Kriptonita e déficit externo

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Kriptonita e déficit externo
Kriptonita e déficit externo
SCHWARTSMAN, Alexandre. "Kriptonita e déficit externo". Folha de São Paulo. São
Paulo, 03 de fevereiro de 2010.
IMAGINE UMA empresa que fature R$ 100 milhões/ano. Usa R$ 62 milhões para
pagar seus funcionários, R$ 21 milhões para a diretoria e os restantes R$ 17 milhões
para investir e aumentar seu faturamento nos próximos anos, configuração que
mantém seu fluxo de caixa devidamente equilibrado. No entanto, novas oportunidades
de investimento aparecem e não há dúvida de que, no melhor interesse dos seus
acionistas, a empresa deve aproveitá-las. O que fazer?
Para financiar o investimento adicional, só existem três alternativas: reduzir o
pagamento aos funcionários; baixar a remuneração da diretoria; ou ir a mercado, seja
tomando empréstimos, seja emitindo novas ações. Considere, porém, que a empresa
decida pela terceira opção. Caso o retorno dos projetos seja maior que o custo do
capital, não há maiores problemas: com a maturação dos projetos o fluxo suplementar
de caixa será superior à remuneração do capital adicional e a empresa, após certo
tempo, terá plenas condições de remunerar credores e acionistas.
É fácil concluir que, sob as condições acima, tomar recursos no mercado, o
equivalente a um deficit no seu fluxo de caixa, é uma boa decisão e qualquer analista
digno desse título louvará a estratégia empresarial. Caso, porém, a empresa estivesse
incorrendo em deficit devido a investimentos ruins, ou gastos maiores com funcionários
e diretoria, a reação seria a oposta. Sem o crescimento adicional do seu faturamento
ela teria dificuldades para servir seus novos compromissos e, assim, não apenas os
preços de suas ações cairiam mas também os custos associados a novas dívidas se
tornariam maiores, refletindo riscos mais elevados quanto à sua capacidade de
pagamento.
A esta altura os 17 leitores já chegaram a duas conclusões importantes. A primeira é
que deficit não são, em si mesmos, bons ou ruins; o que interessa é o que se faz com
os recursos tomados ao longo desse período, isto é, se os investimos em bons
projetos ou se os consumimos em despesas que não gerarão receita adicional.
A segunda conclusão é que não estou falando de uma empresa, mas sim do Brasil,
país em que, nos 12 meses terminados em setembro de 2009, o consumo privado
respondeu por 62% do PIB, o consumo público por 21%, e o investimento por
modestos 17%.
Esperamos (na verdade ansiamos) que o investimento se eleve como proporção do
produto, pois se trata de fator crucial para que o país possa acelerar sua taxa de
crescimento de longo prazo, mas, como no caso acima, as alternativas existentes são
apenas três: reduzir o consumo privado (aumentar a poupança), reduzir o consumo
público (fazer o ajuste fiscal), ou incorrer em deficit externo. Não há dúvida de que
optamos pelo terceiro caminho.
Nossos "keyenesianos de quermesse" associam essa escolha ao ressurgimento da
chamada "vulnerabilidade externa", mas, pela discussão acima, deve ficar claro que
esta vulnerabilidade depende do que for feito com os recursos que forem tomados,
seja sob a forma de investimento estrangeiro, seja sob a forma de dívida (há uma
diferença importante entre eles que, por falta de espaço, não vou abordar).
Caso esses recursos sejam utilizados para financiar o ritmo crescente dos gastos
públicos, provavelmente enfrentaremos problemas à frente, quando a expansão do PIB
não se mostrar suficiente para servir ao capital tomado. Usados, porém, para
investimentos que acelerem não apenas nosso crescimento mas também as
exportações, não há por que temer deficit externos. Deficit não é kriptonita; o que
fazemos com ele é.
ALEXANDRE SCHWARTSMAN, 46, é economista-chefe do Grupo Santander
Brasil, doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e exdiretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.

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