LOTERIA Autor: Santo Só Enquanto Domingos se
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LOTERIA Autor: Santo Só Enquanto Domingos se
LOTERIA Autor: Santo Só Enquanto Domingos se deslocava em ônibus lotado, tal como ocorria diariamente, ele lembrava a infância. Uma história comum de menino nascido em uma pequena roça do interior. Brincando com os irmãos e recebendo o carinho da mãe, a pobreza e o trabalho exaustivo na lavoura não impediam que vivesse feliz. Com o tempo, as crescentes dificuldades na família, as suas ambições juvenis e a convicção de que, permanecendo em casa, seria impossível progredir fizeram com que ele se aventurasse pelo mundo afora. Andou por diversas cidades até chegar onde obteve o atual emprego e aí se acomodou. A vida seguia tranquila. Quando sobrava tempo, ele encontrava alguns amigos no bar mais próximo. Domingos, assim como Vandinho e outros, gostava de jogar conversa fora com mexericos e, sobretudo, discutindo futebol. Outros preferiam se delongar em críticas sociais e políticas: -O transporte coletivo está uma droga. Perde-se boa parte do tempo para ir de casa até o trabalho, pagando caro por más acomodações. O atendimento à saúde parece cada vez pior. Não há segurança em casa e, menos ainda, para os nossos filhos brincarem na calçada. O nível das escolas públicas é péssimo. Os políticos se deixam corromper por quem têm recursos e fazem leis para atender os seus pedidos ou para efeito teatral. –Reclamavam os descontentes. -Quem trabalha não tem vez. Os recursos da “mais valia” ficam sempre com os mesmos beneficiários. As regras são feitas para favorecer as altas finanças. Está provado que as prescrições impostas no Oriente Médio não deram bons resultados. É preciso mudar o capitalismo ou, ao menos, defender o interesse nacional contra injunções adversas. –Dizia um estudante radical. -As pessoas em geral não se comprometem em fazer o que é certo. Um filho da minha vizinha foi designado para uma escola distante, o que o impediria de estudar. Ela insistiu na direção por um local próximo, mas, nada conseguiu. Sua amiga trabalha para um deputado e falou com ele. Obteve a vaga em seguida. Então, a transferência não era impossível. -Argumentava outro. Domingos não se interessava por política. Acreditava, sobretudo, na sorte. O trabalho na fábrica de bicicletas não era pesado e ele gostava do ofício. Avaliando todas as dificuldade pelas quais já havia passado, considerava o pagamento e os benefícios proporcionados pelo emprego um triunfo. Sem contar que chegara, até, ao cargo de superintendente. Encontrar Georgina determinara uma alteração na sua rotina. Desde que fora morar com ela, estava mais sossegado. Sobrava tempo para permanecer em casa, acompanhar o futebol e outros programas na televisão. Aos domingos, insistia para que fossem à igreja. Às vezes, nos fins de semana, visitavam parentes de Georgina em outra cidade. O relacionamento deles era regular, apesar de haver alguns desentendimentos. Possivelmente, Georgina não o amasse suficientemente. Desconfiava que ela tivesse casado, apenas, por não haver conseguido fisgar alguém a quem quisesse verdadeiramente. -Já está na hora de termos um filho. –Reclamava Domingos. -Eu teria que deixar o emprego e, com o que você ganha, seria impossível. Domingos não se conformava com essa decisão. Seus rendimentos permitiam alguma folga. O problema, talvez, fosse não terem parentes morando próximo. Quando ele era criança, a sua mãe não trabalhava fora, mesmo assim, a avó sempre ajudava no cuidado aos filhos. Atualmente, morando na cidade, criar filhos era mais difícil. No entanto, eles poderiam ter, ao menos, um ou dois. * A possibilidade de grande ganho em loteria é um apelo suficiente para que milhares de pessoas tentem a sorte, embora só exista mínima probabilidade de ganhar. Todavia, esta história é sobre alguém que conseguiu. Frequentemente, Domingos arriscava um palpite. Não punha muita fé, mas, eis que um dia acertou. Discretamente, temendo ser assaltado por bandidos ou amigos, colocou o dinheiro em um banco forte e se mudou com a mulher para uma cidade maior. Em seguida, saíram em viagens de recreio e planejaram o novo modo de viver. Adquiriram um apartamento em condomínio luxuoso, carro importado, joias e outras mordomias permitidas pela riqueza. Aos poucos, foram se adaptando a novos hábitos e, naturalmente, estabelecendo novas relações. As opiniões que, agora, Domingos ouvia eram bastante diferentes e, até, opostas às manifestações que costumava escutar dos antigos companheiros. Inicialmente, lhe pareciam estranhas: -A infraestrutura do transporte de cargas é péssima. Para exportar, pagamos três vezes o que paga um concorrente do exterior, sem contar o que se perde pelo caminho. Quando não falta energia, ela é cara demais. O alto índice dos juros torna impossível novos investimentos. Fazem-se leis demagógicas para granjear adeptos e sustentar a roubalheira, dissipando recursos superiores aos que a produção permite. –Diziam alguns. -Alguns esquerdistas são ingênuos, entretanto, a maioria quer bagunçar tudo para, no rescaldo, emergirem poderosos. Havendo liberdade, evidentemente, o capital migra para onde a demanda produz maior rendimento. Os utópicos não querem admitir que, ao custo de algumas bancarrotas, só um regime de livre concorrência assegura produtos com qualidade e preço, gerando progresso vantajoso para todos. –A maior parte argumentava. -Eu tentei expandir meu negócio. Poderia criar bons empregos e mais riqueza para o país. A burocracia e os pedidos de propinas para destravar o processo me fizeram desistir. Isso é quase normal, já aconteceu com muita gente minha conhecida. –Testemunhou alguém. Domingos não tinha opinião definida, todavia, sua recente atividade social não o seduzia. Embora fosse tratado com igualdade, sentia-se inferiorizado pela origem e pelo modo como alcançara a prosperidade, o que o fazia nutrir íntima hostilidade com relação aos convivas. Preferia se dedicar a pescarias, a andar de bicicleta e a outras atividade que o mantinham em grande parte do tempo distante desta comunidade. Georgina, entretanto, lançava-se com entusiasmo às atividades sociais, sem a preocupação de ser rotulada como nova rica. As diferenças de gostos entre o casal se acentuaram e a mulher acabou por abandonar o companheiro indo morar com um advogado das suas relações. Em seguida, entrou com uma ação para dividir as propriedades. Pouco afligiu Domingos o afastamento de Georgina. Logo percebeu que, estando rico e solteiro, era assediado por todo tipo de proposta. O seu desgosto foi ver o patrimônio reduzido à metade, embora, ainda sobrasse bastante. * Sozinho, Domingos assumiu uma vida de fausto, com viagens, aventuras, mulheres e extravagâncias em geral. Tal como se havia acostumado, pouco atentava em cuidar do que aconteceria com a sua economia no futuro. Naturalmente, não demorou chegar o momento em que as reservas se haviam reduzido ao ponto de os juros recebidos serem insuficientes para cobrir as despesas. Foi fácil concluir ser necessário aumentar os ganhos. Entre as pessoas que ele conhecia, poucas se sustentavam exclusivamente com juros convencionais. Em geral, tinham outras fontes de renda e, ademais, jogavam financeiramente de modo mais produtivo. Ele havia adquirido uma fazenda, mas, ela não produzira qualquer benefício econômico. Os seus negócios de compra e venda, também, não foram lucrativos. Tentou novas aplicações conseguindo que lhe oferecessem algum aumento de rendimentos, porém, pouco significativo. Obrigou-se a reduzir o seu padrão de vida, sem que isso fosse suficiente para equilibrar o orçamento. Nessa condição de desespero, um conhecido lhe sugeriu investir em um fundo de alto rendimento. Foi convencido pela garantia de que era representado por um banco perfeitamente seguro, fiscalizado pelo Banco Central. De início, uma primeira aplicação se mostrou altamente lucrativa. Isso incentivou Domingos a ali concentrar quase todo restante das suas reservas. Tudo correu bem até o momento em que o banco quebrou e os recursos do fundo se evaporaram. Quem foi rei sempre conserva a aspiração de majestade. Ele foi coagido a mudar de residência e de hábitos, porém, era difícil voltar ao modo de vida simples de antigamente. * Certo dia, Domingos andava pela rua desanimado, pensando sobre o que poderia fazer, quando encontrou Vandinho, um amigo do tempo em que morava em sua antiga cidade. -Há quanto tempo eu não o via. Não soube mais de você desde que desapareceu subitamente da nossa cidade. –Disse o amigo. Após cumprimentá-lo, Domingos narrou resumidamente a sua história, contando sobre o recebimento do prêmio e a trajetória percorrida desde então. -Fico penalizado por você estar novamente na penúria. Contudo, conheço as suas qualidades e sei que irá dar a volta. Espero que, ao menos, tenha aproveitado bem enquanto durou o dinheiro. -Você tem tempo? Vamos tomar alguma coisa no bar em frente. Gostaria de receber notícias sobre a nossa cidade. –Propôs Domingos. Depois de acomodados, Vandinho contou: -Lá, tudo continua igual, cada qual no mesmo lugar. Vim para cá porque estou disposto a tentar algo diferente. Conte-me você sobre como foi sua experiência. Eu fico curioso em saber como se comportam os ricaços da cidade. -Correndo atrás dos seus interesses. Quanto mais poder obtém, mais são comandados pela vaidade. -Como eles o admitiram em seu círculo? -No início, intimamente, parecia-me haver hostilidade. Observando melhor, verifiquei isso ser preconceito da minha parte. Em todas as comunidades existem pessoas melhores e piores. Não tive razão para julgar que me desconsiderassem. Com o tempo, ademais das banalidades, pude perceber algumas coisas. A capacidade para cooperação entre pessoas com visões e competências diferentes é o faz a diferença. Infelizmente, o açodamento que tive em usufruir não me deu ocasião para utilizar essa percepção. -Uma vez, quando precisei, você me ajudou. Devo dizer que o tenho em alta consideração. Sempre poderá contar comigo. –Disse Vandinho. -Não posso alegar que as experiências proporcionadas pelo dinheiro tenham sido desagradáveis. Entretanto, agora, quando revejo a minha vida, o que me causa mais saudade é o tempo vivido antes de ganhar a loteria. Especialmente, o convívio com os amigos de verdade. -O que está fazendo atualmente? -O meu desejo é trabalhar. Sobraram-me alguns recursos e penso abrir uma pequena venda. Você tem ideia sobre onde isso seja possível? O amigo encarou Domingos com demora e sugeriu: -Eu, o Artur que você deve lembrar, mais a minha filha que se formou em contabilidade, decidimos tentar nos estabelecer por conta própria. Herdei um espaço nesta cidade e pensamos abrir uma pequena oficina para concerto de automóveis. Não somos especialistas, mas, o nosso conhecimento sobre o assunto deve dar para o gasto. Acredito que seria bom termos mais um sócio com boa disposição para trabalhar. Você não quer participar? -Já tive vários automóveis, mas, essas máquinas não me entusiasmaram. O meu interesse sempre foi por bicicletas. Trabalhei na fábrica, aprendi sua mecânica e nunca deixei de as utilizar. Hoje, está impossível trafegar de automóvel no centro das grandes cidade. Em sociedades adiantadas usa-se, cada vez mais, as bicicletas. Países com a nossa condição teriam vantagem em ampliar o seu uso. Eu tenho visto poucas casas especializadas em assistência e revenda. Se encontrasse alguém disposto a trabalhar comigo no setor de bicicletas, era o que eu gostaria de fazer. Vandinho ficou pensativo por algum tempo e falou: -Parece-me uma boa ideia. Se quiser, eu falo com o Artur e, depois, voltamos a conversar. Assim aconteceram as coisas. Passados alguns anos, alguém perguntou para Domingos: -Ganhar na loteria foi o que deu impulso para iniciar esta grande empresa? -A utilização daqueles recursos me possibilitou viajar e ampliar a visão com relação aos negócios, confirmando coisas que, provavelmente, eu já sabia. A derrocada que posteriormente sofri me fez atuar. A mim, assim como aos meus companheiros, a necessidade constrangeu a tentar e obter sucesso. FIM