F A L A R C O M S E U C O R P O – E S C A B E L O

Transcrição

F A L A R C O M S E U C O R P O – E S C A B E L O
FALAR COM SEU CORPO –
ESCABELO
Estudos lacanianos na ECF: “Falar lalíngua do corpo”
Eric Laurent
Extrato da Quarta sessão: – O escabelo e a sublimação – Leitura de “Joyce, o
sintoma” / 04.02.2015.
Transcrição a partir do registro divulgado pela Rádio Lacan, pela equipe reunida por
Didier Mathey; tradução de Teresinha N. Meirelles do Prado.
O escabelo e a sublimação freudiana. Do forçamento [forçage] à
manipulação
Passemos, agora, ao escabelo e ao modo como, em sua conferência,
Jacques-Alain Miller fala desse escabelo. Ele fala com uma distância crítica,
mas ele o introduz como “isto sobre o que o falasser se ergue, sobe para se
embelezar. É seu pedestal, que lhe permite elevar-se à dignidade da coisa”.
Essa frase faz referência à leitura que Lacan faz da sublimação freudiana em
seu seminário sobre A ética da psicanálise − que se dá cinco anos mais tarde
que o seminário 4. Ela difere daquela do seminário 4 pela nova relação que é
introduzida com o real. Para situar essa nova ótica da Ética da psicanálise no
seu lugar, retomemos as ênfases mais importantes que Lacan deu à sua
leitura da sublimação freudiana como um dos “destinos das pulsões”, como se
exprime Freud no capítulo que abre sua Metapsicologia de 1915, “Pulsões e
suas vicissitudes”[1]. Ele atribui quatro destinos às pulsões: a reversão a seu
oposto (ver – ser visto); o retorno sobre a própria pessoa; o recalcamento e a
sublimação ». Ele reformulou o que havia enunciado em seus Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade e também num texto seguinte, que aborda a
moral sexual civilizada, no qual enunciou: “A pulsão sexual põe à disposição
do trabalho cultural quantidades de força extraordinariamente grandes, e isto
graças à particularidade, especialmente acentuada nela, de poder deslocar a
sua meta sem perder, quanto ao essencial, a sua intensidade. Chama-se a esta
capacidade de trocar a meta sexual originária por outra meta, que já não é
sexual, mas que psiquicamente se aparenta com ela, capacidade de
sublimação”[2]. Logo, a sublimação é deslocada quanto ao alvo. Essa
sublimação é inibida quanto ao alvo sexual, zielgehemmt, mas ela se satisfaz
sem recalcamento; há gozo. Freud remaneja essa sublimação ao longo de suas
descobertas. Quando ele isola o narcisismo, destaca que a sublimação é não
somente transposição da pulsão sexual, mas que é preciso que ela passe pela
paixão narcísica e que, desse modo, ela se “dessexualiza”. Depois, quando
introduz as pulsões de morte nos anos 1920, ele se pergunta se, afinal, não
seria possível não apenas sublimar a satisfação da pulsão parcial, as pulsões
de vida, mas também a pulsão de morte. Tantos enigmas que Freud decifrará
aos poucos, enquanto conserva o « deslocamento quanto ao alvo » como uma
das características maiores das pulsões. Em seu Seminário 11, Lacan poderá
dizer o quanto isso era um enigma colocado desde o início da obra. E Lacan
vai propor diversos modos de resolvê-lo, levando em conta a distância
introduzida entre o alvo sexual e o gozo da pulsão. A pulsão se desloca quanto
ao alvo sexual porque não varia quanto ao seu autoerotismo. A “sublimação”
de Freud, como apontava Jacques-Alain Miller, é o ponto em que Freud se
aproxima da “não-relação sexual” lacaniana, o ponto em que o sexual se
separa do “autoerotismo” da pulsão e de seu gozo. Todo o problema, para
Lacan, é estabelecer a articulação entre o gozo e o sexual, ou de como o gozo
autoerótico da pulsão vem se juntar ao desejo do Outro.
O Seminário A ética da psicanálise dá um passo a mais que o Seminário
4, a partir do qual começamos a leitura. Pois o que se apresenta no Seminário
4 como alteridade absoluta vai ser instalado na dimensão do real. Ele introduz
o gozo em uma dimensão de Real no centro da realidade psíquica do sujeito,
em uma dimensão diferente daquelas do Imaginário e do Simbólico. É a zona
“das Ding”, no centro, mas como excluída, impossível de se aproximar e
protegida por uma barreira… Lacan inventou mais tarde uma belíssima
palavra para qualificar isso, a saber, “extimidade”[3]. A sublimação povoa
esse vazio, essa zona, com um certo número de objetos que estão no lugar do
vazio, que apresentam esse paradoxo de se avizinhar a esse vazio, ocupando o
vazio, fazendo a borda do vazio, seguindo os contornos da barreira que
defende a zona do Gozo real. Há a sublimação do amor, que visa essa zona, e
há os objetos, que vêm preenchê-la. Essa disjunção pode ser abordada de
diversas maneiras, conforme as soluções ou paradigmas que Lacan
desenvolve. O termo paradigma ressoa com o título dado por Jacques-Alain
Miller à retomada de uma conferência pronunciada em Los Angeles, em um
congresso de Cultural studies, em seu curso “O real na experiência
psicanalítica”. O terceiro paradigma, aquele da época de A ética da
psicanálise, sob a rubrica geral do real na experiência analítica, evidencia o
modo de impossibilidade, para o princípio de prazer, de alcançar a zona do
real do gozo. É preciso, portanto, um forçamento [forçage] para alcançar esse
lugar, o lugar do gozo. A estrutura segundo a qual “o objeto é elevado à
dignidade da coisa” é uma estrutura complexa que, em relação ao real, coloca
em jogo tanto elementos simbólicos quanto imaginários. Ao descrever essa
estrutura, Jacques-Alain Miller nomeava esses elementos dizendo: “Foi assim
que pude enumerar, no interior desse Seminário 7, nove encarnações da
Coisa, nove casos em que, sucessivamente, Lacan nos mostra que eles vêm
nesse lugar do gozo. Destaco aí esse termo ‘lugar’, que se encontra também
nos Escritos. Se há lugar, é porque existe essa barreira… Há os termos que
vêm se alojar aí a partir do simbólico… É, por exemplo, a lei moral kantiana, o
imperativo kantiano em seu absoluto destacado de tudo… Há outro elemento
que vem do simbólico, a saber, a ciência… que em sua exigência de se apoiar
no que sempre retorna ao mesmo lugar, ocupa, em seu âmbito fundamental, o
lugar
da
Coisa…
Isso
permitirá
a
Lacan
falar
da
ciência
como
transbordamento, como processo mortal. Há elementos provenientes do
imaginário. É nessa categoria que Lacan inscreve os objetos da sublimação
como, por exemplo, a obra de arte… E há termos que, podemos dizer,
qualificam o ser fora de qualquer ter. Lacan tomava o exemplo da simples
interjeição de amor, o “Tu! ”. É o exemplo do “Tu! ” que visa o ser do Outro
para além de todas as qualificações que suas manifestações pudessem trazer…
Mas é também a Mãe, como gozo interdito…, o Pai, como sublimação…, a
Dama do amor cortês, como parceira inumana. É, enfim, o próprio objeto
sadiano, a obra de Sade, diz Jacques-Alain Miller, estando aqui como o
exemplo dos artifícios de que é preciso lançar mão para conseguir franquear
essa barreira que isola o lugar do gozo. A recente exposição em Paris, que
apresentava as obras de Sade de maneira um tanto confusa, destacava bem o
caráter frenético que agradava tanto à conservadora que havia concebido a
coisa. Nessa ordenação, o nono termo é o vazio, que é a figura da Coisa,
quando a consideramos na perspectiva do significante”[4].
Essa série é, então, trazida por Jacques-Alain Miller para mostrar o que
ele chama de estrutura do para-além, que a A ética da psicanálise introduz no
ensino de Lacan. “Que nos representa um para-além delimitado. Não se trata
do para-além aberto do amor, em que a demanda que, por sua própria
dinâmica, vai em direção a esse amor, em direção à abertura do amor. Aqui,
pelo contrário, temos um ‘para-além’ fechado, proibido, um ‘para-além’
limite, ao qual se acedeu por forçamento [forçage], transgressão, e até mesmo
travessia… Portanto, de um lado, a transgressão, e, de outro, a defesa”. Dentre
os objetos que vêm ocupar o lugar do gozo, há o parceiro sexual do amor
cortês e aquele que Sade visa.
Essa estrutura de ‘para-além’, que radicaliza a perspectiva da sublimação
freudiana, situa um momento do ensino de Lacan em que a articulação entre
o lugar do gozo e a linguagem coloca um problema. Jacques-Alain Miller
destaca que na época em que editava as sessões do seminário A ética da
psicanálise que tratam da sublimação, havia colocado como título dessas
aulas “O problema da sublimação”. Mas, em seguida, com o seminário Mais,
ainda, a sublimação não é mais um problema, pois, “A partir do momento em
que, pelo contrário, linguagem e gozo caminham lado a lado, a partir do
momento em que o significante é a causa de gozo, pode-se dizer que a
sublimação deixa de ser um problema: ela se torna um gozo de pleno
exercício… Por falta do gozo da relação sexual, tem-se o gozo da comunicação,
o gozo comunitário, o que nos mantém juntos, ou seja, tudo o que nos ocupa
no sentido de saber como se situar ao lado do Outro, no Outro, a quais regras
vamos obedecer, como daremos ordens, como faremos agir, como nós
mesmos obedeceremos às ordens etc.” Nessa perspectiva, Miller constata:
“Mais, ainda não é mais o impossível de ultrapassar, o inacessível da
barreira, é o impossível. Passamos do inacessível, do impossível de franquear,
que se ultrapassa ao preço de um orçamento [forçage], que nos custa os olhos
da cara, passamos disso ao impossível” [5], que permite definir a não-relação
sexual e sua lógica.
É essa orientação, se quisermos retomar a metáfora sadiana da apatia
lógica, da impassibilidade lógica em relação a todo esse transbordamento
furioso, que vai nos fazer passar da ideia do forçamento [forçage] para a ideia
da manipulação – a manipulação é uma maneira de compor, de se haver com
o parceiro sexual impossível. Muito bem, há a não-relação sexual. Perfeito, há
o impossível. Contudo, manipula-se. Não há mais necessidade de fazer
atravessamentos inverossímeis. Enfim, o que resta disso agora é Cinquenta
tons de cinza (Fifty Shades of Grey) desse Mister Grey, com os « sex toys »
que são agora apresentados como produtos que vão invadir todas as lojas a
partir do momento em que o filme estiver nas telas, como as pequenas
marionetes de Guerra nas estrelas, desde sua chegada. Mas, enfim, está um
pouco extenuado. Percebe-se que é da ordem da manipulação. Acabou o
heroísmo do ultrapassamento da barreira.
É essa orientação que vai nos fazer passar do paradigma da transgressão,
do franqueamento, para o da manipulação, da imagem e do parceiro sexual
como vimos da última vez. A manipulação está no avesso da transgressão e do
ultrapassamento de uma barreira.
Então, aí, vê-se como se pareia manipulação com narcisismo. Mas
sigamos adiante.
O cruzamento com o narcisismo
Em sua conferência, depois de introduzir a relação do escabelo com a
sublimação, Jacques-Alain Miller acrescenta imediatamente que essa
sublimação está “no cruzamento com o narcisismo”. É um narcisismo
modificado pela relação com o mito freudiano, na medida em que não se trata
apenas da imagem, mas da relação de crença que liga o falasser ao corpo. É
um narcisismo em que o corpo é idolatrado em uma relação de
desconhecimento particular que faz o narcisismo freudiano dar um passo,
uma volta a mais.
O anúncio do ensino do passe que aconteceu no último dia 13 de janeiro,
aproximava dois ditos de Lacan bem escolhidos, em que um responde ao
outro e o esclarece. Nesse anúncio, podíamos ver um extrato do seminário O
sinthoma. Lacan declara: “O falasser adora seu corpo porque crê que o
tem”[6]. Se continuamos um pouco mais, as três frases seguintes, vemos: “Na
realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência
mental, é claro, pois seu corpo cai fora a todo instante”. Era o sintoma, é “O
sinthoma”, na página 64. E um ano antes, em uma conferência em Nice,
Lacan enuncia: “o homem ama sua imagem como o que lhe é mais próximo,
isto é, seu corpo. Simplesmente, de seu corpo, ele não tem estritamente
nenhuma ideia. Ele crê que seja eu. Cada um crê que seja ele. É um furo. E
depois, fora, há a imagem. E com essa imagem, ele faz o mundo[7]”. Vocês
percebem a homologia dessas duas frases? No seminário O sinthoma, temos:
“ o falasser adora seu corpo porque crê que o tem”. Na realidade, ele não o
tem, mas “seu corpo é a única consistência – consistência mental, pois seu
corpo cai fora a todo instante” e, em Nice, “o homem ama sua imagem como o
que lhe é mais próximo, isto é, seu corpo. Simplesmente, de seu corpo, ele não
tem nenhuma ideia”. Ele crê que seja eu. Cada um crê que seja ele. É um furo.
E depois, fora, há a imagem. E com essa imagem ele faz o mundo”.
Essa declaração, com essa imagem, “ele faz o mundo”, essa imagemmundo vem como um eco do texto de Heidegger, em 1938, sobre A época das
concepções do mundo que é a nossa, é a da ciência. Cito um extrato dessa
conferência na qual Heidegger fala da “imagem-mundo”, o “Weltbild”, o
mundo na medida de uma “concepção” não significa, portanto, uma ideia do
mundo, mas o próprio mundo apreendido como isso de que se pode “terideia”. O ente, em sua totalidade é, então, tomado agora de tal maneira que só
é verdadeira e unicamente ente na medida em que é retido e fixado pelo
homem na representação e na produção. Com o advento do “Weltbild”
cumpre-se uma atribuição decisiva quanto ao ente em sua totalidade. O ser do
ente é, a partir de então, buscado e encontrado no ser-representado do
ente”[8] – o que Lacan condensa: basta ter uma imagem, isto é, o fundamento
da representação, e com essa imagem se faz um mundo.
Para Lacan, contrariamente a Heidegger, o primordial não é a
representação como tal, mas o corpo, e não a representação-imagem. É por
isso que ele diz: “O homem ama sua imagem como… seu corpo” − seu corpo
como primordial. Esse é o ponto constante dos textos que lemos durante
nosso ano de leitura. Esse corpo é marcado pelo trauma. Lacan pôde dizer
isso de diversas maneiras. Aí, ele o diz como furo. O corpo “é um furo”. E o
falasser tenta preencher esse furo com uma crença. Na fase precedente de seu
ensino, a da estrutura do para-além, Lacan instalava o lugar do gozo como um
vazio, circundado por uma barreira, e se interessava pelos objetos que vêm
povoar esse vazio. Aqui, é primeiro o furo e o que vem se inscrever aí, não
dentro, mas como um fora. É a imagem a primeira representação ou primeira
barreira diante desse furo, essa imagem com a qual ele faz o mundo.
A partir daí é preciso apertar os cintos.
“O S.K. belo, é o que condiciona no homem o fato de que ele vive do ser
(ou que ele esvazia o ser) ”[9]. Isso é o furo de início, o trou-ma – o corpo é o
trouma[10]. Não partimos de manifestações do ser ao modo de Heidegger.
Começamos primeiro por fazer um grande furo. Portanto, o fato de “que ele
vive de ser (ou que esvazia o ser) uma vez que tem seu corpo: inclusive ele só
o tem a partir daí”, a partir do furo. O falasser é um ser de vazio, é o furo da
conferência de Nice, tanto quanto um ter ou uma terência [avoiement][11],
segundo uma grafia de Lacan, segundo uma terência primeira.
A crença no corpo, no escabelo de antes da esfera, é também um
desconhecimento – e esse é um esclarecimento decisivo que Jacques-Alain
Miller nos traz em sua conferência para nos permitir decifrar essa passagem
que vamos ler. Miller a liga ao fato de que ela “se funda no ‘eu não penso’
inicial do falasser – esse ‘eu não penso’ é também um modo de traduzir esse
‘vive do ser’ [vit de l’être]”. O que é esse ‘eu não penso? ’, se pergunta JacquesAlain Miller. “É a negação do inconsciente pelo qual o falasser se acredita
senhor de seu ser”. Há no escabelo e na sublimação um modo de erro, de
esquecimento que retoma esse esquecimento do ser do Seminário 4, mas
completamente transformado, que faz com que, ao se apoiar em uma recusa
primária do tecido dos equívocos do inconsciente e, apoiando-se a
acreditando em seu escabelo, o falasser se esqueça para se encontrar, para se
pensar mestre de si mesmo, senhor de seu corpo. Esse esclarecimento é
decisivo porque ele liga o narcisismo da crença no ídolo corporal com a
adoração do corpo como superfície de inscrição do trouma e uma recusa do
“falar sem saber”, para continuar a crer-se mestre de seu ser. É desse modo, e
por essa crença, que se desconhece o fato de que “Falo com o meu corpo, e
isto sem saber. Digo, portanto, sempre mais do que sei”[12]. É um ponto
insuportável. Disso decorre a « negação do inconsciente » que aloja nesse
ponto o esclarecimento de Jacques-Alain Miller. É, portanto, no lugar do “eu
não penso” inaugural que há adesão, a crença nos ideais da cultura, “reserva
de escabelos”. A cultura, como laço social e como discurso, funda-se em um
primeiro insuportável do inconsciente para construir, em seguida, “reservas
de escabelos”.
Lacan considera a sua substituição do falasser, que encontramos aqui: “Daí
minha expressão falasser que virá substituir o ICS de Freud (inconsciente, é
assim que se lê): saia daí então, que eu quero ficar aí. Para dizer que o
inconsciente em Freud, quando ele o descobre (o que se descobre é de uma
vez só, mas depois da invenção é preciso fazer o inventário)”[13]. Lacan
considera aqui a sua contribuição do falasser ao inconsciente freudiano por
um uso irônico e singular da oposição, cara aos empiristas lógicos e a Karl
Popper, entre contexto de descoberta e contexto de justificação[14]. Essa
oposição epistemológica foi introduzida por um empirista lógico, Hans
Reichenbach em um conhecido texto de 1938, Les trois tâches de
l’épistémologie. O contexto da descoberta não era considerado por esse autor
como proveniente da filosofia das ciências, mas da psicologia e das
circunstâncias sociais, o contexto de justificação resultando apenas dos
argumentos utilizados para fazer aceitar a descoberta. O importante é que,
uma vez descoberta, trata-se de saber quais são os argumentos utilizados por
aquele que descobriu algo para fazer com que os outros o aceitem. O contexto
de justificação é este: como se justifica o que foi descoberto por motivos que
dependem de circunstâncias sociais, da psicologia do pesquisador e de tudo
mais que quisermos?
Isso não tem nenhuma importância sob o ponto de vista do empirismo
lógico, evidentemente. É o contrário para Lacan que, de sua parte, toma essa
oposição em um sentido neo-heideggeriano quando diz que quando se
descobre algo, é de uma só vez, de um só golpe. É da ordem do desvelamento,
e é repentino. Não estava aí, está aí. É um golpe para Freud. Blink!, como
diriam os amantes dos processos neuronais. Em seguida, é preciso um tempo
mais longo para o inventário da invenção que aconteceu. O que foi
encontrado? Lacan coloca a oposição deste modo: “Para dizer que o
inconsciente, em Freud, quando ele o descobre (o que se descobre é de uma
vez só, mas depois da invenção é preciso fazer o inventário)”[15]. Ele
considera então que a única forma admissível de falar desse inconsciente
descoberto é dizer – ele justifica o inconsciente como – é “um saber enquanto
falado, como constitutivo do UOM”.
Essa sucessão, essa escansão é conforme ao que precede. De início o que
constitui o UOM, que é o trauma fora de sentido, que provoca um falar sem o
saber, depois o saber se deposita a partir dos equívocos do falado – falado
com “ado”, no passado. O laço do ser com o sentido é confirmado por essa
nova definição da fala. É a fala segundo o seminário Mais, ainda, aquela que é
enlaçada ao gozo, uma fala não plena de verdade, como no primeiro ensino de
Lacan, mas plena de gozo. Daí o fato de que Lacan diga no texto que lemos: “a
fala, é claro, define-se aí por ser o único lugar em que o ser tem um sentido”.
O “é claro” está duplamente conotado. Primeiramente, “é claro” vem por
antífrase, porque Lacan introduz uma definição nova, e não habitual, da fala,
ele a fez preceder de “é claro”. Em seguida porque a fala “se ouve” e, portanto,
há a voz na jogada. O que, após toda a ênfase colocada sobre o olhar e a vista,
a vesguice, a mancada, sobre tudo o que precedia, tudo o que colocava a
tônica sobre o olhar, vem agora em ruptura.
O escabelo e o falasser
Sobre as sutilezas da fala como o único lugar em que o ser tem um
sentido, remeto-os ao curso de Jacques-Alain Miller, “O ser e o Um”,
inteiramente centrado nessa tensão entre o ser que se encontra no lugar do
Outro e o Um que está alhures. Notemos também que o lugar não é mais só o
lugar “do Outro”, mas o lugar “da fala”. O parágrafo se conclui pela
reafirmação da ontologia lacaniana. O ser não é primário; o que é primário é o
‘ter’. Contudo, a torsão ontológica comum segundo a qual o ser vem
primeiramente é autorizada pelo “sentido do ser”. É porque existe um lugar
em que há esse sentido que é dado, que ele aparece depois como primeiro. A
frase de Lacan segundo a qual “o sentido do ser é presidir o ter, o que justifica
o balbucio epistêmico” é notável, especialmente arquitetada, e deve reter
nossa atenção, sobretudo sua primeira parte. Em dez palavras, Lacan articula
cinco que são fundamentais no discurso ocidental: o ser, o ente, o ter, o
mestre (que preside) e, a esse dispositivo filosófico que Lacan questiona,
responde a segunda parte da frase que, por sua vez, inclui a desculpa que
remete à falha fundamental e ao ato falho, e o saber como sempre ligado à
equivocidade que vem ocultar o balbucio epistêmico. O sentido do ser, longe
dos devaneios heideggerianos, é também o gozo do sentido [jouis-sens], e é
precisamente ele que determina e preside, é ele o mestre, segundo a expressão
de Lacan. É ele que determina e precise tudo o que virá do registro do ter, do
possessivo, do “meu” corpo ou “minha imagem”. É preciso então distinguir o
nível fundamental em que o corpo, nós o temos, o que não supõe nenhum
possessivo possível, e depois um segundo nível do ter, aquele em que posso
pensar, por exemplo, nos objetos da representação, pois tenho uma forma,
uma esfera, que preside o Eu [Moi].
Daí o parágrafo seguinte, que exige ainda uma atenção mais detalhada,
que desenvolve esse ponto e começa por situar o primeiro ‘ter’ do corpo, antes
de tê-lo, no sentido secundário, como “meu” corpo, entre em jogo. “O
importante, de que ponto – diz-se “de vista” – deve ser discutido? O que
importa, pois, sem esclarecer de onde, é perceber que UOM tem um corpo – e
que essa expressão permanece correta (...)”
Lacan parte de um nível em que não há eu, há um partitivo[16]: “UOM
tem um corpo”. É uma atribuição que precede tudo ter. Essa atribuição, Lacan
quer defini-la como anterior ao estádio do espelho, antes da relação com a
vista, antes da relação com o ponto de vista, o ponto de onde somos vistos.
Philippe Lacadée havia feito muita coisa com esse ponto de onde etc. Mas aí,
não há mais disso. Portanto, importa sem precisar de onde. É o mesmo ponto
que é visado em “Radiofonia” com o objeto a como incorpóreo que funda o
corpóreo, e no texto seguinte que lemos com o “isso se sente aí” [ça s’y sent].
Pouco importa de onde. Antes de toda entrada em jogo do olhar e do “ponto
de vista”, o corpo é o produto de uma operação de impacto do dizer. A escolha
de Lacan é destacada pela equivocidade em torno do ponto [point][17]. A
expressão francesa “ponto de vista”, se for dividida, faz aparecer a
equivocidade de ponto [point], entre o ponto como lugar, a “pequena parcela
de”, e o ponto [point]como segundo elemento da negação. É aí que o
esclarecimento de Jacques-Alain Miller é crucial. “O escabelo é a sublimação,
na medida em que ela se funda sobre o eu não penso primordial do falasser”.
O ponto [“Point”] do início dessa frase, “o importante de qual ‘ponto’ – ele
coloca um travessão –, deve ser entendido como recusa, e não como “ponto de
vista”.
Lacan sublinha que seu partitivo: “UOM tem um corpo”[18] é uma
expressão que permanece correta. Isso deve ser entendido no sentido forte,
com todos os equívocos da expressão, da expressão expressionista, mas
sobretudo da expressão fórmula lógica, destacada pelo correto que a adjetiva.
“A expressão permanece correta”. Maneira de nos fazer ouvir que Lacan
reformula, nesses dois parágrafos que acabamos de ler, a lógica que em seu
primeiro ensino ele retomava de Freud, sobre o juízo de atribuição e o juízo
de existência. Remeto-os às páginas mais familiares dos Escritos, em que
Lacan se apoiava em Hyppolite para se interessar pelo balbucio epistêmico
relativo ao ser e ao ter sob a forma legada por Freud através da filosofia de
Brentano. O ponto fundamental dizia respeito, na época, à abolição simbólica,
causada pela Verwerfung e suas consequências sobre o juízo de atribuição de
um ter, a Bejahung. Cito essas páginas para lembrar a música do primeiro
ensino, tocando-as em uma melodia quase wagneriana em relação ao
condensado que lemos em que, no entanto, enlaçam-se as relações do ser e do
ter em frases de dez palavras. Isso não é wagneriano, é Debussy. É francês,
muito francês, “A Verwerfung, portanto, corta pela raiz qualquer
manifestação da ordem simbólica, isto é, a Bejahung, que Freud enuncia
como o processo primário em que o juízo atributivo se enraíza, e que não é
outra coisa senão a condição primordial para que, do real, algo venha se
oferecer à revelação do ser, ou, para empregar a linguagem de Heidegger, seja
deixado ser. Pois é justamente a esse ponto recuado que Freud nos leva, uma
vez que é só depois dele que se poderá encontrar o que quer que seja como
ente. Tal é a afirmação inaugural, que já não pode ser renovada senão através
das formas veladas da fala inconsciente (...)”[19].
É desse modo que é preciso entender o Einbeziehung ins Ich, introdução
no sujeito, e a Ausstosung aus dem Ich, expulsão do sujeito. É essa instância
que constitui o real... pois o real não espera, e particularmente não espera o
sujeito, uma vez que não espera nada da fala. Mas ele está aí, idêntico à sua
existência, ruído no qual se pode tudo ouvir, e prestes a transbordar de seus
estilhaços o que o “princípio de realidade” aí construiu sob o nome de mundo
exterior”.[20] Nessa abordagem Lacan funda brilhantemente sua teoria da
alucinação: o que não foi admitido no simbólico, reaparece no real. E
esclarece, de forma poderosa, com esse magnífico desenvolvimento, a
alucinação do homem dos lobos. Mas esse é um momento de seu ensino em
que as três consistências não são equivalentes e no qual o grampo
simbólico/real não está determinado como acessível ao processo analítico
pelo imaginário e sua raiz de corpo.
Gostaria de chamar a atenção para essa frase que termina o parágrafo
que li e que permanece como um ponto de ligação para Lacan, esse real como
para-além da realidade, no qual se pode “tudo” ouvir. Esse real que “(...) está
aí, idêntico à sua existência, ruído no qual se pode tudo ouvir, e prestes a
transbordar de seus estilhaços o que o “princípio de realidade” aí construiu
sob o nome de mundo exterior” [21].
Reencontramos os mesmos mecanismos da constituição que Lacan, no
Seminário O sinthoma destacava: há o furo, em seguida há uma imagem que
vem como de fora, e dessa imagem se constrói um mundo. Essa estruturação
da constituição do mundo pelas relações do ser e do ter, que em 1955 ele
pegava por meio dessa lógica Bejahung-Ausstosung, agora ele retoma de
outro modo. Devemos aproximá-la da frase que encontramos, escolhida pelos
AE como epígrafe de sua soirée: “o homem ama sua imagem como o que lhe é
mais próximo, isto é, seu corpo. Simplesmente, de seu corpo, ele não tem
estritamente nenhuma ideia. Ele crê que seja eu”. Este é justamente o
mecanismo do Ich, do Lust-Ich, como se compõe etc. Não se trata mais de
uma ideia prévia, são operações que incidem sobre o que é repelido e o que é
admitido. “Cada um crê que seja ele. É um furo. E depois, fora, há a imagem.
E com essa imagem, ele faz o mundo” [22].
O texto publicado em 1956 destaca também os dois tempos do ter ou da
representação e a questão do dentro e do fora. “Primeiro houve a expulsão
primária, isto é, o real como externo ao sujeito. Depois, no interior da
representação (Vorstellung), constituída pela reprodução (imaginária) da
percepção primária, a discriminação da realidade (...). Mas, nessa realidade
que o sujeito tem que compor segundo a gama bem temperada de seus
objetos, o real, como suprimido da simbolização primordial, já está presente.
Poderíamos até dizer que fala sozinho” [23] . Temos aí uma homologia entre o
furo, a imagem, a constituição do mundo a partir da representação-imagem
que permite em seguida que o sujeito possa determinar objetos que possa
dizer seus a partir de um registro de ter que é absolutamente disjunto – a
terência [avoiement] primeira. Seria preciso retomar ponto por ponto a
homologia e as diferenças entre o texto dos Escritos e o dos Outros escritos,
partindo do gozo como o que muda tudo e determina a báscula em direção ao
“Outro Lacan”. Conforme apontou Jacques-Alain Miller, Gozo só está no
índice ponderado dos Escritos na medida em que se liga à castração[24] e é
em seguida que ele aparecerá na sua dimensão não negativável – justamente,
não marcada pelo menos fi da castração –, ocupando o lugar de uma
afirmação anterior à Bejahung. Seria preciso esse esforço de leitura para
seguir Lacan ao repensar a constituição do mundo daquele que ele chama
com três letras, UOM, a partir das três consistências tornadas equivalentes: R,
S e I. É isto que ele coloca na epígrafe do desenvolvimento que seguimos: “Ele
tem (inclusive seu corpo) por pertencer ao mesmo tempo a três... chamemolas de ordens”.[25] Mas essa entrada no detalhe da homologia dos textos dos
Escritos e dos Outros escritos supunha sem dúvida dedicar nossas leituras
lacanianas unicamente ao texto de “Joyce, o Sintoma”. Preferi escolher a
transversalidade, para promover a transversalidade dos conceitos que
Jacques-Alain Miller valoriza, e que a unidade, em contrapartida, seja dada
por sua Conferência.
O corpo e ALM. Crítica do gozo do escabelo
Continuemos a ler o que o homem tem: “UOM tem um corpo (...),
embora a partir daí uomem tenha deduzido que era uma alma – o que, é
claro, “em vista de” sua vesguice, ele traduziu como se também ele tivesse
essa”[26]. Esse encadeamento que também aí requer toda a nossa atenção,
supõe o que o precede. É o ponto em que se enlaça a recusa do saber sobre o
despedaçamento da experiência de gozo equívoco e a crença na unidade do
corpo, na sua forma primordial, que desde Aristóteles se chama alma. E aí
ainda, Lacan nomeia os dois objetos que são o ouvido, a voz e o olhar, a vista,
como o que ele chama de vesguice, outro nome da mancada, que inclui o
mesmo bis, o mesmo “duas vezes”, o mesmo redobramento que estava em
funcionamento inclusive captado de alguma forma em 56. Evidentemente
vocês são sensíveis ao partitivo. Lacan não diz ‘não’: “ele traduziu que essa
alma, ele também a tinha”, mas ele diz que a traduz de isto que essa alma, elatambém, ele a tinha. Por que chamar de tradução? Talvez porque nesse ponto
que se desvela o porquê Lacan parte do UOM em três letras. É para fazer
assonância, ressonância, da tradução primordial entre ALM e UOM. A
ambição de Lacan é nos ajudar a encontrar, aquém da tradução, metáfora de
ALM/UOM. ALM sobrepujou o fundamento de UOM, no qual a constituição
de UOM deve ser recolocada em seu lugar lógico, que escapa a toda sexuação.
O comentário acrescentado por Jacques-Alain Miller sobre esse
momento de tradução que Lacan marca, tradução que é sempre traição, é
decisivo. “É a negação do inconsciente por meio da qual o falasser se crê
senhor de seu ser. E, com seu escabelo, ele acrescenta a isso o fato de se crer
um senhor belo”.
Esse domínio, Lacan aborda por meio do “fazer com” que vem do
segundo tempo do ter. “Ter é poder fazer alguma coisa com”. Esta frase
ressoa, toma suas distâncias, subverte o que era em certo momento uma
evidência do estruturalismo: “Saber é poder”. De modo consistente para
Lacan, o saber vem no a posteriori do equívoco e do mal-entendido. Para
Lacan, saber é poder se enganar se fartar. Saber não é poder. Saber, o único
poder que tem, é de enfim se enganar. Vocês veem, vocês teriam dito isso a
Foucault, ele não teria... Enfim, não era seu ponto de partida. Primeiro há o
ter como poder de ‘fazer com’. Estamos longe do poder, de poder ser o mestre,
e das relações entre dominantes e dominados, e toda a parafernália que vem a
partir do momento em que se tem: “saber, é poder”. Foucault, Bourdieu, têm
a mesma linhagem. Há primeiro o ter como poder de ‘fazer com’. É por isso
que a expressão “saber fazer com” o sintoma, que utilizamos sem refletir
sobre ela, merece, pelo contrário, toda a nossa atenção, merece que nos
detenhamos em seu labirinto. O “saber fazer” não vem imediatamente. É
preciso primeiro que haja articulação com a modalidade do possível.
Isso é o que se tem depois, mas desdobremos a condensação lacaniana. A
alma, segundo Aristóteles, era o ponto em que se enlaçavam o corpo e o
intelecto, os noumena, que são as ideias que a inteligência (nous), que é uma
espécie de órgão suplementar ao modo de Chomsky, permite ver. Ela vê as
ideias, apreende, então, que a vista só pode alcançar as coisas visíveis, os
oromena. Os noumena são as Ideias que não podemos perceber pelos
sentidos, mas apenas pelo intelecto[27]. É esse enlace entre visão e intelecto
que Lacan desfaz ao destacar ainda que o mundo como conjunto de possíveis
não é uma percepção. Uma visão das ideias graças ao instrumento de visão
superior que é a alma. Como dizia um platônico francês que Lacan cita mais
adiante, “Deus fez a razão para perceber a verdade como ele a fez, o olho para
ver e a orelha para ouvir”.[28]
Lacan inventa para nós o termo “avisão” [avision] para se distanciar de
qualquer percepção das ideias. Esse vocábulo condensa o verbo avisar, que
tem duplo sentido em francês. Em primeiro lugar, é o de sublinhar um
momento de descoberta pela visão, a vida avisada, é realmente o instante de
ver. É um aperceber mais do que um ver, um “começar a olhar”, diz o
dicionário Le Robert. Para nós, é o instante de ver. Em seguida, avisar é
também refletir. “É preciso avisar ao mais apressado”, diz Proust. Esse é o
tempo de compreender, e só Deus sabe se ele o considerava. O avisiont de
Lacan, com um ‘t’ no final, é um refinamento. Ele tem homofonia com avisão
[avision], com um ‘s’, sem o ‘t’ no final, que já é uma nova palavra, uma visão
marcada pelo ‘a’ privativo: uma ausência de visão. E, se acrescentamos, como
o faz Lacan, o ‘t’ final, pura letra muda, nós apreendemos que essa ausência
de visão é também bastante determinada por uma ausência de visada. Ela se
produz sem que vejamos o que quer que seja (verbo em homofonia com
visiont). Da mesma forma, é a ausência se ideia do corpo que faz com que
acreditemos em um corpo que seria Eu; também não percebemos as ideias no
mundo, o que torna a constituição do mundo possível a partir de um “não”
[ne pas]. Acreditamos em um corpo que seria Eu: porque há um furo, não há
ideia do corpo, e portanto é preciso acreditar nisso. E, bom, o mesmo se dá aí:
é porque não se tem nenhuma visão desse conjunto de possíveis, mas que,
pelo contrário, como diz Lacan, é preciso primeiro definir o possível a partir
de um “não” [ne pas]. “A única definição do possível é que ele possa não [ne
pas] ‘ter lugar’: o que é tomado pelo lado contrário, haja vista a inversão geral
do que é chamado pensamento”[29]. E aí, Lacan coloca em oposição Platão e
Bacon. Daí a frase divertida: “Aristóteles, Nãbesta [Pacon], ao contrário do B
de rima igual”, que faz pensar também na quadra que muito lhe agradava: ‘De
Malebranche ou de Locke, qual é o mais astuto, qual é o mais louco? É da
filosofia divertida e muito potente. Então por que considerar que Platão não é
Pacon se se compara a Bacon?’ Lacan apenas criticava, sem dúvida, seu
Novum Organum, no qual ele fundou sua abordagem das ciências e do
mundo. O guia de Lacan aí, sem dúvida, é Koyré. Para as questões de ciência,
ele confiava em Koyré. No início de seus Etudes galiléennes, Alexandre Koyré
declara: “Bacon, iniciador da ciência moderna” – como sintagma – é uma
piada, e de mal gosto, que muitas vezes os manuais ainda repetem. De fato,
Bacon
nunca
entendeu
responsabilidade.
Os
nada
ingleses,
de
ciência.
claro,
os
Deixo
para
epistemólogos
Koyré
ingleses
sua
já
acrescentaram alguns volumes de biblioteca para explicar que: Koyré, em
certo sentido, tem razão, mas em outro, está errado, e mesmo assim, foi
Bacon quem fundou a ciência moderna, e com ele, a Inglaterra inteira. Koyré
se fundava nisso porque outros autores, em particular, por exemplo, aqueles
que fizeram a tradução francesa da Novum Organum, de publicação
relativamente recente, enfim, há quinze anos, destacam o quanto sua filosofia
natural o conduz a preferir a metafísica às matemáticas em seu discurso do
método pessoal. “Certamente, Bacon rejeita Copérnico, desdenha Gilbert –
que era um físico experimental, matemático, e critica Galileu”.[30]
Mais do que esse νοὺϛ de Platão, que supõe combinar percepção dos
sentidos, coletânea dos sense data na experiência, e visão das verdades
superiores pelo corpo, Lacan prefere o nó a três. E ainda faz uma observação
que merece que nos detenhamos sobre ela: “Nó entre que e quê, não digo, na
impossibilidade de saber, (...)”. Mesmo assim, é surpreendente. Desde o
começo ele nos diz que é preciso um nó de três com R, S e I, por que aí,
brutalmente, ele nos diz: “Nó entre que e quê, não digo”? Mas, felizmente, ele
continua. “(...) mas tiro proveito de que a trindade, UOM não pode deixar de
escrevê-la, desde o momento em que se imunda [s’immonde]. Sem que a
preferência de Victor Cousin pela triplicidade acrescente algo a isso: mas vá
lá, se ele quiser, já que o sentido [sens] aí são três; o bom senso [bon sens],
bem entendido”.[31] Então, o que isso quer dizer? Por que dizer “Nó entre
que e quê, não digo, na impossibilidade de saber, (...)”? E é então que Lacan
martela que se trata de R, S, I, que se enlaça a três. Para sabe-lo, é preciso ler
mais longe. Ele coloca na frente o três do nó, a trindade, da qual ele distingue
a triplicidade do caro Victor Cousin. A trindade, Lacan a coloca fora de
sentido. Desde UOM até RSI, é fora de sentido. Trata-se de Nomes. Vimos
isso na aula passada. Nomes puros que em última instância repousam sobre o
nome próprio final e portanto, fora de sentido. Em contrapartida, a
triplicidade é plena de sentido: o Verdadeiro, o Belo, o Bem. Essa triplicidade
vem do curso de estética de Victor Cousin[32] dado pela primeira vez em
1818, e no qual esse brilhante aluno do Liceu Carlos Magno, puro produto da
Educação National napoleônica, lança seu método, que havia sido uma
enorme sensação. Fundar a verdade sobre um método não dialético, não
hegeliano, qualificado de eclético, em que, enfim, é pelo bon sens que ele se
orienta[33]. Pierre Macherey, excelente professor que tive a sorte de ter,
explica isto muito bem na revista Corpus, que acompanhava o corpus das
edições dos filósofos franceses. Um pensador crítico, Bakunin, anarquista e
contrário a qualquer pensamento oficial, nos disse isso ao inverso. Ele fala de
Cousin dizendo: “Orador superficial e pedante, inocente de qualquer
concepção original, de qualquer pensamento que lhe fosse próprio, mas muito
forte em lugar comum, que cometeu o erro de confundir com o bom senso,
esse filósofo ilustre preparou sabiamente, para o uso da juventude estudantil
francesa, um prato metafísico ao seu modo, e cujo consumo, tornado
obrigatório em todas as escolas do Estado, submetidas à Universidade,
condenou diversas gerações que se seguiram e uma indigestão do
cérebro”[34]. Isto é para as neurociências o efeito positivo sobre os neurônios.
Evidentemente, Bakunin, como é anarquista, ri-se de tudo e deve ter
devorado o ensino de Cousin. Mas, no início, quando Cousin falava em seus
primeiros seminários, ele teve Balzac como aluno. Em contrapartida, Balzac
apreciara muito seu ensino, que seguiu de 1816 a 1919. Balzac foi muito
impressionado por Cousin, ele tinha uma boa impressão. Portanto, tudo
acaba em fabricar efetivamente pratos indigestos. Mas, quando Lacan retoma
com ironia o “bom senso” ao modo de Victor Cousin, é para introduzir o
sentido lacaniano, isto é, o gozo-sentido, o gozo. É o que Jacques-Alain Miller
esclarece de modo magistral em sua conferência. Depois de introduzir o
escabelo da mesma forma que o sinthoma, como conceitos da época do
falasser, Miller os separa pelo registro de gozo que lhes é próprio. O escabelo
é “o falasser sob sua face de gozo da fala. Esse gozo da fala origina os grandes
ideais do Bem, do Verdadeiro e do Belo” – é ao atordoar palavras ao modo de
Bakunin ou então se relemos Macherey que explica bem como construiu seu
sistema anti-cético. Isto quer dizer que ao encurralar a via de qualquer
reflexão cética. Mas o essencial é pelo gozo da fala, do blá-blá-blá que se chega
aos grandes ideais –, “O escabelo está do lado do gozo da fala que inclui o
sentido. Em contrapartida, o gozo próprio ao sinthoma exclui o sentido”.
Encontramos aí uma crítica voltada para a nova forma de sublimação que
implica o escabelo. Ela implica um gozo ligado ao sentido. Isto pelo que é
preciso passar antes de alcançar o fora de sentido. E é por isso que Lacan
pode dizer ao mesmo tempo: eu me sirvo do nó, que é composto de três
ordens, R, S, I, mas não digo de que a quê faço o nó. É por isso que ele pode
dizer: “Nó entre que e quê, não digo, na impossibilidade de saber, (...)”. Mas é
porque é esse nó que permite produzir o gozo em sua articulação.
Desse modo, falar com seu corpo-escabelo, é passar pelos desfiladeiros
da fala sustentada pela dimensão do sentido. Este entendido como no último
ensino de Lacan, isto é, falas de gozo e gozo da fala, que vai engendrar os
universais. Nada de visões sublimes à moda de Platão, ou de neurodarwinismo ao modo de Jean-Pierre Changeux, que quer engendrar pelos
meios da biologia o sujeito do Belo, do Verdadeiro, do Bem, definido e
garantido simplesmente pela adequação do pensamento com o mundo. É
também um argumento contra-cético. Nessa perspectiva, a de Changeux, que
quer fazer com que representações sejam garantidas e, portanto, nos levem
inelutavelmente ao Belo, ao Verdadeiro e ao Bem, elas são garantidas por um
processo não de impressão, mas de seleção biológica na interação com o
mundo. “Quando interage com o mundo exterior, nosso cérebro se desenvolve
e funciona segundo um modelo de variação-seleção, por vezes denominado
‘darwiniano’. Seguindo esse esquema, (...), a variação, a gênese de uma
diversidade de formas internas precede a seleção da forma adequada. As
‘representações’ se estabilizam em nosso cérebro não simplesmente por
‘impressão’, como sobre um pedaço de cera, ms indiretamente, em seguida a
um processo de seleção”. [35] Nessa perspectiva, as leis da razão coincidem
com o mundo ao longo do processo de seleção que teria podido fazer de modo
que as leis fossem de outra maneira se o mundo tivesse se dado de outra
forma.
Nem um, nem outro, nem visio, nem neuro, falar com seu corpo-escabelo
supõe um gozo particular, que se experimenta com o corpo: o gozo da fala.
[1] Freud, S. « Os instintos e suas vicissitudes », In Obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987[1915], V.XIV, p.137-164.
[2] Freud, S. “Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna”, In Obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987[1908], p.193.
[3] Miller, J-A. Curso « Do Sintoma à fantasia », Sessão de 12 de janeiro de 1983, inédito.
[4] Miller, J-A. Curso « O parceiro sintoma », sessão de 4 de março de 1998, inédito.
[5] Miller J-A. Discussão com P.-G. Guéguen in : « Le partenaire symptôme 1998 ou en
1997 ». A verificar.
[6] Lacan, J. O seminário, livro 23, O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, p. 64. Na edição
francesa, p.66 : « Le parlêtre adore son corps parce qu’il croit qu’il l’a. En réalité, il ne l’a
pas, mais son corps est sa seule consistance - consistance mentale bien entendu, car son
corps fout le camp à tout instant. »
[7] Lacan, J. « O fenômeno lacaniano ». Opção lacaniana, número 68-69, dezembro 2014,
p.18.
[8] Heidegger, M. « L'époque des "conceptions du monde » in : Chemins qui ne mènent
nulle part. Paris : Idées/Gallimard, 1980, p.117.
[9] N. T. No original há uma homofonia entre estas duas frases, que não é possível
reproduzir em português: « il vit de l’être » e « il vide l’être ».
[10] N.T. Aqui outro jogo de palavras, entre furo (trou) e trauma, daí trouma, também
impossível de manter em português.
[11] N.T. Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p.561.
[12] Lacan, J. O seminário, livro 20, mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, [15 de maio de
1973, p.161.
[13] N.T. Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p.561.
[14] Reichenbach, Hans. [1938] « Les trois tâches de l’épistémologie ». In Philosophie des
sciences - Théories, expériences et méthodes, textos reunidos por S. Laugier e P. Wagner.
Vrin, 2004, p.307.
[15] N.T. Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p.561.
[16] N.T: O partitivo é um artigo cuja função é designar uma quantidade indeterminada,
uma parte indefinida retirada do todo: du pain; de l’argent; cuja tradução seria, no caso,
simplesmente pão, ou dinheiro No caso, a frase referida por Laurent é: “de LOM a un
corps”.
[17] N.T. Em francês, a mesma palavra que designa ponto (point), também designa uma
negação (ne... point).
[18] N.T. Em francês: « de LOM a un corps ».
[19] N.T. Lacan, J. “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite” [1954]. In: Escritos. RJ:
Zahar, p.389-390.
[20] Lacan, J. “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite” [1954]. In Escritos. RJ: Zahar,
p.389-390.
[21] Ibid., p. 390.
[22] Lacan, J. « O fenômeno lacaniano », op.cit, p.18.
[23] Lacan, J. Escritos, p.391.
[24] Ibid., p.915.
[25] Lacan, J. “Joyce O Sintoma”. In: Outros Escritos, p.561.
[26] Ibid., p.562.
[27] Article « Noumène » in Les Notions philosophiques, dictionnaire 2, PUF, 1990,
p.1772.
[28] Cousin, V. Du vrai, du beau et du bien, (1853).
[29] Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”, op.cit., p.562.
[30] Introduction de Michel Malherbe et Jean-Marie Pousseur à Bacon, Novum Organum,
PUF, 1986, p.32.
[31] Lacan J., Autres Ecrits p. 566.
[32] Du vrai, du beau et du bien (Cours de philosophie professé à la Faculté des Lettres
pendant l'année 1818 par Victor Cousin sur le fondement des idées absolues du vrai, du
beau et du bien, publié par Adolphe Garnier, original: Du vrai, du beau et du bien, Paris
1836).
[33]Macherey, Pierre. In Corpus n° 18-19 « sur Victor Cousin » p. 29-49, disponível no site
stt.recherche.univ-lille3.fr « Cousin reafirmava em seguida, sempre depois de RoyerCollard, a exigência de confiar no senso comum: « A filosofia moderna era cética desde
então porque não admitia outra evidência natural que a da consciência e da razão. A
hipótese das ideias não é uma máquina imaginada para atacar e inverter o mundo, mas
para destacá-lo e protegê-lo; ela não era destinada a destruir a percepção, mas a fazer-lhe
suplência, quando a percepção foi destruída, e servir de escudo contra o ceticismo, escudo
impotente que não substitui o verdadeiro, aquele que a própria natureza colocou no
entendimento de todos os homens que não pode ser abalado pelo sofisma, e que, ao cair,
necessariamente leva consigo todas as realidades externas ». Encontrava-se aí a
ressonância das críticas de Reid contra a doutrina intelectual da representação e seu
‘ideísmo, ao qual ele criticava por subordinar a existência do mundo externo a critérios
racionais, e de conduzir deste modo a uma dúvida universal: e para escapar a esse risco,
Reid havia preconizado restabelecer outras formas de certeza, pré-racionais por princípio.
Cousin retomava, então, esse argumento, sem nada acrescentar. No máximo, completava
ele, nessa passagem de seu curso, a referência a Reid por uma breve alusão a um
“metafísico francês contemporâneo”: sem dúvida, Maine de Biran, cujas concepções, ainda
ignoradas do grande público, era ainda pela primeira vez evocadas em um enquadre
oficial”.
[34] Bakounine M., Dieu et l’Etat, 1882.
[35] Ricœur, P. e Changeux, J-P. « Ce qui nous fait penser », p.109, apud Catherine
Malabou, Epigénèse et rationalité, PUF, 2014, p. 259.

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