O mercado e a barata - Stephany Griffith

Transcrição

O mercado e a barata - Stephany Griffith
Ideias Entrevista
O mercado
e
a
barata
| Sobrinha-neta de Franz Kafka,
stephany griffith-jones
a economista tcheca diz que a autorregulação dos bancos
é uma tese tão absurda que caberia nos livros do tio-avô
A LUIZ ANTONIO CINTRA
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doug mills/ny t
S
tephany griffith-Jones
é uma economista nada
convencional. Nascida em
Praga, na República Tcheca, mudou-se para o Chile com a família quando
tinha 1 ano de idade. Fugiam do nazismo. Estudou economia na
Universidade do Chile e era funcionária do Banco Central de Allende quando houve o golpe militar, em 1973. “Eu
estava na Inglaterra, em licença de estudos, acabei ficando para um ‘doutorado-Pinochet’, um doutorado à força”,
comenta irônica. Ficou em Cambridge
estudando a política econômica indicada para um governo de esquerda. “Concluí que os esquerdistas têm de ser mais
prudentes que os demais.” Depois engajou-se como pesquisadora no Institute of Development Studies (IDS), da
Universidade de Sussex, em Brighton,
e, mais recentemente, atuou na Cepal,
durante o mandato de seu amigo colombiano José Antonio Ocampo.
Há dois anos Stephany trabalha com
Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia de 2001, e Ocampo na Universidade de Colúmbia, em Nova York. A
partir da base nova-iorquina, o trio dá
consultoria a governos em apuros e instituições encarregadas de articular uma
saída para a sinuca em que se encontra
a economia mundial. Recentemente, os
três organizaram suas propostas no livro Time for a Visible Hand, compilação
de artigos sobre os desdobramentos da
crise. “Stiglitz diz que a mão do mercado é invisível porque ela simplesmen-
“Gente como (Alan)
Greenspan foi
completamente
irresponsável.
Eles acreditaram
na eficiência
do sistema”
Visita. A economista esteve
no Brasil a convite do Ipea
te não existe”, comenta a economista.
Na entrevista a seguir, Stephany enumera algumas propostas para a regulação do sistema financeiro internacional, o seu objeto de estudo nas últimas
décadas. Ao fim da entrevista, comenta:
“Nasci em Praga, sou sobrinha-neta de
Kafka. Você acha que decidi estudar o
sistema financeiro internacional por
qual razão? Não existe nada mais kaf­
kiano”, diz pouco antes de seguir para
o aeroporto de Cumbica, para embarcar para a Inglaterra, onde passa parte
do ano com seus familiares. No Brasil,
participou de discussões no Ipea, a instituição que representa o governo nas
discussões lideradas pelo grupo formado por Brasil, Chile e França, em torno
da regulação e taxação do sistema financeiro internacional.
CartaCapital: A senhora considera que
os países desenvolvidos enfrentaram bem
a crise?
Stephany Griffith-Jones: Antes da crise,
os governos foram muito mal, não houve prevenção, foi lamentável. Gente
como (Alan) Greenspan foi completamente irresponsável, eles acreditaram
na eficiência dos mercados, não viam
nenhum problema, achavam que tudo
era autorregulável. Na Basileia, o movimento foi na direção de permitir aos
bancos usar os seus próprios modelos
de risco, acentuando o caráter pró-cíclico do sistema. Nos EUA, somente
25% dos ativos financeiros estão nos
bancos, e somente os bancos são regulados. Os bancos de investimento, fundos
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e muitas atividades dentro do mesmo
banco, como os off-balance-sheets (a contabilidade fora do balanço), também não
foram regulados. Foi uma negligência
absurda, em parte por motivos ideológicos, em parte por incompetência ou
complacência. De modo geral, os países
ricos foram bem. Eles se deram conta
da seriedade da crise e fizeram todo o
possível para evitar uma catástrofe. E,
de fato, evitaram.
CC: E como a senhora vê a conjuntura
atual?
SGJ: Agora vem um novo problema.
Como escreveu Robert Skidelsky, autor
da biografia de Lord Keynes, é absurdo
os governos terem sido forçados a resgatar os bancos, criando pacotes keynesianos para compensar a queda do crédito
privado porque não tiveram alternativa,
e agora os mercados queiram vir castigar esses mesmos governos. É no mínimo um paradoxo. Também é um tanto
assustador que países como Grécia, e
possivelmente Espanha e Portugal, possam ter problemas. E o temor é que a lista inclua em seguida França, Inglaterra,
EUA... Mas acredito que saberão, mais
uma vez, conter as dificuldades. Prevenir as crises é muito melhor, os custos de
curto e longo prazo, tanto fiscais como
sociais, são muito menores.
CC: É recomendável que os pacotes de estímulo comecem a ser revistos para que a
dívida pública não siga crescendo?
SGJ: O interessante é que, em relação ao
Produto Interno Bruto, a maior dívida é
a do Japão, cerca de 180% do PIB. Mas a
dívida japonesa é financiada em sua
maioria domesticamente. O governo
diz aos bancos que eles têm de comprar
os títulos da dívida e pronto. É algo não
muito saudável, mas que lhes cria menos problemas. Contudo, na medida em
que as economias não se recuperem,
será necessário manter um nível importante de gastos públicos. E o tema
do crédito também é importante. Nos
EUA, apesar da nacionalização, o governo não administra os bancos, apenas
diz “por favor, emprestem mais”, “por
favor, não deem uma remuneração tão
alta aos seus executivos”. Na China,
onde também há problemas, a administração da banca é muito mais direta, e
os bancos chegam a emprestar demais.
O problema são os spreads subirem muito,
cartacapital | 24 de fevereiro de 2010
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Ideias Entrevista Stephany Griffith-Jones
l au r e n v i c to r i a b u r k e /a p
“É preciso pensar
em como passar
do sistema financeiro
existente para
um que sirva
à economia real”
Apoio. Griffith-Jones
vê em Nancy Pelosi, presidente
do Senado dos EUA, uma
entusiasta da regulação
levando a dívida a crescer também,
numa espécie de profecia autocumprida, um ciclo vicioso.
CC: Qual é a proposta em discussão no
grupo liderado por Brasil, Chile e França?
SGJ: Sugerimos um imposto muito menor
que o de Tobin, algo próximo a 0,005%, e
não tanto para combater a volatilidade, mas para levantar recursos para o
desenvolvimento e investimentos para
combater as mudanças climáticas e a
fome nos países mais pobres, sem afetar os mercados. Temos tido muitas
discussões sobre regulação e o papel
dos reguladores, ainda que todos sigam
operando mais ou menos da mesma forma de antes da crise. Os bancos resistem
dizendo que não se pode fazer nada com
o risco de afetar a recuperação. Agora,
por exemplo, os investidores estão apostando na queda do euro. Ou seja, estão
assumindo que o euro vai cair e dessa
forma pressionam para a baixa. Esse
tipo de especulação, que começou há 10
ou 15 anos no Brasil com os títulos bradies, deveria ser restringida.
CC: Em que instância está sendo discutida
a criação dessa taxa?
SGJ: Vários governantes, especialmente
na Europa, têm dado apoio muito forte,
como Nicolas Sarkozy. Curiosamente,
também na Inglaterra. Gordon Brown já
se manifestou a favor, mas dizendo que
o ideal seria uma iniciativa multilateral.
No Japão há muito apoio. Os alemães
também, inclusive Angela Merkel, que
afirmou ser esta uma charming idea. Nos
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EUA, Geithner não está muito entusiasmado, disse que precisam convencê-lo
de que é factível. Nancy Pelosi, presidente do Senado dos EUA, está a favor e há,
inclusive, alguns projetos no Congresso
norte-americano nesse sentido.
CC: E qual a avaliação do banco central
norte-americano?
SGJ: Não creio que seja um entusiasta
nem tampouco o Banco Central Europeu.
De modo geral, há menos interesse nos
ministérios da Fazenda e mais nos de Relações Exteriores. E os países do leading
group – Brasil, França e Chile – apoiam.
Pela primeira vez há um apoio mais direto dos governos. E esses dois temas (o
da taxação e o da regulação) podem ser
complementares. É preciso pensar em
como passarmos do sistema financeiro
existente para um que sirva. Não é nada
fácil, já que existem muitos interesses
estabelecidos e o sistema financeiro está
superdimensionado. No caso brasileiro,
parece-me ser mais fácil, aqui o sistema
financeiro não tem tantos vícios.
CC: É o que lhe parece?
SGJ: Bem, no Brasil os bancos têm muitos vícios, mas menos do que nos EUA
(risos). Um grande princípio é pensar em
uma regulação contracíclica. Como os
mercados financeiros e os bancos são tão
pró-cíclicos, ou seja, emprestam na hora
do boom e cortam o crédito na crise, eles
acentuam os seus efeitos de modo muito
importante. Por isso, a regulação tem de
ir no sentido contrário, para frear o sistema financeiro na hora do boom e for-
talecer os bancos para que tenham mais
espaço ou ao menos mantenham o crédito nos tempos mais difíceis. Os requisitos de capital não eram contracíclicos,
exceto na Espanha. A Espanha, embora
tenha muitos problemas, não teve tantos
com os bancos, que tinham de fazer as
provisões contracíclicas. Outro princípio importante é regular todo o sistema
financeiro, o que pode soar um tanto
stalinista, mas o fato é que o não regulado sempre vai crescer mais.
CC: Nesse redesenho do sistema financeiro, qual o papel dos bancos públicos?
SGJ: Esta é uma pergunta sumamente
importante, estamos justamente discutin­
do esse ponto e inclusive pensando em
fazer um seminário a respeito desse
tema, no qual o BNDES jogaria um papel-chave. Acredito que os bancos públicos têm um papel importante nas crises
e também para dar acesso ao crédito a
setores que normalmente não têm, as
micro, pequenas e médias empresas, os
investimentos de longo prazo em inovação tecnológica e infraestrutura. Há um
conjunto de falhas de mercado, de limitações ou imperfeições, muito importantes e que talvez não possam ser atacadas
por meio da regulação, já que a regulação
atua de forma indireta. O Brasil foi muito
inteligente no período posterior à crise,
mas também no período anterior, quando surgiu a moda de reduzir ou eliminar
os bancos de desenvolvimento. É preciso reavaliar o papel dos bancos públicos
nessa nova estrutura de um sistema financeiro que sirva à economia real.
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