baixo - Avatares Antenados

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baixo - Avatares Antenados
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
DOUTORADO EM LETRAS NEOLATINAS
PERSPECTIVA DE UMA MEDIAÇÃO CULTURAL CRÍTICA:
PARA ALÉM DO INTERCULTURAL E DO SABER-FAZER
ANDRÉIA MATIAS AZEVEDO
Rio de Janeiro
2015
PERSPECTIVA DE UMA MEDIAÇÃO CULTURAL CRÍTICA:
PARA ALÉM DO INTERCULTURAL E DO SABER-FAZER
ANDRÉIA MATIAS AZEVEDO
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal
do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título
de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos
Neolatinos — Opção Língua Francesa).
Orientadora: Profa. Doutora Márcia Atálla Pietroluongo.
Rio de Janeiro
2015
AZEVEDO, Andréia Matias Azevedo
Perspectiva de uma mediação cultural crítica: para além do intercultural e do
saber-fazer/Andréia Matias Azevedo _ Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de
Letras, 2015
Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo
Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, 2015.
1. Francês 2. Análise do Discurso. 3 Estudos Linguísticos I. Pietroluongo,
Márcia Atálla II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Letras Neolatinas. III.
Título
PERSPECTIVA DE UMA MEDIAÇÃO CULTURAL CRÍTICA: PARA ALÉM
DO INTERCULTURAL E DO SABER-FAZER
Andréia Matias Azevedo
Orientadora: Professora Doutora Márcia Atálla Pietroluongo
Tese de Doutorado submetida ao programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro _ UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas
(Estudos Neolatinos _ Opção: Língua Francesa.
Examinado por:
Presidente: Profa. Dra Márcia Atálla Pietroluongo _ Orientadora
Universidade Federal do Rio de Janeiro _ UFRJ
Prof. Dr. Luiz Carlos Balga Rodrigues
Universidade Federal do Rio de Janeiro _ UFRJ
Profa. Dra. Maria Paula Frota
Pontífica Universidade Católica do Rio de Janeiro _ PUC
Prof. Dr. Pedro Armando Magalhães
Universidade do Estado do Rio de Janeiro _ UERJ
Prof.Dr.Renato Venâncio Sousa
Universidade do Estado do Rio de Janeiro _ UERJ
Profa. DraTeresa Dias Carneiro _ Suplente
Universidade Federal do Rio de Janeiro _ UFRJ
Profa.Dra. Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold _ Suplente
Universidade Federal do Rio de Janeiro _ UFRJ
DEDICATÓRIA
Dedico esta tese a meu marido e companheiro, André Amaral.
A verdadeira viagem de descobrimento
não consiste em procurar novas
paisagens, e sim em ter novos olhos.
Marcel Proust
AGRADECIMENTOS
À professora Dra. Márcia Atálla Pietroluongo, minha orientadora, que vem me
acompanhando desde o mestrado, agradeço a confiança em minhas propostas de
investigação e a liberdade de estudar assuntos pelos quais tenho interesse. Muito
obrigada.
À professora Dra. Ângela Correa, que já conhecia da graduação e do mestrado,
mas com quem tive o prazer de conviver um pouco mais no doutorado, agradeço as
aulas vivas, capazes de relacionar a teoria com a vida.
Aos professores Dr. Luiz Carlos Balga Rodrigues e Dra. Maria Paula Frota, que
participaram de minha qualificação, agradeço a leitura atenta e as orientações feitas,
permitindo não apenas continuar minha pesquisa, mas enriquecê-la, e vislumbrar novos
caminhos.
Às minhas amigas Rosane Mavignier Guedes, Mônica Sardinha, Gladys
Coutinho, Débora de Castro Barros, Vânia Silva, agradeço a paciência de escutar
minhas aflições e inquietações durante três anos, além de me trazerem sugestões para
alcançar meus objetivos.
Aos meus amigos professores da Aliança Francesa, agradeço o carinho de
responder ao questionário que faria parte do corpus desta pesquisa, mas os rumos
tomados inviabilizaram sua exploração nessa etapa do percurso.
A todos os demais que colaboraram neste trabalho.
Aos meus irmãos, Vagner e Adriana, e à minha mãe, Maria de Fátima, que estão
sempre torcendo por mim, agradeço a compreensão de minhas ausências presenciais e o
conforto contínuo de que tudo dará certo.
Ao meu marido, André Amaral, que me incentivou e compartilhou deste meu
projeto dia a dia, não apenas como espectador, mas também me ajudando de maneira
ativa em todas as minhas atividades diárias, agradeço o companheirismo e a paciência.
À minha avó, Luiza Cordeiro, agradeço a alegria, a firmeza e a sabedoria de
viver. Suas gargalhadas sempre vão ecoar em minha vida…
Ao meu pai agradeço o fato de ter me mostrado a importância de dar doçura à
vida e de não perder a serenidade e o equilíbrio.
RESUMO
A presente pesquisa objetiva refletir sobre a mediação cultural no ensino de francês
língua estrangeira (FLE) no Brasil e propor critérios para uma abordagem cultural
crítica, transcendendo os interesses do mercado de trabalho e das relações diplomáticas.
Importa dizer que este estudo não desconsidera a atuação do professor de língua
estrangeira (LE) como mediador intercultural, capaz de agir na promoção da interação
entre línguas e culturas distintas; todavia, contesta a ideia de que esse papel se sobrepõe
ao de mediador cultural crítico, cujo princípio filosófico consiste sobretudo em
despertar nos alunos o interesse pelo questionamento e pela reflexão, a fim de que eles
não apenas se adaptem ao mundo como ele é, mas também tenham condições de
transformá-lo e de reagir contra os discursos alienantes, dogmáticos e niilistas. Para essa
abordagem, a postura relativista só se estabelece quando o indivíduo se põe a pensar, de
maneira consciente, sobre sua existência e a recriá-la, sem reduzir o Outro ao Mesmo
(LEVINAS, 2014). Acredita-se que determinadas orientações pedagógicas, embora se
declarem relativistas em prol da interação, do saber-fazer, podem estar favorecendo uma
formação do sujeito ainda de natureza “civilizadora”, reprodutora e antiética. Para
avaliar tais hipóteses, serão analisados o tratamento dado ao componente cultural no
ensino-aprendizado de FLE e as ideologias subjacentes à formação do professor no
curso da história, com base, notadamente, nos estudos de Denys Cuche (1996), Newton
Duarte (2000) e Glaudêncio Frigotto (2011). Além disso, à luz das reflexões filosóficas
de Cipriano Carlos Luckesi, Max Weber, István Mészáros, Hannah Arendt, entre outros,
esta pesquisa vai analisar os atos redentores, reprodutores e críticos no ensinoaprendizado de FLE, notadamente sob a perspectiva da materialidade histórica.
Palavras-chave: Mediadores culturais. Formação do professor de LE. Abordagem
cultural crítica.
ABSTRACT
This research aims to reflect on the cultural mediation in the French foreign language
education (FLE) in Brazil and propose criteria for a critical cultural approach,
transcending the interests of the labour market and diplomatic relations. It must be said
that this study does not disregard the role of the foreign language teacher (LE) as
intercultural mediator, able to act in promoting interaction between languages and
different cultures. However, that shares the idea that this role overlaps with the critical
cultural mediator (whose philosophical principle is primarily to arouse students’ interest
in questioning and reflection), so that they not only adapt to the world as it is, but also
are able to transform it and to react against the alienating, dogmatic and nihilistic
speeches, dogmatic. Taking into account this aproach, the relativist position is only
established when the individual begins to think consciously about its existence and
recreate it without reducing the Other to the Same (LEVINAS, 2014). It is believed that
certain pedagogical guidelines, while declaring themselves in favor of relativistic
interaction, know-how, may be favoring formation of the subject even of nature
“civilizing” reproductive and unethical. To evaluate these hypotheses, we will analyze
the treatment of the cultural component in the teaching-learning FLE and ideologies
underlying the formation of the teacher in the course of history, based, in particular, the
studies of Denys Cuche (1996), Newton Duarte (2000) and Glaudêncio Frigotto (2011).
In addition, in the light of the philosophical reflections of Cipriano Carlos Luckesi, Max
Weber, István Mészáros, Hannah Arendt, among others, this research will analyze the
redemptive acts, players and critics in the teaching-learning FLE, especially from the
perspective of historical materiality.
Keywords: Cultural mediators. LE teacher training. Cultural critical approach.
RÉSUMÉ
Cette recherche vise à réfléchir sur la médiation culturelle dans l’enseignement du
Français Langue Étrangère (FLE) au Brésil et à proposer des critères pour une approche
culturelle critique, transcendant les intérêts du marché du travail et des relations
diplomatiques. Il convient de signaler que cette étude n’ignore pas le champs d’action
des enseignants de LE en tant que médiateurs interculturels, capables d’agir en
favorisant l’interaction entre les langues et les cultures diferentes. Toutefois, on
s’oppose à l’idée que ce rôle se superpose à celui de médiateur culturel critique, dont le
principe philosophique consiste surtout à éveiller chez les apprenants l’intérêt pour le
questionnement et pour la réflexion, de sorte que, non seulement, ils s’adaptent au
monde tel qu’il est, mais aussi, qu’ils soient capables de le transformer et de réagir
contre les discours aliénants, dogmatiques et nihilistes. D’après cette approche, la
position relativiste ne s’établit que lorsque l’individu se tient à penser sciemment à
propos de son existence et de se reinventer sans réduire l’Autre au Même (Levinas,
2014). Il est présumé que certaines orientations pédagogiques, tout en se déclarant
relativistes, en faveur de l’interaction, du savoir-faire, proposent encore au sujet une
formation de nature “civilisatrice”, reproductrice et non éthique. Pour évaluer ces
hypothèses, on va analyser le traitement de la composante culturelle dans le FLE et les
idéologies sous-jacentes à la formation de l’enseignant au cours de l’histoire de
l’enseignement-apprentissage, sur la base, notamment, des études de Denys Cuche
(1996), Newton Duarte (2000) et Glaudêncio Frigotto (2011). En outre, à la lumière des
réflexions philosophiques de Cipriano Carlos Luckesi, Marx Weber, István Mészáros et
Hannah Arendt, entre autres, cette recherche permettra d’analyser les actes rédempteurs,
reproducteurs et critiques dans l’enseignement-apprentissage de FLE notamment dans la
perspective du matérialisme historique.
Mots-clés: Médiateurs culturelles. Formation de l’enseignant de LE. Approche
culturelle.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: O CENÁRIO DA MEDIAÇÃO
NO ÂMBITO DO ENSINO
1
12
A IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA E
O DESEJO DO OUTRO
22
1.1
A REPRESENTAÇÃO DO COLONIZADOR E DO COLONIZADO
29
1.2
A CULTURA FRANCESA NO BRASIL E A RELAÇÃO
1.3
FRANCO-BRASILEIRA
33
SURGIMENTO DO ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA
38
1.3.1 A criação do Ministério da Educação e a Reforma
Francisco de Campos
40
1.3.2 A Reforma Capanema
42
1.3.3 As diretrizes do ensino de língua estrangeira de 1961 a 1970
44
1.3.4 Diretrizes de 1996 e as atuais orientações no ensino de
língua estrangeira
47
1.4
O RELATIVISMO CULTURAL NOS PCNS E NO CECR
49
1.5
A EDUCAÇÃO DO FUTURO SOB AS IDEOLOGIAS E
DIRETRIZES MORINIANAS
2
56
INVESTIGAÇÃO DAS AÇÕES E DOS PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO
MODERNA E PÓS-MODERNA À PROCURA DO DEVIR
63
2.1
AS IDEOLOGIAS IMPLÍCITAS EM TORNO DO
MULTI/PLURI/INTER/TRANSDISCIPLINAR
2.2
71
EDUCAÇÃO COMO REDENÇÃO, REPRODUÇÃO E
TRANSFORMAÇÃO: OS TIPOS DE AÇÕES MEDIADAS
80
2.2.1 A educação redentora de Emile Durkheim
85
2.2.2 O poder ideológico e segregativo da instituição escolar
87
2.2.3 Propostas e brechas de uma educação para o devir
96
3
PROCEDIMENTOS PARA UMA MEDIAÇÃO CULTURAL CRÍTICA
EM FLE: ENTRE A PROMESSA DA HARMONIA E
DO ESPANTO
3.1
112
A RELAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA NA ABORDAGEM
INTERCULTURALISTA NO CONTEXTO DE
ENSINO-APRENDIZADO
3.1.1 O método Écho e o tratamento do componente cultural
117
122
3.2.2 Atividades interculturalistas de Christiane Tagliante analisadas
3.3
sob diversos prismas
138
MEDIAÇÃO CRÍTICA DO COMPONENTE CULTURAL
155
3.3.1 Tratamento do componente cultural na perspectiva de uma
4
mediação cultural crítica
160
CONSIDERAÇÕES FINAIS
173
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
183
ANEXOS
198
12
INTRODUÇÃO: O CENÁRIO DA MEDIAÇÃO NO ÂMBITO DO ENSINO
Mediação como lugar e ocasião de transição de um mundo a outro, em
que se organizam intervalos, silêncios propedêuticos, modelos
provisórios; lugar de passagem, no qual estabelecemos outro olhar
para os objetos e as pessoas; lugar e instrumento de separação, de
afastamento, em que nos esforçamos para nos libertarmos das críticas
enganosas e no qual vão emergir novos conhecimentos. (LÉVY, 2003,
p. 14)1
Ao ser enunciado o termo “mediação”, a imagem que se tem é, em geral, a de
um espaço de passagem, de interseção entre dois contextos distintos que o sujeito
precisa percorrer para adquirir novos saberes. Nesse cenário, é comum imaginar
igualmente a presença de um mediador, de um terceiro indivíduo, agindo como
intermediário no acesso ao desconhecido. Todavia, sabe-se que o ato de mediar não é
neutro e que os indivíduos tendem a enxergar o Outro por sua ótica pessoal, cultural, de
acordo com seu papel social.
Com relação à atuação dos mediadores no organismo social, convém dizer que
há os que procuram manter a ordem da sociedade vigente por meio de ideologias
reprodutoras e conservadoras, e outros que reagem contra as ações dominadoras. Isso
significa que as interações nem sempre se estabelecem de modo harmonioso. Ainda que
determinada cultura predomine sobre outra, há sempre forças de poder que procuram
desequilibrar determinada hegemonia.
Contra as visões dogmáticas, o presente estudo verificou a necessidade de
refletir sobre as ações mediadoras praticadas pelos professores de francês língua
estrangeira (FLE) ao transmitirem informações culturais. Compreendem-se como
mediadores culturais os sujeitos capazes de relativizar as diferenças sociais e culturais e
1
Os excertos das obras citadas em francês na bibliografia, sem tradução publicada no Brasil, foram
traduzidos por mim.
13
de refletir de forma contínua sobre suas concepções de mundo, do Outro e de si
mesmos. Entretanto, essa mentalidade reivindica uma formação do ensino de línguas
que contemple saberes linguísticos, pragmáticos, discursivos, didáticos e pedagógicos,
mas também conhecimento proveniente das ciências sociais, da psicologia, da
antropologia, entre outros campos.
No que diz respeito ao ensino-aprendizado de língua estrangeira no Brasil, não
se pode deixar de analisar também que a constituição da identidade brasileira foi
marcada pela ação colonizadora de Portugal, que objetivava enriquecer com a
descoberta de tais terras e não tinha interesse em fazer da colônia uma nação próspera.
Além disso, os índios e os negros que para aqui vieram foram submetidos às culturas do
colonizador. Com relação aos colonos que vieram para o Brasil na busca de obter uma
vida melhor, muitos foram explorados pelos proprietários dos cafezais e se
decepcionaram com a falta de apoio do governo brasileiro (CUCHE, 1996).
Sobre o aspecto de aculturação, convém ressaltar igualmente que, embora a
França não tenha colonizado o Brasil, até meados do século XX viver, falar, comer,
vestir-se como os franceses eram comportamentos que as elites portuguesas admiravam
e que acabaram por incorporar na cultura brasileira. As famílias abastadas buscavam
repetir tais costumes, pois simbolizavam poder, elegância e civilidade.
Posteriormente, a partir de 1950, com o crescimento econômico dos Estados
Unidos, muitos brasileiros passaram a cobiçar a cultura americana. Entretanto, a
imagem da nação francesa como o símbolo de “excelência cultural” ainda continua viva
na memória de muitos.
Retomando a relação cultural franco-brasileira, cabe ressaltar ainda que a perda
da hegemonia político-econômica da França no cenário mundial conduziu o Estado a
convocar agentes culturais capazes de manter seu prestígio. É oportuno salientar que o
14
aspecto cultural tem forte peso no funcionamento da sociedade francesa. Na obra
Cultura e Estado: a política cultural na França 1955-2005 (2012), Teixeira Coelho
relata que o orçamento reservado à cultura já foi maior que o do Ministério das
Relações Exteriores. Além disso, menciona que a nação francesa foi a primeira a criar,
em 1959, o Ministério da Cultura.
Sobre o ensino de FLE, Maddalena de Carlo (1998) retrata que a concepção da
França como modelo de civilização pode ser observada de forma nítida em métodos
como o Mauger bleu, no qual o próprio autor declara que o livro visa ao ensino do
francês, mas também ao da civilização francesa. Os manuais de FLE demonstram ainda
um interesse em divulgar sua cultura; porém, com o fim do período colonial, a
concepção de cultura universalista perdeu espaço para as ideias relativistas.
Embora o ensino-aprendizado de um idioma tangencie questões delicadas, não
se pode negligenciar que esse universo permite ao sujeito refletir sobre sua cultura por
meio de outra e, por sua vez, reavaliar suas certezas e convicções, saindo de certo
narcisismo. De acordo com Marisa Grigoletto (2006), as identidades se formam na
alteridade, no jogo entre o Outro e o Eu.
No atual contexto de globalização e informatização, Marisa Grigoletto (2006)
destaca que a identidade se mostra ainda mais fragmentada; porém, enfatiza que essa
fragmentação não representa nenhum caos. Apoiada nas teorias pós-colonialistas de
Homi Bhabha (2013), um teórico que pensa o pós-colonialismo e os sujeitos colonial e
pós-colonial, ela defende a importância de o ser humano saber lidar com e gerenciar as
diferenças culturais, pois concebe o conflito como essencial na construção da identidade
dos sujeitos. Em contrapartida, condena as ações que visem a aniquilar o conflito.
Acrescenta, ainda, que a concepção de assimilação ou substituição identitária do
período colonial já não se mostra mais coerente na atualidade.
15
Na obra Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (1967),
Albert Memmi demonstra que a relação entre colonizado e colonizador se constituiu
pela desigualdade. Este se concebia como superior e tinha orgulho de sua origem, de sua
cultura, enquanto o colonizado se sentia inferior e buscava muitas vezes imitar o
colonizador para que pudesse se tornar “civilizado”. Em outras palavras, havia interesse
em apagar as diferenças.
O autor enfatiza que tal atitude do colonizado apenas reforçou durante séculos a
posição de poder do colonizador e levou o colonizado a uma crise identitária. Porém, ao
se dar conta de que seu projeto de assimilação fracassou, o colonizado passa a
revalorizar sua origem, sua cultura e começa a colocar em questão a colonização e a
lutar contra o colonizador. Isso gera, posteriormente, outro sentimento extremista: o
xenofobismo.
Em era de pós-colonialismo, de globalização e de informação, os atuais
pensadores da modernidade pregam, entretanto, a diversidade cultural e demonstram
condenar as atitudes de intolerância em seus discursos. Gilvan Müller de Oliveira
(2010, p. 12) faz esta declaração sobre as atuais políticas linguísticas: “não se postula
mais, como política de Estado, que a população de um país permaneça ou se torne
monolíngue”.
Sobre o conceito de língua, importa ressaltar, ainda, que ela é vista como
entidade social, e não mais como simples instrumento de comunicação e de promoção
de um sentimento nacionalista, objetivando instaurar a centralização e a unificação do
Estado-nação. Danielle Lévy (2003) destaca que a língua francesa, imposta nas colônias
da África do Norte no lugar do árabe, é utilizada atualmente como um idioma mediador
para magrebinos que vivem em países romanos. Além disso, muitos não a reconhecem
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mais como uma ameaça identitária, mas como um idioma que favorece o aprendizado
de outras línguas latinas.
É óbvio que as ações de poder não desapareceram; entretanto, elas se
estabelecem atualmente de maneira diferente. Na visão de Albert Memmi (1967), as
antigas colônias são hoje nações soberanas, que também promovem a segregação racial.
Com o fim da colonização, as economias mais desenvolvidas passaram muitas vezes a
dissimular seu etnocentrismo. Em suma, proferem discursos democráticos e defendem a
diversidade cultural e identitária como estratégia para que o Outro não se oponha à sua
cultura.
Com o intuito de defender que o aspecto cultural no ensino de FLE seja tratado
de forma crítica e de buscar uma proposta de ensino-aprendizado em que o aluno possa
ressignificar a si mesmo e o mundo, esta pesquisa vai definir, no primeiro capítulo, o
conceito de cultura, de civilização e abordar a constituição da cultura e da identidade
brasileiras, destacando, sobretudo, a relação França-Brasil no contexto social e
educacional ao longo da história. Em face de tal propósito, será necessário discorrer
sobre as propostas didáticas e pedagógicas e as “políticas linguísticas” realizadas ao
longo da história, mas também será fundamental recorrer a outros campos, como a
antropologia, em função da complexidade da temática investigada. Quanto aos
pensadores de base, vão ser abordadas as teorias de Albert Memmi (1967), Homi K.
Bhabha (2013), Denys Cuche (1996), Maria José R. F. Coracini (2003), Contardo
Calligaris (1996), Valnir Chagas (1979), José Carlos P. de Almeida Filho (2008),
Vilson J. Leffa (1988) e Claude Germain (1993).
No segundo capítulo, o interesse será verificar se as ações didáticas,
pedagógicas, sociais e políticas concernentes ao ensino-aprendizado de línguas
estrangeiras no âmbito da pesquisa e no atual contexto social visariam à formação de
17
sujeitos críticos. Inicialmente, vai ser analisado se ainda há a predominância no ensinoaprendizado de línguas estrangeiras das ações de natureza pragmática ou se essa
tendência vem, de fato, se modificando com as novas orientações e reflexões
didatológicas e com a defesa da multi/pluri/inter/transdisciplinaridade para a apreensão
do conhecimento de forma mais complexa e menos fragmentada. Para tratar de tais
questões, vale comentar que foram selecionados os artigos e as obras de José Carlos de
Almeida Filho (2008), Newton Duarte (2000), Luis Paulo Moita Lopes (1996) e
Glaudêncio Frigotto (2011).
Como segundo tópico desse capítulo, a presente pesquisa vai procurar analisar as
ações de caráter redentor, reprodutor, transformador, sobretudo no âmbito das pesquisas
científicas e nas instituições escolares e acadêmicas, objetivando desmascarar os
discursos que se declaram transformadores e críticos, mas que agem também com vistas
à alienação dos sujeitos e, por conseguinte, comprometem o devir humano. Em face
disso, será feito um estudo sobre as teorias de Cipriano Luckesi, Karl Marx, Emile
Durkheim, Max Weber, Louis Althusser, Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron,
Antonio Gramsci e István Mészáros.
No terceiro capítulo, o presente estudo propõe critérios para que o professor de
LE, em específico de FLE, aja como um mediador cultural crítico. Para tanto, serão
analisadas, inicialmente, as teorias e práticas pedagógicas, interculturalistas e tradutórias
que abordam a questão cultural, favorecendo a autonomia, a liberdade do sujeito e
contestando as ações de caráter reprodutor e alienador. No campo da educação, serão
apresentadas as teorias de Lev Semenovich Vygotsky, Reuven Feuerstein, Silvana
Serrani e Maddalena de Carlo. No que diz respeito à tradução, serão esboçadas as
estratégias tradutórias de Lawrence Venuti, Antoine Berman e Friedrich Schleirmacher
relacionadas com o ato de domesticar e de estrangeirizar.
18
Para finalizar, é importante destacar que meu interesse pela mediação cultural no
ensino de FLE surgiu ao longo do mestrado, cujo tema de pesquisa foi A imagem da
língua materna e da tradução no ensino de francês língua estrangeira (AZEVEDO,
2010), visando a analisar o modo como os professores de FLE concebiam o uso da
língua materna e do ato tradutório nesse espaço, dado o fato de as novas orientações
didáticas e pedagógicas e de estudiosos sobre o ensino de FLE passarem a reconhecer e
a incluir a mediação/a tradução entre as atividades linguageiras (CONSEIL DE
L’EUROPE, 2000; LAVAULT, 1998).
Na pesquisa de mestrado, verifiquei que, apesar da defesa do plurilinguismo nas
novas orientações didáticas e pedagógicas, a ação pedagógica dos professores de FLE
no espaço da Aliança Francesa do município do Rio de Janeiro continuava a manter
sobretudo uma postura monolinguística. Quanto aos motivos dessas diretrizes,
identifiquei o desconhecimento da teoria interpretativa no campo do ensino de LE, na
qual o ato de traduzir se faz em função do sentido, e não mais de forma literal
(LAVAULT, 1998; LADMIRAL, 1979).
Constatei também que existem ainda muitas representações e crenças sobre o
ensino-aprendizado de LEs proferidas não apenas pelo senso comum, mas também por
educadores e professores de LE. A título de exemplo, a concepção da língua materna
(LM) é vista como um fator nocivo nas aulas de língua, ainda que muitos teóricos já
tenham declarado que o confronto de sistemas linguísticos e culturais distintos é
benéfico, pois permite que o sujeito reavalie suas ideologias, ative e desenvolva sua
capacidade cognitiva. Sobre o poder das representações no contexto de ensinoaprendizado, vale dizer que tal fenômeno apontou também para a necessidade de
analisar as atuais teorias voltadas para professores de LE (MOITA LOPES, 1996;
CASTELLOTTI, 2001; DABÈNE, 1994; LAVAULT, 1998).
19
No que diz respeito às atuais orientações de ensino — a abordagem
comunicativa (AC), a perspectiva acional (PA) e o Quadro Europeu Comum de
Referência (CECR) —, observei que a defesa da diversidade linguística e cultural se
mostrava, sobretudo, de maneira diplomática. Não há, de fato, uma proposta capaz de
relacionar prática e teoria. Muitos professores demonstram ainda ter dificuldades para
lidar com os aspectos culturais e as teorias interculturalistas em suas aulas (SERRANI,
2005).
Em face disso, indaguei-me como poderia tratar dos clichês e dos estereótipos
nesses espaços sem mediar “pré-conceitos” e como o professor de LE poderia versar
sobre o Outro e sobre si mesmo de modo menos superficial, de forma mais densa e
consistente. Quanto à proposta interculturalista, ela demanda que o professor atue como
mediador intercultural, como um agente da diplomacia das línguas e das culturas alvo e
fonte. Convém dizer que sua filosofia parece coadunar com os interesses políticos,
econômicos e sociais do atual contexto de globalização.
Não se refutam, aqui, as orientações interculturalistas no processo de ensinoaprendizado de FLE; todavia, este estudo propõe que a abordagem cultural esteja
centrada sobretudo em uma mediação de natureza crítica e vá além dos interesses do
mercado e da diplomacia. Nessa perspectiva, visa a restituir ao professor o papel de
intelectual crítico, capaz de despertar nos alunos o interesse pelo pensamento filosófico,
e, por conseguinte, de requestionar o espaço que a ação, o saber-fazer, contempla em
nossa sociedade.
De acordo com Jacques Demorgon (2005), há dois fenômenos interculturalistas:
o voluntário, que acontece de modo espontâneo, factual e que passou a se acentuar com
os movimentos de imigração e de globalização; e o voluntarista, que surgiu como uma
forma de ação, visando a resolver ou a amenizar os conflitos culturais. Para o autor, o
20
segundo caso tem muitas vezes pretensões idealistas, dada a complexidade do universo
cultural.
Para José Yuste Frías (2013), o reconhecimento do multiculturalismo, da
diversidade cultural e as ações em torno do interculturalismo demonstram uma
inquietação política, social e identitária de poder delimitar e demarcar os encontros e as
trocas culturais. O autor acrescenta ainda que tanto o multiculturalismo quanto o
interculturalismo tratam as identidades culturais de modo homogêneo e procuram
territorializá-las, como se o fenômeno de mestiçagem dentro e fora de uma cultura não
existisse.
É oportuno destacar que Yuste Frías e muitos teóricos das ciências sociais
concebem a mestiçagem como um fenômeno que se estabelece na confrontação e no
diálogo das diferenças raciais e identitárias. Portanto, não têm a ideia corrente no senso
comum de mestiço constituído da simples fusão de culturas distintas, como se os
elementos que as compusessem desaparecessem e dessem origem a uma entidade única,
tal como acontecesse com os filhos cujos pais têm biótipos físicos diferentes.
Sobre o intercultural, Yuste Frías compartilha desta concepção de Jacques
Demorgon:
O intercultural é […] apenas uma espécie de negociação ajustada entre
pessoas ou grupos de culturas diferentes, mantida enquanto tal apesar
dos encontros, trocas, cooperações. Se eles estão juntos é somente a
serviço de um objetivo externo, como os bons resultados de uma
empresa.2 (YUSTE FRIAS, 2014, p. 104 apud DEMORGON, 2005, p.
186)
No original: “L’interculturel n’est […] qu’une sorte de négociation ajustée entre des personnes ou des
groupes de culture différente maintenue telle au-delà des rencontres, échanges, coopérations. S’ils sont
ensemble c’est seulement au service d’un objectif extérieur, par exemple les bons résultats d’une
entreprise.”
2
21
Como tradutor, Frias (2014 apud DEMORGON, 2005, p. 103) diz que “não se
traduz para buscar sua identidade, mas para perdê-la ao encontrar outra”.3 Nessa
perspectiva, o autor reivindica a “trans”culturalidade, um movimento para além do
cultural. Em outras palavras, propõe para quem atua como mediador cultural
transcender a territorialização, as fronteiras fixadas sobre a formação identitária, que
visam a enquadrar os sujeitos.
O presente estudo acredita também que muitos professores e autores de métodos
didáticos de LE, com o propósito de promover a interação cultural, podem omitir a
abordagem de determinadas questões culturais em sala de aula na tentativa de evitar
atitudes de rejeição de sua cultura ou da cultura do Outro. Trata-se de uma formação
educativa que demonstra privilegiar a ordem do organismo social, condicionando,
assim, os sujeitos a aceitarem as desigualdades sociais e as injustiças.
No original: “…on ne traduit pas pour rechercher son identité mais pour la perdre tout en retrouvant
une autre…”.
3
22
1
A IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA E O DESEJO DO OUTRO
Os relatos sobre o Brasil não deixam de citar sua exuberante e mítica beleza.
Quanto aos brasileiros, a simpatia e a alegria são, em geral, elencadas como as fortes
qualidades desse povo. No caso da França, são mencionados como referência os
monumentos, as construções históricas etc. No que diz respeito aos franceses, eles são
admirados por seu pensamento cartesiano e sua postura crítica, o que subtende a
existência de uma formação de caráter cultural. Os estereótipos sobre o Brasil, ainda
que pareçam positivos, destacam, em geral, sua natureza, remetendo, assim, à ideia do
paraíso exótico e do “bom selvagem” rousseauniano (MACHADO, 2007; CORACINI,
2003).
Segundo Denys Cuche (1996), os iluministas franceses concebiam a formação
cultural como fundamental na transformação do selvagem em civilizado e culto. O autor
chama a atenção para o fato de que os franceses compreendiam os termos “civilização”
e “cultura” quase como sinônimos. Ambos representavam o abandono de atitudes
instintivas e a adoção de comportamentos educados.4 Estabeleceram que o cultural
estava atrelado ao indivíduo, à sua “boa maneira” de comer, falar, vestir-se e agir, e o
conceito de civilizado referia-se à nação, às suas aquisições materiais.
Todavia, em meados do século XVIII, o projeto nacionalista alemão tentou
atribuir ao termo “cultura” o sentido de particularização, conferindo à civilização a ideia
de universalidade. Cuche conta que Johann Gottfried Herder, em 1774, publicou um
texto intitulado Em nome do gênio nacional de cada povo, no qual se opõe às ações
O termo “cultura” tem origem latina e designava cuidado dispensado ao campo ou ao gado. No final do
século XIII, ganha o sentido de uma parcela da terra cuidada (CUCHE, 1996, p. 19).
4
23
imperialistas francesas e defende a construção da própria cultura alemã. Para Cuche,
Herder foi o precursor do conceito relativista.
No século XIX, o cientificismo e as transformações da sociedade capitalista
favoreceram o advento de duas disciplinas voltadas para o estudo da sociedade: a
sociologia, que se pôs a entender e a investigar a nova estrutura social e seu
funcionamento, e a etnologia, que buscou explicações para a diversidade humana por
meio de uma análise descritiva do aspecto cultural, e não mais de forma normativa,
como vinha sendo tratada.
Cuche enfatiza que a concepção de cultura de Taylor (1832-1917) demonstra
que ela se constitui pela coletividade na sociedade. Dessa forma, rompe com a
concepção de cultura como um fenômeno biológico, inato, adquirida hereditariamente.
Como método de análise, ele fazia a comparação de culturas mais e menos “civilizadas”
com o intuito de traçar a coexistência de costumes ancestrais e de traços culturais
recentes.
Taylor desejava provar que a cultura mais “avançada” já tinha sido uma cultura
“primitiva”; portanto, acreditava que todos os sujeitos eram capazes de vencer o
“barbarismo” e se tornar mais “civilizados”. Uma concepção que revela uma visão
etnocêntrica e universalista de cultura, uma vez que não consegue enxergar outra
possibilidade de cultura que não seja a sua.
Posteriormente, o etnógrafo alemão Franz Boas (1858-1942) verificou que cada
povo tinha uma cultura particular, própria, em razão de sua história, de suas
necessidades. Ele se opunha, portanto, à visão cultural universalista e defendia a
valorização das diferenças culturais. Concebia a etnologia como uma ciência de
observação direta. Segundo ele, o pesquisador deveria vivenciar a cultura a ser estudada
e registrar todos os detalhes observados. Com o intuito de desenvolver sua pesquisa,
24
viveu durante um ano no Ártico, onde não apenas se engajou em compreender os
costumes e hábitos dos esquimós, mas também aprendeu o idioma local.
Com relação a Boas, Cuche declara:
Cada cultura é dotada de um “estilo” particular que se exprime através
da língua, das crenças, dos costumes, também da arte, mas não apenas
desta maneira. Este estilo, este “espírito” próprio a cada cultura influi
sobre o comportamento dos indivíduos. Boas pensava que a tarefa do
etnólogo era também elucidar o vínculo que liga o indivíduo à sua
cultura. (CUCHE, 1996, p. 45)
Para o antropólogo inglês Bronislaw Malinowski (1884-1942), a investigação
das culturas deveria ser feita de forma sincrônica e se ater a estudar de forma sistêmica
as instituições econômicas, políticas, jurídicas, educativas etc. Em sua concepção: “Em
toda cultura, cada costume, cada objeto, cada ideia e cada crença exercem uma certa
função vital, têm uma certa tarefa a realizar, representam uma parte insubstituível da
totalidade orgânica” (MALINOWSKI, 1944 apud CUCHE, 1996, p. 71). Com tais
pressupostos, foi o fundador da teoria funcionalista, segundo a qual as culturas se
constituem em função das necessidades da sociedade. Como método de pesquisa,
propôs que o pesquisador convivesse com a comunidade, aprendesse o idioma local e
confrontasse os dados pesquisados com o relato de quem pertencesse àquela cultura.
O indivíduo sente um certo número de necessidades, e cada cultura
tem precisamente como função satisfazer à sua maneira essas
necessidades fundamentais. Cada uma realiza isso elaborando
instituições (econômicas, políticas, jurídicas, educativas…),
fornecendo respostas coletivas organizadas, que constituem, cada uma
a seu modo, soluções originais que permitem atender a essas
necessidades. (LAPLANTINE, 2012. p. 81)
Malinowski contestou a corrente evolucionista por seu caráter etnocêntrico, bem
como a tendência difusionista por se debruçar em depreender os empréstimos
25
transmitidos de uma cultura a outra. Considerava que os excessos interpretativos de
alguns difusionistas atomizavam a realidade cultural. Quanto às críticas à sua teoria,
alguns pensadores questionavam sua concepção otimista da sociedade ao tentar mostrar
que seu funcionamento não apresentava patologias (CUCHE, 1996; LAPLATINE,
2012).
Convém dizer ainda que Malinowski se centrou em estudar o ser humano,
propondo a articulação do social, do psicológico e do biológico, a fim de compreendê-lo
melhor. Já Durkheim asseverava que os fatos sociais só poderiam ser explicados por
outros fatos sociais. Ele pretendia, com esse enfoque, dar à sociologia maior autonomia
na constituição de seu objeto de estudo.
Porém, Marcel Mauss (1872-1950) contestou as ideias durkheimianas ao afirmar
que a sociologia precisa da antropologia para poder se constituir. Apregoava que a
compreensão do social deveria ser analisada em sua totalidade, e não de forma
fragmentada. No que diz respeito aos estudos da antropologia francesa, é oportuno
salientar que apenas a partir da década de 1930, com Marcel Graule, a França vai propor
uma investigação etnográfica de campo, o que pode revelar certa resistência francesa
em aceitar a diversidade, a diferença.
A favor do relativismo, Claude Lévi-Strauss (1908-2009) estabeleceu que as
diferenças culturais eram fundamentais para a constituição de uma cultura. Dessa forma,
condenou a ideia de raça pura defendida por Adolph Hittler, bem como a definição de
povos civilizados e selvagens apoiada no paradigma europeu. Nas tribos indígenas
brasileiras, observou que a relação dos índios com a natureza era bem menos predatória
do que nas sociedades que se denominavam civilizadas.
Quanto à concepção de cultura como sistema simbólico, ela será desenvolvida,
sobretudo, nos Estados Unidos por Clifford Geertz (1926-2006). Para esse antropólogo,
26
todos os homens nascem aptos a viver, a se socializar em qualquer cultura; todavia,
sinaliza que o contexto tende a restringir tais condições naturais. O mérito de Geertz foi
mostrar que os símbolos e significados culturais não estavam simplesmente na mente
das pessoas, mas eram compartilhados entre os membros de determinada cultura. Com
efeito, propõe o surgimento da antropologia interpretativa e refuta a coleta de dados
feita pelos antropólogos estruturalistas com base no argumento de que tal método não
dava conta da complexidade cultural (LARAIA, 1986).
No que diz respeito a Ruth Benedict (1887-1920), discípula de Boas, ela
defendia a teoria de que a visão do indivíduo sobre a realidade era atravessada pelos
costumes adquiridos no meio social. Isso implica dizer que a leitura da realidade não
está isenta de preconceitos. A autora acrescentava ainda que os costumes adquiridos nos
ambientes familiar e social serviam para moldar a conduta dos sujeitos.
É oportuno esclarecer que a abordagem de Benedict pertence à antropologia
cultural, que investiga os comportamentos particulares e distintivos dos membros de
determinado grupo; portanto, diverge da corrente antropológica social, cujo objeto de
análise se detém nas relações sociais estabelecidas entre os grupos.
Sobre o sentimento etnocêntrico, Roque Laraia (1986, p. 72) escreve que:
O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como
consequência a propensão em considerar o seu modo de vida como o
mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada etnocêntrica,
é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos
conflitos sociais.
Laraia acrescenta que a dicotomia entre “nós e o Outro” favorece o
aparecimento de outros sentimentos, como o nacionalismo e, de modo mais extremo, o
xenofobismo. Muitos ainda enxergam o estrangeiro como o estranho que veio perturbar
a ordem social. Dessa forma, a referência passa a ser o grupo, e não mais a humanidade.
27
No que diz respeito ao etnocentrismo, o autor conta ainda o caso de africanos levados
para outros continentes que se suicidaram em razão da forte apatia e angústia que
sentiram ao se confrontarem com povos, línguas e culturas distintos.
Tendo vivido no período da Segunda Guerra Mundial e sofrido com suas
mazelas econômicas, sociais, morais e éticas, o filósofo Emmanuel Levinas (2014)
refletiu sobre a supervalorização do indivíduo e o apagamento do Outro na
racionalidade filosófica ocidental sob a égide do pensamento universal “penso, logo
existo”, e defendia que essa centralização do sujeito reduzia o Outro ao Mesmo,
propondo uma forma de pseudoalteridade e de pseudototalidade. Na concepção
filosófica de Levinas, conhecer o Outro deve ser um desejo, sem a pretensão de
assimilá-lo ou de domesticá-lo.
Isso significa dizer que essa aspiração precisa transcender o pensamento
ontológico, que transformou o Outro em algo que precisa se apreendido, dominado, para
que o sujeito alcance seus objetivos, sacie seus prazeres mundanos. Enfatiza ainda que
“A verdadeira vida está ausente.” Mas nós estamos no mundo. A
metafísica surge e mantém-se nesse álibi. Está voltada para o “outro
lado”, para o “doutro modo”, para o “outro”. Sob a forma mais geral,
que revestiu na história do pensamento, ela aparece, de fato, como um
movimento que parte de um mundo que nos é familiar — sejam quais
forem as terras ainda desconhecidas —, de uma “nossa casa” que
habitamos, para um fora-de-si estrangeiro, para um além. (LEVINAS,
2014, p. 19)
Levinas adverte que a alteridade, de fato, se constrói quando a integridade do
Outro é preservada. Para tanto, propõe uma razão calcada na ética filosófica, que tem
como principal objetivo entender a essência humana a partir desse Outro, não como
forma de completá-lo, mas de lhe abrir ainda mais o “apetite” pelo que é estrangeiro
(2014, p. 20).
28
Na tentativa de fazer uma breve análise das concepções de cultura ao longo da
história, o presente capítulo depreendeu que a imagem de cultura como parâmetro e
modelo passou a ser contestada com o advento da formação do Estado-nação (CUCHE,
1996). Todavia, ainda se observam nos dias atuais concepções etnocêntricas e
preconceituosas sobre o Outro, que se fazem presentes tanto nas relações sociais quanto
no pensamento filosófico ocidental. Quem age como mediador cultural sabe que as
relações entre povos distintos, apesar de se mostrarem mais “civilizadas”, não deixam
de expressar certo incômodo com o estrangeiro.
Com base nas leituras realizadas, o presente estudo reconhece ainda que a
cultura age sobre o indivíduo e molda sua identidade; porém, enxerga que a intervenção
e a criatividade humana são fundamentais para revitalizá-la. Quanto ao modo de
transmissão de uma cultura, com base na teoria interpretativa de Clifford Geertz, ela se
estabelece na e pelas relações sociais por meio de signos.
A humanização do homem depende, sobretudo, de mediadores que se
disponham a apresentar às novas gerações os conhecimentos já construídos. No que diz
respeito à formação sistematizada, ela deve ser capaz não apenas de proporcionar a seus
discentes a articulação entre os saberes antigos e os novos, mas também de impulsionálos para que sejam capazes de agir sobre sua realidade e a das gerações futuras e de
refletir sobre o mundo, de forma mais crítica, reavaliando as atitudes etnocêntricas que
os impedem de atuar sobre sua identidade e cultura (ARENDT, 1972).
Na modernidade, houve todo um movimento em defesa da relativização e do
reconhecimento das diferenças. Os discursos que ditavam determinadas culturas como
bárbaras e civilizadas passaram a ser condenados; todavia, a territorialização dos
sujeitos, de acordo com suas nacionalidades, profissões e classes sociais, fez com que
eles se centrassem sobretudo nas diferenças. No ensino de línguas, a abordagem do
29
Outro parece seguir o mesmo princípio ideológico. O professor e os livros didáticos
acabam, muitas vezes, por classificar o ser humano de acordo com os estereótipos
produzidos no senso comum.
Com relação à abordagem cultural crítica proposta nesta pesquisa, acredita-se
que o sentimento de alteridade entre os sujeitos só se estabelece quando eles são capazes
de ultrapassar os limites culturais que lhes são impostos, indo até o Outro. Cabe
ressaltar ainda que o encontro com esse estrangeiro não é tranquilo, pois instaura
inicialmente no sujeito questionamentos e reflexões sobre suas referências culturais e
identitárias.
1.1
A REPRESENTAÇÃO DO COLONIZADOR E DO COLONIZADO
Segundo Albert Memmi (1967), a imagem produzida do colonizador é a de
quem visava ao progresso social e econômico; em contrapartida, a do colonizado
representava a debilidade, a perversidade e o ócio; portanto, precisava da proteção do
colonizador para defendê-lo de si mesmo. O sentimento de inferioridade e de
impotência deste contribuiu para que ele se submetesse cada vez mais à cultura do
colonizador, o que de acordo com o autor contribuiu para sua desumanização.
Este trecho vem reforçar a concepção sobre o colonizador e o colonizado:
Os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo que tenham as forças
físicas para cumprir todas as tarefas necessárias, são por natureza
servos. […] Tais são as nações bárbaras e desumanas, estranhas à vida
civil e aos costumes pacíficos. E será sempre justo e conforme o
direito natural que essas pessoas estejam submetidas ao império de
príncipes e de nações mais cultas e humanas, de modo que, graças à
virtude destas e à prudência de suas leis, eles abandonem a barbárie e
30
se conformem a uma vida mais humana e ao culto da virtude. E se eles
recusarem esse império, pode-se impô-lo pelo meio das armas, e essa
guerra será justa, bem como o declara o direito natural que os homens
honrados, inteligentes, virtuosos e humanos dominem aqueles que não
têm essas virtudes. (LAPLANTINE, 2012, p. 39)
Com o fim do colonialismo, a escravidão se tornou crime; todavia, após três
séculos de colonização, observa-se ainda o discurso de “complexo de inferioridade” de
quem foi “colonizado”. A título de exemplo, determinados brasileiros ainda
culpabilizam o ócio e a preguiça como heranças indígenas que comprometem o
desenvolvimento econômico, político e social do Brasil e desconsideram as péssimas
condições de trabalho, a falta de qualidade de vida, a desigualdade social e a corrupção
como os fatores que colocam o país em tal posição (CALLIGARIS, 1996).
Com relação ao complexo de inferioridade do povo do Brasil, o psicanalista
italiano Contardo Calligaris (1996) relata ter se surpreendido com o número expressivo
de brasileiros que lhe proferiram sem pudor o enunciado “Este país não presta”, quando
ele anunciava que pretendia viver no país. Em sua concepção, esse tipo de enunciação
só seria pertinente se seu enunciador fosse um estrangeiro. Acrescenta que um europeu
poderia criticar o governo, a situação econômica de seu país, mas não sua terra. É
pertinente elucidar que a fala de Calligaris não apenas serve para perceber a visão do
brasileiro sobre sua nação e cultura, mas também a do autor sobre o modo como vê o
brasileiro, o Brasil e sua cultura.
Quanto ao complexo de inferioridade do brasileiro, para Calligaris, a explicação
de tal fenômeno está relacionada com o passado, a constituição histórica do país.
Menciona que os discursos dos brasileiros se assemelham aos do colono explorado e do
colonizador explorador. Diz: “O colonizador veio então gozar a América, por isso deve
esgotá-la, mas sabe que não era a América que queria fazer gozar” (1996, p. 19). A
respeito dos colonos, comenta que a maioria se constituía em imigrantes que vieram na
31
busca de uma nova língua e de um novo “pai”. Todavia, ao chegar aqui, não tiveram a
acolhida esperada. Na verdade, foram tratados como escravos brancos.
Ao tentar analisar o sistema de imigração, Calligaris elucida que o governo dos
Estados Unidos agiu contra a importação de escravos brancos. Os colonos que foram
para a fronteira norte-americana receberam terras para trabalhar, o que talvez tenha
favorecido o surgimento de um sentimento de gratidão pela acolhida recebida.
Calligaris acrescenta que o comportamento do colonizador em relação aos
brasileiros pode ser depreendido na forma de tratamento atribuído às empregadas
domésticas. Além dos baixos salários e dos diversos casos de assédio sexual que essas
profissionais sofreram ao longo da história, ele se surpreendeu com o fato de as crianças
terem o consentimento dos pais de ordenar e de comandar os funcionários. Em sua
concepção, isso lhe remete à busca do colonizador de permitir a seus descendentes o
mesmo prazer e gozo que lhe foi dado.
No artigo “A celebração do Outro na constituição da identidade” (2003), com
base na psicanálise lacaniana e nas teorias do discurso, Maria José R. F. Coracini
assevera que as imagens dos estrangeiros sobre os brasileiros e dos brasileiros sobre si
mesmos provêm de uma memória histórica. Com o intuito de confirmá-las, a autora se
valeu de textos publicados na imprensa escrita.
Com relação aos enunciados dos estrangeiros sobre os brasileiros, Coracini
depreendeu tais estereótipos: “O brasileiro é desorganizado e indisciplinado”; “O
brasileiro é desonesto, caloteiro e explora os estrangeiros”; “Os brasileiros confiam no
‘seu jeitinho’”; “Os brasileiros fogem da responsabilidade”; “O Brasil é um país
dependente”. Nas falas a seguir, a autora procurou retratar o modo como os brasileiros
se identificam: “Tudo o que é estrangeiro [americano e europeu] é melhor”; “O
brasileiro só tem a aprender com o estrangeiro [sobretudo com o americano]”; “É bom
32
ser brasileiro, mas seria melhor ser estrangeiro”; “Os Estados Unidos e os americanos
são bons e solidários”.
Assim como Bhabha (2013), Coracini enxerga que a identidade subjetiva, social
e nacional se tece por meio das narrativas, dos discursos pedagógicos que são
transmitidos aos sujeitos como se fossem verdades inquestionáveis. Os autores
compartilham da concepção de que a identidade vai se construindo nessa relação
conflituosa entre o eu e o Outro.
No artigo “Sujeito entre lugares: o lugar do brasileiro e a produção de
conhecimento” (2006), Deusa Maria de Souza-Pinheiro Passos, apoiada nas reflexões de
Mignolo (2000), Melman (2000) e Bhabha (2013) sobre a noção de colonialismo e póscolonialismo, versa sobre o “complexo de inferioridade” brasileiro concernente ao saber
científico. Com o intuito de confirmar a preocupação dos pesquisadores em legitimar
suas investigações ao saber “de fora”, Passos cita esta enunciação de Orlandi sobre a
produção científica brasileira:
Intelectualmente, continuamos terra virgem. Nossas ideias são
nomeadas sem nós. Nas relações de sentidos, na reflexibilidade entre
textos, são nossos textos que têm de encontrar filiações em cientistas
de outras línguas, de preferência em inglês. (PASSOS, 2006 apud
ORLANDI, 2003)
Orlandi acrescenta ainda que essa atitude contribui para que a produção
intelectual brasileira se realize condicionada, dependente do dizer do Outro. Quanto a
seu efeito, tem-se uma atuação que coloca o brasileiro como não sujeito da ciência, do
conhecimento.
Assim como Calligaris (1996), Passos faz também referências aos estudos
psicanalíticos, apropriando-se da metáfora paterna na abordagem da identidade
33
brasileira e destacando o fato de Portugal ter procedido como um pai, que nomeou o
Brasil, seu povo e tudo que existe nesta terra.
Todavia, enfatiza que esse poder não é absoluto. No Brasil, a França já exerceu o
papel de mestre; no atual contexto histórico, a mídia e o poder econômico têm instituído
os Estados Unidos nessa função. No que tange à produção do conhecimento, o Brasil
vem se caracterizando no pós-colonialismo por buscar seu futuro além-mar. Com base
em Bhabha (2013), Passos conclui sinalizando que há uma cobrança do intelectual
brasileiro em saber o que se produz e em aplicar as teorias produzidas no Primeiro
Mundo.
Quanto à relevância da abordagem do complexo de inferioridade do brasileiro
disseminado tanto no senso comum quanto no campo da pesquisa, essas três leituras
reforçaram a importância de investigar o modo como a mediação cultural se processa no
ensino de FLE no Brasil ao longo da história, bem como o questionamento quanto à
posição do professor e do pesquisador brasileiro nesse contexto com o intuito de
verificar se ambos têm atuado como o intelectual que produz conhecimento ou apenas
têm absorvido as orientações externas, atribuindo-lhes ainda o papel de mestre.
1.2
A CULTURA FRANCESA NO BRASIL E A RELAÇÃO FRANCOBRASILEIRA
O encontro da cultura francesa com a brasileira trouxe, provavelmente, para os
brasileiros e franceses um novo olhar sobre o mundo. No Brasil, a cultura francesa está
materializada, a saber, em nossa arquitetura, na língua portuguesa, na literatura e nas
34
ideologias democráticas. No território brasileiro, a presença da cultura francesa
representou para muitos a possibilidade de salvar o país do “barbarismo”, tendo em
vista as imagens, as representações do colonizador e do colonizado que foram
transmitidas e reforçadas ao longo da história.
Todavia, cabe dizer também que um número expressivo de artistas e intelectuais
franceses também sofreu influência da cultura brasileira e levou para a França uma
visão do Brasil com base em suas experiências, colocando em questão as concepções do
civilizado e do bárbaro, entre outras.
Com base nas informações da revista História Viva, em uma edição especial
nomeada A herança francesa, de 2005, constata-se que a relação franco-brasileira se
iniciou em 1504, com a instalação do capitão Binot Gonneville durante seis meses na
atual Santa Catarina. Posteriormente, em 1555, apesar de Nicolas Durand de
Villegaignon ter sido expulso por Mem de Sá, sua vinda para fundar a colônia França
Antártica no Rio de Janeiro contribuiu para a produção dos relatos História das
singularidades da França Antártica (1555), de André Thévet, e História de uma viagem
à terra do Brasil, de Jean de Léry (1972).
Sobre a obra de Léry, convém destacar que a nudez indígena não é concebida
como pecado, como uma ofensa a Deus. Ao contrário, o índio passa a ser visto como o
bom selvagem. Tal concepção vai se fazer presente entre outros pensadores franceses,
como Montaigne, Voltaire e Rousseau.
[…] coisa não menos estranha e difícil de crer para os que não os
viram é que andam todos, homens, mulheres e crianças, nus como ao
saírem do ventre materno. Não só não ocultam nenhuma parte do
corpo, mas ainda não dão nenhum sinal de pudor ou vergonha […].
(LÉRY, 1972, p. 14)
35
No que diz respeito aos atos indígenas canibalistas, Léry os descreve com
detalhes, relatando como os índios sacrificavam, matavam e comiam os inimigos.
Todavia, como vivenciou as revoltas religiosas entre católicos e protestantes na Europa,
o autor relativiza a violência indígena, salientando ao leitor que o barbarismo também
era praticado pelos europeus.
Poderia aduzir outros exemplos de crueldade dos selvagens para com
seus inimigos, mas creio que o que disse já basta para arrepiar os
cabelos de horror. É útil, entretanto, que ao ler semelhantes
barbaridades não se esqueçam os leitores do que se pratica entre nós
[…]. Não abominemos, portanto, demasiado a crueldade dos
selvagens antropófagos. Existem entre nós criaturas tão abomináveis,
se não mais, e mais detestáveis do que aqueles que só investem contra
nações inimigas de que têm vingança a tomar. Não é preciso ir à
América, nem mesmo sair de nosso país, para ver coisas tão
monstruosas. (LÉRY, 1972, p. 203)
Retomando as tentativas colonizadoras no Brasil, no século XVII, os franceses
fracassaram mais uma vez ao tentar implantar uma colônia no atual Maranhão. Porém,
as narrativas escritas pelos padres capuchinhos e o nome da cidade, São Luís (“Saint
Louis du Maragnan”), em homenagem ao rei francês, deixaram mais uma vez a marca
da cultura francesa no Brasil.
No final do século XVIII, o luxo da corte de Luís XIV, bem como o prestígio da
literatura e da filosofia, motivou a difusão da cultura francesa no mundo ocidental. No
que diz respeito à língua francesa, é oportuno ressaltar que o idioma era falado em
algumas cortes europeias, além de na cidade parisiense.
A supervalorização da cultura francesa floresceu, de fato, após a Revolução
Francesa, ancorada na ideologia da “liberdade, igualdade e fraternidade”. Todavia, a
leitura de filósofos franceses e os ideais revolucionários do país assustavam as
autoridades coloniais. Na revista História Viva, o historiador João Paulo Pimenta (2005,
p. 27) afirma o seguinte: “Na crise vivida pelo Império Português no fim do século
36
XVIII, o exemplo histórico da Revolução Francesa estimulou tanto movimentos
separatistas brasileiros, como a Conjuração Baiana, quanto a férrea repressão do poder
colonial a toda ameaça à ordem estabelecida.”
Outro momento histórico importante aconteceu em 1816, com a vinda da Missão
Francesa, composta por artistas como Jean-Baptiste Debret, Grandjean de Montigny e
Nicolas-Antoine Taunay, que trouxeram para o Brasil o estilo neoclássico e formaram
novos discípulos de suas artes. Vale salientar que d. Pedro I, objetivando construir a
identidade brasileira, criou uma bandeira para o país baseada na da França napoleônica.
Além disso, a frase “Ordem e Progresso” remete à ideologia positivista do filósofo
francês Auguste Compte.
No século XX, a presença da cultura francesa era ainda muito forte no Brasil, a
saber: a Semana de Arte Moderna, um movimento de renovação da arte brasileira,
inspirou-se nas ideias de artistas franceses. Posteriormente, a fundação da Universidade
de São Paulo (USP) teve como principais colaboradores os intelectuais Claude LéviStrauss, Roger Bastide e Pierre Monbeig.
No mundo, a cultura e a língua francesas começaram a perder prestígio para o
inglês após a Segunda Guerra Mundial. No Brasil, acentuaram-se, entretanto, as ações
francesas para preservar a imagem da França. O artigo “Intelectuais e artistas nas
estratégias francesas de ‘propaganda cultural’ no Brasil”, publicado na Revista de
História número 133, de 1995, expõe que eventos culturais franceses foram acordados
entre o governo brasileiro e o francês. Além dessa ação, nos anos 1930 professores
franceses foram enviados ao Brasil para a organização de programas culturais.
O Comitê Francês de Liberação Nacional (CFLN), após três anos de relação com
o Brasil, fez, em 1943, esta declaração:
37
[…] as elites sul-americanas, tão ligadas tradicionalmente à nossa
cultura, têm continuado a procurar nossos educadores, nossos
professores, nossos artistas e a esperar as diretrizes do pensamento
francês. Na maioria desses países, o domínio norte-americano
aumentou, nos aspectos militar, comercial, financeiro, industrial e, em
certos casos, cultural. Procurando limitar a extensão desta ação que,
em muitos casos, lhes é vantajosa ou mesmo indispensável, muitos
dentre eles desejam, contudo, reservar à ação desinteressada da França
o domínio do espírito. Nós temos podido promover, graças às
subvenções de Londres ou de Vichy, a maioria de nossas obras e de
nossos educadores. Nossas posições são ainda bem sólidas e podem
servir de ponto de partida a novas influências.
Ainda no século XX, é relevante explanar que as manifestações estudantis e
operárias de 1968 em Paris influenciaram as organizações de esquerda no Brasil contra
a ditadura militar. Todavia, na década de 1970, a derrota dos movimentos de resistência
ao governo militar e o contexto econômico-social fizeram surgir uma geração que
passou a adotar como referência a cultura americana.
Embora as relações franco-brasileiras não sejam as mesmas do passado, é
importante salientar que a França e o Brasil ainda mantêm seus laços. Em 1998, o Brasil
foi homenageado no Salão do Livro de Paris e, em 2005, aconteceu o Ano do Brasil na
França, apresentando uma extensa programação cultural. Como retribuição, em 2009, o
Brasil fez uma homenagem à França, com o evento intitulado Ano da França no Brasil.
Não podemos deixar de dizer que a presença das Alianças Francesas no Brasil se
torna cada vez mais forte. Como foi mencionado em minha pesquisa de mestrado
(AZEVEDO, 2010), somente no município do Rio de Janeiro existem oito filiais,
sediadas nos bairros de Copacabana, Ipanema, Méier, Barra, Recreio, Centro, Botafogo
e Tijuca, além de cursos ministrados em empresas.
No que tange ao espaço do ensino-aprendizado da língua francesa, esta pesquisa
versará, em particular na próxima seção, sobre as ações educativas referentes às línguas
estrangeiras. O objetivo será demonstrar sobretudo a presença e o papel da língua
francesa no contexto escolar e social brasileiro, visando a depreender as imagens desse
38
idioma no atual contexto, tendo em vista que os vestígios da memória histórica
construídos no meio social (ORLANDI, 2003) têm papel relevante no momento do
processo de ensino-aprendizado, de mediação de conhecimentos, de interação alunoprofessor.
1.3
SURGIMENTO DO ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA
Segundo os estudos realizados por Valnir Chagas (1979), as primeiras ações de
uma educação sistematizada no Brasil foram vislumbradas pelos jesuítas em torno do
século XVI, tendo seu principal interesse na catequização dos índios. No que diz
respeito ao ensino de língua estrangeira (LE), em 1808, no período joanino, foi fundada
uma escola de educação na qual se ensinava a língua francesa. Entretanto, o autor conta
que o ensino obrigatório dessa disciplina só ocorreu no século XIX, em 1837,
concomitantemente ao surgimento do Colégio Pedro II, instituição imperial que visava a
oferecer uma formação secundária.
Valnir Chagas explicita, contudo, que a escola brasileira manteve até 1855 uma
formação baseada nas instruções jesuíticas do século XVI. A saber, no ensino
secundário, eram adotadas as diretrizes do humanismo clássico da Ratio Studiorum, que
abrangia “cinco classes” de estudos: a retórica, as humanidades e as gramáticas
superior, média e inferior. Além disso, o autor salienta que o latim e o grego eram
concebidos como disciplinas dominantes; em contrapartida, o vernáculo, a história e a
geografia não tinham um estudo autônomo.
39
A partir de 1855, no ministério de Couto Ferraz, o currículo foi modificado,
visando a adaptá-lo às necessidades da sociedade e da cultura brasileira de um país prérepublicano. Para tanto, o ensino passou a ser dividido em dois ciclos: os estudos de
“primeira classe” e os de “segunda classe”, ambos realizados em quatro anos. Quanto às
LEs, elas passaram a ter um status semelhante ao das línguas clássicas. O francês, o
inglês e o alemão faziam parte dos estudos obrigatórios, como o grego e o latim.
Quanto à metodologia de ensino das línguas modernas, Chagas adverte que elas
eram ensinadas conforme as línguas clássicas, ou seja, o método gramática-tradução era
o predominante. Caracterizava-se por exercícios gramaticais, leitura, versão e tradução
nos dois primeiros anos, e pelos estudos de obras clássicas no terceiro ano.
Em Évolution de l’enseignement des langues: 5000 ans d’histoire (1993),
Claude Germain explicita que, no método gramática-tradução, o professor é concebido
como o personagem principal na sala de aula; ele é o detentor do saber e da autoridade.
No que diz respeito ao aluno, este deve apenas fazer os exercícios escolhidos pelo
mestre.
Afirma que, no período da República, a partir de 1915, o grego foi retirado do
ensino. Com relação aos idiomas vivos, o governo limitou-os ao ensino de duas línguas:
a francesa e a inglesa ou alemã. O autor faz um panorama do ensino de língua e
demonstra o declínio de prestígio dessa disciplina, que contemplava, em 1890, o total de
43 horas semanais — 20 horas destinadas às línguas clássicas: 12 horas de latim e oito
horas de grego; e 23 horas, às línguas modernas: 12 horas de francês e 11 horas de
inglês ou alemão. Em 1929, os estudos de língua contemplavam um total de 29 horas
semanais — o latim manteve-se com 12 horas, a língua francesa passou a ter nove
horas, e o inglês ou o alemão passou a ser ministrado em oito horas. Importa dizer que,
nesse momento, os alunos podiam ter duas aulas de italiano como disciplina facultativa.
40
Quanto ao francês, cabe elucidar que a primeira Associação da Aliança
Francesa, visando à difusão da cultura e da língua francesas, foi fundada no Rio de
Janeiro em 1885, após dois anos de sua criação em Paris. O Brasil, como já foi
explicitado, tinha a França como modelo de civilização.
Na República, em 1911, foi criada a Lei Rivadávia, que prescrevia a adoção de
um ensino mais prático das línguas vivas, permitindo ao aluno, ao término do curso, ser
capaz de falar e de escrever em duas línguas estrangeiras. Sob tal linha de pensamento
configuraram-se também as instruções da Reforma C. Maximiliano, de 1915, na qual se
encontra esta afirmação: “O estudo de línguas vivas estrangeiras será exclusivamente
prático, de modo que o estudante se torne capaz de falar e ler em francês, inglês ou
alemão sem vacilar nem recorrer frequentemente ao dicionário” (MOACIR, 1942 apud
CHAGAS, 1979). Contudo, o ensino ainda se baseava sobretudo em atividades voltadas
para a tradução, a versão, os exercícios gramaticais e a leitura.
1.3.1 A criação do Ministério da Educação e a Reforma Francisco de Campos
A partir de 1930, no governo Getúlio Vargas, o caráter elitista do ensino
proposto no país foi questionado. Vargas almejava, para seu programa de reconstrução
nacional, a democratização do ensino público brasileiro. Para tanto, criou o Ministério
dos Negócios, da Educação e Saúde Pública e nomeou Francisco de Campos ministro,
que instituiu o Conselho Nacional de Educação, instaurando a organização do ensino
superior e do ensino secundário.
41
Cabe explicitar que foi no Ministério Francisco de Campos que se cogitou uma
formação de nível superior para os professores. Os cursos de bacharelado eram de três
anos letivos e demandavam mais um ano suplementar de “didática” para a licenciatura.
Em suma, o objetivo era oferecer uma formação acadêmica, visando aos estudos
universitários, mas também à promoção de uma formação pragmática, voltada para o
“fazer”. Valnir Chagas (1979) chama a atenção para o fato de que, com relação às
línguas, essa reforma destinou seis horas por semana ao ensino do latim. Já os estudos
de línguas modernas passaram a contemplar 17 horas semanais: nove horas para o
francês e oito horas para o inglês.
Na tentativa de alcançar os objetivos pretendidos, foi adotada, então, no ensino,
a metodologia direta (MD), que se caracterizou sobretudo pelo ensino da LE na própria
LE, “proibindo” o professor e o aluno de recorrerem à língua materna (LM) e à
tradução. Porém, legitimou-se o uso de gestos e de imagens em sala e adotou-se a
abordagem implícita da gramática, com base no modo como as crianças aprendiam a
LM. Nas salas de aula, os professores passaram, entretanto, a mesclar a metodologia
tradicional (MT) e a MD, dando origem mais tarde à metodologia ativa (MA), uma
versão mais eclética e mais parcimoniosa da MD.
É essencial dizer que o surgimento da MD se deu no início do século XX,
fundamentado no pragmatismo de John Dewey. Deve-se ressaltar igualmente que a MD
adotada no Brasil não excluía totalmente o uso da LM no ensino-aprendizado de LE. A
leitura e a interpretação de autores consagrados ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX
ainda continuaram a fazer parte do currículo escolar. No Colégio Pedro II, os bons
resultados obtidos com a MD encorajaram outras instituições a continuar investindo em
tal proposta de ensino. Contudo, poucos professores de LE tinham, de fato, a
proficiência de se expressar e falar na LE ensinada.
42
1.3.2 A Reforma Capanema
Em 1942, na era Vargas, ocorreu a Reforma Capanema, que se caracterizou pelo
aparecimento dos cursos técnico-profissionalizantes no ensino secundário. Segundo o
ministro da Educação e da Saúde da época, Gustavo Capanema, a educação deveria
promover o desenvolvimento de habilidades e valores nos sujeitos, despertando uma
consciência patriótica e humanística, capaz de contribuir para o bom funcionamento do
Estado.
Com relação ao ensino de línguas, Valnir Chagas (1979) explana que a Reforma
Capanema destinou 35 horas semanais ao ensino de idiomas, representando 19,6% de
todo o currículo. No ginásio, o latim, o francês e o inglês foram incluídos como
disciplinas obrigatórias, este último contemplando três anos de aprendizado, enquanto
os dois primeiros demandavam quatro anos. No colégio, o aprendizado do francês
passou a ser ministrado com 13 horas; o do inglês, com 12; o do espanhol, com duas; e
o do latim, com oito horas.
Nesse contexto, foi mantida a MD no ensino de LEs; portanto, além de ler,
escrever, compreender o idioma oral e falar, era necessário também que os professores
transmitissem conhecimentos sobre a civilização estrangeira, com o propósito de que os
alunos fossem capazes de compreender as tradições de outros povos. Valnir comenta,
contudo, que, muitas instituições de ensino continuaram a manter a metodologia
tradicional, com base no “leia e traduza”.
Para Leffa (1988), o período da Reforma Capanema, nas décadas de 1940 e
1950, foi o grande momento do ensino de LE. Os alunos estudavam latim, francês,
inglês e espanhol e eram capazes de ler os clássicos em tais idiomas. Contudo, durante o
43
Estado Novo, no período do regime ditatorial instaurado por Getúlio Vargas, as línguas
de imigração do país, o italiano e o alemão, passaram a ser proibidas.
Gilvan Müller de Oliveira (2009) relata que, entre 1941 e 1945, o governo
fechou escolas comunitárias e gráficas de jornais em alemão e italiano, bem como
prendeu e torturou pessoas que não falassem português. Em Santa Catarina, na gestão
do governador Nereu Ramos, foram criadas áreas de confinamento para descendentes de
alemães que se expressassem em sua língua.
De acordo com Müller, essa atitude do Estado fez com que tais idiomas
perdessem sua forma escrita e fossem apenas falados nas zonas rurais. Acrescenta ainda
que o Brasil poderia ter sido um país mais plurilíngue se tivesse preservado as línguas
indígena, italiana e alemã em sua história.
Nos anos 1950, tendo em vista as novas demandas sociais e a democratização do
ensino, os debates sobre o ensino no Congresso Nacional desembocaram no Projeto de
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), com o qual se visava à
predominância de um currículo “científico” no lugar do de inspiração “clássica”.
Todavia, apenas em 1961 essas diretrizes passaram a ser implantadas.
Importa lembrar que, após a Segunda Guerra Mundial, a relação entre os Estados
Unidos e o Brasil se estreitou, e inúmeros projetos nas áreas de comunicação,
comerciais
e
financeiras
foram
apoiados
pelo
governo
norte-americano;
consequentemente, a cultura e a língua americanas começaram a ser incorporadas ao
cotidiano brasileiro, enquanto a cultura e a língua francesas perderam cada vez mais seu
prestígio.
Todavia, o número de Associações da Aliança Francesa não deixou de crescer na
década de 1960. Segundo Daniel Coste (1976), o governo francês, após a perda de suas
colônias, passou a investir de forma intensiva em programas culturais e educativos no
44
exterior que permitissem a conservação e o desenvolvimento do conhecimento da língua
e da cultura francesas no mundo.
1.3.3 As diretrizes do ensino de língua estrangeira de 1961 a 1970
Após 27 anos de debate sobre a regularização do sistema de educação brasileiro,
em 20 de dezembro de 1961 foi publicada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB), que tem como filosofia predominante os ideais liberalistas. Convém
citar que, na década de 1950, a qualidade do ensino público brasileiro já estava sendo
criticada pela sociedade. As famílias que tinham melhores condições financeiras
começaram a matricular seus filhos em escolas particulares. No período do governo
militar, de 1964 até 1985, as instituições privadas ganharam ainda mais força, enquanto
as escolas públicas perderam seu prestígio.
Com relação ao ensino de LE, nas LDBs de 1961 e de 1971, essa disciplina
deixou de ser obrigatória e se tornou “complementar” ou “optativa”. Vale destacar que,
nesse contexto, algumas escolas suprimiram o ensino de LE. Em contrapartida,
começaram a surgir inúmeros cursos particulares de inglês. As ações neoliberalistas no
âmbito da educação se impõem cada vez mais, pois os empresários começam a enxergar
o ensino como um mercado rentável.
Em Dimensões comunicativas no ensino de línguas (2008), Almeida Filho
lamenta a predominância do ensino do inglês sobre o francês nos anos 1950, uma vez
que as técnicas pragmáticas de domínio de conversação básica eram baseadas na teoria
behaviorista de Skinner e na linguística estruturalista de Leonard Bloomfield, centrando
45
o ensino de língua pela língua, por meio de atividades mecânicas. Por sua vez, a leitura
dos clássicos e a formação humanística eram deixadas à margem. No que diz respeito a
esse tipo de abordagem, denominada metodologia áudio-oral (MAO), convém
esclarecer que a expressão e a compreensão oral passaram a ser o objetivo central de
muitos centros de língua nesse contexto.
A propósito da questão metodológica, parece relevante mencionar igualmente o
surgimento da metodologia audiovisual (MAV), fundamentada na teoria da enunciação
de Charles Bally, F. Brunot e B. Benveniste, que leva em conta a significação das
palavras e o contexto enunciativo, colocando em questão, por conseguinte, o ensino da
língua pela língua da MAO. Todavia, o enfoque dessa metodologia também será a
expressão e a compreensão oral (PUREN, 1998; LEFFA, 1988; GERMAIN, 1993).
Sobre a MAV, cabe dizer que foi promovida pelo governo francês como forma
de lutar contra o domínio da língua inglesa. Além dessa ação, vale acrescentar que
muitos professores brasileiros de francês obtiveram bolsas para estudar na França nesse
contexto. No Brasil, houve um aumento significativo do número de formações
destinadas a professores de língua francesa (DE CARLO, 1998).
No que diz respeito ao papel do professor de LE nessas duas metodologias,
Claude Germain assevera que, na MAO, o professor era tido como um “chefe de
orquestra”, “maestro”, visto que deveria atuar no sentido de dirigir, guiar e controlar o
comportamento linguístico dos alunos. Já na MAV, ele passou a atuar como animador,
que deveria possibilitar que o aluno se expressasse de maneira espontânea e de forma
criativa.
No que diz respeito à abordagem de aspectos culturais, no prefácio do manual
Voix et images de France (GAUVENET, 1960), vale comentar que os autores desejam
apresentar ao aprendiz uma língua autêntica. Como ilustração, esta pesquisa se serve
46
desta citação: “Ensinamos uma língua ‘viva’: uma língua só vive se é falada. Então,
queremos que […] o aluno se dedique integralmente a aprender, ouvir, imitar e
empregar da forma mais espontânea possível a língua falada coloquial” (DE CARLO,
1998, p. 30).5
A partir dos anos 1970, os manuais audiovisuais começam a apresentar diálogos
mais próximos da realidade e a levar em conta os componentes socioculturais e
psicológicos, próprios da comunicação. Entretanto, os conceptores do manual de Voix et
images de France já haviam explicitado certa insatisfação concernente aos estereótipos,
às imagens da cultura e da língua francesas. Os manuais não contemplavam ainda as
diversidades linguísticas e culturais existentes na França (DE CARLO, 1998).
Segundo Germain (1993), com relação aos papéis dos sujeitos na aula de LE, o
aluno é considerado um parceiro da situação comunicativa, devendo agir como
responsável por seu próprio aprendizado. Já os professores passam a desempenhar
funções de “facilitadores”, “conselheiros”, “cocomunicadores” etc.
No que diz respeito à abordagem de aspectos culturais no ensino de FLE (DE
CARLO, 1998), os manuais da abordagem comunicativa (AC) passam a contemplar a
cultura comportamental ou cotidiana (cultural) francesa. Vale dizer que o sentido
negativo do termo “civilização”, expressando a ideia de superioridade de determinados
países e povos sobre outros, se sobrepõe em tal contexto de pós-colonização. Daí se
explica o motivo pelo qual os métodos de ensino de LE começam a dar preferência, a
partir de então, à palavra “cultura” em detrimento do termo “civilização”.
No original: “Nous enseignons une langue ‘vivante’: une langue ne vit que si elle est parlée. Nous
voulons donc que […] l’élève consacre tous ses efforts à apprendre, à écouter, à imiter, et à employer
aussi spontanément que possible la langue parlée familière.”
5
47
1.3.4 Diretrizes de 1996 e as atuais orientações no ensino de língua estrangeira
Pela LDB de 1996 (Lei no 9.394), o ensino de LE voltou a ser obrigatório no
currículo; porém, o número expressivo de alunos em sala de aula e a carga horária de
dois tempos semanais adotada pela maioria das escolas impedem que os professores
realizem um trabalho capaz de desenvolver de fato as quatro competências
comunicativas (falar, escrever, ler e ouvir) e trabalhar o componente cultural.
No Ensino Médio, o governo propõe o ensino-aprendizado de uma segunda LE
como optativa para o aluno, estabelecendo apenas um tempo de aula. Essa atitude
parece reforçar mais uma vez junto à sociedade o fato de que não há interesse em
promover realmente um ensino de LE de qualidade em nosso país.
Convém mencionar que a LDB de 1996 permite o ensino de LE dividido em
níveis no sistema escolar; todavia, poucas escolas brasileiras agrupam os alunos de
acordo com os conhecimentos já adquiridos. Além disso, a LE adotada, em geral, é a
inglesa, embora algumas cidades brasileiras tenham a presença marcante das culturas
italiana, alemã, francesa e espanhola.
Com relação à LDB de 1996, vale citar os excertos a seguir:
Art. 24, IV — poderão organizar-se classes, ou turmas, com alunos de
séries distintas, com níveis equivalentes de adiantamento na matéria,
para o ensino de línguas estrangeiras, artes, ou outros componentes
curriculares.
[…]
Art. 26, V — Na parte diversificada do currículo será incluído,
obrigatoriamente, a partir da quinta série, o ensino de pelo menos uma
língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade
escolar, dentro das possibilidades da instituição.
48
No que diz respeito ao Ensino Médio, a LDB de 1996, no Capítulo II, estabelece
que: “Art. 36, III — será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina
obrigatória, escolhida pela comunidade local, e uma segunda, em caráter optativo,
dentro das disponibilidades da instituição.”
Porém, em 2005, a Lei Federal no 11.161, sobre o ensino de língua espanhola,
modificou os dispositivos anteriores, ao estabelecer que:
Art. 1o O ensino da língua espanhola, de oferta obrigatória pela escola
e de matrícula facultativa para o aluno, será implantado,
gradativamente, nos currículos plenos do ensino médio.
§ 1o O processo de implantação deverá estar concluído no prazo de
cinco anos, a partir da implantação desta Lei.
Não resta dúvida de que essa lei foi elaborada em função do Mercosul, do
acordo econômico entre os países da América do Sul, visando a fortalecer suas
economias. Deve-se dizer, contudo, que a ação do governo brasileiro de priorizar o
ensino da língua espanhola não apenas coloca em xeque a liberdade escolar, bem como
corrobora mais uma vez o desaparecimento do ensino do alemão, do francês e do
italiano nas escolas brasileiras.
Com relação ao ensino da língua francesa, poucas escolas estaduais e municipais
no Rio de Janeiro têm ainda o ensino desse idioma em sua grade escolar. Importa
salientar que um dos principais motivos para o declínio significativo do francês nos
últimos tempos foi sua exclusão do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para o
acesso às universidades brasileiras. Dessa forma, os concursos públicos destinados a
professores de LE passaram a privilegiar, sobretudo, o espanhol e o inglês.
49
1.4
O RELATIVISMO CULTURAL NOS PCNS E NO CECR
Ainda sobre o atual papel dos Estados com relação ao ensino-aprendizado de
LE, convém citar dois documentos: o Quadro Europeu Comum de Referência para as
línguas (CONSEIL DE L’EUROPE, 2000), no contexto externo, e os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) (BRASIL, 2002), no contexto interno. Tendo em vista o
contexto de globalização no qual vivemos, tanto nos PCNs quanto no CECR nota-se
uma preocupação em formar cidadãos plurilíngues e sensíveis à diversidade cultural.
Com o intuito de mostrar o papel desses documentos no ensino de LE, esta pesquisa vai
discorrer sobre eles nas próximas linhas.
Os questionamentos sobre os conhecimentos que são transmitidos pela escola
não datam de hoje. Muitos alunos, pais e a sociedade em geral se mostram insatisfeitos
com o ensino de determinados conteúdos cobrados pelas instituições de ensino, visto
que não reconhecem sua relevância para a formação do sujeito.
No âmbito da educação, alguns educadores também já se indagavam sobre a
importância atribuída à quantificação de conteúdos e a dificuldade que as pessoas têm
de mobilizá-los no trabalho e no dia a dia. No caso do ensino de LE, especialistas da
educação reivindicam que os professores ensinem a seus alunos competências
comunicativas (competências linguística, pragmática e discursiva) e não comunicativas
(saber-ser, saber-fazer, saber-viver, saber-aprender).
Os organizadores dos PCNs (BRASIL, 2002) ressaltam inicialmente nesse
documento que o objetivo é orientar, ajudar os professores no planejamento das aulas e
do currículo escolar em função das atuais diretrizes de ensino-aprendizado. Com relação
aos alunos, ressaltam a importância de uma formação que lhes permita a aquisição de
50
conhecimentos básicos, a preparação científica e a capacidade para usar as diferentes
tecnologias relativas às áreas de atuação.
Ainda na primeira parte desse documento, os organizadores dos PCNs fazem
esta declaração: “O Ensino Médio é a etapa de uma educação de caráter geral que situa
o educando como sujeito produtor de conhecimento e participante do mundo do
trabalho.”
Na segunda parte dos PCNs, intitulada “Linguagens, códigos e suas
tecnologias”, os elaboradores chamam a atenção de seus usuários para que o Ensino
Médio estimule no aluno a curiosidade, o raciocínio e a capacidade de interpretar e
intervir no mundo que o cerca.
Quanto à concepção de linguagem apresentada nesse documento, convém citar
este trecho:
A linguagem é considerada aqui como a capacidade humana de
articular significados coletivos e compartilhá-los, em sistemas
arbitrários de representações, que variam de acordo com as
necessidades e experiências de vida em sociedade. A principal razão
de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido. A linguagem é
uma herança social, uma “realidade primeira”, que, uma vez
assimilada, envolve os indivíduos e faz com que as estruturas mentais,
emocionais e perceptivas sejam reguladas pelo seu simbolismo.
(BRASIL, 2002, p. 125)
No que concerne ao estudo de LE nas escolas, os elaboradores dos PCNs
consideram que essa disciplina permite ao estudante aproximar-se de diversas culturas.
É importante destacar que o ensino-aprendizado de idiomas, tido durante muito tempo
como irrelevante, volta a ser visto como imprescindível à formação do sujeito global.
Como
abordagem
metodológica,
os
PCNs
adotam
a
orientação
sociointeracionista, que concebe o aprendizado como um processo que se realiza
51
mediante a interação com o Outro, com a sociedade. Nesse documento, a cultura é
assim definida:
A cultura, como código simbólico, apresenta-se como dinâmica viva.
Todas as culturas estão em constante processo de reelaboração,
introduzindo novos símbolos, atualizando valores, adaptando seu
acervo tradicional às novas condições historicamente construídas pela
sociedade. A cultura pode assumir sentido de sobrevivência, estímulo
e resistência. Quando valorizada, reconhecida como parte
indispensável das identidades individuais e sociais, apresenta-se como
componente do pluralismo próprio da vida democrática. Por isso,
fortalecer a cultura de cada grupo social, cultural e étnico que compõe
a sociedade brasileira, promover seu reconhecimento, valorização e
conhecimento mútuo, é fortalecer a igualdade, a justiça, a liberdade, o
diálogo e, portanto, a democracia. (BRASIL, 1998, p. 132, “Temas
transversais”)
Nesse excerto, a concepção de cultura se mostra como um fenômeno dinâmico.
O sujeito se constrói a partir de encontros sociais, na interação com outros indivíduos.
Todos são, de alguma forma, afetados pelo Outro. Para que o indivíduo se expresse, ele
precisa reconhecer seu(s) interlocutor(es). Em decorrência disso, a cultura transforma o
ser humano, e este transforma a cultura, um processo que permite a sobrevivência de
ambos pela alteridade.
Cabe ressaltar que esse conceito de cultura se coaduna com o do antropólogo
americano Clifford Geertz, que reconhece a diferença e a semelhança como elementos
cruciais na formação do sujeito. Se alguns sociólogos buscavam uma unidade cultural, o
apagamento das diferenças, Geertz procura mostrar que o sujeito se compreende, se
significa por meio do relativismo. Define:
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal suspenso
a teias de significado que ele mesmo teceu, assumo a cultura como
sendo essas teias e a sua análise; portanto, não uma ciência
experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à
procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro
ao construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície.
(GEERTZ, 2001, p. 15)
52
Nos PCNs, seus precursores chamam a atenção do educador para um ensinoaprendizado de LE voltado para a comunicação, e não apenas para os elementos
linguísticos. Todavia, o aspecto cultural parece se restringir à situação comunicativa, ao
contexto de ensino-aprendizado, ao conteúdo abordado. Quanto aos aspectos políticos,
econômicos e culturais, eles parecem ser tratados de modo muito superficial. Questões
identitárias e sociais da cultura-fonte e da cultura-alvo, relevantes nesse contexto,
marcado por fortes conflitos religiosos, étnicos e culturais, são muitas vezes
negligenciadas.
Convém salientar que, na maioria das escolas brasileiras, o ensino de LE ainda é
muito desvalorizado. A elaboração de documentos e a revelação dos problemas não
bastam para a transformação das práticas escolares. O governo abandonou a
responsabilidade de oferecer um ensino-aprendizado de LE de qualidade, e, por
conseguinte, a sociedade passou a acreditar que apenas os centros de línguas são
capazes de ensinar um idioma. Dessa forma, as desigualdades sociais só se acentuam.
O Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas (CONSEIL DE
L’EUROPE, 2000) foi criado pelo Conselho Europeu com o propósito de estabelecer
uma base comum na elaboração de provas, programas, manuais e certificados no ensino
de LE, visando a fortalecer, sobretudo, as relações entre os povos europeus. Nesse
sentido, os organizadores procuraram, no início desse documento, destacar a
importância de se respeitar a diversidade cultural, defendendo o pluriculturalismo e o
plurilinguismo, a interação de várias línguas e culturas.
No interesse de formar cidadãos globalizados, o CECR adotou o ensinoaprendizado capaz de desenvolver nos sujeitos competências verbais (saberes
linguístico, pragmático e sociolinguístico) e não verbais (saber-fazer, saber-ser, saberviver, saber-aprender). Com relação ao ensino-aprendizado, é imperativo dizer que, na
53
década de 1970, o Conselho Europeu de Estrasburgo, com base nas teorias dos atos de
fala, elaborou o Niveau seuil, um documento no qual foram descritas as fundamentais
competências comunicativas que os sujeitos precisavam dominar para poder falar em
LE.
No CECR, os organizadores propõem, entretanto, uma descrição das
competências comunicativas de forma mais complexa. Nesse documento, são abordados
os conhecimentos comunicativos que os falantes, classificados como usuários básicos
(A1 e A2), independentes (B1 e B2) e autônomos (C1 e C2), precisam dominar não
apenas para falar, mas também para ler, escrever e ouvir em LE nos domínios público,
profissional, educacional e pessoal.
Além disso, o CECR oferece diretrizes a seus usuários concernentes à avaliação
no âmbito do processo de ensino-aprendizado e para a obtenção de diplomas de
proficiências de LE. No Brasil, muitos estudantes universitários interessados em estudar
na França e no Canadá precisam dos diplomas de estudos em língua francesa (Delf),
compostos dos níveis (A1, A2, B1 e B2) e dos diplomas de aprofundamento de língua
francesa (Dalf), compreendendo os estágios mais avançados (C1 e C2). É necessário
esclarecer que os exames são independentes. A instituição de ensino superior, em geral,
é que determina o domínio de proficiência linguística que os alunos devem ter em
função dos objetivos acadêmicos.
O programa Ciência Sem Fronteiras, uma iniciativa do Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovação (MCTI) e do Ministério da Educação (MEC), com o apoio do
CNPq, da Capes e das Secretarias de Ensino Superior e de Ensino Tecnológico do
MEC, contribuiu para o aumento significativo do número de estudantes de língua
francesa.
54
A respeito da competência não verbal, o CECR e os PCNs solicitam que os
professores e seus usuários, em geral, desenvolvam nos alunos/sujeitos uma atitude
relativista, capaz de reconhecer o Outro além de suas referências culturais. Todavia, as
orientações associadas a questões culturais são abordadas de forma muito superficial.
No que diz respeito à atividade comunicativa de mediação, o CECR a legitima,
pois entende que o mediador permite estabelecer a interação, a relação entre sujeitos de
línguas distintas. Contudo, como foi abordado em minha pesquisa de mestrado
(AZEVEDO, 2010), esse documento também não apresenta aos usuários informações
teóricas e práticas que os ajudem a agir como mediadores. Como solucionar os
possíveis mal-entendidos, as tentativas de aculturamento? Como abordar a cultura do
Outro sem reforçar preconceitos, clichês? Como libertar o sujeito dos discursos que lhes
foram internalizados?
No CECR, encontra-se esta definição da mediação:
Participando ao mesmo tempo da recepção e da produção, as
atividades escritas e/ou orais de mediação permitem, pela tradução ou
interpretação, pelo resumo ou relatório, produzir para um terceiro uma
reformulação acessível de um texto primeiro ao qual esse terceiro não
tem, a princípio, acesso direto. As atividades linguageiras de
mediação, retratando um texto prévio, têm lugar considerável no
funcionamento linguageiro usual de nossas sociedades. (CONSEIL
DE L’EUROPE, 2000, p. 18)6
Na visão de Galisson e Puren (2001), a valorização da língua ao longo da
história no ensino de línguas se explica muitas vezes pelo fato de que a abordagem de
aspectos culturais coloca em evidência as diferenças, o que pode representar uma
ameaça para os interesses político-econômicos dos Estados. A título de ilustração, os
No original: “Participant à la fois de la réception et de la production, les activités écrites et/ou orales
de médiation, permettent, par la traduction ou l’interprétariat, le résumé ou le compte rendu, de produire
à l’intention d’un tiers une reformulation accessible d’un texte premier auquel ce tiers n’a pas d’abord
accès direct. Les activités langagières de médiation, retraitant un texte déjà là, tiennent une place
considérable dans le fonctionnement langagier ordinaire de nos sociétés.”
6
55
autores mencionam a União Soviética, que buscou impor o socialismo a seu povo e ao
mundo e, por causa disso, a abordagem de culturas capitalistas era excluída do contexto
escolar ou apresentada de forma inverossímil e deturpada.
Galisson e Puren (2001) advertem ainda que todos os países têm o direito de
escolher a LE que vai ser ensinada nos estabelecimentos escolares. Eles condenam,
contudo, a adoção de abordagens que se restrinjam ao aspecto linguístico, excluindo o
cultural, a identidade do Outro. Para os autores, esse tipo de atitude deve ser visto como
uma forma de agressão, de violação identitária.
Com o intuito de propor uma análise mais complexa das ações educativas no
ensino de línguas, em particular no ensino de FLE, esta pesquisa vai discorrer nas
próximas linhas sobre a linha de pensamento do pensador Edgar Morin sobre educação,
visando a identificar se sua proposta do aprender a aprender se coaduna com a
concepção de mediação crítica defendida ao longo deste estudo ou se vem reforçar uma
ação pedagógica cujo principal propósito é formar sujeitos para a sustentabilidade do
sistema econômico, social e político vigente. É oportuno salientar que suas ideias
servem como diretrizes e orientações para muitos pedagogos, professores, elaboradores
de métodos e manuais e documentos educativos.
No Brasil, muitos educadores e pensadores vêm enxergando as propostas
morinianas como a nova solução para a transformação da educação brasileira, apesar de
inúmeros de seus conceitos não estarem ainda bem claros, como a concepção do
pensamento complexo. No contexto universitário, verifica-se o crescimento de grupos
de pesquisas que se interessam pela bifurcação do conhecimento, procurando romper
com as fronteiras disciplinares.
56
1.5
A EDUCAÇÃO DO FUTURO SOB AS IDEOLOGIAS E DIRETRIZES
MORINIANAS
Edgar Nahoum, conhecido como Edgar Morin, nasceu em Paris em 1921;
formou-se em direito, história e geografia e trabalhou no Centro Nacional da Pesquisa
Científica (CNRS) como pesquisador emérito. Hoje, atua como antropólogo, sociólogo
e filósofo, e é tido como um dos principais teóricos da teoria da complexidade, tendo
escrito mais de 30 livros.
Em sua obra Os sete saberes para a educação do futuro (MORIN, 2002), sobre
a qual esta seção discorrerá, ele coloca em questão a estrutura da atual educação,
enfatizando que seu buraco negro está na expressiva valorização do aspecto racional e
em uma formação de cunho individualista. Como mudança, propõe uma formação que
leve em conta a emoção, as incertezas, o sentimento de coletividade, de alteridade no
atual cenário de globalização e informatização.
Nessa obra, ressalta que seu objetivo não é prescrever normas de como se deve
ensinar, mas repensar a complexidade do conhecimento, seus paradoxos, suas
congruências e incongruências no espaço escolar, a fim de que os sujeitos sejam mais
sábios e hábeis para lidar com as incertezas do mundo pós-moderno. É oportuno
salientar que Morin escreveu. Os sete saberes para a educação do futuro a partir de
uma demanda da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (Unesco), que pretendia estabelecer as novas diretrizes para a educação futura.
Sobre essa instituição, convém informar que:
A Unesco é a agência especializada da Organização das Nações Unidas
(ONU) para a Educação, a Ciência e a Cultura. Foi criada em 1945 na
57
Conferência de Londres, e desde sua criação seu objetivo inicial era
elaborar programas de ajuste ao ensino; fomentar o desenvolvimento
científico e a repatriação de objetos culturais pós-guerra.
Posteriormente, no contexto da chamada guerra fria, a Unesco
posicionou-se a favor da segurança e do estilo de vida americano.
Todavia, até 1980, essa organização ainda se constituía em uma
referência importante para o debate da educação mundial e, em especial,
para o incentivo à democratização da escola pública, voltada ao
aprendizado e ao acesso do conhecimento nos países pobres, dominados
e explorados economicamente. (JIMENEZ; MENDES, 2007, p. 120)
No que concerne ao aprender a aprender, Morin (2002) insiste em que o ser
humano não está isento de enganos, erros, mesmo que se valha da ciência, de dados
científicos. Na defesa de tal concepção, argumenta que o ato de conhecer se faz por
meio de percepções que são interpretadas, traduzidas, reformuladas, mediadas pela
linguagem, em função dos sentidos que atribuímos ao mundo, às coisas, às pessoas.
Na tentativa de analisar os enganos humanos, o autor discorre sobre alguns tipos
de erros que os sujeitos estão propensos a cometer. O primeiro, classificado como selfdeception, diz respeito à capacidade que cada mente tem de mentir para si mesma. De
acordo com o autor, os indivíduos têm inconscientemente poderes para selecionar as
melhores memórias em seu cérebro, embelezá-las, mas podem também apagar as
lembranças desfavoráveis, modificá-las e, por conseguinte, criar falsas recordações.
Além dos erros ilusórios, destaca igualmente os erros intelectuais, que se
manifestam mediante a tentativa de o ser humano proteger suas doutrinas como
verdades absolutas. Ainda que haja teorias adversas, sedimentadas em estudos
científicos, Morin acredita que elas se tornam muitas vezes imperceptíveis ao olhar de
pesquisadores, que ficam fechados em suas ideias e teses.
Para a identificação dos erros, das informações enganosas, considera
fundamental que o sujeito coloque o conhecimento sempre em contínuo
questionamento. Frisa que o ser humano tem tendência a preservar suas teorias, pois
teme o inesperado, que o desestabiliza e lhe exige a reavaliação das ideias. De acordo
58
com o autor, a educação do futuro deve estimular esse posicionamento crítico,
autocrítico, não apenas do sujeito em relação à sociedade, ao mundo externo, mas
também seus mitos, suas crenças e suas concepções racionalizadoras, que cegam os
indivíduos e os imobilizam.
O autor ainda explana que, com a industrialização, os progressos científicos e os
conhecimentos foram divididos em especialidades: cientistas, médicos, educadores que
dominam determinado campo de forma intensa, sendo, porém, incapazes de articulá-lo a
outros saberes. Na perspectiva moriniana, em uma era marcada pela informatização e
pela tecnologia, a interação entre as pessoas e os campos se mostra fundamental e não
pode mais ser negligenciada.
Diante de tal realidade, postula que o sistema educacional proponha outra
maneira de abordar seus saberes. Condena a divisão de disciplinas trabalhadas
isoladamente, argumentando que tal organização não se coaduna com a proposta de uma
educação cujo objetivo reside na construção de uma consciência complexa, coletiva,
planetária.
Em suma, compreende que:
O conhecimento especializado é uma forma particular de abstração. A
especialização “abs-trai”, por outras palavras, extrai um objeto do seu
contexto e do seu conjunto, rejeita os laços e as intercomunicações
com o seu meio, insere-o num setor conceitual abstrato que é o da
disciplina compartimentada, cujas fronteiras quebram arbitrariamente
a sistemicidade (relação de uma parte com o todo) e a
multidimensionalidade dos fenômenos; conduz a uma abstração
matemática que opera em si mesma uma excisão com o concreto,
privilegiando tudo quanto é calculável e formalizável. (MORIN, 2002,
p. 46)
Porém, com relação à bandeira educativa, “aprender a aprender”, é contundente
salientar que os lemas aprender a fazer e aprender a aprender remetem ao educador John
Dewey, cuja ideologia era formar indivíduos em função das necessidades sociais e
59
econômicas do século XX. No ensino, suas ideias estão presentes na metodologia direta
(MD), centrada em atividades que exigem do aprendiz uma atitude mais ativa no
processo do aprendizado.
A respeito do “aprender a aprender”, essa filosofia educacional foi a divisa do
movimento escolanovista no Brasil e, posteriormente, dos construtivistas, e se mantém
na atualidade no contexto tanto externo quanto interno por meio da pedagogia de
competências, vicejando a ideia de progresso e de inovação; no entanto, vem servindo
para a manutenção da hegemonia burguesa e dos interesses neoliberalistas.
Como metodologia de ensino, a ideologia “aprender a aprender” se faz presente
nas tarefas, nos projetos pedagógicos, na atual orientação pedagógica da perspectiva
acional (PA), a qual passou a predominar sobre as outras abordagens e metodologias no
ensino-aprendizado de FLE. Para a PA, o sujeito aprendiz é concebido como ator social,
que deve dominar conhecimentos comunicativos e não comunicativos (saber-ser, saberfazer, saber-conviver, saber-aprender).
Nessa perspectiva, o sistema escolar e o professor devem propor situaçõesproblema aos alunos com as quais eles possam se deparar no dia a dia. Seguindo essa
linha de pensamento, os legados culturais, conhecimentos científicos, conteúdos
acumulados ao longo da história, fulcrais para que os sujeitos possam refletir sobre o
presente, o futuro e entender melhor sua própria existência e a do mundo, perdem
espaço em nome de uma “realidade”.
Sobre o “aprender a aprender”, Newton Duarte faz esta declaração:
O lema “aprender a aprender”, ao contrário de ser um caminho para a
superação do problema, isto é, um caminho para uma formação plena
dos indivíduos, é um instrumento ideológico da classe dominante para
esvaziar a educação escolar destinada à maioria da população,
enquanto, por outro lado, são buscadas formas de aprimoramento da
educação das elites. (DUARTE, 2000, p. 43)
60
Para Libâneo (2009), o papel da educação deve ser o de promover a interação
entre o conhecer, o fazer, o ser e o criticar. Sabe-se que a escola não tem a capacidade
de tudo transformar, mudar; contudo, sua atuação de maneira crítica pode ser concebida
como uma forma de reação às injustiças, de luta por uma sociedade mais igualitária e,
por conseguinte, mais democrática.
No que diz respeito à ciência, ainda que ela não seja capaz de dar ao ser humano
todas as respostas e soluções para sua angústia e tenha cometido erros, suas
contribuições ao longo da história não podem ser negligenciadas. É oportuno frisar que
as pesquisas científicas permitiram ao ser humano se questionar, intervir no mundo, em
sua vida e renegar o fatalismo determinista dos fatos. Nas reflexões de Morin, os males
da humanidade recaem sobre a ciência, sobre o pensamento racional.
Segundo Duarte, o ponto recorrente no pensamento pós-moderno consiste em
anunciar uma crise da ciência, dos paradigmas da razão. Com base em Marilena Chauí,
o autor faz uma síntese de como é apresentada a crise do pensamento pós-moderno.




Negação de que haja uma esfera da objetividade. Esta é
considerada um mito da razão, em seu lugar surge a figura da
subjetividade narcísica desejante;
Negação de que a razão possa propor uma continuidade temporal
e captar o sentido imanente da história. O tempo é visto como
descontínuo, a história é local e descontínua, desprovida de
sentido e necessidade, tecida pela contingência;
Negação de que a razão possa propor captar núcleos de
universalidade no real. A realidade é constituída por diferenças e
alteridades, e a universalidade é um mito totalitário da razão;
Negação de que o poder se realiza à distância do social, através de
instituições que lhe são próprias e fundadas tanto na lógica da
dominação quanto na busca da liberdade. Em seu lugar existem
micropoderes invisíveis e capilares que disciplinam o social.
(DUARTE, 2000, p. 90)
Segundo Morin, o ser humano deve ter quatro tipos de consciência: a
antropológica, que significa o reconhecimento da unidade dentro da diversidade; a
61
ecológica, que diz respeito ao habitar com todos os seres mortais, respeitando a biosfera,
pois sem ela não há vida; a cívica terrestre, que exige do sujeito uma atitude de
responsabilidade e de solidariedade com as crianças da Terra; e a consciência espiritual
da humana condição, que se instaura nos indivíduos a partir de um exercício contínuo
de (auto/inter)reflexão, de (auto/inter)crítica.
Na preservação da coesão social, discorre sobre a importância da democracia em
uma sociedade diversificada e faz esta análise desse tipo de sistema:
A democracia supõe e alimenta a diversidade dos interesses, assim
como a diversidade das ideias. O respeito da diversidade significa que
a democracia não pode ser identificada como a ditadura da maioria
sobre as minorias; deve conter o direito das minorias e dos
proletariados à existência e à expressão, e deve permitir a expressão
das ideias heréticas e desviantes. Da mesma maneira que é necessário
proteger a diversidade das fontes de informação e dos meios de
informação (imprensa, mídia) para salvaguardar a vida democrática.
(MORIN, 2002, p. 116)
É necessário comentar que a democracia se impõe, de fato, quando os sujeitos
começam a lutar por seus direitos. A simples existência das leis não garante um Estado
democrático. Em face de tal situação, conclui-se que a equidade se estabelece em
contextos nos quais as pessoas são esclarecidas e críticas. Para completar esse
pensamento, José Carlos Libâneo assevera que o conhecimento é a condição para a
democratização. Acrescenta ainda que:
Valorizar a escola pública não é, apenas, reivindicá-la para todos, mas
realizar nela um trabalho docente diferenciado em termos pedagógicodidáticos. Democratizar o ensino é ajudar os alunos a se expressarem
bem, a ter gosto pelo estudo, a dominarem o saber escolar; é ajudá-los
na formação de sua personalidade social, na sua organização enquanto
coletividade. Trata-se, enfim, de proporcionar-lhes o saber e o saberfazer críticos como precondição para sua participação em outras
instâncias da vida social, inclusive para melhoria de suas condições de
vida. (LIBÂNEO, 2009, p. 12)
62
Como comentários finais sobre o pensamento moriniano, não se pode deixar de
observar que, embora suas orientações pareçam responder às angústias da atualidade e
ser transformadoras, elas vão ao encontro dos interesses políticos, econômicos,
ideológicos de quem detém o poder em nossa sociedade, bem como geram certo
sentimento de fracasso humano. O autor não faz uma crítica pertinente sobre as
acentuadas desigualdades econômicas e sociais presentes em determinados países e
sociedades.
No que diz respeito às críticas morinianas sobre a ciência, este estudo discorrerá
no próximo capítulo sobre o papel dos estudos científicos no ensino de LE, os
questionamentos em torno da formação especializada e da divisão do conhecimento em
disciplinas, bem como tratará do forte movimento, em especial, no âmbito acadêmico
pela multi/inter/transdisciplinaridade, com caminhos de mudança, de ruptura para
apreensão e difusão do conhecimento. Com o intuito de verificar se as ações
pedagógicas moderna e pós-moderna são ainda de natureza reprodutora, esta pesquisa
tomará como teóricos Cipriano Luckesi, Louis Althusser, Karl Marx, Emile Durkheim,
Max Weber, Antonio Gramsci, Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron e István
Mészáros.
63
2
INVESTIGAÇÃO DAS AÇÕES E DOS PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO
MODERNA E PÓS-MODERNA À PROCURA DO DEVIR
Nos primeiros anos de vida, são os pais, os familiares e os amigos que agem
como os mediadores do mundo para as crianças. Posteriormente, é atribuído à escola e
ao professor interagir e transmitir valores e conhecimentos de modo formal e sistêmico,
colocando para pensar sobre a relação teoria-prática no processo de ensino-aprendizado.
Todavia, muitas orientações e propostas pedagógicas e didáticas parecem estar
afastando o professor do pensamento crítico ao valorizar a teoria em detrimento da
prática ou a prática em detrimento da teoria, privando-o muitas vezes de estabelecer
uma postura dialética.
Em face disso, esta seção versará sobre o espaço reservado à teoria e à prática no
ensino-aprendizado de LE, tendo como principal objetivo analisar o nível de relação
dessas
atividades
nesse
campo
e
verificar
se
as
orientações
multi/pluri/inter/transdisciplinares favorecem, de fato, que os sujeitos tenham uma
formação mais complexa e menos fragmentada, como preconizam certos especialistas
do campo da educação e da Unesco.
Atualmente, convém destacar que o papel do professor parece se limitar a uma
prática mecânica e a-histórica do conhecimento, destituindo-o, assim, cada vez mais de
sua imagem de intelectual crítico no contexto social. Para confirmar ou refutar tal
hipótese, serão apresentadas as concepções de alguns especialistas da educação e do
ensino de línguas relacionadas com essa temática, com base notadamente nas teorias de
Luis Paulo da Moita Lopes (1996), José Carlos P. de Almeida Filho (2008) e Robert
Galisson e Christian Puren (2001).
64
É imprescindível destacar, inicialmente, que, por volta da década de 1950, o
ensino de LE passou a se pautar, em especial, pelos critérios da produção e da
socialização do conhecimento científico. No século XX, Galisson e Puren (2001)
mencionam o aparecimento de três disciplinas vinculadas ao ensino de línguas: a
linguística aplicada (LA), que nasceu nos Estados Unidos no período da Segunda
Guerra Mundial, mais voltada para o ensino do inglês; a didática das línguas (DL),
surgida posteriormente, nos anos 1970, que coloca no centro de suas reflexões o sujeito
(aluno); e a didatologia das línguas-culturas (DLC), nos anos 1980, cujo objetivo
principal é relacionar as práticas pedagógicas com as teorias.
Com base na psicologia behaviorista e na linguística estruturalista, como já foi
mencionado nesta pesquisa, estudiosos interessados no ensino-aprendizado de LE, como
Leonard Bloomfield, elaboraram a metodologia áudio-oral (MAO), que representou
uma ruptura com as metodologias precedentes em virtude de sua natureza científica.
Convém dizer que os estudos linguísticos centrados no uso da língua e as novas teorias
e pesquisas da área pedagógica favoreceram o surgimento da LA.
A LA proveio da linguística teórica, mas se distinguiu por se ater ao ensinoaprendizado de LE. Posteriormente, enveredou por analisar a língua em uso em outros
contextos sociais. Cabe dizer que esse tipo de metodologia indutiva era realizado
também em outros campos, como a antropologia e a semiótica (MOITA LOPES, 1996).
No que diz respeito às grandes contribuições iniciais da LA para o ensino de LE,
Moita Lopes (1996) destaca o estudo do erro e, posteriormente, o conceito de
interlíngua, uma língua intermediária, construída pelo aprendiz no processo de ensinoaprendizado, apresentando características da língua de partida e da língua de chegada,
mas permitindo a interação com os falantes do idioma aprendido.
65
Sob esse paradigma ideológico, a partir da década de 1960, as formações de
professores passam a se centrar, em geral, no “como” fazer em detrimento de “o que” e
“para que” fazer. No âmbito do ensino de LE, o domínio linguístico da língua ensinada,
das orientações propostas nos métodos e dos suportes didáticos, como fitas cassete e
vídeos, passa a ser o parâmetro para o julgamento da competência do professor. Sendo
assim, o conhecimento se sobrepõe à realidade dos sujeitos; apenas os dados que podem
ser investigados e comprovados devem ser considerados.
No que tange à aquisição de uma língua, é importante lembrar a existência de
três teorias. A behaviorista, na qual o aprendizado humano depende, sobretudo, de
estímulos, condicionamento de hábitos e ações externas; a gerativista, que se opôs à
primeira sob o argumento de que as crianças já nascem com uma predisposição para
aprender, pois são capazes de produzir e de criar novas sentenças; e a interacionista,
cujos teóricos contestam as posições precedentes, asseverando que o aprendizado se
constrói por meio da interação entre o indivíduo e a sociedade.
Figueiredo faz esta análise:
Em síntese, na visão interacionista, a língua materna é vista como um
produto da atividade social, determinado cultural e historicamente, e
um processo de interação das crianças com os membros de sua
comunidade. Ela não é uma forma de comportamento, nem tampouco
uma faculdade inata que capacita as crianças a adquirir somente a
competência linguística. (FIGUEIREDO, 1997, p. 24)
Na década de 1980, os pesquisadores da LA e outros estudiosos interessados
pelo ensino de línguas se voltam para a questão da interação, dos processos
sociointeracionais e dos estudos sociocognitivos, com base na concepção de que todo
conhecimento cultural se constrói no contexto social. Todavia, Duarte (2000) sinaliza
que esse conhecimento passa a ter como referente a realidade dos sujeitos, excluindo a
66
referência histórica. Com efeito, o aspecto cultural é abordado a partir de uma lógica
pragmática, deixando de lado uma abordagem do sujeito de caráter filosófico.
Sobre o construtivismo piagetiano, pelo qual as novas orientações passam a se
calcar no final do século XX, Duarte se apropria desta enunciação de Ernest von
Glasersfeld:
A ideia-chave que separa o construtivismo de outras teorias da
cognição foi lançada há aproximadamente 60 anos por Jean Piaget.
Trata-se da ideia de que o que chamamos de conhecimento não tem, e
não pode ter, o propósito de produzir representações de uma realidade
independente, mas antes tem uma função adaptativa. Esta mudança na
avaliação da atividade cognitiva acarreta um irrevogável rompimento
com a tradição epistemológica geralmente aceita na civilização
ocidental, de acordo com a qual o conhecedor deve se esforçar para
atingir uma visão do mundo real. Embora neste século as revoluções
nas ciências físicas tenham conduzido à aceitação de que tal visão
parece impossível, mesmo de acordo com a teoria física, a maioria dos
filósofos atém-se à crença de que o progresso da ciência, de alguma
forma, conduzirá a uma aproximação da verdade definitiva. (VON
GLASERSFELD, 1998, p. 19 apud DUARTE, 2000, p. 107)
Sobre a psicologia cognitiva, Libâneo (2000) acrescenta que o construtivismo
piagetiano se desenvolveu como uma forma de reflexividade que governa o “eu” por
meio de uma autonomia, de uma liberdade que o torna submisso aos controles sociais
por seu egocentrismo. Ao acreditar que o acesso à realidade depende, sobretudo, de sua
análise reflexiva, o sujeito se aliena do mundo e de si mesmo.
Na década de 1990, com o suporte das pesquisas científicas realizadas no campo
da linguística, da LA, da pragmática, da psicologia e da pedagogia, surgiram no ensino
de LE as formações com objetivo específico, denominadas FOS, com a finalidade de
oferecer aos sujeitos competências que fossem ao encontro de suas reais necessidades
de trabalho e de estudo. Com efeito, muitos professores passaram a se especializar em
determinado “segmento”. Por exemplo, dedicaram-se à tradução no ensino de LE,
produção oral e escrita, e, por conseguinte, se afastaram, muitas vezes, do processo de
67
aprendizado do aluno como um todo, deixando de ser artesãos, que conhecem todas as
etapas de seu ofício, para se tornarem operários, que se detêm em realizar uma função
específica. Segundo Luis Porcher (CUQ; GRUGA, 2002), a proposta de formação
específica teve como principal obstáculo a dificuldade dos professores de identificar e
avaliar as necessidades linguísticas dos aprendizes, de formular os objetivos da
aprendizagem e de definir os conteúdos.
Cabe elucidar que o século XX foi marcado pela economia fordista, que se
caracterizou pela produção em série. Contudo, na década de 1970, o mercado vivenciou
o toyotismo, que demandava dos sujeitos competências relacionadas com uma produção
mais flexível. De acordo com Libâneo (2000), a sociedade pós-industrial se distinguiu
da primeira por apresentar um consumismo especializado e por exigir dos sujeitos um
conhecimento também especializado.
Analisando as diretrizes educativas e o contexto político, econômico e social,
observa-se que as ideologias do mercado foram aportadas para a educação e para a
ciência. Tais observações se confirmam com o Relatório para a Unesco da Comissão
Internacional sobre Educação para o Século XXI.
Na indústria, especialmente para os operadores e os técnicos, o
domínio do cognitivo e do informativo nos sistemas de produção torna
um pouco obsoleta a noção de qualificação profissional e leva a que se
dê muita importância à competência pessoal. O progresso técnico
modifica, inevitavelmente, as qualificações exigidas pelos novos
processos de produção. As tarefas puramente físicas são substituídas
por tarefas de produção mais intelectuais, mais mentais, como o
comando de máquinas, a sua manutenção e vigilância, ou por tarefas
de concepção, de estudo, de organização à medida que as máquinas se
tornam, também, mais “inteligentes” e que o trabalho se
“desmaterializa”. (2000, p. 93-94)
Com o surgimento das DLCs, pesquisadores como Galisson e Puren (2011)
enfatizam a importância de que o professor se torne mais autônomo, que ele mesmo
68
construa seu próprio material. No entanto, advertem que isso reivindica o saber teorizar
sobre uma problemática com a qual o professor possa se confrontar em sua prática. Em
outros termos, ele deve agir como um pesquisador que procura descrever, analisar,
interpretar e conceituar o objeto de estudo.
De acordo com Duarte e Libâneo, na década de 1990 a abordagem de formação
de professores denominada professor reflexivo se embasava exatamente nesses
princípios descritos por Puren e Galisson. No primeiro momento, tem-se a impressão de
que há o surgimento de uma postura mais crítica; porém, ao fazer uma análise mais
detalhada, o professor se dá conta de que a teoria está atrelada, sobretudo, à sua prática,
a um saber-fazer. Sobre o conceito de professor crítico e reflexivo, Libâneo profere que:
A meu ver, os professores deveriam desenvolver simultaneamente três
capacidades: a primeira, de apropriação teórico-crítica das realidades
em questão considerando os contextos concretos da ação docente; a
segunda, de apropriação de metodologias de ação, de formas de agir,
de procedimentos facilitadores do trabalho docente e de resolução de
problemas de sala de aula. O que destaco é a necessidade da reflexão
sobre a prática a partir da apropriação de teorias como marco para as
melhorias das práticas de ensino, em que o professor é ajudado a
compreender o seu próprio pensamento e a refletir de modo crítico
sobre sua prática e, também, a aprimorar seu modo de agir, seu saberfazer, internalizando também novos instrumentos. A terceira é a
consideração dos contextos sociais, políticos, institucionais na
configuração das práticas escolares. (LIBÂNEO, 2002, p. 70)
Nessa mesma linha de pensamento de Libâneo, Contreras enfatiza a importância
de fazer uma reflexão sobre o contexto político, econômico e social na atividade do
docente, dizendo que:
Tratar-se-ia é de perguntar se é possível conceber a reflexão como um
processo que incorpore a consciência sobre as implicações sociais,
econômicas e políticas da prática do ensino, para poder superar visões
reducionistas da reflexão que não transcendam as implicações mais
imediatas da ação em sala de aula, ou com o objetivo de evitar a
absorção por retóricas de maior responsabilização sem aumentar a
capacidade de decisão. (CONTRERAS, 2002, p. 139)
69
Para alguns especialistas, como Philippe Perrenoud (1999), e os elaboradores de
orientações didáticas e pedagógicas, a formação do professor deve ser de caráter
tecnicista. Assim, parecem reconhecer apenas como ação do professor a práxis poiésis,7
que está centrada na produtividade relacionada com as necessidades factuais do sujeito,
e renega a práxis filosófica, que visa à atividade ética e política, com o propósito de
compreender os fenômenos além de suas aparências.
Infelizmente, a práxis utilitária vem tendo peso no espaço educativo. Muitos
educadores e professores também demonstram certo desprezo pela práxis filosófica,
sem refletir que, ao fazerem assim, perdem cada vez mais a autonomia de sua ação e
legitimam que outros lhes ditem, prescrevam o certo e o errado, destituindo-os do papel
de intelectual no espaço social.
Neste trecho, Perrenoud torna explícito que a formação por competência se
pauta pela prática:
A formação de competências exige uma pequena revolução cultural
para passar de uma lógica do ensino para uma lógica do treinamento,
baseada em um postulado relativamente simples: constroem-se as
competências
exercitando-se
em
situações
complexas.
(PERRENOUD, 1999, p. 54)
Libâneo (2000) assinala que a proposta de reflexividade de Paulo Freire se
assenta no processo da ação-reflexão-ação e na consciência política. Comenta que o
“método Paulo Freire” propõe que o professor se afaste, inicialmente, do contexto
concreto para que consiga ter uma análise mais crítica dos fatos por meio de uma
7
O pensador Aristóteles identificou três tipos de ações: a práxis, a poiésis e a theoria. A primeira se
caracteriza por ser instintiva — como exemplo, o trabalho exercido pelas abelhas ao construir uma
colmeia; já na segunda, o ato de produzir exige um planejamento, uma intencionalidade, um objetivo
específico, que é próprio da natureza humana. A terceira atividade visa a encontrar uma verdade. Nesse
caso, a ação do sujeito está centrada na contemplação, na (inter)subjetividade. Contrário, entretanto, à
dicotomia entre prática e teoria no curso da história, Karl Marx propõe a práxis prático-crítica sob o
pressuposto de que a teoria orienta a prática dos sujeitos e de que esta posta em ação permite reavaliar a
teoria e, por sua vez, transformar a realidade (VÁSQUEZ, 2007; KONDER, 1992).
70
decodificação das situações existenciais, que serão confrontadas, posteriormente, com a
decodificação do diálogo realizado entre educador e educandos.
No contexto concreto somos sujeitos e objetos em relação dialética
com o objeto; no contexto teórico assumimos o papel de sujeitos
cognoscentes da relação sujeito-objeto que se dá no contexto concreto
para, voltando a este, melhor atuar como sujeitos em relação ao
objeto. Estes momentos constituem a unidade […] da prática e da
teoria, da ação e da reflexão. […] A reflexão só é legítima quando nos
remete sempre […] ao concreto, cujos fatos busca esclarecer, tornando
assim possível nossa ação mais eficiente sobre eles. Iluminando uma
ação exercida ou exercendo-se, a reflexão verdadeira clarifica, ao
mesmo tempo, a futura ação na qual se testa e que, por sua vez, se
deve dar a uma nova reflexão. (FREIRE, 1976, p. 135 apud
LIBÂNEO, 2000, p. 58)
Libâneo conclui salientando que existem dois tipos de reflexividade: a de cunho
neoliberal, que se apoia na ideologia (neo)positivista, na racionalidade instrumental, e a
de cunho crítico, que discute a reflexividade crítica, crítico-reflexiva, reconstrucionista
social, comunicativa, hermenêutica. O autor acrescenta ainda que determinadas
concepções do professor reflexivo aportam temas do “pensamento pós-moderno”.
Apesar de todas as críticas sobre a formação do professor, Moita Lopes (1996)
se mostra um pouco mais otimista com relação ao futuro do ensino-aprendizado de
línguas, pois constata a existência de um movimento que denomina professorpesquisador. Isso significa que o professor vem deixando de exercer somente o “papel
de cliente/consumidor” (p. 89) e está procurando assumir uma atuação investigativa e
crítica. Em sua leitura, essa tendência aponta para uma necessidade do próprio educador
de ter um melhor domínio sobre a sala de aula.
Almeida Filho (2008), entretanto, adverte que ainda há poucos professores que
voltam à universidade. Reconhece, porém, que ser pesquisador exige, em específico,
saber pesquisar, ler e discutir sobre as recentes investigações. Todavia, conforme Moita
Lopes (1996), o pós-graduado em Letras atuará diferentemente e, por conseguinte,
71
mexerá com o cenário escolar. Cabe dizer que uma das fortes críticas à LA está atrelada,
ainda, à distância existente entre a academia e as aulas de língua.
Para finalizar, a dicotomia entre teoria e prática no ensino-aprendizado de LE
parece ser explicada por sua própria história, que se constituiu, sobretudo, apoiada nos
pilares de uma epistemologia pragmática, como se o processo de ensino-aprendizado
fosse objetivo e sem inúmeras invariáveis. Se, no período do estruturalismo, isso se
expressava nitidamente, no pós-estruturalismo/pós-modernismo observa-se uma
dissimulação desse pragmatismo. Ao analisar as fundamentações teóricas, as
orientações de ensino e os discursos de determinados pensadores, constata-se que não
há uma preocupação em formar sujeitos críticos que reflitam sobre o cenário educativo
e proponham transformações, de fato, na história. As “mudanças” propostas surgem
apenas como uma adequação às novas necessidades do mercado.
2.1
AS IDEOLOGIAS IMPLÍCITAS EM TORNO DO
MULTI/PLURI/INTER/TRANSDISCIPLINAR
Fazendo uma breve contextualização dos modos de apreensão e de transmissão
do conhecimento, convém ressaltar que a concepção positivista teve seu auge no século
XIX com Augusto Comte, que via o método científico como o único meio confiável
para se chegar à verdade. Além disso, os positivistas pregavam que o progresso do
Estado, do sistema capitalista e da sociedade dependia de leis e de ações que
garantissem a ordem social. Essa concepção de organicidade, categorização foi
incorporada em diversos domínios. No âmbito do saber, com o intuito de melhor
72
apreendê-lo, as ciências foram divididas em disciplinas; na esfera do trabalho, a
fragmentação da produção contribuiu para o aumento da produtividade; na educação, o
ato de educar passou a ser um dever das sociedades modernas e o de aprender, um
direito do cidadão (IMBERNÓN, 1999).
No que diz respeito ao discurso contra a disciplina e a favor da
multi/pluri/inter/transdisciplinaridade, é necessário verificar que subjacentes a essa
concepção existem muitas vezes ataques às pesquisas científicas. As principais críticas
que lhe são lançadas devem-se a seu rigor metodológico para tratar da realidade e dos
sujeitos e ao tratamento descontextualizado dos fatos, desconsiderando que eles
funcionam, em geral, interligados, integrados e em função de dada realidade. Com
relação aos defensores da interdisciplinaridade, convém mencionar que é possível
constatar três tipos de vertentes: a humanista, a crítico-social e a da complexidade.
No entanto, antes de discorrer sobre as vertentes interdisciplinares, é essencial
estabelecer as diferenças entre os conceitos de multidisciplinar, pluridisciplinar,
transdisciplinar e interdisciplinar, tão citados no atual contexto. Valer dizer que há
muitas polêmicas sobre o modo de conceituá-los. Todavia, muitos estudiosos
concordam com o fato de que a interdisciplinaridade remete à ideia de práticas que vão
além da disciplinaridade. As autoras Fernanda Morillo, Maria Bordons e Isabel Gómez
declaram que:
As definições mais comumente aceitas vêm da OCDE [Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] (1998), na qual
multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade são
usadas para se referir a um nível crescente de interação entre
disciplinas. Assim, na pesquisa multidisciplinar o assunto estudado é
abordado de diferentes ângulos, usando diferentes perspectivas
disciplinares, e não é realizada a integração entre elas. A pesquisa
interdisciplinar leva à criação de uma identidade teórica, conceitual e
metodológica, assim resultados mais coerentes e integrados são
obtidos. Finalmente, a transdisciplinaridade vai um passo além e se
refere a um processo no qual a convergência entre as disciplinas é
73
observada, e acompanhada por uma integração mútua das
epistemologias disciplinares. (MARTINO; BOAVENTURA, 2013, p.
3 apud MORILLO; BORDONS; GÓMEZ, 2003, p. 1237)
José Luiz Fiorin (2008) acrescenta ainda que os pesquisadores não fazem mais a
distinção entre multidisciplinaridade e pluridisciplinaridade. Ambos os termos passaram
a remeter ao estudo de um mesmo objeto sob a abordagem de vários campos, de forma
paralela e independente. Já a interdisciplinaridade demanda que os investigadores de
áreas distintas transfiram conceitos teóricos e metodológicos e sejam capazes de
promover a interseção das disciplinas. A título de exemplo, o sociólogo Pierre Bourdieu
se valeu de conhecimentos da economia na elaboração de conceitos como capital
cultural e bens de cultura, que vão ser tratados na próxima sessão desta pesquisa. No
que diz respeito à transdisciplinaridade, a proposta é de fusão e de diluição das
fronteiras disciplinares. Nesse caso, Fiorin cita a ecologia, que se constituiu em saberes
diversificados. Convém dizer que esse novo tratamento à pesquisa visa a transcender a
territorialização científica, centrada no objeto, na matéria e deixando à margem o ser
humano.
No que diz respeito à vertente interdisciplinar humanística no Brasil, encontramse, como principais representantes, Hilton Japiassu, Ivani Fazenda e Georges Gusdorf.
Este último declara que:
Os sábios modernos deveriam buscar em comum a restauração das
significações humanas do conhecimento […]. É preciso restaurar a
aliança da ciência com a sabedoria […]. A significação fundamental
da interdisciplinaridade é a de uma chamada à ordem do humano, de
um humanismo da pluralidade e da convergência. (GUSDORF, 1977,
p. 37)
Ao defender a necessidade de restaurar a relação entre ciência e sabedoria,
Georges Gusdorf (1977) faz alusão ao fato de que, ao longo da história, filósofos
74
estudiosos em geral adotavam uma postura interdisciplinar em face do conhecimento,
tendo esta sido perdida a partir do século XX. Sobre esse relato, vale comentar que o
autor, inicialmente, nos leva a reavaliar a imagem da interdisciplinaridade como um
pensamento revolucionário, que muitos pesquisadores e entidades, como a Unesco e a
OCDE, tentam transmitir, sobretudo no campo das ciências sociais.
Contudo, ao versar sobre a LA, o presente estudo mostrou seu caráter
interdisciplinar. Aliás, este trecho de Moita Lopes remete a um comentário sobre o
reencantamento pela interdisciplinaridade na atualidade:
A questão da interdisciplinaridade, que se tornou quase um dos
truísmos em epistemologias contemporâneas, já era apontada na LA
nos anos 80, embora seja necessário reconhecer que fosse sempre
mais defendida como plataforma do que de fato executada. Havia e
ainda há uma preponderância de teorização linguística, agora
principalmente de uma linguística do discurso, o que já me levou a
dizer que na LA temos “interdisciplinaridade, pero no mucho!”
(MOITA LOPES, 2006, p. 20)
Com relação à formação de especialista, deve-se dizer que a angústia de Gusdorf
é compartilhada por um número expressivo de cidadãos que vêm se questionando sobre
o tratamento impessoal que recebem nos consultórios, hospitais, escolas etc. Cada
profissional se restringe à sua especialidade e desconsidera o ser humano como um
todo, desprezando sua realidade, sua história. Para essa vertente, o trabalho
interdisciplinar se revela como a melhor solução para recuperar os valores humanistas
perdidos na atualidade, integrando conhecimento e ação, ou seja, teoria e prática.
Como principais expoentes da vertente social-crítica estão Glaudêncio Frigotto,
Norberto J. Etges, Roberto Follarir e Antônio Joaquim Severino. Eles reconhecem a
relevância da interdisciplinaridade, sobretudo no universo das ciências sociais e da
educação, no qual tudo está subordinado ao ser humano e às suas relações sociais. Além
disso, dadas a complexidade humana e a magnitude de desafios impostos ao ser humano
75
na atualidade, o acesso ao conhecimento vai solicitar cada vez mais do pesquisador, de
maneira natural, a busca de saberes, de mediações em outros campos e de mudanças no
plano epistemológico (FRIGOTTO, 2011).
Todavia, é necessário dizer que o surgimento da vertente social-crítica provém
da objeção à concepção de interdisciplinaridade da corrente humanista. A principal
crítica diz respeito ao fetichismo sobre a interculturalidade, ou seja, vê-la como a
salvação de todos os males e desconsiderar o contexto histórico-social no qual a
sociedade está inserida.
De acordo com Jantsch e Bianchetti (2011), a ideologia capitalista perpassa
todas as esferas sociais; não há como negligenciar esse fato. Os autores acrescentam
ainda que essa vertente peca por atribuir aos sujeitos o poder absoluto na construção do
conhecimento e do pensamento, como se eles fossem capazes de salvar o mundo com a
ajuda de parcerias. Todavia, advertem que os trabalhos em “equipe” podem ser tão ou
mais fragmentados que os realizados individualmente. O tipo de modalidade de trabalho
não é fator determinante para estabelecer uma visão mais totalitária de um problema e
menos alienante.
Ainda sobre a vertente humanista, Porto e Almeida a definem como:
[…] uma perspectiva humanista e pedagógica, para propor a busca de
um diálogo ecumênico e reflexivo entre as várias áreas do
conhecimento, centrando a transformação numa mudança de espírito
dos próprios pesquisadores e do sistema de ensino. (PORTO;
ALMEIDA, 2002, p. 337)
A enunciação reforça a concepção dessa vertente de que o ato de trabalhar com o
público, o sujeito, precisa de diálogo, de interação. No âmbito da educação, as relações
professor-aluno, aluno-aluno e professor-educador se mostram fundamentais para que se
possam avaliar melhor os conhecimentos de que os alunos são detentores e aqueles que
76
ainda precisam da mediação dos educadores para serem alcançados. No entanto, é
primordial que todos estejam conscientes do contexto político, econômico e social na
preparação dos conteúdos, dos planos de aulas, das propostas pedagógicas etc. Existe
uma realidade social fora e dentro do estabelecimento escolar que precisa ser avaliada e
pensada no espaço escolar, na sala de aula.
A respeito da vertente da complexidade, um de seus principais expoentes é
Edgar Morin, o criador da teoria da complexidade. Porto e Almeida destacam que essa
terceira tendência
[…] possui como característica central uma crítica epistemológica à
ciência contemporânea [moderna], a partir da incorporação da
temática da complexidade e da perspectiva sistêmica, contribuindo
para o aprofundamento teórico-metodológico em torno das diferentes
estratégias de integração disciplinar. (PORTO; ALMEIDA, 2002, p.
338)
Sobre a teoria da complexidade, Morin (2002) define inicialmente que
complexus significa um tecido construído em conjunto, cuja funcionalidade de todos os
elementos depende da interação e da união de todas as partes. De acordo com o autor, a
extração de um componente impede a complexidade. Transportando esse pensamento
para a educação, compreende-se que ela não funciona e encontra-se estagnada porque o
conhecimento foi dividido em disciplinas.
Frigotto contesta a concepção de delimitação de um objeto de investigação como
um procedimento de fragmentação arbitrária, asseverando que:
A compreensão da categoria totalidade concreta em contraposição à
totalidade caótica, vazia, é imprescindível para entendermos a
interdisciplinaridade como necessidade imperativa na construção do
conhecimento social. A totalidade concreta, como nos adverte Kosik
(1978), não é tudo e nem é a busca do princípio fundador de tudo.
Investigar dentro da concepção da totalidade concreta significa buscar
explicitar, de um objeto de pesquisa delimitado, as múltiplas
77
determinações e mediações históricas que o constituem. A
historicidade dos fatos sociais consiste fundamentalmente na
explicitação da multiplicidade de determinações fundamentais e
secundárias que os produz. (FRIGOTTO, 2011, p. 37)
O autor salienta ainda que a produção do conhecimento precisa do sujeito, que,
embora busque esgotá-lo em sua totalidade, é limitado. O conhecimento humano é
sempre relativo, parcial e incompleto. Além disso, embora a interdisciplinaridade
permita, sobretudo ao campo das ciências sociais, tornar seu objeto de investigação mais
concreto e complexo, diminuindo, assim, o grau de relatividade, imprecisão, a autora
chama a atenção para o fato de que as propostas inter/transdisciplinares têm como
principal obstáculo a atual materialidade histórica, que fragmenta o sujeito por meio da
dominação, da alienação e da exclusão.
Paralelamente a essas correntes, observa-se, em proporção menor, a existência
de pesquisadores, professores, filósofos, educadores e outros que começam a questionar
a forte pressão do poder público pela incorporação da interdisciplinaridade na educação.
Em documentos como os PCNs, congressos, colóquios e nas formações pedagógicas, há
sempre orientações para que os professores proponham atividades de natureza
interdisciplinar. Convém ainda reforçar que crescem os grupos de estudo sobre essa
temática no espaço acadêmico, como o Grupo de Estudos e Pesquisa em
Interdisciplinaridade (Gepi) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), criado em 1981.
No campo dos críticos da interdisciplinaridade está Carneiro Leão, que entende
o surgimento desse movimento como um mecanismo da atualidade para viabilizar a
funcionalidade da ciência moderna no controle e no domínio. Em sua linha de
pensamento: “O que existe é uma disciplinaridade multi, inter, transdisciplinar” (1991,
p. 4). Acrescenta também que não existe muita diferença entre ciências naturais, sociais
e humanas, pura ou sistêmica. Em sua ótica, todas estão preocupadas em transformar o
78
real em objeto, em operacionalizá-lo para conseguir apreender o saber e expandir o
poder.
Com relação à participação das entidades na discussão do tema da
interdisciplinaridade, no artigo “O mito da interdisciplinaridade: história e
institucionalização de uma ideologia” (2013), Luiz C. Martino e Katrine Tokarski
Boaventura se mostram mais indignados porque elas visam a atribuir à
interdisciplinaridade o papel de formadora de conhecimento, embora não se tenha ainda
uma definição mais precisa do que seja interdisciplinaridade e não se conheçam seus
procedimentos epistemológicos. Explanam também que, em 1968, a Unesco publicou
em sua revista artigos associados apenas ao tema multidisciplinaridade, e a OCDE
organizou um seminário cujo título foi “As ciências sociais em um ponto de virada?”.
Para os autores, não resta dúvida de que essas entidades têm interesse em
colocar em questão o conhecimento científico moderno. Com o intuito de confirmar as
intenções dessas entidades, este estudo se apropria da fala de Luk van Langenhove, que
Martino e Tokarski extraíram do artigo “From opening to rething the social sciences”:
Minha posição pessoal é que é realmente necessária uma reformulação
radical das ciências sociais. As organizações internacionais podem
desempenhar um interessante papel em tal processo, tornando os
governos cientes dos problemas em seus sistemas nacionais de
ciências sociais e estimulando o desenvolvimento de novas
abordagens. A organização institucional das ciências sociais será um
grande obstáculo na mudança das ciências sociais. Os governos
podem intervir no uso do dinheiro público disponível para estimular
novas iniciativas transdisciplinares. (LANGENHOVE, 2004, p. 64
apud MARTINO; BOAVENTURA, 2013, p. 8)
Como considerações finais sobre o movimento interdisciplinar para a produção e
a socialização do conhecimento, é necessário destacar que o desejo de ruptura com o
paradigma precedente parece estar se sobrepondo à realidade e à razão humana. Os
procedimentos utilizados para a mediação do conhecimento precisam ser avaliados em
79
função do contexto histórico, da situação e dos sujeitos envolvidos. Tomar a
interdisciplinaridade como solução para todos os males das ciências naturais, das
ciências sociais e da educação significa adotar uma postura tão ou mais positivista. Não
se questiona o fato de que a investigação nas ciências sociais com a interação de outras
disciplinas permite ao pesquisador um conhecimento mais concreto de seu objeto;
porém, o que chama a atenção é a tentativa de mascarar suas limitações.
Retomando as críticas sobre a interdisciplinaridade, cumpre dizer também que
seu enfoque epistemológico e pedagógico está ainda em processo de construção.
Existem apenas definições imprecisas sobre o que é a interdisciplinaridade e uma
fundamentação teórico-metodológica que parece desconsiderar a materialidade
histórica. A teoria da complexidade moriniana, ao visar ao todo, pode promover a
superficialidade do conhecimento, gerando, assim, um conhecimento ainda mais
fragmentado.
Com o interesse de compreender melhor o modo como a educação se processa
na modernidade e/ou na pós-modernidade e sendo consciente de que o ato de educar não
se restringe a práticas e a teorias educativas, esta pesquisa considera primordial abordar
a questão educativa sob a perspectiva dos estudos sociológicos e filosóficos. Como
afirma Frigotto (2011), o conhecimento de forma mais totalizante de si e do mundo só é
possível quando os fatores histórico-materiais e culturais são contemplados na formação
do sujeito. Em contrapartida, independentemente da pluri/inter/transdisciplinaridade e
de todos os outros tipos de mediação do conhecimento, a negligência da materialidade
histórica, de modo (in)consciente, aponta para uma ação pedagógica de caráter
reprodutor, que não apenas contribui para a fragmentação, a alienação humana, bem
como impede sua humanização.
80
2.2
EDUCAÇÃO COMO REDENÇÃO, REPRODUÇÃO E TRANSFORMAÇÃO:
OS TIPOS DE AÇÕES MEDIADAS
O filósofo Cipriano Luckesi (1994) identificou três tendências filosóficas de
interpretação da educação: a redentora, que compreende a educação como uma forma
de salvar a sociedade de suas mazelas; a reprodutora, que considera o espaço escolar
como um lugar de preparação para a vida em sociedade, um espaço cuja finalidade é
reproduzir a sociedade tal como ela está, de modo a perpetuá-la; e a transformadora,
que se dá quando o educador, a escola age como instância mediadora, de modo a
entender a e a viver na sociedade.
No caso da terceira tendência, convém explicitar que a ação pedagógica terá o
intuito de problematizar os fatos sociais, e não apenas transmiti-los, como se os alunos
fossem um depósito. Nessa ação, o educador, o professor leva em conta os sujeitos, o
contexto de interação, as ideologias e os fatores políticos, econômicos, sociais e
pedagógicos. Esta fala de Dermeval Saviani vem reforçar tal sentido de educação:
Um processo que se caracteriza por uma atividade mediadora no seio
da prática social global. Tem-se, pois, como premissa básica que a
educação está sempre referida a uma sociedade concreta,
historicamente situada. […] Como atividade mediadora, a educação se
situa em face das demais manifestações sociais em termos de ação
recíproca. A fim de determinar o tipo de ação exercida pela educação
sobre diferentes setores da sociedade, bem como o tipo de ação que
sofre das demais forças sociais, é preciso, para cada sociedade,
examinar as manifestações fundamentais e derivadas, as contradições
principais e secundárias. (SAVIANI, 1980, p. 120)
Nesse trecho, compreende-se que a ação mediadora considera o sujeito, sua
realidade e sua historicidade, bem como os conteúdos e as habilidades escolares, visto
que eles também são parte integrante da sociedade. E é nesse confronto de
81
conhecimento que se acredita construir um novo saber. Para finalizar, Saviani (1980)
chama essa ação de pedagógico-histórico-crítica e acrescenta que ela surgiu nas escolas
públicas, visando a estabelecer um modo de agir que democratizasse não somente o
acesso à educação, mas também ao conhecimento.
Na leitura de Luckesi (1994), a compreensão da educação como redentora não
significa apenas o intuito de livrar o ser humano de seus possíveis “desvios”, mas
também de garantir o bem-estar social, a integração da sociedade e dos indivíduos. No
dicionário de Aurélio B. H. Ferreira (2008, p. 689), um dos significados do termo
“redenção” é: “O resgate do gênero humano por Jesus, sob o aspecto da libertação da
escravidão do pecado.” Isso remete a religião, Igreja e mudança de conduta, de
comportamento.
Sabe-se que a Igreja Católica controlou não apenas a formação dos indivíduos
no espaço social, mas também no escolar, durante toda a Idade Média. Ela tinha o
direito de expiar, perdoar e impor sanções aos indivíduos. Cambi (1999) afirma que a
Igreja estabeleceu na escola determinadas práxis ao professor, como o ato de premiar e
castigar, que ainda estão presentes no imaginário de algumas pessoas.
Neste excerto, o autor sintetiza o domínio ideológico da Igreja Católica sobre a
humanidade:
O cuidado educativo que a Idade Média dedica ao imaginário nos
indica não só a alta taxa de ideologia que atravessa aquela sociedade
(feudal e depois mercantil), agregando ao aspecto religioso uma visão
do mundo que sutilmente se difunde, modelando expressões e
comportamentos, temores e esperanças, convicções e ações, como
também o caráter autoritário, dogmático, conformista dessa ação
educativa, da qual são depositárias as classes cultas e dotadas de poder
— os oradores, os eclesiásticos in primis —, que agem por meio de
muitos instrumentos (da palavra à imagem, ao rito etc.), de modo
“microfísico” (ou micropsíquico), construindo um tecido uniforme e
profundo (que age na profundeza do indivíduo) na vida social, um
tecido persistente e que nem mesmo as aventuras do Moderno
82
conseguirão transformar completamente e muito menos remover.
(CAMBI, 1999, p. 148; grifo nosso)
Todavia, Luckesi destaca que a concepção da educação como redentora não se
restringiu à Igreja, a João A. Comênio, escritor da Didacta magna. Os enciclopedistas
da Revolução Francesa (pedagogia tradicional) e os pedagogos do século XIX
(pedagogia nova) também “consideram a sociedade como um todo orgânico que deve
ser mantido e restaurado através da educação” (LUCKESI, 1994, p. 41).
No século XVII, período da Reforma e da Contrarreforma, da revolução
burguesa, tem-se o surgimento da escola moderna, organizada e administrada pelo
Estado, cujo objetivo será o de formar cidadãos, técnicos, intelectuais. Em face dessa
racionalização escolar, a formação religiosa vai perdendo de modo gradativo seu
sentido. Segundo Franco Cambi (1999), a instituição escolar e o poder público
começam a assumir, nesse cenário, a formação do homem civil, fixando-lhes regras para
falar, vestir, comer, comportar-se etc.
No século XVIII, a escola se caracteriza, em particular, por ser laica, racional,
científica e por rediscutir a liberdade individual com base nos princípios dos ideais
iluministas. Parece contundente, entretanto, sublinhar que o filósofo Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778) expressava nesse contexto certa insatisfação com o sistema
escolar, pois este servia aos interesses da elite dirigente do Antigo Regime. A proposta
rousseauniana de renaturalização do homem, corrompido pelo luxo das sociedades
modernas, apresentada em seu romance Emílio, parece reforçar tal sentimento:
Viver é o ofício que lhes quero ensinar. Saindo das minhas mãos, ele
não será, admito, nem magistrado, nem soldado, nem padre; será antes
de tudo um homem: tudo aquilo que um homem deve ser, ele saberá
sê-lo, neste caso como qualquer um; e, por mais que a fortuna possa
fazê-lo mudar de condição, ele se encontrará sempre na sua.
(ROUSSEAU, 1979)
83
Por outro lado, o iluminista Immanuel Kant (1724-1804) tinha a educação como
um instrumento que possibilitaria à natureza humana se tornar melhor e,
consequentemente, alcançar a felicidade da humanidade. Apesar de ser racionalista, sua
concepção pedagógica estava assentada na redenção, pois confiava à educação a
construção de uma sociedade mais harmoniosa. Carvalho (2004) afirma que Kant via o
homem como um ser dotado de potencialidades, e a educação, como o meio de
aperfeiçoá-las, de polir as imperfeições humanas.
As ideologias da Revolução Francesa — liberdade, igualdade e fraternidade — e
os interesses burgueses e políticos na fase jacobina e, posteriormente, na fase
napoleônica culminaram no advento de uma escola contemporânea estatal e
centralizada. Contudo, a democratização do ensino básico, uma das bandeiras dos
liberais revolucionários, só se concretizou após a Revolução Industrial.
Com o desenvolvimento do capitalismo, a função da escola é revista, advindo
uma formação com a finalidade de ajustar o cidadão às novas necessidades do trabalho e
da sociedade. Com efeito, há o aparecimento da pedagogia liberal renovada tecnicista
(metodologia áudio-oral e metodologia audiovisual), baseada nas teorias psicológicas
comportamentalistas e biológicas, cujo foco é oferecer uma educação diferenciada,
voltada para as aptidões individuais (LIBÂNEO, 2009).
Nasce, portanto, a tendência reprodutora, que interpretará a educação como parte
integrante da sociedade. Ou seja, a escola passa a existir para servir à sociedade, a suas
necessidades. É essencial esclarecer que a tendência reprodutora não representa uma
proposta pedagógica, como as anteriores, mas demonstra como a educação atua na
modernidade (LUCKESI, 1994, p. 42).
No entanto, antes de adentramos a análise das ações reprodutoras da educação,
vale dizer que os pensadores em questão vão demonstrar em suas abordagens imagens
84
otimistas, pessimistas e outras mais realistas do papel da educação para a sociedade.
Como procedimento metodológico, este estudo vai estabelecer, inicialmente, a distinção
entre esses três grupos, a fim de que se possa ter uma percepção mais nítida das ações
pedagógicas.
Com base nas tendências filosófico-políticas de Cipriano Luckesi (1994), no
primeiro grupo de teóricos está Emile Durkheim, que enxerga a educação como uma
instância com poder de tornar melhor a vida da sociedade, do ser humano, da
humanidade. Isso revela uma visão redentora da educação.
O segundo grupo, composto por Louis Althusser, Pierre Bourdieu e Jean-Claude
Passeron, vai demonstrá-la como uma instância da classe dominante, uma ação
reprodutora e, por conseguinte, se põe a expor e a denunciar as incongruências das
escolas, das instituições educacionais e universitárias.
Karl Marx, Antonio Gramsci, Max Weber, István Mészáros e Hannah Arendt
podem ser enquadrados no terceiro grupo de teóricos, na medida em que não refutam o
papel alienante da educação na sociedade e reconhecem seus condicionantes históricosociais; porém, buscam brechas dentro da realidade social para que o indivíduo seja
mais consciente de sua existência e das medidas econômicas, políticas e sociais tomadas
no contexto social. No caso de Gramsci e Mészáros, convém dizer que eles veem o
professor como um agente contra a internalização das ideologias dogmáticas e
alienantes.
85
2.2.1 A educação redentora de Emile Durkheim
Em meados do século XIX, ancorado nos aportes da filosofia positivista de
Auguste Comte, o sociólogo estruturalista Emile Durkheim (2007) foi quem se
debruçou na análise, em específico, do papel da educação na coesão social e na
demonstração da semelhança do sistema educacional com o da sociedade. Para
Durkheim, a educação era fundamental, pois atuava na socialização do sujeito.
No que diz respeito à sociedade moderna, Durkheim verificou a presença de
grupos diferentes exercendo papéis sociais diferentes, mas vivendo de forma harmônica.
Em uma tribo de índios, em que todos desempenham a mesma função, o autor também
observou certa solidariedade entre os sujeitos; entretanto, destacou que esta tinha
dinâmicas diferentes.
No caso da escola, deparou-se com o mesmo fenômeno social: a presença de
uma estrutura fixa, comum a todas, porém apresentando algumas variáveis em função
do ideal de ser humano que se pretende formar. Em ambos os espaços, constatou-se a
existência de uma consciência coletiva, de uma coesão social, apesar da diversidade de
crenças e de valores presentes nas grandes cidades modernas. A título de exemplo, na
sociedade brasileira existem muitas escolas que pregam, sobretudo, uma educação laica,
mas também há as que visam a uma orientação religiosa específica e outras que
vislumbram um ensino ecumênico. Além disso, é possível ter nessas vertentes religiosas
pessoas que não compartilham da mesma crença, porém estudam, trabalham e
convivem.
Durkheim aponta, ainda, como elementos de semelhança entre a sociedade e a
escola as crenças, as práticas morais, as tradições nacionais e outros valores que são
86
transmitidos em ambos os ambientes com o objetivo de construir nos indivíduos o
sentimento de pertencer a um grupo, a uma coletividade. Na escola, a particularidade do
ato de educar está em propiciar para a sociedade uma instrução sistematizada com o
propósito de preparar as crianças, os indivíduos para a vida.
Como proposta pedagógica, esta enunciação de Durkheim expressa sua
concepção da educação:
A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que
ainda não estão maduras para a vida social. Tem por objeto suscitar e
desenvolver na criança certo número de estados físicos, intelectuais e
morais que lhe exigem a sociedade política no seu conjunto e o meio
ao qual se destina particularmente. (DURKHEIM, 2007, p. 14)
É impossível não comentar que a concepção durkheimiana gera inicialmente
certo desconforto ao colocar a existência humana condicionada à ordem social. Por
outro lado, as grandes cidades, compostas de sujeitos de origens, culturas, profissões
diversas etc., precisam da educação, da escola para preservar parte da consciência, da
moral coletiva. O autor chama a atenção para a ameaça do sentimento individualista na
harmonia social nesse tipo de sociedade heterogênea.
Na perspectiva durkheimiana, a sociedade é que faz o ser humano. Os pais, os
familiares transmitem valores, crenças, costumes, regras às crianças para que elas
possam viver com outros indivíduos e construir sua identidade. No entanto, ele não
relativiza que é por meio do ser humano, de sua capacidade representativa que existe a
sociedade.
Este ser social não aparece completo na constituição primitiva do
homem… Foi a própria sociedade, à medida que se formou e
consolidou, que tirou do seu próprio seio as grandes forças morais…
A criança, ao entrar na vida, não traz consigo mais do que a sua
natureza de indivíduo. A sociedade encontra-se, pois, por assim dizer,
a cada nova geração, na presença de uma tábua quase rasa sobre a qual
87
é necessário começar [a se] constituir de novo... (DURKHEIM, 2007,
p. 15)
No combate aos filósofos e pedagogos que concebiam a educação como um
constructo individual e se opunham à teoria da educação como algo social, Durkheim
retrucava as críticas sob a alegação de que suas asserções haviam sido feitas com base
em observações, fatos pautados pelos critérios científicos. Como modelo de ensino,
defendia um ensino público e laico. Como Marx, também tinha subjacente a suas teorias
a ideia de que a educação, no contexto capitalista, agia na reprodução da organização
social. No entanto, Marx sonhava com uma ação pedagógica transformadora/crítica.
Após o estudo do professor reflexivo de natureza neoliberal, verifica-se nessa
vertente o desejo do retorno de uma educação como aliada da paz social, como uma
entidade moralizante, bem semelhante do ideário de Durkheim. A respeito dessa busca
dos valores tradicionais, Apple (2006), pensador da educação pós-moderna, vem
confirmar tal suspeita, ressaltando que existem neoliberalistas pregando o retorno do
patriotismo, dos princípios moralizantes, como uma forma de controle social. A título
de exemplo, o autor cita William Bennett, que foi ex-secretário da Educação nos
Estados Unidos e escreveu um livro com “narrativas morais”, destinado ao público
infantil.
2.2.2 O poder ideológico e segregativo da instituição escolar
Adverso ao sistema capitalista, Louis Althusser (1918-1990) se engajou em
apresentar o modo como a ideologia burguesa se fortaleceu na sociedade para manter o
88
poder do Estado burguês. Concernente ao papel da educação, o autor expressa certo
pessimismo, pois não enxerga a instituição escolar como um instrumento de
transformação social, mas como um espaço reprodutor, difusor das ideologias da classe
dominante.
Em Aparelhos ideológicos de Estado (1985), Althusser defende que as
ideologias da classe dominante estão disseminadas tanto na superestrutura quanto na
infraestrutura social. Vale destacar que, no pensamento marxista, a superestrutura
comportava o jurídico-político (o direito e o Estado) e o ideológico (as diferentes
ideologias: religiosa, moral, jurídica etc.), e a infraestrutura era a “unidade” das forças
produtivas com as relações de produção. Nesse nível, as ideologias dominadoras eram
apenas impostas.
Para explicar a alienação, a dominação do indivíduo pelo sistema de produção
capitalista, Althusser traz o conceito de mecanismo de sujeição, que se instaura quando
“o agente se reconhece como sujeito e se sujeita a um Sujeito absoluto” (1985, p. 8) a
partir de um falso pensamento, de uma crença que lhe foi incutida na prática social, a
saber, a ideia disseminada, introjetada na sociedade e reforçada na escola de que a
qualificação assegura a empregabilidade do indivíduo.
Almejando entender o funcionamento da ideologia na sociedade, Althusser faz a
distinção entre o aparelho repressor do Estado (ARE) e o aparelho ideológico do Estado
(AIE). O primeiro compreende o governo, a administração, as Forças Armadas, a
polícia, os tribunais, as prisões, impondo a violência física (in)direta e (i)legal. O último
constitui o aparelho escolar, o aparelho familiar, o aparelho religioso, o aparelho
político etc. Em suma, as diferentes instituições e organizações que fazem parte do
sistema.
89
Um aparelho ideológico de Estado é um sistema de instituições, organizações e
práticas correspondentes, definidas. Nas instituições, organizações e práticas desse
sistema é realizada toda a ideologia de Estado ou uma parte dessa ideologia (em geral,
uma combinação típica de certos elementos). A ideologia realizada em um AIE garante
sua unidade de sistema “ancorado” em funções materiais, próprias de cada AIE, que não
são redutíveis a essa ideologia, mas lhe servem de “suporte” (ALTHUSSER, 2008, p.
104).
Deve-se mencionar como distinção desses dois aparelhos ainda o fato de que a
Igreja, a escola, os partidos funcionam valendo-se de modo predominante da ideologia.
A polícia e a Justiça se utilizam, em particular, da força física ou da força legal. A
articulação entre o ARE e o AIE, apoiados nas ideologias da classe dominante,
corrobora a reprodução das relações de produção. No caso do sistema escolar, o ARE
determina as leis, as diretrizes educacionais, e a escola, com a legitimação dos pais, da
sociedade, as aplica.
Althusser concebe a escola como o AIE dominante no sistema capitalista.
Menciona que o principal AIE, anteriormente, era a Igreja, atuando nas funções religiosas,
educacionais, culturais e até editoriais. Com a ascensão da burguesia e o declínio da
aristocracia, o aparelho ideológico escolar se sobrepõe ao da Igreja. Um poder de
dominação que se faz de forma sutil e com o consentimento da sociedade, que não vê seu
poder nocivo (ALTHUSSER, 2008 p. 168).
Em Aparelhos ideológicos de Estado (1985), o autor faz esta descrição da
escola:
Ela se encarrega das crianças de todas as classes sociais, desde o
Maternal, e desde o Maternal ela lhes inculca, durante anos,
precisamente durante aqueles em que a criança é mais “vulnerável”,
espremida entre o aparelho de Estado familiar e o aparelho de Estado
escolar, os saberes contidos na ideologia dominante (o francês, o
90
cálculo, a história, as ciências, a literatura), ou, simplesmente, a
ideologia dominante em estado puro (moral, instrução cívica,
filosofia). Algures, por volta do 16o ano, uma enorme massa de
crianças entra “na produção”: são os operários ou os pequenos
camponeses. Uma outra parte da juventude escolarizável prossegue: e,
seja como for, caminha para os cargos dos pequenos e médios
quadros, empregados, funcionários pequenos e médios, pequenos
burgueses de todo tipo. Uma última parcela chega ao final do
percurso, seja para cair no semidesemprego intelectual, seja para
fornecer, além dos “intelectuais do trabalhador coletivo”, os agentes
da exploração (capitalistas, gerentes), os agentes da repressão
(militares, polícias, políticos, administradores) e os profissionais da
ideologia (padres de toda a espécie, que em sua maioria são leigos
convictos). (ALTHUSSER, 1985, p. 79)
Porém, reconhece que, diferentemente do ARE, formado pela classe dominante,
o AIE, constituído de sujeitos de diversas classes sociais, pode servir como lugar de luta
de classes dos que perderam o poder, bem como dos que não se submetem à exploração
do sistema vigente. Em suma, as ideologias do Estado, embora sejam as predominantes,
não são as únicas; há sempre relações de força.
Outro exemplo são os partidos políticos com ideologias diversas da do Estado,
mas que pertencem ao AIE. O Estado lhes dá direitos legais para que possam atuar. Em
compensação, eles devem seguir as regras do sistema. No caso da instituição escolar,
Althusser menciona a ação heroica de alguns professores que vão de encontro às
ideologias do sistema vigente. Contudo, assinala que a maioria desses profissionais age
como um simples reprodutor da ideologia dominante: empenha-se em seguir as recentes
orientações, os métodos tidos como novos e não reflete sobre sua sujeição ao sistema
vigente.
Quanto à contribuição da teoria althusseriana para a presente pesquisa, ela serve
para mostrar que a escola é um espaço político e nada neutro. Tanto ao se silenciar
quanto ao se pronunciar, sua função preside, em geral, em inculcar suas ideologias.
Todavia, Althusser parece desconsiderar que a manutenção do poder do Estado
demanda certo equilíbrio em suas decisões e negociações para que suas ideologias não
91
sejam postas em xeque por outras ideologias, mesmo em espaço no qual haja pouca
consciência política.
No caso do professor, observa-se que há especialistas que se colocam a contestar
a formação de caráter pragmático proposta aos docentes e pleiteiam que os cursos de
licenciatura considerem a educação como um processo histórico e crítico. Ainda que
essa posição não seja predominante, ela traz contribuições importantes para o professor,
pois revela as incongruências do professor reflexivo, gerando discussões no campo.
A respeito das ações de natureza reprodutora no contexto educativo, o presente
estudo não pode deixar de mencionar igualmente as pesquisas de Pierre Bourdieu e
Jean-Claude Passeron (2011) nos anos 1960, nas quais é retratado o aspecto segregativo
da educação e é colocado em xeque o discurso da entidade escolar como lugar de
reparação das desigualdades sociais, de construção de uma sociedade mais justa, mais
democrática e emancipadora. Para esses autores, a escola faz exatamente o oposto, pois
privilegia a cultura das elites e ao mesmo tempo renega, negligencia e tenta apagar a
cultura das classes desfavorecidas.
Em Les héritiers (1964), Bourdieu e Passeron comprovam que a escola reproduz
desigualdades sociais no contexto educativo, pautados por estudos estatísticos
realizados nos anos 1961 e 1962 na França. Como procedimento metodológico, os
autores levaram em conta a instrução e a profissão dos pais. Quanto ao resultado,
verificaram que apenas 6% dos filhos de operários conseguiram chegar ao ensino
superior.
Na tentativa de provar o papel segregativo da escola, um dos principais
conceitos criados por Bourdieu (1964) foi o de capital cultural, que consistiu em
relacionar o domínio ou a ausência de conhecimentos julgados como relevantes pelo
Estado com o sucesso ou o fracasso escolar da criança. Quanto ao procedimento
92
metodológico adotado, o autor se engajou em definir três tipos de capital cultural: o
incorporado, que é assimilado no ambiente familiar e transmitido quase de forma
imperceptível; o objetivado, que está materializado na aquisição de livros, quadros,
obras de arte, viagens; e o institucionalizado, que diz respeito aos diplomas, aos
certificados expedidos pelas instituições de ensino.
Com relação ao capital cultural incorporado, os autores em questão mencionam,
como um dos exemplos, a norma culta, instituída pelos Estados como o falar “correto”,
cujo domínio, assim como o dinheiro, dá indubitavelmente aos sujeitos maiores
oportunidades de ascender socialmente. Cabe ressaltar que esse bem cultural, em geral,
encontra-se nas mãos sobretudo das classes alta e média, que reconhecem seu valor e
buscam, portanto, transmiti-lo aos filhos nos ambientes familiar e escolar como forma
de distinção social.
Convém explicitar que Bourdieu e Passeron (2011) não questionam o ensinoaprendizado da norma culta; porém, criticam a postura da escola de tratá-la como
verdade absoluta, mascarando e deixando de explicitar os reais motivos pelos quais esse
falar se sobrepõe a outros que também fazem parte da realidade de um número
expressivo de cidadãos.
No escopo do capital objetivado, a situação também é similar. Os bens culturais
contemplados pela escola são os quadros, as esculturas, as músicas, os clássicos
outorgados pelas classes alta e média. Já a cultura dos grupos desfavorecidos é, em
geral, desconsiderada no espaço escolar. Evidencia-se, portanto, que estes deverão se
esforçar muito mais para apreender o modo de falar e de agir que a sociedade legitima
como de “bom gosto”.
No trecho a seguir, extraído de Les héritiers (1964), Bourdieu e Passeron
reforçam as diferenças associadas à formação cultural entre os estudantes de famílias
93
mais e menos favorecidas, explicitadas no último parágrafo, e também apontam para a
inabilidade da escola em atenuar as diferenças entre tais grupos:
Os alunos mais favorecidos não devem só a seu meio de origem os
hábitos, os ensinamentos e as atitudes que os ajudam diretamente em
suas tarefas escolares; eles também herdam desse ambiente saberes e
um saber-fazer, gostos e um “bom gosto” cujo rendimento escolar
embora indireto, nem por isso é menos certo. A cultura “livre”,
condição implícita para o êxito acadêmico em algumas disciplinas, é
partilhada de forma muito desigual entre os estudantes provenientes
de meios sociais distintos, sem que a desigualdade de renda possa
explicar a forte diferença dos resultados. O privilégio cultural é visível
quando se trata da familiaridade com as obras, o que só ocorre com
idas assíduas ao teatro, ao museu ou ao concerto (visita que não é
organizada pela escola, ou é realizada de maneira esporádica) […]. (p.
30)8
Como ilustração de capital institucionalizado, é interessante mencionar que os
intercâmbios culturais e as formações de mestrado e doutorado no exterior se revelam
como o novo saber de consumo cobiçado pelas elites brasileiras. Ainda segundo
Bourdieu e Passeron (1964), quanto maior o investimento, o grau de dificuldade na
obtenção de títulos, mais legitimidade, mais valor a sociedade parece lhes conferir.
Sobre os estudos bourdieusianos em particular, é primordial abordar o conceito
de violência simbólica, uma forma de agressão que não se instaura pela força física, mas
pela imposição de práticas e de ideologias de um grupo de maior poder político,
econômico e social a outros de menor prestígio, sem explicações lógicas pertinentes e
de forma dissimulada. Em outras palavras, esse tipo de violência se caracteriza por seu
caráter de dominação subjetiva, haja vista que é tido como legítimo tanto para o
No original: “Les étudiants les plus favorisés ne doivent pas seulement à leur milieu d’origine des
habitudes, des entraînements et des attitudes qui les servent directement dans leurs tâches scolaires; ils
en héritent aussi des savoirs et un savoir-faire, des goûts et un ‘bon gout’ dont la rentabilité scolaire,
pour être indirecte, n’en est pas moins certaine. La culture ‘libre‘, condition implicite de la réussite
universitaire en certaines disciplines, est très inégalement répartie entre les étudiants originaires de
milieu différents, sans que l’inégalité des revenus puisse expliquer les écarts constates. Le privilège
culturel est manifeste lorsqu’il s’agit de la familiarité avec les oeuvres que seule peut donner la
fréquentation régulière du théâtre, du musée ou du concert (fréquentation qui n’est pas organisée par
l’Ecole, ou seulement de façon sporadique) […].”
8
94
dominador quanto para o dominado, por meio, em geral, de um “habitus social”, ou
seja, de uma prática cultural e social que se constrói culturalmente por meio da
transmissão de costumes e crenças mediados, em geral por pais, familiares e amigos de
determinada comunidade.
Em A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino (2011), os
sociólogos Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron versam também sobre o sistema de
ensino francês e sua função na sociedade no final da década de 1960, descrevendo os
mecanismos de violência simbólica praticados pela instituição escolar, pelos professores
e muitas vezes por outros agentes da educação. Segundo os autores, tal violência se
constitui, em geral, por meio de práticas pedagógicas que são impostas, inculcadas de
forma arbitrária, como o estabelecimento do francês parisiense como o mais legítimo,
sendo os outros dialetos abordados como se fossem um “desvio” da norma.
Na França, os alunos que ousavam se comunicar em seus dialetos no espaço
escolar no período da formação do Estado-nação eram punidos pelos professores,
inspetores e demais educadores. Além disso, os povos que têm como idioma a língua
francesa, apesar de todo um discurso em prol do plurilinguismo na atualidade, ainda
escutam discursos preconceituosos sobre seu modo de falar por não corresponder ao
sotaque do parisiense (CALVET, 2007). No ensino-aprendizado de FLE, a percepção
que se tem ainda é a de que o francês canadense, o suíço, o argelino etc. são raramente
abordados nas aulas.
No âmbito do ensino, surgem sempre novas metodologias e teorias, prometendo
a fórmula mágica do processo de ensino-aprendizado e refutando a anterior. Com efeito,
surgem também mais livros, suportes didáticos vinculados à recente orientação.
Subjacente ao discurso de mudança do paradigma de pensamento, constata-se que há
95
um mercado do conhecimento que lucra não apenas com os manuais de ensino, a
literatura sobre a temática em enfoque, mas também com palestras, formações etc.
É oportuno salientar que muitas formações propostas para os professores a partir
da década de 1970 se fundamentam em um discurso neoliberalista, que prega a
necessidade dos docentes de buscarem cursos de curta ou longa duração para poder se
manter no mercado de trabalho. Atualmente, o número de universidades particulares
que oferecem pós-graduação de níveis lato sensu e stricto sensu, sem preocupação com
a qualidade, continua a crescer com o aval do governo.
Com relação às críticas aos estudos bourdieusianos, o primeiro item observado
foi sua tentativa de reduzir todos os espaços escolares a uma forma semelhante.
Retomando o que já foi dito na seção precedente, ainda que sejam poucas as instituições
de ensino que promovam uma educação democrática, emancipadora, não podemos
negligenciar suas contribuições para a transformação do indivíduo e da sociedade.
Se, nos estudos durkheimianos, a ordem social se revela determinante nas escolhas
dos sujeitos, no universo bourdieusiano o capital econômico (renda, salários, imóveis), o
capital cultural (saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos) e o capital
social (relações sociais que podem ser convertidas em “capital”) parecem limitar o
deslocamento, a mobilidade do sujeito no campo social. Nessa perspectiva, o sujeito é
apenas uma marionete do Estado, do capital, e não vê a educação como um espaço no
qual existem forças políticas, de reação ao discurso dominante.
96
2.2.3 Propostas e brechas de uma educação para o devir
Contra o sistema capitalista, surgiram pensadores, como Karl Marx e Friedrich
Engels, que condenavam a desigualdade social, a alienação do homem à máquina e o
trabalho infantil. Seus estudos teóricos sobre o sistema capitalista e sua participação
ativa nas lutas dos proletários contra a burguesia trouxeram o espectro do comunismo,
que mexeu com toda a Europa.
Embora a educação não seja sua temática dominante, Karl Marx não somente
denunciou a ação reprodutora da educação de seu tempo. Ele trouxe, também, propostas
para um sistema de ensino mais democrático e emancipador. No Manifesto do Partido
Comunista (MARX; ENGELS, 2011), a “educação pública e gratuita de todas as
crianças” faz parte de suas reivindicações sociais.
Entendendo a ação pedagógica como transformadora, ou seja, como uma forma
de mediação, que oferece ao homem a possibilidade de se reinventar ao longo de sua
existência, Marx e Engels (2009) pleiteavam que os proletariados tivessem uma
educação politécnica, que fosse capaz de desenvolver o intelecto, o físico e lhes
permitisse viver melhor. Em contrapartida, condenavam as instruções tecnicistas, que
restringiam o sujeito à realização de um trabalho repetitivo e alienador. Não queriam o
retorno da educação pré-capitalista, mas ensejavam que, com a mudança da organização
social — o fim das classes sociais —, pudesse advir uma nova forma de educação.
No que tange à concepção marxista de alienação, ela se estabelece neste tipo de
situação:
O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz,
quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O
97
trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto maior
número de bens produz. Com a valorização do mundo das coisas,
aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens.
O trabalho não produz apenas mercadoria; produz-se também a si
mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na
mesma proporção com que produz bens. (Manuscritos econômicofilosóficos, MARX; ENGELS, 1962, p. 111)
Atualmente, a exaustiva cobrança escolar com relação à avaliação nos leva a
acreditar que o real interesse da instituição de ensino, do Estado e de dirigentes consiste
em promover a alienação de alunos e professores, pois, como discentes, realizam suas
atividades escolares para “ganhar” notas em recompensa de trabalhos, e, como docentes,
perdem longas horas na preparação e nas correções de exames, respectivamente. Já o
aprendizado, que deveria ser objeto central no processo de ensino-aprendizado, é tido
muitas vezes como fator de menor relevância no espaço escolar.
No que tange à relação entre teoria-prática, vale lembrar que os estudos
marxistas foram de extrema relevância, pois propõem um critério de apropriação do
conhecimento que considera a historicidade e coloca em questão a proposta na qual o
objeto de pesquisa é analisado por si só. Deve-se comentar que os expoentes do
professor reflexivo-crítico e da vertente interdisciplinar crítico-social partem dos
pressupostos marxistas.
Nas minhas pesquisas cheguei à conclusão de que as relações
jurídicas, assim como as formas de Estado, não podem ser
compreendidas por si mesmas, nem pela evolução geral do espírito
humano, inserindo-se pelo contrário, nas condições materiais de
existência. […] na produção social de sua existência os homens
estabelecem relações, necessárias, independentes de sua vontade,
relações de produção que correspondem a um determinado grau de
desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas
relações de produção constitui a estrutura econômica, a base concreta
sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de
produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida
social, política e intelectual em geral. (MARX, 1962. p. 24)
98
É oportuno frisar que as críticas feitas à escola não desconsideram sua
importância para a sociedade e para a formação dos jovens; entretanto, revelam o desejo
de se ter uma educação, de fato, democrática. Sobre as considerações de Marx e de
Engels concernentes ao sistema educativo, elas não apenas foram essenciais para o
surgimento de novas pesquisas no âmbito da educação, mas também contribuíram para
pensar o papel da educação na sociedade, além do contexto escolar.
Como forma de atuação crítica sobre a realidade, é essencial mencionar Antonio
Gramsci (1891-1937), que defendeu o advento de uma contracultura para fazer frente à
hegemonia cultural da classe dominante, diluída entre o Estado e a sociedade civil. De
acordo com o autor, os trabalhadores precisavam participar do patrimônio cultural de
modo consciente e crítico. Nessa perspectiva, reivindicava que os proletariados se
tornassem intelectuais da contracultura (SCHLESENER, 2002).
É oportuno esclarecer que a concepção gramsciana de intelectual não se
restringe a quem domina um saber culto, mas a todos que conseguem agir como
mediadores na consciência das pessoas. Gramsci os classifica em dois tipos. No
primeiro grupo estão os intelectuais orgânicos, constituídos pela classe dominante e
pelos proletariados, pois ambos lutam por determinada hegemonia, tendo como
principal instrumento o argumento, a defesa de seus pressupostos. Do segundo grupo,
intitulado de tradicional, podem fazer parte padres, bispos, educadores, militares, agindo
de modo conservador e apoiando quem está no poder.
Deve-se dizer que Gramsci assumiu uma posição de destaque dentro do
movimento operário. Infelizmente, não publicou nenhum livro em vida; porém, deixou
vários manuscritos no período em que esteve preso, os quais permitiram a elaboração da
obra Cadernos do cárcere (2002). Sua atuação contra o sistema capitalista foi a de um
99
intelectual, um revolucionário, que lutou por uma Itália mais democrática e contestava
as posições extremistas e idealistas.
Quanto à questão cultural, Schlesener faz esta análise do conceito de cultura
gramsciana:
A cultura é entendida, por volta de 1918-1920, como criação histórica
e produção de uma personalidade própria, de uma identidade de
classe, expressa num “executar bem” porque “pensar bem”; uma
noção vivificada pela ideia de organização, isto é, um modo de ser e
pensar que se elabora por meio das lutas enfrentadas no dia a dia e que
se produz na ação política. A ideia de cultura liga-se à luta por uma
nova ordem social que possibilite uma nova vivência da liberdade, da
individualidade e da cidadania. Essa noção é permeada pela relação
dialética entre teoria e prática, base da reflexão gramsciana,
contrapondo-se, portanto, tanto à concepção burguesa quanto às
noções
socialista
e
marxista-leninista
de
organização.
(SCHLESENER, 2002, p. 10)
Gramsci criticava a educação religiosa, pois a concebia como uma forma de
manipulação e de assujeitamento. Para ele, os pais deveriam educar seus filhos com
base em elementos racionais, permitindo-lhes que fossem capazes de fazer suas próprias
escolhas. E condenava os ensinamentos culturais como um saber enciclopédico,
estático, dogmático, a-histórico, impingindo nos sujeitos informações sem uma análise
crítica. Schlesener faz também estas considerações sobre a ótica gramsciana de cultura:
A cultura apresenta-se, portanto, como saber que se produz na relação
com a ação, o pensar que cria e transforma. É necessário conhecer o
processo histórico, os esforços que os homens fizeram para superar
preconceitos, derrubar privilégios e vencer os limites impostos às
mudanças; o proletariado precisava retomar o passado para
compreender o seu papel no presente e distinguir-se enquanto classe.
(SCHLESENER, 2002, p. 47)
No que concerne à educação formal italiana, também acusou a escola de ser um
organismo de manutenção das desigualdades sociais. Aos filhos de operários era
oferecida uma educação profissionalizante, por meio de um saber fragmentado,
100
enquanto os filhos dos burgueses, das elites tinham acesso a um ensino visando à
formação de intelectuais que agissem na difusão, na inculcação das ideologias
dominantes. Portanto, via também na educação formal o meio de os sujeitos se tornarem
intelectuais. Para tanto, defendeu a educação pública com o propósito de oferecer uma
formação de qualidade e igualitária.
Ainda a respeito das ações de caráter redentor, reprodutor e transformador, os
estudos de Max Weber (1864-1929), com base na fenomenologia nietzschiana,
procuraram demonstrar que a estrutura social não se sedimentava de maneira tão
tranquila e passiva como era apresentado nos estudos durkheimianos. No curso da
história, conquanto muitos sujeitos se submetam passivamente a ações dominadoras, o
autor sublinha que existiram também os que se revoltaram contra o sistema de sua época
e criaram situações inovadoras. Na lógica weberiana, mesmo quando os indivíduos se
submetem às regras sociais, eles os fazem porque têm certos interesses.
Com o intuito de analisar as ações sociais do sujeito/agente, Weber (1991) se
restringiu a elaborar quatro tipologias de ação social: a racional, que se centra na
finalidade; a racional de natureza mais filosófica, voltada para os valores humanos e
éticos; a afetiva, cujo objetivo é a emoção; e a tradicional, visando aos costumes. Isso
correspondia, para o autor, a três tipos de dominação: a racional, objetivando transmitir
conhecimentos especializados e úteis; a tradicional, cujo interesse está em transmitir
valores, condutas de vida, ou seja, é uma dominação de caráter humanístico; e a
carismática, despertando as qualidades heroicas ou dons mágicos. Neste último, ele
verificou certa instabilidade, na medida em que nada explicava a devoção afetiva do
dominado ao dominador.
No sistema capitalista, Weber identificou que a dominação racional é a mais
atuante na sociedade moderna. Acrescido a essa racionalização, o autor observou o
101
fenômeno da “burocratização”, que se constitui na atribuição de deveres para cada
indivíduo de acordo com suas qualificações e aptidões (CARVALHO, 2004).
Weber percebeu que essa burocratização se estendia igualmente ao campo da
pesquisa científica. O controle da pesquisa é detido por um chefe, enquanto os
pesquisadores e docentes ficam separados de seus “meios de produção”. Em síntese, um
processo similar ao das empresas capitalistas, nas quais os operários não têm acesso ao
produto produzido.
No âmbito escolar, pode-se observar que as diretrizes da educação moderna
estão voltadas para a formação de sujeitos racionais, capazes de traçar planos, metas e
estratégias. É possível observar também uma organização escolar com perfil
burocrático: alunos sentados enfileirados, silenciosos, uniformizados e obedientes; e
professores que precisam dominar cada vez mais um saber-fazer específico e respeitar
as orientações pedagógicas e didáticas elaboradas sem a participação do grupo docente.
Nesse contexto, a estratificação dos sujeitos não se dá pela linhagem, mas pelos
diplomas, certificados acadêmicos. Assim, a escola age duplamente na manutenção da
burocratização, pois inculca na criança esse tipo de dominação racional e também forma
sujeitos especializados para o mercado de trabalho. De acordo com Weber
(CARVALHO, 2004), isso ajuda na consolidação do sistema capitalista.
No que reportamos à análise weberiana para a educação, identifica-se
igualmente que a ordem social não tem, nessa perspectiva, total poder sobre o
indivíduo. Os efeitos dos ensinamentos morais sobre uma criança podem gerar ações
previsíveis, mas também é possível que ela refute, questione e lute contra tais
princípios. Para alguns, tais ações talvez sejam vistas como uma ameaça à ordem social;
porém, outros as enxergam como um modo de ruptura da dominação.
102
No entanto, é incontestável que a super-racionalização e a burocratização ao
longo do tempo em vários seguimentos da sociedade tornam cada vez mais difíceis as
ações inovadoras, transformadoras e emancipadoras. Na superação do racionalismo
burocrático, Weber reclama aos educadores, aos professores uma educação que articule
o espírito carismático (irracional/dionisíaco) ao burocrático (racional/apolíneo) em suas
práxis, a fim de que o sujeito não perca sua força criadora (CARVALHO, 2004).
Convém lembrar que alguns expoentes da educação pós-moderna têm renegado
os parâmetros de racionalidade do conhecimento científico e passam a supervalorizar a
emoção. Esse tipo de ação extremista, como já foi dito, não apenas promove no sujeito
uma perda de referência, mas também parece acentuar sua alienação.
Com relação ao sujeito, cabe dizer que se, na modernidade, sua identidade se
constitui em função de uma sociedade com uma estrutura mais fixa e rígida, na pósmodernidade, com a globalização, o organismo social está em dinâmico processo de
(re)construção, de transformação e de convivência com culturas cada vez mais
paradoxais. Compreendendo a identidade humana como um constructo social, concluise, portanto, que ela passou a incorporar tais características (HALL, 2014; BAUMAN,
2013).
De acordo com Bauman, a supervalorização pelo prazer tem desviado a atenção
dos sujeitos. No lugar de pensar sobre sua individualidade, eles deveriam refletir sobre
sua existência de modo mais complexo. No que diz respeito à concepção de cultura na
pós-modernidade, o autor argumenta que:
Hoje a cultura consiste em ofertas, e não em proibições; em
proposições, não em normas. Como Bourdieu observou, a cultura
agora está engajada em fixar tentações e estabelecer estímulos, em
atrair e seduzir, não em produzir uma regulamentação normativa; nas
relações públicas e não na supervisão policial; em produzir, semear e
plantar novos desejos e necessidades, não no cumprimento do dever.
Se há uma coisa para a qual a cultura hoje desempenha o papel de
103
homeostato, esta não é a conservação do estado atual, mas a poderosa
demanda por mudanças constantes (embora, ao contrário da fase
iluminista, se trate de uma mudança sem direção, ou sem rumo
estabelecido de antemão). Seria possível dizer que ela serve tanto às
estratificações e divisões da sociedade, mas a um mercado de
consumo orientado para a rotatividade. (BAUMAN, 2013, p. 18)
O discurso de liberdade proposto na era pós-moderna tem levado os sujeitos a
acreditar que podem fazer suas próprias escolhas. Todavia, o desejo pela estabilidade e
pela segurança no mercado de trabalho, pelo poder nas relações pessoais e pela
aquisição de bens de consumo, impingidos na sociedade, os vem mantendo, em geral,
em ofícios que lhes são desencantadores. Convém mencionar que a incapacidade de
alcançar essa liberdade idealizada, niilista,9 é lida por muitos como uma incompetência
pessoal.
Bauman diz ainda que a busca pelos sujeitos de adquirir os produtos lançados no
mercado, de seguir a moda vigente representa uma maneira de marcar sua
individualidade, identidade e se dissociar, assim, da massa. No entanto, de acordo com
o autor, a segurança e a liberdade parecem ser desejos que entram muitas vezes em
conflito.
Sobre a alienação humana, Bauman explana que:
A caça é uma atividade de tempo integral no palco da modernidade
líquida. Ela consome uma quantidade incomum de atenção e energia,
deixando pouco tempo para qualquer outra coisa. Distrai a atenção do
caráter inerentemente infindável da tarefa e adia para as calengas
gregas — para uma data inexistente — o momento da reflexão e da
percepção face a face da impossibilidade de sua realização. Como
Blaise Pascal observou séculos atrás, as pessoas procuram ocupações
urgentes e opressivas que as impeçam de pensar em si mesmas, e por
9
O principal teórico do niilismo foi Friedrich Nietzsche, visando a demonstrar que a moral moderna nega
a vida, o presente. Tal fenômeno surgiu, inicialmente, com Platão, preconizando que o homem só tem
acesso ao mundo real por meio do intelecto; portanto, o que era perceptível por meio dos sentidos se torna
uma ilusão. Posteriormente, tem-se a ideologia cristã, que promete ao ser humano o paraíso; mas, para
tanto, ele precisa fazer sacrifícios e abdicar dos prazeres terrenos. Com o advento do capitalismo, o
cristianismo é suplantado pela ciência, que também propõe à humanidade um futuro melhor. Com efeito,
o ser humano vai perdendo a consciência de si e de tudo que está em seu entorno, comprometendo, assim,
seu devir, sua superação contínua em busca de uma vida idealizada (JOLIVET, 2001).
104
isso estabelecem como alvo um objeto atraente que possa encantá-las
e seduzi-las. As pessoas querem fugir à necessidade de pensar sobre
sua “condição infeliz”. “É por isso que preferimos a caçada à
captura.” “A posse em si não nos livraria de pensar na morte e na
miséria, mas a caça, sim.” Os pensamentos de Pascal são
concretizados na moda comercializada. (BAUMAN, 2013, p. 30)
Bauman caracteriza esse desejo pela posse como uma forma de vida centrada na
utopia. Portanto, o autor salienta que ela diverge do pensamento utópico do passado, no
qual havia uma preocupação com o futuro da humanidade, indo além dos próprios
interesses pessoais.
Na ótica de Hannah Arendt, a alienação e a burocratização do ser humano foram
um forte agente das barbáries modernas e da banalização do mal. Na defesa de tal ideia,
Arendt argumenta que a valorização do tecnicismo e o desprezo pelo pensamento
reflexivo tornaram os indivíduos insensíveis ao sofrimento alheio. Para cumprir seus
papéis sociais, a autora evidenciou que as pessoas passaram a ser capazes de cometer
atos de extrema crueldade e não demonstram nenhum remorso moral. A título de
exemplo, ela cita a atitude de muitos alemães, e até mesmo judeus, que, embora fossem
tidos como um povo “civilizado”, compactuaram, de maneira ativa ou passiva, com o
sistema nazista, porém se consideram inocentes, como o tenente-coronel Adolf
Eichmann, que exercia a função de identificar os judeus e de os transportar para os
campos de concentração (WAGNER, 2006; ARENDT, 2011).
Com o fim do nazismo, Eichmann foi julgado como responsável pela morte e o
sofrimento de inúmeros judeus; todavia, ele contestava tal afirmação, justificando que
apenas cumpriu ordens e que suas ações estavam fundamentadas na moral kantiana de
que o “princípio de minha vontade deve ser sempre tal que possa se transformar no
princípio de leis gerais”. De acordo com tal argumento, a filósofa judia Hannah Arendt
se pôs a analisar a banalização do mal nos homens que não pensavam, não eram capazes
de julgar suas ações e se colocavam a obedecer e a respeitar as ordens cegamente.
105
Todavia, apesar de reconhecer que o sistema vigente e a organização social também
eram cúmplices de tais barbáries, ela considerava que tal fato não eximia o indivíduo de
sua culpa.
Importa destacar que os atos concebidos como bárbaros, irracionais, praticados
no contexto do nazismo, impulsionaram filósofos, sociólogos e estudiosos, como Max
Horkheimer e Theodor Adorno, a defender a tese de que a teoria tradicional, com base
na técnica, trouxe para a civilização a alienação, e não o esclarecimento, como
afirmavam os pensadores iluministas. Vale acrescentar que Adorno e outros
representantes da Escola de Frankfurt10 constituíram a teoria crítica como forma de
analisar e provar as incongruências da racionalidade moderna (ADORNO, 1995, p.
119). Adorno dizia que:
Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na
civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se
encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação
a sua própria civilização — e não apenas por não terem em sua
arrasadora maioria experimentado a formação nos termos
correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se
encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio
primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que
contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda civilização
venha a explodir, aliás, uma tendência imanente que a caracteriza.
Considero tão urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros
objetivos educacionais por esta prioridade. (ADORNO, 1995, p. 155)
Contra a alienação na formação do sujeito na atual conjuntura, marcada por um
forte consumismo e individualismo, este estudo se vale também das atuais reflexões de
István Mészáros, em A educação para além do capital (2008), que propõe uma ruptura
com a lógica do capital e destaca a importância de uma educação que enxergue as
10
Essa escola foi criada em Frankfurt em 1964 com o propósito de investigar a indústria cultural e o seu
caráter alienador. Embora os expoentes dessa escola tenham se inspirado inicialmente nos princípios
marxistas, eles se mostravam mais pessimistas com relação à emancipação humana. Contrário a Marx,
para essa corrente, a mudança da superestrutura social, ou seja, a tomada da classe operária, de partidos
socialistas e comunistas ao poder representava apenas que os sujeitos poderiam estar sendo submetidos às
ideologias de novos grupos de interesses (ADORNO, 1995).
106
pessoas como sujeitos que não apenas se adaptam às condições políticas, econômicas e
sociais, mas que atuam sobre elas, recriando-se e recriando a história. Na concepção do
autor, as formações que reduzem o sujeito a simples mão de obra para o mercado de
trabalho e para o consumo devem ser substituídas por uma educação que transcenda os
interesses do mercado.
Ao se valer da epígrafe de Paracelso, segundo a qual “A aprendizagem é a nossa
própria vida, desde a juventude até a velhice, de fato quase até a morte; ninguém passa
10 horas sem nada aprender”, Mészáros chama a atenção para o fato de que o ato de
aprender constitui uma ação inerente à existência humana. Todavia, adverte também
que o ato de aprender pode ter efeitos benéficos e nocivos ao ser humano, pois há
aprendizados que contribuem para a libertação dos sujeitos e há os que mascaram,
incutam as verdades, aprisionando-os.
Com esta outra epígrafe do político, poeta e filósofo José Martí, Mészáros
enfatiza que a ação opressora da educação escolar e familiar vem de longa data:
Vem-se à terra como cera — e a sorte nos esvazia em moldes préfabricados. As convenções criadas deformam a existência verdadeira
[…]. As redenções têm se mantido formais — é necessário que sejam
essenciais […]. A liberdade política não estará assegurada se antes
não se assegurar a liberdade espiritual […]. A escola e o lar são as
duas grandes cadeias do homem. (MÉSZÁROS, 2008, p. 21)11
Com relação à educação moderna, Mészáros também não deixa de lhe fazer
severas críticas, pois a enxerga como uma forte aliada do sistema capitalista, propondo
um aprendizado, em geral, de caráter segregador e alienador. Seu principal objetivo é
oferecer uma formação aos sujeitos que garanta o vital funcionamento do capitalismo, o
No original: “Se viene a la tierra como cera, — y el azar nos vacía en moldes prehechos. Las
convenciones creadas deforman la existência verdadeira […]. Las redenciones han venido siendo
formales; — es necessario que sean esenciales […]. La libertad política no estará assegurada, mientras
no se asegura la libertad espiritual […]. La escuela y el hogar son las dos formidables cárceles del
hombre.”
11
107
que vem a reiterar as concepções de inúmeros pensadores explicitadas ao longo deste
estudo.
Como terceira epígrafe, Mészáros se serviu desta fala de Karl Marx:
A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias
e da educação e de que, portanto, homens modificados são produtos
de circunstâncias diferentes e de educação modificada esquece que as
circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o
próprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à
divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à
sociedade […]. A coincidência da modificação das circunstâncias e da
atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente
compreendida como prática transformadora. (MÉSZÁROS, 2008, p.
22)
Nessa epígrafe, Marx não desconsidera que as circunstâncias modificam o ser
humano e a educação; porém, evidencia que tal fenômeno só acontece porque os
sujeitos agem sobre a realidade. Isso demonstra que o ser humano não apenas atua como
reprodutor do mundo, mas também exerce o papel de transformá-lo. No que diz respeito
à necessidade de o educador se educar, pode-se inferir que a lógica estabelecida deve
ser sempre posta em suspeita, em contínua análise.
Na defesa de uma educação do devir e libertadora, Mészáros compartilha
também da concepção de Antonio Gramsci, que vê o sujeito como Homo faber e Homo
sapiens. Adverte que:
As instituições formais de educação certamente são uma parte
importante do sistema global de internalização. Mas apenas uma parte.
Quer os indivíduos participem ou não — por mais ou menos tempo,
mas sempre em um número de anos bastante limitado — das
instituições formais de educação, eles devem ser induzidos a uma
aceitação ativa (ou mais ou menos resignada) dos princípios
reprodutivos orientadores dominantes na própria sociedade,
adequados a sua posição na ordem social, e de acordo com as tarefas
reprodutivas que lhes foram atribuídas. (MÉSZÁROS, 2008, p. 44)
108
Salienta, ainda, que, mesmo nos centros de ensino mais autoritários, as crianças
e os jovens desfrutam de espaços que lhes favorecem o pensamento intelectual, o
aprendizado, dentro ou fora da escola. É oportuno enfatizar que o autor trata do aspecto
educativo em sentido global, ressaltando em suas análises a importância do ato
educativo informal na vida do ser humano.
De fato, da maneira como estão as coisas hoje, a principal função da
educação formal é agir como um cão de guarda autoritário ex officio
para induzir um conformismo generalizado em determinados modos
de interiorização, de forma a subordiná-los às exigências da ordem
estabelecida. O fato de a educação formal não poder ter êxito na
criação de uma conformidade universal não altera o fato de no seu
todo estar orientada para aquele fim […]. (MÉSZÁROS, 2008, p. 15)
De fato, com a tecnologia de informação e comunicação, o domínio ideológico
da escola, da imprensa, da mídia, da Igreja parece mais enfraquecido. Nas redes sociais,
é possível ver um número significativo de comentários e textos que criticam e põem em
xeque esses aparelhos ideológicos do Estado. É claro que há nesses espaços também
muitos discursos alienantes que agem na solidificação do atual sistema econômico e se
servem da fragilidade do sistema educativo.
Não se pode negligenciar, igualmente, que o descontrole ideológico implica
muitas vezes o uso da força, do autoritarismo, da censura, da ditadura e a elaboração de
leis que servem para punir os “transgressores da ordem pública”. No espaço escolar, a
repressão se faz muitas vezes por meio de provas, de exames, como estratégia para que
os professores contemplem conteúdos irrelevantes e pouco significativos para a
formação do sujeito.
Sobre o uso da violência, Mészáros sinaliza que:
Enquanto a internalização consegue fazer o seu bom trabalho,
assegurando os parâmetros reprodutivos gerais do sistema do capital, a
109
brutalidade e a violência podem ser relegadas a um segundo plano
(embora de modo nenhum sejam permanentemente abandonadas),
posto que são modalidades dispendiosas de imposição de valores,
como de fato acontece no decurso do desenvolvimento capitalista
moderno. Apenas em períodos de crise aguda volta a prevalecer o
arsenal de brutalidade e violência, com o objetivo de impor valores,
como o demonstraram em tempos recentes as tragédias dos muitos
milhares de desaparecidos no Chile e na Argentina. (MÉSZÁROS,
2008, p. 44)
Além disso, Mészáros enfatiza a impossibilidade de extinguir o capital da
estrutura social. Ele se faz presente em todos os âmbitos, não há como negar sua
presença no trabalho e no sistema educativo. Ainda que sejamos contra o papel do
capital na vida dos sujeitos, não se pode desconsiderar seu papel na estrutura da
sociedade moderna. Contudo, o autor propõe uma formação educativa que ultrapasse os
interesses do mercado, o que suscita dos professores e educadores, entre outros, a
ruptura com a lógica capitalista.
Nesse sentido, faz-se necessário que a escola e os professores ataquem a
internalização das ideologias capitalistas por meio de um aprendizado crítico que
exponha, de modo complexo, as contradições do sistema econômico vigente. Mészáros
reconhece que o paradigma de uma educação além do capital pede uma ação de
“contrainternalização” do sujeito, ou seja, de luta e de rebeldia contra a mediação das
ideologias dominantes e alienantes que se instalam em nossa mente. No que diz respeito
à mediação capitalista, explana que:
O grave e insuportável defeito do sistema do capital consiste na
alienação de mediações de segunda ordem que ele precisa impor a
todos os seres humanos, incluindo-se as personificações do capital. De
fato, o sistema do capital não conseguiria sobreviver durante uma
semana sem as suas mediações de segunda ordem: principalmente o
Estado, a relação de troca orientada para o mercado, e o trabalho, em
sua subordinação estrutural ao capital. Elas (as mediações) são
necessariamente interpostas entre indivíduos e suas aspirações,
virando essas de “cabeça para baixo” e “pelo avesso”, de forma a
conseguir subordiná-los a imperativos fetichistas do sistema do
capital. Em outras palavras, essas mediações de segunda ordem
110
impõem à humanidade uma forma alienada de mediação. A alternativa
concreta a essa forma de controlar a reprodução metabólica social só
pode ser a automediação, na sua inseparabilidade do autocontrole e da
autorrealização através da liberdade substantiva e da igualdade, numa
ordem social reprodutiva conscienciosamente regulada pelos
indivíduos associados. (MÉSZÁROS, 2008, p. 23)
Sobre a questão da mediação cultural de caráter crítico, tema central desta
pesquisa, Mészáros, assim como Gramsci e Weber, faz a distinção dos tipos de
intelectuais: os sujeitos que agem como mediadores dos discursos ideológicos das
classes dominantes, buscando manter a organização política, econômica e social
vigente, e os que atuam contra tal hegemonia, analisando e verificando suas
incongruências e falácias.
Convém acrescentar que a escola, o professor e outros intelectuais desse campo
muitas vezes agem como agentes do sistema capitalista, reforçando o poder econômico,
político, social, cultural de um grupo em prol de outro. Todavia, na atual conjuntura, a
escola parece precisar se transformar para garantir seu espaço dentro do organismo
social. Além das críticas sociais, da perda de prestígio, concernente à sua atuação como
mediadora do saber, é necessário lembrar que ela não detém mais total poder sobre a
informação, o conhecimento e o aprendizado.
Na transformação da estrutura social vigente, marcada por uma acentuada
desigualdade social, pensadores como István Mészáros acreditam que, para vencer tal
batalha, é necessário combater, atacar a internalização das ideologias das classes
dominantes. Quanto à arma utilizada, ele propõe toda e qualquer educação, formal ou
informal, que transcenda os interesses capitalistas. O autor reconhece que tal tarefa
exige dos professores e da escola, entre outros mediadores, que não apenas mudem suas
práxis, mas atuem como pensadores, intelectuais capazes de interpretar o contexto
político, econômico e cultural e de depreender as ideologias internalizadas.
111
Como considerações finais, o presente capítulo empreendeu tratar das ações
contrárias e a favor da alienação no espaço da educação. Para tanto, procurou,
inicialmente, entender a dissonância entre teoria e prática na práxis dos professores e
verificou que os critérios de produção e de socialização do conhecimento têm priorizado
ao longo da história um saber-fazer em função do mercado.
Com relação aos discursos que proferem novos paradigmas para a educação e
ressaltam que a formação dos professores deve ser o objetivo central do sistema
educativo, muitos de seus expoentes se dedicam a encontrar meios, soluções para que a
engrenagem da atual estrutura social não pare de funcionar nesse contexto de
globalização. Assim, a tentativa de condicionar a existência humana à atual “ordem”
social aponta para uma educação de caráter reprodutor, segregativo, antidemocrático e
alienante, o que demonstra a relevância dos estudos de Durkheim, Bourdieu e Althusser
na chamada “pós-modernidade”.
112
3
PROCEDIMENTOS PARA UMA MEDIAÇÃO CULTURAL CRÍTICA
EM FLE: ENTRE A PROMESSA DA HARMONIA E DO ESPANTO12
Com o intuito de articular teoria e prática, a presente pesquisa visa a verificar o
tratamento dado ao aspecto cultural nas abordagens interculturalistas, discursivas,
confrontando com a proposta de uma mediação cultural de natureza crítica, discutida
nos capítulos precedentes. Quanto ao objeto de análise, serão utilizados textos,
documentos, suportes didáticos nos quais pesquisadores, tradutores e elaboradores de
métodos também apresentam diretrizes sobre o modo de tratar os fatores de ordem
cultural no atual cenário de globalização.
Na seção subsequente, apoiada na fundamentação teórica de uma mediação
cultural crítica, esta pesquisa vai propor inicialmente uma atividade sobre o componente
cultural. No entanto, antes disso, serão apresentadas as diferenças entre as modalidades
multi/pluri/inter/transculturalista, a fim de que se possam compreender melhor seus
princípios ideológicos e os interesses políticos, econômicos e sociais subjacentes.
Não resta dúvida de que gerenciar a heterogeneidade é um projeto ambicioso,
tendo em vista, sobretudo, que as mentalidades ainda estão presas a estabelecer
determinados modelos de cultura e de costumes como exemplares e a classificar outros
como menores e desprezíveis. Entretanto, o atual contexto de globalização demanda
uma postura, de fato, mais engajada com relação ao Outro, ao “estrangeiro”.
A falta de uma política de integração, de fato, para imigrantes, para as classes
mais desfavorecidas e para todos que estão à margem da sociedade pode trazer
No que diz respeito ao termo “espanto”, o escritor e professor emérito da Universidade Estadual de
Campinas, Rubens Alves, empregou-o em um documentário no qual defendia que todo professor fosse
um Professor do Espanto, capaz de provocar a inteligência, a curiosidade, bem como o espanto.
Disponível em: <http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/01/18/tv-camara-exibe-o-documentáriorubem-alves-o-professor-de-espantos>. Acesso em: 3 out. 2015.
12
113
consequências não apenas para os países em questão, mas também para o mundo. Na
França, o número de jovens franceses ascendentes de famílias muçulmanas, árabes, que
vêm participando de ações terroristas só aumenta. As medidas de segurança contra esses
ataques podem contê-los, mas seria fundamental também que esses jovens fossem
reconhecidos como franceses.
No Brasil, o apartheid social parece só se acentuar. A forte desigualdade entre as
classes favorecidas e as desfavorecidas é perceptível, demonstrando a falta de interesse
dos governantes em mudar tal cenário. Com o aumento da violência nos grandes centros
urbanos, o governo também procura melhorar a segurança, mas sem ações sociais que
integrem as pessoas à sociedade.
No caso do Brasil, observa-se nas últimas décadas uma preocupação social,
governamental e educacional com as culturas indígenas, negra e com a educação
popular; todavia, elas parecem ainda não terem saído do papel. Nos PCNs (BRASIL,
2002), na sessão “Pluralidade Cultural”, os elaboradores declaram que:
Para viver democraticamente em uma sociedade plural é preciso
respeitar os diferentes grupos e culturas que a constituem. A sociedade
brasileira é formada não só por diferentes etnias, como também por
imigrantes de diferentes países. Além disso, as migrações colocam em
contato grupos diferenciados. Sabe-se que as regiões brasileiras têm
características culturais bastante diversas e que a convivência entre
grupos diferenciados nos planos social e cultural muitas vezes é
marcada pelo preconceito e pela discriminação. (p. 117)
Nesse mesmo documento, sinaliza-se também que:
Entretanto, apesar da discriminação, da injustiça e do preconceito que
contradizem os princípios da dignidade, do respeito mútuo e da
justiça, paradoxalmente o Brasil tem produzido também experiências
de convívio, reelaboração das culturas de origem, constituindo algo
intangível que se tem chamado de brasilidade, que permite a cada um
reconhecer-se como brasileiro. (p. 122)
114
Sobre a capacidade de os brasileiros lidarem com as diferenças étnicas,
mencionada nesse enxerto, convém salientar que isso pode estar relacionado com a
formação do país. Como foi apresentado no primeiro capítulo, índios, negros e
imigrantes que vieram para as terras brasileiras não encontraram uma pátria (um
genitor) da qual pudessem se orgulhar. Além disso, na Europa, os Estados buscaram
despertar sentimentos nacionalistas por meio de ações políticas e culturais.
No que diz respeito às ações efetivas de integração no Brasil, não se pode deixar
de comentar que o educador e pesquisador Paulo Freire se dedicou durante toda a sua
vida em promover uma educação que inserisse a cultura popular no ensino, buscando
articular o saber acadêmico com o modo de vida de seus alunos. De acordo com Vera
Maria Candau (2006), Freire já defendia princípios da proposta interculturalista.
É relevante destacar que, após a Segunda Guerra Mundial, tanto o continente
europeu quanto o americano passaram a receber imigrantes de diversos lugares.
Segundo Maddalena de Carlo (1998), para atenuar possíveis conflitos, em virtude da
diversidade cultural, as estratégias tomadas foram:

a assimilação, que se caracterizava pela apropriação da cultura dominante
pelo grupo minoritário. Nesse caso, houve uma busca da monoculturação;

o integralismo, que, ao contrário, visava a manter a identidade étnico-cultural
dos povos. Contudo, a “igualdade” se estabelecia na esfera pública para
tornar possível o “funcionamento” do Estado; no âmbito privado, em
contrapartida, eram toleradas as diferenças. A crítica aqui está na separação
entre as dimensões políticas e a identidade do indivíduo, bem como na
oposição entre cultura de origem e cultura de acolhimento, negligenciando o
processo de mestiçagem natural desse tipo de contato. Nos Estados Unidos,
com base nesse modelo, surgiu o melting pot, uma proposta de fusão das
115
diferenças étnicas em uma única identidade. Convém dizer, entretanto, que
subjacente a isso havia a intenção de promover a assimilação da cultura
minoritária;

o multiculturalismo ou pluriculturalismo, que, no entanto, apresenta quatro
acepções: o modelo de cidadania multicultural, que reconhece a dimensão
étnica e cultural na esfera da vida pública, contanto que ela não cause danos
à coesão social; o modelo maximalista, que refuta um núcleo central de
valores e exige total autonomia — nesse caso, a proposta parece ser a
justaposição dos espaços culturais; o modelo corporate culturalism, que tem
como preocupação maior o fator econômico e, consequentemente, procura
trabalhar com as diferenças funcionais, visando à internacionalização dos
mercados; e, por último, o modelo cultural multiculturalista, que prega a
negociação contínua entre os diferentes grupos, com o intuito de obter a
construção de um espaço comum.
Sobre os procedimentos culturais, no artigo intitulado “Variations sur la
perspective de l’agir social en didactique des langues-cultures étrangères” (2009),
Christian Puren, responsável pelo Centro de Estudos em Didática Comparada das
Línguas e das Culturas (Cediclec), descreve cinco movimentos culturais, já explanados
em minha dissertação de mestrado (AZEVEDO, 2010), mas que devem ser retomados,
tendo em vista sua relevância para este estudo:

o transculturalismo do século XIX, que objetivava oferecer aos indivíduos
uma formação humanística, centrada em valores universais, como ocorria na
metodologia tradicional (MT);
116

o metaculturalismo do início do século XX, que propunha uma abordagem
mais reflexiva do aspecto cultural no ensino-aprendizado, valendo-se de
documentos autênticos;

ainda no século XX, o multiculturalismo, que visava ao respeito e ao
reconhecimento das diferenças nas sociedades, compostas de uma
mestiçagem cultural expressiva;

o interculturalismo dos anos 1970, um contexto marcado pela imigração,
cuja função era mostrar a importância das diferenças sociais para a formação
do sentimento de alteridade nos sujeitos. Tendo em vista tal propósito, o
recurso utilizado nas aulas de língua eram os clichês e estereótipos, como
uma estratégia para que todos os envolvidos refletissem sobre as concepções
generalistas e reducionistas feitas ao Outro;

o cocultural do início deste século, que propõe, além do respeito, da
alteridade entre indivíduos de culturas distintas, o saber-trabalhar, conviver,
agir de forma coletiva.
No atual contexto de globalização, informatização e comunicação, muitos
especialistas e sujeitos que vivem em contextos multiculturais, pluriculturais,
interculturais fazem menção também a outro fenômeno social, o transcultural, um
movimento que travessa as territorializações culturais e vai além das fronteiras culturais.
De acordo com Cantarella (2007):13 “A competência transcultural não existe por si
mesma, mas por um processo contínuo de perlaboração (woking-through).”14
É
contundente
ressaltar
que
o
surgimento
dos
movimentos
multi/pluri/inter/transculturalistas, que se sobrepõem de maneira rápida, revela uma
13
Giovanna Cantarella faz parte da Associação Europeia para Análise Transcultural de Grupo (AEATG).
Newsletter
19th
year,
nr.
18,
new
serie,
nr.
1067.
Disponível
em:
<www.eatga.net/.../1kahsw1nordeh2sdcmtbiuem1020>. Acesso em: set. 2015.
14
No original: “La compétence transculturelle n’existe pas par elle-même, mais par un processus
continuel de per-laboration (woking-through).”
117
forte preocupação dos Estados e das sociedades com relação à diversidade cultural. Em
um contexto marcado pela globalização, não resta dúvida de que os conflitos entre os
povos podem não somente representar superposição de uma cultura sobre outra, mas
também comprometer interesses político-ecônomicos.
No que tange a essas modalidades, o presente estudo vai se deter no
interculturalismo nas próximas linhas, uma vez que, diferentemente dos outros, ele
vislumbrou ações de integração cultural. No ensino-aprendizado de LEs, a abordagem
do componente cultural está calcada, no atual contexto, nos princípios ideológicos dessa
corrente. Em face disso, a próxima seção desta pesquisa vai versar sobre o modo como
os teóricos, pesquisadores, elaboradores de manuais, formadores de formadores, entre
outros, orientam os professores no tratamento do componente cultural. Além disso, será
analisado o modo como tal proposta concebe o professor de FLE.
3.1
A RELAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA NA ABORDAGEM
INTERCULTURALISTA NO CONTEXTO DE ENSINO-APRENDIZADO
Na acepção de M. Abdallah-Pretceille (1996), a pedagogia intercultural favorece
a abordagem da diversidade cultural no ensino-aprendizado. Além disso, a autora a
considera um suporte de extrema importância para tratar do novo cenário sociocultural
de intensa globalização. Quanto ao multiculturalismo, salienta que seu objetivo consiste
apenas na descrição das diferenças culturais em determinado contexto, marcado por
uma crescente coabitação de povos provenientes de diversos cantos do mundo em um
mesmo território.
118
Abdallah-Pretceille elucida que a abordagem intercultural se centra nos
princípios da fenomenologia, que enxerga o sujeito como um ser capaz de conferir à sua
realidade um significado e de agir sobre ela, de forma consciente ou inconsciente.
Portanto, contesta os princípios estruturalistas que concebem o ser humano como
simples reprodutor da sociedade. Na defesa de tal posição, argumenta que:
Devido à internacionalização da vida cotidiana, o indivíduo é cada vez
menos determinado pela cultura à qual pertence. Ele não é apenas o
produto de sua cultura; é, o contrário, seu ator. A cultura perdeu seu
valor na determinação dos comportamentos. De fato, desde o
nascimento, a criança vive em um ambiente heterogêneo e plural.
Portanto, não pode ignorar a existência de outras referências, de outros
hábitos. Ela vive e se socializa em um grupo marcado pela diversidade
cultural. Suas escolhas culturais podem se efetuar a partir de uma
ampla gama. Ela pode tomar emprestado de outros grupos modelos de
comportamento, hábitos e códigos. Assim, independentemente de sua
origem, qualquer pessoa pode expressar seu pertencimento de forma
rica e variada. A identidade dita de origem não desaparece, mas a
maneira de vivê-la e de expressá-la é mais diversificada…
(ABDALLAH-PRETCEILLE, 1999, p. 54)15
Abdallah-Pretceille destaca ainda que a proposta interculturalista reconhece a
relevância do sujeito na manutenção e na (re)construção de uma cultura, e que isso não
significa o retorno do individualismo. A respeito da vertente culturalista, a autora diz
que seus expoentes procuram analisar o papel da cultura apoiados nos fenômenos
psicológicos; em contrapartida, os interculturalistas se colocam a observar o “eu” e o
“tu” e o modo como eles se relacionam e se representam. Dessa forma, o intercultural
atua
sobre
os
eixos
sujeito/indivíduo,
intersubjetividade/subjetividade,
universalidade/singularidade.
No original: “Du fait de l’internationalisation du quotidien, l’individu est de moins en moins déterminé
par sa culture d’appartenance. Il n’est pas seulement le produit de sa culture. Il en est au contraire,
l’acteur. La culture a perdu sa valeur de détermination des comportements. En effet, dès sa naissance,
l’enfant vit dans un enrironnement hétérogène et pluriel. Il ne peut donc pas ignorer l’existance d’autres
références, d’autres habitudes. Il vit et se socialise dans un groupe marqué par la diversité culturelle. Ses
choix culturelles peuvent s’effectuer à partir d’une gamme très ouverte. Il peut emprunter à d’autres
groupes des modeles de comportement, des habitudes, des codes. Ainsi, quelle que soit son origine, toute
personne peut exprimer son appartenance de manière riche et variée. L’identité dite d’origine ne
disparaît pas, mais la manière de la vivre et de l’exprimer est plus diversifiée…”
15
119
Maddalena de Carlo (1998) explana que a abordagem intercultural nasceu no
âmbito do ensino-aprendizado do francês como LM no início dos anos 1970, destinada
aos filhos de imigrantes. Porém, a autora afirma que tal proposta foi interrompida por
alguns anos sob a alegação de propor a assimilação das culturas dos imigrantes pela
cultura nativa.
Com o intuito de oferecer uma melhor percepção do desenvolvimento da
abordagem interculturalista, De Carlo (1998) faz um panorama de seu percurso em
outros países. A autora afirma que, na Itália, nos anos 1980, foi desenvolvido por
pesquisadores e professores um projeto no qual a abordagem interculturalista deveria
ser trabalhada de maneira transversal em todas as disciplinas; e, nos Estados Unidos, a
partir da Segunda Guerra Mundial, diante do acentuado número de culturas
heterogêneas, o aspecto linguístico passou a ser trabalhado atualmente com base em
uma perspectiva interculturalista em quase todas as universidades americanas.
Quanto ao interculturalismo no ensino de LE, De Carlo (1998) comenta que esse
conceito surgiu nos anos 1980 na abordagem comunicativa, modificando de forma
radical as modalidades de acesso à cultura estrangeira, visto que não se trata mais de
impingir no estrangeiro a competência cultural do nativo. Nesse sentido, a autora faz
menção a esta explanação de Chambeu:
Os autores, reivindicando a competência intercultural e a comunicação
intercultural, salientam, por outro lado, a interação, ou seja, o processo
de troca que permite a ambos os interlocutores influenciar-se de forma
recíproca, mestiçar-se mutuamente, bem como a intersubjetividade. O
intercultural solicita dois sujeitos. Trata-se então de reconhecer ao
Outro seu estatuto de sujeito, aceitando a reciprocidade eventual de
seu olhar “coisificante”.16 (CHAMBEU, 1997 apud DE CARLO,
1998, p. 44)
No original: “Les auteurs se réclamant de la compétence interculturelle et de la communication
interculturelle mettent l’accent, par contre, sur l’interaction, c’est-à-dire le processus d’échange qui
permet aux deux interlocuteurs de s’influencer réciproquement, de se métisser mutuellement, et aussi sur
l’intersubjectivité. L’interculturel sollicite deux Sujets. Il s’agit désormais de reconnaître à l’Autre son
statut de Sujet en acceptant la réciprocité éventuelle de son regard ‘chosifiant’.”
16
120
Sobre a abordagem interculturalista, De Carlo (1998) discorre que ela advém
não somente das novas reflexões didáticas e didatológicas no campo de ensino de
línguas e culturas, mas também de outras ciências sociais, tendo a cultura como
principal objeto de alguns campos do saber, como a antropologia cultural, que se
interessou pelas diferenças entre as civilizações e privilegiou o estudo dos
comportamentos e das maneiras de viver de uma sociedade, levando em consideração
também o indivíduo nesse cenário, descartando, porém, a concepção ilusória de uma
civilização como modelo de desenvolvimento; a semiologia, que propôs uma leitura do
não dito, das ideologias e dos discursos implícitos, expressos nas manifestações sociais
e individuais; e a sociologia, que se pôs a analisar as diferenças étnicas e culturais de
alguns países, presentes nas sociedades ocidentais com o advento da industrialização.
Para De Carlo (1998), a contribuição de uma abordagem interculturalista ao
ensino de língua reside em oferecer aos sujeitos uma competência pragmática
relacionada com a convivência com o Outro. Para tanto, a discussão sobre os clichês
atribuídos a um povo e a um país deve ser realizada entre professores, alunos e demais
envolvidos nesse processo de ensino-aprendizado, de modo reflexivo, indagando-se
sobre as caracterizações, quase caricaturais, que servem para toda uma população, como
se todos fossem iguais, independentemente da condição social, da formação, da idade,
do sexo, do contexto social, histórico e econômico etc.
Retomando os ganhos de uma abordagem interculturalista no ensino de línguas,
a autora menciona igualmente seu papel no tratamento dos medos, anseios, conflitos e
de muitos outros sentimentos que se manifestam no encontro de culturas distintas. Cabe
aqui destacar que o ensino-aprendizado de uma LE toca em aspectos identitários,
colocando em questão, muitas vezes, os valores que o sujeito concebe como verdadeiros
ao longo de sua vida.
121
No atual contexto de globalização, pensadores como Zymunt Bauman (2003)
consideram que a pós-modernidade demanda também uma consciência transcultural
Acreditam que, com o advento da tecnologia de comunicação e de informação, as
identidades nacionais ficaram cada vez mais diluídas. Portanto, o intercultural estaria se
instaurando de modo natural. Todavia, ações xenofóbicas, homofóbicas, sexistas e
outras vêm se tornando cada vez mais comuns.
Com relação a esse paradoxo, Stuart Hall compreende que o forte desejo de
homogeneização global pode gerar como reação o interesse pelo “local”. Em sua linha
de pensamento, a globalização vai promover o aparecimento de novas identificações
“globais” e de novas identificações “locais”. Em defesa de tal hipótese, ele menciona a
desigualdade de poderes entre sujeitos e nações, alguns exercendo o papel de comandar,
e outros se subjugando às ordens estabelecidas. Hall diz ainda que:
Tanto o liberalismo quanto o marxismo, em suas diferentes formas,
davam a entender que o apego ao local e ao particular dariam
gradualmente vez a valores e identidades mais universalistas e
cosmopolitas ou internacionais; que o nacionalismo e a etnia eram
formas arcaicas de apego — a espécie de coisa que seria “dissolvida”
pela força revolucionadora da modernidade. De acordo com essas
“metanarrativas” da modernidade, os apegos irracionais ao local e ao
particular, à tradição e, às vezes, aos mitos nacionais e às
“comunidades imaginadas” seriam gradualmente substituídos por
identidades mais racionais e universalistas. Entretanto, a globalização
não parece estar produzindo nem o triunfo do “global” nem a
persistência, em sua velha forma nacionalista, do “local”. Os
deslocamentos ou os desvios da globalização mostram-se, afinal, mais
variados e mais contraditórios do que sugerem seus protagonistas ou
seus oponentes. Entretanto, isto também sugere que, embora
alimentada, sob muitos aspectos, pelo Ocidente, a globalização pode
acabar sendo parte daquele lento e desigual, mas continuado,
descentramento do mesmo. (2014, p. 56)
Em suma, não resta dúvida de que o movimento de guetização dos sujeitos
assusta muitos professores, educadores e pensadores da pós-modernidade, pois pode
prover a insurgência de comportamentos etnocêntricos e de intolerância à diferença. No
122
entanto, é necessário lembrar que isso se deve, em geral, ao sistema competitivo e
seletivo no qual vivemos, que simplesmente exclui, “descarta” quem não corresponde às
expectativas e aos interesses do sistema capitalista. A busca do local passa a ser um
refúgio e uma maneira de o sujeito impor sua existência.
Como já foi explicitado nas páginas anteriores, ainda que o educador queira
estabelecer a integração social, o ato de educar não pode desconsiderar a realidade, o
contexto político, histórico, econômico e social no qual vivem os sujeitos. Convém
dizer que a proposta de uma mediação cultural crítica considera fundamental que os
sujeitos consigam sair de seus “territórios” e sejam capazes de enxergar o Outro;
todavia, esse movimento deve ser feito de maneira reflexiva e crítica, analisando as
ideologias implícitas em tais discursos.
3.1.1 O método Écho e o tratamento do componente cultural
Na intenção de compreender o tratamento atribuído ao componente cultural no
ensino de LE, sobretudo de FLE, este estudo vai analisar, inicialmente, o método de
francês Écho, de J. Girardet e J. Pécheur. Cabe ressaltar que essa escolha se justifica
pelo fato de ele ter sido adotado nas Alianças Francesas do Brasil e ser utilizado por um
número expressivo de alunos. Em geral, os cinco livros são organizados em três
unidades, e cada uma contém quatro lições. Os autores esclarecem que o público-alvo
pode ser de jovens e adultos; todavia, destacam que as situações comunicativas não
contemplam o mundo escolar.
123
Quanto à sua fundamentação teórica, os autores mencionam que o método segue
as diretrizes da perspectiva acional (PA), na qual os alunos são concebidos como atores
sociais. Salientam também que o manual contempla como atividade pedagógica os
projetos e enfatizam que o vocabulário, a gramática, a fonética, entre outros itens, são
trabalhados em função das interações, das situações comunicativas propostas em sala.
Na introdução, os autores evidenciam que o método segue as orientações do
CECR. Assim, os alunos são preparados para fazer os exames do Delf (Diploma de
Estudo em Língua Francesa), e os autores chamam a atenção para o fato de que o
manual propõe atividades de avaliações e autoavaliações.
Ao analisar o método Écho 2 (GIRADET; PÉCHEUR, 2009), observamos que
predominam nas seções reservadas ao tópico “Civilisation” textos descritivos,
injuntivos, expositivos, apresentando dados estatísticos, enciclopédicos, que descrevem,
em geral, os costumes, os comportamentos do povo francês e a organização da nação
francesa, apresentando informações básicas, de forma sistematizada e imparcial. Cabe
ressaltar que o componente cultural na abordagem comunicativa (AC) e na perspectiva
acional (PA) visa a desenvolver nos alunos competências voltadas para um savoir-faire
social, transmitindo informações sobre o modo de agir e de falar da sociedade francesa.
Em alguns métodos didáticos da PA, como Forum (BOUGNEC; LOPES;
MENAND; VIDAL, 2002) e Le nouveau taxi (CAPELLE; MENAND, 2009), os
autores fazem uso do termo sociocultural. Vale lembrar, com base nas análises de
Maddalena de Carlo (1998), que isso talvez se deva ao fato de o termo civilização
remeter à ideia de uma formação catequizadora, como se houvesse culturas mais e
menos civilizadas.
No CECR, os autores fazem esta observação sobre o saber sociocultural:
124
Estritamente falando, o conhecimento da sociedade e da cultura da(s)
comunidade(s) que fala(m) uma língua é um dos aspectos de
conhecimento de mundo. No entanto, é bastante importante lhe dar
uma atenção particular, uma vez que, ao contrário de outros tipos de
conhecimento, é provável que estes não façam parte do conhecimento
prévio do aluno e sejam distorcidos por estereótipos. (p. 82)17
No livro Écho 2, primeiro capítulo, o tópico “Civilisation” tem como tema
“L’enseignement en France”, cujo gênero textual é um artigo enciclopédico dividido em
três partes: A escola pública obrigatória e laica; Do jardim de infância à obtenção do
diploma de ensino médio; e O estudo universitário. Além disso, a página contém três
ilustrações de instituições de ensino: o Instituto Universitário de Tecnologia de Cachan,
uma escola maternal e a Universidade de Sorbonne. As duas últimas têm legendas
ressaltando que desde 1998 a escola francesa pública tem o controle do Estado e que a
Sorbonne constitui a universidade francesa mais antiga. No final da página 17, os
autores pedem também para que os alunos leiam as informações supracitadas e façam
comparações com o ensino de seu país.
O tratamento comparativo do componente cultural demonstra que os
especialistas do campo passaram a se preocupar também em promover uma formação
interculturalista, na qual povos de culturas distintas não apenas reconheçam as
diferenças culturais, mas interajam com o Outro. Segundo o texto do CECR:
O conhecimento, a consciência e a compreensão das relações
(semelhanças e diferenças distintivas) entre “o mundo de onde se
vem” e “o mundo da comunidade-alvo” originam uma tomada de
consciência intercultural. É necessário sublinhar que a consciência
intercultural inclui uma consciência da diversidade regional e social
de ambos os mundos. Elas se enriquecem também com a consciência
de que há um leque mais vasto de culturas do que as veiculadas pelas
L1 e L2 do aluno. Isso ajuda a contextualizá-las. Além de
No original: “À proprement parler, la connaissance de la société et de la culture de la (ou des)
communauté(s) qui parle(nt) une langue est l’un des aspects de la connaissance du monde. C’est
cependant assez important pour mériter une attention particulière puisque, contrairement à d’autres
types de connaissances, Il est probable qu’elles n’appartiennent pas au savoir antérieur de l’apprenant et
qu’elles sont déformées par des stéréotypes.”
17
125
conhecimento objetivo, a consciência intercultural abrange uma
consciência do modo como cada comunidade aparece na ótica do
outro, muitas vezes sob a forma de estereótipos nacionais. (CONSEIL
DE L’EUROPE, 2000, p. 83)18
Cabe aqui fazer outra observação, ressaltando que no método Écho o tópico
“Écrits” dialoga com o de “civilização”. A título de exemplo, nessa lição, os autores
solicitam que os alunos redijam um texto sobre a questão educativa e também façam seu
currículo em francês. Mas, para tanto, eles lhes propõem, inicialmente, a leitura e um
exercício interpretativo do texto “Quelle école pour demain?”, extraído do jornal Le
Quotidien do dia 18 de outubro de 2007; então, reivindica-se que o professor organize
uma mesa-redonda em sala, na qual a educação de seu país seja debatida com base em
uma lista de assuntos que poderiam ser abordados sobre essa temática.
É oportuno destacar que a proposta parece ser interessante, pois trata a produção
escrita como um fenômeno social, engajando o aluno a atuar como cidadão. Todavia, os
autores didatizaram uma entrevista, selecionando apenas algumas opiniões dos pais das
crianças e dos professores sobre a educação. O documento não apresenta as referências
identitárias sobre as pessoas envolvidas nessa interação. Em outras palavras, não se sabe
de que lugar elas falam. Sabe-se apenas que exercem os papéis sociais de pais ou de
professores.
Infelizmente, embora muitos métodos didáticos e professores declarem uma
abordagem da linguagem apoiada na fundamentação teórica de Mikhail M. Bakhtin
No original: “La connaissance, la conscience et la compréhension des relations, (ressemblances et
différences distinctives) entre “Le monde d’où l’on vient” et “Le monde de la communauté cible” sont à
l’origine d’une prise de conscience interculturelle. Il faut souligner que la prise de conscience
interculturelle inclut la conscience de la diversité régionale et sociale des deux mondes. Elles s’enrichit
également de la conscience qu’il existe un plus grand éventail de cultures que celles véhiculées par les L1
et L2 de l’apprenant. Cela aide à les situer toutes deux en contexte. Outre la connaissance objective, la
conscience interculturelle englobe la conscience de la manière dont chaque communauté apparaît dans
l’optique de l’autre, souvent sous la forme de stéréotypes nationaux.”
18
126
(2010),19 observam-se ainda no ensino-aprendizado das línguas materna e estrangeira
propostas pedagógicas que se limitam a descrever o gênero textual e a identificar sua
função social, de maneira fixa e determinante. É pertinente mencionar que a concepção
bakhtiniana de linguagem foi revolucionária para esse campo, pois a tratou como
atividade social, ideológica, que se constrói no sujeito por meio das interações humanas,
contestando os estudos estruturalistas, que a analisavam isolada da vida.
Convém reforçar que, na teoria bakhtiniana, embora os gêneros textuais
apresentem uma forma relativamente estabilizada, não são totalmente fixos. De acordo
com o autor, as necessidades políticas, econômicas e sociais de cada momento histórico
e a subjetividade humana podem promover transformações nas estruturas textuais.
Com relação ao método Écho 2, na segunda lição, o tópico “Civilisation” versa
sobre a economia e o trabalho na França. Como na primeira lição, o gênero discursivo
escolhido é o enciclopédico, servindo como suporte para discutir sobre a questão do
trabalho na França e pedir para que o aluno faça comparações com sua cultura ou com
outras, caso tenha delas conhecimento. No tópico “Écrits”, os autores trazem uma carta
de motivação que os alunos precisam ler para responder às perguntas dos exercícios 1 e
2, relacionadas com a estrutura da carta administrativa na sociedade francesa e do país
no qual se aprende a língua francesa. Por último, são lançadas duas atividades escritas.
Na primeira proposta, o aluno é convocado a responder a um anúncio de emprego e, na
segunda, deve redigir um currículo com base no modelo sugerido na página 43.
Nesse caso, os autores oferecem aos alunos o mesmo gênero textual no tópico
“Civilisation”, o que significa que eles são expostos à mesma situação comunicativa,
19
A respeito do Círculo de Bakhtin, deve-se esclarecer que ele foi formado por volta de 1919, na Rússia,
e era constituído por intelectuais de campos distintos, que objetivavam refletir sobre a linguagem,
ancorados em princípios filosóficos e nas ideologias marxistas. Todavia, suas ideias só passaram a ser
difundidas a partir da década de 1970. No Brasil, os linguistas, literários, entre outros pesquisadores,
somente tiveram acesso a suas reflexões em 1979, com a obra Marxismo e filosofia da linguagem,
traduzida para o português. É importante elucidar também que os estudos pedagógicos tentaram se
apropriar dos conceitos bakhtinianos sobre diálogo, interação, gênero discursivo e polifonia; contudo, em
geral, transmitem uma abordagem bastante simplificada para os professores (FARACO, 2009).
127
embora se saiba que existem reportagens, charges, músicas, entre outros textos, na
sociedade francesa. No tópico “Écrits”, a carta de motivação serve como modelo para a
produção escrita. Todavia, ao analisar alguns documentos autênticos sobre tal gênero
textual, observa-se que os consultores de emprego aconselham os candidatos que suas
cartas tenham certa dose de originalidade para que o recrutador se interesse por sua
candidatura.
Com relação à autenticidade dos documentos, Wilkins diz que:
[…] é necessário concentrar a atenção na aquisição de uma
competência receptiva, sendo sua autenticidade uma importante
característica dos materiais concebidos para desenvolver essa
competência. Com isso, aceitamos materiais que não foram escritos ou
gravados para o aprendiz estrangeiro, mas, inicialmente, destinados a
um público de língua materna. (WILKINS, 1976 apud DE CARLO,
1998)20
Não resta dúvida de que trabalhar com um documento produzido para o próprio
público da língua-alvo faz com que alunos e professores se sintam mais próximos do
Outro, de sua cultura. No entanto, Maddalena de Carlo (1998) enfatiza que os
documentos, como calendários, menus, programas de cinema, entre outros, não podem
ser explorados apenas de forma descritiva, considerando a cultura abordada como um
objeto estático pronto a decodificar, sem levar em conta, por exemplo, seus fatores
históricos, sociológicos, identitários e suas condições geográficas.
A respeito da escolha de um documento para ser trabalhado em sala, Silvana
Serrani (2005) considera que a situação comunicativa precisa apresentar determinados
fatores: contexto, pois a língua se realiza de acordo com o espaço físico e social e o
momento histórico no qual está inserida; pessoas e grupos sociais que não apenas façam
No original: “[…] il faut concentrer l’attention sur l’acquisition d’une compétence réceptive, une
importante caractéristique des matériaux conçus pour développer cette compétence est leur authenticité.
Pour cela, nous entendons des matériaux qui n’ont pas été écrits ou enregistrés pour l’apprenant
étranger, mais originairement adresses à un public de langue maternelle”.
20
128
parte da mesma comunidade, mas que possuam também diferenças étnicas, raciais,
sociais e ideológicas, bem como legados socioculturais, capazes de permitir depreender
a identidade cultural em jogo.
Cabe dizer que não se discute aqui a didatização do suporte explorado. Se os
sujeitos buscam um professor, isso significa que querem alguém que atue como
mediador de tal idioma. Todavia, a maneira como o professor ou o elaborador do
manual vai recortar e editar o documento escolhido requer coerência e uma atitude ética
para com os sujeitos e as culturas envolvidas.
Com base em Bérard (1991), Costa e Marinelli (2008, p. 99) apontam três razões
para o uso dos documentos autênticos:
a) o fato de um aluno principiante poder compreender, desde o início
da aprendizagem da língua estrangeira, um documento autêntico,
contribui para a sua motivação. Esses argumentos são retomados por
pesquisadores como Canale & Swain e Coste (apud Bérard, 1991:51):
“[…] devemos tirar o melhor partido possível de seu valor de
motivação. Ele é, com efeito, para o aluno, recompensa e conforto”.
b) o documento autêntico favorece a autonomia de aprendizagem do
aluno. As estratégias usadas em sala de aula para a compreensão de
determinado documento autêntico poderão ser reutilizadas em outras
situações, fora do contexto escolar. Dessa forma, além dos conteúdos
dos documentos, essa atividade favorece o desenvolvimento de um
outro objetivo que é “ensinar a aprender”.
c) o terceiro argumento refere-se à língua ensinada. O documento
autêntico expõe o aluno a certos aspectos da linguagem cotidiana que
não são objeto de estudos das ciências da linguagem, mas que
merecem ser conhecidos. Os documentos tornam-se, assim, objetos de
estudo não apenas do conteúdo linguístico que veiculam, mas também
de sua dimensão pragmática e social. Esse estudo poderá contribuir
para que sejam observadas regras de funcionamento da comunicação
na língua que se está aprendendo.
Para De Carlo, ao escolher um documento, o professor deve levar em
consideração sobretudo três elementos: a pertinência, ou seja, o grau de dificuldade do
documento para o aluno, se há equilíbrio entre os conhecimentos já adquiridos e os
novos; a performatividade, que consiste em avaliar a relevância do assunto para o
129
público em questão, sua funcionalidade; e a forma de explorá-lo, considerando a
motivação dos alunos e o programa do curso.
A respeito do livro Écho 2, outro fator destacado foi o espaço contemplado para
a abordagem do aspecto cultural. O texto “Quelle école pour demain?” parece ter sido
um pretexto para trabalhar as compreensões e expressões escritas e orais. Silvana
Serrani, em Discurso e cultura na aula de língua: currículo, leituras e escrita, logo no
prefácio comenta que, ao observar as aulas de futuros professores de língua inglesa e
espanhola, constatou:
O componente sociocultural e a dimensão enunciativa da língua
costumavam ocupar lugares acessórios na maioria das grandes
curriculares. Do mesmo modo, enfoques interculturais que
contemplem a diversidade social de modo efetivo são muitos escassos
em programas e ementas. (SERRANI, 2005, p. 11)
Ainda sobre essa questão, a autora ressalta que, embora o componente
sociocultural seja concebido como essencial na formação do sujeito, na prática ele passa
a ter papel secundário. Para a autora, os motivos de tal atitude estão vinculados à
dificuldade que muitos têm em definir o termo cultura, dada sua complexidade, e à
concepção subjacente de que o conteúdo e os exames são mais relevantes no processo
de ensino-aprendizado.
Convém dizer que o aspecto cultural se faz presente também em outras seções
dos livros didáticos; porém, é veiculado, em geral, de maneira implícita e
(in)consciente. Ao preparar a aula, o professor precisa ter um olhar atento e identificar
as imagens culturais que subjazem aos métodos, a fim de que os estereótipos, os clichês
e os discursos do senso comum não sejam reforçados e reproduzidos.
Com relação ao método Écho 2, cada lição se organiza dividida em cinco
tópicos. Além de “Écrits” e “Civilisation”, já retratados, existem também as seções
130
“Interactions”, “Ressources” e “Simulations”, que o presente estudo vai procurar
analisar, visando a demonstrar o modo como os autores transmitem o componente
cultural; em suma, questionando se há uma mediação cultural de natureza redentora,
reprodutora ou crítica, voltada para o devir humano.
Na sessão designada como “Interactions”, os autores propõem um tema de
discussão que faz parte da realidade, da vida dos sujeitos. Para motivar os alunos a
participar da interação proposta, são lançadas algumas perguntas de forma direcionada,
que podem se depreendidas linguisticamente pelo emprego do pronome “vous”,
reivindicando que eles se posicionem em face de determinada situação social. Para
exemplificar, na lição 2 do livro Écho 2, com o título Tu as du boulot?, encontra-se este
texto:
Ideias para criar sua empresa
Se você está desempregado, se se aborrece em seu trabalho, se precisa
de liberdade, crie sua empresa. Muitos estão fazendo isso. Por que não
você? Imagine quais serão as novas necessidades. Informe-se sobre os
empregos do futuro. Pesquise ideias a seu redor.
O que está faltando? Do que as pessoas precisam? Em casa… no
trabalho… nas férias… nas cidades… no campo… etc. (p. 18)21
Vale enfatizar que, nessa enunciação, os autores tocam em uma questão muito
em voga nos meios de comunicação e nas interações cotidianas, que diz respeito ao
empreendedorismo e à associação do empreendedor ao empresário. Ao mediar tais
informações em sala, parece fundamental que o professor também análise com os
alunos esse modismo e vislumbre também com eles outras possibilidades de
“empreender” e viver.
No original: “Des idées pour créer votre entreprise Si vous êtes au chômage, si vous vous ennuyez dans
votre travail, si vous avez besoin de liberté, créez votre entreprise. Beaucoup l’ont fait. Pourquoi pas
vous? Imaginez quels vont être les nouveaux besoins. Renseignez-vous sur les emplois de demain.
Recherchez des idées autour de vous. Que manque-t-il? De quoi les gens ont-ils besoin? Chez eux… au
travail… en vacances… dans les villes…à la campagne… etc.”
21
131
No tópico “Ressources”, destinado aos aspectos linguísticos e fonéticos, o fato
de os autores não abordarem as variações linguísticas presentes no francês, ou seja, a
diversidade da língua francesa nos países francófonos, e de privilegiarem o modo de
falar dos parisienses demonstra suas posições políticas, econômicas e culturais. Esse
tipo de ação, aparentemente “neutra”, parece reforçar e reproduzir a imagem de que os
franceses são cultos e têm uma língua “pura”.22
No que diz respeito à francofonia,23 convém dizer que os métodos de FLE, em
geral, tratam dessa questão como se fosse mais um tema de civilização pertencente à
história da França, da cultura francesa. Com efeito, a concepção de que a Organização
Internacional da Francofonia (OIF) foi criada como uma estratégia política para
fortalecer a importância da nação e da cultura francesa no mundo e atenuar sua imagem
de país colonizador vem se tornando cada vez mais nítida para os professores de FLE.
Com o intuito de preencher essa lacuna dos livros didáticos, muitos se valem de filmes,
poesias, músicas, entre outros legados culturais, apresentando uma língua francesa além
das fronteiras parisienses.
Essa postura dos autores do método faz pensar sobre o manifesto intitulado
“Pour une littérature-monde en Français” (LE BRIS; ROUAUD, 2007), no qual 44
escritores, entre os quais Tahar Ben Jelloun, Nancy Huston, Alain Mabanckou, Edouard
Glissant e Jean-Marie Gustave Le Clézio, propõem o fim da francofonia. Nesse
documento, eles afirmam existir uma tensão entre a literatura francófona e a francesa.
Esta possui uma posição central entre os críticos e as editoras, enquanto a outra atua
22
Cabe esclarecer que, no período do reinado de Luís XIII, o cardeal Richelieu, juntamente com um
grupo de letrados e eruditos, fundou a Academia Francesa, cuja principal função era prescrever regras à
língua francesa e torná-la pura, eloquente, apta a tratar das artes e das ciências. Disponível em:
<http://www.academie-francaise.fr/la-langue-francaise/le-francais-aujourdhui>. Acesso em: 5 jun. 2015.
23
Faz-se necessário mencionar que o termo “francofonia” foi criado pelo geógrafo Onésime Reclus com
o propósito de destacar que a língua francesa era falada nos cinco continentes. Em 1962, Léopold Sédar
Senghor, presidente da República do Senegal, se vale dessa expressão e propõe a construção de uma
comunidade francófona. Todavia, somente em 1986 acontecerá a primeira conferência sobre a
francofonia (JOUBERT, 1997).
132
como se fosse periférica, subserviente à primeira. Para o escritor Mabanckou (2007), “a
literatura-mundo é aquela que funda cumplicidades para além dos continentes, das
nacionalidades, dos catequismos e das árvores genealógicas…”.24
Ainda sobre o espaço do componente cultural no método Écho 2, no tópico
“Simulations”, os autores têm como objetivo que seja trabalhada a compreensão oral,
mas também a expressão oral. Para tanto, solicitam que os alunos realizem pequenas
cenas, esquetes teatrais, seguindo o contexto social que lhes foi apresentado nos
diálogos. Embora os autores apresentem situações comunicativas fictícias, com base,
em geral, no modo de vida da sociedade francesa, é possível depreender nesses
discursos concepções sobre o papel da mulher, das crianças e dos jovens na sociedade
que não são abordadas no tópico “Civilisation” e podem ser aprofundadas pelos alunos
com a ajuda da internet e do professor.
A título de exemplo, na lição 2 do método, tem-se como situação comunicativa
uma entrevista de emprego na qual a funcionária do departamento pessoal indaga à
candidata se ela e seu marido pensam em ter filhos em breve. Posteriormente, a
contratante explicita que a empresa precisa de alguém que se dedique, de fato, ao posto
de chefe de produto.
Em geral, quando os alunos brasileiros leem esse diálogo, ficam surpresos com a
questão feita à candidata, pois salientam que no Brasil as empresas podem evitar
contratar mulheres mais jovens por causa da gravidez, mas dificilmente explicitariam os
motivos. Alguns mencionam, com base em suas experiências pessoais, que os franceses
são mais diretos que os brasileiros.
Ainda que surjam clichês e concepções estereotipadas da cultura-fonte e da
cultura-alvo, essas enunciações muitas vezes estimulam o aluno a expor sua visão sobre
No original: “[…] la littérature-monde est celle qui fonde les complicités au-delà des continents, des
nationalités, des cathéchismes et de l’arbre généalogique…”. Disponível em: <http://www.senspublic.org/article.php3?id_article=493>.
24
133
o Outro e sobre sua cultura, permitindo, assim, que determinadas imagens identitárias
sejam (re)avaliadas, pensadas e reconstruídas. Com base em Maddalena de Carlo (1998)
e em R. Amossy (2001), o estereótipo representa uma estratégia humana de tentar
classificar e categorizar esse Outro. Todavia, ao se aproximar desse universo
desconhecido, o sujeito pode se dar conta, com o tempo, de que sua concepção sobre o
Outro foi bastante imprecisa e superficial.
Sobre a identidade humana, De Carlo (1998, p. 88) acrescenta:
O que somos, então, depende não apenas do modo como nos vemos,
mas também da imagem que os outros fazem de nós, de nossa relação
com eles e do que eles representam para nós. O próprio conceito de
identidade, individual e coletiva, não poderia existir fora de uma
dialética com os outros: se somos capazes de reivindicar nossa
especificidade, é somente sobre a base de uma diferença, de uma
separação e, às vezes, de uma desvalorização do outro. Trata-se, como
já dissemos, de um paradoxo segundo o qual cada um de nós, para
afirmar seu próprio eu, é obrigado a reconhecer a presença de um não
eu, que representa ao mesmo tempo uma condição necessária e uma
ameaça à nossa existência.25
Maddalena de Carlo (1998) comenta ainda que filósofos e psicólogos concebem
o ato de se narrar como um recurso que permite aos sujeitos se escutarem, fazerem um
exercício de introspecção, se redescobrirem, favorecendo, assim, a adoção de uma
atitude mais flexível sobre si mesmo e sobre o Outro. Para a autora, com base nas
teorias de Paul Ricoeur,26 a narração põe em relação o mundo interno (subjetividade) e
No original: “Ce que nous sommes dépend alors non seulement de la façon dont nous nous voyons,
mais aussi de l’image que les autres se font de nous, de notre relation avec eux et de ce qu’ils
représentent à nos yeux. Le concept même d’identité, individuelle et collective, ne pourrait exister en
dehors d’une dialectique avec les autres: si nous sommes en mesure de revendiquer notre spécificité,
c’est uniquement sur la base d’une différence, d’une séparation et parfois d’une dévalorisation de
l’autre. Il s’agit, comme nous l’avons dit, d’un paradoxe selon lequel chacun de nous, pour affirmer son
propre moi, est obligé de reconnaître la présence d’un non-moi, qui représente à la fois la condition
nécessaire et la menace à notre existence.”
26
Em sua obra Soi-même comme un autre (2014), Ricoeur estabelece que a identidade se constitui em um
idem, que se caracteriza pela permanência e manutenção de um mesmo no tempo, e de um ipse,
implicando a mudança, a transformação da personalidade do sujeito. Essa dialética entre a mesmidade, a
preservação da tradição, e a variabilidade, que representa o despojar-se em Outro, demonstra que o
homem é produto da história, mas também que é capaz de intervir sobre ela.
25
134
o externo (contexto histórico-social) por meio da concordância e da discordância. Em
face disso, ela sugere que os professores se valham, por exemplo, das autobiografias,
dos relatos de viagem, das correspondências em suas aulas.
Para concluir, embora o objetivo proposto pelo método nesse tópico seja a
compreensão e a expressão oral, os enunciados estão carregados de referências
subjetivas
e
culturais
que
podem
ser
exploradas
em
sala.
Quanto
às
dramatizações/encenações para fins didáticos, Maddalena de Carlo (1998) enxerga esse
tipo de exercício como uma forma de “descentralização étnica” e de identificação com
os dramas do Outro. Para tanto, os alunos precisam buscar informações sobre a cultura
em questão. Todavia, convém ressaltar que, nos métodos didáticos, as diretrizes
concernentes a tais atividades são extremamente prescritivas e dão pouco espaço para a
criação.
Além desses tópicos, nos livros didáticos da perspectiva acional (PA), é comum
encontrar também no final de cada unidade propostas de projetos pedagógicos. Muitos
pedagogos, elaboradores de manuais, formadores de formadores de LE, entre outros,
passaram a adotar os projetos no processo de ensino-aprendizado sob o argumento de
que essa atividade permite trabalhar as competências comunicativas, mas também
mobilizam outras competências fundamentais para se viver em sociedade, como: saberser, saber-fazer, saber-viver, saber-aprender.
É pertinente enfatizar que a teoria de projeto surgiu no mercado de trabalho e,
por conseguinte, foi incorporada ao sistema educativo como um mecanismo para tornar
o processo de ensino-aprendizado mais pragmático e objetivo. No entanto, uma
formação complexa reivindica que o sujeito seja capaz de articular prática e teoria, de
considerar a historicidade da humanidade e de enxergar sua existência para além de suas
135
necessidades terrenas (MARX; ENGELS, 2009; MÉSZÁROS, 2008 LEVINAS, 2014;
ARENDT, 1972).
A respeito da valorização do agir sobre o refletir nos projetos didáticos, no
método Écho 2, por exemplo, os autores sugerem no final da Unidade 1 que os alunos,
com base nos eventos literários “Le prix Goncourt”27 e “Le prix Fémina”28, escolham
um romance da coleção Français Facile, destinada ao público iniciante, e apresentem
apenas o início do livro em algumas frases à turma; por conseguinte, devem ler um
trecho do texto escolhido. Como sensibilização, o método traz trechos de dois
romances, Robert des noms propres, de Amélie Nothomb, e Je voudrais que quelqu’un
m’attende quelque part, de Anna Gavalda,29 e de uma história em quadrinhos, Le retour
à la terre, la vrai vie, de Ferry e Larcenet.30 Ao lado de cada um, são propostas algumas
questões, objetivando ajudar o aluno em sua leitura. No guia do professor, os autores
completam tais orientações advertindo os professores de que tal projeto deve ser
realizado em várias etapas: o lançamento do projeto, a leitura dos três trechos citados, a
pesquisa de obras na biblioteca, a preparação da obra escolhida em casa, sua
apresentação em sala e a votação das obras.
O número de tarefas propostas leva a inferir muitas vezes que a sedimentação do
aprendizado, o processo de ensino-aprendizado e o saber não são mais relevantes. O
27
O prêmio Goncourt surgiu em 1903 na França, mas ainda na atualidade os autores o consideram um dos
mais importantes. Embora seja simbólico, ele favorece o aumento significativo da venda das obras
premiadas. Disponível em: <http://www.academie-goncourt.fr/>. Acesso em: 4 jun. 2015.
28
O prêmio Fémina também tem o reconhecimento dos escritores e do público; porém, foi criado em
1905 como uma forma de ataque ao prêmio Goncourt, sob o argumento de que este era sexista. É
importante dizer que, atualmente, Fémina premia tanto escritoras quando escritores. Disponível em:
<http://www.prixfemina.org/tagged/histoire-du-prix-femina>. Acesso em: 4 jun. 2015.
29
No livro do professor Écho 2, os autores explicitam apenas que Amélie Nothomb representa uma
escritora belga de língua francesa, cujo sucesso se deve à sua verve e imaginação. Entre as suas obras,
eles citam Hygiène de l’assassin, Stupeur et tremblements e Le Robert des noms propres. Quanto a Anna
Gavalda, mencionam que nasceu na década de 1970 e atuou como professora de francês. Em 1999,
publicou Je voudrais que quelqu’un m’attende quelque part e, em 2004, Ensemble c’est tout, que fez
muito sucesso na França.
30
Le retour à la terre constitui-se em uma série de histórias em quadrinho que versam sobre o modo de
vida no campo, tendo como personagens principais o desenhista Manu e sua esposa, que deixaram a
cidade parisiense para ter uma vida mais tranquila. Disponível em: <http://ruralia.revues.org/1111>.
Acesso em: 4 jun. 2015.
136
professor deve se ater sobretudo à quantidade de atividades que os alunos são capazes
de fazer. Além dessa observação, a impressão que se tem é a de que os trechos literários
propostos no método Écho 2 estão soltos, descontextualizados e demandam que os
alunos tenham um conhecimento linguístico, sociolinguístico e lexical superior ao nível
A2 descrito no CECR, que só será atingindo ao término desse método. Nesse sentido,
acredita-se que os autores se preocuparam sobretudo com a autenticidade dos textos, em
estimular nos alunos uma postura autônoma, desconsiderando a importância da
didatização da obra, de sua pertinência, performatividade e funcionalidade para o
público em questão, como defendem Maddalena de Carlo (1998) e outros estudiosos do
campo.
Cabe ainda enfatizar que as orientações pedagógicas sobre o projeto vêm
descaracterizando o sentido dessa atividade no âmbito acadêmico e escolar ao limitá-la
à simples execução de tarefas, bem como atrelam o professor a um papel mecanicista. A
aplicabilidade de um projeto em sala de aula não se centra em um fazer, mas implica
que os envolvidos, alunos e professores, tenham uma postura de pesquisador, sejam
capazes de mobilizar teoria e prática. No caso do professor, em específico, ele deverá
atuar como orientador, sugerindo novas fontes de pesquisa a seus alunos-pesquisadores
e ajudando-os a aceder ao conhecimento almejado.
Como ferramenta complementar, o método apresenta vídeos fictícios e
autênticos. Os autores ressaltam que os alunos podem usar esse material de maneira
autônoma. Com relação ao primeiro grupo, o livro Écho 2 contém 16 episódios, com
fichas para professores e alunos, visando a trabalhar a compreensão oral, aspectos
lexicais e pontos gramaticais. O manual oferece também cinco reportagens de France
137
24;31 todavia, os objetivos parecem ser os mesmos, e o componente cultural continua a
ser explorado como se fosse menos relevante que as outras competências.
Como considerações finais sobre os métodos didáticos, as críticas aqui lançadas
não objetivam propor o fim da adoção desse suporte nas aulas de LE, mas chamar a
atenção dos professores para a importância de fazer uma análise crítica do conceito de
cultura mediado neles. Com base no método Écho 2, pode-se observar que o ensinoaprendizado do componente cultural ainda procura civilizar o Outro. Se antes sua
função se concentrava em passar saberes, valores, conhecimentos históricos, literários e
humanísticos, com a abordagem comunicativa (AC) e a perspectiva acional (PA)
verifica-se que sua mediação visa a transmitir regras de comportamento atreladas ao
cotidiano, à realidade sociocultural. Em cada situação comunicativa, os alunos
aprendem o que devem e podem dizer. Logo, constata-se uma busca de adaptar o sujeito
ao contexto social.
Conforme os pensadores da modernidade e da pós-modernidade, como Bauman
e Arendt, entre outros, a cultura é paradoxal, sua existência depende da manutenção da
tradição, mas também reivindica que o sujeito rompa com a “mesmidade”,32 o “idem”, e
busque sua “ipseidade”, sua singularidade. Importa dizer que a simples transmissão de
valores, de savoir-faire, não permite que o sujeito reflita sobre sua identidade e
enxergue o Outro.
31
France 24 constitui um canal de televisão internacional criado em 6 de dezembro de 2006 pelo
presidente Jacques Chirac como forma de combater o poder da emissora americana CNN, da britânica
BBC e da qatar Al Jazeera. Seu slogan, “Liberdade, Igualdade e Atualidade”, está embasado no da
Revolução Francesa. Disponível em: <http://www.programme-tv.net/news/tv/46138-france-24programmes-audiences-presentation-chaine>. Acesso em: 7 jun. 2015.
32
Em O si-mesmo como Outro (2014), os conceitos de mesmidade e ipseidade foram empregados pelo
pensador Paul Ricoeur objetivando mostrar que, ao narrar sobre sua identidade, o sujeito dá espaço ao
indivíduo, permitindo a dialética entre o si e o mesmo.
138
3.2.2 Atividades interculturalistas de Christiane Tagliante analisadas sob diversos
prismas
Na tentativa de compreender melhor o tratamento do componente cultural na
perspectiva interculturalista, a presente pesquisa considerou importante também
analisar, em particular, as orientações e as atividades de Christiane Tagliante, que atua
como especialista na área do FLE e é responsável pelo Polo Avaliação e Certificação do
Ciep, sendo autora de diversos livros nesse domínio. Em La classe de langue (2006), no
10o capítulo, intitulado “La civilisation, la culture, le socioculturel, l’interculturel”, a
autora oferece aos professores duas fichas: “La Fête de Pâques” e “Dis-moi comment tu
payes, je te dirai qui tu es”.
No entanto, antes de apresentar suas fichas, Tagliante faz uma breve
contextualização do uso do componente cultural nas aulas de língua, chamando a
atenção para o fato de que somente a partir da metodologia audiovisual (MAV)
“cultura” e “civilização” passaram a ser estudadas de forma dissociada nos métodos de
ensino e ganharam práticas distintas. A cultura diz respeito aos eventos sociais de nossa
realidade, e a civilização remete à tradição, aos valores morais. Enfatiza ainda que o uso
de documentos autênticos contribuiu para que estudiosos do campo refletissem sobre as
diferenças existentes entre “cultura culta”, “cultura histórica”, “cultura midiática” e
“cultura antropológica”.
Todavia, a autora também não as define. Com base nos estudos feitos sobre o
aspecto cultural, o presente estudo compreende que a cultura culta diz respeito ao
conhecimento literário, às artes e remete a um saber mais erudito, demandando poder
econômico, capital (BOURDIEU, 1998). A segunda está presente nas lembranças, nas
139
memórias do sujeito (HALL, 2014). A terceira é adquirida por meio das mídias e se
caracteriza por ser volátil e colocar em questão a tradição (BAUMAN, 2003). E, por
último, a quarta se caracteriza por investigar as divergências culturais existentes no
mundo, com base, por exemplo, nos mitos, nas religiões e nas línguas de cada povo
(LAPLANTINE, 2012).
Sobre a abordagem intercultural no ensino de LE, Tagliante diz, com base na
enunciação de Louis Porcher (1998), que, para que a dimensão “interculturalista” ou
“comparatista” se consolide, ela deve ser ensinada nas salas de aula. Com essa
observação, a impressão que se tem dessa enunciação, inicialmente, é de que o professor
precisa melhorar sua formação e incorporá-la em suas práticas.
Convém dizer, no entanto, que existem críticas pertinentes, de estudiosos
consagrados, às abordagens interculturalistas. Marmoz e Mohamed (2001), com base
em Pierre Furter, como primeira crítica explanam que o intercultural, tal como é
concebido em FLE, parece minimizar a complexidade das relações interculturais ao se
limitar, sobretudo, à comunicação e desconsiderar as dimensões econômicas, sociais e
políticas. Nesse caso, os autores apontam como primeiro problema sua fragilidade
teórica.
Além disso, Marmoz considera que as ações interculturalistas servem para
facilitar o funcionamento do mercado e manter a atual estrutura social. Acrescenta ainda
que princípios como o respeito e o direito à diferença podem atuar para que não se
questione o sistema de dominação vigente. Convém lembrar que essas ações remetem à
educação reprodutora, discutida no segundo capítulo desta pesquisa.
Como terceira crítica, vale recuperar a crítica de Jacques Demorgon (2005), feita
na introdução desta pesquisa. Para o autor, a proposta interculturalista não traz nada de
inovador. Ele argumenta evidenciando que, ao longo da história, ações de caráter
140
interculturalista sempre aconteceram dentro e fora das comunidades. Acredita ainda que
o intercultural voluntário (criado) visa a ocultar o intercultural factual (real). Em sua
concepção, o processo de adaptação cultural é um fenômeno que ocorre de forma
espontânea, ou seja, tem de certa forma a aquiescência da sociedade; portanto, não
depende apenas de intervenção política e educacional.
Demorgon (2005, p. 25) diz ainda que:
A cultura como processo adaptativo permanente deve poder sempre
retomar as escolhas anteriores e adaptá-las em razão das mudanças.
Essa adaptação é também sempre antagonista. Abertura, mas também
fechamento; unidade, mas também diversidade; estabilidade, mas
também mudança.33
Embora o presente estudo reconheça os problemas concernentes à abordagem
intercultural e defenda que o principal papel do professor deve ser o de promover uma
educação para o devir humano, não se pode desconsiderar que essa proposta pode ajudar
na mediação de culturas distintas, favorecendo, assim, que os sujeitos interajam e se
conheçam melhor. Contudo, este estudo defende uma mediação interculturalista
fundamentada na materialidade histórica e em princípios éticos, que, seguindo a linha de
pensamento de Emmanuel Levinas, ocorre quando o Outro não é reduzido ao Mesmo.
Com relação às orientações de Tagliante na mediação do componente cultural, a
autora sublinha que os documentos autênticos têm discursos que não são neutros e
aconselha os professores a evitar temas que possam “chocar os alunos” (p. 166). A
preocupação da autora em limitar o tipo de assunto a ser abordado nas aulas de língua
vem a confirmar a hipótese de que muitas propostas interculturalistas manipulam a
mediação do componente cultural com o propósito de promover a interação entre as
No original: “La culture en tant que processus adaptatif permanente doit toujours pouvoir reprendre
les choix antérieurs et les adapter en raison des changements. Cette adaptation est ainsi toujours
antagoniste. Ouverture mais aussi Fermeture, unité mais aussi diversité, stabilité mais aussi
changement…”
33
141
culturas em jogo. Nesse sentido, o papel do professor seria o de mascarar as
divergências culturais e atuar como um mediador a favor da alienação e contra a ética.
No que diz respeito às fichas pedagógicas de Tagliante, convém dizer que “La
Fête de Pâques” foi elaborada para alunos com nível de francês equivalente ao B1
(intermediário) e versa sobre as festas religiosas. Na segunda ficha, contemplando o
nível A1, intitulada “Dis-moi comment tu payes, je te dirai qui tu es”, a autora salienta
que o objetivo dessa atividade será trabalhar a competência cultural e a linguística.
Importa ressaltar que, nas duas atividades, Tagliante enfatiza a importância de o
professor promover a comparação entre a cultura-fonte e a cultura-alvo. Outro fator que
deve ser comentado diz respeito aos tipos de informação. Para a autora, a “cultura culta”
e a “cultura midiático-antropológica” precisam ser dosadas.
A primeira ficha, “La Fête de Pâques”, apresenta um texto enciclopédico,
trazendo, inicialmente, o título “Número de crentes na França” e ao lado a data: 1990.
Na linha subsequente, há uma grade na qual estão listadas, em ordem decrescente,
católicos, mulçumanos, judeus, protestantes e budistas, com os respectivos números de
adeptos. Em seguida, o autor do texto destaca que na França as festas religiosas,
marcadas por feriados, são todas católicas. Após oferecer ao leitor esses dados gerais, o
autor se limita a dar informações sobre a festa da Páscoa, de forma descritiva.
Quanto à forma de abordagem do texto em questão, Tagliante sugere que o
professor faça estas perguntas aos alunos:
— Por que razão a festa da Páscoa é tida como uma data importante?
— No seu país, festeja-se a Páscoa?
— Existem tradições diferentes nos outros países? (Por exemplo, na
Alemanha, é um coelho branco que esconde os ovos.)
— No seu país, os feriados estão relacionados com as festas
religiosas? (TAGLIANTE, 2006, p. 168)34
No original: “— Pour quelle raison la date de la fête de Pâques est-elle importante? — Dans votre
pays, fête-t-on Pâques? — Y a-t-il des traditions différentes dans les autres pays (Par exemple, en
34
142
Convém dizer que o texto de base não ajuda os alunos a responder às questões
supracitadas, bem como não ajuda a fazer muitas inferências. Portanto, o debate se
centra, sobretudo, no conhecimento de mundo dos alunos. O texto não oferece
informações capazes de provocá-los, de desestabilizar suas concepções sobre sua
referência de mundo e a referência do Outro, pois não traz nada de novo que seja capaz
de mexer com os conhecimentos cognitivos dos alunos.
Quanto à segunda, à terceira e à quarta perguntas, elas se enquadram na
categoria de questões fechadas, que não favorecem o diálogo e a interação. Portanto,
não trazem contribuições relevantes aos envolvidos na interação. O professor terá de
contar com o interesse dos alunos em desenvolvê-las.
Cabe dizer que o gênero discursivo escolhido foi também um artigo
enciclopédico. Os objetivos e as atividades propostas se assemelham muito aos do livro
didático Écho 2. O componente cultural continua a ser abordado de maneira bastante
superficial. Com esse tipo de enfoque, a impressão que se tem é de que, mais uma vez, o
texto é apenas um artifício para trabalhar as expressões oral e escrita.
Deve-se relembrar que a neutralidade é a principal característica desse tipo de
texto. Não há a presença dos discursos diretos, indiretos e indiretos livres, adjetivos,
modalizadores, usos expressivos dos sinais de pontuação, nem de outros fenômenos
linguísticos e não linguísticos que permitam ao leitor identificar um ser humano no
texto. Portanto, esse suporte parece coadunar com as orientações de Christine Tagliante,
já mencionadas, que consistem em não oferecer aos alunos textos capazes de chocá-los.
Contudo, o presente estudo acredita que, se não há choque e espanto, não há
aprendizagem. O ato de aprender reivindica a desestabilização do que já se conhece,
reivindica entrar em contato com algo novo. No que diz respeito à ação de ensinar, ela
Allemagne, c’est un lapin Blanc qui cache les oeufs.) — Dans votre pays, les jours de congés
correspondent-ils généralement à des fêtes religieuses?”
143
deve estar centrada na reflexão, em despertar o gosto do sujeito por pensar e em lhe
proporcionar o prazer dos insights.
Cabe comentar que, em um contexto marcado pelas tecnologias de informação e
comunicação (TICs), os sujeitos podem ter acesso a esse tipo de informação generalista
sobre a Páscoa sem sair de casa. Para o educador e pesquisador Reuven Feuerstein35
(2014), a relevância do professor dentro da atual sociedade consiste em agir como um
mediador capaz de ajudar os sujeitos a interpretar seu contexto político, econômico e
social, a compreender seu papel na sociedade e a refletir sobre sua identidade
(ZANATTA DA ROS, 2002).
Na visão feuersteiniana, o professor mediador é aquele que se dedica a analisar
os procedimentos cognitivos ativados pelos alunos, e não apenas a transmitir
conhecimentos. Além disso, segundo o autor, a simples exposição direta das crianças e
dos sujeitos a estímulos no contexto social não promove a modificabilidade cognitiva
do sujeito. Como Vygotsky, Feuerstein defendia que o desenvolvimento das estruturas
intrapsíquicas depende também de relações interpsíquicas.
Não resta dúvida de que Feuerstein se embasou nas teorias de Lev Semenovic
Vygotsky, para quem a aquisição do pensamento formal depende do acesso à cultura e à
história e da mediação humana. Essa sua asserção deu à educação, à pedagogia e à
didática outro status, pois demonstrou que os fatores genéticos não eram determinantes
para o funcionamento cognitivo. Para Vygotsky, com estímulos as pessoas poderiam
melhorar sua capacidade intelectual (CAMBI, 1999).
35
Ao contestar as teorias de 1940 e de 1950, que tentavam atribuir o fracasso escolar de algumas crianças
a fatores de ordem biológica, genética, étnica, social e cultural, o professor e psicopedagogo israelense
Reuven Feuerstein procurou demonstrar que a inteligência humana pode ser modificada
independentemente das circunstâncias impostas. Todavia, destacou que a modificabilidade cognitiva
estrutural (MCE) dos sujeitos necessita da ação de um professor, de um mediador comprometido com o
aluno, com o mediado, tentando compreender, de modo deliberativo, sua lógica de pensamento, de
raciocínio (ZANATTA DA ROS, 2002; FEUERSTEIN, 2014; FALIK, 2014).
144
Deve-se relatar que os critérios de mediação criados por Feuerstein partiram da
teoria de zona proximal, de Vygotsky, que permite ao professor avaliar melhor as
tarefas que os sujeitos são capazes de fazer, de forma autônoma, e as que têm a
potencialidade de realizar, mas precisam inicialmente da ajuda de um mediador para
executá-las.
Feuerstein desenvolveu inicialmente o conceito de experiência da aprendizagem
mediada (EAM), estabelecendo determinados critérios de mediação que possam ajudar
o professor/mediador no processo de aprendizagem de quem se encontra “excluído”, à
margem do sistema de ensino, não se enquadrando no padrão de competência cognitiva
concebida como “normal”. É oportuno salientar que a relevância de suas pesquisas
consiste, sobretudo, em articular teoria e prática e conseguir atender às reais
necessidades da sociedade.
Para Feuerstein, o educador/mediador precisa, inicialmente, de três fatores:
intencionalidade, que consiste em precisar os objetivos de compartilhar, de pensar e de
discutir sobre determinado conhecimento; estratégias e recursos utilizados, se eles são
significativos para os alunos; e coparticipação do aluno. Com relação ao ato de
aprender, Silvia Zanatta Da Ros faz ainda esta observação:
A educação, nesse contexto, requer a presença de uma pedagogia que
considere o desenvolvimento do que se chama “autoplasticidade do
ser humano”, ou seja, da modificabilidade que lhe permite estar aberto
para apreender o novo que se mostra, entre outros aspectos, nos
avanços tecnológicos e nas diferentes formas de comunicação que
organizam o viver dos homens na contemporaneidade. Essa condição
de modificabilidade, que se traduz pela possibilidade de percorrer uma
trajetória diferente daquela já vivenciada, é importante porque, ao se
produzirem transformações nas relações que pautam o viver dos
homens, são produzidas, no mesmo instante, demandas de plasticidade
para o exercício de novos e diferentes processos psicológicos, tanto
afetivos como cognitivos. (ZANATTA DA ROS, 2002)
145
Feuerstein evidencia que a intencionalidade do mediador e o surgimento do
espírito de cooperação entre professor e aluno favorecem a transcendência, a
extrapolação. Em sua linha de pensamento, tal procedimento cognitivo se manifesta
quando o aprendiz se torna capaz de promover a interação de seus conhecimentos
prévios com os novos, ampliando, assim, sua visão de mundo.
Seguindo as análises da proposta de Christiane Tagliante, o presente estudo
versará nas próximas linhas sobre a segunda ficha, “Dis-mois comment tu payes, je te
dirai qui tu es”. Nessa atividade, a autora propõe não apenas que o professor promova
um debate sobre as vantagens e as desvantagens das diferentes formas de pagamento,
fazendo um contraponto entre a cultura-fonte e a cultura-alvo, mas também que os
alunos manipulem cartão de crédito, cheque e dinheiro. Como segunda tarefa, sugere
que seja distribuído aos alunos um questionário contendo diversos produtos, no qual
eles deverão escolher o modo como cada item seria pago. Por último, para lançar uma
discussão em sala, a autora orienta que o professor se sirva de documentos cuja temática
seja a idade adequada para que o jovem tenha cartão de crédito.
Ao analisar as propostas dessa atividade, verifica-se que a autora busca levar
para a sala de aula a atmosfera de compra, que remete ao método “Simulação global”,
cujo principal criador, Yaiche (1996, p. 70), considera que:
A simulação global pode ser considerada, em muitos aspectos, como
um mosaico de atividades que contribuem para um projeto global, a
construção de um lugar de vida, uma esfera que é na verdade uma
bolha imaginária. Tomadas isoladamente, essas atividades não têm na
maior parte do tempo nenhum caráter lúdico: trata-se, de fato, de
escrever uma biografia, um perfil de personagem, compor um texto
que descreve uma paisagem, um quarto, um prédio, um hotel etc., mas
cada uma dessas atividades está implícita no pressuposto de que
jogamos, que “fingimos”, que representamos a vida, que atuamos no
jogo da vida.36
No original: “La simulation globale peut être considérée à bien des égards comme une mosaïque
d’activités qui concourent à un projet global, la construction d’un lieu de vie, une sphère qui est en
réalité une bulle d’imaginaire. Prise isolément, ces activités n’ont la plupart du temps aucun caractère
36
146
Embora essa atividade tenha sua relevância nas aulas de língua, pois favorece o
trabalho da expressão oral dentro de determinada situação comunicativa, a autora não
propõe uma abordagem reflexiva e crítica do componente cultural. As informações
sobre a relação entre dinheiro e as culturas em jogo são tratadas de maneira muito vaga.
Em suma, o componente cultural se limita à descrição de comportamentos, do modo
como um grupo de sujeitos de determinada cultura age. Sabe-se que, de acordo com a
classe social, a idade, o sexo, o contexto social e histórico, a maneira de apreciar o
dinheiro e as coisas mudam.
No que diz respeito ao método comparativo, François Laplantine diz:
Lembremos em primeiro lugar que a análise comparativa não é a
primeira abordagem do antropólogo. Este deve passar pelo caminho
lento e trabalhoso que conduz da coleta e impregnação etnográfica à
compreensão da lógica própria da sociedade estudada (etnologia). Em
seguida, apenas poderá interrogar-se sobre a lógica das variações da
cultura (antropologia). Vale dizer que o pesquisador deve ter uma
prudência considerável. Antes de serem confrontados uns aos outros,
os materiais recolhidos devem ser meticulosamente criticados. Pois, se
começarmos comparando os costumes de dada população africana
com os de tal outra europeia, chegaremos apenas a evidenciar algumas
analogias. Mas então, como diz Kroeber, as “universalidades”
encontradas poderiam muito bem ser apenas a projeção de “categorias
lógicas” próprias somente da sociedade do observador…
(LAPLANTINE, 2012, p. 163)
Laplantine enfatiza ainda que o método comparativo da antropologia
contemporânea difere da abordagem comparatista dos primeiros etnólogos. No atual
contexto, os antropólogos comparam costumes, comportamentos, levando em
consideração seus contextos. Para tanto, fazem inicialmente um estudo etnográfico e,
por conseguinte, propõem uma análise de natureza etnológica.
ludique: Il s’agit en effet d’écrire une biographie, un portrait de personnage, de composer un texte
décrivant un paysage, une chambre, un immeuble, un hôtel etc, mais chacune de ces activités est sousentendue par le postulat que l’on joue à “faire comme si”, que l’on répresente la vie, que l’on joue au jeu
de la vie.”
147
Como consideração final sobre o método comparativo, é oportuno destacar que
esse tipo de atividade precisaria ser abordado de maneira mais cuidadosa no ensino de
FLE, considerando sua complexidade. Na verdade, ao omitir a heterogeneidade presente
nas culturas, os professores podem também estar agindo para reforçar preconceitos e
clichês.
Não resta dúvida de que uma proposta comparativa capaz de considerar a
diversidade no contexto interno e externo demanda tempo. Portanto, parece mais lógico
muitas vezes que o professor se detenha em analisar junto com os alunos a
heterogeneidade e a homogeneidade dentro de determinada cultura, procurando
compreender os motivos de tais divergências e semelhanças, ancorados em documentos
nos quais os legados das culturas em jogo possam ser sentidos e depreendidos. A título
de exemplo, o professor pode tratar da questão da variedade linguística no território
francês contrapondo com a imagem corrente nos métodos de FLE de que os franceses
dominam a norma culta e têm como “único” sotaque o francês parisiense.
Ainda sobre a questão da proposta de comparações culturais, deve-se ressaltar
que o presente estudo reconhece a teoria interculturalista no ensino de línguas. Cabe
dizer ainda que a proposta de Silvana Serrani (2005), baseada na análise do discurso de
linha francesa, toca em questões linguísticas, discursivas, culturais, políticas, abordando
o sentido dentro de sua complexidade, indo ao encontro dos princípios de uma
mediação cultural crítica, voltada para o devir humano.
Sobre a análise de discurso (AD), é pertinente ressaltar que ela surgiu nos anos
1960, visando a estudar o discurso do ser humano em sociedade, e não apenas a língua,
a frase, de modo isolado. Para tanto, filiou-se às ciências sociais e à linguística,
confrontando o político e o simbólico e permitindo a reflexão sobre a materialização da
linguagem na ideologia e a manifestação da ideologia na língua. Diferentemente dos
148
estudos textuais anteriores, Orlandi (2003) enfatiza que a AD não se interessa apenas
por extrair o conteúdo textual, mas por entender como o texto significa.
Na linha de pensamento de Serrani, o professor de língua deve ser um mediador
cultural, um interculturalista; mas, para tanto, precisa atuar como:
Um sujeito capaz de convocar todos os componentes que lhe
permitem compreender melhor a complexidade da linguagem, bem
como os conceitos teóricos subjacentes às propostas de ensino de
linguagem, os planos de aula, as opções políticas, científicolinguística, socioeducacional e cultural possíveis [sic] e as atividades
linguístico-discursivas de professores e alunos. (SERRANI, 2005, p.
47)
No que diz respeito à linguagem, Serrani reivindica que o professor seja capaz
não apenas de interpretar os elementos intradiscursivos, os enunciados, as sequências
linguístico-discursivas, mas também o interdiscurso, que diz respeito às memórias
implícitas. Com o intuito de reforçar que a significação se processa além do contexto, a
autora chama a atenção também para o fato de que os sentidos dos enunciados se
constroem em função das imagens, dos papéis que os sujeitos exercem na sociedade.
Sobre as formações imaginárias, Orlandi faz tais considerações:
Todos esses mecanismos de funcionamento do discurso repousam no
que chamamos formações imaginárias. Assim, não são os sujeitos
físicos nem seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão
inscritos na sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos,
que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de
projeções. São essas projeções que permitem passar das situações
empíricas — os lugares dos sujeitos — para as posições dos sujeitos
no discurso. (ORLANDI, 2001, p. 40)
No que diz respeito aos papéis sociais em outra cultura, Serrani (2005) cita como
exemplo o caso de sociedades em que os garçons podem expor suas opiniões sobre a
escolha do cliente e lhes sugerir um prato, e outras que consideram tal atitude
149
inadequada, pois têm outras memórias discursivas sobre o cenário do restaurante e as
relações entre os envolvidos em jogo. Para alguns povos, o papel do garçom é o de
atender o cliente e de falar apenas quando solicitado. Quanto ao efeito do
desconhecimento dessas posições pelos sujeitos, a autora menciona os mal-entendidos.
É relevante destacar que a compreensão da cultura-alvo nas aulas de LE se
realiza muitas vezes em função dos conhecimentos, das referências da cultura de
partida. Na abordagem de aspectos culturais em aulas de língua, Serrani (2005)
considera relevante que o professor parta da cultura-fonte como forma de valorizar os
conhecimentos prévios do aluno e sua identidade e, em seguida, contraponha-a à
cultura-alvo, a fim de que os sujeitos envolvidos possam enxergar o Outro e a si
mesmos, além das mediações estigmatizadas pelo senso comum e por outros
mediadores.
Cabe dizer que, para alunos iniciantes, o contraponto com a cultura-fonte,
quando estudado de maneira crítica e complexa, ajuda-os a se aproximar mais desse
Outro, tido como um “estrangeiro”, um “estranho”, e a refletir sobre sua própria
identidade. Todavia, nos níveis intermediários e avançados, enxergar o Outro sem tentar
interpretá-lo com base no próprio referencial cultural, mas, sobretudo, procurar
compreender seus valores em função de sua realidade, de sua historicidade, pode ser
uma proposta de mediação do componente cultural ainda menos etnocêntrica.
Ao considerar que o aspecto cultural pode ser abordado também partindo da
própria cultura de chegada, o presente estudo procurou conhecer melhor as teorias
tradutórias de Lawrence Venuti (2002) e analisar se elas podem ser consideradas no
ensino-aprendizado de LE. Convém ressaltar que Venuti é reconhecido por trazer
debates polêmicos ao campo, questionando não apenas a invisibilidade do tradutor
150
nesse espaço, mas também acusando a prática tradutória de agir na manutenção e na
reprodução do poder ao privilegiar mais uma cultura que outra.
Sob a ótica de Venuti (1996), o tradutor também deveria conduzir o leitor ao
texto de origem e mostrar-lhe que a obra traduzida é uma tradução. Dessa forma,
defende como procedimento tradutório a estrangeirização, que compreende a
manutenção da estranheza do texto original e da cultura de partida. Em contrapartida,
critica os procedimentos que objetivam apagar a existência do tradutor, dando ao leitor a
ilusão de estar diante do texto original. Além disso, condena tal atitude sob o argumento
de considerá-la não apenas romântica e idealizadora, mas de pretender domesticar o
estrangeiro, o que revela determinado comportamento imperialista. Para Venuti, o
[…] “estrangeirismo”, na tradução estrangeirizadora, não é uma
representação transparente de uma essência que reside no texto
estrangeiro e que tenha valor em si, mas uma construção estratégica
cujo valor depende da situação em vigor na cultura receptora. A
tradução estrangeirizadora mostra as diferenças do texto estrangeiro,
porém somente por meio da ruptura dos códigos culturais que
prevalecem na cultura-alvo. No empenho de fazer o que é próprio à
cultura de partida, essa prática tradutória deve fazer o que é impróprio
à cultura de chegada, desviando-se o suficiente das normas para
apresentar uma experiência estranha — escolhendo para traduzir um
texto estrangeiro excluído pelos cânones literários da cultura
receptora, por exemplo, ou usando um discurso marginal para traduzilo. (2002, p. 10)
Venuti salienta que as obras, em geral, são traduzidas para o inglês, delegando
assim mais poder cultural, político e econômico aos Estados Unidos. Como forma de
contra-ataque, relata que passou a traduzir, sobretudo, textos estrangeiros de culturas
minoritárias, propondo a tradução estrangeirizadora, que consiste em traduzir voltado
para o Outro. Justifica:
Minha preferência pela tradução minorizante também se dá a partir de
uma postura ética que reconhece as relações assimétricas em qualquer
projeto de tradução. A tradução nunca pode ser simplesmente a
151
comunicação entre similares, porque ela é fundamentalmente
etnocêntrica. A maioria dos projetos literários tem início na cultura
doméstica, onde um texto estrangeiro é selecionado para satisfazer
gostos diferentes daqueles que motivaram sua composição e recepção
em sua cultura nativa. E a função mesma da tradução é a assimilação,
a inscrição de um texto estrangeiro com inteligibilidade e interesses
domésticos… (VENUTI, 2002, p. 27)
A respeito da relevância das reflexões venutianas para a abordagem do
componente cultural no ensino de FLE no Brasil, embora não se tenha aqui o mesmo
poder político-econômico dos Estados Unidos e da França, os brasileiros também
questionam os costumes e hábitos de outros povos, e até mesmo os condenam, porque
os leem ancorados, muitas vezes, em suas referências culturais. Para Friedrich
Schleiermacher (2001, p. 35-37), “cada pessoa é dominada pela língua que fala, ela e
todo o seu pensamento são um produto dela”.
Venuti esclarece ainda que os atos de domesticar, ou seja, traduzir centrado em
sua cultura, e o de estrangeirizar, ou seja, traduzir centrado no Outro, não podem ser
vistos de forma dicotômica e maniqueísta. Convém dizer que essa observação do autor
tem como objetivo contrapor as críticas lançadas a seu projeto tradutório, que são
explicitadas no excerto a seguir:
Diferentemente do que alegam meus críticos, os termos
“domesticação” e “estrangeirização” não estabelecem uma clara
oposição binária que pode simplesmente ser encaixada sobre as
estratégias discursivas de “fluência” ou “resistência”, e nem podem
esses dois conjuntos de termos ser reduzidos aos verdadeiros binários
que proliferaram na história da crítica da tradução, como “literal” vs.
“livre”, “formal” vs. “dinâmica” e “semântica” vs. “comunicativa”. Os
termos
“domesticação”
e
“estrangeirização”
indicam
fundamentalmente atitudes éticas em relação a um texto e uma cultura
estrangeira, efeitos éticos produzidos pela escolha de um texto para
tradução e pela estratégia escolhida, enquanto termos como “fluência”
e “resistência” indicam fundamentalmente características discursivas
de estratégias de tradução em relação ao processamento cognitivo do
leitor. Ambos os pares de termos demarcam um espectro de efeitos
textuais e culturais cujas descrições e análises dependem da relação
entre um projeto de tradução e os arranjos hierárquicos de valores na
152
situação de chegada em um dado momento histórico. (VENUTI, 1996,
p. 19; grifos do autor)
Cabe destacar que o presente estudo também chamou a atenção para o fato de
que a valorização de determinados idiomas nas diretrizes educativas e nos currículos
escolares não é neutra, pois há sempre subjacente a tal escolha questões de ordem
política, econômica e cultural. Além disso, constatou-se também que o professor pode
atuar na internalização ou na contrainternalização das ideologias vigentes.
Quanto ao modo de abordar o componente cultural, assim como Venuti, o
presente estudo também considera legítimos o procedimento de domesticação e o de
estrangeirizar no ensino de línguas, e não os vê como propostas dicotômicas. A escolha
de um em detrimento do outro exige que o professor seja capaz de analisar o contexto
de ensino-aprendizado. Em outras palavras, os meios de acesso ao conhecimento não
podem se sobrepor aos objetivos.
Ao ler o trecho a seguir, no qual Venuti descreve as competências de um
tradutor, verificou-se que tais ideologias e práticas coadunam com as orientações
propostas para o professor de LE ao longo desta tese:
O conhecimento da cultura de partida, ainda que em nível de
expertise, é insuficiente para produzir uma tradução que é ao mesmo
tempo legível e resistente a uma redução domesticadora. Os tradutores
devem possuir também um conhecimento amplo da língua e cultura de
tradução, tanto passada quanto presente. E eles devem ser capazes de
implantar esse conhecimento na escrita. A seleção de um texto
estrangeiro para tradução e a intervenção de uma estratégia discursiva
para traduzi-lo deve se basear em uma avaliação crítica da cultura de
recepção, suas hierarquias e exclusões, suas relações com as culturas
estrangeiras em todo o mundo. Antes de escolher um texto estrangeiro
ou aceitar uma tradução, os tradutores devem escrutinar a atual
situação do gênero textual e do tipo de texto, área ou disciplina em
que estão operando… (VENUTI, 1996, p. 267)
153
No que diz respeito ao ato de domesticar e ao de estrangeirizar, deve-se
mencionar que Venuti se inspirou, em particular, nas orientações de Friedrich
Schleiermacher, filósofo, teólogo, professor e tradutor que revolucionou os estudos
tradutórios no século XIX ao dizer que “ou o tradutor deixa o autor em paz e leva o
leitor até ele, ou deixa o leitor em paz e leva o autor até ele” (2001, p. 43). Todavia,
Schleiermacher, diferentemente de Venuti, abordava tais procedimentos como se
fossem práticas dicotômicas e mostrava que defendia o primeiro, pois o enxergava
como um ato de resistência ao apagamento da identidade estrangeira em um contexto no
qual a França e a língua francesa detinham o poder político-cultural e a Alemanha
procurava se constituir como nação. Para tanto, o autor contesta a concepção de cultura
universalista francesa, condenando as práticas tradutórias ancoradas ainda nos
princípios das belles infidèles, que pregavam uma tradução voltada para a cultura de
chegada.
Venuti comenta ainda que:
Schleiermacher oferece ao tradutor a escolha entre uma prática
domesticadora, uma redução etnocêntrica do texto estrangeiro aos
valores culturais da situação de recepção, trazendo o autor para casa, e
uma prática estrangeirizadora, uma pressão etnodesviante de seus
valores para registrar as diferenças culturais e linguísticas do texto
estrangeiro, mandando o leitor para o exterior. (VENUTI, 2008, p. 15)
Segundo Venuti, a proposta de Schleiermacher de estrangeirização das traduções
vai ao encontro dos interesses políticos, econômicos e culturais da elite burguesa alemã.
Em sua concepção, Schleiermacher se valeu de tais princípios ideológicos para que a
Alemanha passasse a dominar o continente europeu. Nessa perspectiva, compreende-se
que tanto a prática de estrangeirizar quanto a de domesticar podem ser utilizadas como
instrumentos de dominação e de transformação.
154
No que diz respeito às traduções centradas na língua e na cultura-alvo, o tradutor
e teórico Antoine Berman, em A prova do estrangeiro (2002), condena a tradução que
valoriza a transmissibilidade e nega a estranheza da obra estrangeira. Em O albergue do
longínquo, afirma que:
Etnocentrismo significará aqui: traz tudo à sua própria cultura, às suas
normas e valores, e considera o que se encontra fora dela — o
Estrangeiro — como negativo ou, no máximo, bom para ser anexado,
adaptado, para aumentar a riqueza desta cultura. (BERMAN, 2007, p.
28)
Após essas reflexões sobre os atos de domesticar e de estrangeirizar, o presente
estudo chama a atenção mais uma vez para o fato de que o processo de ensinoaprendizado não pode ser concebido de maneira binária e aprisionado a determinados
dogmas. No tocante à orientação interculturalista empenhada em promover a interação e
buscando evitar o estranhamento entre a cultura-fonte e a cultura-alvo, é fundamental
que os professores tenham um olhar muito atento e crítico sobre o modo como o
componente cultural é tratado. No âmbito do ensino-aprendizado de LE, constata-se que
a comparação domesticadora vem sendo feita como se fosse a mais plausível,
independentemente de sua pertinência, relevância e funcionalidade, o que pode retomar
princípios das belles infidèles no ensino de LE e ir de encontro à ideologia relativista,
sobre a qual se fundamentou a proposta interculturalista.
É importante destacar igualmente que as teorias mediadas no processo de ensino
são muitas vezes simplificadas e interpretadas de maneira equivocada. Como foi
apresentado na última seção, ainda que os autores tenham dito seguir as orientações
interculturalistas, o que vai de fato confirmar isso é o tratamento dado ao aspecto
cultural e o modo como determinada orientação concebe o papel do professor, se elas o
155
veem, mesmo que de maneira inconsciente, como um agente redentor, reprodutor ou
transformador.
3.3
MEDIAÇÃO CRÍTICA DO COMPONENTE CULTURAL
Na tentativa de contrapor as atuais orientações pedagógicas e didáticas, que
tratam a cultura como um simples saber-fazer social, visando à dominação, à
apropriação dos sujeitos, o presente estudo propõe que ela seja mediada sob a égide da
ética e do pensamento crítico. Importa dizer que essa abordagem de ensino-aprendizado
do componente cultural reivindica que o professor de LE domine conhecimentos
linguísticos, discursivos, didáticos, pedagógicos, mas também que conheça outros
campos, a saber, o psicológico, o filosófico, o etnológico, o antropológico, o
sociológico, o tradutório, com base no contexto político, econômico, social e cultural.
No que diz respeito aos procedimentos para uma mediação cultural crítica, o
presente estudo defende que os professores proporcionem aos sujeitos um espaço que
não apenas sirva para falar sobre o Outro e sobre si mesmo, mas para interagir com o
Outro, fazendo como que ele faça parte da interação. Em outras palavras, além dos
relatos sobre o modo de viver, de vestir e de falar da cultura-alvo, é necessário também
que os textos e as situações comunicativas tragam o Outro, com sua voz, identidade,
memória, história, e deem-lhe um rosto, a fim de que ele não se reduza a um simples
objeto de análise cultural.
Levinas compreende que:
156
O rosto é significação, e significação sem contexto. Quero dizer que
outrem, na retidão do seu rosto, não é uma personagem num contexto.
Normalmente, somos “personagem”: é-se professor na Sorbona, vicepresidente do Conselho de Estado, filho de fulano, tudo o que está no
passaporte, a maneira de se vestir, de se apresentar. E toda a
significação, no sentido habitual do termo, é relativa a um contexto: o
sentido de alguma coisa está na sua relação com outra coisa. Aqui,
pelo contrário, o rosto é sentido só para ele. Tu és tu. (LEVINAS,
2014, p. 78-79)
É necessário sublinhar que esse tratamento mais humano do estrangeiro pode
contribuir para que o Outro deixe de ser concebido como simples veículo que permite
satisfazer as necessidades e os caprichos do “eu”. Sensibilizar os alunos a enxergar o
Outro significa dar a esse ser vida própria e também desconstruir a concepção egoísta de
que sua função é de completude.
Para completar tais ideias, valemo-nos desta enunciação de Levinas:
Louca aspiração ao invisível quando uma experiência pungente do
humano ensina, no século XX, que os pensamentos dos homens são
conduzidos pelas necessidades, as quais explicam sociedade e história;
que a fome e o medo podem vencer toda a resistência humana e toda a
liberdade. Não se trata de duvidar da miséria humana — do domínio
que as coisas e os maus exercem sobre o homem —, da animalidade.
Mas ser homem é saber que é assim. A liberdade consiste em saber
que a liberdade está em perigo. Mas saber ou ter consciência é ter
tempo para evitar e prevenir o momento da inumanidade. É o
adiamento perpétuo da hora da traição — ínfima diferença entre o
homem e o não homem — que supõe o desinteresse da bondade, o
desejo do absolutamente Outro ou a nobreza, a dimensão metafísica.
(LEVINAS, 2014, p. 21)
Na perspectiva levinasiana, o reencontro entre o mesmo e o Outro não os funde,
não visa à totalidade. Todavia, isso não quer dizer que eles vão se manter sempre os
mesmos. Segundo o autor, a identidade do “eu” se constrói em função das experiências
vividas, por meio de um ato de identificação infinita com o Outro e com o mundo. Para
tanto, é fundamental que o “eu”, inicialmente, adote uma postura de alteridade consigo
157
mesmo e rompa com a postura individualista e antropocêntrica da modernidade, que
fecha o indivíduo em si mesmo.
É relevante destacar que a alteridade levinasiana não se estabelece sob os
princípios de um humanismo espiritual, redentor e condicionador, mas sob uma ética
que se fundamenta em um pensamento crítico, colocando em questão o racionalismo
dogmático, que procura legitimar uma verdade única e despreza as posições
divergentes. Em outras palavras, para Levinas, o reconhecimento do Outro só é possível
em contextos nos quais os sujeitos reflitam sobre suas certezas. Diferentemente,
portanto, de alguns pensadores da pós-modernidade, ele concebe o passado, a
consciência, a memória como essenciais para o devir do ser humano, pois parte do
princípio de que ele está sempre em reconstrução.
Cabe sublinhar que a proposta de uma mediação cultural crítica objetiva
transcender o pensamento racional da modernidade e da pós-modernidade, que vem
desumanizando o ser humano cada vez mais por meio de uma ideologia centrada no
niilismo, na burocratização e na coisificação. Não se cogita aqui o retorno ao
teocentrismo como meio de aliviar as angústias existenciais dos sujeitos e o fim do
cientificismo. Todavia, indo na mesma direção de alguns pensadores da modernidade,
como Emmanuel Levinas, Hannah Arendt, Theodor W. Adorno e Marx Horkheimer, o
presente estudo acredita que o olhar crítico do sujeito sobre si mesmo permite que ele se
veja como responsável pelo Outro, pela humanidade.
Não se pode deixar de comentar que esses pensadores vivenciaram de perto a
crueldade humana no período da Primeira e da Segunda Guerra Mundial. De acordo
com eles, a falta de análise crítica dos discursos alienantes contribuiu para que os
homens participassem, de maneira direta ou indireta, do genocídio de judeus,
timorenses, bosnianos, ruandeses e japoneses.
158
Quanto aos procedimentos para o ensino-aprendizado do componente cultural,
seguindo a linha de pensamento de Christian Puren (2009), que postula a ideia de que as
abordagens metodológicas se fundamentam na homologia fins-meios, o presente estudo
propõe, inicialmente, que o professor leve para a sala de aula textos de gêneros
discursivos distintos da cultura-alvo, a fim de que os alunos possam abordar
determinado assunto a partir de vários contextos sociais. Segundo Bakhtin (2010), os
enunciados dos discursos remetem a memórias discursivas, permitindo ao leitor
depreender determinadas concepções culturais e histórico-sociais do enunciador.
Cabe dizer que essas vozes provocam o receptor a estabelecer uma relação
dialógica com a cultura-alvo, o que não significa que não haja confrontos e
discordâncias de pensamentos. Bakhtin preconiza que:
Os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a
si mesmo; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos
outros. […] Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros
enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera da
comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo
como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado
campo (concebemos a palavra “resposta” no sentido mais amplo): ela
os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como
conhecidos, de certo modo os leva em conta. (BAKHTIN, 2010, p.
297)
Para a interpretação dos gêneros discursivos em jogo, como Serrani (2005), o
presente estudo se vale das teorias da AD de vertente francesa, dado o fato de a
linguagem é abordada como um fenômeno social, histórico e simbólico. Além disso,
essa proposta contribui para a análise das posições ideológicas (formações ideológicas)
subjacentes aos discursos e permite identificar o modo como o sujeito é afetado pela
historicidade, como aciona a memória institucionalizada (o arquivo, o intertexto), a
memória constitutiva (o esquecido, o interdiscursivo) e as imagens sobre o Outro e
sobre si mesmo (formações imaginárias) em determinada situação comunicativa. Para a
159
AD, o ato de interpretar vai além do dito, do que está na superfície do texto
(ORLANDI, 2001). Ainda de acordo com Orlandi (2001, p. 15): “Na análise de
discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho
simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história.”
Com relação ainda aos textos propostos, convém dizer que eles levam a pensar
nos mitos gregos, que serviam como mediadores entre o mundo e o ser humano. As
mitologias ajudavam o ser humano a refletir sobre sua vida e, por conseguinte, a ter uma
compreensão mais realista de sua existência no universo, conscientizando-se de suas
limitações, de sua finitude, da necessidade de se reinventar e de atuar como um Superhomem37 diante das situações que a vida lhe impõe. Isso reforça a importância da
linguagem simbólica nos textos selecionados, pois ela age não apenas para encantar os
sujeitos, com seu lado apolíneo (belo e perfeito), mas também é capaz de lhes trazer o
espanto, o dionisíaco (feio e imperfeito), ao apresentar os fatos sem encobrir as
contingências da realidade. Nessa perspectiva, é reavaliada a ideia maniqueísta presente
na modernidade de que bem e mal caminham de maneira dissociada (NIETZSCHE,
1992).
Nesse sentido, os textos literários, a ficção, postos à margem na abordagem
comunicativa, dado o fato de que seu objetivo era a cultura cotidiana, são tidos como
essenciais para a proposta de uma mediação cultural crítica. Convém ressaltar que a
proposta interculturalista de pesquisadores como Serrani também reconheceu a
relevância da literatura e de outras linguagens semióticas no contexto de ensinoaprendizado de línguas.
Sobre a importância da arte na vida dos homens, o presente estudo se apropria
desta enunciação nietzschiana:
O termo nietzschiano “Super-homem” designa o indivíduo que está na busca de sua superação dentro
de sua realidade, que age contra o niilismo, a negação da vida.
37
160
Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não
apenas à intelecção (compreensão) lógica, mas à certeza (segurança)
imediata da introvisão de que o contínuo desenvolvimento da arte está
ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco; da mesma maneira
como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é
incessante (contínua) e onde intervêm periódicas reconciliações.
Tomamos estas denominações dos gregos, que tornam perceptíveis à
mente perspicaz os profundos ensinamentos secretos de sua visão da
arte, não, a bem dizer, por meio de conceitos, mas nas figuras
penetrantemente claras de seu mundo dos deuses. (NIETZSCHE,
1992, p. 27)
3.3.1 Tratamento do componente cultural na perspectiva de uma mediação cultural
crítica
Com o intuito de que professores e todos que se interessam pelo ensino de LE
possam compreender melhor o tratamento do componente cultural sob os princípios de
uma mediação cultural crítica, o presente estudo apresenta uma proposta que poderá
servir como forma de contraposição às do método Écho e às de Christiane Tagliante,
fundamentadas nas orientações da PA e do CECR. Para tanto, foram selecionados três
documentos de gêneros distintos: uma charge, o artigo “Pôle emploi a mis en place de
nouvelles méthodes pour faire la chasse aux fraudeurs” e a música Assedic, com o
propósito de que os alunos possam compreender melhor a situação do desemprego, a
realidade dos desempregados, das agências de emprego e do governo francês.
Com relação à escolha dos discursos, as tecnologias de informação e
comunicação (TICs) permitem que professores de LE e alunos tenham acesso mais fácil
à cultura da língua-alvo. No atual contexto, as informações locais atingem as esferas
nacional e internacional. Além disso, a associação de diversas mídias contribui para que
as aulas sejam ainda mais dinâmicas e vivas. O público pode escutar, ver, ler uma
161
reportagem, bem como postar uma mensagem escrita e oral e solicitar mais
informações, não apenas a quem as produziu, tendo também a possibilidade de interagir
com outras pessoas que tenham interesses em comum. Para tanto, os sujeitos se valem
de linguagens distintas, que podem ser interpretadas e mediadas de maneira inter e
intrassemiótica.
Contudo, na situação de ensino-aprendizado, os professores devem precisar a
relevância da utilização de tais recursos midiáticos na mediação do conhecimento, do
saber almejado, a fim de que a tecnologia não se torne o objetivo da aula e nem a
conceba como a salvação da educação. O presente estudo chama a atenção para essa
questão, pois teme os discursos que buscam fetichizar a tecnologia, atribuindo-lhe a
imagem de entidade superior. Convém dizer que o pensador Theodor Adorno já
ressaltava essa inquietação em seus estudos, pois via que a tecnologia e a cultura da
comercialização podem agir como estratégias da modernidade para alienar o ser
humano de sua condição de vida. Em uma de suas obras, ele diz que: “Os homens
inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo,
uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço do homem” (ADORNO,
1995, p. 132).
Quanto ao público, esse material poderá ser explorado com alunos,
contemplando o nível intermediário da língua francesa (A2/B1). O objetivo central
dessa aula será proporcionar que os alunos sejam capazes de refletir sobre a questão do
desemprego no atual contexto político, econômico, social e histórico e de também poder
vivenciar de alguma maneira tal situação, e não a negligenciar, como muitas pessoas o
fazem, sob a ilusão platonista de serem os protagonistas do mundo e de terem poderes
espirituais e metafísicos para transcender tal realidade.
162
Como sensibilização, o professor poderá se valer inicialmente de uma charge, a
fim de que os alunos depreendam o tema de discussão da aula. Esse tipo de gênero
textual, em geral, por sua riqueza significativa, fazendo uso da linguagem verbal e não
verbal e explorando os sentidos denotativos e conotativos das palavras, desperta muitas
vezes a curiosidade dos alunos sobre o componente cultural subentendido.
Atividade 1: Sensibilização ao tema abordado
1)
2)
3)
4)
Leitura da linguagem não verbal.
Leitura da linguagem verbal.
Contexto histórico-social.
Sujeitos sociais (os personagens e o chargista).
Ancorando-se nos princípios da AD, convém dizer que o leitor deverá considerar
os personagens presentes na charge, mas também seu autor, procurando compreender os
motivos pelos quais ele produziu esse texto e as estratégias discursivas utilizadas para
estabelecer uma interação com seu interlocutor e sensibilizá-lo sobre essa questão
social.
Para a segunda atividade, como modalidade de trabalho, cada grupo pode
analisar o texto proposto. É pertinente que o professor estabeleça algumas estratégias de
leitura capazes de fazer com que os alunos ajam como analistas do discurso, e não se
limitem a depreender o significado do texto, mas se ponham a compreender como o
163
texto faz sentido e como os sujeitos são atravessados por seu contexto político,
econômico e social.
Convém dizer que seria interessante também que os grupos abordassem textos
distintos. Todavia, o professor precisaria de mais tempo para a preparação da atividade
e sua realização.
Para exemplificar o modo de leitura que o professor deve privilegiar para tal
proposta cultural, o presente estudo vai se valer do texto a seguir:
Atividade 2: Leitura do texto em pequenos grupos
REPORTAGE — Pôle emploi a mis en place de nouvelles méthodes pour faire la chasse
aux fraudeurs.
Par Alexis Toulonet Sandrine Prioul
Alors que les chiffres publiés lundi montrent une nouvelle progression du nombre de chômeurs,
la question de l’emploi est plus que jamais centrale pour le gouvernement. Afin d’éviter les abus
et de recentrer les efforts de Pôle emploi sur ceux qui en ont vraiment besoin, l’agence a durci le
ton et teste discrètement un nouveau dispositif dans quatre régions pour lutter contre la fraude.
Une méthode qui s’explique par les besoins de l’assurance chômage de faire des économies,
mais dont les méthodes inquiètent chômeurs et agents de Pôle emploi. Europe 1 s’est rendu à
Fécamp, dans un centre expérimental.
Des chasseurs de fraudeurs. Pôle emploi a mis en place une plateforme téléphonique où les
agents sont dédiés à la traque des fraudeurs. Ils épluchent environ cinquante dossiers par
semaine et leur mission est de vérifier que vous cherchez bien du travail. Pour cela, ils appellent
l’URSSAF, vos employeurs et vous, afin d’obtenir tous les justificatifs dont ils ont besoin.
Une traque impersonnelle. Certains agents s’inquiètent toutefois car à Fécamp, la plateforme
Pôle emploi est à une soixantaine de kilomètres de la ville et les contrôleurs appellent les
chômeurs sans les connaître. « Vous avez une personne qui vous appelle et demande des
justificatifs. Moi Je ne mets pas en doute la bonne foi des demandeurs d’emploi, on voit si la
personne cherche activement ou pas », explique au micro d’Europe 1 l’élue CGT Véronique
Riesco.
L’inquiétude des chômeurs. Les contrôles ont, pour le moment, démasqué peu de grosses
fraudes, mais les chômeurs s’agacent de devoir se justifier. « Il fallait justifier les demandes
d’emploi. Je lui ai dit que je cherchais tous les jours du travail et on m’a proposé une offre
d’emploi à laquelle j’avais déjà postulé. Je vais le refaire pour lui faire plaisir », s’agace au
micro d’Europe 1 un transporteur au chômage depuis un an. Or, s’il ne fournit pas
méticuleusement ses justificatifs, il risque une radiation de quinze jours. Entre la punition et le
découragement, les contrôles sont la « double peine », assure Véronique Riesco.
http://www.europe1.fr/emploi/pole-emploi-renforce-les-controles-1783937
164
Ao compreender que o sujeito se constitui em função de sua historicidade, de
sua posição na sociedade e de sua identidade biológica, étnica e psicológica, o presente
estudo considera fundamental para a leitura do texto proposto em sala que os alunos
sejam capazes de analisar os itens a seguir:
1) O documento proposto: finalidade e meios

Qual é sua finalidade? Por que o autor o escreveu?

Como o autor se expressa? Como ele se dirige a seu interlocutor?
2) Os sujeitos e suas posições socioculturais

Quem são? (Como se veem? Como são vistos?)

O que fazem? (Quais são seus papéis sociais?)
3) Os sujeitos e seus contextos sócio-históricos

Onde vivem e em que cenário social?
4) O leitor e o Outro

Quais os efeitos das informações mediadas?

Qual a relevância do documento apresentado?
Nessa etapa da atividade, é fundamental que o professor oriente e estimule os
alunos para que eles consigam interagir com o texto e façam uma leitura mais complexa
da questão social discutida. O objetivo não é apenas que respondam às questões
propostas, mas que sejam capazes de formular novas questões, de enxergar o sentido
dessa tarefa e conseguir aplicá-la em outros contextos (FEUERSTEIN, 2014).
Atividade 3: Apresentação e reflexão dos textos abordados
Após essa tarefa, é fundamental que todos apresentem suas leituras para a classe,
considerando os itens solicitados. Acredita-se que esse tipo de atividade, com a
mediação do professor, vai permitir que eles reflitam sobre suas convicções e que
165
consigam enxergar o Outro além de suas referências culturais, bem como sejam capazes
de depreender as imagens concernentes ao desempregado, ao governo, aos agentes na
França, conforme a posição e a situação político-social dos sujeitos em questão.
Eis uma possível análise do texto da Atividade 2 para o professor: com o título
“Pôle emploi a mis en place de nouvelles méthodes pour faire la chasse aux fraudeurs”,
o leitor provavelmente vai inferir que a temática abordada nessa reportagem é o
emprego. Além disso, tal enunciação remete a pensar que os autores associam o papel
da empresa ao de caçadores. Quanto ao termo fraudador, compreende-se que existem
sujeitos agindo de maneira antiética. Todavia, a designação, a classificação das pessoas
como caçadores e fraudadores chama a atenção, visto que esses termos expressam um
tratamento de extrema agressividade e de desrespeito pelo outro. Portanto, para traçar o
perfil dos sujeitos no texto, é fundamental que os alunos observem o léxico empregado
na tessitura textual.
Além da análise do título, os alunos devem observar também outros elementos
paratextuais, como: o editor, o autor, a data de publicação, o subtítulo, o lead, os
símbolos culturais. Esses dados contribuem para que o leitor consiga depreender melhor
o contexto comunicativo e os papéis sociais dos sujeitos em questão. Para ajudar o
leitor/aluno, seria interessante que o professor lhe fornecesse também algumas
informações, a saber:

A emissora Europe 1, antiga Europe no 1, é privada. Foi criada
em 1955 e se destacou por abordar temas diversos, tendo inserido a
participação de seus ouvintes em suas programações. Contudo, a partir
de 1990, começou a perder audiência.

A Unions de Recouvrement des Cotisations de Sécurité Sociale
et d’Allocations Familiales, conhecida como URSSAF, é um sistema
francês de proteção social que oferece assistência aos sujeitos em caso
de doença, invalidez, morte etc.38
38
Disponível em: <http://www.securite-sociale.fr/L-organisation-de-la-Securite sociale?type=part>.
166
A respeito do texto propriamente dito, no primeiro parágrafo o leitor vai ter
certeza de que os fraudadores em questão estão no grupo dos sujeitos desempregados.
De acordo com a enunciação dos autores, compreende-se que o governo passou a adotar
novas medidas com relação ao desemprego no momento em que se constatou um
aumento das taxas de desempregados na França, o que demonstra certa inquietação dos
governantes, que pode ser de natureza econômica, mas também política. Importa dizer
que o professor deverá solicitar dos alunos não somente que eles respondam às
questões, mas que as justifiquem com base em informações presentes no cotexto, mas
também no contexto. A saber, com relação à questão da temporalidade, ela pode ser
apreendida no texto por meio do mecanismo de discurso “alors que”, cujo valor
semântico é de temporalidade. O importante não é verificar se o aluno sabe a
classificação do termo, mas se ele é capaz de depreender seu sentido.
No que diz respeito ao dito e ao não dito, convém destacar que os autores do
artigo não mencionam se tais ações contra as fraudes foram tomadas porque havia
evidências de fraude. Caso tal informação tenha sido omitida, de maneira
(in)consciente, o professor poderá solicitar que os alunos lancem algumas hipóteses
sobre os motivos de a emissora, de o autor, ter omitido tal informação.
Ainda sobre o modo de dizer do autor, o professor dever chamar a atenção dos
leitores para a estrutura do texto; observar, por exemplo, que os parágrafos estão
divididos em três rubricas: os caçadores de fraudadores, uma perseguição impessoal e a
inquietação dos desempregados. No primeiro item, os autores se põem a descrever a
função dos agentes que trabalham nessas agências. Quanto às ações realizadas, são
citados os atos de perseguição aos fraudadores, a quantidade de documentos que eles
devem “descascar” por dia e a missão de verificar se as pessoas estão, de fato,
procurando emprego. Com todas essas tarefas, caso os alunos não tenham se dado conta
167
disso, o professor poderá indagá-los sobre o regime de trabalho desses profissionais.
Além disso, questioná-los sobre o efeito de sentido do termo “vous” empregado pelos
autores e como os desempregados são tratados e vistos.
Na segunda rubrica, os enunciadores salientam que determinados agentes se
sentem constrangidos de chamar o desempregado para inquiri-lo. Além disso, os autores
se valem do depoimento de uma funcionária que ressalta não colocar em questão a
palavra dos convocados. É importante destacar que esse tipo de discurso parece se
contrapor e retrucar os discursos negativos que os agentes têm no contexto social.
Embora o professor não mencione os termos polifonia e interdiscurso, é interessante que
ele perceba que a enunciação da funcionária remete a um já dito, a uma imagem sobre
seu papel social.
Na última rubrica, os enunciados sinalizam que os controladores identificaram
poucos casos de fraudes e que os desempregados estão se queixando de tais ações. É
oportuno sinalizar que um dos efeitos de tais dados no leitor pode ser de fazê-lo
questionar as medidas adotadas pelo governo francês. Outro item que cabe ser
sinalizado na leitura do texto é a fala de um desempregado. Desafiar os alunos a
explicar as razões pelas quais o autor preferiu fazer uso de um discurso citado e não
narrado se mostra de extrema relevância, porque não apenas aponta sua capacidade de
se servir dos recursos discursivos para se expressar, mas também porque ele é utilizado
como uma estratégia dos jornalistas para marcar sua imparcialidade e se isentar da
responsabilidade do que foi dito.
Para concluir a análise dos textos selecionados, o interessante é observar como
os sujeitos são afetados pela língua, pela linguagem e pela historicidade. Convém dizer
que os leitores, como sujeitos sociais, pertencentes a certa cultura, compartilhando de
determinados conhecimentos de mundo com seu interlocutor, mas também possuindo
168
sua própria identidade, vão, de maneira voluntária, fazer analogias entre a cultura-alvo e
a cultura-fonte.
Orlandi assevera que:
Os dizeres não são, como dissemos, apenas mensagens a serem
decodificadas. São efeitos de sentidos que são produzidos em
condições determinadas e que estão de alguma forma presentes no
modo como se diz, deixando vestígios que o analista de discurso tem
de apreender. São pistas que ele aprende a seguir para compreender os
sentidos aí produzidos, pondo em relação o dizer com sua
exterioridade, suas condições de produção. Esses sentidos têm a ver
com o que é dito ali, mas também em outros lugares, assim como o
que não é dito, e com o que poderia ser dito e não foi. Dessse modo,
as margens do dizer, do texto, também fazem parte dele. (ORLANDI,
2001, p. 30)
Neste momento, os alunos farão, provavelmente, comparações com a cultura
brasileira, mencionando, por exemplo, a situação do desemprego e do desempregado no
Brasil. O objetivo central de uma mediação cultural crítica é propor que os sujeitos
olhem para o mundo de outra perspectiva e de maneira mais complexa, considerando
em suas reflexões a situação política, econômica, social, histórica, geográfica e
identitária de cada país.
Atividade 4: Análise das memórias discursivas (interdiscurso), das formações
imaginárias e das posições ideológicas dos sujeitos
Assedic
J’en avais marre de travailler
Et de perdre mon temps
A faire des boulots mal payés
Avec des gens très emmerdants
Je cherchais la combine
Et c’est pas facile
De se tirer de l´usine
Pour partir dans les îles.
Je me creusais le ciboulot.
J’étais comme tous les gens
Allergique au boulot
Mais pas allergique à l’argent.
169
Je ne connais qu’une façon
De se tirer sous les tropiques
Quand on est petit, laid
Et qu’on n’a pas de fric.
ASSEDIC
Je t’écrirai de temps en temps
Toi tu m’enverras mon virement
Directement
Tout là-bas, dans mon île
ASSEDIC
Avec ton amie RMI
Vous serez mes deux meilleurs amies
Ce sera dément.
L’Agence Nationale pour l’Emploi
M’écrit de France.
Ils veulent à peine au bout d’un mois
Me gâcher mes jolies vacances
En m’envoyant chez « Prisunic »
Décharger des camions.
Avec ma copine ASSEDIC
Evidemment on a dit non
Je veux que ça dure toute la vie
Que chaque jour soit férié.
Un jour, je recevrai l’avis
De fin de droit dans mon courrier
Mais faudra me payer cher
Pour retourner au carnaval
Du R.E.R.
Et du Leclerc de Bougival
ASSEDIC
Je t’écrirai de temps en temps
Toi tu m’enverras mon virement
Directement
Tout là-bas, dans mon île
ASSEDIC
Enfin ma place au soleil
A moi les ciels vermeils
Et les beaux voyages
M’en priver ce serait dommage.
ASSEDIC
Tu seras ma petite maman
La maman de tous les gens
Qui n’ont pas d’argent.
(Pas beaucoup... pas beaucoup...)
Caso o professor disponha de tempo e queira trabalhar a questão do desemprego
sob outra ótica, o presente estudo propõe como sugestão a música Assedic, do grupo
170
Escrocs, composto por Eric Toulis, Didier Morel e Hervé Coury, que propõe, com tom
irônico e ritmo de bossa nova, uma crítica aos que deixam de trabalhar para viver com o
dinheiro dos cofres públicos. Convém dizer que essa música fez muito sucesso na
França, levando a supor que muitos franceses compartilham do discurso do
desempregado como malandro, esperto e preguiçoso, que almeja ter dinheiro, passar
férias em uma região com praia, mas não quer trabalhar.
Para depreender essas imagens, o professor pode trabalhar a linguagem verbal a
partir de um exercício lexical. A música apresenta um registro informal; trazer o registro
formal não apenas ressaltaria suas diferenças, mas também ajudaria os alunos a
compreender melhor o sentido do texto por meio de uma tradução intralinguística. Além
disso, a linguagem empregada tem relação com a posição social do enunciador, e
existem alguns termos que trazem a cor local da cultura francesa, o génie próprio da
língua francesa, que não deveria ser domesticado. Nesse caso, é interessante que o aluno
consiga se desterritorializar.
Como considerações finais, este capítulo se deteve em analisar o tratamento do
aspecto cultural na proposta interculturalista e constatou que a maioria dos suportes
didáticos e pedagógicos de FLE visa a estabelecer interações entre a cultura-alvo e a
cultura-fonte, a fim de que os indivíduos possam conviver de maneira harmoniosa em
tal contexto de globalização. Nesse caso, a concepção de professor de FLE demonstra
ser sobretudo a de um diplomata.
No método Écho 2 e na proposta didática de Christiane Tagliante, o presente
estudo verificou que o componente cultural tem sobretudo caráter reprodutor, pois
objetiva passar informações e instruções de como lidar com o estrangeiro sem uma
abordagem reflexiva, crítica e política. Importa dizer que essa afirmação se justifica
também pelo fato de os gêneros textuais mais explorados nesses espaços para a
171
abordagem do componente cultural serem os enciclopédicos, cujo objetivo é fornecer
informações gerais sobre determinado assunto.
Além disso, verificou-se que os tópicos reservados ao componente cultural são
muitas vezes explorados para trabalhar as expressões e compreensões escritas e orais. O
que remete a pensar que tais competências são ainda mais prestigiadas e mais valoradas
que o aspecto cultural.
Outra crítica sobre a abordagem cultural nas atuais orientações diz respeito ao
modo simplista como as culturas em jogo são comparadas. Apesar de muitos teóricos,
elaboradores de manuais, entre outros, orientarem os professores sobre a questão dos
clichês e dos estereótipos, o fato de desconsiderarem em suas propostas as
particularidades de cada povo em seu contexto externo e interno revela que eles os
reforçam.
No que diz respeito ao modo como a cultura-alvo e a cultura-fonte vão ser
mediadas, é essencial que o professor tenha liberdade e autonomia para escolher as
diretrizes que vai tomar. O uso do método contrastivo e a adoção da domesticação em
detrimento da estrangeirização, ou vice-versa, dependem do contexto de ensinoaprendizado. Assim como nas pesquisas, o recurso utilizado pelo pesquisador é
estabelecido em função de seus objetivos, de sua realidade e do conhecimento que ele
pretende alcançar.
O presente estudo reconhece que a proposta interacionista tem seu espaço e sua
legitimidade, pois acredita que o reconhecimento do Outro e de si mesmo, de maneira
reflexiva, precisa do professor, de alguém que se coloque a agir como mediador.
Contudo, chama a atenção para o fato de que, em nome da interação, da harmonia,
determinadas práticas educativas visam à alienação humana e à sua subserviência.
172
A respeito da mediação cultural crítica, esta pesquisa considera que o
pensamento reflexivo e analítico do componente cultural, com a intervenção de um
mediador, não apenas contribui para a modificação da competência cognitiva do ser
humano, mas também permite que este se espante com a vida, a observe de outras
perspectivas, levando em consideração sua materialidade histórica, e consiga atuar sobre
ela, de maneira mais autônoma, reagindo às ações dogmáticas e alienantes que impedem
seu devir. Além disso, o motivo de uma nova proposta pedagógica para o tratamento do
componente cultural proveio da hipótese de que o papel do professor de LE se associa
cada vez mais ao de um tecnicista, ao de um diplomata, e o afasta de seu lugar de
mediador intelectual, que fomenta o questionamento não apenas em si mesmo, mas
também nos outros, não apenas se pondo a descrever e a observar os fatos, mas também
propondo novos caminhos.
173
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao olhar de maneira mais distanciada para as atuais orientações de FLE
centradas no relativismo e na ética, preconizando a alteridade, surgiu o questionamento
sobre as reais condições de o professor de FLE brasileiro agir como mediador cultural
crítico, contrário às ações reprodutoras, redentoras e catequizadoras de uma cultura
concebida ao curso da história como modelo de civilização. É oportuno enfatizar que,
embora os discursos do “civilizado”, “bárbaro”, “colonizado” e “colonizador” sejam
condenados e negados na era da globalização, e alguns pensadores da pós-modernidade
preconizarem que as sociedades estejam caminhando para a transculturalidade,
transcendendo, assim, os movimentos da multi/pluri/interculturalidade, a imagem da
França como referência de civilização e de cultura ainda se faz presente no imaginário
social de muitos povos e de muitos brasileiros.
Além disso, os discursos relativistas parecem também não coadunar com o
princípio do sistema capitalista, que se caracteriza, sobretudo, por despertar nos sujeitos
o sentimento de individualidade, competitividade e coisificação do Outro. De acordo
com Stuart Hall, existem dois tipos de identidade no atual contexto: a “global”, que
acontece no momento em que as diferenças identitárias se apagam tendo-se a perda da
heterogeneidade cultural, capaz de mobilizar os sujeitos a se requestionar e reavaliar
seus paradigmas culturais, e a “local”, em que ocorre o oposto, ou seja, as diferenças
culturais acentuadas podem despertar nas pessoas o sentimento de indiferença e de
intolerância para com o Outro.
Com o propósito de encontrar as respostas para minhas indagações sobre o modo
como se processa a mediação cultural em FLE, uma das primeiras tarefas foi olhar para
as ações em torno da mediação do componente cultural nesse contexto ao longo da
174
história. Para tanto, este estudo se dividiu em três pilares: a historiografia do
componente cultural, abordando os conceitos de cultura, a identidade brasileira, as
relações franco-brasileiras no espaço social e no âmbito do ensino-aprendizado da
língua francesa; as ações mediadoras do conhecimento, baseadas nos princípios do
positivismo, da interdisciplinaridade e do materialismo histórico; e o papel do professor
de línguas, em particular de FLE, para os teóricos do campo e para as orientações
didáticas e pedagógicas. O terceiro pilar discorreu sobre os procedimentos para o
tratamento do componente cultural no ensino de FLE, contrapondo as teorias e práticas
interculturalistas às de uma mediação cultural crítica.
Em face das temáticas em jogo, observou-se que os aspectos a serem
investigados revelam que apenas os estudos linguísticos, didáticos e pedagógicos não
teriam condições de responder a tais questionamentos. Seria necessário, portanto, buscar
contribuições de outros campos de conhecimento, como a sociologia, a antropologia, a
etnologia, a psicanálise, a psicologia e a filosofia.
No que diz respeito à identidade das culturas em jogo, o estudo em questão se
deteve, no primeiro capítulo, em explicitar as principais concepções culturais tecidas
nas escolas evolucionista, difusionista, funcionalista, estruturalista, interpretativa e na
antropologia crítica. Vale a pena chamar a atenção para o fato de que as leituras feitas
demonstravam que muitos pesquisadores tinham certo fascínio por conhecer e
desvendar esse Outro, que vivia sobretudo nos continentes asiático, americano e
africano.
Quanto às contribuições da literatura antropológica aos estudos da mediação,
deve-se enfatizar que tais leituras permitiram enxergar melhor as ideologias subjacentes
aos conceitos culturais e precisar que este estudo compreende cultura como uma
entidade que atua na formação identitária do ser humano em todas as instâncias de sua
175
vida, pois ela o precede. Todavia, compartilha também da teoria de alguns pensadores,
como a do antropólogo Claude Lévi-Strauss e a do sociólogo Max Weber, discípulos
das ideias marxistas, de que o componente cultural se alimenta da intervenção do sujeito
e do ambiente.
As análises dos conceitos de cultura foram fundamentais também para
compreender determinadas posturas relativistas em torno das questões culturais. No
contexto social e no cenário de ensino-aprendizado, é comum escutar sujeitos que dizem
reconhecer as diferenças étnica, racial, religiosa, sexual, entre outras; no entanto, seus
discursos demonstram estarem pautados ainda pelas ideias da escola evolucionista, na
qual o “bárbaro” poderia ascender ao patamar de “civilizado”.
No que tange às representações e aos mitos do colonizador e do colonizado,
verificou-se que o complexo de inferioridade do brasileiro ainda está vivo em suas
memórias, em seus discursos e em suas posturas em face do Outro, do estrangeiro. Um
dos exemplos citados é a atitude de subserviência de pesquisadores e professores com
relação às teorias externas. É importante mencionar que o presente estudo não objetiva o
xenofobismo e a fetichização do nacional, porém considera necessário que as pesquisas
sejam avaliadas em função de sua relevância e pertinência.
No que diz respeito à concepção do professor como mediador cultural no ensinoaprendizado de FLE na atualidade, o presente estudo observou que as orientações
didáticas e pedagógicas o enxergam como um diplomático, um intermediário, que age
para promover o diálogo entre sujeitos de culturas e línguas distintas, tentando evitar os
possíveis conflitos e mal-entendidos. Cabe dizer que tal imagem do professor de FLE
está presente no CECR (CONSEIL DE L’EUROPE, 2000), um documento no qual são
descritas as diretrizes para ensinar, aprender e avaliar a língua francesa e no qual é
explicitada a importância de os usuários promoverem uma formação voltada para a
176
alteridade e o plurilinguismo. Daí talvez se explique a razão pela qual os elaboradores
tenham inserido entre as atividades comunicativas (falar, escrever, ler e ouvir) a
mediação (traduzir/interpretar). Contudo, como já dito ao longo desta pesquisa e em
minha dissertação (AZEVEDO, 2010), a mediação (inter/intralinguística e semiótica) é
citada de maneira diplomática. O CECR não propõe um estudo teórico e prático dessa
competência comunicativa.
É oportuno ressaltar que as orientações sobre o tratamento do componente
cultural no CECR remetem à proposta interculturalista, que surgiu em torno da década
de 1970 com o fenômeno da imigração, a fim de que os sujeitos não somente
respeitassem as diferenças culturais, mas também fossem capazes de interagir com o
“estrangeiro”. Em um contexto de globalização, observou-se também que as ações
interculturalistas e até mesmo as transculturalistas podem se instaurar sem a intervenção
de um mediador. Nesse caso, a necessidade dos sujeitos é que vai ser fator determinante
para que haja interação entre os indivíduos. Alguns teóricos expressam certa ressalva
quanto à eficácia do interculturalismo voluntário, sob a alegação de que os conflitos
culturais, muitas vezes, são fruto de problemas religiosos, identitários, econômicos,
entre outros, que estão, em geral, acima dos poderes do mediador.
Quanto à concepção do professor como mediador cultural visionada nesta
pesquisa, ela está apoiada, em particular, na imagem do filósofo, do pensador, que se
põe a questionar, a problematizar um fato de sua realidade, de sua existência, a estudálo sob diversas perspectivas, e, por conseguinte, visa a compartilhar de sua inquietação
com outros sujeitos. Em outras palavras, não tem a pretensão de doutrinar ou inculcar
seus conhecimentos, mas obter novas reflexões, indagações, apreciações e avaliações
sobre o objeto contemplado com base na historicidade.
177
Confrontando os dois conceitos de mediação cultural supracitados, averiguou-se
que as imagens de professores, os princípios teóricos e as ações concernentes ao
processo de ensino-aprendizado são bastante distintos. Importa dizer que a proposta de
mediação desta pesquisa demonstra a relevância de se promover o diálogo em torno de
determinada inquietação; todavia, não menciona o papel do mediador como conciliador,
apaziguador. Pelo contrário, a associação da imagem do professor à do intelectual e
filósofo remete a imaginar o sujeito que está propenso a provocar o Outro e a repensar
suas referências de mundo.
Após tais reflexões, surgiu a hipótese de que as mediações culturais baseadas
nos princípios da proposta interculturalista poderiam estar promovendo uma formação
acrítica e, por conseguinte, alienadora. Além disso, o presente estudo inferiu se tal
abordagem voltada para a harmonia não teria o interesse subjacente de manter o
equilíbrio da estrutura social vigente por meio da ideologia da relatividade e da
alteridade. Nessa linha de pensamento, questionou-se igualmente se tal abordagem tem
contribuído para destituir o professor do papel de intelectual.
A respeito da concepção de mediação da presente pesquisa, é essencial frisar
ainda que ela se fundamentou sobretudo nos princípios da fenomenologia e do
materialismo histórico marxista. Na primeira corrente, os pesquisadores valorizam a
observação, a percepção e a reflexão como forma de conhecer o mundo e de se conhecer
melhor; na segunda, o conhecimento se sedimenta mediante a relação entre prática e
teoria, contribuindo não somente para a transformação do sujeito, mas também da
sociedade. No último caso, com base também nas ideias nietzschianas, observa-se que o
ambiente atua sobre o ser humano, mas também que ele pode agir, intervir sobre sua
realidade e modificá-la de alguma forma, sem esperar que apareça algum herói e vilão.
178
No que diz respeito à corrente positivista, o presente trabalho reconhece a
relevância da ciência, pois ela apresentou métodos que permitem aos pesquisadores
comprovar suas teses e responder às necessidades da sociedade. Todavia, a crença de
que os suportes metodológicos empregados seriam suficientes para responder às
inúmeras indagações existentes parece ser tão ilusória quanto a criada pela religião.
No âmbito do ensino-aprendizado, a tentativa de racionalizar as atividades
pedagógicas, os exames e a relação professor-aluno, procurando definir os fins e os
meios, desconsiderando a subjetividade humana, tem tornado o espaço escolar e o
processo de aprendizagem desencantadores. O tempo de questionamento, de
contemplação e de prazer parece estar sendo posto à margem em nome da
produtividade, do saber-fazer. Contudo, o presente estudo não compactua da concepção
de alguns intelectuais da pós-modernidade, como a do francês Edgar Morin, que procura
implantar nos sujeitos a dúvida sobre os conhecimentos produzidos pela humanidade,
ao negligenciar as conquistas do passado e supervalorizar o presente e o futuro.
Cabe comentar que as orientações didáticas e pedagógicas no curso da história
demonstram sempre tentar encontrar seus heróis e vilões. No atual contexto, é possível
observar que muitos professores e educadores passaram a reproduzir as ideias
morinianas como se elas fossem a salvação para o sistema educativo brasileiro; porém,
sabemos que os problemas centrais da nossa educação é a falta de investimento.
Com relação à formação do professor, as considerações de Newton Duarte e de
José Libâneo foram fulcrais para compreender que a educação continua a tratar o
processo de ensino-aprendizado como destituído de sujeitos. Os fatores externos à
educação, como as políticas econômicas, sociais, educativas e a materialidade histórica,
são ainda desconsiderados nas suas formações.
179
Ainda sobre os anjos e demônios da educação, em oposição à fragmentação do
conhecimento imposto com o rigor dos métodos científicos, muitos pesquisadores,
orientações de ensino e organizações como, a Unesco, passaram a defender a
interdisciplinaridade. Todavia, embora a abordagem interdisciplinar permita ao
pesquisador analisar seu objeto de outras perspectivas, ela não garante que os resultados
sejam mais complexos e totalizantes.
Na concepção de Glandêncio Frigotto, verificamos que a fragmentação está nos
princípios ideológicos do atual contexto político, econômico e social; portanto, ela se
sobrepõe aos métodos multi/pluri/inter/transdisciplinares. Para combatê-la, parece
fundamental que os pesquisadores se ponham a atacar em seus estudos as ideologias
alienantes, reavaliando de maneira contínua suas concepções.
No que diz respeito às mediações do conhecimento, convém explicitar que as
tendências pedagógicas redentora, reprodutiva e transformadora de Cipriano Luckesi
(1994) foram fundamentais para depreender que a educação ocidental na sociedade
moderna e pós-moderna atua na manutenção do sistema capitalista. De acordo com as
pesquisas de Louis Althusser, apoiado nas ideias marxistas, a escola vem agindo ao
longo da história como o principal aliado do sistema político-econômico, fortalecendo a
ideologia burguesa. Nessa mesma linha de pensamento, Pierre Bourdieu demonstrou,
com base em dados estatísticos, que o sistema escolar é injusto e desigual,
contemplando saberes e conhecimentos de determinada classe e, por conseguinte,
procurando impô-la por meio de uma violência simbólica, que atua no inconsciente
social. Quanto a Max Weber, ele também reconhece o poder das ideologias burguesas
na estrutura social e critica a burocratização, a coisificação dos sujeitos; porém,
constatou em seus estudos a presença de forças capazes de agir na contracorrente de
determinados habitus.
180
No ataque à educação centrada nos interesses do mercado, esta pesquisa
considerou pertinente citar as teorias de István Mészáros, que preconiza o ato de educar,
de mediar conhecimentos e saberes centrados na contrainternalização das ideologias, a
fim de que os sujeitos possam se libertar dos discursos dogmáticos. Para tanto,
considerando o contexto social, econômico e histórico, o autor encontra como brecha a
possibilidade de uma educação para além do mercado, do sistema capitalista. No
entanto, ressalta que uma educação contra as internalizações ideológicas precisa de
professores e educadores que (re)avaliem as crenças e certezas que lhes foram
mediadas.
Com o intuito de contrapor as ideologias da abordagem interculturalista à
mediação cultural crítica, o terceiro capítulo apresenta as análises das atividades
culturais do método Écho e de Christine Tagliante, procurando reforçar a tese de que
determinadas
orientações
didáticas
e
pedagógicas,
baseadas
nas
teorias
interculturalistas, em prol da convivência harmoniosa omitem, distorcem, escondem os
fatos; legitimam, destituem e restituem seus heróis e vilões, e, por conseguinte, atuam
também para adequar os sujeitos ao contexto político, econômico e social.
Com relação às atividades baseadas nas propostas interculturalistas, este estudo
observou o tratamento do componente cultural pautado pelo enfoque contrastivo entre a
cultura-alvo e a cultura-fonte, como se este fosse o mais justo, correto,
independentemente da situação de ensino-aprendizado. Contudo, para esta pesquisa, o
professor pode versar sobre a cultura do Outro com base também no referencial cultural
da cultura-alvo, uma vez que nem sempre é possível fazer equivalências. Como
destacam muitos antropólogos, uma cultura deve ser avaliada em função do contexto
histórico, geográfico e identitário no qual ela se constitui, pois, embora haja
semelhanças, existem muitos aspectos que só podem ser explicados a partir da cultura
181
em questão. Convém destacar ainda que cada país tem sua diversidade cultural. Como
fazer um trabalho comparativo contemplando as inúmeras variantes, a saber, a classe
social dos sujeitos, seu gênero sexual, as faixas etárias, entre outros fatores, na culturaalvo e na cultura-fonte?
É contundente enfatizar que existem propostas interculturalistas críticas e
reflexivas, como a da professora e pesquisadora Silvana Serrani. Em seus estudos, ela
chama a atenção dos professores de língua para o papel da memória coletiva na situação
de ensino-aprendizado e da materialidade histórica. Para a autora, há toda uma
lembrança e um legado cultural no inconsciente dos sujeitos que devem ser valorizados
nas mediações proferidas nas aulas de língua. Além disso, destaca a importância de o
professor dominar conhecimentos em diversos campos do saber, que lhe permitam
compreender seu papel no contexto político, econômico e social.
No que tange à proposta de uma mediação cultural crítica, a primeira observação
feita foi sobre a importância de o professor levar para a sala discursos nos quais existam
sujeitos com uma voz, com um rosto. Como defende Emmanuel Levinas, acredita-se
que a alteridade só aconteça quando o sujeito é capaz de refletir sobre sua existência.
Nessa perspectiva, o presente estudo propõe que os documentos utilizados considerem
os aspectos apolíneo (belo e perfeito) e dionisíaco (feio e imperfeito) da vida, e para a
análise dos textos reivindica a AD de base francesa, pois esta considera o sujeito não
apenas como um ser biológico, mas também psicológico e social.
No ensejo de encontrar outras visadas sobre a mediação de aspectos culturais, o
presente estudo recorreu também às reflexões de tradutores, como Lawrence Venuti,
que versa sobre ações de aculturamento cometidas no contexto tradutório. Para Venuti,
tanto o ato de domesticação, que consiste na tradução voltada para a cultura e língua-
182
fonte, quanto o de estrangeirização, a tradução centrada na cultura e na língua-alvo,
podem ter caráter reprodutor no momento em que são abordados de maneira dogmática.
Em suma, a linha de pensamento tradutória de Venuti coaduna com a deste
estudo, que defende a liberdade do professor na escolha dos recursos, dos métodos
utilizados para “passar” informações, conhecimentos culturais a seu público. Todavia, é
fundamental salientar que essa liberdade precisa estar calcada na ética, no
reconhecimento da diversidade e na busca contínua de combater e de expurgar as
mediações alienadoras, que distorcem os fatos produzindo caricaturas do Outro e de si
mesmo.
Não podemos deixar de comentar igualmente que muitos se deixam alienar
como forma de se eximir de qualquer responsabilidade. No âmbito educativo, é comum
observar educadores
procurando justificar suas ações antiéticas e, até mesmo
desumanas, com base no argumento
que apenas estão seguindo as orientações
estabelecidas. Porém, atuam enquanto agentes, logo, são responsáveis. Com relação aos
sujeitos que atuam como mediadores do conhecimento, convém dizer que a
preocupação com a ética deveria ser ainda maior. O corrente provérbio de que “a aculpa
é do sistema”, com o propósito de justificar as atitudes desumanas, serve mais uma vez
para confirmar as ideias arendtianas de que o barbarismo humano não é totalmente
irracional, mas sim, que ele se vale de uma certa conivência.
Como considerações finais, a proposta de uma mediação cultural crítica no
ensino-aprendizado de FLE surge como meio de contra-atacar as ações alienadoras
(in)voluntárias, que comprometem a liberdade dos sujeitos, a relação professor-aluno e,
por conseguinte, vêm tornando o universo escolar e social desencantadores. Nessa
perspectiva, o presente estudo chamou a atenção para a importância de o professor lutar
por seu papel de pensador, de intelectual crítico, que busca retratar a realidade de
183
diversas perspectivas, não protegendo e nem furtando os alunos das congruências e
incongruências da vida em prol da realidade ontológica.
Dado à perda de prestígio da posição do professor no contexto social, o espaço
escolar precisará reavaliar o seu papel como “transmissor” de conhecimento em um
cenário marcado pela globalização e pelas Tecnologias de Informção e Comunicação
(TICs). Com o bombardeio diário de informação, o caminho para a recuperação da
legitimidade do professor parece ser o de agir como um mediador capaz de promover
leituras, interpretações e discussões críticas sobre a realidade.
Reconhecemos, enquanto professores, o quão difícil é atuar como mediador
crítico em um contexto no qual o pragmatismo, o saber-fazer,
se sobrepõe ao
pensamento crítico. Em geral, as instituições de ensino visam à produção: o tempo para
refletir é concebido muitas vezes como desperdício para a racionalidade moderna. Com
relação ao professor de línguas estrangeiras, esta proposta parece mais irreal, tendo em
vista o seu desprestígio no contexto social. Aliás, em muitos centros de ensino, o mestre
passou a ser um instrutor de línguas, que precisa apenas seguir as orientações dos
métodos, pois as aulas já estão “prontas”. No entanto, enquanto pensadores,
reconhecemos igualmente que o professor precisa ter cada vez mais consciência das
suas ações como agente mediador. Se o espaço acadêmico banalizar essa realidade do
sistema educativo, sem levantar reflexões e propor sugestões para todos esses
problemas, estará também compactuando com a concepção de que “a culpa é do
sistema”. Sendo a universidade o espaço do saber, de construção do conhecimento, da
racionalidade e de reflexão de nossas práticas, o seu grau de responsabilidade das suas
ações ou “não-ações” parece ser ainda muito maior.
Com relação ainda à relevância da pesquisa para o campo de ensino de francês
língua estrangeira, o interesse principal é que ela fomente novas reflexões sobre a
184
abordagem do componente cultural no ensino de língua estrangeira e sobre a dicotomia
entre prática e teoria nesse universo. É essencial salientar também que os campos
filosófico, sociológico e antropológico ainda me são misteriosos. Todavia, o mais
relevante de tais encontros não era o domínio do Outro, seu apagamento para que meus
objetivos fossem alcançados, mas sim que esses encontros me permitissem olhar para o
campo de ensino-aprendizado de francês língua estrangeira por outro prisma,
oferecendo-me condições de ir além de meu mundo.
185
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ANEXOS

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