Transformação, transposição e variação na
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Transformação, transposição e variação na
Transformação, transposição e variação na Ciberliteratura de Língua portuguesa Rui Torres* INTRODUÇÃO A reflexão que aqui proponho parte do mapeamento de várias produções literárias que existem hoje em suportes electrónicos, deles dependendo para que a leitura seja possível. Também denominada literatura algorítmica, generativa ou virtual, a ciberliteratura designa aqueles textos literários cuja construção se baseia em procedimentos informáticos: combinatórios, multimediáticos ou interactivos. Fazendo uso das potencialidades do computador como máquina criativa que permite o desenvolvimento de estruturas textuais, em estado virtual, actualizando-as até ao infinito, a ciberliteratura utiliza o computador de forma criativa, como manipulador de signos verbais e não apenas como simples armazenador e transmissor de informação. Deste modo, a ciberliteratura distingue-se da literatura digital(izada), constituindo esta uma hipertextualização de estratégias textuais pré-existentes, em que se verifica uma transição do papel para o pixel em termos meramente técnicos, e ficando aquela dependente de uma construção cibernética ou hipermediática que promove novos modos de escrita e de leitura. Neste sentido, interessa ao ciberautor promover as potencialidades gerativas de um algoritmo, que pode ter uma base combinatória, aleatória, estrutural, interactiva ou mista, e permitindo assim o funcionamento do computador como "máquina aberta". Ora, essa "máquina semiótica" de que nos falava Pedro Barbosa altera profundamente todo o circuito comunicacional da literatura. * Professor Associado da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa; Investigador do Centro de Estudos de Texto Informático e Ciberliteratura, UFP-Porto; bolseiro de PósDoutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa TRANSFORMAÇÃO, TRANSPOSIÇÃO E VARIAÇÃO Dado o vasto campo de aplicações culturais e comerciais que ocupam hoje em dia o espaço público virtual da Internet e dos computadores pessoais, têm-me interessado particularmente os textos digitais que investem, não num mero processo de remediação e transposição, mas em textualidades que nos remetam para uma reflexão acerca dos processos criativos constitutivos da hipermédia, a partir de uma função organizativa e taxinómica própria da crítica. Ora, as mobilidades e o intercâmbio entre poesia e crítica encontram na hipermédia um salutar impulso: transitando entre tipologias textuais distintas, esbatendo as fronteiras dos géneros do discurso, o leitor do cibertexto é crítico e criativo. E é desse modo que o meio digital se parece adequar à poesia de inovação, acolhendo-a na sua arquitectura descentrada e múltipla. E a poesia de inovação e experimental (seja ela concreta, visual ou sonora) reconhece a importância dos materiais da escrita para a própria escrita, isto é, da função estética da linguagem e da materialidade dos meios. Não estamos ainda, porém, em pleno terreno da operacionalidade maquínica, por muito que alguns assim o queiram profetizar. Pelo contrário, o horizonte que o espaço electromagnético inaugura perante os nossos olhos desarmados é apenas o início de algo bem maior, que apenas podemos para já vislumbrar. Também não parece haver descontinuidades nos processos criativos que se inauguram, mas antes sugere o cenário que estas textualidades electrónicas se inscrevem em processos que já se podem antecipar num passado de experiências que apontavam para caminhos de convergência e interactividade. Neste sentido, somos obrigados a investir na investigação das possibilidades de remediação e hipermediação das poesias experimentais do século XX. Porque conhecer a produção concretista e visual dos poetas da segunda metade do século XX, é perceber como certas formas poéticas antecipam certas mudanças e a elas se adaptam. Reler essas vanguardas literárias a partir do meio que essas formas antecipavam é, por isso, um Rui Torres 2 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa exercício útil. No meio digital, de uma forma intuitiva, poemas sonoros, visuais e concretos podem ser apresentados de maneiras inovadoras, cativando novos leitores para o jogo verbal da poesia, em geral, e da concretista e visual, em particular, pois a inovação poética do experimentalismo de meados do século XX acaba também por representar as matrizes da linguagem digital. Vários estudiosos da poesia digital, tais como Aarseth ou Glazier, da linguagem dos novos média, como Manovich, ou do hipertexto, como Landow ou Bolter, têm observado uma certa linha de continuidade entre a hipertextualidade digital e as poéticas de ruptura do início do século (dadaísmo, futurismo) e do meio do século XX (concretismo, letrismo) a que fazemos referência. Mesmo em termos teóricos e conceptuais, já nos avisava George P. Landow acerca da aproximação entre o pensamento cibernético e a teoria literária, em 1996: “When designers of computer software examine the pages of Glas or Of Grammatology, they encounter a digitalized, hypertextual Derrida; and when literary theorists examine Literary Machines , they encounter a deconstructionist or poststructuralist Nelson. (…) A paradigm shift, I suggest, has begun to take place in the writings of Jacques Derrida and Theodor Nelson, Roland Barthes and Andries van Dam.” Este aspecto está, naturalmente, relacionado com esta metáfora da remediação, que promove a transposição de um meio para o outro. Ora, uma concepção limitada do computador enquanto um potencial acelerador de cálculos e algoritmos previamente executados “à mão”, esquece, conforme salienta Manovich, outros usos essenciais, novas formas de interacção e de criação digital. Assim, enquanto que uma manipulação, mesmo que através de meios digitais, de materiais convencionais, pode ser vista como uma remediação (ou como uma hiperedição), da qual se poderia constituir uma categoria tal como a de literatura digital, o mesmo não se aplica ao modo de trabalhar em tempo real através das redes, ou através de toda uma série de procedimentos algorítmicos em que as estratégias de enunciação escapam ao circuito tradicional da comunicação. Esta dimensão de uma nova interactividade é analisada por Paulo Cunha Filho e André Neves numa perspectiva semiótica: “São os hipersignos - sejam eles on-line (Web) ou off-line (CD-Rom) - que, ao atualizarem o repositório de substâncias de expressão da hipermídia, propõem Rui Torres 3 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa mensagens ao dispositivo. Apenas, contrariamente aos media da era analógica baseados em suportes materiais, esta atualização é digitalmente interativa, e ocorre um processo de metasignificação no qual as substâncias de expressão (três tipologias de imagem e três tipologias sonoras) permitem uma verdadeira (e não metafórica) deriva infinita do sentido: a navegação não-linear sob a forma de interferências, contra-interferências e links.” A poesia em meio digital está presente na rede e na hipermédia de um modo virtual, isto é, em código estritamente numérico; quando um poema digital é lido, todo um conjunto de dispositivos na relação homem-máquina-rede são despoletados, tais como a geração automática de texto ou a navegação randómica, numa convergência multimediática verbovocovisual. Ora, dentro do esquema modelizante primário da cultura ocidental (e seu imaginário plasmado na tecnologia), somos levados a construir mensagens que, conforme pretendiam os formalistas e depois os estruturalistas, deformassem a língua comum das redes, dos computadores. E, filhos do nosso tempo, escreveremos a nova poesia e as novas narrativas com recurso às linguagens de programação do nosso tempo, e sua linguagem de programação própria. Manovich, McGann e outros explicam-nos que a questão se coloca então nestes termos: os poetas do tempo que vem terão que programar, os poetas do ciberespaço têm que conhecer linguagens de programação. E porque esta é uma época de passagem, a exemplo dos poetas experimentalistas do Cabaret Voltaire, da Noigandres, da PO-EX ou do OULIPO, temos de propor, hoje, uma integração da criatividade em meios digitais na estética literária, por forma a melhor se afigurarem, de novo, que caminhos poderemos a partir de agora seguir. Porque os novos media, como Manovich não se cansou de referir, são a estética que acompanha os estádios de cada tecnologia mediática da modernidade. Historicamente situada, inscrição do futuro no passado, reconhecimento do valor plagiotrópico da sua inventividade, também a ciberliteratura nos obriga a remeter para essas práticas literárias do meio do século passado – do concretismo à visualidade, articulam-se com as novas experiências digitais princípios já experimentados. Mas, e trata-se aqui de um importante aviso à navegação, o passado não pode atrasar o futuro. O seu a seu dono, e se é verdade que concretismo e visualidade abriram espaços importantes para as novas práticas poéticas, não podemos aceitar a designação de Rui Torres 4 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa ciberliteratura ou de literatura informática para esse passado, que parece por vezes querer para o devir das coisas. A poesia experimental cruza, na expressividade dos meios, uma multiplicidade de matrizes de carácter verbovocovisual: o som – dos anúncios e das canções; o grafismo e a visualidade – dos comics e da iconografia urbana; a escrita – dos caligramas e da combinatória. Exemplos abundam, em Portugal como no Brasil. Em Portugal, de que me ocuparei mais neste momento, Ana Hatherly explora desde cedo os recursos visuais da caligrafia; Herberto Helder desenvolve nos seus poemas a técnica combinatória, antecipando as experiências com computadores; António Aragão explora a fotocópia e a electrografia; Ernesto M. de Melo e Castro cria a vídeo-poesia; Fernando Aguiar dedica-se à performance; e Alberto Pimenta faz de tudo isto um pouco, com muita ironia, pertinência e coerência.1 É sem dúvida desta relação entre uma dialéctica das formas e uma metamorfose permanente dos meios que resulta a ciberliteratura. O carácter espacial e objectual de muita da poesia concreta, visual e gráfica teve (e tem ainda) a sua repercussão na transição do meio impresso para o meio digital, do mesmo modo que a projecção poética no espaço público (o acontecimento, a performance) teve a sua importância na transferência para uma arquitectura em rede em que se parecem configurar a ciberpoesia e o ciberteatro. Deste modo, além da geração combinatória de 1 Algumas das publicações colectivas de poesia experimental: Poesia Experimental: 1º caderno antológico, org. António Aragão & Herberto Hélder, Lisboa, 1964; Poesia Experimental: 2º caderno antológico, org. António Aragão, E. M. de Melo e Castro & Herberto Hélder, Lisboa, 1966; Hidra 1, org. E. M. de Melo e Castro, Porto, ECMA, 1966; Operação 1, org. E. M. de Melo e Castro, Lisboa, 1967; Hidra 2, org. E. M. de Melo e Castro, Lisboa, Quadrante, 1969; Novas tendências na arte portuguesa: poesia visual portuguesa: Portuguese visual poetry, Coimbra, Galeria CAPC - Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 1980; Exposição de poesia experimental portuguesa: PO.EX 80, Lisboa, Galeria Nacional de Arte Moderna, 1980; Poemografias: Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa, org. Fernando Aguiar e Silvestre Pestana, Lisboa, Ulmeiro, 1985; Concreta, experimental, visual: poesia portuguesa, 19591989, org. Fernando Aguiar & G. Rui da Silva, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989; Visual Poetry: An International Anthology, in: Visible Language 27 (4) Autumn 1993, org. Harry Polkinhorn; World poem, org. Manuel Portela & Alberto Pimenta, Figueira da Foz, Museu Municipal Doutor Santos Rocha & Câmara Municipal, 1993; Antologia da Poesia Experimental portuguesa: Anos 60 - Anos 80, org. Carlos Mendes de Sousa & Eunice Ribeiro, Coimbra, Angelus Novus, 2004. Uma parte significativa destes trabalhos está a ser classificada e digitalizada por um grupo de investigadores do Centro de Estudos de Texto Informático e Ciberliteratura da Universidade Fernando Pessoa, no Porto, com financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia. O projecto, denominado "CD-ROM da PO.EX", tem como objectivo produzir um CD-ROM de divulgação destes trabalhos, há muito esgotados. Foi também criado um sítio web onde é possível estudar e conhecer a produção impressa da poesia experimental portuguesa dos anos 60, disponível em [http://www.po-ex.net]. Rui Torres 5 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa texto, que foi “concretizada” pela literatura gerada em computador, também a componente gráfica e visual explorada pela poesia experimental viria a ter desenvolvimentos com os meios digitais que são significativos.2 METODOLOGIAS DE AVALIAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO Aarseth, no seu livro Cibertexto: Por uma literatura ergódica, de 1997, define como cibertexto todo o texto que tem mecanismos de retroacção que permitem ao leitor configurar caminhos (ergos + hodos = trabalho + percurso). Essa definição permite trabalhar com um mesmo esquema de classificação (baseado no ergodismo) trabalhos que vão do I-Ching a contos do J. Cortazar, caligramas de Apollinaire a livros de crianças, R. Queneau a MUDs, hiperficção e literatura generativa. Muito útil, este livro acaba desconstruindo o "mito do hipertexto" establecido principalmente nos Estados Unidos. Aarseth conclui que textos não electrónicos são por vezes mais indeterminados do que hiperficções do storyspace, além de apresentar a aleatoriedade de acesso do codex VS. determinação de percursos das narrativas digitais fechadas (e que porém se dizem abertas). Para propor um esquema de classificação (quantitativo, de que resulta um mapa próprio) Aarseth propõe conceitos novos, como os de escritões - encadeamentos tal como são percebidos pelos leitores; e textões - encadeamentos existentes no texto. Será interessante aqui incluir as 6 variáveis, de que resultam 4 funções do utilizador, por ele referidas. As variáveis são: Dinâmica, Determinabilidade, Transiência, Perspectiva, Acesso e Ligações. As "Funções do utilizador" que daqui resultam são: Interpretativa todas as decisões do leitor dizem respeito ao significado; Exploratória - decisão de percurso de leitura cabe ao leitor; Configurativa - escritões são parcialmente escolhidos ou criados pelo utilizador; Textónica - podem acrescentar-se ao texto textões ou funções transversais. 2 Uma importante referência para compreender algumas das relações entre poesia concreta e meios digitais é o artigo de Manuel Portela, "Concrete and Digital Poetics”, in: New Media Poetry and Poetics Special Issue, Leonardo Electronic Almanac, 14(5-6), 2006, disponível em [http://leoalmanac.org/journal/vol_14/lea_v14_n05-06/mengberg.asp]. Rui Torres 6 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa O que uma taxinomia e uma classificação deste género nos possibilitam é a abordagem cuidadosa e processual de toda a literatura experimental. Para diferenciar, porém, aquela que é estritamente electrónica, devemos ir um pouco mais longe, por exemplo aceitando uma distinção como aquela que é proposta por R. Koskimaa. Koskimaa fala de 4 diferenças que poderão ser úteis: 1) digitalização de literatura impressa; 2) publicação electrónica/digital de literatura original; 3) literatura que utiliza novas técnicas que apenas são possíveis com os novos formatos digitais; e 4) literatura das redes. Também Pedro Barbosa procurou definir e classificar as possibilidades de utilização do computador como uma máquina semiótica, explicando nesse contexto que há vários tipos de procedimentos possíveis. Ele fala em algoritmos de base combinatória, aleatória, estrutural, interactiva e/ou mistos. As linhas, géneros ou tendências de criação textual na Literatura Gerada por Computador que daqui derivam são: Poesia animada por computador, que introduz a temporalidade na textura frequentemente multimediática da escrita em movimento no ecrã; a Literatura generativa, que apresenta ao leitor um campo de leitura virtual constituído por variantes em torno de um modelo; e a Hiperficção, que deriva da narrativa desenvolvida segundo uma estrutura em labirinto em que a intervenção do leitor vai determinar um percurso de leitura único que não esgota a totalidade dos percursos possíveis no campo de leitura Por fim, referir que Friedrich W. Block nos fala de categorias conceptuais que caracterizam a poesia digital, e que são muito úteis para poderos distinguir, com clareza, os princípios-base destas criações. Block fala de autorefrência medial; processualidade, interactividade, hipermedialidade e networking. Finalmente, devemos considerar que as componentes mediáticas da hipermédia, disponíveis para utilização na literatura electrónica, um número mais alargado de critérios deverá ser abordado: Interface, Imagem, Texto e Tipografia, Gráficos, Áudio, Vídeo, Animação, 3D, Espaço virtual, Web, Rede, Programação e Algoritmos concorrem para a criação digital em hipermédia Rui Torres 7 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa EXEMPLOS – ANÁLISE E APRESENTAÇÃO Vou agora apresentar alguns exemplos de trabalhos que estamos a desenvolver com a Poesia Experimental portuguesa que poderão servir como exemplo desta mobilização para a digitalização consciente bem como a produção do conhecimento científico em meio hipermediático. O projecto “CD-ROM da PO-EX (Poesia Experimental Portuguesa: Cadernos e Catálogos)” é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia/POCI e com apoio logístico de uma equipa formada por investigadores do CETIC-Centro de Estudos de texto Informático e Ciberliteratura, Unidade de I&D da Universidade Fernando Pessoa, Porto, bem como um conjunto de consultores e bolseiros de investigação. O nosso é recolher, classificar, digitalizar e reproduzir em formato electrónico, a produção da poesia concreta e visual do Movimento da Poesia Experimental Portuguesa dos anos 60, com vista à produção de um CD-ROM e de um Portal na Internet para divulgação da mesma. Desse modo, além de contribuir para a promoção e divulgação da poesia portuguesa do século XX em geral, e da sua poesia experimental em particular, motivando novas proposições teóricas e novas metodologias de ensino e pesquisa, contribui-se para a preservação de um espólio literário da PO.EX, através da criação um arquivo electrónico das revistas e suplementos do Movimento, facilitando desse modo a acessibilidade a essas publicações, há muito esgotadas. Para alcançar os objectivos propostos, propusemos uma metodologia interdisciplinar, aliando o estudo e a investigação dos Estudos Literários ao desenvolvimento tecnológico, através da Engenharia Informática. Mesmo assim, e dada a complexidade sintáctica e semântica de muitos destes poemas, estão a ser estudadas as formas mais apropriadas à correcta reprodução destes poemas, distinguindo digitalização (trabalho que consiste em copiar literalmente o trabalho, como uma fotografia) de aplicação informática (processo de recriação que pressupõe uma análise e um estudo intersemiótico da tradução entre meios e linguagens diferentes). Rui Torres 8 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa Estas propostas de transcriação de poemas partem de uma conceituação metodológica que identifica na poesia experimental portuguesa uma organização sígnica que se apresentava já como pré-digital e pré-hipermediática. Assim, ao invés de promover uma visão descontínua da história literária, identificamos uma linha de continuidade na criação das poéticas digitais da hipermédia, remetendo para um processo de renovação histórica dos discursos as possibilidades de criatividade a partir das novas tecnologias digitais. HELDER – MÁQUINA DE EMARANHAR PAISAGENS Herberto Helder, no posfácio de Electronicolírica,3 apresentou-nos a experiência pioneira de Nanni Balestrini, em 1961, com poesia gerada por computador, em que este, “escolhendo alguns fragmentos de textos antigos e modernos, forneceu-os a uma calculadora electrónica que, com eles, organizou, segundo certas regras combinatórias previamente estabelecidas, 3002 combinações, depois seleccionadas”4. Também textos como os d’“A Máquina de Emaranhar Paisagens”, onde Helder combina livremente fragmentos do livro do Génesis, do livro do Apocalipse, de François Villon, de Dante, de Camões e do próprio, ou ainda o Húmus, escrito a partir de “palavras, frases, fragmentos, imagens, [e] metáforas” da obra homónima de Raul Brandão,5 inserem-se no conjunto de textos experimentais que encenam a transformação e a devoração da tradição.6 Mas em Electronicolírica, liberto do grupo de que entretanto se afastava, Herberto Helder vai mais longe, utilizando processos combinatórios, inter e intratextuais, de uma maior complexidade. E explica que o seu método de criação poética é estimulado por um processo de transferência e de combinatória de que resultara uma semelhança com “certos textos mágicos primitivos, a certa poesia popular, a certo lirismo medieval”,7 criando uma peculiar “fórmula ritual mágica, de que o refrão 3 Herberto Hélder, “Posfácio”, in: Electronicolírica, Lisboa, Guimarães Editores, 1964. Idem, ibidem, p. 50. 5 Herberto Helder, Húmus, Lisboa, Guimarães Editores, 1967. 6 Ver a este propósito o estudo de Maria dos Prazeres Gomes, Outrora agora: relações dialógicas na poesia portuguesa de invenção, São Paulo, EDUC, 1993. 7 Idem, ibidem. 4 Rui Torres 9 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa popular é um vestígio e de que é vestígio também o paralelismo medieval, exemplificável com as cantigas dos cancioneiros”.8 Helder acaba por concluir que “[o] princípio combinatório é, na verdade, a base linguística da criação poética”.9 A combinatória de que deriva a literatura gerada por computador inscreve-se numa tradição que percorre a história da literatura (e das ideias). Em Portugal, ela foi ainda experimentada, de um modo pré-informático, nos trabalhos de E. M. de Melo e Castro (bastaria lembrar o seu ensaio de cariz combinatório, A proposição 2.01, de 1965, ou, em Álea e Vazio, de 1971, a colocação, como hipótese criativa, de um algoritmo literário), de Ana Hatherly (desde as séries do Anagramático, de 1970, até ao mais recente Rilkeana, de 1999) e de Alberto Pimenta. Estes trabalhos de Herberto Helder foram expandidos por Pedro Barbosa (1950-) em algumas das experiências iniciais que desenvolveu com poesia generativa. Barbosa tem vindo a desenvolver poesia com a ajuda de computadores desde 1976.10 Um pioneiro da literature gerada por computador, ele tem trabalhado, para a realização dos seus textos viurtuais, com a colaboração de vários programadores, mas em todos os seus projectos os algoritmos literários são da sua autoria. Em consonância e sincronicidade com o movimento palgiotrópico a que nos temos referido, sera curioso notar que entre os seus primeiros poemas cibernéticos estão a recriação da “Máquina de Emaranhar Paisagens”. Pedro Barbosa proopunha já nessa altura uma renovação do experimentalismo literário pela literatura gerada por computador, antecipando desse modo os processos de transformação e transposição que uma transição da página impressa para o meio digital possibilitavam.11 Ao mesmo tempo, devemos salientar que o seu texto virtual resulta em um texto aberto: um trabalho em movimento, incomplete e indeterminado, de que derivam várias versões de um mesmo código-base. Ao mesmo tempo, há a possibilidade de o leitor interagir 8 Idem, ibidem. Idem, ibidem. 10 A Literatura Cibernética 1: autopoemas gerados por computador, Porto, Edições Árvore, 1977; A Literatura Cibernética 2: um sintetizador de narrativas, Porto, Edições Árvore, 1980. Teoria do Homem Sentado, Porto, Edições Afrontamento, 1996. O Motor Textual, Porto, Edições UFP, 2001; Máquinas Pensantes: aforismos gerados por computador, Lisboa, Livros Horizonte, 1988. 11 Pedro Barbosa, “A renovação do experimentalismo literário na Literatura Gerada por Computador”, in Revista da UFP, 2(1), p. 181-188, Maio de 1998. 9 Rui Torres 10 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa com o texto-programa, tornando-se desse modo um co-autor, um escrileitor, que joga e interage com um multitexto. Imagem 1. Máquina de emaranhar paisagens, de Herberto Helder Imagem 2. Recriação da Máquina de emaranhar paisagens, por Pedro Barbosa Rui Torres 11 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa POESIA ENCONTRADA DE ANTÓNIO ARAGÃO António Aragão (1924-) foi o organizador de várias publicações da poesia experimental em Portugal. Ele desenvolveu muitas experiências pioneiras com electrografia, fotocópia, colagem e texto-imagem, e o seu trabalho, muito pouco publicado e menos conhecido, é no entanto reconhecido por todos os poetas do grupo como inovador e influente. Ao explicar os seus poemas-colagem, Aragão escreve que “Os dois casos de ‘poesia encontrada’ que aqui propomos vieram dos jornais. Foram tomados de im pro viso na descoberta do olhar. A maleabilidade da expressão permite várias leituras […]. E, à maneira duma arte de posição transformável ou de colaboração com o fruidor, deixamos também ao leitor a possibilidade de construir outras leituras, ou seja, de fazer, até certo ponto, o seu poema.”12 Esta abertura incial do texto original, assim como a sua projecção de fragmentação e de indeterminação, podem ser desenvolvidos e expandidos através dos meios digitais, uma vez que o cibertexto pode ser dinâmico, aberto e randomicamente generativo. Na verdade, é possível hoje em dia criar uma poesia encontrada automaticamente gerada, além da possibilidade de adicionar a esta dinâmica uma potencial espacialização do texto-colagem, despoletando desse modo múltiplas leituras e combinações. Para a recriação desta poesia encontrada, utilizei o código em Actionscript de Jared Tarbel intitulado "The Emotion Fractal", que é defindo pelo próprio como "a recursive space filling algorithm"13 que coloca, de um modo arbitrário, palavras de um dado texto no espaço da tela. Com uma adaptação deste código para PHP feita por Nuno F. Ferreira, é agora possível utilizar os feeds dos jornais online como base de trabalho desse algoritmo de espacialização fractal. Desse modo, colocando em jogo uma autoreferência mediática através da expressividade própria da materialidade dos significantes tipográficos, é possível espacializar em tempo real um conjunto de textos que são retirados de RSSs de . 12 António Aragão, “Poesia encontrada”, Cadernos da Poesia Experimental, 1, Lisboa, Ed. Autor, 1964, p. 37. 13 <http://levitated.net/daily/levEmotionFractal.html>. Rui Torres 12 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa Vale por isso a pena insistir no aspecto processual dos textos-colagem conforme Aragão propunha: “A poesia sempre variou de expressão. Por um lado, a descoberta duma dada expressão corresponde a uma aquisição instrumental necessária para servir aquilo que o poeta em dado momento tem para dizer. A busca incessante de expressões diferentes, como se passa afinal em todas as artes, é tremendamente provocada pela necessidade de conhecer e dar as realidades (todas) do espírito humano. Sem dúvida que a conquista de outras expressões em vez de destruir a poesia, é afinal a sua maneira de caminhar no tempo, e é o seu contínuo e inesgotável poder de metamorfose que lhe confere val IDADE e presença no mundo.”14 Imagem 3. Poemas encontrados, de António Aragão 14 António Aragão, “Poesia encontrada”, Cadernos da Poesia Experimental, 1, Lisboa, Ed. Autor, 1964, p. 37. Rui Torres 13 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa Imagem 4. Recriação de Poemas encontrados, de António Aragão Imagem 5. Recriação de Poemas encontrados, de António Aragão Rui Torres 14 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa Imagem 6. Recriação de Poemas encontrados, de António Aragão Imagem 7. Recriação de Poemas encontrados, de António Aragão Rui Torres 15 Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa CONCLUSÃO A literatura gerada por computador promove, deste modo, a experimentação e o jogo, recriando profundamente conceitos como os de texto e interpretação. Laborando na senda das vanguardas históricas e dentro do espaço inaugurado pelo experimentalismo universal e intemporal da escrita, da imagem e do som, a ciberliteratura permite uma renovação dos meios, partindo da hipótese de que de meios novos surgem conteúdos novos também. Por isso, além de reconhecer a importância dos textos gerados por motores e algoritmos de programação, é também necessário avaliar as consequências que as tecnologias digitais e as redes telemáticas têm na compreensão das condições estruturais que os novos meios oferecem à poesia, à prosa e ao teatro. Rui Torres 16