca. Tom pega o aparelho e atende. TOM Está certo. Onde? LUCIANA Naquele café em Vila Madalena. O que você vai sempre. TOM Combinado. Vou pra lá agora mesmo. CORTA PARA: EXT/PRÉDIO DE LUCIANA/POMPEIA/SÃO PAULO – NOITE. Luciana sai da garagem do prédio dela, dirigindo ela mesma o carro. EXT/RUAS DE VILA MADALENA/SÃO PAULO – NOITE. Luciana segue dirigindo pelas ruas do bairro; ela e Tom seguem o mesmo caminho, em sentidos diferentes. CORTA PARA: EXT. CAFÉ BOULANGE/VILA MADALENA/SP – NOITE. Tom e Luciana estacionam seus carros. IRIS OUT TO: EXT. CAFÉ BOULANGE/VILA MADALENA/SP – DIA. 127 Caco está tomando seu café da manhã, digitando em seu laptop. IRIS IN TO: EXT. CAFÉ BOULANGE/VILA MADALENA/SP – NOITE. Tom e Luciana tomam champanhe, numa mesa mais isolada. TOM Se você não tivesse ligado eu iria procurar você. LUCIANA Não é fácil lidar com essa situação. Mas quero resolver isso logo. A imaginação da gente é uma coisa terrível. TOM Segundo os sábios da época de Zoroastro, problemas nascem junto com as soluções. os LUCIANA Será? Prefiro pensar que o medo da coisa é sempre pior do que a própria coisa. TOM Vamos ser sinceros e diretos, minha querida? Vamos resolver tudo isso de uma forma harmônica, à altura das pessoais legais que somos? LUCIANA Também prefiro. TOM Eu venho procurando uma mulher especial em minha vida há muito tempo, Luciana. Tive um casamento horrível, que me deixou escaldado demais. Você sofreu decepção? LUCIANA muito, querido? Teve TOM É. Uma grande decepção. LUCIANA Faz quanto tempo que isso aconteceu? TOM Doze anos. LUCIANA uma grande 128 Quantas namoradas nesse período? TOM Namoradas mesmo? De verdade? LUCIANA Não namoro necessariamente. Compromisso: é o que eu quero dizer. TOM Bom. Namoro mesmo foi só um. LUCIANA Há quanto tempo? TOM Seis anos. Ela era viúva. LUCIANA Por que não deu certo? Ela também machucou você? TOM Eu não dei a ela a oportunidade de fazer isso. Saí fora, fugi da raia. LUCIANA Você a deixou? TOM É. Uma mulher maravilhosa. E eu a perdi. LUCIANA Foi só um namoro? TOM Não. Teve outro. Um ano depois da viúva. LUCIANA E também não deu certo? TOM Pode dizer que não. LUCIANA O que deu errado? TOM Eu. Eu dei errado e venho dando errado há muito tempo. LUCIANA 129 Por que, meu amor? TOM Por que eu inventei motivos deixei mulheres maravilhosas. que não existiam e LUCIANA Você percebe que se sabotou? TOM Você acertou. Essa é a verdade. Eu me sabotei. LUCIANA Sei como é isso. Sei muito bem. TOM O que você sabe? LUCIANA Sei que eu quero você. Sei que eu quero amar, ser amada. Você está disposto a não se sabotar mais? TOM Você vai me ajudar? Vai me compreender? Ela aperta as mãos dele. LUCIANA Claro, querido. TOM Eu achava que não conseguiria mais amar. Foi preciso encontrar você para entender muitas coisas que aconteceram em minha vida. Eu estou apaixonado. Não foi fácil admitir isso, mas a verdade é essa. Porque homem? foi LUCIANA tão difícil? Só porque eu sou nasci TOM É justamente isso que estou tentando explicar você. O problema está em mim. Não em você. a LUCIANA Tenho muito medo de você não me aceitar como eu sou. TOM Sabe de uma coisa? Não tenha mais esse medo. É possível que eu tenha vencido meus fantasmas interiores só porque você é... Assim, como é. 130 LUCIANA ...homem ou mulher... Vamos usar as palavras certas. Sem subterfúgios, por favor. TOM É difícil explicar, eu mesmo não entendo direito o que está acontecendo. LUCIANA Explicar o quê? TOM O que mais me atrai em você é justamente o fato de ser como é. LUCIANA Por quê? TOM Sua insegurança comigo. Seu medo de que eu não aceite você como é. Essa vulnerabilidade me apaixona... me seduz. LUCIANA Você me quer exatamente do jeito que eu sou? TOM Sem mudar absolutamente nada. Você é perfeita para mim exatamente como é. LUCIANA Mas por quê? Eu não entendo. TOM Com você eu me aceito como eu sou. Querendo você comigo, eu me sinto mais à vontade comigo mesmo. LUCIANA Agora eu entendo. Você me ama. TOM ...como? Não foi isso que eu disse. LUCIANA Você não disse que quer casar comigo? TOM Eu até quero, mas eu ainda não disse isso. LUCIANA Acabou de dizer. 131 TOM Acho que não. LUCIANA Isso é um pedido de casamento? TOM É. É um pedido formal de casamento. LUCIANA Não tão formal, já que não tem aliança para a noiva. TOM Depois a gente resolve isso. Mas a minha aliança está aqui (mostra a mão direita). CLOSE-UP das mãos de Tom. LUCIANA Estou sentindo a minha aliança. CLOSE-UP das mãos de Luciana. TOM Eu também sinto a minha. TOM Mas há uma coisa. LUCIANA Sempre há um “mas”. Que “mas” é esse? TOM Minha amiga. Juliana. LUCIANA O que tem ela? TOM É uma pessoa que preciso ver sempre. Ela vai morar no Rio. Você topa ir também? LUCIANA Vamos deixar as coisas bem claras. Ir para o Rio significa exatamente o quê? TOM Mudar de cidade. Só isso. LUCIANA Você ama sua amiga Juliana? É isso? 132 TOM Não do jeito que você está pensando. Ela é minha alma gêmea. LUCIANA Mesmo sem romance, sem tesão? TOM Mesmo. LUCIANA Não ligo mesmo - se é o que você quer e vocês são univitelinos. Somos adultos. Quem sabe mais adiante a gente não experimenta algumas coisas novas (dá uma piscadinha sensual)? IRIS OUT TO: INT. ESCRITÓRIO DE CACO – NOITE. Caco digita a última frase do terceiro ato: PONTO DE VISTA de Caco, digitando devagar. TEXTO: BORK e MADS vão à frente e voltam, rindo com Juliana. Luciana segue junto com eles. Todos estão felizes. VEMOS o mouse fechando o arquivo do processador de texto em que estava sendo escrito o roteiro. A sala está imersa em fumaça de maconha. CACO dá um longo suspiro. CACO Praticamente um dia antes do prazo. Caco: Caco, você é foda. TOCA a campainha. Ele olha as horas. CLOSE-UP do relógio: são 2 horas e 15 minutos. Caco vai até a porta e coloca o ouvido na madeira. CACO Rogério? É você? 133 A atriz que representa interpreta a delegada mencionadas. a POLICIAL é Sônia e as a mesma atriz que demais personagens Mas aqui a roupa dela combina mais com a profissão: colete da Polícia Civil, jeans, camiseta e rabo-de-cavalo. POLICIAL (em OFF) Polícia Civil! CACO O quê? Quem é? POLICIAL (em OFF) Delegada Virgínia Fonseca, da SEPTUAGÉSIMA OITAVA DELEGACIA DE POLÍCIA CIVIL, nos Jardins. Abra a porta, por favor. CACO (pálido, assustado) Polícia? O que vocês querem comigo? POLICIAL Viemos prender o senhor. Abra a porta! Caco olha a fumaça da maconha, conseguir diluir a fumaça. abana em desespero, CACO O lar é inviolável. Vocês não podem entrar! POLICIAL (em OFF) A ordem de prisão que está na minha mão diz que sim. Foi expedida por um juiz. CACO Contra mim? POLICIAL (em OFF) O seu nome é Carlos Alberto SIGELMAN? CACO É. POLICIAL (em OFF) O senhor é judeu? sem 134 CACO Sou. A senhora é nazista? POLICIAL (em OFF) O senhor é circuncidado, não é? CACO O que isso tem a ver? Que loucura é essa? (pausa) Meu Deus! Estão perseguindo os judeus outra vez? POLICIAL (em OFF) É ou não é? CACO Sou. Claro. A senhora jura que não é neonazista? POLICIAL (em OFF) A Polícia não está perseguindo judeus. Só um judeu em particular. CACO Eu conheço o dito cujo? OUVIMOS o disparo de um tiro. Caco entra em pânico, achando que foi ferido. Leva um tempo para perceber que está ileso. POLICIAL (em OFF) O próximo vai acertar se o senhor não abrir essa porta logo! Eu conheço estranha. CACO a senhora? Sua voz não me parece POLICIAL (em OFF) Pode ser da televisão. Eu dou muitas entrevistas. Caco fica pensativo. CACO (inseguro) Será? POLICIAL (em OFF) 135 Isso não faz diferença! Abra já essa porta por que o senhor está preso. CACO Não é certo prender as pessoas assim, desse jeito, em plena casa delas, sem avisar. CORTA PARA: PASSAMOS AO OUTRO LADO DA PORTA. A delegada está com o ouvido colado à porta, da mesma forma que CACO estava. POLICIAL (irônica) Da próxima vez marco com uma semana de antecedência e telefono um dia antes. Está bom assim, senhor Carlos Alberto? A tela parte-se em duas metades, separadas pela porta. Do lado esquerdo, Caco; de frente pra ele, cara na porta, a policial. POLICIAL O senhor está sendo procurado pela lei há muitos anos. Não adianta tentar fugir. O senhor está cercado! Abra logo essa porta. CACO Há um mal entendido, delegada e isso com certeza isso vai ser esclarecido. Eu não fiz nada, garanto que não fiz. POLICIAL No Carandiru ninguém fez nada também. CACO Mas eu não fiz mesmo. Vocês precisam acreditar em mim... Pelo amor de Deus! Os policiais batem com força na porta. POLICIAL Abra logo a porta! Tom abana a fumaça, desesperado. Tenta por todos os meios expulsar a fumaça apartamento, que está com a janela aberta. CACO para fora do 136 O lar é inviolável! POLICIAL Deixe de ser cínico, seu filho da mãe. Abra a porta ou vamos derrubar essa merda! Caco fica confuso. CACO Delegada Sônia? É você? Silêncio. CACO Claro que não é a delegada Sônia. Que burrice a minha. Há fumaça demais: ele com um cigarro acesso. Ele cheira o cigarro. CACO Será que essa merda está estragada? Ele apaga o cigarro num cinzeiro, com nojo. Batem na porta de novo, com força e estridência. POLICIAL (em OFF) Abra essa porta! Polícia Civil com mandado judicial. Caco fica mais confuso ainda, começando a entrar em pânico. CACO (amedrontado) É você, delegada Sônia? A tela divide-se em duas metades iguais, dividida ao meio pela mesma porta que divide Caco da delegada. Os dois estão grudados na porta. VEMOS outros policiais com a delegada, representada pela mesma atriz que interpretar a delegada Sônia. POLICIAL (em OFF) Não sou nenhuma delegada Sônia. Meu nome é Virgínia. CACO (visivelmente confuso) Mas você também é delegada? POLICIAL 137 (em OFF) Que diferença faz? Mas sou delegada sim. Abra logo essa porta! CACO Mil desculpas, doutora. Eu estou confuso. Por favor, me diga... Por que a senhora quer me prender? POLICIAL O senhor está me gozando? CACO Não! Juro que não! Por favor, me diga. POLICIAL O senhor... CACO Você. POLICIAL ... O senhor é procurado por dois crimes. Um mais grave do que o outro. Qual prefere ouvir primeiro? CACO Que merda. Não faz diferença. Qualquer uma. POLICIAL Homicídio doloso. Primeiro. Tom está desesperado: não consegue remover a fumaça de maconha e começa a acreditar que realmente vai ser preso. CACO Não pode ser! Claro que não pode! Eu nem saí de casa nos últimos dias. Tom com o ouvido colado à porta. O senhor porta? vai POLICIAL abrir ou CACO Doloso mesmo? É pior diferença. vou do ter que que arrebentar culposo? Esqueci a a POLICIAL (em OFF) O seu crime provavelmente foi involuntário. Mas sua vizinha morreu mesmo e foi cometido um crime. 138 TOM Crime? A velhota morreu? POLICIAL (em OFF) Minha avó senhor SELIGMAN. Mais respeito. CACO (coçando a cabeça, doidão) Merda! Quero dizer, mil desculpas. Perdão, perdão! Eu estou confuso demais... Meu Deus, isso é doido demais... O que houve com ela? POLICIAL Pulou da janela. Matou-se. CACO Isso é suicídio. Porque o culpado sou eu? POLICIAL A maconha de seu apartamento foi toda para o dela. Ela ficou muito doida, mas muito doida demais. CACO Como assim? (noutro tom) Que maconha? POLICIAL Não seja besta: dá pra sentir o cheiro lá em Itaquera. A coitadinha de minha avó ficou doidona, tirou a roupa e pulou. Caco, encostado na porta, deixa o corpo escorrer, desanimado, derrotado. CACO Essa estória está mal contada. Ninguém fica doidão e pula pra morrer. POLICIAL O juiz acha que ela ficou eufórica demais com a maconha. Mais do que devia. E morreu por isso. CACO Eufórica? Maconha não dá euforia. POLICIAL Eu sei. Mas o juiz acha que porque parou de sentir dores. CACO Dores? Que estória é essa? ela ficou eufórica 139 POLICIAL Ela estava com câncer em estado avançado. A maconha tirou as dores dela. CACO (baixinho) Que situação absurda, meu Deus. Se eu coloco isso num roteiro iriam me chamar de incompetente o resto da vida. Caco olha para a janela aberta. CACO Um ótimo motivo, você há de convir. Eu pularia também. Você deveria era ficar agradecida a mim. POLICIAL (em OFF) Eu estou. Mas o juiz não gostou de tanta maconha na cara de minha avó, que também é avó dele, já que ele é meu irmão. Além do mais o senhor já está com a barra suja. CACO Barra suja? POLICIAL O outro crime, o senhor já esqueceu? CACO (desanimado de novo) Qual outro? POLICIAL Assalto à mão armada, sedução mediante má fé e roubo do vestido das vítimas, além de cartões de crédito e dinheiro. CACO Mentira. Nunca usei vestido. POLICIAL Usou sim. Temos fotos suas quando estava vestida de travesti. E as vítimas identificaram que o senhor é circuncidado, já que viram o senhor pelado. CACO Isso é cascata. Ninguém prestaria atenção nisso! POLICIAL Você não conhece as mulheres, senhor Carlos Alberto? 140 CACO Conheço muito bem. E uso roupa de mulher se quiser. Vivo numa democracia ou os corruptos acabaram com ela? eu já POLICIAL Pode usar até fantasia de Penélope Charmosa, mas tem que ir comprar na loja. Seduzir mulheres inocentes e roubá-las é coisa muito feia e dá cadeia. CACO Meu lar é inviolável. Seu irmão está com raiva, mas deve a mim as últimas alegrias da pobre velhota. POLICIAL Mais respeito. Se não abrir essa porta vou arrombar. CACO Eu conheço a lei. Vocês não podem provar nada. POLICIAL Porque você acha que o juiz mandou prender você? É claro que nada tem a ver com nossa avó, que de pobre velhota não tinha nada, por sinal. CACO Por quê? Nem imagino. POLICIAL Porque há provas concretas e robustas contra você, seu pilantra. O senhor roubou o dinheiro das coitadas. Fim da linha. CACO Foi por necessidade. Você não faz ideia de como eu sou mal pago. POLICIAL O senhor é professor? CACO Não. Roteirista de cinema. POLICIAL Porque o senhor não foi para a televisão? Eles pagam uma fortuna lá. CACO Não faltou vontade. Faltou padrinho. POLICIAL 141 O senhor não vai mesmo abrir a porta? CACO Não. Ninguém me tira daqui. O lar é inviolável. A TELA VOLTA A FICAR INTEIRA. Repete-se exatamente a mesma cena de invasão do motel, com a alusão ao filme de KUBRICK, “O ILUMINADO”. CORTA PARA: OUVIMOS os primeiros acordes de I WANT TO BREAKE FREE, a banda QUEEN, Fred Mercury no vocal. Tom e Luciana seguem de mãos dadas. Os gêmeos andam de patinete, com capacetes leves. Mas não atropelam ninguém. BORK e MADS vão à frente e voltam, rindo com Luciana. Os três estão felizes. Todos estão felizes. CORTA PARA: O videoclipe de PILATOS apresentado antes. para I WANT TO BREAKE FREE, já Ao longo do clip efeitos de computação gráfica colocam as cabeças dos demais atores no lugar da cabeça de Pilatos. Por fim, na última sequência do clipe, Pilatos aparece vestido como um governador de província romana, executando os mesmos passos que executava quando vestido como Fred Mercury no videoclipe original. FIM CRÉDITOS FINAIS. Maio/Junho/Julho/Agosto 2015.