If Brazil were influenced by French domestic

Transcrição

If Brazil were influenced by French domestic
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”:
à francesa ou à inglesa?
Resumo (250 palavras)
De acordo com Gilberto Freyre, não se pode menosprezar a influência dos britânicos – tão
presentes no país como negociantes ou técnicos no período entre 1835 e 1912 (FREYRE, 2000,
p.46) – em nossos modos e costumes. A concomitante submissão à cultura francesa é inegável
quando se fala, em especial, da introdução dos padrões artísticos clássicos desde a vinda da
Missão Francesa em 1816 e da transposição de idéias haussmanianas para as cidades brasileiras
(SALGUEIRO, 1997 e PINHEIRO, 2002). Mas, se há uma parafernália de idéias e artefatos em
um dado momento histórico, a identificação de um modus vivendi depende de uma análise que
leve em consideração tudo aquilo que faz parte do cotidiano de um grupo social, inclusive a
ponderação sobre a recepção de conceitos de diferentes origens. A passagem de uma tipologia
construtiva presente desde os tempos coloniais para uma liberdade de padrões acessíveis pela
ampliação das comunicações com as metrópoles de além-mar, lá também em franco processo de
transformações, depende fundamentalmente das bases urbano-fundiária, jurídica e principalmente
cultural, apropriadas à incorporação dos novos modelos. Este trabalho pretende averiguar a
introdução e adequação de idéias estrangeiras, no final do século XIX e primeiras décadas do
século XX, nas formas de morar das classes em ascensão na época, na cidade do Rio de Janeiro.
Neste sentido, é preciso cotejar as influências dos “immeubles” parisienses e das “gentleman’s
houses” britânicas no principal portão brasileiro de entrada da cultura européia – o Rio de Janeiro,
antiga capital do Império e da República Velha.
Palavras-chave: arquitetura doméstica; Belle Époque; Rio de Janeiro
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 2
Introdução
A existência de duas coleções de um dos periódicos franceses mais famosos do século XIX – a
Revue Générale de l’Architecture et des Travaux Publics (RGATP), editada por César Daly
(1811-1893), em importantes bibliotecas brasileiras 1 pode ser considerada a evidência de que
estas publicações foram fontes de inspiração para a arquitetura oitocentista brasileira. Mas as
formas pelas quais esse material pode ter chegado ao seu público-alvo em território nacional
podem ter seguido caminhos tortuosos e não serviram obrigatoriamente como material de
consulta restrito aos centros de formação profissional então existentes 2 , passando talvez pelas
mãos de clientes mais atentos ou até de comerciantes nessa área da produção, em seu trabalho
cotidiano.
A permanência dos padrões arquitetônicos domésticos urbano-coloniais em pleno período imperial
e, muitas vezes, até depois de instaurada a República, já é indicativa da morosidade na aceitação
de novos modelos estrangeiros por parte dos brasileiros da época 3 , com exceção das grandes
encomendas em geral de caráter público. Mesmo com a aclamada vinda da Missão Francesa em
1816 e a subseqüente fundação da Academia Imperial de Belas Artes, não se pode daí inferir uma
relação óbvia entre a influência francesa na arquitetura doméstica em geral e menos ainda de
uma inspiração oriunda especificamente das fontes de Daly. O único arquiteto da Missão –
Grandjean de Montigny (1776-1850) que vivenciou todo tipo de mandos e desmandos até a
definitiva criação da Academia, em 1926 – não pode ser responsabilizado pela entrada dessas
publicações por ter sido ainda muito prematuro para se contabilizar as conseqüências da
publicação francesa na produção brasileira, mesmo por que o grande interesse de Daly pela
arquitetura doméstica burguesa viria a ser consolidada no terceiro quartel do século XIX
paralelamente às ações do famoso prefeito do Sena 4 . Outro fato importante a reconhecer é que a
1
Uma coleção está na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e a outra na Biblioteca da Escola Politécnica/USP, em
São Paulo.
2
A respeito da formação profissional no período imperial, consultar Coelho (1999). Nas duas Escolas Politécnicas do
Rio e de São Paulo, foi implantada na virada do século XIX uma especialização em arquitetura, e a Academia Imperial
de Belas Artes continuou sendo a única escola de formação superior de arquitetos, seguindo os moldes da Ècole des
Beaux Arts francesa, posteriormente chamada de Escola Nacional de Belas Artes, hoje Escola de Belas Artes (EBA) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
3
O arquiteto Adolpho Morales de los Rios (1911) reclamava em artigo da segunda década do século XX a continuidade
dos padrões construtivos no Rio de Janeiro levados por construtores de toda ordem, que repetia ad infinitum as
soluções para os lotes estreitos, protagonistas do típico parcelamento urbano do período colonial.
4
Na primeira década de publicação da RGATP, foram publicados artigos diversos, incluindo um artigo que comenta e
traz ilustração do projeto do inglês Henry Roberts sob o título “Maisons Ouvrières d’Anglaterre” (8e.v., col. 403, pl. 48,
1849), dentre vários outros sobre este assunto. A famosa contribuição de Louis-Léger Vauthier intitulada “Des Maisons
d’Habitation au Brésil” (11e. v. 1853, col. 118-131) foi publicada ao mesmo volume onde figurava um longo e ilustrado
artigo sobre a questão habitacional na cidade industrial de Mulhouse, França. Esta fase corresponde à época da
tendência fourrierista dos primeiros anos da carreira de Daly (LIPSTADT, 1977, p. 38).
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 3
morte de Montigny em 1850 antecede em três anos a posse do Barão Haussmann 5 cujas
realizações revolucionaram a composição da paisagem parisiense como ficou conhecida desde
então.
A famosa publicação seriada francesa organizada por Daly – RGATP – circulou de 1840 a 1890 6 ,
divulgando inúmeros projetos construídos principalmente na cidade de Paris e seus subúrbios
(chamado em francês de “ses environs”), com riquíssimas gravuras ilustrando tais exemplares em
perspectivas, plantas, cortes e fachadas acompanhadas de descrição do projeto tanto em sua
espacialidade como de suas especificações construtivas e, muitas vezes, do orçamento resumido
da construção. O próprio Daly em geral se incumbia de escrever tais artigos. Além desta série, as
edições sucessivas de L’Architecture Privée au XIXe siècle sous Napoléon III, organizadas
pelo mesmo arquiteto entre 1864 e 1877 e, cabe dizer, dedicadas ao Baron Haussmann, parecem
ter servido como modelo obrigatório a muitas gerações de arquitetos tanto nos países centrais
como nos periféricos, em vista dos argumentos apresentados pela historiografia mais recente 7 .
No entanto, não se pode restringir as fontes de consulta de arquitetos brasileiros da segunda
metade do século XIX às publicações de Daly. Naquele momento, em França e em vários outros
lugares, inúmeras publicações – em forma de livros ou periódicos – vinham à tona como uma
nova mercadoria de consumo dentro do incessante processo de urbanização e de necessidade de
troca de informações constantes. Bernard Lemoine (1990) e Hélène Lipstadt levantaram o elevado
número de 265 títulos de periódicos na área da construção civil editados na França entre 1800 e
1914.
Na Grã-Bretanha, antes mesmo de 1830, o jornal The Times imprimia quatro mil cópias por hora
de acordo com Jenkins (1968), o que indica o alto número de seus leitores já naquela época.
Embora não se tenha um dado de comparação com os periódicos da construção civil em solo
britânico no século XIX, a regularidade impecável de números semanais de edições como The
Builder (Londres, 1842-1966), The Engineer (Londres, 1856-1941), The Building News
(Londres, 1854- ) e mesmo o popular The Illustrated Carpenter and Builder (Londres, 18771902) durante a maior parte da segunda metade do século XIX já é um forte indício de um público
ávido por notícias de feitos, inventos, materiais e processos construtivos e das conclusões de
reuniões das várias sociedades profissionais, incluindo-se aí obviamente as associações de
arquitetos 8 . A proporção da divulgação de tais publicações esclarece a atualização constante
possível nos mais remotos cantões desses países que permitiu uma mentalidade comum, uma
5
Essa mesma data (1853) coincide com a publicação dos artigos de Louis-Léger Vauthier sobre a casa brasileira, na
RGATP, em função de sua permanência em Recife-PE e amizade com o editor da revista, que confirmavam a tradição
colonial da arquitetura doméstica brasileira até então.
6
Ainda de acordo com Lipstadt (1977, p. [37]), a RGATP teve uma tiragem de 2.225 exemplares em 1866, crescendo
nos anos seguintes.
7
No Brasil, a referência a estas fontes é feita por historiadores como Reis Filho (1970), Lemos (1989), Homem (1996), e
vários outros.
8
Nos Estados Unidos da América, país em rápido processo de industrialização, também dispunha de uma ampla
literatura sobre o assunto, sendo comum a publicação de periódicos e manuais, como, por exemplo: HALL, J. A series
of Select and Original Modern Designs for Dwelling Houses. Baltimore: John Murphy, 1840.
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 4
participação constante altamente passível de se efetuar e um desenvolvimento paralelo entre as
metrópoles e as províncias. Nesse sentido, província deve ser entendida não apenas como as
regiões do interior dos países de origem das publicações, mas também suas colônias e países
emergentes vistos como periferia das metrópoles.
O mercado consumidor em uma perspectiva imperialista em que o âmbito de influência tinha como
principal agente a venda de serviços pelos países considerados “civilizados” dependia
fundamentalmente da ação de profissionais estrangeiros que serviram como intermediários na
transposição de informações ao mesmo tempo em que difundiam suas mercadorias. Com esse
objetivo, as indústrias de países mais avançados se aproveitaram de todos os meios de
comunicação da época para divulgar sua produção em terras distantes, criando assim um efeito
dominó entre a produção, a distribuição e o consumo. Os próprios profissionais se serviram destas
publicações para demonstrar a eficiência, o avanço e as aplicações destes produtos.
Sob este ângulo, não se pode omitir o potencial destas publicações para divulgar em um meio
ainda leigo quanto às novidades da construção pesada, dos elementos pré-fabricados, dos
elementos decorativos, dos materiais essenciais ao funcionamento de uma edificação dita
“moderna”, não esquecendo de mencionar as discussões sobre a cidade da era industrial. No bojo
destas discussões, obviamente estavam presentes informações e preocupações sobre as novas
formas de morar de uma sociedade em franco progresso e em franca urbanização, aqui e no
além-mar.
É bom mencionar também o alto número de imigrantes no Brasil naquele momento, após a
abolição da escravidão e início do processo de industrialização que se sucedeu com as
oportunidades criadas a partir do sucesso do cultivo de café e de sua exportação para mercados
estrangeiros. Esses imigrantes trouxeram em sua bagagem informações e experiências sobre
novos padrões edilícios em vigor em sua terra de origem, fossem eles italianos, polacos, alemães
ou outros. Ao mesmo tempo, o novo caráter do brasileiro pertencente à oligarquia local – pessoa
de ampla leitura e de variado convívio social, com viagens constantes ao estrangeiro – fazia com
que houvesse uma mão dupla na recepção de notícias dos países de centro.
Dinâmicas urbanas da primeira sociedade industrial
Obviamente, desde o período pré-industrial, o adensamento urbano resultou em uma
supervalorização do solo urbano. Enquanto em alguns lugares, a resposta foi a alta taxa de
ocupação, em outros, a expansão dos limites urbanos foi uma solução. O empreendimento
imobiliário, muitas vezes em forma de especulação, encontrou em ambas as situações suas
possibilidades de aplicação. As razões para esse processo datam do período em que as cidades
ainda tinham sua forma condicionada à economia medieval e também às possibilidades de
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 5
expansão para além das muralhas. De acordo com Martin Daunton (1983), a pressão por
ampliação da área urbana dependeu em grande parte das formas de propriedade vigentes em
cada Estado. Na Grã-Bretanha, por exemplo, houve diferenças no sistema fundiário. Na Inglaterra
e no País de Gales, o sistema de freehold ou de leasehold de glebas territoriais, assim como na
forma de propriedade ou uso de edifícios, promoveu uma ocupação das periferias (fig. 1)
enquanto que em território escocês, a vigência do sistema de feus impediu que as cidades
crescessem além dos muros. Como resultado, cidades como Edimburgo e Glasgow sofreram um
processo de verticalização precoce, enquanto que Londres e outras grandes cidades inglesas e
galesas já em pleno período de industrialização se expandiram em direção às periferias de forma
sem precedentes em nenhum outro lugar do mundo 9 . No continente europeu, a estrutura medieval
conformou as cidades a uma área limitada, confinando-as ao espaço no interior das muralhas.
Desta forma, cidades como Paris, Viena, Berlim e outras, tiveram a verticalização como solução
para este adensamento (BULLOCK; READ, 1985). Não se pode conferir a esta opção apenas
uma escolha geográfica ou territorial sem fazer referência também às questões culturais locais 10 .
Foi neste contexto que surgiram em Paris as ações do Barão Haussmann, enquanto prefét du
Seine, para a regularização das construções, estabelecendo os requisitos mínimos de altura das
edificações, ventilação, iluminação e circulação.
Fig. 1 – Stoke Newington; Growth from 1870 to 1914, Building Leases;
Middlesex. Fonte: Stoke Newington: Growth: from 1870 to 1914, A
History of the County of Middlesex: Volume 8: Islington and Stoke
Newington parishes (1985), pp. 151-158. URL: http://www.britishhistory.ac.uk/report.aspx?compid=10073. Date accessed: 02 May
2010.
9
O estudo de Dyos (1973) é exemplar para entender esta expansão.
Nos periódicos ingleses da segunda metade do século XIX, eram extremamente comuns artigos intitulados “Paris or
London?” fazendo referência sempre às distintas formas de habitação em cada uma destas cidades. A disputa entre as
villas e cottages inglesas e os immeubles de rapport parisienses encontravam aí seu forum.
10
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 6
Em cada contexto a partir de uma determinada forma disponível de uso do solo e de especulação
fundiária local, idéias sobre as formas de morar se tornaram lugar comum no debate nas mais
várias instâncias. A imprensa escrita obviamente não deixou de registrar vários pareceres e
mesmo propostas. Catálogos, manuais, periódicos, foram todos envolvidos neste ambiente de
discussão que tinha um público que crescia a números nunca vistos anteriormente. A participação
feminina também se deixou sentir quando suas atividades passaram a ser fundamentais no
trabalho como assistentes sociais ou como economistas domésticas, em primeiro lugar nos países
anglo-saxões. Com uma preocupação cada vez mais aguçada sobre a questão da higiene pública,
não eram somente as habitações operárias que recebiam a atenção das autoridades. O tema da
higiene era uma preocupação geral, desde as classes mais altas ou aqueles com uma renda bem
menor que agora dependiam de uma moradia urbana, onde havia necessidade tanto da
distribuição de água encanada, de gás, e mais tarde de energia elétrica, como de um sistema de
saneamento eficiente e eficaz. Como investimento, a construção de habitações era um ponto
comum como parte de uma política do laissez-faire, em que qualquer pessoa que dispusesse de
uma quantia, por menor que fosse, podia colocá-la a serviço de um empreendimento imobiliário.
Sobre este assunto, as contribuições ditas filantrópicas, como os conhecidos empreendimentos do
Peabody Trust, muitas vezes tiveram um objetivo mais financeiro do que propriamente de “amor
ao próximo” 11 . Personalidades como Octávia Hill (1838-1912) na Inglaterra tiveram atuação
profícua em questões de melhoria da saúde pública através de visitas às residências dos mais
necessitados, inicialmente como cobradora de aluguéis, com papel importante na conscientização
das condições de habitação. Sua maior atuação se deu no combate às condições precárias a que
estavam sujeitas as classes operárias, promovendo debates e fazendo palestras, muitas vezes
publicadas em forma de livros com compilações de suas apresentações e em periódicos (HILL,
1875). Sobre ações como a de Hill, Bullock e Read (1985) afirmam que “[…] in most cities,
housing inspection was more a question of advising tenants, or even landlords, on the dangers of
insanitary accommodation and overcrowding, than of exercising the statutory powers […]”
(BULLOCK; READ, 1985, p. 108).
O problema da superlotação dos centros urbanos não se restringiu às cidades ditas “civilizadas”
daquela época. Em países periféricos, como o Brasil, o mesmo se sucedia. São inúmeros os
trabalhos de investigação na atualidade sobre o assunto. Sobre isto e tratando do problema
habitacional e de expansão urbana do Rio de Janeiro, se pode mencionar os autores Lílian
Fessler Vaz (2002), Jaime Benchimol (1992) e Maurício de Abreu (1987), além de outros. No caso
brasileiro, uma contingência inédita em seu percurso histórico trouxe ao longo do século XIX uma
nova oportunidade. Para entender esse percurso, adotamos uma nova abordagem da história
econômica e da microhistória, sob os preceitos de Lucien Febvre (1878-1956) e Marc Bloch
(1886-1944). Esta abordagem trouxe novidades no desenvolvimento desta área de conhecimento
e nos fez propor uma investigação sobre a adoção de padrões estrangeiros pela arquitetura
11
A exemplo de estudos sobre o assunto, cita-se Tarn (1973).
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 7
doméstica brasileira na virada do século XIX para o XX, como recorte temporal, em uma área de
expansão urbana do Rio de Janeiro, mais especificamente, no bairro do Flamengo, como recorte
geográfico. Uma vez que se trata de um período tão rico na difusão de idéias e ao mesmo tempo
com uma diversidade cultural tão grande, partiu-se do pressuposto de que o processo de
aburguesamento da sociedade brasileira e da diferenciação em classes sociais mais variadas
tenha repercutido em suas formas de morar.
Considerações acerca das formas de uso do solo
A visualização de alguns mapas da cidade do Rio de Janeiro elaborados entre o final do século
XIX e as primeiras décadas do século XX traz à tona algumas observações importantes. A
primeira delas é verificar que, no último quartel do século XIX, a região do Flamengo e de
Botafogo já estava urbanizada, recebendo inclusive projetos de melhorias urbanas. A ocupação
não era de todo rarefeita neste momento, pois já é possível identificar várias ruas e divisão de
lotes com suas edificações. 12 As obras de Pereira Passos na abertura da avenida Beira-Mar
chegam ao Flamengo e Botafogo durante a sua gestão como prefeito da cidade, na primeira
década do século XX. Alguns desses mapas foram feitos, desde o século XIX, no intuito de
cadastrar os edifícios em toda a área urbanizada ou não do município, como será visto adiante,
desde o regime imperial.
O mapa de Alexandre Speltz, de 1877 (fig. 2), indica as linhas de bondes partindo do centro
histórico e passando pelas ruas do Catete, Marquês de Abrantes, Senador Vergueiro em direção a
Botafogo, continuando pelas ruas São Clemente e Voluntários da Pátria. Os nomes das ruas
Marquês de Abrantes e Senador Vergueiro eram respectivamente Caminho Velho e Caminho
Novo, pelo fato de terem sido abertas como estradas que ligavam o antigo centro às praias do sul
e, em especial, à Lagoa Rodrigo de Freitas, onde D. João VI, costumava passear. Além disso,
registra-se que no início do século D. Carlota Joaquina tinha sua moradia na praia de Botafogo, na
esquina do Caminho Velho. Desde meados do século XIX, a ocupação da região do Flamengo foi
feita em princípio como uma expansão do superpopulado centro histórico, que continha problemas
de abastecimento de água e de falta de aeração 13 . O rio Carioca foi sendo retificado ao passo que
12
Na área que vai da praia do Flamengo, passando pelo Catete até o alto do Cosme Velho, algumas edificações de
destaque precisam ser mencionadas, neste contexto, apesar de não fazerem parte da amostragem desta pesquisa por
serem obras de caráter excepcional. São elas: o atual Palácio das Laranjeiras (antiga residência de Eduardo Guinle,
construída entre 1910 e 1913 por Armando da Silva Telles, hoje residência do governador do estado), o atual Museu da
República (antiga residência do Barão de Nova Friburgo, construída em meados do século XIX, sendo posteriormente
comprada e transformada no Palácio do Catete, sede do governo da República brasileira) e o Palácio Guanabara
(antiga construção de meados do século XIX reformada por José Jacinto Rebelo para receber a residência da Princesa
Isabel e do Conde d’Eu), hoje sede do governo do estado.
13
O Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial Laemmert da Corte e Província do Rio de Janeiro (1875) já
registra um enorme número de moradores ilustres nesta região, inclusive estrangeiros, explicando por isso mesmo a
existência do Hotel dos Estrangeiros, na esquina das ruas Senador Vergueiro e Barão de Flamengo, na praça José de
Alencar (antiga praça do Catete). Este Hotel aparece em vários mapas, como uma das únicas edificações da área a
serem sempre indicadas, devido à sua importância como ponto de referência.
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 8
o arruamento na região e os desmembramentos de lotes de maiores proporções iam sendo
realizados assim como o bairro de Laranjeiras ia se conformando.
Fig. 2 – Nova Planta Indicadora da cidade do Rio de Janeiro e dos subúrbios
incluindo todas as linhas de ferro-carris. Alexandre Speltz, 1877. (Fonte:
Arquivo Nacional; Fundo/coleção: Proveniência Desconhecida, Notação
F2/Map 110)
O que se percebe simultaneamente é uma expansão em direção ao norte e oeste da cidade,
ficando ainda a área da região sul, das praias abertas para o Oceano Atlântico, por ser ocupada
no início do século XX, apesar de algumas intervenções pontuais.
No que diz respeito à instalação das linhas de bondes, de trens, de abastecimento de água
potável e de serviço de saneamento, não há dúvidas de que os britânicos estiveram em maioria
em relação a outras nacionalidades, até pelo menos a primeira década do século XX. A reedição
do livro de Gilberto Freire Ingleses no Brasil (originalmente publicado em 1948) 14 , no ano 2000,
volta a colocar vários estudiosos diante de um duplo desafio que permaneceu desde sua primeira
edição: até que ponto o seu livro não é o produto de um autor anglófilo ou até que ponto suas
afirmações ainda não foram levadas em conta por historiadores que não sejam aqueles da história
política ou da história econômica? Sua metodologia de trabalho – a leitura de anúncios comerciais
em jornais da época na busca de evidências da influência britânica para a cultura brasileira – não
deixa dúvidas que por aqui passaram inúmeros ingleses, seja por motivo de negócios, de trabalho
ou de passagem pelo país, os quais nos trouxeram uma riqueza de hábitos, costumes, técnicas e
informações que vão muito além do que se poderia considerar uma mera relação entre vendedor
14
A primeira edição de Ingleses no Brasil saiu em 1948 como parte da Coleção Documentos Brasileiros (vol. 58), pela
Editora José Olympio. A segunda edição saiu no Rio de Janeiro em 1977, organizada pela Livraria José Olympio e o
a
Instituto Nacional do Livro à qual o autor acrescentou uma nota à 2 . edição. A terceira edição, que será usada para
todas as referências nesse trabalho, saiu em 2000, pela Topbooks Editora como parte da coleção Gilbertiana. Esse
livro, diferentemente de várias outras obras de sua autoria, não foi traduzido para outras línguas, nem sequer para o
inglês, e permanece ainda hoje como material com grande potencial a ser explorado.
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 9
e comprador, contratado e contratante, técnico e cliente. A abertura dos portos em 1808 favoreceu
em primeiro lugar os ingleses. A título de exemplo, as ações de clara posição antiescravista foram
formas de intervenção que nenhum comerciante poderia ingenuamente supor que eram causadas
por um simples caráter humanista. Além disso, a oposição a Napoleão pela coroa portuguesa
auxiliou no fortalecimento das relações entre o Brasil e a Grã-Bretanha. Ao comentar sobre a
demanda por obras públicas nas principais cidades brasileiras, em função do intenso processo de
urbanização no final do século XIX, Edmundo Campos COELHO assim comenta:
Estes projetos e obras de engenharia e de construção civil de grande porte – estradas de ferro,
redes de esgoto, iluminação pública, estações ferroviárias, etc. – foram entregues a ingleses e,
em menor escala, a americanos, a grande maioria deles sem títulos acadêmicos dada a
implantação tardia e a lenta expansão da ‘cultura escolar’ nas engenharias inglesa e americana.
(COELHO, 1999, p.196-7)
Quanto a essa presença de ingleses no Brasil, Freyre dá o seguinte depoimento:
Em pouco tempo, o comércio britânico conseguiu conquistar com garras de leão o mercado
brasileiro quase inteiro, deixando aos franceses e aos norte-americanos uma ou outra felpa.
(FREYRE, 2000, p. 88)
Gilberto Freyre atesta o estabelecimento de inúmeros ingleses no comércio local, lidando
principalmente com o atacado de toda sorte de peças e mercadorias produzidas em sua terra
natal 15 . É assim que Freyre explica o uso dos mais diversos elementos industrializados, do ferro e
do vidro, dos tecidos e dos papéis de parede, da louça inglesa (que às vezes era substituída pela
porcelana chinesa também importada pelos ingleses) e dos cristais, do mobiliário de formas
retilíneas saídas das fábricas inglesas e até dos pianos, todos eles componentes essenciais às
novas edificações das cidades brasileiras que se modernizavam sem participar do ambiente
industrializado reinante nas metrópoles européias. Em seu livro British Preëminence in Brazil,
Allan K. Manchester (1933) examina documentos que comprovam as relações de dependência
que se estabeleceram entre esses dois países desde o início do século XVIII até o final do Império
em 1889. A ação dos britânicos não se limitou às mais prósperas regiões produtoras de café e/ou
algodão. Seria, portanto, uma negligência de historiadores da arquitetura desfazer dessas
evidências, ou mesmo, as omitir ao se referir à introdução de novas formas arquitetônicas durante
o mesmo período. Essas são assim as premissas para que se abra uma nova frente de pesquisa
sobre as influências de origem inglesa na arquitetura brasileira em particular entre meados do
século XIX e início do XX.
A formação das típicamente inglesas terraced houses e as semi-detached houses é atestada nas
inúmeras ilustrações em todas as publicações britânicas. A paisagem das ilhas britânicas foi
15
Gilberto Freyre chega a analisar a geografia do comércio nas cidades do Rio de Janeiro e de Recife localizando os
estabelecimentos ingleses, e também os franceses em contraposição, mostrando as preferências de uns e de outros
assim como o caráter “masculino” do primeiro, ao lidar com o atacado de várias mercadorias de maiores dimensões e
muitas vezes voltadas para a construção civil pesada ou para a maquinaria, e do “feminino” no segundo caso, referindose a eles como “retalhistas”. Ver p. 169ss.
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 10
pontilhada de amplos investimentos financeiros reproduzindo esta tipologia por toda parte (ver fig.
3). Esta configuração foi possível graças à publicação de vários periódicos e manuais que se
incumbiram de divulgar um padrão, defendido como as melhores opções para aquela época e
aquela sociedade. Também não se pode deixar de citar nesse contexto o livro The Gentleman’s
House (1865), de Robert Kerr (1823-1904), publicado pela primeira vez em 1864, em Londres.
Kerr foi um dos fundadores e primeiro presidente da Architectural Association, sendo considerado
um importante membro da comunidade profissional de sua categoria, justamente por suas
preocupações com o sistema de formação dos arquitetos, na época, uma profissão ainda sem
definições precisas. Seu livro obteve edições sucessivas que confirmam o grau de aceitação de
suas idéias, alcançando em sete anos três edições revisadas pelo autor, em respeito aos
comentários e críticas recebidos na época. Antes dele, as iniciativas de John Claudius Loudon
(1783-1843), que fundou a Architectural Magazine (Londres, 1834-1839) e publicou a
Encyclopaedia of Cottage, Farm, and Villa Architecture and Furniture (1832-3) que se
popularizou em diversas edições nos anos seguintes, também já indicavam a preferência por
residências unifamiliares situadas em amplos jardins. Na virada para o século XX, o periódico The
Studio International (1893-1964) ratificava esta tendência assim como a obra de Baillie Scott
Houses and Gardens (1906). Em geral, imagens com variações de plantas de casas geminadas
e de casas em fita formam as figuras de maior destaque em todas as publicações periódicas do
período, consolidando a adoção de casas unifamiliares em toda a produção residencial inglesa.
Fig. 3 – Fir Grove, Macclesfield; arch. Walter K. Booth, Manchester. The Architect, v. XXXVIII, p.
283 + prancha, 04.nov. 1887.
Neste último exemplo, como em tantos outros estampados nas páginas dos periódicos britânicos,
se encontra um projeto residencial em forma de terrace houses, mostrando um conjunto de quatro
unidades em fita, com as respectivas plantas do porão (da direita para a esquerda), do térreo, do
nível dos quartos e do atiço, acrescidos de detalhes construtivos. Como se pode ver, a preferência
pela irregularidade, pela rusticidade prevalece. Paralelamente e demonstrando a tendência no
continente, a revista RGATP de César Daly se concentrava na publicação dos immeubles
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 11
parisienses, de alguns projetos de hôtel particulier e de vários projetos de vilas construídas nos
subúrbios sobre os quais uma declaração feita anonimamente define o sistema ali implantado:
Nous imitons, depuis quelque temps, beaucoup d’habitudes de nos voisins d’outre-Manche.
Non-seulement nous faisons des squares, des jardins anglais et des parcs publics dans nos
villes, mais nous cherchons de plus en plus à diviser notre existence entre la ville et la
campagne; aussi a-t-on fractionné les grandes propriétés boisées des environs de Paris en une
multitude de petits lots. Des villas, des cottages s’y sont dressés comme par enchantement.
(PERCEMENTS..., 1862, col. 182)
Os exemplares de imóveis de apartamentos na área urbana de Paris mantinham uma
característica bastante recorrente. Pátios internos de iluminação (sejam os maiores denominados
cours ou os menores, denominados courrettes) eram usados também para regularizar a forma
interna na distribuição espacial uma vez que os terrenos eram em sua grande maioria de formatos
irregulares, provenientes de um traçado tortuoso e um sistema fundiário baseado na propriedade
privada (correspondente ao freehold inglês), herdado de vários séculos. Um desses exemplos,
datado de 1843, é mostrado abaixo (fig. 4):
Fig. 4 – Plans d’une Maison; Place St. George, no. 26, Paris; Éd. Renaud.
RGATP, v. 4, pl. 26, 1843.
O texto que acompanha a ilustração foi escrito por Daly com as seguintes considerações:
Chacun sait combien les propriétaires de la rive gauche s’inquiètent de l’émigration de la
population parisienne vers le Nord-Ouest de la ville (rive droite). [...]
Ce mouvement de translation n’est pas caractéristique de la ville de Paris seulement; la même
chose se retrouve dans toutes les capitales, dans toutes les grandes villes, et même dans les
villes de deuxième et de troisième ordre; partout la même cause produit les mêmes effets; on
fuit les lieux insalubres, incommodes, malpropres, en faveur de la lumière, de l’air, de la propreté
de l’élégance. (DALY, 1843, col. 555-6)
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 12
Este é um típico immeuble parisiense – já na metade do século – com programa misto (residencial
e comercial) em um terreno de forma irregular, no caso, com frente para duas ruas e entrada de
veículos de tração animal, pelos fundos, acomodando os estábulos correspondentes. Ao todo, são
treze unidades residenciais sendo quatro no pavimento-tipo, e algumas lojas na fachada nos
fundos do terreno onde há uma ocupação “étroite et mediocrement bien habitée” (col. 553.), além
dos apartamentos dos concierges. A justificativa para tal complexidade é o favorecimento de um
alto valor locativo da propriedade. Apesar da forma irregular do terreno, a inserção de vários
cômodos em formas retangulares e quadradas estabelece uma ordem racional visível também nas
fachadas externas e internas. Em decorrência desse procedimento, o funcionalismo é deixado em
segundo plano atendendo à demanda de regularidade das fachadas.
Sob o título de “Maison de Paris” 16 , a RGATP oferece com freqüência inúmeros exemplos de
projetos de immeubles em terrenos irregulares, justamente para que projetistas possam encontrar
soluções em seu cotidiano profissional. Em meio a estas exposições, são intercalados projetos de
casas de verão nos arredores da cidade e às vezes em outras cidades. Apenas um exemplo de
casa geminada é encontrado. Trata-se de um “Hôtel de 3e. Classe”, situado à rue Balzac, e
assinado pelo arquiteto Azemar, ilustrado abaixo.
Fig. 5 – Hôtel de 3e. Classe; rue Balzac, no. 17, Paris; archte. Azemar,
RGATP, v. XXIII, pl. 17, 1865.
Neste caso, em vista da regularidade do terreno e também das pequenas dimensões da
edificação, o arquiteto opta por um volume regular, onde distribui o programa de necessidades em
dois andares, somados ao porão alto e à mansarda no topo. A construção feita no alinhamento
inclui um jardim à inglesa nos fundos e uma área livre para veículos. O texto que acompanha este
exemplo é sucinto, limitando-se a indicar que os desenhos são autoexplicativos. Na fachada, as
janelas representadas nas plantas são dispostas de forma ritmada conferindo uma simetria
perfeita.
16
No volume de 1852, a RGATP exibe mais de dez exemplos, incluindo casas operárias da Inglaterra (pranchas 35 a
46). O tema se repete em vários números da revista como se fosse uma coluna permanente do programa da publicação.
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 13
Entrementes, o surgimento da villegiatura teve papel importante na constituição dos novos
espaços urbanos assim como de novas tipologias residenciais. De acordo com François Loyer:
“… la maison particulière, notamment suburbaine, deviendra très tôt le lieu des plus étonnantes
fantaisies, parce que l’individualité en est l’élément constitutif – elle est proprieté et résidence
permanente de la famille, par opposition avec l’anonymat de l’immeuble locatif dont l’occupation
reste purement accidentalle.” (LOYER, 1981, p. 17)
Vê-se aqui uma oposição clara tanto ao classicismo ditado pela École des Beaux Arts e como às
exigências de regularidade construtiva de Haussmann. Nos trechos que acompanham as
ilustrações das villas suburbaines na RGATP, muitos deles escritos pelo próprio Daly, a palavra
pittoresque é lugar comum. Mas uma surpresa aguarda o historiador em sua pesquisa sobre esse
processo de suburbanização. Um artigo anônimo da RGATP alerta o leitor:
“Nous imitons, depuis quelque temps, beaucoup d’habitudes de nos voisins d’outre-Manche.
Non-seulement nous faisons des squares, des jardins anglais et des parcs publics dans nos
villes, mais nous cherchons de plus en plus à diviser notre existence entre la ville et la
campagne; aussi a-t-on fractionné les grandes propriétés boisées des environs de Paris en une
multitude de petits lots. Des villas, des cottages s’y sont dressés comme par enchantement“.
(PERCEMENTS..., 1862, col. 182)
Portanto, enquanto o centro de Paris era ocupado intensivamente com estes immeubles sob a
batuta de Haussmann, os seus subúrbios eram objetos de um outro tipo de investimento
imobiliário: a construção de vilas residenciais nos novos loteamentos. Ao longo do século XIX,
dois parcelamentos se tornaram modelos exemplares: aquelas da Maisons Laffitte e Le Vésinet 17
(fig. 6), ambos a oeste da cidade, na região de Yvelines. Paralelamente, balneários e estações
termais ganharam cada vez mais adeptos e os padrões arquitetônicos desenvolvidos nestes
lugares auxiliaram na disseminação do ecletismo típico do final do século. A liberdade estilística, o
regionalismo, a amplitude dos terrenos associados a um menor controle edilício se comparados
com os grandes centros contribuíram para que o individualismo se tornasse a forma
predominante. Essa nova tipologia arquitetônica se denominou vilegiatura como uma extensão do
uso da mesma terminologia para identificar os novos padrões de vida que incluíam as temporadas
de férias nas cercanias das grandes cidades ou nas áreas de interesse turístico. Vilegiatura é uma
palavra pouco utilizada na língua portuguesa cuja origem é italiana, com referência à villa rural,
construídas como segunda moradia. Consequentemente a palavra villeggiatura, adotada em
vários idiomas ocidentais, denota os locais de descanso e de tratamento de saúde, como as
estâncias hidrominerais.
17
Ver MINISTÈRE DE LA CULTURE ET DE LA COMMUNICATION (1989).
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 14
Fig. 6 – 78110 Le Vésinet. Affiche Publicitaire; Chemin de Fer de
l’Ouest. (Fonte: acervo pessoal)
Os estudos sobre a vida privada que a história, como campo de conhecimento, vem
desenvolvendo oferece aportes que devem ser examinados como fundamentação da abordagem
deste texto. Assim, Martin-Fugier analisando a vida privada burguesa francesa do século XIX
informa:
No decorrer da segunda metade do século, instaurou-se a noção de ‘férias’ como uma mudança
necessária das atividades e do gênero de vida. O descanso e os benefícios da natureza
parecem oferecer uma contrapartida ao modo de vida urbano e industrial. Esse gosto pela
natureza não é novo, tendo-se desenvolvido no século XVIII, como mostrou Robert Mauzi. Mas
o que é novo – como Henri Boiraud assinala como muita justeza em seu estudo sobre as férias
– ‘é a inserção dessas preocupações na organização temporal das atividades humanas’.
(MARTIN-FUGIER, 1991, p. 232)
Neste sentido, as novas estações termais e balneários se transformaram em pontos de interesse
da população urbana facilitada pela expansão da rede ferroviária que diminuiu radicalmente o
tempo de viagem oferecendo também mais conforto aos passageiros que antes dependiam de
deslocamentos em veículos de tração animal. Ainda segundo Martin-Fugier (1991, p. 231) “o trem
reduziu em dois terços o tempo de viagem entre a capital e as praias”. Este novo modo de vida
configurou as várias faixas litorâneas francesas como a Côte d’Azur (no Mar Mediterrâneo) e a
Côte d’Emeraude 18 (entre a Bretanha e a Normandia). Em vista desta procura, o alvo de
investimentos imobiliários logo se direcionou a estes locais. Segundo Étienne-Steiner (1993, p.
64), na cidade do Havre na Normandia “em 1905, Georges Dufayel, propriétaire des fameuses
galeries parisiennes du même nom, crée à Sainte-Adresse, au pied de la falaise de la Hève, la
18
Emboraa vilegiatura seja um tema de interesse recente pelos pesquisadores, já se conta com várias publicações na
área, nas últimas décadas. Entre elas, cita-se BARBEDOR, I. et alli (2001)
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 15
station balnéaire du Nice havrais [...]”. Esta mesma autora chama a atenção para a arquitetura aí
produzida no final do século XIX que se caracteriza por uma linguagem regionalista revivalista
mas que também recebe influências estrangeiras do outro lado do Canal da Mancha, que
simultaneamente ao uso de tijolos e panos de madeira utiliza um “vocabulaire balnéaire – balcons
de bois et bow-windows à terrasse” (ÉTIENNE-STEINER, 1993, p. 66). Desta mesma forma se
encontra a nomenclatura das “cottages” seja nos manuais de construção ou na denominação das
próprias villas 19 . Sobre estas tipologias, ver ilustrações nas imagens abaixo (fig. 7 e 8).
Fig. 7 – À esquerda, residência em Le Vésinet, Yvelines, França; à direita, residências
em Dinard, Ille-et-Vilaine, Bretanha, França. Fonte: acervo pessoal.
Fig. 8 – À esquerda, Wood Cottage, Le Vésinet, Yvelines, França; à direita, residência
em Dinard, Ille-et-Vilaine, Bretanha, France. Fonte: acervo pessoal.
19
Em Le Vésinet, no Boulevard des États-Unis, uma das residências de destaque é a Wood Cottage, de propriedade de
Paul-Édouard Taconnet, construída pelo empresário Tricotel, em 1864 (fig. 8).
Alguns mapas e algumas reflexões
A partir deste panorama, a ocupação da orla marítima da cidade do Rio de Janeiro, em direção sul
do centro histórico, deve ser contextualizada no âmbito destas possíveis fontes de influência. Os
afastamentos frontal e lateral passam a ser cotejados com o apoio da administração urbana, uma
vez que trazem fatores positivos no combate à insalubridade. Por outro lado, a privacidade e o
conforto pessoal são valores que crescem na sociedade local, além de um individualismo que
passa a ser visível nos discursos da época. A possibilidade de incluir novos materiais, novos
sistemas construtivos e novos padrões de edificação aumenta ao longo da segunda metade do
século XIX com a maior capacidade de aquisição e de oferta no mercado da região. Por isso
mesmo, quando se observa as plantas cadastrais datadas de 1935, a existência de prédios
isolados no centro dos terrenos é significativa se comparada com plantas cadastrais de décadas
anteriores.
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 17
Fig. 9 – Planta da Cidade do Rio de Janeiro; Prefeitura do Distrito Federal, Secretaria
de Viação, Trabalho e Obras Públicas, 1935; esc. 1:5.000. Acima, folha no. 7; abaixo,
o
folha n . 6. Fonte: Instituto Pereira Passos/Centro de Atendimento em Cartografia.
Comparando com as plantas de 1880, a diferença na ocupação é marcante.
Fig. 10 – Planta de Melhoramentos da cidade do Rio de
Janeiro, 1875. Fonte: Arquivo Nacional; Fundo:
Ministério da Viação e Obras Públicas/4Y/MAP.527, fl.
3P; Morro da Viúva à Praia de Botafogo.
Fig. 11 – Planta de Melhoramentos da cidade do Rio de
Janeiro, 1875. Fonte: Arquivo Nacional; Fundo:
Ministério da Viação e Obras Públicas/4Y/MAP.527, fl.
28P; Largo do Machado até o Flamengo.
Embora não se tenha o conjunto completo de uma outra coleção, ainda do período do Império, a
inclusão das próximas imagens são também esclarecedoras (fig. 10 e 11). Embora se perceba um
adensamento entre as décadas de 1870 e 1930, as edificações ficam cada vez mais soltas dos
limites dos terrenos. Isto só não seria uma novidade se for constatado – como na verdade, é – que
há um grande número de casas geminadas ou em fita, em toda esta área. Em especial, se
observa esta tipologia no trecho entre a Praça José de Alencar e a Praia de Botafogo, incluindo as
novas edificações construídas na recém-inaugurada Avenida de Ligação, hoje Avenida Oswaldo
Cruz, ao pé do Morro da Viúva.
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 18
Fig. 12 – Planta Cadastral da
cidade do Rio de Janeiro até os
limites da demarcação feita em
1880, fl. no. 27. Fonte: Arquivo
Geral da Cidade do Rio de
Janeiro; Setor de Documentação
Escrita Especial.
Fig. 13 – Planta Cadastral da
cidade do Rio de Janeiro até os
limites da demarcação feita em
1880, fl. no. 18. Fonte: Arquivo
Geral da Cidade do Rio de
Janeiro;
Setor
de
Documentação
Escrita
Especial.
A ilustração abaixo mostra um projeto dos arquitetos Marmorat & Viret, para o Sr. Miran Latif,
empresário do mercado imobiliário na época, de um conjunto de duas casas geminadas, com
afastamento frontal, edícula nos fundos e um alto padrão de acabamentos como se pode ver
pelos detalhes dos desenhos. Embora geminadas, a distribuição espacial não deixa de
proporcionar uma independência entre as unidades, permitindo ainda assim a privacidade para
cada uma das famílias.
Fig. 14 - Projecto de prédio a construir para o Exmo. Sr. Miran
Latif; arquitetos J. G. Marmorat & A. Viret, 1909; avenida de
Ligação, no. 125/131. Fonte: Arquivo Geral da Cidade do Rio
de Janeiro, Setor de Documentação Escrita.
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 19
Projetos de casas geminadas são encontrados no acervo do Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro, em grandes quantidades, com projetos de vários construtores mas também de arquitetos
da categoria de Marmorat & Viret e de Heitor de Mello.
Quando as casas são isoladas nos lotes, a fantasia a que se referiu François Loyer, citado acima,
toma conta da estética adotada e também da inclusão de novos espaços como o “fumoir”, a sala
de “billard”, o “escriptório” ou gabinete, e, em alguns casos, o “depósito de malas”, que ocupa uma
área do tamanho de alguns aposentos importantes do prédio, demonstrando claramente os
padrões e valores familiares. Um projeto na rua Marquês de Abrantes, no. 18, para o Dr. Francisco
Fajardo foi elaborado pelo arquiteto paulista Ramos de Azevedo, em 1906 (AGCRJ, LO 1906). Em
geral, torreões, mansardas, tratamentos variados nas fachadas são representantes de um mundo
do “faz-de-conta” onde alvenarias de tijolos são revestidas com imitações de pedras, de cerâmicas
variadas, de postigos e de cumeeiras que empregam os mais variados produtos industrializados
estrangeiros ou não.
Fig. 15 - Projecto de prédio a construir para o Exmo. Sr. Dr. Motta Maia; constr. José da
o
Silva Cardozo, 1907; Rua Paissandu, n . 1. Fonte: Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro, Setor de Documentação Escrita.
Em conclusão, incursões nos arquivos cariocas trazem à tona uma riqueza de soluções projetuais
que representam o cosmopolitismo local na virada do século XIX, tão bem caracterizados pela
Belle Époque, claramente expresso em suas formas de morar. Hoje, infelizmente, pouco sobrou
deste acervo, pois outros padrões habitacionais foram adotados substituindo as construções de
villas e cottages em pleno clima tropical. De qualquer forma, as fontes dessas influências estão
mais para os países do centro europeu, mesmo que tenham tido uma miscigenação no próprio
local de origem – ingleses com preferência pelas residências unifamiliares de forma pitoresca e
franceses à inglesa na busca de seus recantos de devaneio, férias e vilegiatura. A influência de
Haussmann, portanto, se restringiu às reformas dos centros urbanos.
Os subúrbios do Rio de Janeiro “Belle Époque”: à francesa ou à inglesa? - p. 20
Referências Bibliográficas:
ABREU, M. A. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLAN/Jorge Zahar, 1987.
ANDREATTA, V.; VALLEJO, M. H. Cidades quadradas, paraísos circulares: os planos urbanísticos do
Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.
BAILLIE SCOTT, M. H. Houses and Gardens. Arts and Crafts Interiors. Londres: George Newnes, 1906)
BARBEDOR, I. et alli. La Côte d’Emeraude. La villégiature balnéaire autour de Dinard et Saint-Malo. Paris:
Ed. du Patrimoine, 2001. Cahiers de l’Inventaire 60.
BENCHIMOL, J. Pereira Passos: um Haussmann tropical: a renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro
no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
BULLOCK, N.; READ, J. The Movement for Housing Reform in Germany and France. 1840-1914.
Cambridge: Cambridge University Press, 1985.
COELHO, E. C. A apoteose de Mme Labat. In: ‒‒‒‒. As profissões imperiais: medicina, engenharia e
advocacia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 192-223.
DAUNTON, M. House and home in the Victorian City. Working-class housing. 1850-1914. Londres:
Edward Arnold, 1983.
DE LOS RIOS, A. M. Mestres, arquitetos e senhorios. O Brazil Artístico, Rio de Janeiro, p. 212-240,
25.mar. 1911.
DYOS, H. J. Victorian suburb. A study of the growth of Camberwell. Leicester: Leicester University Press,
1961.
ÉTIENNE-STEINER, C. Le Havre. Les lotissements balnéaires et urbains. Monuments Historiques, Paris,
n. 189, p. 64-67, out. 1993.
FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil. Aspectos da influência britânica sobre a vida, a paisagem e a
cultura do Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
GRAHAM, Richard. Britain and the Onset of Modernization in Brazil. 1850-1914. Cambridge/London:
Cambridge University Press, 1972.
HILL, O. Homes of the London poor. Londres: Macmillan, 1875.
HOMEM, M. C. N. O palacete paulistano e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. 18671918. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
JENKINS, F. Nineteenth-Century Architectural Periodicals. In: SUMMERSON, J. (ed.). Concerning
Architecture. Essays on architectural writers and writing presented to Nikolaus Pevsner. Londres: Allen
Lane, 1968.
KERR, R. The gentleman’s house or, how to plan English residences, from the parsonage to the palace
with tables of accommodation and cost, and a series of selected plans. London: John Murray, 1865.
LEMOINE, B. Les revues d’architecture et de construction en France au XIXe siècle. Revue de l’Art, Paris,
1990, no. 89, p. 65-71.
LEMOS, C. A. C. A casa brasileira. São Paulo: Contexto, 1989. (Repensando a história).
LIPSTADT, H. César Daly et l’habitation. AMC – Architecture, Mouvement, Continuité, Paris, Jun. 1977,
n. 42, p. [37]-[39].
LOYER, F. Paris XIXe siècle: immeuble et l’espace urbain. Paris: [s/n.], 1981. 4 v.
MANCHESTER, A. K. Preeminência inglesa no Brasil. Trad. Janaína Amado. São Paulo: Brasiliense,
1973.
MARTIN-FUGIER, A. Os ritos da vida privada burguesa. In: PERROT, M. (org.). História da vida privada,
4. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Dir. por P. Ariès e G. Duby. Trad. Denise Bottmann e
Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. v. 4, cap. 2, p. 193-261.
MINISTÈRE DE LA CULTURE DE LA COMMUNICATION. Le Vésinet. Modèle français d’urbanisme
paysager. 1858/1930. Dir. Dominique Hervier. Paris: Imprimerie Nationale, 1989. Cahiers de l’Inventaire 17.
PERCEMENTS et constructions privées. RGATP, Paris, v. XX, col. 178-87, 1862.
PINHEIRO, E. P. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e
Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002.
REIS FILHO, N. G. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1970.
Tarn, J. N. Five per cent philanthropy: an account of housing in urban areas between 1840 and 1914.
Londres: University of Cambridge Press, 1973.
SALGUEIRO, H. A. La Casaque d’Arlequin. Belo Horizonte, une capitale éclectique au XIXe siècle. Paris:
EHESS, 1997.
VAZ, L. F. Modernidade e moradia: habitação coletiva no Rio de Janeiro, séculos XIX e XX. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2002.

Documentos relacionados