USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO: ASPECTOS SOCIAIS

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USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO: ASPECTOS SOCIAIS
USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO: ASPECTOS SOCIAIS, JURÍDICOS E
AMBIENTAIS
DEISE MARCELINO DA SILVA
Bacharel em Direito (UCDB - Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, Mato
Grosso do Sul). Mestre em Ciências Jurídicas (UniCesumar, Maringá, Paraná).
Especialização em Direito Ambiental e Sustentabilidade (IDCC, Londrina, Paraná).
Doutoranda pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS). Professora
ZULMAR FACHIN
Doutor em Direito Constitucional (UFPR). Mestre em Direito (UEL). Mestre
em Ciência Política (UEL). Professor de Direito Constitucional na Graduação (UEL) e no
Mestrado (Unicesumar). Membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais o
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Presidente do IDCC - Instituto de
Direito Constitucional e Cidadania. Professor.
Comisión de trabajo: N° 2 “Movimientos sociales: protesta social y construcción de nuevos
sujetos jurídicos”
USUCAPIÓN ESPECIAL COLECTIVA: ASPECTOS SOCIALES, JURÍDICOS Y
AMBIENTALES
Resumen.
El objetivo de este trabajo es reflexionar sobre la usucapión especial colectiva. Es sobre un
instituto jurídico contemporáneo, nacido a partir de la realidad social de los grandes centros
urbanos habitacionales existentes en Brasil. Los movimientos sociales, en el inicio del siglo
XXI, actúan en dos dimensiones distintas: en el campo ("sin tierra") y en las ciudades ("sin
techo"). Los movimientos sociales de los "sin techo" ocupan propiedades no construidas y
no habitadas y allí permanecen viviendo con sus familias, sin delimitar un espacio
territorial determinado. Por lo tanto, no es posible identificar las tierras ocupadas,
específicamente, por cada familia. La posesión y el uso son ejercidos colectivamente. Se
tiene un ejemplo en el que los movimientos sociales obligaron a la edición de una norma
jurídica para proteger su derecho a la vivienda. Para ello, Brasil promulgó la Ley núm.
10.257, de 10 de julio de 2010, llamada el Estatuto de la Ciudad. El reconocimiento de este
derecho, sin embargo, debe estar asociado a la protección del medio ambiente. Resalta en
este contexto, la función socio ambiental de la propiedad como un principio para orientar
las acciones de las personas y de funcionarios públicos. El trabajo considera que este
panorama actual de los "sin techo" merece la atención de los estudiosos de diversos campos
de conocimiento (Derecho, Sociología, Demografía), ya que es un fenómeno que implica
cuestiones ambientales y la identidad global. Es, por tanto, una cuestión de derechos
humanos fundamentales.
Palabras Clave: Usucapión Especial. Movimientos sociales. Vivienda.
Resumo:
O objetivo deste estudo é refletir sobre o usucapião especial coletivo. Trata-se de um
instituto jurídico contemporâneo, nascido a partir da realidade social de grandes centros
habitacionais urbanos existentes no Brasil. Os movimentos sociais, neste início de século
XXI, atuam em duas dimensões distintas: no campo ("sem terras") e nas cidades ("sem
teto"). Os movimentos sociais dos "sem teto" ocupam imóveis urbanos não edificados e não
habitados e ali permanecem residindo com suas respectivas famílias, sem, contudo,
delimitarem um espaço territorial específico. Desse modo, não é possível identificar os
terrenos ocupados, especificamente, por cada família. A posse e o uso são exercidos
coletivamente. Tem-se um exemplo em que movimentos sociais forçaram a edição de
norma jurídica para proteger seu direito à moradia. Com tal propósito, o Brasil editou a Lei
n. 10.257, de 10 de julho de 2010, denominada Estatuto da Cidade. O reconhecimento deste
direito, no entanto, precisa estar associado à proteção ambiental. Ressalta, nesse contexto, a
função socioambiental da propriedade como um principio a nortear a atuação de pessoas e
de agentes públicos. O trabalho considera que este quadro atual dos "sem teto" merece
atenção dos estudiosos de vários campos do conhecimento (Direito, Sociologia,
Demografia), visto se tratar de um fenômeno que envolve questões ambientais e a
identidade global. Revela-se, portanto, um assunto de direito humano fundamental.
Palavras-Chave: Usucapião especial. Movimentos sociais. Moradia.
Introdução
A legislação brasileira contemporânea possui atualmente o usucapião especial
coletivo, instituído pela Lei 10.257/99 (Estatuto da Cidade), tendo em vista o déficit de
moradia existente no Brasil, que impossibilita milhões de pessoas terem acesso a esse
direito fundamental. Ester é efetivamente instrumento destinado a efetivar o importante
direito de acesso à moradia.
Nesse sentido, pretende-se analisar os avanços jurídicos proporcionados pelo
constituinte de 1988, criando duas formas de usucapir individualmente: o urbano e o rural.
Especificamente os avanços do legislador infraconstitucional, que instituiu o usucapião
especial coletivo serão aqui analisados. Este trabalho parte de uma pesquisa bibliográfica
em obras de referência, valendo-se da legislação e doutrina.
No contexto específico do usucapião especial coletivo diante da realidade social,
considera-se a forma de execução, os efeitos jurídicos da concessão e os aspectos
ambientais que circundam o problema. Trata-se de instrumento útil nas discussões e na
elaboração de políticas públicas relacionadas à habitação.
O Direito deve estar em sintonia com a realidade social do seu tempo. A legislação
precisa oferecer instrumentos normativos capazes de transformar a realidade social. A
criação do usucapião especial coletivo é a exteriorização do Direito quanto à dura realidade
de milhões de pessoas frente ao déficit de moradia nas cidades. Neste sentido, o Direito
alia-se a esse grande desafio, que é melhorar as condições dos que estão alijados de
condições mínimas de habitabilidade.
1. O déficit de moradia nas cidades
A cidade pode ser compreendida como um centro populacional onde estão
presentes as edificações, que os membros da coletividade moram ou desenvolvem suas
atividades produtivas. Nela existem, equipamentos públicos destinados à satisfação das
necessidades dos habitantes. Considera-se, portanto, cidade o espaço de convivência da
sociedade em que estão à disposição da população, no mínimo, dois elementos: as unidades
edilícias e os serviços públicos.
A partir da segunda metade do século XX o intenso processo de urbanização
comprometeu a garantia de acesso a esses elementos, de forma a causar pressão sobre a
administração pública pela necessidade de políticas urbanas. Ao longo dos anos, o
crescimento dos centros urbanos, em boa medida, ocorre desordenadamente ou sem
planejamento, fazendo das cidades um espaço capaz de evidenciar conflitos, contradições e
contrastes habitacionais.
Essa situação estabeleceu as condições de vida nas cidades, em destaque nas
megalópoles, permitindo o surgimento de problemas como saneamento, transporte,
drenagem, bem como de ordem ambiental. A esses fatores soma-se ainda o déficit de
moradia.
Quanto à moradia elucida MARICATO que a população urbana é excluída do
direito à cidade e busca acesso à moradia por meio de seus próprios e precários recursos.
Percebe-se tal realidade ao se deparar com o saldo deficitário de moradias no país.
A falta de moradia é indicador empregado na política habitacional para informar
sobre a necessidade de reposição do estoque de moradias e, especialmente, auxiliar o gestor
público no mapeamento das famílias que dividem uma mesma residência por falta de
condições econômicas, moram em condições precárias ou comprometem mais de 30% da
renda com aluguel.
Em 2012, a carência de moradia no Brasil representava 5,79 milhões, o
equivalente a 9,1% de déficit. O déficit habitacional brasileiro é majoritariamente urbano
(85% do total). Seu cálculo exige a soma de quatro componentes, a saber: a) domicílios
precários; b) coabitação familiar; c) ônus excessivo com aluguel urbano; e d) adensamento
excessivo de domicílios alugados.
A questão da habitação nas cidades é um dos principais desafios socioambientais,
merecendo atenção dos diversos ramos do conhecimento. A falta de habitação aliada ao
crescimento populacional gera desequilíbrio nos sistemas citadinos.
É desejo de cada pessoa ter uma localização fixa e duradoura para desenvolver
seus direitos e anseios de vida. Tal interesse está conexo a residir próximo ao trabalho, com
acesso à escola, infraestrutura, ou simplesmente o direito de ter onde morar.
A moradia é condição essencial para a existência humana. Trata-se de um direito
fundamental de segunda dimensão consolidado no século XX. Como exemplos de tais
direitos sociais podem-se mencionar o direito ao trabalho remunerado, o direito de acesso à
educação, o direito de acesso à saúde e o descanso semanal. Direitos esses que não se
concretizariam sem o acesso à moradia digna. Nesse sentido, manifesta-se SOUZA:
O direito à moradia é concebido como inerente ao ser humano que faz jus a sua
morada, ao seu local, à sua pousada, enfim, ao seu habitat. A moradia constitui-se
como essência do indivíduo, de modo que sem ela a existência digna de outros
direitos, como o direito à vida e a própria liberdade, não é exercida de forma
satisfatória e plena. E quando as projeções desse direito no mundo exterior, temse não só como físico, mas também moral, psíquico e social, já que afeta grande
parte da sociedade, tornando sob tal enfoque um interesse social e público,
principalmente quando se envolve como dever da atividade estatal [...].
Nesse contexto, é primordial a atenção do Poder Público no zelo para com todos
os fatores que condicionam o bem-viver urbano: número de habitantes, densidade
populacional, áreas abertas e públicas, infraestrutura de lazer, escola, saúde e moradia, bem
como alas comerciais, industriais e residenciais. A Constituição Federal prevê a
competência dos municípios em promover adequado ordenamento territorial, mediante
planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30).
Entretanto, a forte influencia do capital sobre as cidades, a gestão pública pontual,
bem como as políticas urbanas descontinuadas conduzem a atual situação de crise urbana.
Paulatinamente, os moradores de baixo poder aquisitivo são afastados para as periferias das
cidades e, de acordo com BOURDIEU, estão imobilizados nesses lugares sem perspectiva
de mudança:
Os que não possuem capital são mantidos à distância, seja física, seja
simbolicamente, dos bens socialmente mais raros e condenados a estar ao lado
das pessoas ou dos bens mais indesejáveis e menos raros. A falta de capital
intensifica a experiência da finitude: ela prende a um lugar.
A situação imposta pela ausência de assentamentos residenciais para a população
sem capital tem provocado, por exemplo, ocupações em terrenos ou prédios urbanos
precários ou abandonados. As ocupações dessas áreas são frequentes nas grandes cidades,
onde a população padece de recursos próprios e públicos para sua fixação criando um
cenário de moradias irregulares chamado de cidade ilegal.
Sobre isso, SIRVINSKAS elucida que:
Já não se pode qualificar como minoria a parcela da população sujeita a habitar
moradias irregulares, num contexto em que se vê desprovida do privilégio de
desfrutar adequada e dignamente das funções essenciais da cidade: habitar,
trabalhar, recrear e circular, nos termos da Carta de Atenas de 1933.
Com vista a um planejamento urbano humanista MARICATO entende que as
“Ações de titulação de terra, melhoramento de áreas precárias e provisão de novas
habitações para a população de baixa renda estão entre os maiores desafios para conter o
crescimento de favelas na América Latina”.
Nas palavras de CORDEIRO as favelas retratam o déficit de moradia nas cidades e
revelam a negligencia do Poder Público:
A favela, como integrante do espaço urbano (metropolitano), não pode ser
negligenciada. Aliás, sua inserção na cidade formal deve ser encarada pela ótica
do seu reconhecimento como parte integrante da cidade, até porque ela não
representa apenas um déficit de moradia, mas sobretudo, a concretização da
exploração da força de trabalho e a especulação imobiliária que, realmente, cada
vez mais, controla o uso do espaço urbano.
Registra-se que a atualização do déficit habitacional é um meio para que se
possam realizar avaliações da política habitacional brasileira. Importante lembrar que a
produção habitacional de interesse social implica em evitar a espoliação urbana, criar
condições para a coesão social e ampliar o acesso das pessoas carentes à moradia legal.
Em outras palavras, a falta de moradias nas cidades, uma realidade concreta da
vida de inúmeras pessoas, deve ser “atacada” com vontade política, participação social e
proteção ao meio ambiente natural. O arcabouço jurídico e seus institutos, em especial, o
usucapião urbano coletivo, revelam importância capital em face desse problema a ser
equacionado.
2. Espécies de usucapião na constituição brasileira
A Constituição brasileira, promulgada em 5 de outubro de 1988, trouxe inovações
em vários campos da vida jurídica do País. Especificamente, nas relações urbanas, criou
institutos jurídicos específicos ou deu novo tratamento a institutos já existes. As
preocupações do constituinte neste campo são evidenciadas em diversas normas,
especialmente com a criação de um capítulo específico sobre a “Política Urbana”, impondo
ao direito de propriedade algumas limitações.
A primeira Constituição do Brasil, outorgada em 25 de março de 1824 previu o
sistema capitalista de produção e, expressamente, protegeu a propriedade privada. Seguindo
este modelo, todas as Constituições brasileiras protegeram a propriedade privada.
A Constituição atual garante a propriedade privada (artigo 5°, inciso XXII), mas
exige que ela cumpra função social (artigo 5°, inciso XXIII). Tais normas constitucionais
incidem tanto sobre a propriedade urbana quanto sobre a propriedade rural.
Relativamente à propriedade rural a Constituição estabeleceu a observância a
partir do atendimento simultâneo dos seguintes requisitos: a) aproveitamento racional e
adequado; b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente; c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e)
exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (artigo 185,
incisos I, II, III, IV e V).
Tal exigência (cumprimento da função social) também foi imposta à propriedade
urbana. O parágrafo segundo do artigo 182 afirmou que esta deve atender às exigências
fundamentais de ordenação da cidade que estiverem expressas no plano diretor, a ser
instituído obrigatoriamente pelos Municípios com mais de vinte mil habitantes.
Nota-se, então, que a Constituição de 1988 garante o direito de propriedade, tanto
à rural quanto à urbana, quando esta cumprir a função social. Ao reverso, pode-se afirmar
que a propriedade (urbana ou rural) que não cumpre função social não tem proteção
constitucional.
O constituinte de 1988 revelou intensa preocupação com a vida das cidades.
Movido por tal sentimento abriu capítulo específico intitulado “Da Politica Urbana”. Nessa
perspectiva, a Constituição de 1988 previu dois tipos de usucapião especial: o rural e o
urbano, ambos de caráter individual.
O usucapião especial rural está previsto no artigo 191, nos seguintes termos:
“Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco
anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta
hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia,
adquirir-lhe-á a propriedade”.
Da leitura do texto constitucional deduz-se que para obter esse direito o
requerente: a) não poderá ser proprietário de imóvel rural ou urbano; b) não poderá possuir
como seu o imóvel usucapiendo; c) deve ter posse por cinco anos ininterruptos e sem
oposição; d) deve estar em área de terra situada em zona rural e não ser superior a
cinquenta hectares; e) deve estar em área produtiva por seu trabalho ou de sua família; f)
deve ter na área rural sua moradia.
Preenchidos os requisitos acima referidos, o possuidor adquirirá a propriedade.
Ao lado do usucapião especial rural, a Constituição de 1988 criou o usucapião especial
urbano. Segundo previu em seu artigo 183: “aquele que possuir como sua área urbana de
até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem
oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde
que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.
Do texto constitucional decorrem os requisitos exigidos para que o possuidor
venha a adquirir o título de proprietário do imóvel usucapiendo: a) possuir como sua área
urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados; b) posse ininterrupta exercida por
cinco anos; c) posse sem oposição; d) utilizar o imóvel para sua moradia ou de sua família;
e) não ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Há proibição expressa de que imóveis públicos sejam usucapidos, urbanos (artigo
183, parágrafo 3º) ou rurais (artigo 191, parágrafo único).
Tendo em vista a evolução social, contudo, nova modalidade de usucapião
especial foi acolhida pelo Direito brasileiro.
3. Usucapião urbano especial coletivo
A Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001 - Estatuto da Cidade -, referiu-se também
ao usucapião especial urbano coletivo, instrumento capaz de pacificar a posse da terra
urbana e concretizar o direito fundamental à moradia. Trata-se de outra modalidade de
usucapião especial urbano, diferente daquele previsto na Constituição Federal (art. 183).
Afirma CORDEIRO que “O usucapião especial urbano coletivo foi concebido para
o fim de possibilitar a regularização fundiária de uma coletividade de pessoas de baixa
renda que ocupa certa área urbana para moradia [...] visa assegurar o direito à moradia aos
favelados ou grupos desprovidos de um teto para morarem”.
Dispõe, neste sentido, o artigo 10 da Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001:
As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas
por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente
e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada
possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os
possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Da análise do dispositivo legal, podem ser retirados os seguintes requisitos: a) área
de terra urbana com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados; b) área de terras
ocupada por população de baixa renda; c) intenção de estabelecer moradia; d) posse por
pelo menos cinco anos ininterruptos e sem oposição; e) não ser possível identificar os
terrenos ocupados por cada um dos possuidores; f) o usucapião ter caráter coletivo (não
individual); g) não ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Sobre “população de baixa renda” a que faz alusão à lei, LIMA pondera que “o
foco do legislador ordinário direciona nitidamente para aqueles núcleos habitacionais
toscos, onde famílias de baixa renda constroem seus barracos, uns colados nos outros, com
privações de toda ordem”.
Na contagem do tempo de posse, qualquer dos possuidores condôminos pode
acrescentar à sua posse a do seu(s) antecessor(es). Desse modo, exige-se, apenas, para
contagem do tempo, que as posses sejam contínuas e que elas totalizem pelo menos cinco
anos (parágrafo 1º).
Registre-se que para a configuração da usucapião especial urbana coletiva, é
necessário que a posse seja declarada por sentença. O juiz atribuirá, por sentença, igual
fração ideal de terreno para cada possuidor, pouco importando saber a dimensão do terreno
que cada um efetivamente esteja ocupando. Contudo, havendo acordo escrito e assinado
entre os condôminos, as frações ideais poderão ser diferentes. Em qualquer hipótese, a
sentença servirá de título para registro no cartório de imóveis (parágrafo 2º e 3°).
Vale ressaltar que o condomínio especial constituído por sentença será indivisível,
sendo vedada sua extinção, salvo na hipótese de execução de urbanização posterior à
constituição do condomínio. Para que isso ocorra, a deliberação deve ser tomada por
maioria de pelo menos dois terços dos condôminos (parágrafo 4º).
Na tramitação do processo de usucapião, o Ministério Público deverá intervir na
ação de usucapião especial urbana. Não se trata de faculdade, mas de obrigatoriedade. O
que legitima sua atuação é o dever de proteger interesses sociais.
Registre-se, ainda, que a ação de usucapião especial urbana irá tramitar pelo
procedimento sumário. Os autores da ação, beneficiários da justiça e da assistência
judiciária gratuita, também ficarão isentos das custas processuais e despesas de registro de
imóveis (artigo 13, parágrafo 2º, e artigo 14)
Por outro lado, os possuidores também poderão reivindicar o reconhecimento do
usucapião especial de imóvel urbano mediante defesa, ou seja, uma ação judicial é proposta
contra os possuidores que, invocando matéria de defesa, podem ter reconhecido o direito
por sentença, a qual constituirá título hábil para registro em cartório de registro de imóveis
(artigo 13).
Na perspectiva do direito processual, a Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001
(Estatuto da Cidade), estabelece os legitimados a proporem a ação de usucapião especial
urbana. São eles: a) I o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou
superveniente; b) os possuidores, em estado de composse; c) como substituto processual, a
associação de moradores da comunidade, regularmente constituída, com personalidade
jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos representados (artigo 12).
Sobre os legitimados, LOMAR observa que:
O que o legislador propiciou foi que aquele possuidor suscetível de adquirir o
domínio do imóvel que utiliza para moradia própria ou de sua família com base
no art. 183 da CF pudesse, livremente, somar-se a outros possuidores com iguais
possibilidades para viabilizar a reurbanização capaz de melhorar as condições
reais de vida de todos eles naquele ambiente.
Não é demais ressaltar que uma das finalidades mais importantes do usucapião
urbano especial coletivo é viabilizar o direito fundamental à moradia. A Constituição
Federal previu amplo rol de direitos fundamentais, inclusive direitos fundamentais de
natureza social. Contudo, ela não previu o direito fundamental à moradia. Tal direito
somente foi considerado fundamental em 2000, com a publicação, em 15 de fevereiro, da
Emenda Constitucional número 26.
Desse modo e, por força da referida emenda constitucional, "são direitos sociais a
educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados" (artigo 6º).
O usucapião coletivo urbano pode se constituir em um dos instrumentos efetivos
de acesso ao direito fundamental à moradia. Primeiro, porque se destina a pessoas de baixa
renda. Segundo, porque é um instrumento coletivo de atendimento de oferta de moradias.
4. Aspectos ambientais do usucapião coletivo urbano
A análise da propriedade da terra, do direito à moradia/habitação e do instituto do
usucapião urbano coletivo perpassa pelo aspecto ambiental. A propriedade está
condicionada à função socioambiental, o direito à moradia digna requer um ambiente
hígido e o instituto do usucapião coletivo surge como garantia do direito à cidade
sustentável.
A teia normativa ambiental formada pela Constituição Federal (artigo 270, III),
pela Política Nacional do Meio Ambiente (artigo 4°, I) e pelo Estatuto da Cidade (artigo
39), entre outras leis internas e internacionais, prevê que o exercício do direito à
propriedade deve atender a função socioambiental, promovendo a proteção ambiental em
benefício da coletividade.
Nesse sentido, “a propriedade, sem deixar de ser privada, se socializou, com isso
significando que deve oferecer à coletividade uma maior utilidade, dentro da concepção
que o social orienta o individual”.
O titular do direito à propriedade deve usar e usufruir do bem, evitando o abuso
desse direito, respeitando, assim, o interesse social em detrimento da vontade particular e
de concepções individualistas. Em geral, o fim social a que se propõe tal função não
coincide com os interesses do proprietário, já que se depara com limitações em seu direito,
outrora absoluto. Para ALBUQUERQUE:
[...] em decorrência do princípio da função social, o direito de propriedade foi
atingido na sua concepção capitalista mais acentuada, que é a liberdade de
iniciativa (valor preponderantemente liberal), perdeu em definitivo o seu caráter
absoluto e passou a ter seu uso condicionado ao atendimento de uma função.
A função social da propriedade, também é nomeada de função socioambiental,
pois o proprietário, ao atuar em favor dos anseios legítimos da coletividade, estará
caminhando ao encontro da proteção do meio ambiente, ampliando o sentido desse
princípio.
Como anteriormente demostrado, tal princípio está previsto no artigo 182,
parágrafo 2°, da Constituição Federal Brasileira de 1988, onde determina que a propriedade
urbana cumpre sua função social na observância das diretrizes do plano diretor da cidade.
Registra-se que “o plano diretor da cidade não poderá se afastar dos princípios
constitucionais atinentes à defesa e preservação do meio ambiente e da ordem econômica, a
fim de permitir que a atividade urbanística seja lesiva aos interesses da coletividade”.
Nesse sentido, o plano diretor, sensível aos interesses da coletividade e da situação
de carência de habitações, pode atrelar o cumprimento da função social à conservação ou
uso dos imóveis, criando a possibilidade, por exemplo, de áreas ou edificações que se
encontram abandonadas ou degradadas servirem do combate à pobreza.
A erradicação da pobreza é forma de lutar contra os danos ambientais. Caracterizase dano ambiental toda a alteração relevante que modifique negativamente o ambiente, seus
recursos e o equilíbrio do ecossistema, dos bens ou os valores coletivos. O processo de
urbanização, como valor coletivo, contribui para agressão do meio ambiente, quando
realizado sem acompanhamento estatal.
A formação crescente de favelas, a ocupação de áreas de proteção ecológica e de
locais de perigo de desastres naturais eminentes, revela que a ocupação do solo ocorre num
universo de ilegalidade e precária fiscalização. Em boa escrita, MARICATO afirma que:
[...] para os assentamentos precários ilegais, em áreas que não interessam o
mercado imobiliário, a fiscalização é precária. Nem mesmo em áreas de proteção
ambiental, sobre as quais incidem leis federais, estaduais e municipais, a
fiscalização e a aplicação da lei se dão com mais rigor do que nas áreas
valorizadas pelo mercado (o que não significa que aqui se verifica o máximo
rigor).
A Agenda 21 considera que “o acesso à habitação segura e saudável é essencial
para o bem-estar físico, psicológico, social e econômico das pessoas, devendo ser parte
fundamental das atividades nacionais e internacionais”.
O direito à habitação adequada, enquanto direito humano fundamental, está
consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Entretanto, esse direito se depara com vários
problemas ambientais, sendo um deles considerado primordial para sua garantia, qual seja:
a falta de saneamento.
Parcela significativa da população dos países pobres não tem acesso ao
saneamento básico. Neste quadro, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou, no
dia 8 de setembro de 2000, o documento denominado “Declaração do Milênio”, adotada
pelos 191 estados membros. A declaração traz uma série de compromissos que, se
cumpridos nos prazos fixados, segundo os indicadores quantitativos que os acompanham,
deverão melhorar o bem-estar e a saúde da humanidade. O objetivo 7 da meta 10 estabelece
para o setor de abastecimento de água e coleta de esgoto o desafio de, até 2015, melhorar a
cobertura dos respectivos serviços em comparação aos existentes no ano de 1990.
Vale destacar que 1,4 bilhões de pessoas ainda não têm acesso a água potável e
outros 2 bilhões ainda não possuem condições adequadas de esgotamento sanitário. Se este
cenário não for modificado, o número de pessoas sem acesso à água potável, em 2025,
alcançará 4 bilhões. Portanto, onde não há saneamento básico, não há coleta de esgotos
para o processo de tratamento da água servida, assim como não há a devolução no corpo
hídrico em qualidade compatível aos diversos usos. Como consequência, as águas naturais
tendem a se apresentar poluídas e contaminadas.
Nesse sentido, deve-se levar em consideração que o acesso à habitação, por si, não
protege as pessoas excluídas do mercado residencial privado das mazelas decorrentes de
um processo de urbanização sem planejamento urbano-ambiental. O direito à moradia deve
significar o direito à cidade, com acesso à rede de esgoto, água potável e coleta de lixo.
Assim, ao garantir o acesso à cidade sustentável, o direito à moradia deve coexistir
com o direito ao meio ambiente equilibrado, seja natural ou artificial, pois também
considerado um direito fundamental. O meio ambiente como direito fundamental humano
visa proteger tanto a qualidade ambiental e o direito à vida.
Conclusões articuladas
1. O Brasil padece de imenso déficit habitacional. As cidades grandes ou pequenas
enfrentam o problema, tentando reverter os números negativos que compõem as
estatísticas. Trata-se de um problema de grandes proporções. Exige-se, políticas públicas
permanentes que transcendam o período de tempo fixado para governantes exercerem seus
respectivos mandatos. Por esse motivo, o plano diretor deve deixar de estar sempre
programado além do quadriênio, ao contrário do que muitos municípios estabelecem de
reformas quadrienais, obstando políticas a longo prazo.
2. O Direito brasileiro contempla diversas espécies de usucapião. A Constituição Federal
previu duas delas, ambas especiais: usucapião especial urbano e usucapião especial rural.
3. O Estatuto da Cidade, criado pela Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, previu o
usucapião especial coletivo. Trata-se de uma modalidade especial de usucapião, semelhante
aos modelos constitucionais, porém diferente deles. Busca atender aos interesses da
população de baixa renda.
4. Embora apresente aspectos positivos, servindo de instrumento de efetivação do direito
fundamental à moradia, o usucapião especial coletivo pode ensejar processos de degradação
ambiental. Por essa razão, o Poder Público deve estabelecer zonas preferenciais para o
exercício desse direito, onde não haja degradação de sistemas ambientais. Essa é uma das
funções primordiais das ZEIS: circunscrever áreas em que se poderia efetivar a
regularização fundiária nos moldes do Estatuto da Cidade. Cabe, portanto, ao Poder Público
criar políticas públicas capazes de conciliar o desenvolvimento econômico, social e cultural
das pessoas com a proteção do meio ambiente.
Referências
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