Artigos - Poéticas Visuais
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Artigos - Poéticas Visuais
Recontando o recontado Retelling the retold Nelyse Salzedas Livre Docente do PPG em Comunicação – FAAC-UNESP/Bauru Rivaldo Paccola Doutorando do PPG em Educação – FFC-UNESP/Marília Há alguns títulos que, sob um furtivo olhar, provocam inquietação e mexem com nossa imaginação (rimou?). O texto de Ana Maria Machado – Ponto a ponto – e o tema de um encontro na Universidade de Brasília – LER: leitura, ensino e recepção – intertextualizam-se no ato da leitura e são suficientemente provocadores. Então, deles pode surgir uma operação de rasgar, como o bisturi, em uma folha de papel em branco e desenhá-la com a palavra. Como diz Ziraldo (2005), palavra tem dois radicais: pa+lavra, que lembram o instrumento, a ferramenta, o trabalho (pá) e ouro, pedra preciosa, mina (lavra), pois criam, comunicam e registram ideias. E assim pensando, passamos a redigir nosso texto, começando por citar um ensaio de Glawinski (1977), no qual diz o autor que a crítica literária só muito recentemente tem se interessado pela leitura, quer como objeto de reflexão, quer como instrumento descritivo. Palavras-Chave: Nelyse Salzedas, Rivaldo Paccola There are some titles that, under a stealthy look, cause unrest and stir with our imagination. The text by Ana Maria Machado - Point to point - and the topic of a meeting at the University of Brasilia - READ: reading, teaching and reception - intertextualized in the act of reading are sufficiently provocative. Then, from them can emerge a form of ripping, as with a scalpel in a sheet of blank paper and drawing with the word. In this way of thinking, we may write our text, beginning by quoting an essay of Glawinski (1977), in which the author says that literary criticism has only recently become interested in reading, either as an object of reflection, or as a descriptive tool. Keywords: Nelyse Salzedas, Rivaldo Paccola E assim pensando, passamos a redigir nosso texto, começando por citar um ensaio de Glawinski (1977), no qual diz o autor que a crítica literária só muito recentemente tem se interessado pela leitura, quer como objeto de reflexão, quer como instrumento descritivo. Registra, ainda, Glawinski (1977) que uma leitura acompanhada de reflexão pessoal deixa de ser uma leitura no sentido comum (leitura ingênua); ela se assemelha ao tipo de atividade que caracteriza a interpretação dos textos literários. A analogia como o discurso (fala coloquial) não termina aqui. A partir de uma sentença falada, podemos reconstruir muito do que não foi muito claramente formulado, tal como: suposições não explicadas e toda uma gama de conceitos aceitos como óbvios e, portanto, dispensando verbalização. Cada sentença falada revela seus pressupostos, sendo que o mesmo ocorre na leitura: suas suposições específicas vêm à tona. Após citar Ingarden, Glawinski (1977) também traz à tona a posição de Adorno: “O interprete não é uma tabula rasa, ele vem ao texto com uma série de crenças e hábitos”. Após tais considerações, julgamos que Ana Maria Machado, ao construir o seu Ponto a ponto, tenha recorrido às histórias orais de suas reminiscências, as Figura 1: A mosca, a aranha e a velha a fiar Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 1, p. 107-109, 2011. 107 “storytelling”, pelo viés da reflexão e da interpretação costurou a sua narrativa, deixado ao leitor a recepção dessa nova história. O que há de novidade em sua história? Acreditamos que a transformação da narradora, a atualização de fábulas e mitos, o tecer do texto e da imagem com função de ilustração e produção de sentido que constrói uma metáfora a partir do tear em cuja linha colorida e bordada as histórias vão se pontuando aos nossos olhos. A história inicia-se em tom aorístico: “Era uma vez uma voz./ Um fiozinho à-toa. Fiapo de voz./ Voz de mulher.” e caminha para as “Cantigas de fios e teias:” Estava a mosca no seu lugar Veio a aranha lhe fazer mal A aranha na mosca A mosca na velha E a velha a fiar... Figura 2: As Moiras, as Parcas 108 E assim fiando tecia ponto a ponto novas histórias, todas diferentes, como contava Sherazade em “As mil e uma noites”. A primeira delas, talvez seja a mais significativa, pois se atinha ao mito de as Moiras, as Parcas da mitologia grega que enre- davam a vida, o destino, a morte, metaforizadas no fuso O seguinte, também centrado no fuso, atualiza o mito de Teseu e o Minotauro, assim segue a Bela Adormecida que “estendeu a mão no fuso e espetou o dedo caindo no chão em um sono profundo”. O fio e o tear perseguem a narrativa. E em outra desenha Ariadne, sua história condenava o fiar para sempre. No fluxo da narrativa, o tempo passa, as histórias sucedem-se, a voz vai crescendo “mais firme, mais decidida, entendendo mais a vida”. Os bisavós foram substituídos pelos avós, pelas mães, até que em um momento cansaram. Era a vez do ponto final. E a história acabou? Não, virou um livro, uma foto no jornal, uma história contada no rádio e na televisão. E assim construiu o caminho que partiu do ponto e chegou, tecido ponto a ponto, à tenda fio, uma nova voz narradora. Buscando o título do livro Ponto a ponto, sua interpretação atrela-se ao tear, ao fuso, ao fio e à própria etimologia do texto, ligada ao tecido, ao ato de tecer. O tom, a atmosfera, as variáveis da história são suportes do sentido como os pontos e as cores. A ilustração ultrapassa o fim decorativo, ornamental, didático, pelo contrário, é um texto conjugado, coordenado a outro texto e revela-se um tecido fotográfico visto em seu negativo, pois sua revelação Figura 3: A roca da fiandeira concretiza-se a partir de um outro texto da narrativa. A ilustração construída por pontos coordenados entristecem a forma do cenário, dos detalhes do tema. Aparecem castelos, labirintos, coroas, xales, varais, teias, teares, roupas, tecidos de pontos e cores diferentes, como se cada um pertencesse a histórias diferentes. Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n° 1, p. 107-109, 2011. Para corroborar a leitura, nas páginas finais, amarelas, estão as fontes das histórias com os indicativos pesquisados e das leituras das quais ressurgiram as narrativas. O detalhe de todas elas é o fio condutor da sintaxe da história e do ponto metaforizador da palavra tecida. Ainda, revendo Michael Glawinski e a questão dos detalhes, convém retornar à afirmação a respeito da interpretação e recepção do leitor que vem ao texto com suas crenças, seus valores e seus conhecimentos. Ponto a ponto, ao atualizar as lendas, mitos e fábulas percorre territórios e épocas diferentes impondo ao leitor conhecimentos, sincretismos e diacronismos de vários países. Citamos alguns fragmentos das páginas amarelas: “A velha a fiar”, do folclore mineiro; “As três fiandeiras”, da mitologia grega, como igualmente é a “Odisseia”, com suas personagens: Penélope, Ariadne, Teseu e o Minotauro; “A Bela Adormecida”, de Perrault, dos irmãos Grimm, de Basile e do desenho de Disney. Tais atualizações trazem informações sobre a cultura, crença e valores daqueles países de origem. Todas aquelas histórias recontadas e escritas por Ana Maria Machado têm como eixo a mulher e o fuso, pois o tear, em qualquer país, enfoca a fidelidade, a inveja, a solidariedade, a perseverança, o poder, o destino, tudo embutido nos passos actanciais das personagens. Hoje a “storytelling” desloca o narrador para a mídia digital atuando em outros formatos interativos, centrados na recepção do internauta, com marcas da oralidade. De certa forma, os vocábulos neológicos criados e usados na linguagem eletrônica recuperam as marcas da oralidade e produzem gêneros sincréticos. Nuñez (2007) apresenta três fundamentos que justificam o fenômeno do “storytelling”, sendo que o mais importante diz respeito ao ser humano que realimenta a história, pois cada pessoa constrói o seu relato a partir do relato de outras pessoas, seja por afinidade ou oposição. Um outro argumento seria a crise entre os relatos tradicionais, originários de mitos, religião e trabalho que aparecem nos ritos, Bíblia e Alcorão. Então, a interpretação deve ser considerada como uma testemunha, porque seu objeto é a obra individual. Figura 4 e 5: A história foi para o rádio... e para o jornal Bibliografia GLAWINSKI, Michael. Reading, interpretation, reception. In: New Literary History, vol. XI, number I. The University of Virginia, Charlotessville, Virginia, USA, 1977. MACHADO, Ana Maria. Ponto a ponto. Ilustrações de Christine Röhrig. São Paulo: Companhia das Letrinhas. 2006. NUÑEZ, Antônio. Será mejor que lo cuentes. Barcelona: Empresa Activa, 2007. ZIRALDO. O menino quadradinho. [ilustrações do autor]. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2005. Recebido em: 15 de Maio de 2011 Aprovado para publicação em 18 de Agosto de 2011 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 1, p. 107-109, 2011. 109 TEXTURA ÓTICA DO TEXTO: O VISÍVEL COM CONDIÇÃODO LEGÍVEL Optical texture of the text: The visible as a condition to the legible Guiomar Josefina Biondo Doutora em Letras. Atualmente é assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho em Bauru, São Paulo, Brasil. O assunto é uma carta/desenho enviada a Mario de Andrade por Di Cavalcant. O sentido emerge da relação entre o desenho-retrato e da escrita-retrato, a qual o pintor fez de sí mesmo. Para resgatar o legível e o visível, uma carta de Poussin enviada a Chantelou em 1639, será o instrumento heurístico de nossa análise. Palavras-Chave: Textura Ótica, Mario de Andrade, Poussin Our purpose is a Di Cavalcant’s drawing-Ietter, sent to Mario de Andrade. The sense emerges from the relationship between the drawing-portrait and the writing¬portarit, which the painter made of himself. To ransom the legible and the visible, a Poussin’s letter sent to Chantelou in 1639, will be the heuristic instrument to our analysis Keywords: Optical Texture, Mario de Andrade, Poussin A nalisando o texto de Louis Marin - Ler um quadro - uma carta de Poussin constatou-se que o leitor Marin ao ler a carta de Poussin à Chantelou retirou dela um esquema de contemplação de um quadro, composto em três modalidades: o percurso do olhar; o reconhecimento do duplo processo de iconização do texto escrito, a textualização do quadro e uma terceira modalidade a interpretação que conjuga as duas instâncias anteriores, o momento da reflexibilidade. E, em Variações sobre um retrato ausente: os autos- retratos de Poussin 1649-1650, ele anuncia o percurso gerador da variação. Como o retrato do pintor, pode traduzir o modo no qual o quadro foi tratado? Para isso é preciso: primeiramente ver, é preciso tentar ler, é preciso, portanto, tentar ver e ler; é preciso, de novo tentar ver primeiro; ler; e depois ainda, e para terminar voltar ao olhar e ao olho (Marin,2000:173,190) Com esses pressupostos, ao ler a carta de Di Cavalcanti foi possível constatar essas modalidades nas suas diversas variações: o objeto da carta de um pintor à um escritor, ambos artistas das letras e da pintura, que viveram o Modernismo, onde a tônica foi o cotidiano, o humor e a crítica. Di fruto desse momento histórico, não deixou de mostrar essas reações, mesmo sendo um bilhete Lemos uma carta, um poema, um livro; o que significa ler um desenho, um quadro, um afresco? Pois se o termo “leitura” se aplica imediatamente a livro, será que o mesmo ocorre em relação a quadro?(Marin,2000: 19 ) No bilhete-desenhado, enviado a Mário de Andrade, o desenho enuncia o valor que o destinatário possui para o autor enunciador. A imagem não é o duplo do te;-.1:o e não precede a escrita, assim, sendo um bilhete, não tem nome e não é enunciado com antecedência. Toda visão será provoca da pelo visível e pelo legível, no mesmo instante, como acontece na arte contemporânea. O texto escrito e o desenho colocam o autor e o receptor ‘in presentia’, a imagem ilustra a narrativa por sua presença material e o leitor escuta para apropriar-se de sua significação útil ao seu espírito O desenho, é um quadro gravado, enquanto que o texto escrito é um quadro falante. E corno texto escrito exige que o leitor interprete criando imagens, no entanto quando juntas elas impõem uma presença visual, uma tensão, antecipando o poder de contemplação”. (Marin,2000: 173,190 ) Di Cavalcanti ao retratar-se no desenho como boêmio, entre as mulheres vivendo na “baixeza” como ele mesmo diz na seu bilhete-desenhado, fazendo com que o julgue “engraçado”, revela traços caricaturais antiacadêmicos, prova de seu caracter anárquico e integrante ativo do movimento modernista. O pintor, no primeíro plano, sentado ao lado da mulher, tem um dos braços sobre seus ombros e o outro apoiado sobre sua perna, unl gesto de anlÍzade pelas mulheres e pelos amigos. A mulher ao olhar para fora da cena convida o espectador-leitor para participar da mesma. O gestual, produzido pelo gráfico, vem designar o efeito das duas linguagens: a verbal e a visual do tempo 110 Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 1, p. 110-112, 2011. passado e futuro, um nó que ressalta um contraste expressivo no plano do conteúdo. Não seria esse contraste do amor à pintura e às mulheres o efeito do texto:? O mesmo se vê no conjunto, do segundo plano. A mesa em perspectiva tem no centro um vaso com flores em forma de luz, permitindo uma permutação simétrica teórica e prática. Como luz produz cores, uma metonímias que teoriza o icônico como pintura e como escritura o lugar da biografia e a autobiografia. Quando o nosso olho percorre todo o espaço do papel, ele encontra vários traços revelados nos gestos, sugerindo ambigüidades como acontece no primeiro plano do texto visual. No segundo plano o vaso carrega o atributo da pintura, trazendo um ânimo colorido ao fundo preto das palavras, fazendo o espectador entrar nesse secreto, onde a figura se mostra e se revela como pintor. A disposição das flores em riscos chispados divergentes ressalta o pictórico no escritural, a cor e luz, a teoria e a prática da pintura, deixando para o espectador o julgamento. No terceiro plano, dentro do campo do desenho, o espelho, que na direção de uma coordenada vertical ocupa uma posição reversa ao pintor. Essa reversão é o lugar da visibilidade da figura do pintor cujo espelho reflete o invisível. O desenho esconde um quadro, que está oculto no espaço do papel, um jogo da apresentação e da representação oculta o sujeito pintor ao mesmo tempo que o revela Cada coisa visível comporta uma parte do invisível, resgatando assim o ato de ler. No primeiro plano, representado pelo gesto das mãos e o olhar dos personagens, reside a figura do pintor, escondido dentro de uma moldura de palavras apresentando-se com nome, sobrenome e origem, oferecendo uma biografia do sujeito Di Cavalcanti. No segundo plano, a mesa em perspectiva e o vaso demonstra o ponto de vista do autor que se vê como pintor. Ele não se desenha pintando, como fizeram tantos outros artistas, mas o emblema de luz trás o invisível das cores fazendo o artista revelar-se na pintura completando a sua biografia Fazendo ver-se naquilo que se apresenta, o espelho, no terceiro plano vem completar o titulo deste bilhete-desenhado, o auto-retrato do pintor, fazendo realizar o que não existe, através de metáforas e metonímias, o retrato do artista por ele mesmo. Por conseguinte, Di Cavalcanti não teria lido Velazquez ? No quadro “As Meninas”, o pintor de 1656 retira das sombras o retrato do casal real que posa para o pintor, eles não aparecem na tela mas são refletidos no espelho e ainda a tentação de aplicar a arte à si mesmo ele vai indicar através de uma figura a posição social do pintor. No espaço da porta aberta, com o pincel na mão, Velazquez se vê pintando. Esse é o momento da criação de um desenho interno, a pintura sendo feita a partir da teoria da representação. Porém é preciso ver e ler. Não se pretende aqui uma análise minuciosa do bilhete-desenhado, mesmo porque este acha-se pouco legível, só retiramos aqueles elementos possíveis de uma comparação com o plástico visual, mesmo assim foi possível confirmar as hipóteses lançadas por Poussin, os dois modos de pintar um auto-retrato. Ao olhar e ler o iconico percebemos alguns nós relacionais de interpretação de sentido, aqueles mesmos atos da história percebidos no texto verbal. Nesse momento é preciso situar o olhar para além da figura e captar através da escrita o secreto e suas significações. Definindo-se nas ambigüidades de amante e pintor, de caricaturista e ilustrador Di Cavalcanti vai inserindo sua assinatura na escritura e revelando mais uma vez o retrato do pintor. É ele por ele mesmo. Dessa maneira os signos verbais seguem emoldurando o desenho central, como sustentação das formas, mas é preciso ler e resgatar os nós embricados no verbal. “Meu muito querido amigo Mário. Saudades. Então velho inquieto, nem um bilhete para o seu anúgo e mestre nas festanças.( ... ) O melhor é não ligar e ir de vez em quando escrevendo para o amigo( ... ) Assim Di iniciou seu bilhete como amigo dos amigos, amante e boênúo. Vai comentando sobre aqueles que viajaram, os que se apaixonaram e até aqueles que morreram “Assisti o enterro do sinhô que me fez um quadro( ... )” Posicionando o bilhete na altura dos olhos, tem-se uma ocorrência simultânea de signos que são característica do desenho, com possibilidade de transferência para leitura do verbal, criando uma descontinuidade entre os elementos geradores de sentido. Tal ocorrência, é notada quando o artista na posição de escritor fez um discurso em sua defesa, plasmando a idéia de que o oficio da pintura é tão importante quanto das letras e que pobreza e boênúa não é demérito. Portanto define-se como criador. Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 1, p. 119 - 112, 2011. 111 Apenas as pessoas da baixeza ( ... ) faz a gente feliz ( ... ) dedico-me a solidão produtiva. Abandonei o gordo Schnúdt definitivamente, ele possui o indianismo de Oswald de Andrade( ... ) e fui buscar na ‘baixeza’ o ‘soneto criador’. A ilustração, posicionada no centro do bilhete vem constatar essa imobilidade cultural, aquela posicionada por Velazquez. Aqui, a figura do pintor acuado pela escrita. São esses efeitos que induzem o observador-leitor a uma leitura do invisível, pois Di Cavalcanti usando das mesmas noções do desenho caricatural deslocou para o verbal as suas diversas paixões fazendo-se compreender pela escritura . Voltando a olhar, percebe-se que posicionando o bilhete acima do olho com a linha da viseira separando os espaços, encontra-se o lugar da visibilidade da figura à partir do reflexo onde o pintor olha para dentro de si mesmo, um lugar onde a genialidade é assunúda sem vaidade. (.. ) porque parece que já mereço tempo de realizar o que sei realízar( ... ) Eu me sinto de uma genialidade constante. Então não é vaidade( ... ) Eu quero sobretudo a vida. Esta vida que eu cobri de cores especiais de baixo para cima. Olhe o desenho e leia o bilhete. Ai está a identificação entre o assunto da pintura e o sujeito - pintor, um “Recado de DI” cobrando do amigo leitor a posição do artista boêmio que saiu da periferia da cidade, mas que através das suas criações tem o mesmo valor que os demais. Esse bilhete-desenhado, apresenta a representação do sujeito-pintor que contém: nome, origem e profissão, não apenas apresenta a representação do pintor, mas ele dá-se a ler e a ver, uma metáfora escrita e desenhada, ele se designa, pois a parte escrita vale semanticamente pelo desenho e vice-versa .. Se o desenho faz ver o pintor, a escrita faz ler o pintor, todo o resto é silêncio para o espectador que depois deve voltar a olhar e ao olho Pense e olhe o papel como se olha no buraco da fechadura, porque assim o espectador vendo, lendo encontra o olho do eu. Que história tem naquele papel? Segurando entre as mãos a carta deslizamos pelas texturas a figura do pintor. O auto-retrato do pintor que deixa advinhar ao espectador leitor com um olhar de quem contempla o que vê. Institui uma forma de leitura e de olhar. É a história do pintor que pintou a história, deixando ver o pintor e o amante da pintura, é o invisível do pintor, o eu que resume-se em contemplar seu duplo fora da representação fora da figura. Colocar os dois retratos lado a lado, não é mostrar apenas as diferenças de cada sistema, mas verificar o discurso desse olhar oscilando entre a impressão global e os inúmeros traços nela contido. De um lado o Di Cavalcanti modesto e de outro o artista criador de obras nacionais. Assim parafraseando Morin,2000: 190. É um canto de amor, que faz do bilhete escrito e desenhado uma dupla variação pictórica desse canto, dirigido ao escritor e amigo Mário de Andrade, onde se vê e se lê a historia do pintor Di Cavalcanti. Bibliografia ANDRADE ,Mário. Aspectos das Artes Plásticas no Brasil, Sào Paulo: Editora Martins Fontes, 1976. AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na semana de 22, São Paulo: Perspectiva,1972 DI CA V ALCANTI, Enúliano. Viagem de Minha vida, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1955. GALLEGO, Julian. EI quadro dentro deI quadro, 3” ed., Madrid: Arte Catedra,1991. MORIN, Louis. Sublime Poussin, São Paulo: Edusp, 2000. PONTUAL, Roberto. Dicionário de Artes Plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, Recebido em: 15 de Maio de 2011 112 Aprovado para publicação em 18 de Agosto de 2011 Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 1, p. 110-112, 2011. A Poética de Amedeo Modigliani O Anjo de Olhar Grave The Poetics of Amedeo Modigliani - The Melancholy Angel Elza Ajzenberg Professora Titular da Escola de Comunicações e Artes – ECA/USP. Pertence ao quadro de docentes/pesquisadores da ECA/USP há 20 anos. Coordenadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes – ECA/USP. Ex-Diretora do Museu de Arte Contemporânea MAC/USP, São Paulo, Brasil. Em seus trabalhos temos evidência de intensa reflexão e sensibilidade aos menos afortunados. A escolha de temas e estruturas demonstra essas preocupações. Portanto, aparecem em seus trabalhos: a filha da mulher responsável pelo prédio, crianças fragilizadas e belas garotas do povo. Palavras-Chave: Amedeo Modigliani, O Anjo de Olhar Grave, Elza Ajzenberg In his works are evidence of intense reflection and tenderness for the less fortunate. The choice of themes and templates demonstrates these concerns. Thus, appear in his works: the daughter of the woman in charge of the building, weak children and beautiful girls of the people Keywords: Amedeo Modigliani, The Melancholy Angel, Elza Ajzenberg Catedral de Notre Dame de Paris (Foto: JEH). O artista viveu apenas 36 anos, sendo que parte deles coincidiram com os difíceis anos da I Guerra Mundial. A exposição organizada por Restelini permite aquilatar as contribuições de Modigliani para os dias atuais, bem como acompanhar a densa mensagem das vivências desse artista. As buscas empreendidas por Modigliani tangenciam ao mesmo tempo as suas inquietações; a gravidade econômico-social de seu momento de efervescência de debates estéticos. Filho de um banqueiro judeu pouco afortunado, Modigliani nasceu em Livorno/Itália em 1884, recebeu lições de arte em sua própria cidade natal, sob a orientação de Guglielmo Micheli, discípulo do pintor macchiaioli Giovanni Fattori, desenvolvendo estudos de retratos, paisagens, nus e naturezas-mortas. Porém, foi a mãe quem estimulou a vocação do artista. Bem jovem foi enviado às academias de Florença e Veneza. Nesse período, iniciou cursos de história da arte, dedicando-se ao estudo dos pré-rafaelistas e à leitura de Baudelaire, D´Annunzio e Lautréamont – desse último autor adquiriu a concepção de que o artista é um ser excluso da sociedade por sua independência criativa e pela constante busca de auto-realização. Em 1902, inscreveu-se na Academia de Belas Artes de Florença, onde adquiriu conhecimentos sobre macchiaioli, a pintura impressionista italiana. Um ano depois, freqüentou a Scuola Libera Del Nudo em Veneza. Encontrou o artista Ortiz de Zárate com o qual descobriu as grandes tendências européias da arte. Chegou a Paris em 1906. De bela aparência, mas já sofrendo de tuberculose, tornou-se bem depressa um dos Poéticas Visuais, Bauru, v.II, n° 1, p. 113-115, 2011. 113 mais turbulentos entre os artistas de Montmatre, onde morou durante seis anos. Procurou tomar parte de calorosos debates estéticos, ao mesmo tempo em que mudava sem cessar de domicílio. Em 1907, expôs no Salão de Outono em Paris. No ano seguinte, expôs diversas obras no Salon des Indépendents na sala dos pintores Fauves. Em 1909, teve por vizinho o escultor Brancusi, do qual se tornou amigo. Essa amizade motivou a vontade de trabalhar a pedra. Realiza várias obras que, todavia, ficaram inacabadas. O contato com o escultor propiciou uma alteração do trabalho volumétrico que se tornou mais simples, sob a influência das formas arcaicas dos ídolos e das máscaras africanas. Essa experiência foi decisiva em sua carreira. Quando chegou a Paris a sua técnica revelava desdobramentos do Pontilhismo. Depois recebeu forte influência de Cézanne, por ocasião da grande retrospectiva de Bernheim, em 1910. A admiração de Modigliani pelas formas simples e expressivas da escultura, especialmente, a primitiva, definiu nova etapa de seus desenhos e pinturas, no começo da I Guerra. De 1914 em diante, concentrou-se no desenho e na pintura, realizando vários retratos de pintores, escritores e intelectuais presentes em Paris. Essa fase foi marcada pr formas lineares e o alongamento das figuras. O modelado absorvido por Modigliani colocou linha e cor em equilíbrio, simplificando os contornos das figuras. Ao deixar Montmatre, passou a freqüentar Montparnasse, onde a sua vivência tornou-se cada vez mais inquieta, envolvida com a embriaguez. Vendia por preços insignificantes desenhos admiráveis. Era visto no terraço da Rotunda ou da Catedral, desenhando com traço agudo e rápido retratos que oferecia descuidadosamente aos seus modelos ocasionais, em troca de um copo de bebida. Trabalhou no ateliê de Kisling à rua Joseph-Bara. Conheceu vários artistas que procuravam como ele as “lições da École” de Paris. Aproximou-se de Soutine e Lipchitz e Pascin, entre outros. Vagueou de café em café. A poetisa inglesa Beatriz Hastings sustentou-o durante algum tempo. Zborowski recolheu-o depois, privou-se do necessário para que o protegido pintasse retratos e os nus que mais tarde museus e colecionadores disputariam. Casou-se com Jeanne Hebriterne e da união nasceu um filho. O que de modo algum foi sinônimo de tranqüilidade. Consumido por drogas e pela febre, faleceu em 25 de janeiro de 1920, murmurando: “cara, cara Itália”. No dia do funeral, organizado por André Salmon e Kisling, a mulher suicidou-se. No final da vida, foi auxiliado pelos negociantes Zborowski e Paul Guillaume, mas somente após a morte a sua pintura foi mais reconhecida. Hoje, através da mostra Modigliani: o anjo de olhar grave, o público tem a oportunidade de acompanhar vivências do artista e indagar sobre os acontecimentos de seu contexto ou mesmo meditar sobre as questões mais emergentes da Arte do século que se inicia. Em suas obras estão em evidência a reflexão intensa e ternura pelos menos favorecidos. A escolha de temas e modelos demonstra essas preocupações. Desse modo, surgem em suas obras: a filha da encarregada do prédio, crianças fracas, belas moças do povo. Acompanha essas obras o poder do traço primitivo, especialmente a Arte Africana, presente também em vários momentos das vanguardas do início do século passado. Tampouco escapam as suas procuras, os ganhos e a expressividades dos traços orientais, como são exemplificados no retrato de Diogo Rivera, do MASP, presente na mostra do Museu Luxemburgo. A figura foi sempre a preocupação central de Modigliani. Pintou especialmente retratos e nus femininos. Nos seus últimos trabalhos, principalmente nos nus, o fator dominante é contorno alongado. A grandiosidade que deles emerge chega a lembrar Botticelli. Fiel à tradição toscana, foi antes de tudo, “linear”. Exprimiu-se na linha flexível e melodiosa; por vezes frágil ou seca, elegante até atingir a preciosidade. Modigliani não ignorava as buscas de Picasso e de Braque. Porém, se recusou a tomar parte do Cubismo. Se o exemplo dos cubistas foi indiferente às questões, tais como atmosféricas, caminhou, entretanto, em uma vertente própria. Procurou distorções de formas, alongamentos, cânones arbitrários que constituem o que se denominou de seu “expressionismo”. Em seus cânones surgem: cabeças ovais e inclinadas, nariz delgado ao extremo; olhos de amêndoas e vazios, a boca estreita e contraída. O seu estilo próprio marca ainda ombros caídos; pescoço de cisne e braços que não acabam. Os membros são quase sempre franzinos. As linhas concorrem com um acabamento sinuoso, às vezes, em arabescos com forte influência de Matisse. Amedeo Modigliani deixou um estilo que se basta a si mesmo e atua profundamente sobre o espectador. Comunicou através de sua obra intelectualismo ansioso e grave, peculiar aos artistas judeus. Trouxe ao século XX um novo “estremecimento”, através de sua arte e essencialmente subjetiva, frágil e distante. Rebolo (livro). São Paulo - MWM-IEK, 1988 Comunicações e Artes em Tempo de Mudanças (livro) São Paulo. ECA/USP-SESC, 1991. Arte e Ciência: Mito e Razão(Série Schenberg, 12) - (org), São Paulo: Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes - ECA/USP, 2001. Operários na Paulista, São Paulo: MAC USP, 2002 Recebido em: 21 de Abril de 2011 Aprovado para publicação em 17 de Outubro de 2011 São Paulo, abril de 2011 114 Algumas Publicações: Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 1, p. 113-115, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.II, n° 1, p. 113-115, 2011. 115
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