Comentários do Filme “Em Busca da Terra do Nunca”

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Comentários do Filme “Em Busca da Terra do Nunca”
Comentários do Filme “Em Busca da Terra do Nunca” – 31/08/2012.
Regina Claudia Mingorance de Lima
O filme “Em busca da Terra do Nunca” foi inspirado em fatos reais sobre a história de
James M Barrie. Escritor e dramaturgo, ele conheceu a família de Silvia e, a partir de suas
tardes contando histórias para os filhos dela, escreveu sua peça de teatro, em 1904, intitulada
“O menino que nunca quis crescer”, que originou o personagem Peter Pan.
O diretor nos apresenta para uma riqueza de perspectivas sobre a condição humana e o
que vou abordar são alguns aspectos do filme que me estimularam a sonhar. Tentarei não me
ater a autores nem teorias da Psicanálise, mas meus pensamentos são inspirados em autores
como Klein, Bion, Ogden, Winnicott, Grotstein.
Inicialmente somos convidados a observar James vivendo um momento de crise como
escritor. Sua mais nova criação não tocou as pessoas que ali estavam presentes, muito menos
a ele próprio. No dia seguinte, em mais um passeio pelo parque, ele vislumbra algo diferente.
A cena em que James abre o jornal e no local em que estava a crítica de sua peça encontra-se
apenas um espaço vazio, me remete a idéia de que ali, onde algo existia e agora está ausente,
abre-se a possibilidade do novo. Por este buraco, parecendo uma janela, James vislumbra
algo diferente, Sylvia e seus filhos. A partir de então, a vida dessas pessoas passará por
inúmeras experiências, tocando cada um de uma forma peculiar e apresentando todos para
alguns aspectos das suas intimidades.
Quando vi o filme pela primeira vez fiz um ato falho que me chamou a atenção. Por
um instante Neverland, ou Terra do Nunca, passou em minha mente como Never end, ou
Sem Fim. O filme nos apresenta para rupturas, perdas e os desdobramentos disso na vida da
pessoa. Poder ou não comportar o fim, as mudanças. Em Neverland não há passado, presente
nem futuro, todo ocorre ao mesmo tempo. Terra do menino que não cresce e dos meninos
perdidos, todos com algo em comum, a ausência dos pais, em especial a mãe. O tempo é uma
ameaça, o que é representado pelo crocodilo que engoliu o relógio e que fica a perseguir o
Capitão Gancho. A partir desse sonho que fui sonhando, no contato com o filme e com a
história de Peter Pan, pensei abordar sobre o sonhar e crescer dentro de um contínuo: desde a
impossibilidade de sonhar as experiências, levando a um aparente crescimento precoce ou
estagnação até o poder sonhar abrindo caminho para o crescer e desenvolver.
Estou chamando de sonhar, não apenas os sonhos noturnos, mas principalmente os
sonhos em estado de vigília, ou seja, acordado. Apresento o termo sonhar como um processo
ligado ao pensar, onde os estímulos que vem do mundo interno e externo são transformados
(pela função alfa) de forma a tornarem-se compreensíveis para a pessoa e possibilitando que
algo vivido de maneira geral e impessoal torne-se algo com sentido pessoal.
Quando James se encontra com Peter e o convida para ver o grande urso Phortos, na
figura de um cachorro, Peter rapidamente diz: “É um absurdo. É só um cachorro”. E James
responde “Só um cachorro? Só? Que termo terrível e castrador. Como: Ele não pode ser
alpinista. É só um homem”. Peter então lança um desafio a James, transformar o cachorro em
urso, o qual James diz “Com seus olhos, meu rapaz, nunca o veria. Com um pouco de
imaginação eu posso ver”. Peter não pode sonhar, sua existência parece calcada na
concretude da realidade factual. Suas experiências não podem ser transformadas em
elementos que permitam ampliar a forma de se perceber e perceber o mundo. Ele não
consegue sonhar, no sentido que estou enfocando. Para ele, a capacidade para imaginação é
vivida quase como uma ameaça, ele parece ter medo de que caso liberte sua mente para
sonhar/imaginar, ele se depararia com dores insuportáveis de sua vida. Falo aqui da
imaginação como a função da mente que opera a serviço de vivermos prazer, vivermos a
realidade e vivermos a verdade. Pela imaginação podemos tentar extrair e reconstruir a
verdade de seu contexto inicial, geralmente confuso ou imperceptível, para uma verdade
subjetiva pessoal. Em termos pessoais cada emoção despertada por situações vividas é como
se fossem pistas, pegadas que nos convidam a segui-las para percorrermos um caminho na
direção do que podemos descobrir de nós mesmos e das relações que vivemos.
A relação entre James e a família de Sylvia vai se desenvolvendo. Na medida que eles
vão podendo viver ali naqueles encontros o acolhimento, receptividade e consideração
recíprocos, também vão se evidenciando os lugares e relações em que isso não ocorria.
James com sua esposa, num casamento baseado na distância, os meninos com a avó, figura
impositiva, cuja principal função era manter a ordem e disciplina. Podemos pensar que a
esposa de James e a avó dos meninos também foram pessoas que não puderam sonhar. A
primeira perdeu-se em meio aos formalismos e papéis sociais, a segunda, diante das
angústias de sobrevivência da filha e netos, só restou-lhe ficar aderida a questões de
sobrevivência, sem possibilidades de metabolizar suas experiências para se tornar elementos
para pensar sua própria condição de ser no mundo.
O evento da pipa introduz o acreditar, o buscar o que é significativo. Assim como a
pipa, que para voar, precisa de rabiola e linha ligando-a ao condutor, nós também precisamos
de uma ligação com o outro e com nós mesmos para podermos alçar vôos, desbravar novos
horizontes. Apesar das desconfianças de Peter, inicia-se uma aproximação com James, que o
presenteia com um caderno para que ali ele possa dar forma as suas vivências. Da condição
de Peter dizer que não sabia escrever, como uma verdade inquestionável “Eu não sei, só
isso”, abre-se a perspectiva de traduzir em palavras suas aventuras diante da vida, desde as
situações mais divertidas, até as de dores profundas. James apresenta essa perspectiva no
título “Os meninos náufragos: o registro das terríveis aventuras dos irmãos Davies, um relato
fiel de Peter Llewelyn Davies”. James tinha uma noção do seu naufrágio e pode percebê-lo
em Peter.
Surge a Terra do Nunca, lugar para onde os meninos vão.
Num momento de intimidade emocional entre James e Sylvia, ele revela seu maior
segredo, sua dor de nunca ter se sentido existindo aos olhos de sua mãe. Aos sete anos
quando seu irmão faleceu, desencadeando uma depressão profunda na mãe, James vestiu-se
com as roupas dele para alegrá-la. Para sua surpresa foi a primeira vez que ela olhou para
ele, um olhar que denunciava o quanto ele não existia na mente de sua mãe. No livro Peter
Pan, a Terra do Nunca é habitada por meninos perdidos que não têm mães e neste lugar não
há possibilidade de crescimento. Inicialmente é a mãe ou figura cuidadora que irá
desempenhar uma série de funções, inclusive a de apresentar as experiências que o bebê está
vivendo para ele mesmo de uma forma mais assimilável. Essa é a condição do sonhar, como
se a mãe/cuidador, fosse sonhando as experiências do bebê, de forma que ele possa ir se
aproximando de si mesmo e integrando essas experiências. Frente às experiências
emocionais seria fundamental um trabalho psicológico de sonhar, dando significados e
promovendo o crescimento psíquico. Tanto o crescimento precoce, quanto a impossibilidade
de crescer, como os meninos perdidos, me remete a questões de falhas no sonhar, de não
poder ter vivido/ou vivido muito precariamente, uma relação que permitisse que a
experiência pudesse ser transformada em elementos mentais, em alimentos para o
crescimento psíquico do bebê. Neste processo de alguém sonhando por ele, ele também vai
desenvolvendo uma condição de poder sonhar. Estou chamando de não poder viver essa
relação, tanto situações de impossibilidades da mãe/cuidador para receber, conter e auxiliar o
bebê em suas experiências quanto situações de impossibilidades do bebê em comportar a dor
da falta da mãe. O bebê pode ficar tão tomado de dor e mágoa, que mesmo na presença da
mãe, é como se ela continuasse ausente. Ao longo da nossa vida vivemos o desafio de
desenvolvermos condições para podermos sonhar e ampliarmos nossa capacidade mental.
Inicia-se quando nascemos e somos surpreendidos, a todo momento, por experiências que
nos impõem a necessidade de darmos sentido para o que vivemos/sentimos.
Enquanto James vai sonhando sua nova peça, a partir dos encontros com Sylvia e seus
filhos, Peter também começa a sonhar. Em meio a apresentação de sua peça, a mãe começa a
passar mal. Um misto de desespero e indignação tomam conta. Como se Peter, naquele
momento, revivesse suas dores mais profundas de fragilidades da vida, eminência da perda,
junto com um sentimento de traição. James havia apresentado a ele outras possibilidades de
vida, que diante de uma realidade crua, velha conhecida de Peter, passaria a ser vista como
uma bobagem, ou enganação. A força da ligação ali estabelecida e a confiança permitiram
que o menino Peter surgisse com toda sua dor, até então recolhida. A necessidade de se
aproximar da verdade ganhou voz. “Não mente, os adultos só sabem mentir....Você só quer
inventar histórias bobas e finge que está tudo bem. Eu não sou cego, não vão me enganar”.
Bion diz que a verdade é para o psiquismo o que o alimento é para o organismo, que sem o
alimento da verdade o psiquismo sofre de inanição, padece. Penso que estamos, a todo
momento, experimentando esses impactos frente a vida e dependendo de nossa condição
para comportar a dor, podemos nos aproximar ou nos esquivar da experiência emocional
vivida. No sonhar, a imaginação estaria a serviço dos nossos desejos, da realidade e também
da verdade, possibilitando extrair e reconstruir a verdade pessoal em meio a uma experiência
difusa e impessoal. Poder se aproximar da experiência vivida, seja ela qual for (alegria,
tristeza, angústia, expectativa, etc.), sonhar tal experiência transformando-a em nutrientes
psíquicos para se alimentar e crescer.
Os impactos e a busca pela verdade continuam: na conversa entre o filho mais velho
de Sylvia e James, entre James e Sylvia, James e sua esposa, a mãe de Sylvia e James, etc.
A busca pelo conhecer, o ampliar a consciência, seria mais um passo para o
crescimento mental, que para mim se traduziu, por exemplo, na cena em que James
conversando com o filho mais velho de Sylvia diz admirado: “Olha só. É magnífico. A
infância acabou. Nesses 30 segundos você cresceu”; assim como no momento em que Sylvia
apresenta a James a importância da existência dele para ela e seus filhos. Em meio as
brincadeiras, passeios, James parecia exercer diferentes funções e ocupar diversos lugares na
vida de cada um: o companheiro, o pai, o amigo, o inimigo, etc. Embora Sylvia, em um
momento de ressentimento, diz que ele introduziu o faz de conta na família, eu diria que ele
introduziu a possibilidade de sonhar, de ir além da concretude dos fatos para ampliar as
possibilidades de cada um e dele mesmo, viver as experiências e ser no mundo.
De forma poética o filme nos apresenta para a vida, esperança, curiosidade,
expectativas, nas figuras dos bebês, fadas e crianças. A cena do teatro, repleto de adultos
com alguns lugares reservados para crianças, me fez pensar na condição desses adultos como
nossos aspectos cristalizados, estereotipados, automatizados e racionais; as crianças, como a
condição de um olhar ingênuo, livre de idéias preconcebidas, criativo, podendo ser tocada
emocionalmente pela experiência vivida no momento; e a possibilidade do encontro desses
dois aspectos, poder se expor, sentir e a partir disto pensar e criar de forma mais genuína.
Penso que este encontro do adulto com a criança vai acontecendo em diferentes
dimensões, interpessoais e intrapessoais. Nesta jornada que o diretor nos convida a percorrer,
vamos acompanhando o caminho dos personagens, em especial o encontro e desdobramentos
entre Peter e James. Se de início Peter não pode chorar a morte do pai e imaginações eram
somente bobagens, ao final, ele abraçado por James, pode se aproximar de sua dor pela perda
da mãe e encontrar na Terra do Nunca, este lugar de imaginação e fantasia, não apenas o
refúgio das crianças perdidas, mas a fonte de elementos para o pensar auxiliando no resgate
dessas crianças e seus crescimentos.
Penso que o processo analítico se assemelha a esta jornada vivida por Peter e James,
cada qual podendo se aproximar da criança perdida dentro de si mesmo (e todos nós temos
uma) e passar a existir vivo, criativo e sonhante nesta vida que temos para viver. É função de
uma análise colaborar com estas viagens em direção ao sonhar/imaginar/pensar.
Gostaria de finalizar deixando essa perspectiva de Ogden sobre o processo de análise,
a qual me identifico muito:
“A situação analítica, embora em muitos aspectos desestruturada, também tem uma
qualidade de direcionalidade que é oriunda do fato de que a psicanálise é antes de mais nada
um empreendimento terapêutico com o objetivo de aumentar a capacidade do paciente de
estar vivo para vivenciar ao máximo a plenitude da experiência humana. Voltar à vida
emocionalmente é, ao meu ver, sinônimo de tornar-se cada vez mais capaz de sonhar a
própria experiência, que é sonhar-se existindo.” (Ogden, 2010)

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