A juventude em movimento no Brasil
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A juventude em movimento no Brasil
A juventude em movimento no Brasil: Compartilhando alguns momentos intensos com José, Carlos, Raquel e Werá Mirim Michalis Kontopodis1 Capitulo do livro: R. Ribes, A. E. Lopes & N. Santos (eds) Infância, Juventude e Educação: Práticas e Pesquisas em Diálogo. Rio de Janeiro: NAU. O presente trabalho discute indiretamente questões envolvendo antropologia, geografia da juventude e pedagogia crítica. A narrativa a seguir é baseada numa pesquisa de campo que se deu em diferentes lugares do Brasil nos últimos anos.2 Essa narrativa etnográfica busca apresentar ao leitor diferentes mundos de jovens brasileiros hoje em dia. O foco está em jovens, homens e mulheres, cujos cotidianos estão se transformando dentro do contexto de movimentos sociais e políticos. Quatro cenas de intensidade emocional peculiares serão apresentadas. No texto usarei essas cenas para ilustrar observações mais amplas sobre alguns dos movimentos sociais, urbanos e rurais, contínuos no Brasil (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, movimentos indígenas, Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Educação Popular). Vou explorar brevemente como esses movimentos entendem família e educação; como organizam o espaço, o tempo da vida cotidiana; e como apresentam variadas concepções de juventude. Também vou buscar elementos subculturais no cotidiano dos jovens observados e modos de resistência ao capitalismo na periferia brasileira. A metodologia do estudo segue a abordagem etnográfica pós 1986 (cf. Emerson, Fretz, & Shaw, 2003; Faubion & Marcus, 2009; Marcus, 1986, 1998) com foco especial nos conceitos de juventude, resistência e diversidade (cf. Friebertshäuser, 2003; Hall & Jefferson, 1976). Meu trabalho foi especialmente inspirado por discussões recentes sobre a antropologia das emoções (Tonkin, 2010; Wulf & Gebauer, 2010). Também teve como inspiração as escritas etnográficas experimentais de M. Taussig (2004, 2006). Todos os nomes no artigo são pseudônimos utilizados com o intuito de manter o anonimato das pessoas. Pela mesma razão, 1 Professor Assistente do Departamento de Pesquisa e Teoria da Educação da Universidade Livre de Amsterdam (VU). 2 Essas observações etnográficas não seriam possíveis sem a ajuda, a participação e a hospitalidade de muitos colegas brasileiros que há tempo atuam em diferentes campos, permitindo-me acesso, fornecendo dados e visões que garantiram a validade das minhas observações: Denise Comerlato, Johannes Doll, Erineu Foerste, Gerda Margit Schütz Foerste, Ana Lopes, Marisol Barenco de Mello, Ozirlei Teresa Marcilino, Marscia Mascia, Elzira Yoko Uyeno, Fernanda Liberali, Cecilia Magalhães, Gilton Mendes e Jackeline Rodrigues. Devo um agradecimento especial ao diretor, aos professores e aos alunos da Escola Porto Alegre, assim como aos do Centro Municipal de Educação de Trabalhadores em Porto Alegre, à Berenice Miotto Rodrigues dos Santos e as pessoas anônimas que participaram da minha pesquisa. nenhuma informação específica foi dada sobre os locais e/ou períodos nos quais a pesquisa aconteceu, assim como as informações sobre idades, são aproximações. José, na escola Porto Alegre José olha rapidamente para cima quando eu entro e volta ao trabalho em seguida. A sua paciência sempre me chamou atenção. Eu o observo novamente de pé, seu corpo está inteiro voltado para a escrivaninha, e suas mãos deslizam, de forma suave ou firme, conforme necessário, pelos pedaços de papel, cola, cordas de metal, tesouras, folhas secas e outros materiais com os quais ele trabalha. Só consigo ver seu rosto quando ele se vira para procurar, se ele precisa de algo da outra mesa. Ele, então, move-se rapidamente, mas levemente no chão de madeira, procura por uma gaveta e leva o que precisa; ele faz isso sem olhar para mim ou para os outros presentes na sala, retornando rapidamente ao trabalho. José lá está quase todo o dia – o trabalho progrediu e cadernos de capa dura, decorados com bom gosto, tem sido produzidos. Márcia, a professora, permanece invisível na maior parte do tempo, mas às vezes ela ajuda brevemente, comentando ou ajeitando os cadernos recém-produzidos. A sala não é muito bem iluminada e tudo lá é antigo – mesas, armários, escrivaninhas, cadeiras. Até mesmo as paredes deveriam ter sido pintadas há muito tempo atrás. Uma quantidade considerável de ferramentas e alguma maquinaria (para cortar ou prensar papéis, etc.) estão espalhadas, não há uma decoração específica. Eu olho pela janela, para o pátio da escola – apesar de ser horário de intervalo, não há muitos alunos por lá. A assembléia geral da escola, onde alunos e professores têm direitos iguais a voto, começa após o intervalo, às 9hrs, em alguns minutos. José não vai, ele prefere trabalhar no laboratório de trabalhos com papel. Estou impressionado como ele lida bem com todas as ferramentas e os materiais, e como gosta muito dos seus produtos – capas duras para livros e cadernos em todas as formas e cores possíveis, decoradas com desenhos a tinta e flores secas. A disciplina de artes representa uma das matérias mais importantes desta escola, que é baseada nos princípios da terapia comunitária (Barreto, 2005) e na pedagogia freireana. José tem também que aprender matemática, português e história, assim como informática, educação política e ambiental e outras disciplinas que são decididas por uma assembléia geral e ensinadas através de um projeto interdisciplinar temático. Ele é um aluno de 16 anos de idade. Assim como todos os outros estudantes – que tem entre 13 e 24 anos –, a José é oferecido um nível básico de educação que se aproxima mais ao que, em outros contextos, seria conteúdo dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Cerca de 100 alunos estão matriculados e metade deles freqüenta regularmente. A escola onde eles estão é uma escola para estudantes sem-teto consideravelmente famosa em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul/Brasil: a Escola Porto Alegre (EPA). A Escola Porto Alegre surgiu no contexto da educação popular, um abrangente movimento brasileiro de educação pública para todos (Kontopodis, 2009). Esta escola é, em muitos aspectos, uma escola aberta: ela é, antes de tudo, aberta no sentido de que o aluno é bemvindo a escola, mas não é obrigado a ficar lá. A escola é também, em muitos aspectos, aberta a estudantes que, em outros lugares, se sentiriam marginalizados. Durante a tarde, ela é aberta aos moradores da vizinhança, tem abertura quando se trata da participação direta da escola em conselhos da cidade, bem como na colaboração com outras instituições – mesmo as internacionais. Além disso, desde o início (1995) a escola esteve aberta a qualquer possibilidade de mudanças, em quaisquer aspectos – que tem sido sugeridas, discutidas e decididas em assembléias gerais onde todos os estudantes e professores que estejam interessados participam. Fiquei impressionado ao perceber que os professores haviam lido muito e eram bem informados sobre uma ampla gama de assuntos: de Foucault e Deleuze & Guatarri, a pesquisas e discussões sobre a educação brasileira contemporânea, como, por exemplo, sobre a etnomatemática ou a formação de professores. Apesar de mais escolas desse tipo terem sido criadas em Porto Alegre há alguns anos, esta é a única escola que manteve esta abertura em todos os níveis – todas as outras escolas semelhantes se tornaram menos abertas, ou menos radicais no seu modo de organização. No entanto, a escola fecha durante a noite (para alunos e professores) e, embora exista uma assembléia geral com uma participação igual de professores e alunos, são os professores que trabalham lá permanentemente que constituem o "coração" da escola. Quando todas as aulas do dia terminam, os alunos ainda são autorizados a permanecer na escola até as 19hrs para trabalhar com cerâmica ou papel nos vários laboratórios. Depois disso, a escola fecha. Onde José dormiu na noite anterior é uma questão em aberto: ele não tem família, ele não tem um lar, ele não tem nenhum outro provedor de comida ou segurança. Quando as portas da escola são abertas para os alunos, ele cruza rapidamente o pátio e segue para os quartos para tomar um banho. Como é bom o fato de ter sempre água quente e eles poderem lavar suas roupas na escola! Este é um dos poucos lugares onde José pode tomar banho. É também um dos poucos – se não o único – lugares onde José pode tomar café da manhã: pão, manteiga, geleia e café. Este também é servido de graça para os alunos e pago pelo município de Porto Alegre, como também é o caso do almoço e dos lanches servidos ao longo do dia. “– Como vai?”; pergunto a ele: “– Bem.”. José acaba de receber a quantia de 50 reais pelos cadernos que ele vendeu através da escola no mês passado. Ele ainda coleta latas e outros materiais recicláveis das ruas e os vende para complementar sua renda. Não sei ao certo quais são suas despesas. Ele não tem uma casa e não pode pagar um telefone celular; ele faz suas refeições na escola, onde também recebe algumas roupas usadas e qualquer outro item que possa ser doado à escola pela vizinhança. Entre os estudantes da escola, é comum a prática do tráfico de drogas e da prostituição, por homens e mulheres – mas não é o caso do José, ele é muito dedicado à produção de capas de papel e, aos poucos, está criando uma rede de clientes para os seus produtos. Talvez um dia ele possa ganhar a vida com isso. Eu continuo observando a forma como a qual ele corta o papel. Ele está muito concentrado. São momentos de intenso silêncio, de trabalho e, talvez, de alegria... Carlos, em um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Espírito Santo Carlos, o pai do Carlos e eu estamos sentados dentro da casa deles conversando sobre assuntos aleatórios. Todos nós comemos bem: galinha criada por eles, arroz e suco de fruta e, como de costume, descansamos relaxados. Está quente e estamos vestindo roupas leves e simples: shorts, camisetas e chinelos. Pode-se dizer que nenhum de nós se esforçou muito para combinar cores ou estilos. São mais ou menos 15hrs e não há trabalho para ser feito – nem nos campos, nem na escola, pois estamos no verão. Fernanda, irmã de Carlos, de sete anos de idade, quer minha atenção e fica inventando uma série de brincadeiras. Eu dou a ela minha câmera para brincar, ela sorri alegremente e some para fora da casa. Eu observo a enorme TV de tela plana da família, que eu vi em todos os lares brasileiros onde eu estive – em apartamentos de intelectuais, favelas ou casas dos Trabalhadores Sem Terra. Tem uma mesa para a TV, bem luxuosa, com espaço para o CD player e as caixas de som, que também parecem novas e chiques. O sofá me lembra o sofá da sala de estar de classe média dos meus pais. Por um momento eu esqueço onde estou. Mas então os pôsteres pendurados na parede atrás do sofá chamam minha atenção. Eles retratam momentos históricos da luta dos Trabalhadores Sem Terra. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil (MST3) é considerado o maior movimento contra-hegemônico do Brasil, e um dos movimentos sociais radicais mais importantes da América Latina. Estima-se que o movimento conte com o apoio de 1,5 milhões de membros sem terra de todas as idades e grupos étnico-raciais possíveis organizados por todo o Brasil (Karriem, 2009). O assentamento onde estou foi fundado há 15 anos, e as árvores já são grandes o suficiente para produzir frutas o ano todo. É um dos assentamentos mais ricos e vigorosos do Movimento Sem Terra. As outrora marginalizadas e analfabetas populações urbanas e populações rurais que compunham o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra tinham, no princípio, o intuito de plantar de forma ecológica e diretamente democrática, mas não somente este objetivo: eles também ocuparam universidades próximas e fundaram escolas dentro dos assentamentos, criaram programas de treinamento para que pessoas dentro do movimento se tornassem professores nestas escolas (da Silva, 2008; de Andrade, 2008; Farias, 2008; Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2009; Kane, 2000). Em cooperação com universidades locais, foi criada uma série de programas e instituições que permitem que Trabalhadores Sem Terra se tornem professores em Escolas Sem Terra (Diniz-Pereira, 2005; Foerste & Kontopodis, 2012). Carlos está com 17 anos de idade. Ele freqüentou a escola primária em uma escola pública dentro do assentamento, que foi construída e administrada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Depois, ele iniciou o ensino médio numa escola que fica em uma cidade vizinha, pois não havia escola secundária dentro do assentamento. A escola secundária onde ele estuda é uma escola semi-pública – bem comum na região – e coordenada pelos Jesuítas. Lá é aplicada uma pedagogia específica chamada pedagogia da alternância. Carlos está certo de que em um ano conseguirá uma vaga na universidade regional para estudar agronomia. Seu pai fala sobre os planos de Carlos. Carlos ouve, ri, mas deixa que seu pai explique tudo. Então ele se recosta por um tempo, sonha acordado. Eu observo, por um 3 Para informação geral sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, sua história e aspirações políticas e econômicas, em inglês ver Kane, 2000. Pizetta & Souza (2005) também oferecem apresentação detalhada, em português, sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Espírito Santo e suas diversas fases: seus primeiros passos entre 1983 e 1985; a formação do movimento no Espírito Santo entre 1985 e 1988; os conflitos e repressões que se seguiram entre 1989 e 1991; novas lutas entre 1992 e 1994; o estabelecimento e a expansão do movimento entre 1995 e 2002; e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Espírito Santo entre 2003 e 2005, durante o governo Lula. A cena apresentada aqui ocorreu no ano de 2010 e explora o desenvolvimento que segue a história apresentada por Pizetta & Souza. Para uma análise mais detalhada sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em inglês, e para uma longa lista de referências e outras informações relevantes, ver também a publicação online de Kontopodis, 2012. momento, a expressão sorridente do pai de Carlos – um sorriso que, de alguma forma, transmite orgulho e serenidade. Lembro-me de minha conversa com ele: Michalis: Você vai voltar para o assentamento depois que terminar os estudos? Carlos: Eu não sei o que eu vou pensar quando este momento chegar, em alguns anos, mas acho que sim. M: É bom viajar enquanto você é jovem – assim como estou fazendo agora – e também viver na cidade por alguns anos, mas no longo prazo, eu também quero voltar para a ilha onde eu nasci. C: Sim, eu não gosto de cidades; disse Carlos rindo. Carlos acaba de receber uma visita, uma jovem do assentamento, que eu já vi algumas vezes por aqui. De uma forma simples, devagar, mas nem discreta ou indiscretamente, eles saem para um passeio. “Aonde foi o Carlos?” “Eles sempre se encontram nesse horário,” responde o pai dele, não respondendo a minha pergunta. Depois de um tempo o pai de Carlos diz que ele vai me mostrar a bomba hidráulica, por conta do meu interesse em aprender mais sobre o emprego de tecnologias agrícolas no assentamento. Nós andamos em direção a sua motocicleta, ele monta e espera que eu pegue a minha câmera de vídeo e qualquer outra coisa que eu ache que vá precisar. Nós passamos pelo pode-se dizer ser a “estrada principal” do assentamento, que conecta a vila onde as pessoas moram à escola e aos vários campos de trabalho. Nós passamos na frente da escola. Vejo algumas casas com quintal construídas aqui e ali. Percebo que não há uma praça “central”, onde as pessoas se encontram como há em pequenas cidades européias. O lugar, de certa forma, mais “central” e “público” é a escola – onde, de fato, todos os moradores se reúnem para discutir temas comuns a todos. Em frente à escola, há um campo de futebol provisório, ele não é muito usado pelos adultos. Eu sei que logo passaremos por um grande lago – é artificial, mas grande suficiente para se encaixar bem na paisagem de colinas e campos verdes que nos cercam. Apenas alguns segundos depois eu já consigo ver o lago e, vejo de relance, Carlos e sua namorada sentados numa pedra à direita, como se estivessem sentados lá por horas e horas. Eles não se movem e estão em silêncio, apenas apreciando a vista para o lago, observando atentamente a paisagem. Foto 1: O lago que Carlos e sua jovem namorada estavam contemplando. (Foto copiada pelo autor. Foto original: cortesia do pai do Carlos) A estrada passa entre eles e o lago, nós passamos em frente a eles, ninguém parece estar surpreso, ninguém se move, ninguém se incomoda. Parece bem claro como são as coisas, e também é claro que ninguém pára para dizer “oi”. Por um momento, eu olho para o rosto de Carlos, ele sorri tranquilamente. Raquel, numa ocupação do Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), em Porto Alegre É de manhã e chego à ocupação onde vive Raquel, uma jovem de cerca de 20 anos. Ela está me esperando com um sorriso no rosto e com sua filha de um ano e meio nos braços. Hoje todos na casa têm muito a fazer, uma festa com muitas atividades está sendo organizada para o sábado seguinte: música ao vivo, projeção de filmes, uma peça de teatro para as crianças, etc. Raquel fica comigo por um momento depois tenta coordenar tudo e corre de um lado para o outro. Eu converso um pouco com Newton, outro jovem morador, e ele me explica como é importante para a ocupação o amplo apoio da comunidade local. Eles precisam de muito apoio agora, especialmente na luta contra a violência policial, que aumentou recentemente: o município quer tomar o local e uma favela próxima para construir espaços de entretenimento a serem usados por turistas na Copa do Mundo 2014. A festa que está por vir deve contribuir para conseguir este apoio, para informar as pessoas sobre o movimento e criar outras redes de solidariedade. Preparar tudo a fim de causar uma boa impressão à comunidade local durante a festa requer muito trabalho, mas todos parecem estar entusiasmados com o evento de uma forma geral e muito dispostos a participar das tarefas. O clima é ótimo. Raquel parece ser a mais entusiasmada de todos – e todos parecem confiar nela e em seu papel de coordenadora. Como a maior parte das pessoas aqui, ela se mudou para esta ocupação há cerca de um ano. Antes ela vivia em uma favela com seu marido, seu bebê e outras pessoas. Eles não tinham espaço para sua “nova” família, então saíram de lá. Nós começamos a arrumar o local. Ao mesmo tempo, algumas pessoas abrem os portões dos fundos do terreno e recebem muitas outras, que chegam e param seus carros lá durante o dia. Esta é uma das principais fontes de renda das famílias que vivem nessa ocupação, apesar de também venderem camisetas e organizarem festas. Com isso eles, de alguma forma, dão conta de suas despesas com comida, roupas, telefone, internet (eles não pagam por eletricidade nem água; desviam direto da rede pública de luz e água). Raquel não tem muito tempo para ajudar com tudo, pois ao meio dia ela vai para a escola - outra estabelecida no contexto da educação popular. O CMET, Centro Municipal de Educação para Trabalhadores, é uma escola enorme que funciona em três turnos (8h-12h; 14h-18h; 18h30-22h30) num pequeno prédio. Raquel freqüenta a escola de educação básica por vontade própria/voluntariamente, ou seja, cursa o primário. O CMET tem algumas semelhanças com a Escola Porto Alegre, mas é maior e – como indica o nome – destinada a trabalhadores, de todas as idades, não apenas a jovens. A escola tem muitos alunos com necessidades especiais (aproximadamente 1/5), grupos de estudantes de todas as idades, aproximadamente 86 professores e um total de 1000 alunos. A maior parte dos alunos tem entre 18 e 36 anos, apesar das idades variarem de 15 a 88 anos. As artes – o teatro em especial – desempenham um papel central no currículo aqui, e as faltas só contam para os alunos com menos de 18 anos. O CMET é organizado nos princípios da solidariedade, da atuação civil e autonomia moral. Lá, Raquel se sente respeitada e bem vinda – única razão pela qual ela não freqüenta nenhuma outra escola, explicou. É hora de uma pausa para um café. Nós vamos para uma grande sala central da ocupação. Raquel segura um pedaço de papel com anotações, e logo começa a resumir tudo o que precisa ser feito por todos – 23 famílias que moram lá –, e quem é responsável pelo que: decoração, comprar e transportar bebidas, cozinhar, montar o sistema de som, fazer cópias dos flyers, etc. Me atento ao grafite desenhado por todo canto, e também aos pôsteres que anunciam diversos eventos políticos. De alguma forma, esta cena se adapta muito bem ao estilo meio punk da maioria das pessoas daqui: jeans com buracos, cortes de cabelos punks vermelhos e verdes, anéis, tatuagens, camisetas vermelhas e pretas, propaganda do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). Quando morar é um privilégio, ocupar é um direito está escrito na parede – é o principal lema deste jovem movimento brasileiro, considerado por alguns como a versão urbana do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Foto 2: A grande sala central da ocupação (foto do autor) Todos prestam atenção no que Raquel diz. Eu gosto da sua calma, otimismo e engajamento. Ela sorri o tempo todo, responde todas as perguntas calmamente e ainda cuida do seu bebê, que carrega consigo e brinca de vez em quando. Eu aproveito a cena e me lembro de reuniões similares que presenciei em ocupações diferentes na Grécia e na Alemanha, onde vivi nos últimos anos. Werá Mirim, numa região da comunidade indígena Guarani, no Espírito Santo É de manhã, mas não acredito que a hora seja, em nenhum aspecto, importante. Sento numa roda no chão em frente a uma casa (uma construção de madeira e terra, com o telhado de metal, para que a água da chuva não entre) com Werá Mirim4 e alguns outros jovens homens de 16 anos de idade, aproximadamente. Werá Mirim segura um violão e um caderno com versos e anotações escritos a mão. Ele ri, tenta tocar e cantar uma das músicas – mas, como ele mesmo diz, ele não sabe nada e não toca bem mesmo. Ele não está ensaiando, apenas tocando sem compromisso, para passar o tempo. A música não é Guarani; é pop brasileiro e americano. Eles falam uma mistura de português e um dialeto específico com algumas palavras em Guarani. Ainda mais significativo que o idioma que falam, é o silêncio, que inclui “ouvir” o outro ficar em silêncio. O violão passa de mão em mão, os outros jovens também tocam, até que ele volta para Werá Mirim. Eles também riem, tentam tocar e cantar uma das músicas – mas todos eles dizem que não sabem tocar nada e que só estão passando o tempo. Eu os encorajo a cantar e tocar outras músicas, que eles ainda não tentaram tocar – eles riem. O tempo passa; Werá Mirim volta a tocar. Para mim, parece que a cena se repete indefinidamente. Todos estão relaxados, não há nada específico para fazer ou sobre o que falar, não está muito calor, outros moradores transitam naturalmente e passam por nós, assim como algumas galinhas e um cachorro, mas minha impressão é de que nada se move – nem mesmo o tempo... Os jovens não parecem se importar com nada. O violão continua a ser tocado com pouca conversa na roda, eles estão rindo porque Werá Mirim cantou uma música engraçada de um jeito esquisito. Em algum momento dois dos jovens desaparecem. Eles foram fazer xixi na floresta em vez de usar os banheiros construídos pelo Estado há alguns anos atrás, que dão a impressão de nunca terem sido limpos. 4 Os Guaranis foram proibidos de usar oficialmente seus nomes e o próprio idioma Guarani durante a ditadura – então, é freqüente que eles tenham dois nomes, um para eles e um para o Estado. O Guarani também era proibido enquanto idioma nas escolas. Apesar de essa prática ter continuado nos anos 80, ainda hoje eles têm um nome não Guarani e um Guarani, e eles usam os nomes diferentes em diferentes contextos (dependendo da presença de uma pessoa não-Guarani e outros fatores). Esse nome é comumente usado por homens Guaranis e significa algo como “jovem sagrado”. O idioma falado é o português índio – com um dialeto particular e algumas palavras e estruturas em Guarani, o que nem sempre entendo. Eu sei que alguns outros jovens – entre eles o irmão de Werá Mirim – se mudaram para uma cidade vizinha há um ano, enquanto, há alguns anos, todo um grupo de moradores da aldeia – incluindo o pai biológico de Werá Mirim – se mudou para outra floresta onde a água, a vegetação e a comida eram, supostamente, mais abundantes. Werá Mirim não os viu desde então, mas isso parece ser bem normal – só me contou porque perguntei. No que pode ser considerado como a “praça central” – a dois minutos de onde estamos sentados – acontece uma assembléia para discutir assuntos que dizem respeito à identidade política e a manutenção da cultura Guarani. Os jovens com que estou não parecem nem um pouco interessados, também não são obrigados a participar. Parece que qualquer coisa que pudesse ser um “problema atual” ou um “objetivo futuro” – tentar a sorte na cidade apenas por curiosidade, mudar-se para outra localidade rural por falta de recursos, serem ameaçados pela cultura do “homem branco”– está bem longe de ser uma preocupação. Esperar-se-ia que os mais novos freqüentassem a escola pública, cujo prédio foi construído pelo governo brasileiro a uma curta distância, e funciona somente para eles, mas eles não estão muito interessados. O cacique espera que eles participem dos vários rituais que fazem parte da religião Guarani, mas os rituais acontecem principalmente no entardecer e durante a noite, e a aldeia ainda não tem uma igreja Guarani. Os jovens tampouco parecem interessados nestas atividades. Eu olho para Werá Mirim e observo seu moicano. Penso no cacique, a pessoa mais velha da aldeia, que critica fortemente os “seus” jovens por não aceitarem seus princípios e estarem sob influência da moda do “homem branco”, por adotarem cortes de cabelos e estilos que não são Guarani. Ao mesmo tempo, fica bem claro para mim que nenhum jovem branco teria o estilo de Werá Mirim. Apesar de poder ser uma “nova tendência” entre os Guaranis, é Guarani – não tradicional, mas uma subcultura Guarani. No entanto, isso ainda marca a adversidade entre os jovens Guarani e seus parentes. Continuamos tocando violão da forma como eu descrevi. Provavelmente, passamos duas horas lá, relaxados; outros moradores – as galinhas e o cão também – circulam, passam por nós, mas para nós isso não faz diferença. Somos convidados a comer na casa de uma mulher que cozinhou para nós, mas estamos todos sem muita fome. Sem muita discussão fica decidido que vamos comer mais tarde. A comida do almoço seria, como de costume, milho, batata e mandioca (que às vezes é acompanhada por alguma ave ou animal que tenha sido caçado). Foto 3: A casa onde estávamos sentados em frente tocando violão (foto tirada pelo autor) Não há necessidade de ter pressa para nada. Depois de um tempo, um rapaz sugere irmos nadar e – novamente sem muita discussão – todos se levantam e vão a uma lagoa próxima. Eles me perguntam se eu gostaria de me juntar a eles. Eu digo “sim”.5 Panorama: Juventude periférica em movimento Os jovens os quais o presente trabalho se refere são, por um lado, “pessoas comuns” no sentido do qual Certeau (1984) fala sobre o “homem comum” (e mulher), a pessoa normal, sobre a qual a história geralmente não escreve e que compõem a maior parte da população que participa da vida cotidiana. No entanto, os jovens sobre os quais este trabalho fala são radicais. Diferentes do “normal”, tal quais jovens homens e mulheres “comuns” da classe média brasileira – até mesmo para aqueles que se percebem como “subculturais” –, os jovens que eu estudei aqui, vivem em espaços sociais constituídos por movimentos sociais bastante radicais. Compartilhando bens comuns, aproveitando a solidariedade entre si, sendo 5 Para uma análise mais ampla e informações mais gerais sobre os Guarani, ver Tangerino, 1996. ameaçados por políticas dominantes e, literalmente, tentando sobreviver a alguns aspectos do seu dia a dia que marcam o que os distinguem da classe média brasileira e das classes mais altas. Essas juventudes não são apenas constituídas, mas também constitutivas dos movimentos sociais em questão. Toda vez que Carlos ou Raquel dão um jeito de sair do que poderia ser o “esperado” ou “normal” do ponto de vista do brasileiro comum, eles questionam as relações de poder estabelecidas. Mas também, toda vez que conseguem viver suas vidas “normalmente”, tendo sentimentos como calma, entusiasmo, ou amor, parece que se desfazem as margens onde eles são colocados. Esses jovens constituem uma política radical que é exatamente a essência do que pode ser visto como um “movimento” – fazer parte do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, dos movimentos indígenas ou dos movimentos urbanos de educação para todos. Os jovens aos quais este trabalho se refere são também “distintos” entre si (a juventude do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra não é a juventude urbana sem teto, não está participando do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, tampouco são a juventude Guarani). É bem interessante quão diferentes esses movimentos são uns dos outros – ainda que todos ocorram no Brasil contemporâneo. Eles são heterogêneos quando se trata da sua forma de produção e divisão do trabalho, estruturas familiares, sua organização do tempo e do espaço, assim como em suas formas de percepção da sua própria identidade em relação a outras (é o Marxismo que reúne os jovens de etnias e cores tão diferentes no contexto do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, enquanto a etnia – Guarani – é exatamente o que pontua a distinção dos movimentos indígenas). A participação de jovens na construção do espaço social e pedagógico onde vivem também varia de acordo com os diferentes movimentos. Por exemplo, pode-se dizer que jovens sem teto são “recepcionados” em suas escolas, que são coordenadas por professores engajados. Os jovens da ocupação em Porto Alegre, no entanto, constituem por si só o espaço social onde eles vivem, e em relação a todas as esferas possíveis: a negociação com autoridades, a realização de consertos/reformas, o planejamento espacial e a organização temporal, lidar com alimentação e higiene. Ao mesmo tempo em que os jovens Trabalhadores Sem Terra lutam para fundar escolas publicas para todos dentro dos assentamentos, os jovens Guaranis no Espírito Santo, em contraste, são muito distantes de qualquer forma da instituição “escola”. Papadopoulos et al criticaram recentemente a ênfase das ciências sociais na macro política e, mais tarde, na micro política (Papadopoulos, Stephenson, & Tsianos, 2008; Stephenson & Papadopoulos, 2006). Eles sugerem o uso do termo “política do outsider” para descrever os esforços do dia a dia – freqüentemente, apenas guiados pelo instinto de sobrevivência, sem uma única inspiração ideológica – das pessoas que vivem suas vidas “fora” das organizações políticas, econômicas e pedagógicas atuais. Essa política não apenas de “inserir”, mas também de transformar as fronteiras entre “centro” e “periferia”, muda a organização das todas as relações sociais. Esse “movimento” transforma de forma irreversível os alicerces das organizações políticas, econômicas e pedagógicas, e produzem novas definições do que é “democracia” ou do que é considerado um “cidadão”, por exemplo. De acordo com Papadopoulos et al, uma coletividade surge, sem qualquer necessidade de seus integrantes se tornarem mais parecidos uns com os outros, e sem nenhuma organização central que aplique o mesmo princípio a todas ações. A abordagem de Papadopoulos et al oferece ferramentas para a compreensão da experiência do dia a dia dos jovens aos quais este trabalho se refere como singulares e, ao mesmo tempo, múltiplos – o que implica uma ênfase em processos e não nas diferenças estruturais. Os aspectos singulares e concomitantemente plurais da experiência do dia a dia se manifestam nas paisagens afetivas onde o cotidiano dos jovens se revela – aos quais tentei apresentar em minha etnografia. Arjun Appadurai, em sua obra Modernity At Large (1996) fala sobre cinco paisagens diferentes: étnicas, midiáticas, tecnológicas, financeiras e ideológicas, que oferecem base para uma nova subjetividade global de fluidos complexos, sobrepostos, amorfos e disjuntos de etnias, imagens da mídia, capital, ideologias e tecnologias que transitam o nosso mundo e além de qualquer divisão centro/periferia. Na minha visão, e pensando em José, Carlos, Raquel e Werá Mirim, poderíamos falar em paisagens afetivas marcadas por intensos atributos emocionais, que ao mesmo tempo condensam e transcendem a subjetividade, e que são singulares e múltiplas – constituídas e constitutivas do que pode ser visto como uma “juventude em movimento”. Indo além da pesquisa típica na área da psicologia da educação ou da pesquisa antropológica clássica de campo, seria importante compreender essa juventude em movimento e, eventualmente, fortalecer esse tipo do “movimento”. Aqui está toda minha esperança. Referências Bibliográficas Appadurai, A. (1996). Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization. Minneapolis and London: University Of Minnesota Press. Barreto A. (2005). Terapia Comunitária passo a passo. Fortaleza: Gráfica LCR. da Silva, J. F. (2008). Escola Itinerante Paulo Freire: Experiência de Educação Cadernos da Escola Itinerante MST, 1(2), 7-24. de Andrade, A. (2008). 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