Clique aqui para conferir, na íntegra, o artigo de Cícero Bley
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Haiti: fim da primeira missão Cícero Bley Júnior (*) Ainda sob o forte impacto de ver pela primeira vez na vida as consequências de um terremoto de 7.3 Graus Richter, fui percebendo com muita alegria que o diagnóstico que fizemos da situação no Haiti, usando somente imagens de satélite no Google Earth, estava correto em seus princípios fundamentais. Constatei, ao vivo, o que vimos no computador: que é realmente necessário desobstruir os espaços e vias urbanas, removendo os escombros para dar lugar a novas casas e restituir o fluxo urbano. A cidade de Porto Príncipe e sua região metropolitana – incluindo as comunidades de Carrefour, Pétionville, Delmas, Tabarre, Cité Soleil e Kenscoff – estão encaixadas em uma cadeia de montanhas, sem espaço viável para a destinação final desses entulhos, de onde se conclui que o adequado e correto são a opção pela reciclagem, com uso dos agregados para a reconstrução das casas. Tudo isso se confirmava a cada dia. Mas uma questão não prevista em nosso projeto também ficava evidente. Depois de quatro meses do terremoto, percebi que, sobre os entulhos, uma frágil economia começava a surgir usando a reciclagem, ainda que incipiente e manual, dos entulhos. Se insistíssemos em fazer esta reciclagem como era previsto no projeto, certamente estaríamos concorrendo com o pessoal local, o que se constituiria em um grave erro, pois prejudicaríamos justo aqueles que queríamos ajudar, os que mais precisam encontrar modos e razões para viver, os haitianos. Foi assim que trocando e-mails com as demais colegas autoras do projeto original, as arquitetas da Itaipu Luciana, Cassiana e estagiária Thamile, resolvemos rever a escala do projeto, tornando-o menor do que o projetamos. Para nossa missão, a rotina diária era fazer visitas a organismos oficiais e, entre um e outro, percorríamos de carro curtos percursos em longuíssimos tempos. Dificílimo o tráfego de veículos. Engarrafamentos de carros e gente são uma constante em Porto Príncipe. Nos percursos, entre o alojamento, a embaixada e as instituições haitianas, era possível notar que o terremoto impactou uma natureza frágil. A Ilha Espanhola, descoberta por Colombo, que o Haiti divide com a República Dominicana, foi fundo do oceano. A ilha se formou pelo levantamento do fundo do mar caribenho, por força de movimentos tectônicos, como comprovam os solos expostos. Constituem-se de areia pura e pedras roladas, redondas, grandes e pequenas, como o leito do mar. Portanto, solos estruturalmente fragilíssimos e de fraca estabilidade. Provavelmente, tornam-se uma gelatina durante um terremoto, ainda mais na escala que não ocorria havia 200 anos no Haiti. Notei também que, por causa da necessidade de extravasar as águas de chuva que caem sobre a cidade, foi instalada uma rede imensa de canais de várias dimensões. Esses canais já não levam só águas da chuva, mas também e misturados às chuvas, os esgotos da cidade inteira. Como a coleta de lixo é precária devido à obstrução das vias pelos entulhos, esses canais ainda viraram depósitos de lixo, pois não há coleta funcionando. Outro aspecto gritante é a cultura da construção civil local, que repete um desbalanço construtivo entre as estruturas de sustentação, os pilares e as lajes pesadíssimas construídas sobre eles. Nota-se que a cultura local preparou-se com casas pesadas para enfrentar os furacões, só que no momento em que ocorreu terremoto, a maioria das edificações (250 mil moradias) veio abaixo. Sobraram intactas as construções mais leves, principalmente de madeira, bem mais flexível do que o concreto, portanto indicando que o uso de materiais flexíveis será fundamental para a futura reconstrução do Haiti. Com isso, 1,5 milhão de pessoas estão nas ruas e praças morando em barracas de lonas plásticas. E pior, quase ninguém quer morar nas casas que não caíram, temendo um próximo terremoto. A economia do Haiti foi abalada profundamente. O valor do prejuízo total provocado pelo terremoto é de 7,863 bilhões de dólares, equivalente a mais de 120% do Produto Interno Bruto (PIB) do Haiti, em 2009. A ONU declara que desde os 35 anos em que a medição econômica de desastres é feita, esse é o primeiro registro de perdas tão alto. O Governo do Haiti, com apoio da comunidade internacional, preparou um documento, o PDNA – Post Disaster Needs Assessment, com o diagnóstico completo das consequências do terremoto de 12 de janeiro de 2010. Na atualidade, a economia do Haiti está nas ruas, literalmente. Uma infinidade de microbancas comerciais vendendo de tudo. O PDNA dá as seguintes mensagens ao mundo e ao Haiti: Preparar-se para a estação das chuvas e dos furacões de 2010. identificando áreas de risco, assegurando as populações, reforçando os sistemas de alarme e de evacuações e refazendo os setores de operações de comunicação em rede; Sistematicamente incluir aspectos ambientais em todas as decisões relacionadas com processos de recuperação dos prejuízos e perdas; Incluir medidas de avaliação de riscos de desastres e gerenciamento de desastres nos processos de reconstrução; Estabelecer políticas públicas para intensificar a oferta de trabalho, dando suporte à microempresas, reforçando treinamento técnico e vocacional, incorporando os princípios de trabalho intensivo e associando o empreendedorismo à força de trabalho local, bem como oferecendo-os às comunidades locais; Reconstruir o Estado e a economia com todos os haitianos; Aliviar o congestionamento da área metropolitana de Porto Príncipe, criando incentivos para o assentamento da população em novos polos de desenvolvimento. Esses recados foram bem entendidos por nós, na remodelação do nosso projeto. Incorporamos praticamente todos. Apesar das dificuldades, o povo haitiano, como já reportei, apresenta-se saudável, com olhares altivos e dignidade nas faces, ainda que tenham sido humilhados enquanto nação, já que pagaram caro pela audácia de terem proclamado a Independência em 1804, a partir de uma revolução de escravos. Negros, pobres e audaciosos mandaram os franceses para casa com a Independência e, com isso, irritaram profundamente os Estados Unidos, que viam nascer ali, debaixo de suas barbas engomadas, uma nação ameaçadora. Unidos com a França, impuseram ao Haiti o primeiro boicote econômico, que durou 60 anos. Um século e meio depois, a ONU, criada a partir da 2ª Guerra Mundial, não acolheu o Haiti, pois impôs como condição para considerá-lo um Estado membro que o país ressarcisse a França dos investimentos ali realizados, e estabeleceu a indenização em 150 milhões de dólares. O Haiti pagou durante duas décadas U$ 90 milhões à custa do seu crescimento econômico e bem estar de seu povo, e foi perdoado do resto, pois mesmo a ordem econômica mundial se sensibilizou com a miséria gerada com esta imposição. A partir dali, a história do Haiti foi feita de sucessivos golpes de estado, com muito derramamento de sangue e recheado de corrupção em absolutamente todos os níveis da sociedade e governo. Visitei nossa base militar, encarregada da manutenção da Paz desde 2004. Tive orgulho do BRA-COY, o nosso batalhão. Orgulho de ver a dedicação dos nossos soldados e, principalmente, de ver a forma humanitária com que tratam os povos locais. O que sempre me pareceu bruto pelas imagens vividas e fixadas em minha vida universitária de 1968, típica de um militante antirregime, vi a atuação militar brasileira cheia de compaixão para com a miséria dominante e isso me tocou profundamente como ser humano e como franciscano juramentado que sou. O povo do Haiti gosta dos brasileiros, e isto se deve à atuação dos nossos militares em missão de Paz. Esta forma de ser um agente, um instrumento da Paz está impregnada desde os comandantes até nos soldados que, mesmo longe de suas casas em duras jornadas de seis meses, acolhem os locais com carinho e benevolência. A Paz não se constrói de outra forma. Foram nossos militares que nos explicaram como funciona o Haiti nos dias atuais. Diante do caos físico e institucional que virou o país, a ONU instalou aqui uma forçatarefa denominada Minustahm, que controla tudo (ou quase tudo). Qualquer projeto que se pretenda oficializar deve passar pelo crivo desta força. Ela exige que os projetos que são ofertados por países doadores encontrem interlocutores locais para lhes dar sustentação. Trocando em miúdos, para um projeto ser considerado oficial e passar pelo crivo da Minustah, o país proponente deve antes apresentá-lo a autoridades locais. Obtendo aceitação, aí sim pode submetê-lo. Assim, orientado pelo Exército Brasileiro, entendi finalmente o por que da nossa embaixada nos agendar uma visita atrás da outra, para apresentarmos nosso projeto. Nossa missão visitou várias instituições locais, mas em uma delas senti claramente a possibilidade de “engatar” nosso projeto. Foi no Centro Piloto de Formação Profissional – Varreux, vinculado ao Ministério da Educação do Haiti. Este centro existe desde 1974 com uma proposta profissionalizante. Recebeu ajuda de vários países. Pude ver ali, guardados num canto, os componentes de uma calandra/dobradora doada pela Alemanha, mesas de desenho sem componentes de madeira, porque se deterioraram no tempo. Tudo isso instalado em cinco edificações, uma delas duramente atingida pelo terremoto, porém, recuperável, sem necessidade de demolição, estava sendo preparada para a instalação do nosso Senai, antes do terremoto. Em duas reuniões que fizemos com o diretor deste centro, o engenheiro Jean Marie Monrose e sua equipe, garantimos que ele produzisse o documento solicitado pela Minustah de acolhida de nosso projeto. Apresentamos, junto com o nosso colega professor Wilson Consiani, do Ministério da Educação, ao engenheiro Monrose o nosso projeto redimensionado, que tomou a forma de um parque tecnológico voltado para a educação profissionalizante e capacitação profissional, com empreendedorismo voltado ao tema reciclagem de entulhos e outros materiais e em energias renováveis. Pensamos em renováveis e eficiência energética, desde os mais simples processos como panelas eficientes para uso eficiente da queima de briquetes dos rejeitos das madeiras disponíveis, até unidades geradoras de energia elétrica, que hoje são tocadas a diesel, gerando gases do efeito estufa. Já tive oportunidade de apresentar este projeto ao diretor-geral brasileiro, Jorge Samek, que viu por mais de uma hora as mais de 500 fotos que eu trouxe de lá. Como já era de se esperar, o nosso diretor deu sinal verde para tocarmos em frente o projeto. Teremos uma nova reunião para detalhamento, na Agência Brasileira de Cooperação, no próximo dia 24 de maio, às 11h. Diante disso tudo, vimos que o Comitê de Empregados da Itaipu Binacional em Solidariedade ao Haiti pode estar frente à oportunidade de implantar naquele país uma parte, ainda que pequena, do nosso grandioso PTI. Com isso, além de levar conhecimento da Itaipu para ajudar a refundar através da educação o Haiti, ainda estaremos abrindo oportunidades para todos os colegas de Itaipu, ou das instituições parceiras do Comitê, que queiram dar sua colaboração, por meio de sua vivência e conhecimento. Pela educação, capacitação profissional e apoio à organização empresarial das microempresas haitianas é que a economia do Haiti poderá ressurgir dos escombros, como a Fênix ressurgiu das cinzas. (*) Cícero Bley Júnior é superintendente da Coordenadoria de Energias Renováveis (CER.GB) da Itaipu
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