File

Transcrição

File
=
HTTP://zizec.weebl y.com
Texto Retirado de: Le Monde Diplomatic Brasil, 2005 - http://diplo.uol.com.br/2005-05,a1110
“Capitalistas, sim, mas zen...”
Sla voj Zizek
Em seu episódio final de Guerra nas Estrelas, George Lucas não escapa da influência de uma versão ocidental do budismo, que nos
permitiria aceitar e participar da engrenagem dos mercados, desde que mantendo uma distância interna
Revelando finalmente, em A Revanche de Sith (episódio III da “primei ra trilogia ”), o momento crucial de toda a saga de Guerra nas
Estrelas 1 (a saber, a tra nsforma ção do “a má vel ” Anakin no “mal vado” Da rth Vader), George Lucas esta beleceu um pa ralelo entre o
indi víduo e a políti ca . Na escala do i ndi víduo, a expli caçã o retoma uma espécie de budismo pop. “Ele *Anakin+ transforma -se em
Da rth Vader porque se apega às coisas”, expli ca Lucas. “Ele não consegue sepa rar-se de sua mãe. Ele não consegue se separa r de sua
na moradinha. Ele não consegue renuncia r aos objetos . Esse apelo o torna á vido. E quando você é á vido, você es tá no caminho do
2
3
lado obs curo, porque tem medo de perder o que possui .” A Ordem dos Jedi apa rece, em oposi ção a isso, como uma comunidade
mas culina fecha da, proibindo qualquer a taque, como se fora uma nova versão da comunidade do Graal celebrada pelo composi tor
Ri cha rd Wa gner em Parsifal.
A expli ca ção políti ca ainda é mais reveladora : “Como a Repúbli ca trans formou -se em Impéri o? (Ques tão pa ralela: como Anakin
tornou-se Da rth Vader?). Como uma democra cia se trans forma em di tadura ? Não é porque o Império tenha conquistado a
Repúbli ca , é por que o Império é a República 4”. O Império nas ce da corrupção inerente à República . Conta Lucas que: “Um belo dia , a
pri ncesa Leia e seus ami gos acorda ra m dizendo uns aos outros : ‘Não é mais Repúbli ca, é Império. Nós somos os mal vados 5”.
Da nação ao império
Erra ríamos se negligenciássemos as conota ções contemporâ neas da referência à Roma antiga nessa trans forma ção de Estadosna ções em Império global . Logo, é preciso si tua r a problemá ti ca de Guerra nas Estrelas (a passagem da República ao Império)
exa tamente no contexto descri to por Antonio Negri e Mi chael Hardt no li vro Império6, e a passagem do Es tado-nação a um Império
mundial.
As alusões pol íti cas em Guerra nas Estrelas são múltiplas e contradi tórias . Elas conferem à série um poder “míti co”: mundo li vre
contra o Império do mal; deba te sobre o Es tado -na ção convocando as teses de Pa t Buchanan 7 ou de Jean-Ma rie Le Pen; contradi ção
que leva pessoas da ca mada a ristocrá tica (princesas, membros da Ordem elitis ta dos Jedi ) a defender a República “democrá ti ca ”
contra o Impéri o do Mal ; e, finalmente, a tomada de consciência essencial de que “nós somos os mal vados”.
O Império do Mal não está em outro l uga r, como di zem esses filmes ; seu a pareci mento depende da manei ra como nós , os ‘bons ’, o
revertemos. A ques tão concerne à a tual “guerra contra o terrorismo”: como ela vai nos transforma r? Um mitopolíti co não é uma
na rra ti va dotada de signi fica ção pol íti ca determinada , é um conteúdo vazio no qual deposita mos mui tas signifi ca ções
contradi tórias . A Ameaça Fantasma, episódio I de Guerra nas Estrelas, fornece um índi ce crucial: as ca ra cterís ti cas “crís ticas ” do
jovem Anakin – sua mãe sus tenta que ele tenha nas cido de uma “concepção ima culada”; a corrida que ele ganha evoca a célebre
corrida de bigas de Ben Hur, essa “história do Cris to”.
Compaixão budista e amor cristão
O uni verso ideol ógi co de Guerra nas Estrelas remete ao uni verso pagão da Nova Era 8. É l ógi co, portanto, que a figura central de Mal
fa ça eco à do Cris to. Na visão pa gã, o apa reci mento de Cris to é o supremo es cândalo. Na medida em que diabolos (sepa ra r, dilacera r)
é o contrá rio de symbolos(reuni r, uni fica r), o próprio Cristo se torna uma figura diabólica no sentido de que ele tra z “o gládio e não a
| Página 1 de 3 |
=
HTTP://zizec.weebl y.com
pa z” e perturba a uni dade existente. Segundo o evangelista Lucas, Jesus teria decla rado: “Se alguém vier a mim e não despreza r seu
pai , sua mãe, sua esposa, seus filhos , seus i rmã os e suas i rmãs e a té mes mo sua própria vida , ele não pode ser meu dis cípulo 9.”
É preciso considera r que a posi ção cristã tem na tureza diferente da sabedoria pagã . O cris tianismo dos pri mórdios considera o a to
mais eleva do aquilo que a sabedoria pagã condena como fonte de mal, ou seja , o ges to de separar, de di vidi r, ou de liga r-se a um
elemento que compromete o equilíbri o de todos .
Isso signi fica que seria necessário opor a compai xão budis ta (ou taoísta 10) ao amor cris tão. A posi ção budista é, em síntese, a da
indi ferença – estado no qual todas as paixões são repri midas –, enquanto que o a mor cris tão é uma pai xão que visa introduzi r uma
hiera rquia na ordem da relaçã o entre os seres . O amor é vi olência – e não apenas no sentido do provérbio bal câni co segundo o qual
“se ele não me bate, ele não me ama ”. A vi olência do a mor resul ta em a rranca r um ser de seu contexto.
Confusão ideológica
Em ma rço de 2005, o ca rdeal Ta rcisio Bertone, em transmissão da Rádio Va ti cano, fez uma decla ra ção condenando com fi rmeza o
romance O Código Da Vinci, de Dan Brown, a cusado de ser baseado em menti ras e de propaga r ensinamentos falsos (que Jesus teria
se casado com Ma ria Ma dalena e tido des cendentes ...) O ridículo da a ti tude não nos pode fazer es quecer que o conteúdo de sua
decla ra ção es tá, no fundo, correto: O Código Da Vinci i nscreve o cris tianismo na Nova Era sob a rubri ca do equilíbrio entre os
pri ncípios masculino e femini no.
Retornando à Vingança dos Siths, o filme pa ga por sua fidelidade a esses temas da Nova Era , não apenas por sua confusão
ideológi ca , mas ta mbém por sua mediocridade na rra ti va : a tra nsforma ção de Anakin em Da rth Vader, momento capi tal de toda a
saga , não atinge a grandeza trá gi ca conveniente. Ao invés de se concentra r no orgulho de Ana kin vis to como desejo i rresistível de
intervi r, de fazer o bem, de i r a té o final pelos que ama (Amídala) e, em conseqüência , perder -se no lado obs curo, Anakin é
apresentado simplesmente como um comba tente i ndeciso, que escorrega pa ra o mal ao ceder a tentaçã o do poder e ao cai r na
dependência de um mal impera dor. Di to de outra forma , George Lucas não tem força pa ra es tabelecer realmente os paralelos
Repúbli ca – Império e Anakin-Da rth Vader. É a obsessão de Anakin pelo mal que o trans forma em mons tro.
Que pa ralelos fa zer? No momento em que a tecnologia e o capi talismo “europeus ” tri unfam em es cala planetá ria, a herança judai cocris tã, como “superestrutura ideológi ca ” pa rece a meaçada pelo assalto do pensamento “asiáti co” da Nova Era . O taoísmo é
adequado pa ra se torna r a ideologia hegemôni ca do capitalismo mundial. Uma espécie de “budismo ocidental ”, se apresenta hoje
como remédio contra o estresse da dinâ mica capi talista . Ele permiti ria que nos desligássemos , que manti véssemos a pa z interio r e a
serenidade, e funciona ria , na realidade, como um perfeito complemento ideológi co.
Solução escapista
As pessoas nã o são mais capa zes de se adapta rem ao ri tmo do progresso tecnológi co e das trans forma ções sociais que a
a companha m. As coisas andam mui to rápido. O recurso ao taoísmo ou ao budismo oferece uma saída . Em vez de tenta r se adapta r
ao ri tmo das transforma ções, é melhor renuncia r e “dei xa r i r”, mantendo certa distância interi or em rela ção a essa acelera ção , que
não diz respeito ao núcleo mais profundo de nosso ser. Esta ríamos quase tentados a utiliza r nova mente, a gora , o cli chê ma rxis ta de
religião como “ópio do povo”, como suplemento ima giná rio à miséria terrestre. O “budismo oci dental” apa rece, dessa forma , com o a
ma nei ra mais efi caz de parti cipa r plena mente da dinâmi ca ca pitalista mantendo uma aparência de saúde mental.
Se precisássemos encontra r um elo com o Episódio III de Guerra nas Estrelas, fi ca ríamos tentados a propor o documentá rio de
Alexander Oey, Sandcastles. Buddhism and Global Finance, (Castelos de Areia. O Budismo e as Finanças Mundiais), indica dor
ma ra vil hosamente a mbíguo da difi culdade de nossa situa ção i deológica a tual. Mis tura comentá rios do economis ta Arnoud Boot, da
socióloga Saskia Sassen e do professor budista tibetano Dzongza r Khyen tse Rinpoche.
Saskia Sassen e Arnoud Boot dis cutem sobre o al cance, o poder e os efei tos do sistema financei ro mundial . Os mercados de capi tais
podem, em poucas horas , fa zer subi r ou abaixa r o valor das sociedades e de economias intei ras . Khyentse Rinpoche os enfrenta com
considerações sobre a na tureza da percepção humana : “Libertai -vos de suas a marras ao que não passa de uma percepçã o e não
| Página 2 de 3 |
=
HTTP://zizec.weebl y.com
exis te na realidade”, ele decla ra. Por outro lado, Saskia Sassen afi rma : “O sistema financei ro mundial é essencialmen te um conjunto
de movi mentos contínuos . Desapa rece e reapa rece”.
Exuberância ilusória
Na visão do budis ta , a exuberância da ri queza financei ra mundial é ilusória, apa rtada da realidade objeti va : o sofri mento hum ano
engendrado pelas transa ções opera das nas salas dos mercados e conselhos administra ti vos invisíveis pa ra a maioria de nós . Que
melhor prova do ca rá ter não subs tancial da realidade do que uma gigantes ca fortuna que pode se reduzi r a nada em poucas horas ?
Por que deplora r que as especulações sobre os mercados sejam “apa rtadas da realidade objeti va ” quando o pri ncípio fundamental
da ontologia budista enuncia que não há “realidade objeti va ”?
Esse documentári o fornece, assim, a cha ve da A vingança de Sith. A li çã o críti ca a aprender é que nós não devemos nos engaja r de
corpo e al ma no jogo capi talista, mas que podemos fazê -lo... mantendo uma dis tância interna . Pois o capi talismo nos põe diante do
fa to de que a causa de nossa sujei ção não é a realidade objeti va enquanto tal (que não exis te), mas nosso des ejo, nossa a videz pelas
coisas ma teriais e o a pego excessi vo que deposita mos nelas. Por conseguinte, o que nos res ta a fa zer é renuncia r ao nosso des ejo
pa ra adota r uma ati tude de paz interi or. Nã o é de surpreender que um tal budismo -taoísmo possa funci ona r como complemento
ideológi co da gl obaliza ção liberal: ele nos permite pa rti cipa r do esquema mantendo uma distância interna ... Capi talistas, sim , mas
desapegados , zen...
(Tra d.: Teresa Van Acker)
1 - Essa epopéia cinematográ fi ca de fi cção científi ca compreende seis filmes , di vididos em duas trilogias . A primei ra trilogia: A
Ameaça Fantasma (1999), O Ataque dos Clones (2002) e A Vingança de Sith ( 2005). A segunda trilogia : A Guerra nas Estrelas, Uma
Nova
Esperança (1977), O
Império
Contra-ataca (1980)
eO
Retorno
de
Jedi (1983).
2
Ci tado
em
“Da rk
Vi ctory”, Time
Magazine,
22
de
abril
2002.
3 - A Ordem dos Jedi, em Guerra nas Estrelas, é uma reunião de indi víduos que têm em comum a crença e o respei to na Força , uma
espécie de poder extra -sensorial que pe rmi te compreender e modifi ca r o a mbiente. Os inimigos jurados dos Jedi são os Si th.
4 - Idem. idem Edi tado no Brasil pela Editora Record, 2001. Pa tri ck J. Buchanan, editorialista ca tólico ul tra -conserva dor, ca ndida to à
presidencia dos Es tados Unidos em 2000. Síntese pseudofilosófi ca que surgiu na Califórnia , nos anos 1980, e que tenta responder às
questões sobre a vida evocando confusamente anjos , extra terres tres, esoterismo, si mbolismo, sabedorias orientais , vidas passa das,
experiências ps íqui cas etc. Lucas , 14,26. Sistema de pensamento religioso e filosófi co, o taoísmo consti tui um sincretismo que se
desenvol veu na China no século VI A.C. Tornou -se, como budismo, uma das duas grandes religiões chinesas. O taoísmo mos tra -se
mais preocupado com o indi víduo, com sua cons ciência e sua vida espi ri tual , até especulati va , na bus ca de uma ha rmonia com a
na tureza e com o uni verso.
| Página 3 de 3 |