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Senzala da antiga Fazenda Lapa: um estudo de caso Silvia Amaral Palazzi Zakia Os edifícios que abrigavam os negros nas propriedades rurais de café, as chamadas senzalas, têm sido pouco valorizados na preservação de nosso patrimônio arquitetônico. Poucos são os exemplares que se encontram preservados. As senzalas tenderam a desaparecer deixando no esquecimento a "vergonha" do uso de outrora. As justificativas para esse fato são variadas: o próprio desuso a partir da abolição da escravidão, as várias reformas para adaptação da construção a novas funções e a pouca importância concedida a esse tipo de edificação até um passado recente. Até a década de 80, a idéia de patrimônio arquitetônico estava relacionada a bens de excepcional qualidade artística, conceito recentemente ampliado, abrangendo também os edifícios considerados testemunhos históricos da nossa memória coletiva. Parte integrante do complexo arquitetônico das fazendas de café, a senzala é o tema desse artigo, especificamente a senzala da Fazenda Lapa, curiosamente a única edificação remanescente do conjunto original da fazenda. A partir da segundo metade do século XIX, Campinas foi o principal centro produtor de café do país. A cidade contava, à época, com um contingente de 13.412 negros - mais da metade da população da cidade. A maioria deles vivia na zona rural, nas senzalas das fazendas de café. A Fazenda Lapa, propriedade de Francisco Ignácio do Amaral Lapa e Petronilha Egydio de Souza Aranha, foi fundada em 1849 em terras desmembradas da Fazenda Mato Dentro, doadas ao genro de Francisco Egydio de Souza Aranha por ocasião do casamento de sua filha. Até a primeira década do século XX, todo o complexo arquitetônico que dava suporte às atividades agrícolas da fazenda permanecia íntegro (sede, dependências, quadrado, tulha, terreiros, cocheiras, etc). Após sucessivas trocas de proprietários, o conjunto de construções foi sendo alterado. Em 1948, com a venda da fazenda à Sociedade Hípica de Campinas, parte das edificações foi demolida para dar lugar a outras construções. A sede da fazenda e suas dependências foram demolidas, restando apenas do original um dos lados do quadrado da senzala, a capela e as palmeiras imperiais. Por meio das imagens resgatadas pelo memorialista Celso Maria de Mello Pupo e da foto de Guilherme Gaesnly (1905), foi possível reconstituir o complexo cafeeiro da Fazenda Lapa. O conjunto era formado por várias edificações agenciadas em relação ao terreiro de secagem do café: o novo "personagem" arquitetônico das propriedades rurais. A sede, como de costume nas fazendas da região, estava implantada a meia-encosta, de forma que o senhor pudesse, do pretório ou da varanda, avistar e controlar a propriedade. A senzala da Fazenda Lapa obedece a uma tipologia típica das fazendas de café da região: em forma de quadra ou quadrado. Essa configuração espacial favorecia tanto o abrigo de um grande número de escravos como um controle eficiente. Essa conformação em quadra guarda semelhança com as senzalas dos engenhos cubanos¹, que também possuíam grande número de escravos (entre 400 e 600 negros). Interessante ressaltar que a configuração das senzalas dos engenhos nordestinos é, em geral, em linha, o que torna a quadra uma tipologia específica da região sudeste. O edifício da senzala era cercado por muros e possuía poucas aberturas externas. Um único portão fazia a ligação entre o pátio interno e o exterior. A análise do edifício e o importante relato dos viajantes são fontes para o entendimento do modo de vida daqueles que nele habitavam. Segundo esses relatos, mal anunciada a madrugada, o sino despertava os negros. Em fila, apresentavam-se ao feitor para receber as ordens e serem contados. Após o café e a contagem matinal, o portão era aberto e os negros escoltados até a roça, onde iniciavam a jornada de trabalho que terminaria por volta das onze horas da noite. O almoço servido em cuias na própria roça consistia de feijão, angu e farinha de mandioca, às vezes com carne seca, abóbora ou inhame. Às quatro horas, uma pausa para o café ou cachaça. À noite, o trabalho prosseguia no terreiro, no paiol ou no engenho de mandioca até dez ou onze horas. O dia estava encerrado quando o feitor recolhia os negros às senzalas, após a contagem e uma ceia ligeira. A senzala era um grande dormitório coletivo com alas separadas por sexo e algumas divisões para casais. Os filhos ficavam com as mães. Não havia mobiliário, pois eram poucos os pertences. Dormiam em tabiques e guardavam duas ou três mudas de roupas mais um cobertor recebidos do senhor uma vez por ano. O chão da senzala era de terra batida e a cobertura de sapé ou telha de barro. O sistema construtivo da senzala era o mesmo da sede: paredes externas de taipa de pilão e as poucas divisões internas em pau-a-pique. Eram poucas as aberturas externas para a ventilação, sempre com grades. Não havia instalação sanitária na sede da fazenda, tampouco nas senzalas. Todos os dejetos eram recolhidos num barril e lançados num lago ou ribeirão mais próximo. As más condições higiênicas das senzalas, onde se aglomerava, muitas vezes, uma população superior à capacidade dos edifícios, agravavam o índice de mortalidade entre os negros. A edificação remanescente da senzala da Fazenda Lapa é modelo da tipologia de senzala das fazendas da região. Edifício alongado em forma de quadra dividido em sucessivos lanços, coberto por um único telhado de duas águas; assentado sobre o chão, as poucas envasaduras voltavam-se para o pátio interno, onde possivelmente havia um chafariz e um tronco. As envasaduras eram em madeira. A senzala foi restaurada recentemente em conseqüência de um desmoronamento parcial do telhado. Até então, todo o madeiramento da cobertura era original, mas estava comprometido pela podridão e ação de cupins. Algumas paredes externas já não eram mais de taipa de pilão. Por conta das inúmeras intervenções no edifício, a entrada original do portão foi fechada e novas aberturas foram realizadas, descaracterizando-o. O restauro ² realizado em 1999 resgatou a entrada original do quadrado e preservou as paredes de taipa remanescentes. O edifício é hoje um documento vivo da história local, um exemplar que sobreviveu ao tempo e às sucessivas mudanças de uso. 1. Barracones senzala dos engenhos Batteyes conjunto de edificações do engenho 2. Restauro realizado pelo arquiteto M cubanos; cubano. Cartum. Referência bibliográfica: Zakia, Silvia Amaral Palazzi. Projeto de restauração da edificação remanescente da senzala da antiga Fazenda Lapa, hoje pertencente à Sociedade Hípica de Campinas. Trabalho apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Curso de Especialização em Patrimônio Arquitetônico: teoria e projeto. Campinas, 1999. Pupo, Celso Maria de Mello. Campinas, Município no Império. São Paulo: Imprensa Olympio, 1977. Mendes, J.E. Teixeira. Lavoura cafeeira paulista (velhas fazendas do município de Campinas). Campinas: Instituto Agronômico do Estado, 1947. Silvia Amaral Palazzi Zakia; Arquiteta Especialista em Restauro do Patrimônio Arquitetônico Mestre em Urbanismo. [email protected]