Território Invadido

Transcrição

Território Invadido
Luiz Jardim de Moraes Wanderley
“Território Invadido”:
As lutas e os conflitos nas terras dos
negros do Trombetas-PA
Monografia apresentada ao Departamento
de Geografia, Instituto de Geociência,
Centro de Ciências Matemáticas e da
Natureza,
Universidade
Federal
do
Rio de Janeiro para obtenção de
Grau de Bacharel em Geografia
Orientadora:
Professora Maria Célia Nunes Coelho, PhD
Rio de Janeiro
2006
Este trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientifico e Tecnológico - CNPq, Processo n° 620216/2004-2
Wanderley, Luiz Jardim de Moraes
“Território Invadido”:As lutas e os conflitos nas terras dos negros do
Trombetas-PA /Luiz Jardim de Moraes Wanderley – 2006.58. f.: il.; 23 cm
Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Departamento de Geografia, curso de bacharelado em Geografia , 2006.
1. Populações Quilombolas – Trombetas (PA) - Amazônia. 2. Conflitos
Territoriais - Territorialidades. 3. Recursos naturais – Conservação – Usos –
Oriximiná (PA). 4. Projeto Minerador – MRN – Oriximiná (PA). 5.
Geografia. I. Título.
CDD 21.ed.
338.98115
I
RESUMO
O “Território Invadido” pretende analisar a formação, as lutas, os conflitos, as
transformações dos territórios negros no vale do Trombetas -PA ao longo do tempo. Neste
processo atuaram diferentes atores sociais das mais variadas escalas que se encontravam
ativos e presentes no espaço geográfico do Trombetas em cada período histórico. Os
surgimentos de novos atores também motivaram os rearranjos nas relações de poder, nos
limites dos velhos territórios e na delimitação de novos. As novas organizações espaciais
provocaram o surgimento de territórios sobrepostos, os quais em alguns casos significaram
alianças, em outros, suscitaram confrontações de interesses entre atores que lutavam por
espaço e recursos. Tais transformações espaciais decorrentes das sobreposições territoriais
provocaram coligações ou incitaram velhos e novos conflitos. Os embates nortearam-se por
discursos legitimadores de cada interesse, por estratégias de controle espacial e social e, até
mesmo, por confrontos diretos e atos de violência. Esse complexo espaço de conflitos e
contradições constituído por campos de forças diversos, múltiplas relações de poder e atores
multi-escalares, tem sido um rico campo de análise.
Palavras-Chaves: Quilombolas, Território, Amazônia
II
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
2. A OCUPAÇÃO TERRITORIAL NEGRA NO RIO TROMBETAS
2.1. O SISTEMA ESCRAVISTA CACAUEIRO
2.2. A FUGA - DA SENZALA AO QUILOMBO
2.3 OS TERRITÓRIOS SOB PROTEÇÃO DAS CACHOEIRAS
2.4 AS REDES DE RELAÇÕES SOCIAIS DOS MOCAMBEIROS
2.5 DESCENSO – O PROCESSO DE RETERRITORIALIZAÇÃO
3. NEGROS VERSUS ‘DONOS’ DOS CASTANHAIS
3.1 A ECONOMIA CASTANHEIRA
3.2 OS ‘DONOS DOS CASTANHAIS’ E OS CASTANHEIROS NEGROS
3.3 A DECADÊNCIA DO PATRÃO E LIBERTAÇÃO DOS CASTANHAIS
4. O GRANDE PROJETO MINERADOR
4.1. A FORMAÇÃO DO COMPLEXO BAUXITA-ALUMÍNIO
4.2 MINERAÇÃO RIO DO NORTE – UM GRANDE PROJETO IMPERADOR
4.2.1 O Mito do Espaço Vazio e as Conseqüências Territoriais
4.2.2 A Ilusão da Socialização do Progresso
4.2.3 A Cidade Fechada
4.2.4 A Sobreposição Territorial: os Recursos e o Impacto Ambiental
5. OS TERRITÓRIOS DO ENTORNO MINERADOR
5.1 AS ESTRATÉGIAS DE CONTROLE SÓCIO-TERRITORIAIS DA MRN
5.2 AS U.C.`s EM SOBREPOSIÇÃO AOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS
5.2.1 Reserva Biológica do Trombetas - REBIO
5.2.2 Floresta Nacional Saracá – Taquera - FLONA
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
8. ANEXO
III
1. INTRODUÇÃO
O “Território Invadido” pretende analisar a formação, os conflitos, as lutas, as
transformações dos territórios negros no vale do Trombetas -PA ao longo do tempo. Neste
processo atuaram diferentes atores sociais das mais variadas escalas que se encontravam
ativos e presentes no espaço geográfico do Trombetas em cada período histórico. Os
surgimentos de novos atores também motivaram os rearranjos nas relações de poder, nos
limites dos velhos territórios e na delimitação de novos. As novas organizações espaciais
provocaram a formação de territórios sobrepostos, os quais em alguns casos significaram
alianças, em outros, suscitaram confrontações de interesses entre atores que lutavam por
espaço e recursos. Tais transformações espaciais decorrentes das sobreposições territoriais
provocaram coligações ou incitaram velhos e novos conflitos. Os embates nortearam-se por
discursos legitimadores de cada interesse, por estratégias de controle espacial e social e, até
mesmo, por confrontos diretos e atos de violência. Esse complexo espaço de conflitos e
contradições constituído por campos de forças diversos, múltiplas relações de poder e atores
multi-escalares, é um rico campo de análise que interessa à Geografia.
Segundo Bunker (1985), a Amazônia brasileira foi e continua sendo estruturada na
extração de matéria-prima para exportação e na relação entre sociedade e exploração da
natureza, subordinada ao sistema político e econômico vigente em cada época. Durante o
período colônia e imperial a atividade capitalista predominante na Amazônia era o cultivo de
cacau e açúcar, que visavam atender as demandas européias. No fim do século XIX e o
princípio do XX, a borracha foi o commodity de exportação principal, também direcionada ao
mercado das grandes potências. No Pará, substituiu-se o extrativismo da borracha após seu
declínio de produção pela exploração da castanha-do-pará. Essa foi posteriormente
substituída, na segunda metade do século XX, pela extração mineral, cujos interesses estavam
voltados às grandes empresas transnacionais e aos empresários do centro-sul do Brasil. A
exploração mineral perdura até os dias atuais suprindo a necessidade nacional e internacional.
As lutas e os conflitos territoriais na Amazônia acompanham a disputa pelo controle e
acesso a economia extrativista dos recursos florestais e minerais. Estes conflitos se
manifestaram sob a forma: de sobreposições territoriais, de expropriações, de luta e
contestação pelo direito permanência e uso das áreas, de novas regras e normas, etc.
O presente trabalho de fim de curso tem como objetivo central: compreender o
processo de formação e resistência territorial dos negros no vale do Trombetas. Para isso, foi
1
preciso subdividir as questões em relação à história dos territórios e das diversas
transformações espaciais que os ameaçaram em diferentes períodos históricos.
As primeiras indagações referem-se ao período de construção dos quilombos: a) Como
se deu e em que conjuntura o processo de fuga dos escravos? b) Quais condições geográficas
lhes permitiram se constituir enquanto sociedade e território? c) Quando, como e por que os
remanescentes de quilombos se territorializaram nas atuais localidades?
A segunda série de investigação está relacionada às ameaças e invasões territoriais
sofridas pelos negros: a) Quais foram e que atores promoveram as invasões? b) Quais os
conflitos gerados nestes campos de força? c) Como os atores se arranjaram em rede frente aos
conflitos? d) Como se deu a reorganização espacial quilombola após os impactos das
invasões?
A metodologia científica dividiu-se em duas partes: pesquisas no gabinete e em
campo. Desenvolveram-se cuidadosas revisões bibliográficas referentes à história das
populações negras rurais no Trombetas e seu processo de territorialização. A abordagem
referente ao período escravista, no segundo capítulo, se baseou somente em referência de
outros autores, de onde se tentou extrair as informações para desenvolver uma análise
histórico-geográfica da época. Algumas entrevistas como a do padre da Paróquia de
Oriximiná e com os quilombolas idosos também contribuíram para as compreensões dos
tempos de escravidão.
O segmento alusivo a época áurea da economia castanheira, no terceiro capítulo, foi
boa parte fundado em pesquisas bibliográficas e relatos de viajantes. Porém, por se tratar de
uma época não muito longínqua e ainda presente nas lembranças dos remanescentes de
quilombos e da população Oriximinaense, pode-se através de entrevistas complementar
alguns dados.
As informações e a análise das transformações provocadas pelo grande projeto
minerador e pelas unidades de conservação – UC`s ali criadas, expostas no quarto e no quinto
capítulos, foram adquiridas em sua maioria durante as duas viagens para trabalho de campo
no município de Oriximiná. Contudo, foi fundamental a existência de pesquisas precedentes
que facilitaram os campos e complementaram o trabalho. Durante os trabalhos de campo,
realizados em agosto de 2004 e julho de 2005, foram visitadas nove comunidades
quilombolas em ambas as margens do rio e no interior e fora das unidades de conservação.
Entrevistou-se, sem questionários, os indivíduos presentes, que foram indagados sobre a
mineração, as unidades de conservação e os conflitos, assim como sobre a história da
comunidade e as transformações sociais, econômicas e culturais sofridas por eles.
2
Questionou-se também outras invasões ocorridas nos territórios quilombolas não referentes
aos três atores citados acima, como as das empresas mineradoras Aluminium Company of
America (ALCOA) e do Grupo Ludwig/Mineradora Santa Patrícia/JARI e da empresa de
construção Andrade Gutierrez.
Na cidade de Oriximiná entrevistou-se o padre da Paróquia, representantes da
associação dos remanescentes de quilombos, funcionários da prefeitura e cidadãos do
município, que permitiram contrair elementos sobre o panorama político, econômico e social
da região. Por fim, visitou-se a cidade da mineração, Porto Trombetas, onde se viu o
mecanismo de extração do minério e os impactos diretos no meio ambiente provocados por
essa atividade, além do aparato urbano que sustenta o projeto. Indagou-se os representantes da
empresa sobre os projetos sociais e ambientais existentes e seus resultados, as relações da
empresa com os atores regionais e sua atuação nos territórios em conflitos. Entrevistou-se
também representantes do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis – IBAMA que foram questionados sobre as normas, as regras e os conflitos
territoriais existentes no interior das unidades de conservação delimitados no entorno da
mineração.
1.1 O CONCEITO DE TERRITÓRIO
Para então desenvolver a análise promoveu-se uma revisão bibliográfica sobre o
conceito de território com alguns importantes teóricos clássicos e contemporâneos, nacionais
e estrangeiros, como Ratzel (1990), Raffestin (1993), Souza (1995) e Haesbaert (2004).
Posteriormente, empregou-se o conceito de território na análise espacial em estudo no
município de Oriximiná-PA.
O clássico conceito de território formulado por Ratzel não pode ser esquecido por
causa de suas origens históricas1 e sua concepção naturalista/positivista e estadista. Muitas das
concepções propostas pelo autor podem ser aplicas ainda na atualidade. Segundo Ratzel, “o
homem não é concebível sem o solo terrestre” (RATZEL apud HAESBAERT, 2004, p. 65). E
é a partir desta relação inevitável, recíproca e inseparável entre sociedade e solo que se forma
o território. Este se torna cada vez mais coeso, forte e duradouro na medida que o povo se
1
Ratzel por intermédio da Geografia e do conceito de território teve o interesse ideológico de legitimar
cientificamente o processo de unificação dos povos germânicos e de criação do novo Estado-Nação Alemanha.
3
enraíza através da cultura, da identidade e dos símbolos. Ou seja, o território é produto da
identidade sócio-cultural dos indivíduos para com o solo. Ratzel apontou que:
[...] não se pode considerar mesmo o Estado mais simples sem o seu
território, assim também a sociedade mais simples só pode ser concebida
junto com o território que lhe pertence. O fato de estes dois organismos
estarem ligados ao seu solo é a conseqüência natural da ligação evidente que
une a criatura humana à Terra (RATZEL, 1990b, p. 73).
Segundo Moraes (2000, p. 19) “[...] na ótica ratizeliana, o território é um espaço
qualificado pelo domínio de um grupo humano, sendo definido pelo controle político de um
dado âmbito espacial.” Bem como, também significa o espaço vital de uma sociedade, de
onde esta retirará suas necessidades territoriais básicas,
para alcançar o crescer e o
desenvolvimento.
Já para Raffestin o território está atrelado a “geografia do poder” que por meio da
problemática relacional possibilita identificar o poder e suas manifestações espaciais. As
relações são compostas por atores e suas políticas, finalidades e estratégias, os diversos
códigos utilizados e os componentes espaciais e temporais, incluindo o território. Os atores
envolvidos nas relações são representados por suas organizações (para Raffestin um indivíduo
sozinho não apresenta capacidade de transformação espacial). As relações podem ser em dois
níveis: simétricas e assimétrica. O nível relacional dependerá da eficiência das políticas, das
estratégias, dos códigos e dos componentes espaciais utilizados por cada ator. A dissimetria
relacional favorece, de forma teórica, o crescimento de um ator ou estrutura em detrimento de
outro, chegando em casos extremos à destruição de um dos pólos da relação2. O ator
hegemônico ao exercer poder detém condições para canalizar, bloquear e controlar a força
social e dominar e gerir o território, entretanto procura ter tudo sobre seu olhar sem ser visto
(RAFFESTIN, 1993).
Para Raffestin, o poder é onipresente e se constitui por meio de relações de forças. Isto
é, pelo processo de troca e/ou de comunicação formador de campos de relações e de poder
que por suas desigualdades induzem ao estado de poder em si. O território pode assim ser
visto como campo (delimitado) de poder, onde o embate entre forças resulta na relação de
controle, manipulação, influência, gestão e dominação (sendo essas formas de expressão do
poder com durações diversas) de um grupo sobre outro e sobre o espaço. Neste sentido, “o
2
A sociedade capitalista é pautada na competição de um contra o outro (seja organização ou indivíduo) , onde
ser bom significa ser melhor que outros. O sistema capitalista nos permite analisar em várias escalas as relações
de poder e suas assimetrias. Todavia, o aniquilamento de um dos pólos pode representar não o poder absoluto
mas o fim deste, pois a relação se finda.
4
poder visa o controle e a dominação sobre os homens e sobre as coisas” (Idem, p. 58). A
existência do poder no espaço é acompanhada por uma resistência. A resistência nada mais é
que uma força no campo de poder, que se contrapõe à força hegemônica e dominadora, tendo
como objetivo reverter a relação existente, para então, exercer o poder.
Para o autor o território é um dos ‘trunfos do poder’, junto com a população e os
recursos, que são empregados nas estratégias de cada ator no espaço. Deste modo,
Espaço e território não são termos equivalentes. [...] O espaço é anterior ao
território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação
conduzida por um ator sintagmático em qualquer nível. Ao se apropriar de
um espaço, concreta e abstratamente, o ator “territorializa” o espaço. [...] O
espaço é a “prisão original”, o território é a prisão que os homens constroem
para si (Idem, p. 143-144).
“O território é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de
relações de poder.” (SOUZA, 1995, p. 78) Sendo assim, o primordial a se questionar não são
quais as características geoecológicas e dos recursos naturais, ou quem produz e o que produz
no espaço, nem quais as ligações afetivas e de identidade entre os grupos sociais e seu espaço3
(SOUZA, 1995). Este enfoque permite aflorar os conflitos e as contradições sociais existentes
neste espaço. Segundo o Souza:
o território é essencialmente um instrumento de exercício de poder: quem
domina ou influencia quem nesse espaço, e como? [...] (Na forma de) um
campo de força, uma teia ou rede de relações sociais que, a par de sua
complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade
(SOUZA, 1995, p. 79 e 86).
O controle e a gestão do território por um grupo social representa a expressão da plena
autonomia. A territorialidade se torna indispensável para conquista desta, que permite a
manutenção do modo de vida, o acesso aos recursos vitais para sobrevivência e a liberdade de
ação. A autonomia do território por um grupo social é fundamental para alcançar o
desenvolvimento por meio da justiça social e da gestão coletiva do território e dos recursos
(SOUZA, 1995).
Por fim, neste trabalho se conceberá a vida e a história como um constante
movimento de desterritorialização e reterritorialização, onde os indivíduos e grupos sempre
estão abandonando velhos territórios e fundando novos. Então, o território é visto como
3
Os elementos geoecológicos e dos recursos, quem produz e o que produz, ou as relações e identidades dos
grupos com o espaço, serão fundamentais para se compreender a origem do território e os interesses para
conquistar, manter e gerir o território (SOUZA, 1995).
5
produto das relações sociais e controle do/pelo espaço, ou seja relações de poder em sentindo
amplo (HAESBAERT, 2004).
Por territorialização entende-se o processo de construção do território das populações
tradicionais negras, que incorporam elementos culturais como a identidade e o simbolismo
com o espaço, econômico como o uso dos recursos naturais e a formação de redes de
comércio e político como o exercício do poder nas relações sociais e espaciais. É esta
territorialidade que delega aos remanescentes de quilombos o direito de permanecerem nos
seus ‘espaços vividos’ há muito conquistados, de controlar o uso de seus recursos e os acessos
a eles por populações forasteiras e assim adquirirem a autonomia do território.
É a partir destas concepções do conceito de território dos diferentes autores que se
desenvolverá a análise do estudo de caso relativo a disputa por território pela população rural
negra do Trombetas, sua história, seus conflitos e suas sobreposições.
6
2. A OCUPAÇÃO TERRITORIAL NEGRA NO RIO TROMBETAS
Durante inspeções realizadas por enviados da Coroa Portuguesa e religiosos no vale do
rio Trombetas em 1727, com objetivo de reduzir os índios a aldeamentos e/ou escravizá-los,
constatou-se a existência de inúmeros povoamentos de tribos indígenas. Os povoados
situavam-se, freqüentemente, às margens dos rios e lagos, pois os indígenas consideravam as
encostas florestadas e os interflúvios como espaços desconhecidos e temerários, onde não se
atreviam penetrar (AB`SABER, 2003). E além disso, utilizavam-se das redes fluviais com fim
de locomoção e de aquisição de alimentos. O processo de ocupação dos terrenos de várzea e
de terra firme às margens dos rios pode ser considerado o primeiro padrão de povoamento da
Amazônia. Tendo esse se intensificado no período de colonização portuguesa, sobretudo no
rio Amazonas. Tal predomínio condizia com a possibilidade de navegar por dentre rios, lagos
e igarapés, e com a dificuldade de adentrar no interior da floresta tropical densa. Os rios
representavam a única rede de ligação e circulação existente no território amazônico que
permitia conectá-la a outras regiões e ao mundo.
Apesar de haver ocorrido algumas incursões religiosas, militares e científicas no rio
Trombetas, considerava-se este um dos afluentes do Amazonas menos explorado e conhecido
pelos colonizadores, devido à existência de difíceis barreiras naturais (cachoeiras, corredeiras
e densas florestas) a serem enfrentadas. Foram os índios e, posteriormente, os negros,
escravos fugidos, quem transpuseram tais obstáculos e ocuparam os terrenos encachoeirados,
que na atualidade ainda contém ínfima densidade populacional (ANTUNES, 2000).
O vale do Trombetas não chegou a presenciar uma densa ocupação capitalista até o
fim do século XIX.O processo de ocupação do Trombetas ocorreu de forma lenta, gradual, e
em épocas e por grupos étnicos distintos. Sobreposição e conflitos territoriais foram feições
características neste espaço. O vale do rio Trombetas primeiramente foi ocupado por índios,
que pressionados pela ocupação e perseguição dos colonizadores europeus fugiram do baixo
vale do rio Amazonas e se reterritorializaram nas regiões mais afastadas, nas terras firmes e
protegidas dos rios tributários. A segunda territorialização se deu por grupos de escravos
fugidos das senzalas das fazendas de cacau e gado localizadas nas proximidades do rio
Amazonas. Os negros temendo as expedições de captura se juntaram aos índios nas áreas mais
protegidas pelos sítios acidentados. Tal contato resultou em respostas variadas. Em alguns
casos houve o convívio mútuo entre os dois grupos étnicos no mesmo território. Em outros
provocou o afastamento ainda maior dos índios em relação ao Amazonas. O Baixo e Médio
7
vale do rio Trombetas foram regiões pouco ocupadas até meados do século XIX. Nesta região
existiam poucos e esparsos povoados de negros, que se intensificaram com o descenso destes
das partes altas dos rios, no século XIX. No mesmo período, iniciou-se a ocupação branca no
vale do Trombetas. Os brancos se limitaram a ocupar a parte baixa do rio, onde fundaram, em
1877, a cidade de Oriximiná. Mais tarde se expandindo para o Médio Trombetas e
sobrepuseram aos territórios negros, levando à transformação da organização sócio-territorial
através da criação de fazendas locais.
2.1. O SISTEMA ESCRAVISTA CACAUEIRO
A colonização portuguesa no Brasil, diferentemente dos outros tipos de domínios
europeus até então existentes, não se limitou à exploração comercial através de feitorias ou de
extração de riquezas minerais. Portugal, segundo Freyre (1975), desenvolveu na colônia do
Brasil e na Amazônia um novo tipo de colonização, a ‘colônia de plantação’. Formou-se
então uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica e
híbrida de índio, branco e negro na composição (FREYRE, 1975). Entretanto, nesta sociedade
os europeus se embasaram no determinismo geográfico para defender a existência da
superioridade racial branca, tanto em relação ao negro quanto ao índio (MACHADO, 2003).
Essas disparidades raciais, segundo argumentavam, eram causadas por certa influência
patogênica peculiar, em caráter ou intensidade, ao clima tropical (FREYRE, 1975).
O colonizador português do Brasil foi o primeiro dentre os colonizadores
modernos a deslocar a base da colonização tropical da pura extração da
riqueza mineral, vegetal ou animal – o ouro, a prata, a madeira, o âmbar, o
marfim – para a de criação local de riqueza. Ainda que riqueza – a criada por
eles sob a pressão das circunstancias americanas – à custa do trabalho
escravo: tocada, portanto, daquela perversão de instinto econômico que cedo
desviou os portugueses da atividade de produzir valores para a de exploralos, transporta-los ou adquiri-los (FREYRE, 1975 , p.17).
A partir de meados do século XVIII, alterou-se o movimento de ocupação do Baixo
Amazonas, até então caminhando em marcha lenta. Foram as novas políticas coloniais
implementadas por Marquês de Pombal (1750 – 1771), que transformaram a idéia de
ocupação e desenvolvimento das colônias portuguesas e reorganizaram o espaço colonial do
Estado do Grão-Pará. Pombal compreendeu a necessidade de ocupar física e economicamente
a Amazônia, não se limitando às fortificações e as estratégias militares de defesa, para então
8
não vir a perder territórios para outras potências. Sendo assim, desenvolveu políticas de
ocupação territorial e econômica na região, formando cidades e promovendo atividades
produtivas, de modo a constituir um território luso-amazônico.
No século XVIII, a vila de Óbidos era um aglomerado inexpressivo, cuja função
estava relacionada à fortaleza construída pela Coroa nos primeiros tempos de penetração na
região amazônica. Todavia, por seu caráter estratégico se destacava como importante
aglomerado humano na região ao lado de Santarém. Essa região4, composta pelas freguesias
de Monte Alegre, Alenquer, Óbidos, Faro e Santarém, bem como parte do restante do GrãoPará, começou a ser ocupada no fim do século por plantações de cacauais nativos e
cultivados, visando o mercado europeu, e criações de algumas cabeças de gado. Para auxiliar
o desenvolvimento destas novas atividades foram sendo adquiridos, em diversas localidades
da África, trabalhadores negros, escravizados nas fazendas e cidades do Estado do Grão-Pará.
Os negros apesar de pouco numerosos foram sendo introduzidos pouco a pouco, mas em
escala crescente e com apoio das instituições religiosas, formando com os reduzidos escravos
indígenas a base do sistema de produção colonial (SALLES, 1971).
O tráfico negreiro5 teve maior expressão no Brasil e na Amazônia por causa das lutas
dos Jesuítas pelo controle e proteção dos povos indígenas. Essa luta culminou com a lei
colonial de 1755, que decretou a liberdade aos índios, dava aos religiosos o poder de gerir e
fundar aldeamentos indígenas e a função de proteger e fiscalizar o trabalho dos nativos, não
permitindo a escravidão (ACEVEDO e CASTRO 1998; ANTUNES, 2000). Por não ser a
região amazônica suficientemente provida de comércio de escravos africanos, neste período, a
lei de 1755 e as ações dos jesuítas eram mal vistas pela sociedade colonial. Outro elemento
estimulador do tráfico negreiro foi a capacidade desta atividade de gerar vultuosos lucros à
Metrópole portuguesa, por meio da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. A
4
A região mencionada, conhecida no período como região de Santarém, se refere ao noroeste do atual Estado do
Pará, também conhecida como região do Baixo Amazonas.
5
A escravidão não teve origem nas colônias européias. Sua primeira expressão foi em Roma Antiga. Porém, o
que foi específico na relação social e de poder entre o negro africano e o escravizador europeu, foi que o
primeiro estatuiu a exclusividade de sujeição ao negro, estigmatizando-o como “inferiores” ao branco
(COQUERY-VIDROVITCH, 2004). Na África negra também houve escravidão antes da chegada dos árabes e
europeus. Como inexistia a noção de propriedade da terra, a única fonte de riqueza era homens e mulheres
capturados em guerras tribais ou adquiridos via comércio. Essa atividade foi estimulada pela demanda externa
dos árabes desde o século XI e dos europeus a partir de século XVI. Transformou-se, então, o capturado em
‘gado humano’ e moeda de troca, posteriormente, deportado para o mundo árabe e além-atlântico. Os escravos
eram requisitados principalmente para trabalharem em plantações. O Brasil, segundo Frédéric Mauro (apud
FERRO, 2004), até 1800 recebeu aproximadamente 2,25 milhões, em 1870 a cifra chegara à 4 milhões. O fluxo
e o preço dos escravos se elevaram muito nos séculos XVIII e inícios do XIX, atingindo 80 mil/ano, em 1780.
Contudo, a grande magnitude do fluxo de escravos não oferece os dados exatos de quantos negros foram
retirados da África. Os principais países fornecedores eram Golfo da Guiné, Biafra, Angola e Congo. Eles não se
limitavam aos prisioneiros de guerra e promoviam expedições de capturas no interior (FERRO, 2004).
9
entrada da Companhia resolvera o problema de oferta de mão de obra escrava e de
escoamento da produção para Europa (ACEVEDO e CASTRO 1998).
Em três séculos de comércio escravista europeu para as Américas retiraram-se
africanos de várias regiões do continente, sendo incerto precisar quais as origens geográficas e
étnicas dos grupos escravizados. Para o Brasil, estima-se que os fluxos de escravos tenham
origem, desde o século XVI, na região do Golfo da Guiné, nos dois séculos seguintes
ampliando-se para Costas da Mina e de Angola6 e por fim, no século XIX, incluindo a região
de Moçambique e Madagascar (ANJOS, 2005). A proximidade geográfica e as rotas
marítimas indicam que os escravos da região amazônica são possivelmente oriundos do Golfo
da Guiné e da Costa da Mina (ver anexos 1).
Na colônia escravista do Grão-Pará, a relação entre desenvolvimento produtivo e
escravidão se estabelecia de forma direta, ou seja, o aumento da produção de cacau
acompanhava o crescimento da população escrava. Todavia, as constantes fugas também
poderiam levar à instabilidade da atividade. As plantações de cacau também influenciaram o
aumento do cultivo de produtos alimentícios básicos para sustentabilidade da colônia como
arroz, café, milho, feijão e algodão. Em 1823, devido aos altos índices comerciais, a região de
Santarém exercia um papel importante na ocupação portuguesa no espaço Amazônico,
representado pelo segundo maior povoamento do Grão-Pará. A população escrava regional,
concentrada em Santarém e Óbidos, estava entre as mais elevadas, perdendo apenas para
região de Belém7 (ACEVEDO e CASTRO, 1998).
Foi a exploração do cacau, segundo Dauril Alden (apud ACEVEDO e CASTRO,
1998), que promoveu a colonização amazônica durante o século XVIII. Contudo, os
proprietários de sesmarias foram sendo afetados pelas variações do preço do cacau, pela
concorrência no mercado internacional, pela pesada relação entre credor e devedor, pelo
precário nível tecnológico e pelas dificuldades com a mão de obra escrava. Como reflexo
houve a decadência da produção de cacau e o aumento da fuga de escravos, que
conseqüentemente aprofundou ainda mais a crise dos fazendeiros e do regime escravista, no
6
O Golfo da Guiné corresponde hoje a paises como: Serra Leoa, Guiné, Guiné-Bissau e Gâmbia.; A Costa da
Mina corresponde a: Gana, Togo, Benin, Nigéria e Camarões; A Costa da Angola corresponde a: Angola, Gabão
e Guiné Equatorial.
7
Em 1823:
População absoluta de Belém - 27,1% do total do Estado do Grão-Pará
População Escrava - 55% do total do total do Estado do Grão-Pará
População absoluta de Santarém – 23.845 – 18,6% do total do Estado do Grão-Pará
População Escrava – 3.657 – 13% do total do Estado do Grão-Pará
Fonte: BAENA apud ACEVEDO e CASTRO, 1998, p. 50
10
início do século XIX. Outros elementos que abalaram a sociedade escravocrata amazônica
foram o movimento por Independência (1822) e a Cabanagem (1831-1835).
2.2. A FUGA - DA SENZALA AO QUILOMBO
No fim do século XVIII e durante o XIX na Amazônia (intensificando-se no período
da Cabanagem), os negros em reação às condições desumanas de vida, aos maus tratos do
senhor, à falta de autonomia individual e, sucessivamente, em contraposição ao sistema
escravista intensificaram as fugas e a formação de aglomerados alternativos e livres da
escravidão, conhecidos como quilombos ou mocambos (denominação na região amazônica).
Portanto, os atos de fuga e construção dos quilombos significavam ao mesmo tempo a luta por
sobrevivência e resistência ao sistema. Os quilombos propunham fornecer uma possibilidade
de liberdade e autonomia no interior do sistema escravista, e também se tornaram elemento de
pressão dos escravos por melhores condições. No entanto, essa alternativa de sobrevivência
era bastante difícil e arriscada, por causa dos perigos da floresta, das dificuldades de
sobreviver nas matas e das freqüentes e violentas expedições dos capitães-do-mato.
Os mocambos eram territórios formados majoritariamente por escravos fugidos, mas
incluíam indivíduos de outros grupos excluídos da sociedade escravista, como indígenas,
desertores ao tempo de recrutamento compulsório, criminosos etc. (SALLES, 1971;
ACEVEDO e CASTRO, 1998). Localizavam-se geralmente em sítios estratégicos como
regiões de topografia acidentada (chapadas, áreas de cachoeiras e serras) e/ou vales
florestados e férteis com sistema de vigilância nas áreas mais altas ou na entrada do vale
(ANJOS, 2005). Esses posicionamentos visavam uma maior proteção territorial e condições
próprias ao cultivo de alimentos. O quilombo representava o território vital construídos pelos
negros fugidos. Isto é, o território que lhes permitia satisfazer suas necessidades básicas,
como as de se alimentar, habitar e reproduzir, onde a sobrevivência social encontra-se
subordinada às condições territoriais, permitindo um maior ou menor enraizamento no solo –
território. Os negros organizavam-se de forma unida, coletiva, em sociedades relativamente
fechadas, regidas por leis socialmente construídas, administradas autonomamente e
governadas por representantes eleitos. Os quilombos se espalharam por várias regiões do
Brasil e da Amazônia. Os principais na Amazônia estão nos atuais no estados do Pará: nas
cabeceiras do rio Trombetas no município de Oriximiná, no rio Curuá em Alenquer, no rio
Anajás no Marajó, na margem do Tabatinga em Cametá, no Alcobaça (hoje Tucuruí), nas
11
Margens do rio Guamá, Moju e Capim (Caxiú), em Mocajuba (litoral atlântico) e em Gurupi
(divisa co Maranhão); do Amapá: nas regiões de Oiapoque-Calçoene e Mazagão; e do
Maranhão: em Turiaçu nos rio Turiaçu e Maracassumé (SALLES, 1971, ver mapa 1).
Mapa 1
Fonte: Salles, 1971: p.219.
As fugas dos negros em direção ao vale do rio Trombetas e seus tributários
começaram nas primeiras décadas do século XIX, com a decadência do cultivo de cacau em
Alenquer, Óbidos e Santarém, cidades que possuíam bom número de escravos. O período de
fuga dos escravos, de forma individual ou coletiva, geralmente encontrava-se relacionado à
época de cheia dos rios – de dezembro a maio –, quando a navegabilidade por atalhos era
facilitada, e nos períodos de festividades – juninas e natalinas – quando a fazenda estava
preocupada com outras atividades (FUNES, 2000). Os quilombos do Trombetas tiveram
importâncias significativas na luta dos escravos na Amazônia, por ter sido um dos maiores e
mais difícies de ser destruído. Eram considerados o ‘Palmares’ amazônico (em referência ao
maior quilombo formado no nordeste brasileiro, em Alagoas) e estima-se que tenham
abrigado mais de 2 mil indivíduos. Os quilombos da bacia do Trombetas são originários do
12
re-agrupamento dos quilombos Inferno e Cipotema, destroçados, em 1812, pela expedição
punitiva no rio Curuá em Alenquer (SALLES, 1971; ANDRADE, 1995; ACEVEDO e
CASTRO, 1998).
Segundo relatos de viajantes, em 1821, existia no vale do Trombetas o que poderia ser
o primeiro quilombo, um aglomerado de negros do devastado mocambo do Curuá localizado
no lago conhecido como Lago do Mocambo. Neste mesmo período, havia chegado fugido de
Santarém um grupo de escravos que se abrigara acima das cachoeiras no rio Erepecuru, onde
teve o primeiro contato com os índios (ANDRADE, 1995). Em 1822, registrou-se uma
expedição punitiva bem sucedida no Trombetas, que resultou na destruição de um quilombo.
Mas essa relativa derrota não inibiu a reprodução de outros e o aliciamento de novos
camaradas para integrar os mocambos. Nesta época o bom relacionamento com índios e
desertores possibilitaram aos negros aprimorar as fugas, alcançado maior sucesso e menos
riscos. Em 1827, outra excursão foi promovida com algum sucesso para as tropas. A constante
pressão das tropas de captura obrigou os negros a abandonar as águas calmas do Trombetas e
organizarem novos territórios em sítios mais defensivos acima das cachoeiras.
2.3 OS TERRITÓRIOS SOB PROTEÇÃO DAS CACHOEIRAS
Como estratégia de fuga das senzalas e das expedições de milícias os negros ocuparam
os espaços acima das cachoeiras nos rios Trombetas e Erepecuru, fundando lá novos
territórios de escravos fugidos. O curso estreito dos rios, a floresta densa e as grandes quedas
d`água permitiram aos negros adquirirem maior proteção. Essas características físicas do
território dificultavam a chegada das milícias, facilitavam a vigilância no sopé das cachoeiras,
permitindo que os negros evacuassem os quilombos antes de serem surpreendidos pelas
tropas. Outra estratégia era não se concentrar numa única localidade, erguendo diferentes
mocambos às margens do rio principal e seus tributários. As posições eram escolhidas de
forma estratégica a fim de exercer um maior controle sobre o território. Costumavam ocupar
os terrenos altos às margens do rio (terra firme), fora do alcance das enchentes e oculto da
visão de quem por rio chegasse. Deste modo, exerciam total poder sobre o espaço, ao ver a
chegada do inimigo e não ser visto e por ter o conhecimento total das redes de circulação, lhes
permitindo o controle de entrada e assegurando as rotas de fuga. Os territórios também
forneciam abundante quantidade de alimentos no interior da mata e solo fértil, possibilitando
a sobrevivência e a autonomia dos quilombos.
13
Os africanos se adaptaram às condições ecológicas da Amazônia. Adequando-se aos
diversos recursos alimentícios e suas sazonalidades, construindo aos poucos um calendário
extrativo. No sentido de possibilitar sua reprodução, os negros se organizaram de forma
coletiva no uso e na apropriação do território, fixando normas elaboradas em consenso e
construindo uma identidade comum, por meio de práticas, concepções e princípios
(ACEVEDO e CASTRO, 1998). Há então a concretização de uma territorialidade, cuja
ligação entre solo e sociedade é essencial. O espaço vital, da satisfação das necessidades
básicas, se transforma em espaço vivido, das práticas, dos símbolos, dos mitos, da história e
da identidade para com o território. O espaço vivido é a expressão do profundo enraizamento
territorial dos negros, ou seja, a construção de uma territorialidade.
Durante o movimento cabano os negros desceram os rios para engrossar o contingente
revolto e lutar por liberdade. A presença dos escravos libertos e dos índios demonstrava as
raízes populares do movimento. Os escravos aproveitaram as mortes e fugas dos senhores
para fugirem e se reorganizarem nos mocambos no Trombetas, elevando ainda mais a
população aquilombada.
Por ocasião da Cabanagem, esses negros se colocaram ao lado dos
revoltosos, auxiliando-os. A revolução de 1835 foi extraordinariamente
propícia aos mocambeiros. Os negros, aproveitando-se da morte ou fuga dos
senhores, reorganizaram-se e fundaram acima da décima quinta cachoeira,
denominada esta de Caspacura, uma povoação por eles mesmos denominada
Cidade da Maravilha (SALLES, 1971, p.234).
Cidade da Maravilha se tornou o maior quilombo da região, atingindo número
superior a 2.000 escravos fugidos. Ao mesmo tempo, virou a ira dos senhores de Óbidos e
Santarém, que cobravam do poder público o uso dos aparelhos policiais para captura e
destruição dos mocambos. Desta forma, garantindo o retorno da propriedade privada dos
cidadãos, o escravo, e zelando pela segurança pública. A partir de 1854, várias expedições
constituídas por policiais, pela Guarda Nacional e por índios Mundurucus, que serviam como
guias, subiram o Trombetas pretendendo acabar com o quilombo. Numa destas tentativas,
antes da milícia chegar à Cidade da Maravilha, esta já havia sido queimada pelos próprios
negros que fugiram. Acredita-se que os delatores do ataque ao quilombo tenham sido os
regatões (comerciantes nômades), que pretendiam não ver destruído seus lucrativos negócios
com os negros.
Ainda temerosos com as incursões de captura, socialmente justificadas pela ideologia
do modelo escravocrata e intensificadas com o fim do tráfico negreiro e pelo déficit de
14
escravos, os fugidos subiram ainda mais cachoeiras para ocupar terrenos com maior proteção.
Os negros deixaram de se organizar de forma nucleada, como no caso do mocambo Cidade da
Maravilha, e voltaram a se dispersar espacialmente pelo território, porém no entorno de dois
núcleos maiores (SALLES, 1971). Tal estratégia almejava facilitar as fugas e propiciar maior
resistência às investidas dos inimigos. Este processo de reterritorialização da população negra
avançou sobre territórios indígenas empurrando-os cada vez mais para norte.
2.4 AS REDES DE RELAÇÕES SOCIAIS DOS MOCAMBEIROS
As relações entre negros e índios era dúbia e conflituosa. Por um lado os negros eram
temidos pelos indígenas, e vice versa, pelo fato de serem violentos e invadirem seus
territórios, muitas vezes para seqüestrar índias – conseqüência da relativa ausência de
mulheres nos quilombos. Tais conflitos causaram o deslocamento dos indígenas para o norte e
delimitaram novas fronteiras mutuamente respeitadas (como a cachoeira da Fumaça limite
entre a ocupação negra, abaixo da cachoeira, e dos indígenas, acima). Por outro lado, a
relação entre eles, em alguns casos, podia ser bem amistosa, levando até mesmo a convivência
conjunta, a ajuda nos atos de fuga e a proteção do território. A heterogeneidade étnica das
sociedades dos quilombos proporcionou o processo de miscigenação etno-cultural, que pode
ser observada ainda hoje pelo biótipo das populações quilombolas e em suas manifestações
culturais. Foi o contato com os índios que deu condições aos negros de sobreviver na mata, a
partir do ensinamento dos conhecimentos sobre os recursos naturais e do território.
Esse mesmo processo de povoamento de escravos, fugidos das crueldades de seus
senhores a procura de asilo e liberdade na espessidão da selva amazônica, foi identificado por
viajantes no Cuminá (tributário do Trombetas) e em vários outros rios da Amazônia. A
presença de palhoças humildes, contendo indispensavelmente o pilão, podia ser encontrada
facilmente nas regiões consideradas mais inóspitas e insalubres na vizinhança de terras
indígenas.
Os quilombos que por aqui (vale do rio Cuminá) existiam e, segundo consta,
ficavam acima da cachoeira do Cajual e do rio Penecura, eram filiados aos
nascidos, em 1840, no Trombetas, com os quais se comunicavam por terra.
Aliás quase todos os rios da Amazônia tiveram desses refúgios de escravos e
até no alto Içá, Crevaux foi surpresar a choça de uma preta velha. Parece que
tanto no Trombetas como no Cuminá, os mocambeiros, temendo o gentio,
nunca se localizaram muito acima das primeiras cachoeiras. Contudo, diz-se
15
que eles acabaram por manter relações com os selvagens e há quem adiante
que, por meio das tribos Ariquena, Charuma e Tunayana, através dos Tiriôs
da Guiana, e passando pelos Pianacotós, eles chegaram a estabelecer
contactos com seus irmãos, os negros da mata (bush-negroes) de Suriname,
também escapos ao cativeiro (CRULS, 1930, p. 33-34).
As redes de relação social da sociedade aquilombada não se limitavam aos segmentos
excluídos da sociedade amazônica. Os ex-escravos mantinham relações próximas com os
regatões com quem trocavam e vendiam, de forma clandestina, produtos plantados e coletados
na floresta, como farinha, madeira, tabaco e gêneros da floresta, principalmente a castanhado-pará. Os negros também promoviam empreitadas, na calada da noite, em direção aos
portos de Óbidos e Oriximiná, desejando vender e comprar mercadorias com os comerciantes.
Os comerciantes faziam parte da importante rede de informação contida na estratégia de
defesa do território dos quilombos. Era através destes que chegavam as informações relativas
ao movimento de perseguição aos mocambos. Por fidelidade aos seus interesses mercantis, os
regatões também negavam informações aos perseguidores (SALLES, 1971). O papel exercido
pelos quilombos na economia local e as relações com os comerciantes, homens que ocupavam
cargos públicos e com prestígio político, permitia aos mocambos gozar de certa legitimidade.
Esta legitimidade era expressa na relativa inserção destes territórios na sociedade local, nas
visita de cientistas, viajantes, negociante e religiosos e majoritariamente pelo fato de se
extinguirem as expedições punitivas ao Trombetas ainda na década de 18608 (FUNES, 2000).
O fim da caça aos escravos foi também resultado da decadência e do enfraquecimento dos
donos de escravos por meio de leis.
A aproximação com os regatões e com a igreja Católica é mais um elemento à
comprovar que os quilombos não eram territórios completamente fechados e intransponíveis
(O` DWYER, 2002). A relação com a entidade religiosa só foi possível devido ao maior
contato dos ex-escravos com a cidade e pelas missões religiosas, em 1877, 1878 e 1888,
lideradas pelo padre José Nicolino de Souza, da ordem dos Franciscanos9. Tais missões
objetivavam catequizar os índios e alcançar os campos gerais. A Igreja Católica exerceu uma
função importante no controle dos quilombos, possibilitando aumentar o contato econômico e
social dos negros com a sociedade regional. Ela substituiu o relacionamento imposto pela
força das expedições de captura pelo processo de pacificação e cristianização dos
8
Apesar de não ter havido, após a década de 1860, mais nenhuma incursão de capitães-do-mato no Trombetas,
em 1870, o então presidente da província assinou uma lei autorizando a destruição dos mocambos do Trombetas
e em 1876 ocorreu a expedição que destruiu o mocambo do rio Curuá, vizinho ao rio Trombetas.
9
Os Franciscanos eram os encarregados pela Coroa portuguesa de catequizar os índios localizados na margem
direita do rio Amazonas.
16
mocambeiros. Foi o próprio padre Nicolino, que durante suas missões religiosas, desbravou a
terra firme na margem esquerda do rio Trombetas, em 1877, onde fundou o povoado de
Uruáa-Tapera, futura cidade de Oriximiná.
2.5 DESCENSO – O PROCESSO DE RETERRITORIALIZAÇÃO
No terceiro quartel do século XIX e primeiro do XX, o aumento da aceitabilidade da
existência dos quilombos, o melhor relacionamento social com a sociedade urbana regional, o
fim das expedições de captura e posteriormente a abolição da escravidão, permitiram que os
negros descartassem a proteção das cachoeiras e começassem a descê-las para ocupar as
margens dos lagos abaixo delas. O descenso tinha a finalidade de se aproximar de Óbidos
para facilitar o comércio clandestino e de montar bases para vigiar possíveis invasões aos
quilombos acima das cachoeiras. Apesar dos principais mocambos se localizarem acima das
cachoeiras, os pequenos quilombos que se formavam abaixo delas, nos lagos e igarapés, como
Cachoeira Porteira, Mocambo, Conceição, Macaxeira, Abui, Tapagem, Erepecú e Moura,
funcionavam como apóio ao comércio e a proteção dos situados acima, sendo fundamentais
para resistência, reprodução e sobrevivência daquela sociedade (FUNES, 2000). Por volta de
1866 frente a promessa de liberdade do governo Imperial, os mocambeiros fundaram o
quilombo Colônia, localizado nas proximidades de Cachoeira Porteira, contudo não se
atreveram a descê-la por completo, neste momento (ANDRADE, 1995).
Primeiro só foi possível descer as cachoeiras e se posicionar na parte baixa do rio os
ex-escravos cuja liberdade estava assegurada e os que mantinham relações amigáveis com
seus antigos senhores. No entanto, o posicionamento no interior dos lagos e o fato de não se
localizarem abaixo do encontro do Trombetas com o Cuminá fazem parte da cautela dos
negros ainda temerosos de alguma possível represália. A proximidade dos recursos naturais da
terra firme e dos lagos também foi um elemento determinante na escolha da ocupação. Pouco
a pouco os mocambeiros foram abandonando os antigos territórios das cachoeiras e ocupando
as margens do Médio Trombetas, se reterritorializando nos espaços ocupados por eles até a
atualidade (vide mapa 2). Nos novos territórios os ex-escravos e seus descendentes
mantiveram as relações com o meio aprendidas nos tempos de fuga e que lhes permitiu
alcançar certa autonomia, baseada na caça, na pesca, na agricultura e na extração de recursos
da floresta, tanto com fins alimentícios, como comerciais. Apesar de ser um ator importante
na economia local, de freqüentar e circular livremente pela cidade de Óbidos e Oriximiná, de
17
se relacionar com comerciantes, religiosos e até mesmo com seus antigos senhores, os
mocambeiros permaneciam à margem da sociedade amazônica e muitas vezes tendo seu
território ignorado pelos brancos, por ainda serem vistos como inferiores e vagabundos.
Na segunda metade do século XIX, a economia cacaueira é ultrapassada pela de
produtos naturais extrativos como a salsaparrilha, cravo-do-maranhão, borracha, peixe seco,
madeira, castanha-do-pará etc. na região do Baixo Amazonas, que se tornaram as novas
mercadorias de exportação. Foram a economia extrativista e a agropastoril que recuperaram a
economia da região em crise com o cacau. Cobiçados pelos lucros da atividade extrativa, os
colonizadores brancos iniciaram o processo de ocupação das terras ricas em castanha-do-pará,
madeira e outros produtos da floresta no Baixo e Médio Trombetas, até então ocupadas e sob
controle dos negros. (ACEVEDO e CASTRO, 1998). Sendo assim, o processo de descida dos
negros se chocou com o de privatização das terras públicas, juridicamente devolutas, por
compradores urbanos interessados na economia extrativista da castanha. As terras de preto,
recém ocupadas no Médio Trombetas começaram a ser sobrepostas pelas titulações dos
brancos que subiam os rios. Até porque os negros não se pautavam no direito burguês de
propriedade privada, mas sim na relação de trabalho e uso coletivo da terra.
Mapa 2
18
3. NEGROS VERSUS ‘DONOS’ DOS CASTANHAIS
3.1 A ECONOMIA CASTANHEIRA
A castanheira (Bertholletia excelsa) se desenvolve em climas equatoriais-úmidos e é
encontrada esparsamente nas terras firmes de toda bacia amazônica. Caracteriza-se por
concentrar-se espacialmente, formando castanhais e facilitando a coleta de seus frutos. Fruto
este que no interior de sua casca dura (ouriço) guarda uma das mais cobiçadas especiarias
amazônicas, a castanha-do-pará, consumida principalmente no exterior. A castanha é coletada
nos meses de dezembro a maio, na época da chuva que lhe derruba os ouriços. Neste período
os coletores autônomos e subordinados aos ‘donos’ dos castanhais subiam os rios e
adentravam a mata para apanhar o produto. Existem três tipos de castanha-do-pará no
mercado: a grande, a média e a miúda. A castanha grande é sobretudo encontrada no rio
Trombetas e Cachorro, a média na região do Tocantins e em Marabá e a miúda encontra-se
em Alenquer e no Acre (CRULS, 1930). No estado do Pará especialmente duas macroregiões
são ricas em castanhais: o Sudeste Paraense e o Baixo Amazonas.
As áreas de castanhais, antes da chegada dos europeus, eram ocupadas por povos
indígenas que coletavam a castanha para alimentação. Os colonizadores implantaram na
Amazônia uma economia estruturada na exploração capitalista dos recursos naturais, sob
domínio do capital mercantil. Esse modelo de base extrativista/exportadora prosseguiu após o
período cacaueiro, que vigorou até meados do século XVIII, com substituição do cacau por
outros produtos cuja cotação destacara-se no mercado internacional, principalmente das
potências européias e dos Estados Unidos. Os produtos látex e castanha-do-pará, até então
restritos ao conhecimento e a utilização por indígenas e mocambeiros, tornaram-se cobiçados
pelas oligarquias amazônicas. A elite pretendia não só o enriquecimento com o comércio, mas
também a conquista ou manutenção do poder político (SILVA, 1987).
A exploração da borracha teve grande importância para economia amazônica no
período de 1891-1920, porém nem todas as regiões estavam inseridas expressivamente nesta
atividade. O vale do Trombetas não se encontrava dentre as áreas de elevada produção de
látex, mas relatos de entrevistados confirmam a existência desta atividade na região, com
pouca intensidade. No Trombetas e nos vales vizinhos o principal produto de exportação, no
período, era a castanha-do-pará. Nestes anos, a região alcançou o status de maior produtora de
castanha no Brasil. Além disso, a cidade de Óbidos, localizada às margens do Amazonas,
19
tornou-se o centro de exportação da castanha coletada em toda a redondeza. Dali saiam os
navios para EUA e Europa e instalaram-se empresas de beneficiamento e exportação.
Alguns autores, apesar de confirmarem a importância comercial da castanha-do-pará
não só no século XX, defendem que a expansão comercial, no período de 1920-40, fora
reflexo da decadência da borracha, em 1920, quando os aparelhos de infra-estrutura do látex
orientaram-se para atividades castanheira, como aponta Cardoso e Muller:
Já no século XVIII a castanha-do-pará era exportada para a Europa. Na
segunda e terceira década do século XIX obtinha boa cotação naquele
mercado. Tudo leva a crer que a extração florestal desse recurso foi
interrompida com o ciclo da borracha, pois com a decadência desse, passou a
ter relativa importância. A castanha torna-se por algum tempo, o principal
produto de exportação (CARDOSO & MULLER, 1977, p.36).
É pertinente salientar que esta afirmação possa estar equivocada. Primeiro pelo fato
das espécies ‘vingarem’ em terrenos distintos, segundo por que as grandes regiões
exportadoras de castanha não tiveram elevada importância na extração do látex e por último
pode-se apontar que cidades como Óbidos, Santarém e Alenquer tiveram crescimento
elevado, no período áureo da borracha, com o comércio de castanha. Portanto, não se deve
tratar as duas atividades como excludentes. Mesmo que o látex tenha sido o principal produto
de exportação de 1891 a 1920, a extração de castanha-do-pará e de outros produtos naturais
também dinamizavam a economia em algumas regiões da Amazônia, ainda que de forma
modesta e variável.
As características da cultura extrativista da castanha-do-pará e do modelo societário
mercantil deram condições ao surgimento de uma nova força de trabalho, o campesinato
extrativo. Este ator se inseria na economia castanheira como coletor livre e autônomo que
negociava diretamente com os regatões. Na primeira fase da comercialização da castanha, os
negros do Trombetas exerciam funções correspondentes a esse campesinato. Habitavam as
áreas de castanhais, coletavam produtos naturais como a castanha, o cumarú, o óleo de
copaíba, o breu entre outros, e negociavam com regatões, que subiam o rio, ou vendiam
diretamente para comerciantes na cidade de Óbidos. Entretanto, esse modo de relação social
perdurou somente até aproximadamente 1920. Quando estimulados pelos vultuosos lucros da
exportação da castanha os comerciantes, os sitiantes e os fazendeiros das cidades próximas
começaram a comprar, titular e ocupar as terras ricas em produtos extrativos no rio Trombetas
(ACEVEDO e CASTRO, 1998).
20
3.2 OS ‘DONOS DOS CASTANHAIS’ E OS CASTANHEIROS NEGROS
A ocupação do vale do Trombetas pelos brancos não teve início somente a partir da
década de 1920. Desde meados do século XIX, embora de forma lenta, os brancos foram
subindo o rio, alterando o quadro de sete décadas de relativo isolamento dos negros. No
princípio os brancos respeitaram o território negro, resultando na formação de dois mundos
distintos. No Baixo Trombetas (até o lago Erepecuru), estava o mundo dos brancos e dos
senhores, no médio e no alto Trombetas encontravam-se os negros (acima do lago Erepecurú,
das cachoeiras e no rio Erepecú). Posteriormente, com a expansão territorial convergente de
ambos os grupos se constituiu no Trombetas uma nova geografia. Segundo Acevedo e Castro
(...) foram a navegação a vapor, a livre navegação do Amazonas, a
exploração da castanha e a proposta de ocupação e colonização que partia do
mundo dos senhores, que marcaram progressivamente o ritmo de
intromissão e de aproximação com os grupos do Médio e Alto Trombetas
(ACEVEDO &CASTRO, 1998, p. 56).
Apesar de exercerem um importante papel na economia regional, os negros eram
identificados como simples extratores e grupos nômades desvinculados da agricultura, isto é
sem vínculo com a terra e com o território. Esse discurso ideológico legitimava as ações de
registro de posse, arrendamento, compra e venda das terras de pretos por brancos, nos
primeiros anos do século XX. “Todavia, esses arrendatários, proprietários de castanhais e a
sociedade regional não conseguiram ou não tiveram capacidade de desterrar esses antigos
ocupantes do Trombetas, mesmo utilizando habilidosamente os artifícios do direito agrário
da República” (ACEVEDO e CASTRO, 1998, p. 131). Portanto, os conflitos e as relações
entre os dois grupos étnicos distintos perduram até a década de 1960, com o fim da
patronagem.
Á medida que a privatização da terra avançava sobre o território negro, os novos
comerciantes e/ou proprietários, que incorporavam terras ricas em castanhais, instituíam
novas estruturas sociais e de poder na região. Os proprietários de terras constituíram um novo
grupo social, os ‘patrões dos castanhais’, reorganizaram as relações sociais, de trabalho e de
poder. Os negros foram integrados de forma assimétrica na economia regional e na relação de
patronagem. O processo de ingresso neste novo sistema de relações não era homogêneo nas
famílias e comunidades negras, como descreve Acevedo e Castro.
21
(...) os quilombolas de fuga ou velhos quilombolas experimentam as duras
provações da condição de trabalhadores e homens livres, enquanto os seus
descendentes empreenderam, estimulados pela teia de relações familiares, a
organização econômica e social das comunidades. Assim moveram-se entre
o endividamento com os patrões, via extrativismo da castanha e a existência
como camponeses (ACEVEDO &CASTRO, 1998, p.114).
As redes de patronagem10 existiram em regiões predominantemente agrárias do país, e
por muitas décadas determinaram as relações políticas e de poder nas esferas municipais,
estaduais e federais. As trocas de favores entre os grupos dominantes nas diversas esferas de
poder eram recompensadas em forma de votos. As redes de patronagem se compunham por
patrões e clientes que se relacionavam em torno dos recursos agrícolas e extrativistas. O nó
mais frágil desta rede (o cliente) era sempre submisso ao mais forte (o patrão), o que consistia
numa relação assimétrica de poder (RAFFESTIN 1993). Com isso, era o patrão quem
exerciam o poder e conduzia o controle territorial. Os negros do Trombetas, por ocuparem as
terras ditas como pertencentes aos ‘donos dos castanhas’, se viram obrigados a prestar
serviços, vender exclusivamente a castanha coletada e votar nos patrões e/ou em seus
candidatos. “O voto do cliente fazia parte de uma série de trocas políticas e sociais
fundamentadas na honra pessoal” (HOEFLE, 2003, p. 51). Na patronagem o território não
mais seria gerido exclusivamente pelo negro, que perdera relativamente sua autonomia.
Entretanto, a permanência nos territórios histórica e socialmente construídos, lhes permitiu
conservar uma identidade própria e um vínculo sócio-territorial. Manteve-se inclusive o
caráter semi-fechado da sociedade mocambeira, no qual a ligações sociais estão relacionadas
no parentesco e no passado comum.
Os grupos negros continuaram desenvolvendo com relativa autonomia a
agricultura, em roças e quintais. De uma perspectiva política, essa relação de
patronagem correspondem à formas de dependência e de sujeição
estabelecidas com os titulares e arrendatários das terras no trabalho de coleta
nos castanhais. Trata-se de elos estabelecidos entre negros incorporados à
coleta de castanha e os comerciantes locais que articulavam a
comercialização e o transporte (ACEVEDO e CASTRO, 1998, p.140-141).
Os comerciantes e ‘donos dos castanhais’ tinham interesse unicamente na extração e
no escoamento da castanha, procurando assim desenvolver um monopólio sobre o produto.
Desta forma, eles eliminam a concorrência dos antigos regatões nômades, que subiam o rio. A
10
Segundo Hoefle (2003) as redes de patronagem foram se adaptado com as transformações políticas, sociais e
econômicas na Amazônia. Por isso, esta forma de relação social e de poder não se extinguiu, mas assumiu novas
características e introduziu novos atores, clientes e patrões. As diferentes formas de relações são denominadas de
pré-moderna, moderna e pós-moderna.
22
forma encontrada por ele para submeter o castanheiro exclusivamente a sua compra, foi se
transformando em ‘dono do castanhal’ e assim exercendo total controle sobre a proibição ou
controle da coleta até então livre. O castanheiro passou a estar sujeito a trabalhar para seu
novo patrão, que determinava os lugares e a quantidade a coletar. Para impor as novas regras
sobre uso dos recursos do território, o ‘dono’ utilizava-se do poder de coerção, colocava
vigias e ameaçava de prisão os castanheiros que retirassem do seu castanhal e vendessem para
outro comerciante. Todavia, a relação entre cliente e patrão se estreitou. Substitui-se a
vigilância pela confiança. O castanheiro se tornou afilhado. A rede de relações sociais na
patronagem mudou da coerção para o paternalismo como forma de dominação, mas também
se pautou no endividamento dos negros e no mandonismo do patrão. Este se tornou padrinho,
amigo do padre e prefeito (ACEVEDO e CASTRO, 1998).
Com a economia castanheira e a patronagem paternalista, o poder se voltara para as
velhas e novas famílias da região, que adquiriram posse de grandes latifúndios com castanhais
e se tornando “donos de castanhais”. Tais famílias são importantes atores políticos até os dias
atuais nos municípios de Oriximiná e Óbidos, como os Guerreiros, os Picanço Diniz, os
Figueiredo, os Costas, os Almeida, os Teixeira e os Costa Lima. A oligarquia castanheira
detinha o controle dos castanhais e assim sobre a força de trabalho ali existente. Portanto,
acumulou capital com a extração e comercialização da castanha, produto abundante nas matas
da região, e manteve e/ou ampliou o poder político nas diversas escalas da gestão pública, por
meio do voto de cabresto e das políticas paternalistas. A rede de patronagem se sustentou
firme por aproximadamente meio século, por estruturar-se num modelo paternalista que se
demonstrou temporariamente forte. As relações interpessoais de estreitos laços informais,
características do paternalismo, consolidaram redutos eleitorais para os patrões. Alguns destes
se tornaram figuras políticas de peso nas esferas municipal e estadual, promovendo políticas
variantes entre o assistencialismo eleitoreiro e seus interesses econômicos particulares.
A nova rede de relações sociais no vale do Trombetas não retirou o medo dos grupos
negros em relação aos brancos. O modo de sujeição, sob forma de endividamento e ameaças,
é muitas vezes correlacionado às antigas formas de escravidão do período escravista, como se
constatou em entrevistas. Este temor do contato de negros com brancos fica visível no relato
de Cruls (1930), na expedição do General Rondon pelo rio Cuminá em direção a fronteira
com a Guiana Holandesa (atual Suriname) em 1928:
Num desses lances, acontece de vir de descida uma canoinha. Mal os seus
tripulantes nos vêem, recolhem-se rápidos a uma das margens, cuja ramaria
23
os acoita. Denuncia-os, porém, o vermelho vivo de um vestido. São, sem
dúvida, pretos dos que habitam por aqui, remanescentes dos antigos
mocambos e até hoje, ainda desconfiados e temerosos (p. 24).
Isto demonstra que os negros ainda se escondiam com o aproximar de qualquer
indivíduo branco, o que se leva a crer que essa relação permanecia temerosa por causa das
lembranças das invasões dos capitães-do-mato e de militares à procura de soldados para
guerra do Paraguai (1864-1870).
3.3 A DECADÊNCIA DO PATRÃO E LIBERTAÇÃO DOS CASTANHAIS
O preço e a importância regional da castanha começaram a decair a partir da década de
1940. O declínio da produção extrativista levou ao enfraquecimento da relação de
patronagem, que culminou com seu rompimento na década de 1960. A decadência da
economia castanheira e o afrouxar das relações de poder são percebidos pela ruptura no
monopólio do comércio e do transporte. Os pequenos regatões de Oriximiná, que apesar de
reduzidos não tinham desaparecido11, junto com os novos comerciantes aparecem com força
no cenário do comércio extrativista. Os negros retomaram a autonomia perdida em tempos
passados, permitindo-lhes definir seus compradores, reestruturar seu tempo de trabalho e
organizar a produção. A extração da castanha não acabou com o fim da patronagem, mas os
coletores voltam a poder transitar por todos os castanhais livremente. Os patrões dos
castanhais perderam parte do poder sócio-territorial, ao vender suas terras para as recém
chegadas empresas mineradoras e migrantes do sul e multinacionais, contudo mantiveram o
poder político, administrando órgãos públicos, exercendo cargos políticos nas instâncias
municipal, estadual e nacional, portanto recriam novas formas de patronagem12.
Segundo Cardoso e Müller (1977) ocorre, a partir de 1970, na Amazônia o processo de
diversificação das culturas comerciais, anteriormente centradas no cacau, posteriormente, na
borracha e na castanha. O aumento da procura no mercado mundial por minério e nos
nacional e regional por juta, pimenta-do-reino, malva, arroz, carne, petróleo, algodão mamona
11
Os pequenos regatões nunca foram totalmente eliminados do comércio e transporte da castanha pelo
monopólio dos “donos dos castanhais”. Por utilizarem barco a motor conseguiam utilizar os furos, igarapés e
lagos para vender gêneros diversos e comprar castanha dos negros. Estes negros tentavam fugir da relação
exploratória dos patrões e adquirir maior autonomia. Para isso coletavam em paradas mais distantes, acima das
cachoeiras, ou entravam clandestinamente nos castanhais privados.
12
Sobre as novas formas de patronagem existente na Amazônia ler: HOEFLE, S. Novas e velhas formas de
patronagem na Amazônia Central. In: Território/ LAGET, UFRJ. Ano VII, n. 11, 12 e 13 (Jul 01 Dez 02). Rio
de Janeiro: UFRJ, 2003. p. 49-62
24
etc., aliadas às políticas do governo federal dinamizaram a economia regional. Instituiu-se a
pecuária extensiva, criou-se empreendimentos minerais de grande porte, surgiram novas
indústrias e intensificaram-se as produções agrícolas e extrativistas. As grandes empresas do
sudeste e internacionais eram incentivas pelo governo a implantarem grandes projetos na
região, tendo em vista acelerar o processo de ocupação da Amazônia. O interesse das grandes
empresas voltava-se para mineração (estanho, bauxita, ouro, cassiterita, manganês e ferro),
extração e beneficiamento de madeira, pecuária de corte e soja.
No Trombetas, muitos dos “donos dos castanhais” se tornaram grandes pecuaristas
latifundiários e madeireiros nas áreas de terra firme do município de Óbidos, Faro, Terra
Santa e Oriximiná, abandonando assim as terras de pretos. Outros mais próximos da política
nacional, na década de 1970, apoiaram o ingresso de grandes projetos mineradores na região,
por acreditar que se beneficiariam política e economicamente com a entrada destes. O projeto
minerador da empresa Mineração Rio do Norte e a pecuária debilitaram a já decadente
economia extrativista da castanha. As novas atividades mudaram a base econômica, a
organização sócio-espacial local e regional, recriando as redes de atores sociais, seus
interesses e discursos. “O interesse pela terra se deslocou da castanha para os recursos
minerais” (ACEVEDO e CASTRO, 1998, p. 192).
25
4. O GRANDE PROJETO MINERADOR
A intensificação da ocupação capitalista na Amazônia, a partir de meados da década
de 1960, faz parte da fusão dos interesses do capital estrangeiro, das empresas do sudeste do
país e do Estado Autoritário. Os militares que tomaram o poder, após o golpe de 1964, tinham
o interesse de integrar a região ao restante do Brasil. O temor de perder essa fatia do território,
até então afastada da dinâmica produtiva do centro-sul, fez com que o Estado implementasse
políticas de desenvolvimento regional e de integração nacional, conhecidas pelo jargão
“integrar para não entregar”. Estas estavam sustentadas em duas vertentes ideológicas. A
primeira pretendia reafirmar a nacionalidade brasileira no território amazônico, ou seja,
ressaltar o sentimento de nação que resultaria numa maior coesão e legitimidade do Estado.
Para isso, era preciso conectar o norte ao sudeste do país por meio de grandes redes de
comunicação (rodovias, redes de energia elétrica e telecomunicações), além de ocupar
demográfica e economicamente o território. A segunda vertente estava associada a realização
de um destino manifesto, tornar o Brasil uma grande potência mundial. Sendo assim, o
objetivo encontrava-se em desenvolver a economia nacional, principalmente em direção a
fronteira de expansão capitalista - a Amazônia, a qualquer preço, sem se preocupar com as
mazelas sociais e ambientais.
A região Norte, até a década de 1940, integrava-se ciclicamente na divisão
internacional e nacional do trabalho, primeiro fornecendo o cacau, depois a borracha e a
castanha. Após a construção da rodovia Belém-Brasília (1960) observou-se o início de
algumas transformações na forma de ocupação e na diversificação das atividades. No entanto,
foi nos anos 1970 que a Amazônia se tornou a zona preferencial de investimentos, graças à
política econômica e fiscal do governo federal. (CARDOSO & MULLER, 1977). O panorama
nacional e internacional proporcionava aos capitalistas de variadas nacionalidades encontrar
na região amazônica um campo fértil para seus empreendimentos nas atividades de
exploração dos recursos naturais do solo ao subsolo. Os interesses das elites local e nacional
se aproximavam dos capitalistas internacionais, possibilitando a aquisição de verbas que
conduziriam o Brasil ao tão esperado desenvolvimento econômico, como assinala Cardoso e
Muller:
(...) a solução do impasse político (1961-64) e a rearticulação
econômica, caracterizada por fusões e absorções de empresas e por um
nível maior de concentração de capitais, bem como a adoção de
26
mecanismos de política econômica adequadas a esta nova etapa do
crescimento capitalista, redefiniam as bases do processo de desenvolvimento
econômico no Brasil. A articulação da economia local com o mercado
internacional no duplo sentido – de ênfase nas vantagens da exportação e do
interesse crescente de capitais internacionais em investimentos industriais,
mineradores e agro-exportadores – passou a basear-se no desenvolvimento
de formas de interpenetração entre o Estado, os interesses capitalistas locais
e o setor capitalista internacional as quais, se já existia no passado, tornarase tendência não só predominante como oficialmente aceita (CARDOSO &
MULLER, 1977: p. 14).
A abertura do mercado para o capital internacional foi uma estratégia almejando
agilizar o crescimento da economia. Em algumas atividades, por causa dos elevados riscos,
como a mineração, a introdução dos recursos estrangeiros só se tornou possível em coligação
com empresas nacionais, formando joint-venture. Porém, para atrair esses investimentos o
Estado necessitava garantir a reprodução deste capital. A certeza do lucro assegurava-se no
tripé infra-estrutura, pesquisa e planejamento, setores onde os custos exclusivos ao Estado
preparavam o terreno para chegada do capital privado. A isenção de impostos, que podiam
chegar até a 100%, era outra forma de segurar os ganho. O financiamento desta grande
estruturação da Amazônia não se deu apenas por aplicação direta de empresários de outros
países e do sul na cadeia produtiva. A capitação de empréstimos em bancos e agências de
fomentos internacionais, na época atrativos pelos baixos juros cobrados, foi a alternativa
utilizada por empresários e principalmente pelo Estado para custear os projetos milionários.
Tal política resultou na multiplicação da dívida externa brasileira.
De olho nos recursos minerais descobertos na região e associados ao Estado brasileiro,
os empresários brasileiros e estrangeiros acreditaram na construção de mega projetos minerometalúrgicos. O II Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND (1975/79) do governo
Geisel impulsionou a implementação destas políticas públicas, consolidadas na formação dos
empreendimentos de exploração de bauxita pela Mineração Rio do Norte – MRN, no
município de Oriximiná-PA em 1979, e de Ferro e outros minérios pela estatal Companhia
Vale do Rio Doce (CVRD)13 na província de Carajás em 1984. Esses dois grandes projetos
somados a outros já existentes no Pará, tornaram o estado do Pará o segundo maior produtor
mineral do país (atrás do estado de Minas Gerais) e colocou a exploração mineral como
principal potencializador da dinamização e do crescimento econômico regional.
A Amazônia deixava de ser um espaço esquecido pelo desenvolvimento estatal,
considerado simplesmente como reserva de valor, para tornar-se a equação do déficit na
13
A CVRD foi privatizada 1997 pelo então presidente da república Fernando Henrique Cardoso.
27
balança comercial, via exportação e fornecimento de bens-primários e semi-elaborados para
os pólos industriais do centro-sul e dos paises desenvolvidos. Isto é, mais uma vez a economia
regional se estruturou na exploração dos seus recursos naturais por atores capitalistas das
regiões mais ricas, que cobiçavam o próprio desenvolvimento. Restou a Amazônia arcar com
o ônus sócio-ambiental do ‘progresso’ e se limitar à mais um século de abusos, submissão, e
subdesenvolvimento.
4.1. A FORMAÇÃO DO COMPLEXO BAUXITA-ALUMÍNIO
Pesquisas geológicas realizadas, na década de 1960, constataram a existência de
grandes reservas de bauxita na região amazônica, tornando-a a terceira maior fonte do minério
no mundo. A bauxita é uma das matérias-primas para produção de alumínio, encontra-se na
Amazônia associada aos sedimentos terciários do início do Pleistoceno. Na região do
Trombetas a jazida de bauxita foi descoberta pela empresa transnacional Aluminium
Company of Canada - ALCAN, em 1971. Isto a motivou a implantar ali um grande projeto
minerador. Porém, por causa da divergência com as diretrizes brasileiras em relação ao
projeto, que não concordava
com o fato da empresa se constituir apenas por capital
estrangeiro, e atendendo interesses políticos globais da empresa transnacional paralisou-se o
projeto no ano seguinte (SANTOS, B., 1983).
Em 1975 reabriram-se as negociações em relação à bauxita do Trombetas resultando
na criação da empresa Mineração Rio do Norte. Esta se constituiu pela coligação entre oito
empresas sob comando da estatal brasileira CVRD e da transnacional ALCAN, no formato
joint-venture. Isto é, uma empresa formada pela associação de capital nacional, público e/ou
privado, e estrangeiro. A distribuição acionária inicial da mineradora contou com CVRD
(42%), a empresa privada brasileira Companhia Brasileira de Alumínio/Grupo Votorantin
(10%) e como o grupo de seis empresas estrangeiras, ALCAN (19%), Mineração do Xingu –
subsidiária de empresas holandesas (5%), a norte americana Reynolds (5%); a norueguesa
Norsk Hydro (5%) e a Alumina Española (5%) (SANTOS, B., 1983; COELHO &
MONTEIRO, 2003). Apesar da CVRD, na ocasião estatal brasileira, ser a maior acionista, a
maior parte do
capital encontrava-se dividido com as outras empresas, todas grandes
consumidoras de bauxita. Além da criação da MRN ficou decidido no acordo, ainda que de
forma preliminar, a viabilização da implantação de uma fábrica de alumina para transformar a
bauxita do Trombetas (PINTO, 1977).
28
É importante lembrar que na região do Trombetas houve tentativas por parte da
Aluminium Company of America (ALCOA) e do Grupo Ludwig/Mineradora Santa
Patrícia/JARI de instalar outro projeto de extração mineral e de uma indústria de
transformação, próximas à MRN. Além destas, a central Elétrica do Norte do Brasil ELETRONORTE cobiçou a construção de uma usina hidroelétrica nas cachoeiras de Pancada
e Cachoeira Porteira, com objetivo de fornecer energia para o pólo regional de bauxitaalumina que ali se planejava. Contudo, nenhum dos projetos teve prosseguimento, mas
deixaram marcas no espaço e nos territórios negros especificamente.
O projeto de extração de bauxita em Oriximiná faz parte da estratégia de atores
nacionais e internacionais, cujo objetivo era solucionar o problema de suprimento do mercado
de bauxita e alumínio em crise, devido ao fechamento da indústria de alumínio japonesa por
conseqüência da crise do petróleo (BUNKER, 2000). Com intuito de atender a demanda
externa construiu-se no Pará e Maranhão o complexo de Bauxita-Alumínio. Este, além da
empresa de extração MRN, se compõe por mais três indústrias de transformação: Alumínio do
Norte do Brasil (Alunorte), Alumínio do Brasil (Albrás) e Alumínio do Maranhão (Alumar),
localizadas no pólo metalúrgico de Barcarena-PA na foz do rio Tocantins e na cidade de São
Luís-MA. Junto com a usina hidroelétrica de Tucuruí, que abastece de maneira subsidiada as
indústrias de alumínio, esses objetos formaram no espaço geográfico amazônico um corredor
de exportação. O curso corresponde a: mina - área de extração de bauxita da MRN em
Oriximiná; hidrovia – composta pelos rios Trombetas e Amazonas; Albrás/Alunorte/Alumar –
indústrias transformadores em Barcarena e São Luís; e Porto (vide mapa 2). Contudo, o curso
pode ser alterado, por exemplo, com a exportação direta do minério bruto de Trombetas para
os comprados nos paises centrais.
Por outro lado, o empreendimento minerador do Trombetas representa o primeiro
grande projeto de desenvolvimento concretizado pelo Estado brasileiro na Amazônia.
Formulada no interior do II PNB, essa política pública do governo militar impôs ao município
de Oriximiná, por seu potencial em recursos minerais, sediar um dos pólos de
desenvolvimento regional. Pretendia-se com isso criar no Baixo Amazonas uma estrutura
atrativa para a entrada de novas empresas, desencadeando um crescimento econômico
orgânico e sustentável. No entanto, segundo pesquisa realizada por Trindade (2001) o
resultado obtido com a introdução da MRN não foi o esperado pelos militares. A integração
da empresa mineradora com a economia tradicional e a atração de novos empreendimentos de
grande porte para região vem sendo discreta.
29
O baixo nível de relação econômica da empresa com a região e sua ligação muitas
vezes direta com a escala global não representa um caso de enclave. São evidentes na escala
local e regional as mudanças sociais, econômicas e ambientais conseqüentes do pólo
minerador. As transformações no município e mais diretamente na cidade de Oriximiná, que
recebe volumosos recursos originários da Compensação Financeira pela Exploração de
Recursos Minerais (CFEM ou royalties), não podem ser desprezadas. Segundo Coelho e
Monteiro (2003) o contingente populacional na cidade de Oriximiná elevou-se mais de quatro
vezes em trinta anos, muito mais do que nos municípios vizinhos, apesar da infra-estrutura
urbana e a economia formal não apresentarem condições de absorverem o crescimento. Ou
seja,
partindo-se das evidencias de que os efeitos não se restringem à localidade
onde a mina se acha localizada, os processos sociais e econômicos
desencadeados pela implantação do complexo mina-aluminina-alumínio
produziram sistematicamente desigualdades de situações sociais e
econômicas na Amazônia (COELHO & MONTEIRO, 2003, p. 39)
Mapa 2
30
As implicações de um grande projeto minerador são imprevisíveis e incalculáveis,
podendo atingir as mais variadas escalas geográficas, da local à global, como demonstram
Coelho e Monteiro (2002, 2003 e 2005b) em seus trabalhos sobre o tema. Implementar
políticas públicas como pensava o governo ditatorial pós-1964, considerado fundamental
‘civilizar’ e ocupar o ‘espaço vazio’ amazônico através da expansão capitalista pela
exploração dos recursos naturais, a qualquer custo e de qualquer maneira, resultam em
problemas desastrosos como aconteceram em Oriximiná, Barcarena, Tucuruí e Carajás
(COELHO, 2002, 2005a e COELHO, MONTEIRO & CUNHA 2005b). Este estudo limita-se
a analisar os impactos da implantação da empresa mineradora MRN na escala local.
Entretanto, por causa das relações multi-escalares que este objeto requerer, não se pode
ignorar a presença de atores regionais, nacionais e internacionais na compreensão da
complexidade dos conflitos locais.
4.2 MINERAÇÃO RIO DO NORTE – UM GRANDE PROJETO IMPERADOR
A ‘marcha’ da MRN sobre o vale do Trombetas pareceu com a de um grande
imperador, que por onde passa transforma o espaço e a sociedade. A chegada da empresa, em
1975, provocou desde então amplas transformações espaciais. Estas tiveram efeitos diversos,
nas relações sociais, na estrutura econômica, na organização territorial e no equilíbrio
ambiental. Ainda por cima, o ‘imperador’ trouxe consigo uma tropa de súditos fiéis dispostos
a proteger seus interesses e territórios. Entretanto, o ‘imperador’ não é um ente supremo, que
emana o poder. Segundo Arendt (apud SOUZA, 1995) o poder não pode ser personificado. O
poder é exercido por um grupo. Ou seja, quem suporta o ‘império’ da mineração são os
capitalistas, nacionais, estatais, privados e transnacionais, por isso não se pode limitar os
problemas ocorridos no entorno do projeto à escala local. Os interesses, como vistos acima,
contêm caráter regional, nacional e internacional, tornando ainda mais complexo os conflitos
e impactos resultantes da territorialização da empresa.
O anúncio da vinda do ‘imperador’ não prevê somente impasses, gera também
esperanças como a de ascender socialmente, de ter acesso aos benefícios básicos tão
desejados, de se tornar mais incluído numa sociedade excludente e preconceituosa, e por fim,
a de creditar que está mais próxima do poder e agora enfim o imperador saberá quem é o
povo. Foi nesta expectativa que os negros viram o novo projeto de desenvolvimento regional
se instalar em seus quintais. Mas os sonhos de serem vistos pelo poder público não se
31
realizam. O Estado de forma autoritária tratou aquele espaço como vazio. Vazio e passível de
ser dominado, colonizado e delimitado, ignorando-se os indivíduos ali residentes.
O mesmo pensamento de espaço vazio compôs as políticas consecutivas
implementadas para assegurar a reprodução e a expansão do capital minerador, como foi o
caso da delimitação das áreas de preservação ambiental, em 1979 e1989, do projeto da
hidroelétrica de Cachoeira Porteira (ainda não construída) e de outros relacionados à
exploração dos recursos minerais. A confirmação de política de delimitação das unidades de
conservação e os outros projetos de desenvolvimento regional fazem parte do processo de
institucionalização que se iniciou com a vinda do projeto minerador para Oriximiná. A
mineração introduziu novos atores e promoveu a criação de novas instituições. Como
conseqüência de sua implantação atraiu novos indivíduos e empresas que se organizaram
neste espaço em redes relacionais diversas.
O processo de institucionalização se caracteriza pela transformação espacial a partir de
novos atores e agentes (segundo Raffestin (1993) representados por organizações: Estado,
empresas,
grupos
sociais,
instituições
políticas
e
religiosas,
Organizações
Não-
Governamentais etc.), e seus aparatos técnico-científicos e informacionais, suas normas,
regras e limites territoriais. Desta forma, molda-se uma nova ordem espacial (SANTOS,
1996). Essa nova ordem estabelecida no Trombetas se chocou com o espaço pré-existente, ou
seja, com os modos de vida e com as territorialidades do grupo tradicional negros. Em contra
partida, os remanescentes de quilombo utilizam-se dos próprios meios técnico-científicos e
informacionais para confrontar o novo poder hegemônico, formado pela mineração e seus
‘guardiões’14 territoriais - instituições governamentais protetoras do entorno. Ao afrontar o
grande ‘imperador e seus protetores’ os remanescentes tinham o desígnio de reverter a relação
desigual de poder, e assim garantir seus direitos históricos sócio-econômicos e territoriais.
É nesta conjuntura de re-organização espacial, campo de poder, conflito territorial e
desequilíbrio ambiental que se tornou o espaço transformado pelo ingresso de projeto de
extração de bauxita da MRN e de outras instituições como IBAMA/IBDF, ALCOA, Grupo
Ludwig /JARI, Andrade Gutierrez, ELETRONORTE, INCRA, universidades, Organizações
Não-Governamentais (ONG´s), movimentos sociais. Os atores sociais promovem relações
diversas convergentes e divergentes, tramando alianças e embates, pretendendo atingir seus
respectivos interesses.
14
O termo guardiões (ou guardian) teve origem na conferência intitulada “Polítical Geography and
Metageography” do prof. Peter Taylor em 2005 na Universidade Federal do Rio de Janeiro, patrocinada pelo
Programa de Pós-graduação em Geografia.
32
4.2.1 O Mito do Espaço Vazio e as Conseqüências Territoriais
A problemática no Trombetas começa na crença do mito do vazio demográfico. Antes
de se descobrir jazidas minerais, como explicado no capítulo anterior, já existiam grupos
remanescentes de quilombos extrativistas organizados coletivamente e distribuídos
esparsamente no território. Porém, eles encontravam-se invisíveis ao poder público e suas
políticas de desenvolvimento territorial. Os quilombolas viviam em comunidades etnicamente
fechadas e socialmente autônomas, promovendo agricultura de subsistência, coletando
espécies vegetais e caçando para consumo próprio e comercialização no mercado regional.
Alguns poucos ainda encontravam-se sob controle territorial dos, então decadentes, ‘patrões
dos castanhais’. Durante a instalação da mineração as comunidades foram ignoradas. As áreas
ocupadas para alocar a company town15, assim como os platôs, que se tornariam minas, foram
consideradas espaços vazios, onde não havia habitantes e nem uso comprovado da terra. A
empresa criou a visão de que fora ela a primeira a ocupar a região, até mesmo antes dos
negros ali habitarem. Desta forma, ela teria o direito à exploração do espaço em detrimento do
uso promovido pelas comunidades tradicionais que os ‘ameaçavam’ (ACEVEDO e CASTRO,
1998). Ao promover tal discurso pioneiro, a MRN procura legitimar sua expansão territorial,
autoritária, sobre o espaço habitado e utilizado em tempos anteriores por quilombolas. Assim
como, respaldar o poder exercido sobre os negros e seus territórios.
A primeira desterritorializaçao efetiva sofrida pelos quilombolas aconteceu quando 90
famílias fizeram um ‘acordo’ com a mineração para saírem de seu território, atualmente
ocupado por ela, sob forma de indenização irrisória . Somando aos 65.552 ha de terras para
lavra concedidas pelo governo federal, a empresa adquiriu uma posse de 400 ha, mediante um
pagamento aos negros, e solicitou 87.258 ha ao INCRA em 1977. Esta posse incluía inclusive
a comunidade de Boa Vista, localizada na margem esquerda do rio, bem ao lado de Porto
Trombetas (ACEVEDO e CASTRO, 1998). Apesar de não terem sido removidas, as famílias
ali residentes foram proibidas de caçar, fazer roçado e coletar castanha ou qualquer produto da
floresta. Além disso, tiveram seu território e seu direito de circular limitados com o fim do
acesso aos platôs com castanhais, concedidos para lavra, e com a construção de Porto
Trombetas. Desta forma, se tornava praticamente insustentável a sobrevivência deste espaço.
15
Company town é o termo utilizado para denominar as cidades exclusivas das empresas. Isso é, cidades
construídas para moradia apenas dos funcionários da empresa e suas prestadoras de serviços.
33
A única escolha possível foi se submeter totalmente ao controle da MRN, como empregados e
clientes dos programas sociais.
A segunda maior perda territorial provocada pela Mineração Rio do Norte aconteceu
nas comunidades do lago do Jacaré, Abui e Tapagem localizados pouco abaixo das
cachoeiras. Após a aquisição das terras do antigo ‘dono’ dos castanhais, Raimundo Costa
Lima pela mineradora Xingu S/A, interessada em explorar bauxita, esta promoveu uma
verdadeira varredura da população quilombola. Com o apoio da policia e do Instituto
Brasileiro de Desenvolvimento Florestal - IBDF, de quem posteriormente recebeu
indenização, e por meio de muita violência, a firma retirou dos territórios tradicionais mais de
50 famílias (ACEVEDO e CASTRO, 1998).
Outro caso de conflito por sobreposição territorial se deu na comunidade de Cachoeira
Porteira, ou colônia segundo denominavam os brancos. Esta comunidade está localizada na
margem esquerda muito próxima da primeira cachoeira, local onde os regatões iam negociar
com os negros. Até meados de 1970, a comunidade não se alterou. Viviam de forma nucleada
e seus roçados ficavam no interior da mata. No entanto, neste período houve a entrada da
companhia Andrade Gutierrez, uma empresa de construção civil que fora para Oriximiná para
abrir 200km de estrada de Cachoeira Porteira até a Perimetral Norte, rodovias que não se
concretizaram.
Algum tempo depois fez um acordo com a ELETRONORTE para construir uma usina
hidroelétrica no local e com a MRN para fornecer madeira da área prevista de alagamento
para produzir energia no processo de secagem da bauxita. A construtora então deu início em
Cachoeira Porteira da formação de uma company town para alocar os trabalhadores do
projeto. No local da roça dos quilombolas ergueram-se edificações. Posteriormente, os
quilombolas foram removidos após pagamento de uma humilhante indenização, além disso
muitos castanhais e outras árvores foram derrubados, afetando o agro-extrativismo. Os
quilombolas sem opção, culturalmente aderiam a nova organização social como subempregados, na forma de mão de obra braçal e doméstica. A pressões dos ambientalistas
impediram a construção da usina e levou a mineradora a encerrar o contrato de fornecimento
da madeira com a Gutierrez. Em 1989, esta se retirou de Cachoeira Porteira (ACEVEDO e
CASTRO, 1998).
A desterritorialização dos negros como reflexo da institucionalização continuou na
comunidade Mãe Cué, localizada à margem direita do rio, no igarapé Terra Preta, pouco
acima da company-town de Porto Trombetas. Segundo Antunes (2000), na década de 1970,
foram expulsas de forma violenta de suas terras aproximadamente 20 famílias desta
34
comunidade, para ceder lugar as instalações do projeto da Mineração Santa Patrícia/ Grupo
Ludwig /JARI. Os indivíduos se reterritorializaram na margem oposta do rio. Após alguns
anos de adaptação no novo território, a criação da Reserva Biológica do Trombetas – REBIO,
em 1979, na mesma margem do rio obrigou-os a retornar aos antigos, já abandonados pela
mineradora Santa Patrícia. Entretanto, os conflitos territoriais para esses quilombolas não
tinham acabado. Em 1981, O Grupo Ludwig vendeu as áreas de concessão de lavra da bauxita
para mineradora ALCOA que decidiu retomar o projeto. A empresa não conseguiu retirar os
remanescentes de quilombos, que estavam cercados entre a proibições de caça, pesca, roçado
e extrativismo à sua frente pela REBIO e no seu território pela ALCOA. Em 1991, um acordo
com a CVRD assegurando a venda de bauxita de Trombetas para ALCOA fez com que ela
abandonasse o projeto, permitindo aos negros reassumirem seu território.
Os conflitos contra as grandes empresas, como MRN, ALCOA, Grupo Ludwig,
ELETRONORTE, foram objetos de lutas pelos negros. Porém, não só os remanescentes de
quilombos sofreram com os impactos de um grande projeto, outros tantos povos tradicionais
perderam esta luta contra o capital. As redes sociais destes pequenos grupos étnicos não
permitiam exercer um poder de pressão perante o Estado, o que enfraquecia suas forças nos
embates no campo de disputa territorial contra as grandes empresas. Estas, por serem
sustentadas por uma rede de interesses capitalistas nacionais e internacionais, exercem o
poder sobre o território e sobre a população com total respaldo e o apoio das instituições
públicas, as quais muitas vezes elas controlam. Para o governo federal, principalmente
durante o período ditatorial, populações tradicionais não poderiam servir de barreira para o
progresso e o crescimento do país. Elas eram vistas como arcaicas, atrasadas e primitivas e
que precisavam ser civilizadas e modernizadas pelos frutos do desenvolvimento capitalista ou
então removidas permitindo o destino manifesto do povo brasileiro.
4.2.2 A Ilusão da Socialização do Progresso
Nos primeiros anos de construção do pólo minerador e das outras empresas,
requisitaram-se intensamente a mão de obra negra. Eram os habitantes naturais daquele lugar
que detinham o conhecimento geográfico. Assim como os viajantes que adentravam o rio
Trombetas no século XIX e início do XX, os engenheiros e geólogos das firmas também se
serviram de seus conhecimentos (know-how) para se localizarem na mata, para chegarem aos
platôs de bauxita e até mesmo para adquirirem informações suficiente para determinarem a
localização das futuras instalações. Também utilizaram os serviços braçais dos quilombolas
35
para fazer perfurações, construir edificações e desmatar. O fato é, que apesar de acreditarem
que fariam parte do ‘progresso’ que ali chegava, os remanescentes, depois das empresas se
estruturarem na região, viram seus conhecimentos e sua força não servirem mais de nada para
os empresários.
Os quilombolas, que viviam no entorno e viam na mineração a possibilidade de
ingressar como assalariados e ascenderem socialmente, limitaram-se ao restrito número de
funcionários contratados nas comunidades. Na atualidade, a comunidade que mais detém
trabalhadores na mineração é a Boa Vista, que se localiza ao lado de Porto Trombetas.
Todavia, poucos são funcionários da MRN em si, apenas sete. Na década de 1990, demitiram
a maioria dos negros, quando a empresa passava por um processo de reestruturação da
produção. Os quilombolas que permanecem nos empregos em Porto Trombetas exercem
funções de baixo nível técnico e salarial como empregadas domésticas, diaristas, garis,
jardineiros, motoristas etc. Não houve incentivos que levassem os ribeirinhos a ocupar altos
cargos. A visão de inferioridade e de capacidade mental baixa está presente na frase de um
dos representantes da MRN: “Os quilombolas trabalham no que eles sabem fazer”
(Entrevista em 2004).
Os remanescentes de Boa Vista ao invés de trabalharem diretamente na empresa foram
incentivados a criar uma cooperativa exclusiva aos seus moradores. A COOPERBOA16, que
presta serviços de baixo nível técnico de forma terceirizada na company-town, sendo assim
retira da empresa os custos trabalhistas. A COOPERBOA assim como a COOPBARCO17,
cooperativa de barqueiros que ficam no porto da cidade a espera de prestar serviços para as
empresas, funcionários e visitantes, tiveram suas formações incentivadas e financiadas pela
mineração. Tal estratégia é utilizada para manter o controle social do território e conquistar o
apoio dos ribeirinhos que se tornam submissos.
4.2.3 A Cidade Fechada
A MRN apresentou em seu ingresso um panorama promissor para o futuro da região
com a geração de empregos e dinamização da economia regional. Para as comunidades do
entorno o projeto provocou uma expectativa de terem atendidas suas necessidades básicas
como hospital, escola, luz, bancos públicos, postos do INSS, políticas que deveriam ser
16
17
Cooperboa - Cooperativa da Comunidade de Boa Vista
CoopBarcos – Cooperativa de Prestação de Serviços Fluviais Especializados do Rio Trombetas,
36
desenvolvidas pelos órgãos públicos. Também se esperava a instalação de um aparato
comercial para que eles não precisassem mais promover grandes viagens até Oriximiná para
comprar alimentos.
De acordo com a avaliação dos quilombolas os benefícios gerados pelo projeto não se
realizaram da maneira esperada. Os suprimentos das necessidades básicas não se realizaram.
Muitas comunidades não têm até hoje escolas nas suas proximidades. Quando há, elas são
deficientes em termos de ensino, equipamento e fornecimento de merendas, ainda por cima se
restringem a alunos até a quarta série. Em relação à saúde os problemas não são diferentes. O
pequeno posto de saúde localizado na orla de Porto Trombetas não tem equipamentos, pessoal
e nem os remédios suficientes para solucionar os problemas e a demanda local. A luz, no
entanto, chegou as comunidades. A prefeitura de forma paternalista doou gerador de luz e
fornece o diesel mensalmente. Contudo, devido ao alto custo desta energia, somente há luz
num curto período durante a noite, e quando o combustível acaba a comunidade não tem
recursos para adquirir mais. Ou seja, não se criou uma sustentabilidade econômica para que os
comunitários possam arcar com os próprios custos.
O grande contraste acontece quando se entra na company-town. Segundo Coelho et al
(2002, p. 138), “a área da mineração, o território da empresa exploradora e sua periferia
fazem parte de uma geografia desigual”. Porto Trombetas é uma cidade totalmente cercada,
por cercas de arame de mais de 2 metros de altura, onde a entrada e a saída das pessoas é
controlada por guardas a serviço da mineradora. Só é permitido o acesso na cidade se
devidamente identificado e autorizado com comprovação de necessidade para fins
relacionados à empresa, suas prestadoras de serviço ou seus habitantes. Este aglomerado
urbano, construído para alocar os funcionários da empresa e seus prestadores de serviço, é
equipado por todos os serviços básicos e de consumo. Encontra-se em seu interior cinemas,
restaurantes, supermercados, igrejas, lojas, clube, hotéis, serviços bancários e de previdência
social, aeroporto com vôos regulares, uma usina termoelétrica que gera energia apenas para a
company-town, uma escola de alta qualidade e um dos mais estruturados hospitais do Baixo
Amazonas. Entretanto, estes serviços são limitados aos habitantes, funcionários e visitantes,
outros indivíduos incluindo os quilombolas residentes no entorno não podem ter acesso livre à
estrutura disponível.
É preciso ressaltar que há exceções. Além dos negros que trabalham em Porto
Trombetas, existe uma lista com os habitantes do entorno que podem entrar na cidade. Essa
lista, segundo a empresa, inclui apenas residentes anteriores à implantação dela e seus
descendentes e se aproximam de 700 pessoas. Tal medida foi tomada depois de anos de brigas
37
dos negros principalmente reivindicando atendimento no hospital. Mas em entrevista
identificou-se que muitos remanescentes não estão nesta lista e que a mineradora limita a
entrada somente em casos muito graves, quando não é possível se direcionar à Oriximiná. Na
escola há igualmente exceções. Alguns poucos alunos da escola da comunidade Boa Vista,
que tem convênio18 com a MRN, após completarem a 4a série podem ir estudar na escola na
mineração totalmente subsidiados. Entretanto, tem que manter um rendimento satisfatório,
fazer curso de nivelamento, por causa do baixo nível da escola municipal, e de ‘socialização’,
no qual o quilombola aprende a comer com talheres, a se portar em público etc. Essa política é
bem próxima das implementados no período colonial , quando os brancos civilizavam negros
e índios. Tirando esses casos, a cidade e seus serviços se encontram fechados para outras
pessoas. A lista se tornou excludente entre as comunidades diferenciando quem tem acesso
aos serviços e quem não tem.
4.2.4 A Sobreposição Territorial: os Recursos e o Impacto Ambiental
No que diz respeito à economia local, pode-se dizer que a mineração promoveu certa
dinamização, mas não incluiu as comunidades rurais regionais e muito menos as em seu
entorno neste processo. Elas além de não terem sido integradas como mão de obra na
empresa, de não conseguirem vender sua produção extrativista e agrícola para mineração,
também vêm perdendo continuamente parte de sua principal fonte de renda - a extração da
castanha-do-pará - e de seus territórios usados. Tais perdas territoriais e econômicas ocorrem
por causa da sobreposição territorial natural de dois recursos: a castanha e a bauxita, ambas
localizadas no topo dos platôs sedimentares da formação barreiras.
Por serem produtos economicamente valorosos os territórios se tornam valiosos para
uso social e objeto de interesses por parte dos atores conflitantes. A sobreposição de recursos
naturais distintos gerou impasse, pois a exploração de um é excludente a do outro, causando o
acirramento dos conflitos territoriais e dos interesses de cunho econômico. A comunidade de
Boa Vista já teve seus castanhais dos platôs Saracá e Papagaio devastados para extração do
minério, assim como outras comunidades ribeirinhas do entorno. A problemática social do
entorno da mineração se intensifica nos períodos de expansão da exploração, quando a
empresa reivindica mais espaço (COELHO, et al 2002). No mapa 3, isto se torna visível. Há
existência de platôs ricos em bauxita, ainda não explorados, em áreas pretendidas por
18
O convênio entre a MRN e a escola municipal de Boa Vista é relativo ao fornecimento de merendas e
professores (os mesmo da escola da empresa).
38
quilombolas, sendo assim, prenúncio de conflitos diretos entre o capital financeiro e o grupo
étnico de direito territorial legítimo.
Durante os séculos XIX e XX, os negros se organizaram em quilombos nas margens
dos rios no vale do Trombetas, mas seus territórios não se restringiam às margens. Os platôs
também faziam parte dos seus limites territoriais, pois eles utilizavam-os para aquisição de
produto para consumo próprio e de comercialização, dentre estes a castanha-do-pará. Pode-se
caracterizar tais espaços como territórios contínuos, sobre os quais os remanescentes
mantinham o controle e migravam pendularmente à procura dos recursos da floresta. A MRN
e posteriormente as unidades de preservação promoveram a alteração da organização
territorial deste grupo. Anteriormente, eles tinham fluxo livre nos platôs. Porém, atualmente
alguns destes territórios estão sob controle e gestão da mineradora, que tem o direito de lavra
e/ou já se encontram degradados pelas técnicas de extração mineral. Os territórios antes
contínuos, livres e coletivos se tornaram limitados com a introdução da propriedade privada.
As titulações de terra do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e do
Instituto de Terras do Pará (ITERPA) nem sempre consideraram nas demarcações os aspectos
culturais de fluidez territorial, como no caso de Boa Vista titulado em 1995. Mesmo no caso
de outras titulações promovidas por essas instituições, os territórios se tornam restritos e
limitados, não incorporando a totalidade do espaço de uso.
Atividade mineradora e sustentabilidade ambiental são processos antagônicos. Ainda
não foi possível desenvolver tecnologia suficiente para que a extração mineral se torne menos
agressora ao ecossistema. O processo de retirada da bauxita necessita devastar grandes
hectares de vegetação. Na Amazônia se derrubam árvores protegidas por lei como a
castanheira, resultando consecutivamente em problemas sociais graves. Perde-se grande
quantidade de biodiversidade, se retiram os animais de seus habitats e destroem diversos
biosistemas. Se a floresta amazônica é pouco conhecida pelos pesquisadores, os impactos de
sua devastação são imensuráveis. No entanto, esses são ‘necessários’ para produzir bens de
consumo da sociedade capitalista. O problema então seria os impactos passiveis de serem
evitados.
Outro conflito territorial gerado entre quilombolas e mineração ocorreu devido à
displicência da empresa com as questões ecológicas e sociais. Desde os primeiros anos de
exploração mineral, a MRN utilizou-se do igarapé Água Fria e do lago Batata como tanque de
rejeitos. Isto é, durante o processo de extração do mineral e exportação, o minério tem que ser
lavado, o que gera a produção do rejeito - material rico em lama sem valor financeiro - que
por não ter valor tem que ser eliminado. A mineradora no processo de eliminação deste
39
material causou um grande impacto sócio-ecológico. Os lagos, uma das principais fontes de
renda e de alimento das populações ribeirinhas, foram fortemente atingidos pelo assoreamento
provocado pela deposição constante de material argiloso.
As populações locais, incluindo os quilombolas, tiveram seus recursos naturais
imobilizados e acompanharam a biodiversidade escassear lentamente. Desta forma, os negros
sofrem uma transformação em sua organização sócio-territorial. Isto é, o lago e o igarapé
antes território usado para fins de sobrevivência da comunidade na obtenção de alimentos,
foram espaços de uso da mineração para o processo de eliminação dos rejeitos (no sentido
literal) do modo de produção capitalista. Há neste sentido, uma imposição do novo uso ou
uma sobreposição de usos incompatíveis para o mesmo espaço. Os usuários mais frágeis, ou
com menos poder, começam a perder o controle do seu território, mesmo não sendo
dominados por completo.
O conflito envolvendo o lago Batata e o igarapé Água Fria atraíram a atenção de
novos atores sociais extra-regional preocupados em evitar a intensificação e continuidade da
degradação sócio-ambiental. A MRN como resposta às pressões externas passou a promover a
implementação de plano de recuperação dos lagos, utilizando-o como um dos principais
slogans de legitimação da exploração e do território sustentável. A empresa grande vilã e
poluidora se torna preocupada com a natureza e ambientalmente correta.
40
5. OS TERRITÓRIOS DO ENTORNO MINERADOR
5.1 AS ESTRATÉGIAS DE CONTROLE SÓCIO-TERRITORIAIS DA MRN
O entorno da mineração em Oriximiná compõem-se por territórios em conflitos.
Territórios desiguais em relação ao da empresa e influenciado pelo poder desta. Locais onde
as estratégias e os embates entre os atores sociais se afloraram. Onde as contradições do
modelo capitalista excludente e repressor formam um campo de poder constituído por redes
de relações que se articulam nas mais diversas escalas geográficas (SOUZA, 1995;
HAESBAERT, 2004). No entorno encontram-se as instituições vindas para proteger o capital
minerador, os ‘guardiões’ do território. São eles que vão desenvolver uma fronteira que afaste
o centro (a empresa) ainda mais da periferia (o entorno). Para isso, criam-se novas regras,
normas e leis de controle e gestão territorial.
Sobre o território de proteção há grupos sociais interessados no uso e no controle do
espaço, gerando um ambiente de constante instabilidade social. O entorno é um espaço
permanentemente e diariamente alterado sob a pressão dos movimentos sociais e suas
estratégias de resistência e de regulação das mudanças implementadas pela empresa, ITERPA,
INCRA, IBDF/IBAMA19, FUNAI20 e outros poderes públicos (COELHO, et al, 2002). Os
entornos mineradores, no entanto, não são iguais em todos os lugares, caracterizam-se por
peculiaridades regionais, por grupos sociais distintos, por diferentes órgãos públicos e tipos de
empresa mineradoras presentes. Contudo, há um padrão que vem se repetindo nas áreas de
exploração de minérios na Amazônia Oriental, principalmente sob comando da CVRD.
As transformações territoriais ocorridas nestes espaços refletem o jogo de interesse da
empresa mineradora, que objetiva proteger seu entorno de futuras ocupações e preservar as
reservas de capital ali existente (possíveis minas), a partir de um discurso de proteção
ambiental e social, como retrata Coelho et al (2002, p. 163) no caso de Carajás:
(...) o entorno dos territórios criados e defendidos pela empresa mineradora é
local de disputa, lugar onde o centro (a empresa) tende a se estender
territorialmente e impor sua racionalidade. Este encontra sempre maneiras
legitimas de fiscalizar e regular as vidas dos moradores do próprio território
e do entorno (...).
19
20
IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.
FUNAI - Fundação Nacional do Índio.
41
A reivindicação e luta por uma vasta área de terra por parte de uma grande
empresa (...) representa também suas pretensões de ampliação futura de suas
atividades mineradoras e de extensão de controle do patrimônio ambiental a
um espaço mais amplo, em face das necessidades atuais e futuras de
diversificação de suas atividades e escassez.
Pretendendo proteger seu empreendimento e seu território a MRN ao chegar, na
década de 1970, no vale do Trombetas começou a buscar adotar estratégias para o controle
social e territorial. Tal mecanismo se divide em duas táticas. A primeira corresponde à
delimitação efetiva do espaço ao seu redor mediante a criação de novos território em
associação com poder público. Ou seja, a mineração incentiva e financia estudos necessários a
demarcação de territórios de uso restrito, onde a entrada de população se torna limitada ou até
mesmo proibida. Assim, ela desenvolve um cinturão de proteção para seu território,
afastando-a de pressões sociais e da cobiça de outros empresários. Esses espaços costumam
ser também áreas de interesse mineral, que em períodos futuros poderão se tornar áreas para
de expansão da exploração capitalista. Como exemplo destes territórios pode-se citar as áreas
de conservação ambiental, delimitação de áreas indígenas, territórios de quilombolas e
assentamentos rurais. Todos esses territórios apresentam regras, normas e leis controladas por
instituições públicas, o que facilita o poder de interferência da empresa .
A outra tática corresponde ao desenvolvimento de políticas sociais e ambientais. A
empresa aplica em seu entorno políticas da ‘boa vizinhança’. Isto é, por meio de ações sociais,
em sua maioria paliativas, a mineradora cria uma relação de dependência da população do
entorno com ela. Ao fornecer a assistência de serviços de necessidade básica (escola, saúde e
geração de emprego), funções referentes ao Estado, ela tenta se aproximar dos grupos
afetados e excluídos do processo capitalista, objetivando esvaziar os movimentos sociais de
contestação e legitimar seus impactos sociais, territoriais e ambientais. Tornar o entorno
dependente, significa criar um imaginário de que a atividade mineral é a única saída para o
desenvolvimento daqueles cidadãos e da região. Ao mesmo tempo em que legitima seu
território e seus efeitos, a empresa controla a massa para que não haja nenhuma ação
prejudicial aos lucros. As políticas ambientais exercem a mesma função, de validar os
impactos ambientais pela compensação em investimentos de proteção ambiental.
A mineração implementa as duas estratégias de forma concomitante e complementar.
Muitas políticas sociais e ambientais estão vinculadas à formação de territórios de proteção
que exercem a função de controle territorial e social. A titulação de territórios indígenas,
quilombolas e os assentamentos rurais no entorno do projeto, na maioria das vezes,
sustentam-se com o apoio financeiro da mineradora, do mesmo modo que as unidades de
42
conservação – U.C.`s. Com isso, a firma tem a capacidade de influenciar a população e a
gestão dos territórios a seu favor. A empresa aproveita-se destas ações sociais e ambientais
para adotar discursos, que ocultam os efeitos maléficos promovidos no espaço pré-existentes e
reafirmam sua importância regional, como o da empresa ‘cidadã’ e promotora do
desenvolvimento sustentável – ecologicamente correta.
5.2 AS U.C.`s EM SOBREPOSIÇÃO AOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS
O exemplo mais contundente do interesse da MRN no processo de novas
institucionalizações e seus efeitos sócio-espaciais está na criação e consolidação de unidades
de conservação ambiental, geridas pelo IBDF/IBAMA21. Essa agência federal exerce o poder
na escala local de regular e controlar as comunidades e o uso dos recursos naturais a partir de
novas regras, delimitações e normas territoriais. Os territórios das áreas de conservação
expressam o maior impacto espacial e o poder de transformação dessa instituição, com forte
vinculo com a MRN. Tais áreas sobrepõem territórios previamente constituídos impondo-os
uma nova organização sócio-espacial.
A partir da aliança com IBAMA a mineradora consegue interferir em seu entorno de
forma terceirizada, ou seja, exerce o poder através da instituição pública e da legislação sem
ser assinalada como repressora, territorialista e potencializadora dos impactos, deixando tais
alegações à agência ambiental. Portanto, a empresa aplica, o que Raffestin (1980) aponta
como, a forma mais eficaz de exercer o poder, ver e não ser visto. A instituição federal se
torna então a guardiã do território capitalista e a protetora dos seus interesses.
A atividade mineral no Trombetas teve início em 1976. Após três anos de exploração,
promulgou-se no congresso nacional a proposta da empresa MRN de demarcação da Reserva
Biológica do Trombetas (REBIO), na margem esquerda do rio, área não explorada em
recursos minerais, porém onde há jazidas a serem mineradas. Em 1989, sob mesma orientação
delimitou-se a área da Floresta Nacional de Saracá-Taquera (FLONA) localizada na margens
direita do rio, incluindo as áreas concedida para lavra (ver mapa 3). Nesta data, finaliza-se até
então, o processo de formação territorial desenvolvido pelo IBAMA no entorno do
empreendimento minerador.
21
Até a década de 1989, o órgão federal que regulava as leis e normas relativas à questão do meio ambiente era o
IBDF, após uma reformulação na concepção das políticas voltadas para ecologia na constituição de 1988 se
reestruturou as políticas ambientais no contexto da sociedade. Assim se extinguiu o IBDF, substituindo-o pelo
IBAMA.
43
5.2.1 Reserva Biológica do Trombetas - REBIO
A REBIO consiste no tipo de unidade de conservação mais restrito existente na
constituição brasileira, em virtude de sua utilização para fins de proteção máxima dos
ecossistemas e da biodiversidade. No âmbito jurídico, em áreas de conservação com status de
reserva veda-se a qualquer indivíduo o direito de entrada ou habitação no interior do território
(ver quadro 1). Tal rigorosidade na criação da unidade de conservação no Trombetas não foi
coincidência. O caráter fechado da REBIO garantiu o controle que a MRN pretendia sobre o
território. Desta forma, a empresa tentava impedir a formação de grandes beiradões, como se
deu no projeto Jarí-PA. Além de ter proposto a criação da unidade de conservação, a firma
também assegura sua manutenção, em termos de estrutura e financiamento, por meio de
convênios existentes entre empresa e o IBAMA. Dessa forma, a mineradora se tornou um
órgão fiscalizador, com poder ilegal de polícia em nome da segurança dos recursos naturais e
do território do entorno. Neste espaço por causa das medidas adotadas e das novas regras e
normas, ela evitou qualquer possível exploração dos recursos, mineral ou não, e as formações
de novos territórios que poderiam vir a ameaçar o projeto minerador .
A partir de um discurso aparentemente distorcido, pois existiam interesses mais
poderosos que não se limitam à preservação plena da biodiversidade ou a defesa das
Tartarugas da Amazônia e da madeira de lei, instalou-se no município de Oriximiná a REBIO
do Trombetas, com a extensão de 385.000 ha, em 1979. Na REBIO, por lei, não permite-se a
existência de nenhum humano vivendo no seu interior. Esse tipo de conservação considera a
interação entre indivíduo e natureza um risco à preservação ecológica local. As reservas
biológicas estão estruturadas num discurso puramente biológico e ecológico, que defende a
exclusão do homem para maior proteção da biodiversidade, como se o ser humano não fosse
parte integrante da natureza e como se todas as relações entre homem-meio fossem por
excelência maléficas. Cria-se assim um território inexistente, onde não existe ser humano nem
muito menos a relação sociedade-natureza.
A problemática no entorno da criação da REBIO tem origem na idéia do espaço vazio,
o mesmo que gerou os impactos da implantação do pólo de desenvolvimento regional. O
governo federal, ainda sob o controle ditatorial dos militares, demarcou a reserva sem levar
em consideração os indivíduos ali residentes. Disso decorreu a sobreposição de territórios
centenários utilizados por comunidades quilombolas e o novo território constituído pela
Reserva Biológica do Rio Trombetas (Ver mapa 3).
44
Quadro 1 – Unidades de Conservação no Entorno da Área da MRN
Unidade de Data de
Conservação Criação
Decreto/Lei
Reserva
Biológica do
Rio
Trombetas
(REBIO)
21de
setembro
1979
N°84.018
/N°4.771
Floresta
Nacional
SaracáTaquera
(FLONA)
27 de
dezembro
1989
N°98.704
/N°4.771
Extensões
Territoriais
Atribuições Gerais
Área delimitada com
finalidades de conservação e
proteção integral da fauna,
flora e as belezas naturais
para fins científicos e
385.000 ha educacionais, sendo proibida
qualquer forma de exploração
dos recursos naturais; não é
permitida a visitação pública,
apenas para fins de pesquisa
ou educação.
Área provida de cobertura
vegetal nativa ou plantada,
com os objetivos: promover o
manejo dos recursos naturais
com ênfase nos recursos
minerais com direito de lavra
429.600 ha
autorizado por lei, garantir a
proteção dos recursos
hídricos, das belezas cênicas,
e dos sítios históricos e
arqueológicos; é permitida a
visitação pública.
Atribuições
Específicas
A REBIO tem
objetivos proteger a
tartaruga-da-amazônia.
No território
encontram-se densas
áreas de castanhais.
Existem conflitos com
quilombolas devido à
existência e ao uso dos
recursos naturais destes
no interior da reserva.
Área de particularidade
geológica onde se
encontra grande projeto
de exploração de
bauxita da MRN.
Existência de
castanhais. Há conflitos
de luta por terra
referentes à
sobreposição de
territórios quilombolas
e caboclos.
Fonte: IBAMA – Elaborado pelo Autor.
A delimitação da REBIO desagradou grande parte da sociedade Oriximinaense, que
tinha sua economia e organização social ainda sob forte influência da exploração de recursos
da floresta. As manifestações de descontentamento vieram de diferentes segmentos,
majoritariamente das comunidades negras, dos políticos, comerciantes e interlocutores
nacionais e internacionais (ACEVEDO e CASTRO, 1998).
Foi durante o processo de consolidação da REBIO que afloraram os maiores conflitos
concernentes à instalação do grande projeto. O governo militar, sendo representado pelo
Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF, promoveu a política de eliminação
dos territórios sobrepostos à nova área de preservação. Para isso, utilizou-se até mesmo de
violência física e moral. Existiram comunidades quilombolas na margem esquerda do
Trombetas expulsas de suas terras, muitas vezes sem a efetivação de qualquer indenização ou
mediante ínfima quantia. Os diversos atos de violência foram denunciados pela pastoral de
Oriximiná durante a década de 1980, sendo esta a única forma de visibilidade para os
remanescentes de quilombos. As populações das comunidades do Jacaré e Arrozal foram
desterritorializadas do recém criado território da REBIO e seus habitantes tiveram destinos
diferenciados. Algumas famílias se transferiram para outras comunidades negras, passando da
45
margem esquerda para direita do rio, onde não havia a repressão, ou mudaram para fora da
região do Trombetas. As duas comunidades se encontravam em áreas ricas em recursos
naturais como castanhais, tracajás e lagos piscosos.
Apesar da ação do antigo IBDF, ter sido considerada pelos moradores como
amedrontadora, muitas comunidades ainda permaneceram em seus territórios sobrepostos à
REBIO. Entretanto, a suspeita de qualquer aproximação dos fiscais virava motivo para as
famílias correrem para o interior da floresta a procura de esconderijo. Segundo relatos dos
moradores, os fiscais às vezes acompanhados pela Polícia Federal entravam nas casas e
quebravam os objetos, jogavam a comida da panela no rio e apreendiam os materiais de
trabalho, espingarda, facão, malhadeira e canoa. Tal conflito, ainda que de forma menos
agressiva, permanece até os dias de hoje. Todavia, o estilo violento e repressor do órgão
começaram a se alterar com a emancipação das idéias que “humanizaram” a questão
ambiental no âmbito das políticas públicas na década de 1990, como destaca CUNHA e
COELHO (2003; p 74).
(...) o processo de criação de reservas extrativistas, revelou como um novo
conjunto de idéias e valores tem influenciado o processo de formulação de
políticas ambientais no país. Noções de co-manejo ou de gestão
participativa, baseada numa estratégia conservacionista de proteção da
natureza e numa visão instrumental/reformista dos mecanismos regulatórios
do uso dos recursos naturais, passa, a ser dominantes no setor.
A reserva biológica se encontra em sob um território extremamente rico em recursos
naturais, onde se localizavam os principais, melhores e mais densos platôs cobertos por
castanhais, os grandes lagos e a densa floresta com infinidades de alimentos e de matériaprima vegetal. Os quilombolas que vivem no interior da unidade de conservação e no entorno
sempre se utilizaram destes recursos e do território para alimentação da família e geração de
renda. A partir da demarcação e do controle do novo território há um processo de
“cercamento” dos recursos naturais e dos territórios, antes contínuos e de livre acesso às
comunidades. Os negros num primeiro momento não tiveram vedado seus direitos de
trabalhar como coletores, sendo liberados a entrar e circular na reserva somente em época de
coleta de castanha. Por volta do ano de 1985, com a instalação dos postos de fiscalização na
entrada dos lagos Jacaré e Erepecu o acesso passou a ser proibido pelo IBDF, em qualquer
época ou horário. Desta forma, passa-se a valer a lei que proíbe todo e qualquer tipo de
exploração, considerando-as ilegais.
46
Com a total proibição da entrada na área da REBIO e assim aos castanhais, só resta
aos quilombolas deslocar-se para locais mais distantes e de difícil acesso para atingir os
castanhais. Na margem direita as viagens poderiam levar de um a dois dias e acima das
cachoeiras um investimento de quatro a cinco dias de canoa. Essa regra tem conseqüências
diretas na alimentação e na geração de renda das comunidades. Os tempos passados foram de
fartura e certa autonomia, como relatam os entrevistados. Com as proibições os indivíduos
ainda presentes no interior da reserva viram escassear os alimentos. A produção regional de
castanha também sofreu relevante diminuição.
Em entrevista alguns quilombolas definiram o processo de “cercamento” dos recursos
como novo modo de escravidão. Os indivíduos ficam sem poder ter acesso aos seus recursos,
não tendo outra escolha de sobrevivência que não seja burlando as leis. A desobediência às
leis, promovida pelos remanescentes, reflete a reação e negação ao sistema imposto pelo
Estado e pela MRN, e a necessidade de continuar utilizando-se dos bens da floresta, como
exercido por direito desde os seus antepassados. A problemática se agravou ainda mais,
quando ao infringir a lei, os negros se tornam criminosos. A cultura centenária de uso da
natureza e de circulação sem fronteiras se tornou crime sujeito à repressão do órgão regulador
e da polícia, que lhes poderia resultar em prisão, ou, como de costume no período, em tortura.
Neste contexto de proibição e necessidades, os conflitos se tornaram rotina entre os
quilombolas, que precisam do uso do meio, e o IBDF e posteriormente o IBAMA, órgãos
repressores e ‘protetores’ do território ecológico, sendo assim do entorno minerador.
A relação entre IBAMA e MRN é muito estreita. Caracteriza-se por uma espécie de
dependência recíproca. Onde o primeiro necessita da estrutura e dos investimentos da empresa
mineradora, para se manter numa região distante de qualquer estrutura urbana regional e para
se sustentar frente ao completo abandono das instituições públicas brasileiras. A segunda se
beneficia com a proteção de seus interesses no entorno, aceitos legalmente por intermédio do
IBAMA.
O governo federal se mostrou a favor deste tipo de vinculação, que começa a se
intensificar a partir da Constituição de 1988. A nova Constituição apresenta uma forte
tendência descentralizadora do Estado, em todas as esferas da gestão pública. No que se refere
à questão ambiental, ela se baseia no discurso de maior participação da sociedade, o que
representa um novo modo de gestão dos recursos naturais e das áreas protegidas (CUNHA e
COELHO, 2003). Na teoria a sociedade teria o direito à maior intervenção em temas
polêmicos como a criação de unidades de conservação e elaboração de plano diretor, e se
permitiria intensificar as alianças dos vários segmentos sociais com a instituição reguladora
47
na gestão das políticas públicas. Em parte, algumas mudanças ocorreram, como o aumento no
número de convênios entre Estado e empresas privadas, sobretudo em relação aos
financiamentos privados das políticas. A comprovação deste novo panorama se demonstra
com a promulgação da segunda proposta da MRN, de delimitação da área de conservação da
Floresta Nacional Saracá –Taquera, em 1989.
5.2.2 Floresta Nacional Saracá – Taquera - FLONA
O processo de institucionalização de terras públicas pelos órgãos ambientais a serviço
do capital minerador não se finda com a demarcação da reserva biológica. No ano de 1989, no
fim do primeiro governo civil brasileiro pós-ditadura, foi promulgada pelo então presidente
José Sarney, por interesse e proposta da MRN, a Floresta Nacional Saracá - Taquera.
Localizada na margem direita do rio Trombeta, uma área de 429.600 ha (ver quadro 1), inclui
o território concedido para lavra à MRN. Por parte da empresa, dentre os interesses relativos a
delimitação da FLONA estavam a preservação dos recursos minerais para futuros
empreendimentos e inventar dificuldades a outras empresas concorrentes na concessão de
áreas de exploração, consolidando assim o ‘reinado’ da MRN sobre o território.
Criou-se a FLONA com o discurso de aumentar a regulação e a fiscalização sobre o
mecanismo de extração da bauxita promovido pela mineradora. As justificativas para tal
política foram os acontecimentos de negligência empresarial ao ecossistema, como a poluição
do lago Batata e do igarapé Água Fria. O IBAMA monitoraria a empresa para que fatos como
esses não acontecessem mais. Certamente, não só objetivos de proteção da biodiversidade
constavam dos interesses da criação de uma nova área de conservação. O crescimento
populacional de comunidades no entorno da mineração como as do lago Batata, a Vila Paraíso
e a comunidade do Ajudante, por imigrantes que almejavam emprego e ex-funcionários
demitidos pela MRN passaram a preocupar a empresa. Como estratégia para controle
populacional do entorno na margem direita do rio Trombetas e para impedir que novos
aglomerados se formassem, delimitou-se mais um território controlado pelo convênio
IBAMA/MRN.
A demarcação da FLONA, assim como a da REBIO, não levou em consideração as
comunidades existentes, mesmo se tratando de um governo de tendências “democráticas”. Por
causa da localização e extensão os limites da floresta nacional não só sobrepôs os territórios
negros do Trombetas, mas também os usados e habitados a mais de cem anos por população
caboclas, localizadas na margem direita do rio Trombetas abaixo de Porto Trombetas e no
48
lago Sapucuá. Mesmo permitindo a existência de populações no interior da unidade de
conservação, a FLONA só prevê o uso dos recursos naturais por meio de análise de impacto
ambiental aprovada pelo IBAMA de acordo com o plano de manejo. Deste modo, a criação da
FLONA prejudicou as comunidades negras que viviam do extrativismo vegetal, da caça, da
pesca e do cultivo em modo de roçado. Os quilombolas se viram impossibilitados de extrair
livremente seus alimentos e realizar atividades necessárias para sobrevivência e reprodução
social.
O conflito entre as duas partes se tornou intenso, assim como na REBIO. Os
remanescentes de quilombos não levaram em consideração as proibições, continuando a
promover suas atividades tradicionais. Em contra partida, o IBAMA alegando que os efeitos
de atividades como queimas para formação de roçado, caça e pesca eram causadores da
destruição das florestas intensificavam a repressão e as apreensões.
Os embates territoriais no Trombetas são até contemporaneamente considerados caso
de polícia. Nos postos do IBAMA encontram-se polícias militares que efetuam nos barcos que
sobem e descem o rio revistas a procura de contrabando da floresta. Estes postos também
exercem o controle de entrada e saída das unidades de conservação limitando a circulação das
populações quilombolas. Não é raro ouvir relatos de preconceitos para com negros, que ao
passarem pelo controle são obrigados a serem submetidos à minuciosa revista, como se
fossem criminosos. A prática do roçado ficou a mercê da aprovação do órgão, que liberam
áreas insuficientes para alimentar a família inteira. A caça e a pesca se tornaram permitidas
somente para fim alimentícios e não de comercialização, porém, como é difícil quantificar o
limite da pesca qualquer quantidade é aprendida. Os negros continuam se escondendo como
bandidos para exercer suas atividades de sobrevivência, mas não temem tanto a repressão
como nos tempos de IBDF.
As unidades de conservação ambiental mudaram a geografia regional/local
desterritorializando comunidades negras centenárias e dificultando o acesso destas ao título da
terra e aos financiamentos públicos, por estarem em áreas proibidas ou restritas. Os
remanescentes de quilombos foram impossibilitados de praticar atividades tradicionais, tendo
que reestruturar sua cultura a nova condição territorial. Contudo, a eficiência ambiental destas
políticas e dos territórios sob controle do IBAMA e da MRN são altamente contestáveis.
Segundo relatos de moradores e ao comparar as descrições dos viajantes da paisagem atual
percebe-se que o aumento da degradação das florestas e o desaparecimento de espécies antes
abundantes, em sua maioria promovidas por grandes fazendeiros, pela mineradora, por
contrabandistas e pela conivência do IBAMA com esses atores. Seria então injustiça culpar
49
aos quilombolas pelos desastres ambientais que vêm ocorrendo na região, porque foram eles
que de forma sustentável aliaram sua cultura ao processo de regeneração da natureza,
preservando há décadas o ecossistema no Trombetas.
Mapa 3
50
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os vários tipos de extrativismo dos recursos naturais não asseguraram o
desenvolvimento regional sustentável na Amazônia, observado inclusive nas precárias
condições de vida das populações urbanas e rurais. A ganância por lucros, pelo ‘progresso’,
pelo crescimento econômico e pela exploração dos recursos naturais abundantes no espaço
amazônico fizeram com que os capitalistas ignorassem qualquer modo de vida e território
tradicional que embarrerasse seus planos. Esses ‘civilizadores’ da modernidade invadiram
todos os tipos de territórios ‘arcaicos’: indígenas, negros e caboclos legitimando-se nos mais
diversos discursos, desde os interesses da Coroa portuguesa até os do capital transnacional. O
modelo capitalista explorador legou às populações amazônicas o ônus do progresso, o
subdesenvolvimento, a submissão, a pobreza e a exploração do trabalho
Os quilombolas localizados na bacia do rio Trombetas, no município de Oriximiná,
estado do Pará são exemplos remanescentes da existência passada da organização sócioterritorial dos escravos fugidos e dos reflexos dos impactos das transformações espaçotemporais sofridos por esse grupo social, que provocaram uma contínua saga de lutas. As
lutas territoriais desenvolveram no espaço do Trombetas um grande campo de força composto
por redes de relações sociais e de poder. A formação das redes condicionou nos diferentes
períodos quem exercia o poder sobre o espaço, a população e os recursos. As redes de
relações se compunham de aliados, oponentes e intermediários, cujas influências alcançavam
diversas escalas geográficas. Eram as disposições de cada ator na rede o que determinava a
assimetria de poder, e assim, as conquistas de um lado ou de outro nos conflitos.
As lutas sociais dos negros no Trombetas iniciaram-se no século XVIII, quando os
negros escravizados fugiram das fazendas de cacau e gado do Baixo Amazonas e formaram
quilombos no alto das cachoeiras. Os embates entre as milícias de captura (Capitães-do-mato)
e os negros aquilombados foram as primeiras disputas pelo território. Eles enfrentaram
militares armados, aprenderam como promover evasões eficazes, promoveram redes de
comunicação e informação que lhes permitiam preceder os ataques e tiveram em alguns casos
seus territórios destruídos.
Neste contexto conturbado de opressão, este grupo social tão heterogêneo - composto
por negros de origens distintas no território africano, por indígenas e por brancos excluídos do
sistema escravocrata - criando uma identidade, uma sociedade e um território próprio. Foi por
causa da característica diversificada da sociedade do quilombo que se possibilitou resistir às
51
constantes invasões territoriais por meio da aliança de conhecimentos dos indígenas, dos
negros e dos brancos excluídos. Deste modo, conseguiram se consolidar no espaço e no
tempo, sobrevivendo à exclusão social e as ideologias da sociedade escravocrata,
desenvolvendo uma relação íntima e recíproca entre sociedade e território que se enraizava
cada vez mais por meio da cultura.
Pouco a pouco foram integrando-se na sociedade amazônica através da
comercialização do extrativismo. Os mocambeiros ou quilombolas se estruturam sobre um
modo de organização social específico, onde se vivia de forma coletiva e socializada,
dividindo entre as famílias os trabalhos sobre terras comuns (ALMEIDA, 1989).
A luta prosseguiu com as invasões de seus territórios pelos brancos interessados em se
introduzir na economia da castanha. Neste período, os remanescentes de quilombos perderam
totalmente sua autonomia. O controle e gestão se limitaram aos ‘donos’ dos castanhais que
implementaram uma relação social e de poder assimétrica pautada na subordinação, na
submissão, mandonismo e no paternalismo. Muitos negros se rebelaram contra este modo de
relação, promovendo estratégias que lhes permitiam alguma independência como a venda
clandestina aos regatões (que não fossem representantes do patrão), a exploração de
castanhais livres mais distantes ou nos castanhais privados de forma escondida dos vigias. Os
negros resistiam novamente comprovando a força de suas territorialidades e de apertados
laços com seu território.
Enfim, com a implantação do grande projeto, MRN, no vale do Trombetas mais uma
invasão dos brancos se anunciou. No entanto, esta nova territorialização que chegou
apresentou formas mais destruidoras de dominação e controle do território. As estratégias
geográficas e políticas utilizadas pela MRN para controle dos recursos e da população por
meio do território, inserem-se na concepção de Raffestin (1993) da Geografia do poder; onde,
alcança-se o poder quando uma organização detém o controle sobre os trunfos: território,
população e recursos. São os interesses, os discursos, as ideologias de cada ator que a partir
do momento que criam, controlam e gerem territórios, os tornam um “espaço político por
excelência” (RAFFESTIN, 1993: p.60). A territorialidade, numa perspectiva relacional do
poder proposta por Raffestin e Sacks, é “uma estratégia espacial para atingir, influenciar ou
controlar recursos e pessoas, pelo controle de uma área” (SACKS,1986: p. 1). É através das
territorialidades, ativadas e desativadas de acordo com a geoestratégia, que os quilombolas, o
IBAMA e a mineração tentam dominar o território no contexto do campo de poder.
Pode-se perceber que no embate entre mineração e quilombolas pelo território se
consistiu um campo de força extremamente favorável à empresa. Os interesses capitalistas e o
52
poder de barganha dos investidores esmagaram os direitos territoriais dos negros. Não houve
um só platô que não tenha sido explorado ou unidade de conservação que não fosse
demarcada por estar em terras de remanescentes de quilombo ou de qualquer grupo
tradicional. Todos os impactos sociais sofridos pelos negros, desde a expulsão das famílias
das comunidades de Mãe Cué, Boa Vista e Arrozal, a exploração do conhecimento local, a
exclusão ao progresso e às necessidades básicas, a devastação dos recursos da floresta, a
descaracterização cultural da comunidade de Boa Vista e Cachoeira Porteira e por fim, as
poluições dos lagos e igarapés, comprovaram que o poder territorial está sob o controle da
mineradora. Respaldada pelo poder de seus investidores na escala nacional e global, pela
geração de divisas para o estado e o município, pela ideologia desenvolvimentista capitalista
do Estado brasileiro e por suas propagandas de boa cidadã e ecologicamente correta.
O conflito se constituiu num confronto de discursos e interesses, de alianças e de
poderes não restritos à escala local. Os atores conflitantes, MRN, IBAMA e quilombolas
defendem seus discursos ideológicos e os expõem para sociedade discutir e avaliar.
A MRN apresenta um discurso ideológico pautado no desenvolvimento econômico
sustentável, segundo o qual a preservação do meio ambiente é prioridade (WILBANKS,
1994). Desta forma, a empresa legitima seu território e sua atividade ambientalmente
degradante, que é a exploração mineral, ganhando das agências internacionais títulos de
empresa “cidadã” e preocupada com as problemáticas sócio-ambientais - os ISO
(International Organization for Standartization) 9001 e 14000.
O IBAMA baseado na ideologia do conservadorismo-biológico defende a preservação
total dos biomas por meio das restrições de uso e acesso. As proteções dos animais em
extinção, como a Tartaruga-da-amazônia, e de árvores protegidas por lei têm que ser
promovidas independente dos custos sociais.
Os negros, assessorados por intelectuais da ONG´s Pró-Indio e das universidades
(principalmente da Universidade Federal do Pará) através do discurso étnico, tentam legitimar
seus territórios. Auto-denominam-se remanescentes de quilombos para vincular sua existência
e terras aos antigos negros fugidos das fazendas de cacau. Este discurso surgiu a partir de
estudos promovidos pelos intelectuais das universidades nacionais e de organizações não
governamentais para justificar a territorialidade negra tendo em vista a pressão promovida
pelo projeto minerador. São estas instituições que junto com o direito jurídico sobre o
território adquirido pelos remanescentes na Constituição 1988, sustentam a luta dos
quilombolas pelo direito ao título e ao uso da terra.
53
O contexto de sobreposição dos territórios quilombolas e de extração da mineração
ultrapassam a discussão em escala local e atinge um nível nacional e internacional. As
demarcações de terras de remanescentes de quilombos foram asseguradas pela Constituição
de 1988, entretanto, a exploração dos recursos minerais é considerada fundamental para o
interesse da nação não podendo ser proibida de ser lavrada por encontrar-se em propriedades
particulares. Há também os interesses do capital transnacional e nacional, do Estado, das
ONG´s brasileiras e estrangeiras e dos intelectuais, na exploração do minério e seus impactos,
que tornam ainda mais complexo esse espaço em conflito.
Os interesses de atores multiescalares fazem com que o território-rede constitua um
elemento de análise fundamental. É por meio das redes que os atores se relacionam
construindo alianças e confrontos, formando um campo de força. As atuações de cada ator na
rede os fortalece nas relações de poder, na capacidade de transformação espacial e sendo
assim no controle dos territórios descontínuos ou em rede (SOUZA, 1995; HAESBAERT,
2004).
[...] Nosso Capitalismo de tipo patrimonialista, em que as instituições, mais
do que defenderem a propriedade privada, legitimam (por ação ou omissão)
a privatização do público. O Estado patrimonialista brasileiro se furta a
desempenhar o papel de regulador do informal e repressor enérgico do
ilegal, exercendo seu papel, na maioria da vezes, de forma distorcida
(COELHO et al, 2005, p. 5).
Na ultima década do século XX e no início do XXI, os conflitos e as lutas
continuaram, mas houve alguns avanços e conquistas por parte dos quilombolas. O
movimento social dos negros conquistou o direito de permanecerem dentro da FLONA e até
mesmo da REBIO. As regras que impediam a exploração dos recursos naturais foram em
alguns casos flexibilizadas. Os negros também conseguiram titular alguns territórios, porém
esses não se encontram no interior de nenhuma Unidade de Conservação, a onde ainda
permanecem os impasses. A empresa já reconhece o direito dos remanescentes de quilombos
e não quilombolas sobre as terras e lagos vizinhos ao seu território. Contemporaneamente, se
pode falar numa aliança entre quilombolas, empresa e IBAMA, no sentido de todos limitarem
o acesso e o uso dos recursos naturais e da terra, especialmente, nas áreas protegidas. Aos
remanescentes, preocupam a pressão populacional sobre a terra e aos demais recursos
naturais, ameaças que inviabilizariam a sua própria existência e o domínio de seus territórios.
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8. ANEXO 1:
Fonte: ANJOS, 2005: p.30.
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