Por Guilherme Roman Borges FOUCAULT, Michel Folie et Déraison
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Por Guilherme Roman Borges FOUCAULT, Michel Folie et Déraison
Por Guilherme Roman Borges FOUCAULT, Michel Folie et Déraison. Histoire de La Folie À L’âge Classique Paris: Plon, 1962 A obra Folie et Déraison. Histoire de La Folie À L’âge Classique foi publicada inicialmente no outono de 1962, pela Plon, sob influência de Philippe Ariès, uma vez que havia sido rejeitada na editora Gallimard em razão do parecer de Brice Parain, apesar da opinião favorável de Roger Caillois. Entretanto, em 1972, sob o título exclusivo de Histoire de La Folie À L’âge Classique,1 a obra é republicada pela Gallimard, com algumas correções, em especial, no prefácio, haja vista o momento político em que saíra. Segundo muitos autores, em especial Pierre Billouet, as alterações no prefácio, evidenciadas pela sua supressão e uma singela e significativa explicação, teriam sido em virtude da aproximação que seu pensamento sofrera ao movimento estruturalista, sobretudo após a publicação de Les Mots et Les Choses e Archéologie du Savoir, o que sempre angustiara a Foucault: “... entretanto, a recusa do estruturalismo, após Archéologie du Savoir, conduz Foucault a não reproduzir, na reedição de 1972, o prefácio inicial, onde tratava de fazer um estudo estrutural do conjunto histórico ...”2 Trata-se de um livro fruto de sua tese doutoral defendida em 20 de maio de 1961, na Faculté de Lettres de la Sorbonne, perante uma banca composta por Henri Gouhier, presidente, Georges Canguilhem, relator, e Daniel Lagache, como visto acima. Muitos dizem ter Foucault, desde o início de seus estudos na École Normale Supérieure, grande proximidade com a 1 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1962, 309p. [trad. br. História da loucura na idade clássica. (trad. José Teixeira Coelho Netto) 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2000, 551p.] Obs.: A tradução brasileira citada neste trabalho, que doravante aparece, refere-se à publicação aparecida em 1972 pela Gallimard, e não à depositada em 1961 na Plon, razão pela qual o prefácio, como afirmado, só se encontra no original. 2 BILLOUET, Pierre. Foucault: figures ..., p. 36. “Toutefois le refus du structuralisme, après l’Archélogie du savoir, le conduit à ne pas reproduire, dans la réédition de 1972, la Préface initiale, où il s’agissait de faire une étude structurale de l’ensemble historique ...” [trad. do autor] RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 463 loucura, dado o seu equilíbrio psicológico ser já na época muito frágil. A incerteza de seu estado emocional, segundo Didier Eribon3, parecia instigálo ainda mais aos estudos dos limites entre o normal e louco. Essa foi, na época da publicação, uma das nefastas causas de crítica de seus opositores, consoante Elisabeth Roudinesco: “Outra versão: por que esse filósofo elegante, filho de médico, se interessava tanto pela loucura, se ele próprio não tinha querido seguir uma carreira na área da psiquiatria? Por que tanta violência e tanta rebelião, por que tal transgressão? Não estaria esse homem traspassado por uma experiência do desvio que o levava a se identificar com loucos imaginários para melhor romper com uma corporação da qual escolhera não fazer parte? Sabia-se que Foucault tentara o suicídio, sabia-se que era homossexual, sabia-se que tentara durante três semanas fazer análise, sabia-se, enfim, que freqüentara os loucos do hospital Sainte-Anne e que acompanhara, para obter seu diploma em psicopatologia, numerosas apresentações de doentes. Pensou-se, então, que seu livro era uma autobiografia camuflada.”4 Seus manuscritos são redigidos, como visto, em sua estadia em Uppsala, e quando Foucault a deixa em 1958, já a tem quase completa.5 Tal a importância de Uppsala, que chega a pensar em defendê-la na própria Suécia, e só não o faz, por causa das considerações desfavoráveis do professor Lindroth, do departamento de medicina e filosofia do renascimento, em 10 de agosto de 1957, a quem procurara para a leitura.6 Entretanto, no seu retorno a Paris no verão de 1960, vai à procura de Jean Hyppolite, e posteriormente de Georges Canguilhem para orientá-lo. Sua tese tinha inicialmente o seguinte nome L’Autretour de la Folie, numa referência à citação de Pascal, 3 ERIBON, Didier. Michel Foucault., p. 42. “Seus últimos livros são um pouco sua ética pessoal, conquistada sobre si mesmo.” 4 ROUDINESCO, Elisabeth. Leituras da história da loucura (1961-1986). Foucault: leituras da história da loucura. (trad. Maria Ignes Duque Estrada) Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 07-32. 5 ERIBON, Didier. Michel Foucault., p. 94. 6 ERIBON, Didier. Michel Foucault., p. 95. 464 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 que abre o prefácio7 mas muda seu nome para torná-la mais científica em Folie et Déraison. Histoire de la Folie à l’Âge Classique.8 Após a defesa e a publicação pela Plon, no ano de 1962, Foucault recebe inúmeros elogios, vastas críticas9 (como de Henri Baruck; que acreditava não ter Foucault percebido as consideráveis melhorias trazidas por Pinel na defesa das doenças mentais; de J. Miller, médico americano que lhe impunha a culpa por muitos esquizofrênicos terem sido largados nas ruas de Nova York; e Gladys Swain, que insistia sobre o papel da subjetividade e não mera objetividade do louco na teoria pineliana)10 e, o pior para ele, a indiferença de grandes publicações científicas, em especial, Les Temps Modernes e Esprit, desde o âmbito filosófico até o político. Segundo Didier Eribon, Foucault teria argumentado que tal silêncio sobre sua publicação era fruto de um 7 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1962, p. 07. “Pascal: ‘Les hommes sont si nécessairement fous que ce serait être fou par un autre tour de folie de n’être pas fou’. (...) Il faut faire l’histoire de cet autre tour de folie, de cet autre tour par lequel les hommes, dans le geste de raison souveraine qui enferme leur voisin, communiquent et se reconnaissent à travers le langage sans merci de la non-folie ...” [trad. do autor. “Pascal: ‘Os homens são tão necessariamente loucos que seria ser louco por um outro ‘modo’ de loucura não ser louco’. (...) É necessário fazer a história deste outro percurso pelo qual os homens, em seu gesto de razão soberana, que enclausura seu vizinho, comunicam e se reconhecem através da linguagem impiedosa a não-loucura ...”] Obs.: Convém colher aqui, certamente mais correta e perfeita, mas um pouco sugestiva, a tradução feita por Edson Braga de Souza, em torno do termo ‘autre tour’, razão pela qual se preferiu a opção livre ora como ‘percurso’ ora como ‘modo’: “Os homens são tão necess ariamente loucos, que não ser louco seria ser louco sob um outro disfarce de loucura”. in GUEDEZ, Annie. Foucault. (trad. Edson Braga de Souza). São Paulo: Edusp, 1977, p. 15. Igualmente, aprouve-se adotar o termo ‘modo’, ao invés de outras duas excelentes traduções, mas um pouco complicadas, feita por Maria Ignes Duque Estrada em: MAJOR, René. Crises de razão, crises de loucura ou “a loucura” de Foucault. Foucault: leituras da história da loucura. (trad. Maria Ignes Duque Estrada) Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 39. “... esse outro truque da loucura, de não ser louca...”; e por Maria Cristina Franco Ferraz in [trad. br. Cogito e história da loucura. Três Tempos Sobre a História da Loucura (org. Maria Cristina Franco Ferraz). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 14.] “... outro acesso de loucura.” 8 ERIBON, Didier. Michel Foucault., p. 101. 9 Muitos autores, segundo Elisabeth Roudinesco, procuraram incessantemente demonstrar que Foucault teria feito uma história fantasiosa da loucura, uma vez que não constava dos arquivos da história da psiquiatria. Seria tão somente uma brilhante construção literária, mas irresponsável sob o ponto de vista científico, além de desrespeitar todos aqueles acadêmicos e funcionários dos manicômios, que todos os dias deveriam enfrentar os loucos de camisa-de-força. Mas o que, para a psicanalista, era evidente que estavam todos errados, visto que Foucault tinha visto algo que os historiadores da psiquiatria não podiam ver. Ver: ROUDINESCO, Elisabeth. Leituras da história ..., p. 16-17. 10 BILLOUET, Pierre. Foucault: figures ..., p. 38. “Henri Baruck, qui inscrit ses réformes de médecin-chef de la maison nationale de Charenton (en 1931) dans la droite ligne de la libération pinélienne, pense que Foucault appartient à un courant qui, ne tenant pas ‘assez compte des améliorations considérables apportées par Pinel dans la défense des malades mentaux’, veut ‘ressusciter l’ancienne folie pour revenir aux fous d’avant Pinel, formant un groupe hétérogène et aliéné de la collectivité humaine’. Un célèbre médecin américain met ‘sur le compte de l’influence déplorable des idées de Foucault l’augmentation du nombre de schizophrènes laissés en liberté dans les rues de New York’. A un autre niveau, Gladys Sawain insiste sur le rôle de la subjectivité pinélien de la folie, ce qui invaliderait l’exclusion objectiviste diagnostiquée par Foucault.” [trad. do autor.: “Henri Baruck, que inscreve suas reformas de médico-chefe da casa nacional de Charenton (em 1931) na exata linha da liberação pineliana, pensa que Foucault é adepto de uma corrente que, não tendo ‘conta suficiente das consideráveis melhorias trazidas por Pinel na defesa dos doentes mentais’, quer ‘ressuscitar a antiga loucura para voltar aos loucos de antes de Pinel, formando um grupo heterogêneo e alienado da coletividade humana’. Um célebre médico americano põe ‘sob o compto da influência deplorável das idéias de Foucault o aumento do número de esquizofrênicos postos em liberdade nas ruas de Nova Iorque’. Em um outro nível, Gladys Sawain insiste sobre o papel da subjetividade pineliana da loucura, o que invalidaria a exclusão objetivista diagnosticada por Foucault.”] RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 465 “manto de chumbo que a força do Partido Comunista e da ideologia marxista fazia pesar sobre os comportamentos intelectuais”,11 e assim afirma em entrevista a Alessandro Fontana: “Creio que havia três razões para isto. A primeira é que o problema dos intelectuais marxistas na França – e nisto desempenhavam o papel que lhes era prescrito pelo P.C.F. – era de se fazer reconhecer pela instituição universitária e pelo establishment; portanto, deviam colocar as mesmas questões que eles, tratar dos mesmos problemas e dos mesmos domínios. (...) Aquilo que eu havia tentado fazer neste domínio foi recebido com um grande silêncio por parte da esquerda intelectual francesa.”12 E no mesmo sentido, numa entrevista concedida a D’Eramo enquanto escrevia Surveiller et Punir, em 1974, afirmou claramente que o grande problema do seu pouco sucesso em Histoire de la Folie, na sua primeira edição, era em virtude de não tratar de temas marxistas e políticos, ao contrário do que ocorreu com a segunda edição, cujo campo político era favorável aos problemas dos manicômios ou mesmo ao contrário do que ocorrera em Les Mots et les Choses, em que ressalta por vezes a construção da economia de Marx: “Eramo – Histoire de la Folie é política? Michel Foucault – Sim, agora. Isto é, quando Histoire de la Folie foi publicada na França, em 1961-1962, não teve uma só revista ou um só grupo político que dela falaram. Veja bem. Em nenhuma revista marxista, em nenhum jornal de esquerda, nada. Os únicos que falaram foram Barthes e Blanchot, importantíssimos, evidentemente, mas mais na literatura do que na política. Quando eu escrevi um texto sobre a formação da medicina clínica, um livro político, pelo que entendo, ninguém comentou, ninguém mesmo. Em contrapartida, quando, em Les Mots et Les Choses eu disse que Marx havia buscado em Ricardo seus conceitos econômicos, então ... O que ocorreu? A fronteira política mudou seu traço, e, agora, os temas como a psiquiatria, o internamento, a medicalização de uma população se tornaram problemas políticos. Em virtude do que ocorreu nesses dez últimos anos, os grupos políticos foram obrigados a integrar esses domínios em suas ações, e, assim, nós nos reunimos, eles e eu, não porque eu tivesse mudado, – eu não me gabo, gostaria de mudar – , mas porque, nesse caso, eu posso dizer com segurança que foi a política que veio até a mim, ou, preferencialmente, que colonizou esses do- 11 ERIBON, Didier. Michel Foucault., p. 124. FONTANA, Alessandro; PASQUINO, P. Vérité et pouvoir. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 3, 1994, p. 142. [trad. br. Verdade e poder. Microfísica do poder. (trad. Roberto Machado) 13 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 2.] 12 466 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 mínios que eram já quase políticos, embora não fossem reconhecidos como tais.”13 Sua obra, entretanto, é comentada por grandes nomes, como Maurice Blanchot, Roland Barthes, Michel Serres, Robert Castel, Gaston Bachelard, sobretudo, Fernand Braudel, e alguns periódicos como Le Monde e Times Literary Supplement, que asseguram a importância da pesquisa que, anos mais tarde, após as manifestações de maio de 68, foi devidamente reconhecida. (Embora tenha ocorrido uma discórdia com Jacques Derrida, seu exaluno, como se verá no tópico à parte). Apesar das críticas incisivas a Michel Foucault, Alain Ranaut e Luc Ferry em seu livro La Pensée 68: Essai sur l’Anti-Humanisme Contemporain afirmam que teria sido Histoire de la Folie o primeiro grande ensaio que possibilitou o desenrolar dos movimentos de 68: “A História da Loucura, obra inaugural do pensamento 68.”14 Pode-se dizer, em rápidas palavras, que os objetivos defendidos por Foucault em sua tese visam a demonstrar que a razão teria uma história paralela à história da loucura, isto é, que foi justamente dessa necessidade que se impôs à razão em conhecer do desatino, é que a loucura sempre teve seu espaço por ela definido e estigmatizado. Desse modo, não pretende Foucault simplesmente traçar uma historiografia da loucura ao longo do tempo, mas, antes de tudo, pretende demonstrar quais foram as diferentes maneiras pelas quais se fizeram as diversas experiências da loucura, e qual o seu posicionamento dentro do discurso político, histórico, científico e social, isto é, como se deu essa prescritiva medicalização do enquadramento da loucura nos padrões da desrazão, e como os homens estiveram sempre presos a esse modo de conceber os doentes mentais, os seus comportamentos e as suas produções. Procura, através de densas páginas, demonstrar como o comportamento dos loucos foi percebido, interpretado, localizado, utilizado e julgado pelos homens de maneiras tão diversas, em tantas épocas distintas. Seu objetivo, como ele mesmo afirma, é fazer uma arqueologia da alie13 D’ERAMO, M. Prisons et asiles dans le mécanisme du pouvoir: entretien avec Michel Foucault. (trad. A. Chizzardi) Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 524. “E. – Histoire de la Folie est politique? M.F. – Oui, mais maintenant. C’est-à-dire que, quand l’Histoire de la Folie a été publiée en France, en 1961-1962, il n’y a pas eu une seule revue ou un seul groupe possédant des intérêts politiques qui en ait parlé. Vous voyez bien. Dans aucune revue marxiste, dans aucun journal de gauche, rien. Les seuls qui en aient parlé ont été Barthes et Blanchot, très importants tous deux, bien sûr, mais plus en littérature qu’en politique. Quand j’ai écrit un texte sur la formation de la médecine clinique, un livre politique selon moi, personne n’en a parlé, vraiment personne. En contrapartie, quand, dans Les Mots et Les Choses, j’ai dit que Marx avait pris chez Ricardo ses concepts économiques, alors ... Que s’est -il produit? La frontière politique a changé son tracé, et, maintenant, des sujets comme la psychiatrie, l’internement, la médicalisation d’une population sont devenus des problèmes politiques. Après ce qui s’est passé lors des dix dernières années, les groupes politiques ont été obligés d’intégrer ces domaines à leur action, et ainsi nous nous sommes rejoints, eux et moi, non pas parce que j’avais changé – je ne m’en vante point, je voudrais changer -, mais parce que, dans ce cas, je peux dire avec fierté que c’est la politique qui est venue vers moi ou plutôt qui a colonisé ces domaines qui étaient déjà quasi politiques, mais n’étaient pas reconnues comme tels.” [trad. do autor] 14 FERRY, Luc; RENAUT, Alain. Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. (trad. Roberto Markenson e Nelci do Nascimento Gonçalves) São Paulo: Ensaio, 1988, p. 108. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 467 nação,15 uma arqueologia de seu banimento, e de sua camisa de força imposta pela razão, e o mesmo dissera no prefácio da primeira edição: “Eu não quis fazer a história desta linguagem (da psiquiatria sobre a loucura); antes uma arqueologia deste silêncio.”16 Em suma, nas suas orientações de prefácio, procura encontrar na história o grau zero da loucura, quer dizer, o lugar onde ela é uma experiência indiferenciada e única, uma experiência ainda não vivida da própria separação, que a Psicanálise, após os internamentos, fará por aparecer.17 O que pretende Foucault, nesta obra, indo um pouco além, é demonstrar que o modo como hoje se compreende a loucura é distinto do passado, e é indispensável buscar compreender as verdadeiras razões pelas quais os homens atuais estão tão intimamente ligados ao pensar a loucura a partir de sua exclusão pela razão, quer dizer, é necessário mostrar que a razão procurou sempre subjugar a loucura, estabelecendo verdades, e que, o modo atual como se repensa a loucura, sob o olhar médico, não se trata de um olhar que comporta necessariamente a verdade do louco, nem tampouco comporta um saber acabado, completo e correto da ciência, mas que, no fundo, é falho, incompleto, e se destina a apreciar apenas algumas facetas de um problema que é muito maior, por envolver questionamento nos mais diversos campos do saber, como a neurologia, a genética, a ecologia, a sociologia, etc. Nas certeiras palavras de Inês Araújo Lacerda, quando Foucault reflete a maneira como o conceito de louco foi construído, está por certo, buscando a responder a algumas indagações e formular respostas antes críticas que satisfativas: “Somos melhores ou piores que nossos antepassados? Conseguimos minorar o sofrimento do doente mental e de sua família? Melhoraram em certa medida as condições infernais dos hospícios, mas a alienação do louco no saber médico permanece firme. As alternativas terapêuticas da psiquiatria (hospital-dia, convívio familiar, controle dos choques elétricos, denúncias quanto ao abuso de intervenções cirúrgicas como a lobotomia, critérios para o uso de drogas) decorrem do novo modo de relacionar o saber médico com as novas solicitações e apelos, por vezes pressões sociais, éticas e institucionais.”18 O livro divide-se, formalmente, em três partes principais: a primeira se refere ao modo como a loucura foi historicamente interpretada, concentrando-se, especialmente, na passagem da loucura da idade média, tendo como 15 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 87. [trad. br. História da loucura ..., p. 81.] 16 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 09. “Je n’ai pas voulu faire l’histoire de ce langage; plutôt l’archéologie de ce silence.” [trad. do autor.] 17 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 07. “Tâcher de rejoindre, dans l’histoire, ce degré zéro de l’histoire de la folie, où elle est expérience indifférenciée, expérience non encore partagée du partage lui-même.” [trad. do autor: “Encontrar na história este grau zero da história da loucura em que ela é experiência indiferenciada, experiência ainda não vivida da própria separação.”] 18 ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: Ed. da UFPR, 2000, p. 33-34. 468 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 referência os textos literários, as pinturas e as peças teatrais, à idade clássica e os seus internamentos, quer dizer, da passagem dos leprosários para as casas de correção (reflete-se, essencialmente, tendo em vista a inexistência de perigo que representava para a sociedade e para a economia, sobre a maneira que o louco foi tratado na Renascença, impondo-lhe a prisão das naus), sob os títulos: A Grande Internação, O Mundo Correcional, Experiências da Loucura, Os Insensatos; a segunda se concentra na necessidade instituída pelo poder régio de segregar os loucos, para deles se utilizar no trabalho, reprimindo-lhes e controlando seu dia (reflete, sobretudo, a fase de internamento dos loucos, assim como de todos os demais que não estivessem enquadrados na sociedade, como os pobres, os degenerados, os vagabundos, os libertinos, etc.), sob os títulos: O Louco no Jardim das Espécies, A Transcendência da Loucura, Figuras da Loucura, Médicos e Doentes; por fim, numa terceira e última parte, genericamente, indaga-se sobre o modo como a razão impôs silêncio à loucura e a desligou da desrazão, e como os internamentos foram se restringindo aos loucos e se transformando em instrumentos de exclusão motivada (preocupa-se com a relação entre o discurso científico e o aprisionamento racional da loucura, com vistas à exclusão através dos asilos): sob os títulos: O Grande Medo, A Nova Divisão, Do Bom Uso da Liberdade, O Nascimento do Asilo, O Círculo Antropológico. Entretanto, sob o ponto de vista da temática a ser abordada, pode-se dizer que a divisão maior consiste em três tópicos principais: a) o modo como os loucos eram vistos na alta idade média e a sua conseqüente exclusão nas naus; b) a constituição dos hospitais gerais no renascimento e os grandes internamentos; c) a medicina psicopatológica e os hospitais no controle e ‘reeducação’ dos loucos. a) A primeira parte se abre com o tópico intitulado Stultifera navis, no qual Foucault procura fazer uma breve reflexão sobre o modo como a lepra desapareceu e cedeu lugar aos loucos, como elemento a ser retirado do convívio familiar e social. Para o pensador francês, os maiores leprozários, situados, sobretudo, ao redor de Paris, Saint-Germain e Saint-Lazare, ocuparam da Alta Idade Média ao final das Cruzadas o posto de lugares reservados a abrigar os anormais, que, segundo a Igreja Católica, representavam os excomungados divinos. Entretanto, após o controle da lepra pelas autoridades locais, entre os séculos XIV e XVII existe um período de latência, que vê paulatinamente sendo os antigos estabelecimentos reservados aos leprosos serem substituídos pelas casas de internamento (que muitas vezes se estabelecem dentro dos próprios muros dos antigos leprosários, herdando os seus bens) a fim de abrigar, então, os excomungados do poder régio, com o mesmo sentido que aqueles possuíam, quer dizer, o objetivo da exclusão: “Aquilo que sem dúvida vai permanecer por muito mais tempo que a lepra, e que se manterá ainda numa época em que, há anos, os leprosários estavam RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 469 vazios, são os valores e as imagens que tinham aderido à personagem do leproso; é o sentido dessa exclusão, a importância no grupo social dessa figura insistente e temida que não se põe de lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado. (...) Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Freqüentemente nos mesmo locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e ‘cabeças alienadas’ assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se espera dessa exclusão, para eles e para aqueles que o excluem. Com um sentido inteiramente novo, e numa cultura bem diferente, as formas subsistirão – essencialmente, essa forma maior de uma partilha rigorosa que não é a exclusão social, mas reintegração espiritual.” 19 Todavia, é nesse ínterim que o louco possui uma dinâmica distinta, já que são os acometidos por ‘doenças venéreas’ que ocupam inicialmente os leprosários. Apesar de muitos de ‘cabeça alienada’ serem segregados nos leprosários, essa exclusão efetivamente só ocorre com a constituição dos hospitais gerais e os internamentos, quando necessariamente o louco passa a ser objeto ‘domesticável’ para o capitalismo, e atentatório para a sociedade. Antes, porém, ainda no final da Idade Média e no começo do Renascimento, os loucos adquiriram, em avanços e retrocessos, uma personalidade distinta, que ora era enaltecida pelas obras primas da pintura e da literatura, ora servia ao divertimento da população, sendo somente isolados em casos extremos, quando apresentavam risco aos demais habitantes dos feudos. É nesse período que Foucault apresenta e interpreta a existência das chamadas Nau dos Loucos, ou também Narrenschiff, como na obra de Brant, de 1497, as quais se constituíam em estranhos barcos que ficam navegando sem rumo nos rios da Renânia e dos canais flamengos. Eram barcos que tinham por objetivo levar os loucos de um lugar certo a outro nenhum, com o objetivo primordial de excluí-los das vidas pacatas dos indivíduos. Ao contrário de encarcerá-los, colocavam-nos nestes barcos, como se fossem heróis em busca de sua verdade, tal como as obras de Jacop van Oestvoren Blauwe Schute, de Josse Bade Stultiferae naviculae scaphae fatuarum mulierum, e de Sumphorien Champier Nau dos Prinícpes e das Batalhas da Nobreza, quer dizer, eram barcos destinados a levar os loucos para longe, “torná-lo prisio19 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 16-17. “Ce qui va rester sans doute plus longtemps que la lèpre, et se maintiendra encore à une époque où, depuis des années déjà, les léproseries seront vides, ce sont les valeurs et les images qui s’étaient attachées au personnage du lépreux; c’est le sens de cette exclusion, l’importance dans le groupe social de cette figure insistante et redoutable qu’on n’écarte pas sans avoir tracé autour d’elle un cercle sacré. (...) La lèpre disparue, le lépreux effacé, ou presque, des mémoires, ces structures resteront. Dans les mêmes lieux souvent, les jeux de l’exclusion se retrouveront, étrangement semblabes deux ou trois siècles plus tard. Pauvres, vagabonds, correctionaires et ‘têtes aliénées’ reprendront le rôle abandonné par le ladre, et nous verrons quel salut est attendu de cette exclusion, pour eux et pour ceux-là même qui les excluent. Avec un sens tout nouveau, et dans une culture très différente, les formes subsisteront – essentiellement cette forme majeure d’un partage rigoureux qui est exclusion sociale, mais réintégration sprirituelle.” [trad. br. História da loucura ..., p. 06-07.] 470 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 neiro de sua própria partida”, fazê-los prisioneiros no interior do exterior, prendê-los em sua própria passagem. 20 Ao mesmo tempo em que a loucura fica aprisionada nas ‘barcas loucas’, ela é foco de inúmeras discussões familiares, tomando as paisagens privadas. A loucura se torna personagem, encena nos palcos e se retrata nas pinturas, como o louco se torna o Bobo, ou o Simplório. Surgem, nesse período, as chamadas Festas dos Loucos, em Flandres e no Norte da Europa, bem como as sátiras de Corroz Contre Fou Amour, a pintura de Jerônimo Bosch A Cura da Loucura e a Nau dos Loucos, e a de Brueghel Dulle Grete, bem como a clássica obra de Erasmo de Roterdã O Elogio da Loucura. A loucura é, portanto, um elemento cultural, uma experiência, em substituição às batalhas dos tempos greco-romanos, e o sentimento da morte e do nada na Alta Idade Média. b) A segunda parte do livro leva ao aparecimento das casas de correção e dos hospitais gerais, numa análise refletida sob o surgimento do capitalismo. Segundo Foucault, a liberação da loucura ao discurso poético, literário e às figuras da pintura, durante o Renascimento, vai paulatinamente sendo silenciada na época clássica, através da presença da razão como elemento de interpretação do louco. Apesar ainda da existência do profano na loucura, ela começa a ser gradativamente separada da razão, e considerada um verdadeiro erro, uma espécie de ofuscamento e perturbação da razão por “negros vapores da bílis”, tal a compreensão de Descartes.21 Nesse sentido, já no séc. XVI, a loucura é excluída pelo sujeito que duvida, e só retornará a ter parcialmente seu sentido com Hegel em Die Phenomenologie des Geist. É, assim, que a loucura passa a ser vista pela razão como forma exilada, quer dizer, a loucura passa a ser colocada fora do domínio no qual o sujeito possui seus direitos à verdade, sua própria razão. Nesse compasso, uma vez excluída pelo sujeito que pensa, pelo próprio racionalismo, eis o que Descartes compreendia, já que estava ao lado do sonho e de todas as formas de erro, a loucura exige também um tratamento diferenciado do que fora dado na Idade Média, razão pela qual surgem, então, os grandes internamentos. No dia 07 de maio de 1657, segundo determinações do Édito Real, o Hospital Geral é criado, com o objetivo primordial 20 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 22. “... confier le fou à des marins, c’est éviter à coup sûr qu’il ne rôde indéfiniment sous les murs de la ville, c’est s’assurer qu’il ira loin, c’est le rendre prisonnier de son propre départ. (...) Il est prisonnier au milieu de la plus libre, de la plus ouverte des routes: solidement enchaîné à l’infini carrefour. Il est le Passager par excellence, c’est-à-dire le prisonnier du passage (...) Il n’a pas vérité et pas patrie que dans cette étendue inféconde entre deux terres qui ne peuvent lui appartenir.” [trad. br. História da loucura ..., p. 11-12. “.. confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida (...) É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o passageiro por excelência, isto é, o Prisi oneiro da passagem (...) Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer.”] 21 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 49. [trad. br. História da loucura ..., p. 45.] RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 471 de, igualmente aos leprosários, excluir todos aqueles que estavam longe das razões da sociedade, desde vagabundos, pobres, desempregados, correcionários até os insanos.22 Os principais exemplos dessas casas de internamento foram: as Workhouses na Inglaterra e as Zuchthäusern na Alemanha. Trata-se de um lugar em que a loucura não experimenta mais seu lugar de passagem, mas de aprisionamento. “A experiência clássica da loucura nasce. A grande ameaça surgida no horizonte do século XV se atenua, os poderes inquietantes que habitavam a pintura de Bosch perderam sua violência. Algumas formas subsistem, agora transparentes e dóceis, formando um cortejo, o inevitável cortejo da razão. A loucura deixou de ser, nos confins do mundo, do homem e da morte, uma figura escatológica; a noite na qual ela tinha os olhos fixos e da qual nasciam as formas do impossível se dissipou. O esquecimento cai sobre o mundo sulcado pela livre escravidão de sua Nau: ela não irá mais de um aquém para um além, em sua estranha passagem; nunca mais ela será esse limite fugidio e absoluto. Ei-la amarrada, solidamente, no meio das coisas e das pessoas. Retida e segura. Não existe mais a barca, porém o hospital.”23 O Hospital Geral não detém apenas poderes administrativos burocráticos e policiais, mas também poderes judiciários em relação a esses excluídos, pois os julga e executa suas penas. Tornam-se verdadeiros instrumentos do Estado, que começa a aparecer no absolutismo francês, para abarcar os contingentes das crises econômicas, evitando os desempregos e possibilitando mão-de-obra barata. A loucura está aí marcada pela ética do trabalho, estando muito próxima da inutilidade social; é vista como a própria história individual do desatino, que libera a razão imoral e a inocência da besta. A loucura é o não-ser, a ausência da razão. Paulatinamente, a linha entre a loucura, a ‘desrazão’ social e a sanidade começa a ser traçada, e os pobres e os vagabundos começam a ser excluídos das práticas dos internamentos. O médico, apesar de estar presente, é chamado somente quando o louco está 22 Foucault traz em anexo ao seu livro uma brochura anônima de 1676, sobre o Édito Real que deu origem ao surgimento do Hospital Geral, lá demonstrando que não se destinavam exclusivamente aos loucos, mas aos pobres e mendigos: “Proclamou-se pelas Homilias de todas as Paróquias de Paris que o Hospital Geral seria aberto a 07 de maio de 1657 para todos os pobres que nele quisessem entrar de vontade própria, e da parte dos magistrados proibiu-se, através de pregão público, que os mendigos pedissem esmolas em Paris. (...) Nesse dia, Paris mudou de aspecto, a maior parte dos mendigos se retirou para as Províncias, os mais sábios pens aram em ganhar a vida com seu próprio esforço. Sem dúvida foi um ato da proteção de Deus para essa grande obra, pois nunca se poderia acreditar que tudo seria tão pouco trabalhoso e terminasse tão bem.” in FOUCAULT, Michel. História da loucura ..., p. 533-534. 23 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 50. “L’expérience classique de la folie naît. La grande menace montée à l’horizon du XVe siècle s’atténue, les pouvoirs inquiétants qui habitaient la peinture de Bosch ont perdu leur violence. Des formes subsistent, maintenant transparentes et dociles, formant cortège, l’inévitable cortège de la raison. La folie a cessé d’être, aux confins du monde, de l’homme et de la morte, une figure d’eschatologie; cette nuit s’est dissipée sur laquelle elle ava it les yeux fixés et d’où naissaient les formes de l’impossible. L’oubli tombe sur le monde que sillonnait le libre esclavage de sa Nef: elle n’ira plus d’un en-deça du monde à un au-delà, dans son étrange passage; elle ne sera plus jamais cette fuyante et absolue limite. La voilà amarrée, solidement, au milieu des choses et des gens. Retenue et maintenue. Non plus barque mais hôpital.” [trad. br. História da loucura ..., p. 42.] 472 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 em ataques, e para evitar que ataque outros, porém o internamento continua a ser uma prática jurisdicional-administrativa de internamento. Cria-se uma terapêutica da cumplicidade entre a medicina e a moral, para tratar os doentes, através das sangrias e, dos banhos e da confissão. “... o Hospital Geral não é um estabelecimento médico. É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decide, julga e executa. (...) o Hospital Geral é um estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: é a terceira ordem da repressão (...) É uma instância da ordem, da ordem monárquica e burguesa que se organiza na França nessa mesma época.”24 c) Por fim, num último estertor, com o nascimento de uma psicopatologia, representada pela psiquiatria, pela psicologia e pela psicanálise, Foucault indaga a ciência positiva sobre a loucura e o surgimento dos asilos, isto é, diante da separação dos loucos e dos pobres, com o nascimento de um olhar médico no final do séc. XVIII, a loucura ingressa na época clássica da indissociável relação entre a loucura internada e a loucura tratada. Nesse sentido, destaca Foucault, que os asilos são criados, e as novas práticas de internamento são engendradas, com o intuito de tratar dessa nova visualização da loucura, desse, como dito autre tour da loucura. Trata-se de uma nova divisão, isto é, a exclusão continua a existir, mas a loucura rompe seus laços com o internamento, e passa a ser isolada nos asilos. “A loucura não rompeu o círculo do internamento, mas se desloca e começa a tomar suas distâncias. Dir-se-ia uma nova exclusão no interior da antiga ...”25 As correntes destinadas a acalmar os loucos bestados vão gradativamente sendo substituídas pelas camisas de força, eis o fato da liberação dos acorrentados de Bicêtre, não mais com o objetivo de conter-lhes a animalidade, mas de limitar sua liberdade e seu espaço social. É o momento em que a consciência política do internamento, antes do que filantrópica, demonstra-se nas crises do internamento e no aparecimento dos asilos. Em substituição aos olhares dos jurados dos Tribunais do Juri, que se dedicavam a condenar os loucos por seus crimes, e, dessa maneira os excluir, tal como às medidas administrativas dos hospitais gerais, os asilos aparecem no limiar do novo século, trazendo consigo a loucura na sua forma vigiada e tornada objeto, quer dizer, trazendo consigo os olhares de uma medicina positiva, que faz da loucura seu centro de conhecimento, e, ao mesmo tempo em que a liberta, aprisiona-a, objetivando, assim, pela primeira vez, o próprio homem. Nesse 24 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 56. “... l’Hôpital général n’est pas un établissement médical. Il est plutôt une structure semi-juridique, une sorte d’entité administrative qui, à côté des pouvoirs déjà constitués, et en dehors des tribunaux, décide, juge et exécute. (...) l’Hôpital général est un étrange pouvoir que le roi établit entre la police et la justice, aux limites de la loi: le tiers-ordre de la répression.” [trad. br. História da loucura ..., p. 50.] 25 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 392. [trad. br. História da loucura ..., p. 384.] RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 473 sentido, Foucault ressalta que a pscianálise jamais impõe um debate, mas exclusivamente um monólogo com a loucura, o olhar absoluto do vigilante. 26 É através do aparecimento da psicologia que a verdade do homem pode vir à tona, e formular a terrível e excludente distinção entre loucura, então como problema médico, e razão. Esse período é marcado pelo aparecimento das casas de reclusão na Inglaterra, e, principalmente na França, com o aparecimento dos hospitais de Bicêtre e de Salpetrière, mas, sobretudo, pelo aparecimento de Pinel e de Tuke. A medicina mental positiva liberta os loucos de sua animalidade e das correntes, evidentemente, mas os aprisiona dentro de sua objetivação (eis aqui o centro das críticas que Foucault faz ao mito de Pinel, quando afirma que as idéias do psiquiatra acabariam por determinar o próprio entendimento da loucura, e que, é causa de inúmeros desentendimentos com outros intelectuais). Nesse compasso, à medida que a loucura é internada para ser objetivada pelo olhar médico, é, ao mesmo tempo, transformada numa experiência trágica, quer dizer, a loucura se transforma como elemento transgressor da realidade, impondo aos homens o encontro consigo, com sua essência e sua verdade. Com a psicologia, inúmeras práticas são desenvolvidas para tratar dos doentes mentais, como levar o louco a percepções artificiais da realidade, para que, através do choque ‘desperte’ sua razão, ou como dá-lo aos passeios e aos retiros, para que se reencontre com sua natureza. É no asilo que as práticas disciplinares, permitidas pelo saber, aparecem no gérmen que Foucault mais tarde desenvolverá em Surveiller et Punir. O médico, portanto, assume um papel indispensável de levar os doentes mentais à suas próprias razões, conduzindo-os através da ordem jurídica e moral. Esse tratamento, que engloba não mais o espaço religioso,27 mas moral, permanece no olhar médico da loucura, através da psicologia e da psiquiatria até o advento da psicanálise por Freud, quando, então, retira da objetividade do positivismo médico a condenação moral existente na loucura. Marca-se o momento em que a loucura passa a estar presa aos ditames da razão, e só então por ela é que poderia expressar-se ou reduzir-se ao silêncio.28 Induz-se ao surgimento de uma ‘círculo antropológico’, isto é, para Foucault, a verdade do 26 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 259. [trad. br. História da loucura ..., p. 482.] 27 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 267. “L’asile, domaine religieux sans religion, domaine de la morale pure, de l’uniformisation éthique. Tout ce qui pouvait conserver en lui la marque des vieilles différences vient à s’effacer. (...) L’asile doit figure maintenant la grande continuité de la morale sociale. Les valeurs de la famille et du travail, toutes les vertus reconnues, règnent à l’asile....” [trad. br. História da loucura ..., p. 486. “O asilo, domínio religioso sem religião, domínio da moral pura, da un iformização ética. Tudo o que nele podia conservar a marca das velhas diferenças acaba por sumir. As últimas recordações do sagrado se extinguem. (...) O asilo deve figurar agora a grande continuidade da moral social. Os valores da família e do trabalho, todas as virtudes reconhecidas, imperam no asilo...”] 28 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 09. “Le langage de la psychiatrie, qui est monologue de la raison sur la folie, n’a pu s’établir que sur un tel silence.” [trad. do autor. “A linguagem da psiquiatria, que é monólogo da razão sobre a loucura, não pode se estabelecer senão sobre tal silêncio.”] 474 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 louco está presa ao determinismo da vontade médica, e ao reconhecê-la, perde-a no mesmo instante, pois ao fazê-lo, objetivando-a, torna-se não mais simplesmente a sua própria verdade, isto é, a verdade do alienado, mas a verdade do racional. Nesse sentido, a verdade do homem acaba por ser a loucura, a não-razão, presa pela própria razão, de tal modo que, o louco e o homem dizem a si suas próprias verdades, e o homem para indagar sua verdade, precisa fazer-se objeto, aprisionando, assim, sua razão em seu determinismo e seus condicionamentos. Desta maneira, para se conhecer o que o homem é, sua posição de sujeito, reflete Foucault, é indispensável saber o que o homem não é (o que se apresenta em sua loucura), o que o separa, através do conhecimento médico, da sua negação, de sua loucura. Guilherme Roman Borges Advogado, doutorando e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP; mestre em Sociologia do Direito e bacharel na UFPR, foi bolsista doutoral anual na Sholé Anthropístikon kai Koinonikon Epistémon–Tméma Philosophías–Panepstímio Pátron–Elleniké Demokratía (Faculdade de Filosofia da Universidade de Patras-Grécia); professor de Economia na Universidade Positivo RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 475 Os originais deverão obedecer aos seguintes padrões: • O texto deve ser enviado em fonte Arial, corpo 10, diminuindo-se um ponto para as notas de rodapé. • Artigos: máximo de 63.000 caracteres, incluindo as referências bibliográficas, notas, título e resumos (com no máximo cem palavras cada) em português e inglês. • Notas de pesquisa: máximo de 10.500 caracteres, incluindo título e resumos (com no máximo cem palavras cada) em português e inglês. • Resenhas, comentários, memoriais e resumos de teses e dissertações defendidas: máximo de 8.400 caracteres. • Os originais devem ser enviados em CD ou disquete no programa Word for Windows, acompanhados de três cópias impressas. Devem conter página de rosto, na qual deverão constar título, nome do autor, instituição, endereço completo para correspondência e endereço eletrônico. No caso de mais de um autor, devem constar esses dados de todos os autores. • As notas devem vir no rodapé. As referências bibliográficas devem aparecer ao final do texto, de acordo com as normas da ABNT. • As ilustrações deverão ser enviadas preferencialmente em meio eletrônico (extensão .tif ou .jpg), com resolução de 300 dpi, no tamanho a ser publicado (máximo de 133 mm x 205 mm). • As ilustrações não gravadas em meio eletrônico devem ser enviadas prontas para reprodução direta, em formato A4 ou menor. As fotografias devem ser enviadas em papel brilhante e bem contrastadas. • As ilustrações coloridas serão convertidas para tons de cinza e publicadas em preto-e-branco. • O material enviado não será devolvido. Endereço para envio: Universidade Positivo – Coordenação do Curso de Direito R. Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5.300 Campo Comprido 81280-330 Curitiba-PR Contato: [email protected] – tel. (41) 3317-3035 476 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 Por Guilherme Roman Borges FOUCAULT, Michel Folie et Déraison. Histoire de La Folie À L’âge Classique Paris: Plon, 1962 A obra Folie et Déraison. Histoire de La Folie À L’âge Classique foi publicada inicialmente no outono de 1962, pela Plon, sob influência de Philippe Ariès, uma vez que havia sido rejeitada na editora Gallimard em razão do parecer de Brice Parain, apesar da opinião favorável de Roger Caillois. Entretanto, em 1972, sob o título exclusivo de Histoire de La Folie À L’âge Classique,1 a obra é republicada pela Gallimard, com algumas correções, em especial, no prefácio, haja vista o momento político em que saíra. Segundo muitos autores, em especial Pierre Billouet, as alterações no prefácio, evidenciadas pela sua supressão e uma singela e significativa explicação, teriam sido em virtude da aproximação que seu pensamento sofrera ao movimento estruturalista, sobretudo após a publicação de Les Mots et Les Choses e Archéologie du Savoir, o que sempre angustiara a Foucault: “... entretanto, a recusa do estruturalismo, após Archéologie du Savoir, conduz Foucault a não reproduzir, na reedição de 1972, o prefácio inicial, onde tratava de fazer um estudo estrutural do conjunto histórico ...”2 Trata-se de um livro fruto de sua tese doutoral defendida em 20 de maio de 1961, na Faculté de Lettres de la Sorbonne, perante uma banca composta por Henri Gouhier, presidente, Georges Canguilhem, relator, e Daniel Lagache, como visto acima. Muitos dizem ter Foucault, desde o início de seus estudos na École Normale Supérieure, grande proximidade com a 1 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1962, 309p. [trad. br. História da loucura na idade clássica. (trad. José Teixeira Coelho Netto) 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2000, 551p.] Obs.: A tradução brasileira citada neste trabalho, que doravante aparece, refere-se à publicação aparecida em 1972 pela Gallimard, e não à depositada em 1961 na Plon, razão pela qual o prefácio, como afirmado, só se encontra no original. 2 BILLOUET, Pierre. Foucault: figures ..., p. 36. “Toutefois le refus du structuralisme, après l’Archélogie du savoir, le conduit à ne pas reproduire, dans la réédition de 1972, la Préface initiale, où il s’agissait de faire une étude structurale de l’ensemble historique ...” [trad. do autor] RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 463 loucura, dado o seu equilíbrio psicológico ser já na época muito frágil. A incerteza de seu estado emocional, segundo Didier Eribon3, parecia instigálo ainda mais aos estudos dos limites entre o normal e louco. Essa foi, na época da publicação, uma das nefastas causas de crítica de seus opositores, consoante Elisabeth Roudinesco: “Outra versão: por que esse filósofo elegante, filho de médico, se interessava tanto pela loucura, se ele próprio não tinha querido seguir uma carreira na área da psiquiatria? Por que tanta violência e tanta rebelião, por que tal transgressão? Não estaria esse homem traspassado por uma experiência do desvio que o levava a se identificar com loucos imaginários para melhor romper com uma corporação da qual escolhera não fazer parte? Sabia-se que Foucault tentara o suicídio, sabia-se que era homossexual, sabia-se que tentara durante três semanas fazer análise, sabia-se, enfim, que freqüentara os loucos do hospital Sainte-Anne e que acompanhara, para obter seu diploma em psicopatologia, numerosas apresentações de doentes. Pensou-se, então, que seu livro era uma autobiografia camuflada.”4 Seus manuscritos são redigidos, como visto, em sua estadia em Uppsala, e quando Foucault a deixa em 1958, já a tem quase completa.5 Tal a importância de Uppsala, que chega a pensar em defendê-la na própria Suécia, e só não o faz, por causa das considerações desfavoráveis do professor Lindroth, do departamento de medicina e filosofia do renascimento, em 10 de agosto de 1957, a quem procurara para a leitura.6 Entretanto, no seu retorno a Paris no verão de 1960, vai à procura de Jean Hyppolite, e posteriormente de Georges Canguilhem para orientá-lo. Sua tese tinha inicialmente o seguinte nome L’Autretour de la Folie, numa referência à citação de Pascal, 3 ERIBON, Didier. Michel Foucault., p. 42. “Seus últimos livros são um pouco sua ética pessoal, conquistada sobre si mesmo.” 4 ROUDINESCO, Elisabeth. Leituras da história da loucura (1961-1986). Foucault: leituras da história da loucura. (trad. Maria Ignes Duque Estrada) Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 07-32. 5 ERIBON, Didier. Michel Foucault., p. 94. 6 ERIBON, Didier. Michel Foucault., p. 95. 464 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 que abre o prefácio7 mas muda seu nome para torná-la mais científica em Folie et Déraison. Histoire de la Folie à l’Âge Classique.8 Após a defesa e a publicação pela Plon, no ano de 1962, Foucault recebe inúmeros elogios, vastas críticas9 (como de Henri Baruck; que acreditava não ter Foucault percebido as consideráveis melhorias trazidas por Pinel na defesa das doenças mentais; de J. Miller, médico americano que lhe impunha a culpa por muitos esquizofrênicos terem sido largados nas ruas de Nova York; e Gladys Swain, que insistia sobre o papel da subjetividade e não mera objetividade do louco na teoria pineliana)10 e, o pior para ele, a indiferença de grandes publicações científicas, em especial, Les Temps Modernes e Esprit, desde o âmbito filosófico até o político. Segundo Didier Eribon, Foucault teria argumentado que tal silêncio sobre sua publicação era fruto de um 7 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1962, p. 07. “Pascal: ‘Les hommes sont si nécessairement fous que ce serait être fou par un autre tour de folie de n’être pas fou’. (...) Il faut faire l’histoire de cet autre tour de folie, de cet autre tour par lequel les hommes, dans le geste de raison souveraine qui enferme leur voisin, communiquent et se reconnaissent à travers le langage sans merci de la non-folie ...” [trad. do autor. “Pascal: ‘Os homens são tão necessariamente loucos que seria ser louco por um outro ‘modo’ de loucura não ser louco’. (...) É necessário fazer a história deste outro percurso pelo qual os homens, em seu gesto de razão soberana, que enclausura seu vizinho, comunicam e se reconh ecem através da linguagem impiedosa a não-loucura ...”] Obs.: Convém colher aqui, certamente mais correta e perfeita, mas um pouco sugestiva, a tradução feita por Edson Braga de Souza, em torno do termo ‘autre tour’, razão pela qual se preferiu a opção livre ora como ‘percurso’ ora como ‘modo’: “Os homens são tão necess ariamente loucos, que não ser louco seria ser louco sob um outro disfarce de loucura”. in GUEDEZ, Annie. Foucault. (trad. Edson Braga de Souza). São Paulo: Edusp, 1977, p. 15. Igualmente, aprouve-se adotar o termo ‘modo’, ao invés de outras duas excelentes traduções, mas um pouco complicadas, feita por Maria Ignes Duque Estrada em: MAJOR, René. Crises de razão, crises de loucura ou “a loucura” de Foucault. Foucault: leituras da história da loucura. (trad. Maria Ignes Duque Estrada) Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 39. “... esse outro truque da loucura, de não ser louca...”; e por Maria Cristina Franco Ferraz in [trad. br. Cogito e história da loucura. Três Tempos Sobre a História da Loucura (org. Maria Cristina Franco Ferraz). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 14.] “... outro acesso de loucura.” 8 ERIBON, Didier. Michel Foucault., p. 101. 9 Muitos autores, segundo Elisabeth Roudinesco, procuraram incessantemente demonstrar que Foucault teria feito uma história fantasiosa da loucura, uma vez que não constava dos arquivos da história da psiquiatria. Seria tão somente uma brilhante construção literária, mas irresponsável sob o ponto de vista científico, além de desrespeitar todos aqueles acadêmicos e funcionários dos manicômios, que todos os dias deveriam enfrentar os loucos de camisa-de-força. Mas o que, para a psicanalista, era evidente que estavam todos errados, visto que Foucault tinha visto algo que os historiadores da psiquiatria não podiam ver. Ver: ROUDINESCO, Elisabeth. Leituras da história ..., p. 16-17. 10 BILLOUET, Pierre. Foucault: figures ..., p. 38. “Henri Baruck, qui inscrit ses réformes de médecin-chef de la maison nationale de Charenton (en 1931) dans la droite ligne de la libération pinélienne, pense que Foucault appartient à un courant qui, ne tenant pas ‘assez compte des améliorations considérables apportées par Pinel dans la défense des malades mentaux’, veut ‘ressusciter l’ancienne folie pour revenir aux fous d’avant Pinel, formant un groupe hétérogène et aliéné de la collectivité humaine’. Un célèbre médecin américain met ‘sur le compte de l’influence déplorable des idées de Foucault l’augmentation du nombre de schizophrènes laissés en liberté dans les rues de New York’. A un autre niveau, Gladys Sawain insiste sur le rôle de la subjectivité pinélien de la folie, ce qui invaliderait l’exclusion objectiviste diagnostiquée par Foucault.” [trad. do autor.: “Henri Baruck, que inscreve suas reformas de médico-chefe da casa nacional de Charenton (em 1931) na exata linha da liberação pineliana, pensa que Foucault é adepto de uma corrente que, não tendo ‘conta suficiente das consideráveis melhorias trazidas por Pinel na defesa dos doentes mentais’, quer ‘ressuscitar a antiga loucura para voltar aos loucos de antes de Pinel, formando um grupo heterogêneo e alienado da coletividade humana’. Um célebre médico americano põe ‘sob o compto da influência deplorável das idéias de Foucault o aumento do número de esquizofrênicos postos em liberdade nas ruas de Nova Iorque’. Em um outro nível, Gladys Sawain insiste sobre o papel da subjetividade pineliana da loucura, o que invalidaria a exclusão objetivista diagnosticada por Foucault.”] RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 465 “manto de chumbo que a força do Partido Comunista e da ideologia marxista fazia pesar sobre os comportamentos intelectuais”,11 e assim afirma em entrevista a Alessandro Fontana: “Creio que havia três razões para isto. A primeira é que o problema dos intelectuais marxistas na França – e nisto desempenhavam o papel que lhes era prescrito pelo P.C.F. – era de se fazer reconhecer pela instituição universitária e pelo establishment; portanto, deviam colocar as mesmas questões que eles, tratar dos mesmos problemas e dos mesmos domínios. (...) Aquilo que eu havia tentado fazer neste domínio foi recebido com um grande silêncio por parte da esquerda intelectual francesa.”12 E no mesmo sentido, numa entrevista concedida a D’Eramo enquanto escrevia Surveiller et Punir, em 1974, afirmou claramente que o grande problema do seu pouco sucesso em Histoire de la Folie, na sua primeira edição, era em virtude de não tratar de temas marxistas e políticos, ao contrário do que ocorreu com a segunda edição, cujo campo político era favorável aos problemas dos manicômios ou mesmo ao contrário do que ocorrera em Les Mots et les Choses, em que ressalta por vezes a construção da economia de Marx: “Eramo – Histoire de la Folie é política? Michel Foucault – Sim, agora. Isto é, quando Histoire de la Folie foi publicada na França, em 1961-1962, não teve uma só revista ou um só grupo político que dela falaram. Veja bem. Em nenhuma revista marxista, em nenhum jornal de esquerda, nada. Os únicos que falaram foram Barthes e Blanchot, importantíssimos, evidentemente, mas mais na literatura do que na política. Quando eu escrevi um texto sobre a formação da medicina clínica, um livro político, pelo que entendo, ninguém comentou, ninguém mesmo. Em contrapartida, quando, em Les Mots et Les Choses eu disse que Marx havia buscado em Ricardo seus conceitos econômicos, então ... O que ocorreu? A fronteira política mudou seu traço, e, agora, os temas como a psiquiatria, o internamento, a medicalização de uma população se tornaram problemas políticos. Em virtude do que ocorreu nesses dez últimos anos, os grupos políticos foram obrigados a integrar esses domínios em suas ações, e, assim, nós nos reunimos, eles e eu, não porque eu tivesse mudado, – eu não me gabo, gostaria de mudar – , mas porque, nesse caso, eu posso dizer com segurança que foi a política que veio até a mim, ou, preferencialmente, que colonizou esses do- 11 ERIBON, Didier. Michel Foucault., p. 124. FONTANA, Alessandro; PASQUINO, P. Vérité et pouvoir. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 3, 1994, p. 142. [trad. br. Verdade e poder. Microfísica do poder. (trad. Roberto Machado) 13 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 2.] 12 466 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 mínios que eram já quase políticos, embora não fossem reconhecidos como tais.”13 Sua obra, entretanto, é comentada por grandes nomes, como Maurice Blanchot, Roland Barthes, Michel Serres, Robert Castel, Gaston Bachelard, sobretudo, Fernand Braudel, e alguns periódicos como Le Monde e Times Literary Supplement, que asseguram a importância da pesquisa que, anos mais tarde, após as manifestações de maio de 68, foi devidamente reconhecida. (Embora tenha ocorrido uma discórdia com Jacques Derrida, seu exaluno, como se verá no tópico à parte). Apesar das críticas incisivas a Michel Foucault, Alain Ranaut e Luc Ferry em seu livro La Pensée 68: Essai sur l’Anti-Humanisme Contemporain afirmam que teria sido Histoire de la Folie o primeiro grande ensaio que possibilitou o desenrolar dos movimentos de 68: “A História da Loucura, obra inaugural do pensamento 68.”14 Pode-se dizer, em rápidas palavras, que os objetivos defendidos por Foucault em sua tese visam a demonstrar que a razão teria uma história paralela à história da loucura, isto é, que foi justamente dessa necessidade que se impôs à razão em conhecer do desatino, é que a loucura sempre teve seu espaço por ela definido e estigmatizado. Desse modo, não pretende Foucault simplesmente traçar uma historiografia da loucura ao longo do tempo, mas, antes de tudo, pretende demonstrar quais foram as diferentes maneiras pelas quais se fizeram as diversas experiências da loucura, e qual o seu posicionamento dentro do discurso político, histórico, científico e social, isto é, como se deu essa prescritiva medicalização do enquadramento da loucura nos padrões da desrazão, e como os homens estiveram sempre presos a esse modo de conceber os doentes mentais, os seus comportamentos e as suas produções. Procura, através de densas páginas, demonstrar como o comportamento dos loucos foi percebido, interpretado, localizado, utilizado e julgado pelos homens de maneiras tão diversas, em tantas épocas distintas. Seu objetivo, como ele mesmo afirma, é fazer uma arqueologia da alie13 D’ERAMO, M. Prisons et asiles dans le mécanisme du pouvoir: entretien avec Michel Foucault. (trad. A. Chizzardi) Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 524. “E. – Histoire de la Folie est politique? M.F. – Oui, mais maintenant. C’est-à-dire que, quand l’Histoire de la Folie a été publiée en France, en 1961-1962, il n’y a pas eu une seule revue ou un seul groupe possédant des intérêts politiques qui en ait parlé. Vous voyez bien. Dans aucune revue marxiste, dans aucun journal de gauche, rien. Les seuls qui en aient parlé ont été Barthes et Blanchot, très importants tous deux, bien sûr, mais plus en littérature qu’en politique. Quand j’ai écrit un texte sur la formation de la médecine clinique, un livre politique selon moi, personne n’en a parlé, vraiment personne. En contrapartie, quand, dans Les Mots et Les Choses, j’ai dit que Marx avait pris chez Ricardo ses concepts économiques, alors ... Que s’est -il produit? La frontière politique a changé son tracé, et, maintenant, des sujets comme la psychiatrie, l’internement, la médicalisation d’une population sont devenus des problèmes politiques. Après ce qui s’est passé lors des dix dernières années, les groupes politiques ont été obligés d’intégrer ces domaines à leur action, et ainsi nous nous sommes rejoints, eux et moi, non pas parce que j’avais changé – je ne m’en vante point, je voudrais changer -, mais parce que, dans ce cas, je peux dire avec fierté que c’est la politique qui est venue vers moi ou plutôt qui a colonisé ces domaines qui étaient déjà quasi politiques, mais n’étaient pas reconnues comme tels.” [trad. do autor] 14 FERRY, Luc; RENAUT, Alain. Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. (trad. Roberto Markenson e Nelci do Nascimento Gonçalves) São Paulo: Ensaio, 1988, p. 108. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 467 nação,15 uma arqueologia de seu banimento, e de sua camisa de força imposta pela razão, e o mesmo dissera no prefácio da primeira edição: “Eu não quis fazer a história desta linguagem (da psiquiatria sobre a loucura); antes uma arqueologia deste silêncio.”16 Em suma, nas suas orientações de prefácio, procura encontrar na história o grau zero da loucura, quer dizer, o lugar onde ela é uma experiência indiferenciada e única, uma experiência ainda não vivida da própria separação, que a Psicanálise, após os internamentos, fará por aparecer.17 O que pretende Foucault, nesta obra, indo um pouco além, é demonstrar que o modo como hoje se compreende a loucura é distinto do passado, e é indispensável buscar compreender as verdadeiras razões pelas quais os homens atuais estão tão intimamente ligados ao pensar a loucura a partir de sua exclusão pela razão, quer dizer, é necessário mostrar que a razão procurou sempre subjugar a loucura, estabelecendo verdades, e que, o modo atual como se repensa a loucura, sob o olhar médico, não se trata de um olhar que comporta necessariamente a verdade do louco, nem tampouco comporta um saber acabado, completo e correto da ciência, mas que, no fundo, é falho, incompleto, e se destina a apreciar apenas algumas facetas de um problema que é muito maior, por envolver questionamento nos mais diversos campos do saber, como a neurologia, a genética, a ecologia, a sociologia, etc. Nas certeiras palavras de Inês Araújo Lacerda, quando Foucault reflete a maneira como o conceito de louco foi construído, está por certo, buscando a responder a algumas indagações e formular respostas antes críticas que satisfativas: “Somos melhores ou piores que nossos antepassados? Conseguimos minorar o sofrimento do doente mental e de sua família? Melhoraram em certa medida as condições infernais dos hospícios, mas a alienação do louco no saber médico permanece firme. As alternativas terapêuticas da psiquiatria (hospital-dia, convívio familiar, controle dos choques elétricos, denúncias quanto ao abuso de intervenções cirúrgicas como a lobotomia, critérios para o uso de drogas) decorrem do novo modo de relacionar o saber médico com as novas solicitações e apelos, por vezes pressões sociais, éticas e institucionais.”18 O livro divide-se, formalmente, em três partes principais: a primeira se refere ao modo como a loucura foi historicamente interpretada, concentrando-se, especialmente, na passagem da loucura da idade média, tendo como 15 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 87. [trad. br. História da loucura ..., p. 81.] 16 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 09. “Je n’ai pas voulu faire l’histoire de ce langage; plutôt l’archéologie de ce silence.” [trad. do autor.] 17 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 07. “Tâcher de rejoindre, dans l’histoire, ce degré zéro de l’histoire de la folie, où elle est expérience indifférenciée, expérience non encore partagée du partage lui-même.” [trad. do autor: “Encontrar na história este grau zero da história da loucura em que ela é experiência indiferenciada, experiência ainda não vivida da própria separação.”] 18 ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: Ed. da UFPR, 2000, p. 33-34. 468 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 referência os textos literários, as pinturas e as peças teatrais, à idade clássica e os seus internamentos, quer dizer, da passagem dos leprosários para as casas de correção (reflete-se, essencialmente, tendo em vista a inexistência de perigo que representava para a sociedade e para a economia, sobre a maneira que o louco foi tratado na Renascença, impondo-lhe a prisão das naus), sob os títulos: A Grande Internação, O Mundo Correcional, Experiências da Loucura, Os Insensatos; a segunda se concentra na necessidade instituída pelo poder régio de segregar os loucos, para deles se utilizar no trabalho, reprimindo-lhes e controlando seu dia (reflete, sobretudo, a fase de internamento dos loucos, assim como de todos os demais que não estivessem enquadrados na sociedade, como os pobres, os degenerados, os vagabundos, os libertinos, etc.), sob os títulos: O Louco no Jardim das Espécies, A Transcendência da Loucura, Figuras da Loucura, Médicos e Doentes; por fim, numa terceira e última parte, genericamente, indaga-se sobre o modo como a razão impôs silêncio à loucura e a desligou da desrazão, e como os internamentos foram se restringindo aos loucos e se transformando em instrumentos de exclusão motivada (preocupa-se com a relação entre o discurso científico e o aprisionamento racional da loucura, com vistas à exclusão através dos asilos): sob os títulos: O Grande Medo, A Nova Divisão, Do Bom Uso da Liberdade, O Nascimento do Asilo, O Círculo Antropológico. Entretanto, sob o ponto de vista da temática a ser abordada, pode-se dizer que a divisão maior consiste em três tópicos principais: a) o modo como os loucos eram vistos na alta idade média e a sua conseqüente exclusão nas naus; b) a constituição dos hospitais gerais no renascimento e os grandes internamentos; c) a medicina psicopatológica e os hospitais no controle e ‘reeducação’ dos loucos. a) A primeira parte se abre com o tópico intitulado Stultifera navis, no qual Foucault procura fazer uma breve reflexão sobre o modo como a lepra desapareceu e cedeu lugar aos loucos, como elemento a ser retirado do convívio familiar e social. Para o pensador francês, os maiores leprozários, situados, sobretudo, ao redor de Paris, Saint-Germain e Saint-Lazare, ocuparam da Alta Idade Média ao final das Cruzadas o posto de lugares reservados a abrigar os anormais, que, segundo a Igreja Católica, representavam os excomungados divinos. Entretanto, após o controle da lepra pelas autoridades locais, entre os séculos XIV e XVII existe um período de latência, que vê paulatinamente sendo os antigos estabelecimentos reservados aos leprosos serem substituídos pelas casas de internamento (que muitas vezes se estabelecem dentro dos próprios muros dos antigos leprosários, herdando os seus bens) a fim de abrigar, então, os excomungados do poder régio, com o mesmo sentido que aqueles possuíam, quer dizer, o objetivo da exclusão: “Aquilo que sem dúvida vai permanecer por muito mais tempo que a lepra, e que se manterá ainda numa época em que, há anos, os leprosários estavam RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 469 vazios, são os valores e as imagens que tinham aderido à personagem do leproso; é o sentido dessa exclusão, a importância no grupo social dessa figura insistente e temida que não se põe de lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado. (...) Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Freqüentemente nos mesmo locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e ‘cabeças alienadas’ assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se espera dessa exclusão, para eles e para aqueles que o excluem. Com um sentido inteiramente novo, e numa cultura bem diferente, as formas subsistirão – essencialmente, essa forma maior de uma partilha rigorosa que não é a exclusão social, mas reintegração espiritual.” 19 Todavia, é nesse ínterim que o louco possui uma dinâmica distinta, já que são os acometidos por ‘doenças venéreas’ que ocupam inicialmente os leprosários. Apesar de muitos de ‘cabeça alienada’ serem segregados nos leprosários, essa exclusão efetivamente só ocorre com a constituição dos hospitais gerais e os internamentos, quando necessariamente o louco passa a ser objeto ‘domesticável’ para o capitalismo, e atentatório para a sociedade. Antes, porém, ainda no final da Idade Média e no começo do Renascimento, os loucos adquiriram, em avanços e retrocessos, uma personalidade distinta, que ora era enaltecida pelas obras primas da pintura e da literatura, ora servia ao divertimento da população, sendo somente isolados em casos extremos, quando apresentavam risco aos demais habitantes dos feudos. É nesse período que Foucault apresenta e interpreta a existência das chamadas Nau dos Loucos, ou também Narrenschiff, como na obra de Brant, de 1497, as quais se constituíam em estranhos barcos que ficam navegando sem rumo nos rios da Renânia e dos canais flamengos. Eram barcos que tinham por objetivo levar os loucos de um lugar certo a outro nenhum, com o objetivo primordial de excluí-los das vidas pacatas dos indivíduos. Ao contrário de encarcerá-los, colocavam-nos nestes barcos, como se fossem heróis em busca de sua verdade, tal como as obras de Jacop van Oestvoren Blauwe Schute, de Josse Bade Stultiferae naviculae scaphae fatuarum mulierum, e de Sumphorien Champier Nau dos Prinícpes e das Batalhas da Nobreza, quer dizer, eram barcos destinados a levar os loucos para longe, “torná-lo prisio19 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 16-17. “Ce qui va rester sans doute plus longtemps que la lèpre, et se maintiendra encore à une époque où, depuis des années déjà, les léproseries seront vides, ce sont les valeurs et les images qui s’étaient attachées au personnage du lépreux; c’est le sens de cette exclusion, l’importance dans le groupe social de cette figure insistante et redoutable qu’on n’écarte pas sans avoir tracé autour d’elle un cercle sacré. (...) La lèpre disparue, le lépreux effacé, ou presque, des mémoires, ces structures resteront. Dans les mêmes lieux souvent, les jeux de l’exclusion se retrouveront, étrangement semblabes deux ou trois siècles plus tard. Pauvres, vagabonds, correctionaires et ‘têtes aliénées’ reprendront le rôle abandonné par le ladre, et nous verrons quel salut est attendu de cette exclusion, pour eux et pour ceux-là même qui les excluent. Avec un sens tout nouveau, et dans une culture très différente, les formes subsisteront – essentiellement cette forme majeure d’un partage rigoureux qui est exclusion sociale, mais réintégration sprirituelle.” [trad. br. História da loucura ..., p. 06-07.] 470 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 neiro de sua própria partida”, fazê-los prisioneiros no interior do exterior, prendê-los em sua própria passagem. 20 Ao mesmo tempo em que a loucura fica aprisionada nas ‘barcas loucas’, ela é foco de inúmeras discussões familiares, tomando as paisagens privadas. A loucura se torna personagem, encena nos palcos e se retrata nas pinturas, como o louco se torna o Bobo, ou o Simplório. Surgem, nesse período, as chamadas Festas dos Loucos, em Flandres e no Norte da Europa, bem como as sátiras de Corroz Contre Fou Amour, a pintura de Jerônimo Bosch A Cura da Loucura e a Nau dos Loucos, e a de Brueghel Dulle Grete, bem como a clássica obra de Erasmo de Roterdã O Elogio da Loucura. A loucura é, portanto, um elemento cultural, uma experiência, em substituição às batalhas dos tempos greco-romanos, e o sentimento da morte e do nada na Alta Idade Média. b) A segunda parte do livro leva ao aparecimento das casas de correção e dos hospitais gerais, numa análise refletida sob o surgimento do capitalismo. Segundo Foucault, a liberação da loucura ao discurso poético, literário e às figuras da pintura, durante o Renascimento, vai paulatinamente sendo silenciada na época clássica, através da presença da razão como elemento de interpretação do louco. Apesar ainda da existência do profano na loucura, ela começa a ser gradativamente separada da razão, e considerada um verdadeiro erro, uma espécie de ofuscamento e perturbação da razão por “negros vapores da bílis”, tal a compreensão de Descartes.21 Nesse sentido, já no séc. XVI, a loucura é excluída pelo sujeito que duvida, e só retornará a ter parcialmente seu sentido com Hegel em Die Phenomenologie des Geist. É, assim, que a loucura passa a ser vista pela razão como forma exilada, quer dizer, a loucura passa a ser colocada fora do domínio no qual o sujeito possui seus direitos à verdade, sua própria razão. Nesse compasso, uma vez excluída pelo sujeito que pensa, pelo próprio racionalismo, eis o que Descartes compreendia, já que estava ao lado do sonho e de todas as formas de erro, a loucura exige também um tratamento diferenciado do que fora dado na Idade Média, razão pela qual surgem, então, os grandes internamentos. No dia 07 de maio de 1657, segundo determinações do Édito Real, o Hospital Geral é criado, com o objetivo primordial 20 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 22. “... confier le fou à des marins, c’est éviter à coup sûr qu’il ne rôde indéfiniment sous les murs de la ville, c’est s’assurer qu’il ira loin, c’est le rendre prisonnier de son propre départ. (...) Il est prisonnier au milieu de la plus libre, de la plus ouverte des routes: solidement enchaîné à l’infini carrefour. Il est le Passager par excellence, c’est-à-dire le prisonnier du passage (...) Il n’a pas vérité et pas patrie que dans cette étendue inféconde entre deux terres qui ne peuvent lui appartenir.” [trad. br. História da loucura ..., p. 11-12. “.. confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida (...) É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o passageiro por excelência, isto é, o Prisi oneiro da passagem (...) Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer.”] 21 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 49. [trad. br. História da loucura ..., p. 45.] RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 471 de, igualmente aos leprosários, excluir todos aqueles que estavam longe das razões da sociedade, desde vagabundos, pobres, desempregados, correcionários até os insanos.22 Os principais exemplos dessas casas de internamento foram: as Workhouses na Inglaterra e as Zuchthäusern na Alemanha. Trata-se de um lugar em que a loucura não experimenta mais seu lugar de passagem, mas de aprisionamento. “A experiência clássica da loucura nasce. A grande ameaça surgida no horizonte do século XV se atenua, os poderes inquietantes que habitavam a pintura de Bosch perderam sua violência. Algumas formas subsistem, agora transparentes e dóceis, formando um cortejo, o inevitável cortejo da razão. A loucura deixou de ser, nos confins do mundo, do homem e da morte, uma figura escatológica; a noite na qual ela tinha os olhos fixos e da qual nasciam as formas do impossível se dissipou. O esquecimento cai sobre o mundo sulcado pela livre escravidão de sua Nau: ela não irá mais de um aquém para um além, em sua estranha passagem; nunca mais ela será esse limite fugidio e absoluto. Ei-la amarrada, solidamente, no meio das coisas e das pessoas. Retida e segura. Não existe mais a barca, porém o hospital.”23 O Hospital Geral não detém apenas poderes administrativos burocráticos e policiais, mas também poderes judiciários em relação a esses excluídos, pois os julga e executa suas penas. Tornam-se verdadeiros instrumentos do Estado, que começa a aparecer no absolutismo francês, para abarcar os contingentes das crises econômicas, evitando os desempregos e possibilitando mão-de-obra barata. A loucura está aí marcada pela ética do trabalho, estando muito próxima da inutilidade social; é vista como a própria história individual do desatino, que libera a razão imoral e a inocência da besta. A loucura é o não-ser, a ausência da razão. Paulatinamente, a linha entre a loucura, a ‘desrazão’ social e a sanidade começa a ser traçada, e os pobres e os vagabundos começam a ser excluídos das práticas dos internamentos. O médico, apesar de estar presente, é chamado somente quando o louco está 22 Foucault traz em anexo ao seu livro uma brochura anônima de 1676, sobre o Édito Real que deu origem ao surgimento do Hospital Geral, lá demonstrando que não se destinavam exclusivamente aos loucos, mas aos pobres e mendigos: “Proclamou-se pelas Homilias de todas as Paróquias de Paris que o Hospital Geral seria aberto a 07 de maio de 1657 para todos os pobres que nele quisessem entrar de vontade própria, e da parte dos magistrados proibiu-se, através de pregão público, que os mendigos pedissem esmolas em Paris. (...) Nesse dia, Paris mudou de aspecto, a maior parte dos mendigos se retirou para as Províncias, os mais sábios pens aram em ganhar a vida com seu próprio esforço. Sem dúvida foi um ato da proteção de Deus para essa grande obra, pois nunca se poderia acreditar que tudo seria tão pouco trabalhoso e terminasse tão bem.” in FOUCAULT, Michel. História da loucura ..., p. 533-534. 23 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 50. “L’expérience classique de la folie naît. La grande menace montée à l’horizon du XV e siècle s’atténue, les pouvoirs inquiétants qui habitaient la peinture de Bosch ont perdu leur violence. Des formes subsistent, maintenant transparentes et dociles, formant cortège, l’inévitable cortège de la raison. La folie a cessé d’être, aux confins du monde, de l’homme et de la morte, une figure d’eschatologie; cette nuit s’est dissipée sur laquelle elle ava it les yeux fixés et d’où naissaient les formes de l’impossible. L’oubli tombe sur le monde que sillonnait le libre esclavage de sa Nef: elle n’ira plus d’un en-deça du monde à un au-delà, dans son étrange passage; elle ne sera plus jamais cette fuyante et absolue limite. La voilà amarrée, solidement, au milieu des choses et des gens. Retenue et maintenue. Non plus barque mais hôpital.” [trad. br. História da loucura ..., p. 42.] 472 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 em ataques, e para evitar que ataque outros, porém o internamento continua a ser uma prática jurisdicional-administrativa de internamento. Cria-se uma terapêutica da cumplicidade entre a medicina e a moral, para tratar os doentes, através das sangrias e, dos banhos e da confissão. “... o Hospital Geral não é um estabelecimento médico. É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decide, julga e executa. (...) o Hospital Geral é um estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: é a terceira ordem da repressão (...) É uma instância da ordem, da ordem monárquica e burguesa que se organiza na França nessa mesma época.”24 c) Por fim, num último estertor, com o nascimento de uma psicopatologia, representada pela psiquiatria, pela psicologia e pela psicanálise, Foucault indaga a ciência positiva sobre a loucura e o surgimento dos asilos, isto é, diante da separação dos loucos e dos pobres, com o nascimento de um olhar médico no final do séc. XVIII, a loucura ingressa na época clássica da indissociável relação entre a loucura internada e a loucura tratada. Nesse sentido, destaca Foucault, que os asilos são criados, e as novas práticas de internamento são engendradas, com o intuito de tratar dessa nova visualização da loucura, desse, como dito autre tour da loucura. Trata-se de uma nova divisão, isto é, a exclusão continua a existir, mas a loucura rompe seus laços com o internamento, e passa a ser isolada nos asilos. “A loucura não rompeu o círculo do internamento, mas se desloca e começa a tomar suas distâncias. Dir-se-ia uma nova exclusão no interior da antiga ...”25 As correntes destinadas a acalmar os loucos bestados vão gradativamente sendo substituídas pelas camisas de força, eis o fato da liberação dos acorrentados de Bicêtre, não mais com o objetivo de conter-lhes a animalidade, mas de limitar sua liberdade e seu espaço social. É o momento em que a consciência política do internamento, antes do que filantrópica, demonstra-se nas crises do internamento e no aparecimento dos asilos. Em substituição aos olhares dos jurados dos Tribunais do Juri, que se dedicavam a condenar os loucos por seus crimes, e, dessa maneira os excluir, tal como às medidas administrativas dos hospitais gerais, os asilos aparecem no limiar do novo século, trazendo consigo a loucura na sua forma vigiada e tornada objeto, quer dizer, trazendo consigo os olhares de uma medicina positiva, que faz da loucura seu centro de conhecimento, e, ao mesmo tempo em que a liberta, aprisiona-a, objetivando, assim, pela primeira vez, o próprio homem. Nesse 24 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 56. “... l’Hôpital général n’est pas un établissement médical. Il est plutôt une structure semi-juridique, une sorte d’entité administrative qui, à côté des pouvoirs déjà constitués, et en dehors des tribunaux, décide, juge et exécute. (...) l’Hôpital général est un étrange pouvoir que le roi établit entre la police et la justice, aux limites de la loi: le tiers-ordre de la répression.” [trad. br. História da loucura ..., p. 50.] 25 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 392. [trad. br. História da loucura ..., p. 384.] RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 473 sentido, Foucault ressalta que a pscianálise jamais impõe um debate, mas exclusivamente um monólogo com a loucura, o olhar absoluto do vigilante. 26 É através do aparecimento da psicologia que a verdade do homem pode vir à tona, e formular a terrível e excludente distinção entre loucura, então como problema médico, e razão. Esse período é marcado pelo aparecimento das casas de reclusão na Inglaterra, e, principalmente na França, com o aparecimento dos hospitais de Bicêtre e de Salpetrière, mas, sobretudo, pelo aparecimento de Pinel e de Tuke. A medicina mental positiva liberta os loucos de sua animalidade e das correntes, evidentemente, mas os aprisiona dentro de sua objetivação (eis aqui o centro das críticas que Foucault faz ao mito de Pinel, quando afirma que as idéias do psiquiatra acabariam por determinar o próprio entendimento da loucura, e que, é causa de inúmeros desentendimentos com outros intelectuais). Nesse compasso, à medida que a loucura é internada para ser objetivada pelo olhar médico, é, ao mesmo tempo, transformada numa experiência trágica, quer dizer, a loucura se transforma como elemento transgressor da realidade, impondo aos homens o encontro consigo, com sua essência e sua verdade. Com a psicologia, inúmeras práticas são desenvolvidas para tratar dos doentes mentais, como levar o louco a percepções artificiais da realidade, para que, através do choque ‘desperte’ sua razão, ou como dá-lo aos passeios e aos retiros, para que se reencontre com sua natureza. É no asilo que as práticas disciplinares, permitidas pelo saber, aparecem no gérmen que Foucault mais tarde desenvolverá em Surveiller et Punir. O médico, portanto, assume um papel indispensável de levar os doentes mentais à suas próprias razões, conduzindo-os através da ordem jurídica e moral. Esse tratamento, que engloba não mais o espaço religioso,27 mas moral, permanece no olhar médico da loucura, através da psicologia e da psiquiatria até o advento da psicanálise por Freud, quando, então, retira da objetividade do positivismo médico a condenação moral existente na loucura. Marca-se o momento em que a loucura passa a estar presa aos ditames da razão, e só então por ela é que poderia expressar-se ou reduzir-se ao silêncio.28 Induz-se ao surgimento de uma ‘círculo antropológico’, isto é, para Foucault, a verdade do 26 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 259. [trad. br. História da loucura ..., p. 482.] 27 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 267. “L’asile, domaine religieux sans religion, domaine de la morale pure, de l’uniformisation éthique. Tout ce qui pouvait conserver en lui la marque des vieilles différences vient à s’effacer. (...) L’asile doit figure maintenant la grande continuité de la morale sociale. Les valeurs de la famille et du travail, toutes les vertus reconnues, règnent à l’asile....” [trad. br. História da loucura ..., p. 486. “O asilo, domínio religioso sem religião, domínio da moral pura, da un iformização ética. Tudo o que nele podia conservar a marca das velhas diferenças acaba por sumir. As últimas recordações do sagrado se extinguem. (...) O asilo deve figurar agora a grande continuidade da moral social. Os valores da família e do trabalho, todas as virtudes reconhecidas, imperam no asilo...”] 28 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 09. “Le langage de la psychiatrie, qui est monologue de la raison sur la folie, n’a pu s’établir que sur un tel silence.” [trad. do autor. “A linguagem da psiquiatria, que é monólogo da razão sobre a loucura, não pode se estabelecer senão sobre tal silêncio.”] 474 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 louco está presa ao determinismo da vontade médica, e ao reconhecê-la, perde-a no mesmo instante, pois ao fazê-lo, objetivando-a, torna-se não mais simplesmente a sua própria verdade, isto é, a verdade do alienado, mas a verdade do racional. Nesse sentido, a verdade do homem acaba por ser a loucura, a não-razão, presa pela própria razão, de tal modo que, o louco e o homem dizem a si suas próprias verdades, e o homem para indagar sua verdade, precisa fazer-se objeto, aprisionando, assim, sua razão em seu determinismo e seus condicionamentos. Desta maneira, para se conhecer o que o homem é, sua posição de sujeito, reflete Foucault, é indispensável saber o que o homem não é (o que se apresenta em sua loucura), o que o separa, através do conhecimento médico, da sua negação, de sua loucura. Guilherme Roman Borges Advogado, doutorando e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP; mestre em Sociologia do Direito e bacharel na UFPR, foi bolsista doutoral anual na Sholé Anthropístikon kai Koinonikon Epistémon–Tméma Philosophías–Panepstímio Pátron–Elleniké Demokratía (Faculdade de Filosofia da Universidade de Patras-Grécia); professor de Economia na Universidade Positivo RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 1 jan/jun 2009 475