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62 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. ÉTICA E EDUCAÇÃO JESUÍTICA NO SÉCULO XVI: FORMAR SOLDADOS PARA CRISTO ETHICS AND EDUCATION JESUÍTICA IN CENTURY XVI: TO FORM WELDED FOR CHRIST FARIA, Marcos Roberto de.1 RESUMO O artigo que se segue pretende discutir as bases teóricas sobre as quais se fundamentava a prática jesuítica no século XVI. Para tanto, faz-se uso do texto dos Exercícios Espirituais de Loyola e das Constituições jesuíticas de 1556. O pressuposto fundamental do presente trabalho situa-se na constatação da importância desses documentos para se conhecer as bases das concepções éticas e pedagógicas da formação jesuítica nesse período. O objetivo do trabalho é, pois, apresentar o itinerário de formação dos “soldados de Cristo” que se preparavam para a “batalha espiritual” pela prática dos Exercícios e pela obediência aos ordenamentos advindos das Constituições. Palavras-Chave: Jesuítas. Educação. Exercícios Espirituais. ABSTRACT The article that if follows intends to argue the theoretical basis on which if it based the practical jesuit on century XVI. For in such a way, use of the text of the Exercises Spirituals of Loyola and the jesuit Constitutions of 1556 becomes. The basic estimated one of the present work is placed in the finding of the importance of these documents to know the bases of the ethical and pedagogical conceptions of the jesuit formation in this period. The objective of the work is, therefore, to present the itinerary of formation of the “soldiers of Christ” who if prepared for the “battle spiritual” for the practical one of the Exercises and the obedience to the happened orders of the Constitutions. Word-Key: Jesuits. Education. Exercises Spirituals. 1 Bacharel e Licenciado em Filosofia pela PUC-MG; Mestre e Doutor em Educação: História, Política, Sociedade pela PUC-SP. Professor Adjunto no Departamento de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas – MG. Email: [email protected]. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 63 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Os Exercícios Espirituais e a Batalha entre o Bem e o Mal Para situar a gênese da Companhia de Jesus e conhecer as bases da educação jesuítica, há que se discutir o texto dos Exercícios espirituais de Loyola. A prática dos Exercícios era a porta de entrada para a Companhia e, assim, os Exercícios constituem, a meu ver, a base pela qual é possível compreender a forma como o jesuíta via o mundo e tudo o que o envolvia: o tempo2, o corpo, a consolação3, 2 É importante lembrar que o padre jesuíta tinha um conceito de tempo histórico como tempo participado pela graça divina. 3 O termo “consolação” era caro a Loyola e aos jesuítas e aparecia constantemente nas cartas com as quais lido nesta pesquisa. De acordo com O’Malley, um sinal de que alguém estava aberto à ação de Deus era a “consolação”. Os jesuítas percebiam-se, em grande parte, como comprometidos com o ministério da consolação. A palavra tinha para eles um significado bem preciso, que não era o equivalente natural de bom sentimento. Loyola descreveu-a inúmeras vezes nos Exercícios, reconhecendo que ela tinha manifestações diferentes, dependendo do estado espiritual da pessoa que a experimentava. Ela trazia paz, mas podia, ao mesmo tempo, ter como consequências a tristeza e a dor: “Por consolação eu quero dizer o que ocorre quando algum movimento interior é causado dentro da alma, através do qual ela vem a ser inflamada com o amor de seu Criador e Senhor. Como resultado, ela não pode amar coisa criada na face da Terra em si mesma, mas somente no Criador de todas elas. Semelhantemente, esta consolação é experimentada quando a alma verte lágrimas que a movem para o amor por seu senhor – quer sejam lágrimas de aflição por seus pecados ou acerca da paixão de Nosso Senhor ou sobre outra matéria diretamente ordenada ao seu serviço e louvor. Finalmente, na palavra consolação incluo todo o aumento em fé, esperança e caridade e toda a alegria interior que chama e atrai alguém às coisas celestiais e à salvação de sua alma, ao trazer tranquilidade e paz em seu Criador e Senhor (Ex. Esp., § 316, apud O’MALLEY, 2004, pp. 40-1). Contudo, para Certeau, “la ‘consolación’ o la ‘desolación’ no podría ser considerada en sí misma. Es imposible atribuir un sentido a una u otra tomada de manera aislada, como si una significara el ‘acuerdo’ de Dios y la otra su ‘disgusto’. El sentido resulta de su relación y de la Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. a desconsolação e questões afins. Para O’Malley, “não se pode conhecer os jesuítas sem referência ao livro dos Exercícios.” (O’MALLEY, 2004, p. 20). Em artigo intitulado “El espacio del deseo”, Michel de Certeau destacou que os Exercícios eram como um livreto de ópera que incluía um texto, porém não dava indicações da música e dos diálogos. Para o autor, “lo esencial de este texto se encuentra fuera de él”. Não é um relato de um itinerário, nem um tratado de espiritualidade; seu método supunha o que não representava: as vozes do desejo e tinha como objeto articulá-las. O texto dos Exercícios era, pois, um “discurso de lugares”: uma série articulada de topoi. (CERTEAU, 2004, p. 39). Certeau disse que entre a antropologia e a teologia que compunham o texto inaciano havia um ponto de fuga que guardava relação com a ordem do mundo: a “vontade”. Para ele, a concepção teológica do tempo remetia à “vontade” como “princípio e fundamento” incognoscível de tudo o que pode ser conhecido. No homem é igual: as moções na obra de Loyola eram precisamente as irrupções desse querer que seguia sendo outro em relação com a ordem manifesta. No homem, falava algo inesperado, algo que nascia do incognoscível, e que agitava a superfície do conhecido e o transformava. Seria origem de uma nova “disposição da vida”. Toda instauração de uma ordem se inaugurava a partir da “vontade”. 4 (CERTEAU, 2004, p. 4 dirección que ésta indica. Sólo el desarrollo es signo. En su singularidad, ningún momento tiene valor; ningún lugar es verdadero o falso; ninguna objetividad es, pues, sagrada, y ningún lenguaje invulnerable. No adquieren sentido sino inscritos en una relación dinámica, en función de las trayectorias del ejercitante” (CERTEAU, 2004, p. 46). Para conhecer essa “vontade”, o devoto precisava ficar sozinho. Com os estados místicos ele atingia os graus supremos da piedade pessoal. De fato, o misticismo era o sentimento de conhecer a Deus através da intuição e de entrar em comunicação Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 64 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 42). Esta “vontade”, tal como era entendida no século XVI, repousava sobre o postulado de uma fé cristã: o que havia de mais profundo e de menos conhecido em Deus (a inquietante estranheza de Sua vontade) era o que havia de mais profundo e de menos conhecido no homem (a inquietante familiaridade com nossa própria vontade). Assim, a tática inaciana envolvia o exercitante na indeterminação desse querer. (CERTEAU, 2004, p. 45). Colocando-se inteiramente à disposição desse “querer”, a nova interpretação do cristianismo dos jesuítas, expressa pela primeira vez nos Exercícios, era centrada naquilo que eles chamavam “o nosso modo de proceder” (noster modus procedendi), uma vez que seus membros acreditavam que a adoção de um mesmo “modo de proceder” era o que os fazia “jesuítas”. Entre 1540 e 1548, ano de sua impressão, com aprovação papal, poucas mudanças foram feitas nos Exercícios. Eles já eram um dos documentos fundamentais da nova Ordem, prescrito, por conseguinte, na sua duração integral para todos os noviços que nela ingressassem. (O’MALLEY, 2004, p. 63-4). Para Loyola, o método de santificação pessoal adquirido mediante a disciplina prescrita nos Exercícios espirituais se constituiu em inspiração para a boa administração da Companhia de Jesus. Os Exercícios eram, pois, o produto de uma destilação do processo de conversão do próprio Inácio de Loyola de cavaleiro a devoto. (EISENBERG, 2000, pp. 31-3). Os Exercícios espirituais alcançaram, assim, importância fundamental. Os direta com ele, sendo o êxtase o grau supremo de tal união. Enquanto práticas obrigatórias e práticas de devoção constituíam modalidades exteriorizadas e muitas vezes coletivas da religião, o misticismo, forma mais elevada da espiritualidade, referia-se às relações do homem com Deus no que tinham de mais pessoal e íntimo (LEBRUN, 1991, p. 101). Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. superiores jesuítas, por exemplo, viriam a exercer várias das funções originalmente conferidas por Loyola ao chamado diretor dos exercícios. Eles seriam, por assim dizer, os guias dos irmãos das Casas jesuíticas. Nesse sentido, segundo Eisenberg, A transformação do conceito inaciano de obediência, contido nos Exercícios espirituais, em um conceito jesuítico de obediência institucional também exerceu um papel importante na consolidação da organização jesuítica. Por terem sido escritos somente um ano após o acidente de batalha que levou Loyola a abandonar sua carreira militar, os Exercícios espirituais reproduzem muito da mentalidade medieval das ordens militares, particularmente no tocante à obediência à Igreja. Da mesma maneira que os templários e os hospitalários, os jesuítas no princípio se viam como “soldados” de Cristo, e, consequentemente, soldados de Seu vigário na Terra, o Sumo Pontífice. (EISENBERG, 2000, p. 36). Contudo, formar o homem virtuoso era um dos objetivos centrais dos Exercícios espirituais de Loyola. Nesse sentido, cabe perguntar: de onde vem a fundamentação para o ideal de homem virtuoso que recebe destaque nas linhas dos Exercícios? De acordo com Hansen, nos textos medievais, a oposição justiça/tirania [...] é o principal critério regulador da educação ético-política das três faculdades que então constituem e definem neo-escolasticamente a unidade da alma da pessoa humana, a memória, a vontade e a inteligência, dando forma e identidade social a grupos, sexos e indivíduos por meio da sua instrução e formação diferenciadas. As três faculdades fundamentam o saber/querer/poder das práticas cortesãs dos “melhores” ou discretos” que então são propostas em vários dispositivos como modelos da excelência. (HANSEN, 2002, p. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 65 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 66). Para Hansen, a educação jesuítica devia dar conta dessas três faculdades, ensinando antes de tudo o autocontrole, que visava ao meio-termo dos apetites e à amizade com o restante do corpo político do Estado. Assim, a educação deveria “tornar mais homem”, lema do Ratio studiorum de janeiro de 1599. Por conseguinte, essa educação prescrevia que era “mais homem” quem aprendia a agir segundo a reta razão das coisas agíveis e a reta razão das coisas factíveis, visando à concórdia e à paz do “bem comum”. (HANSEN, 2002, p. 66). Contra a tese luterana da lex peccati, que abolia a autoridade espiritual do papa, o Concílio de Trento constituiu o dogma segundo o qual o pecado original não corrompia totalmente a natureza humana, pois, apesar dele, a luz natural da graça continuaria aconselhando o livre-arbítrio. Segundo Hansen, “a defesa intransigente do dogma implicou retomar a idéia aristotélica de que as artes corrigem a natureza, ou seja, a idéia de que a alma humana pode ser melhorada pela instrução das humanae litterae, as humanidades, e pela formação de costumes (mores) e hábitos cristãos” (HANSEN, 2002, p. 75). Nas regras do ensino ministrado pela Companhia de Jesus em seus colégios antes da edição do Ratio studiorum, em 1599, que os sistematizou e incluiu, prescrevia-se que a criança deveria ser ensinada a falar de modo justo, pois as retas palavras demonstrariam externamente a presença da luz divina na consciência, como a centelha que aconselharia o bem nos atos livres. Nesse sentido, afirmava-se que a educação católica do período, [...] propondo sempre que a justiça, é a síntese de todas as virtudes e que o príncipe antes de tudo deve ser justo, o modelo de educação exposto nos espelhos pressupõe, como foi dito, a idéia aristotélica da correção da natureza pela arte, adaptando-a, porém, aos fins da “razão do Estado” Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. contra-reformada. Os espelhos pressupõem catolicamente, no caso, que a natureza humana é perfectível porque é mortal: é do ponto de vista da morte e dos fins últimos da alma que se domestica a besta. (HANSEN, 2002, p. 77). De acordo com Hansen, todos os espelhos de príncipe propõem como central na educação do infante real o conceito de virtus tratado por Cícero no De officiis e reciclado no século XV pelos florentinos da Academia de Careggi. Segundo o conceito, seria possível obter a excelência por meio de uma educação adequada de retórica e filosofia antigas. Em tal educação, eram modelos o costume e a autoridade dos exemplos a ser imitados, segundo o topos renascentista de que a excelência universal poderia ser atingida por meio de letras e armas. (HANSEN, 2002, p. 87). É fundamental, todavia, examinar o próprio texto dos Exercícios para compreender o que ele indicava. Repare-se que o texto dos Exercícios se compunha como um itinerário, a partir do qual o padre ia subindo os degraus da ascese, para chegar a uma vida pautada pela prudência. Nesse sentido, observei que, logo na primeira meditação, Loyola oferecia o “tom” das linhas do documento, ao falar em termos de uma “empresa”, usando expressões como: o Senhor “comprou a tua salvação” e ao perguntar: “como tens tu até agora correspondido a esta dívida tão imensa de servir ao Senhor?” (Exercícios espirituais – Primeira meditação para o primeiro dia, n. 1 – grifos meus). A Companhia era compreendida, nesse sentido, como um empreendimento que precisava expandir suas filiais por todo o mundo e, acima de tudo, necessitava de uma boa administração. Loyola empregava também termos militares, indagando: “até quando há de durar esta guerra entre ti e Deus?” (Segunda meditação para o primeiro dia, n. 2 – grifos meus). O membro da Companhia seria, assim, o soldado de Cristo sob a bandeira da cruz. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 66 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Interessante o enfoque sobre a ascese da alma quando Loyola destacava a “soberba e a vida deliciosa” como impedimentos para a salvação. Há que considerar o caminho da ascese a ser vivido como uma batalha entre o bem e o mal – Deus e o Diabo –, registrada pelo coração. Aliás, era justamente nos movimentos do coração (de consolação e desolação) que o autor conduzia sua tese de batalha espiritual que formava o fio condutor dos Exercícios. O dever do discípulo era discernir os movimentos do coração e ver aonde o estavam conduzindo. Essa perspectiva era, conforme meu entender, uma chave para a leitura dos Exercícios. Vejam-se, pois, os textos seguintes, sob tal chave: Examina que impedimentos deves tirar para assegurares mais a tua salvação; se alguma amizade, algum emprego, algum divertimento. Geralmente falando, um grande impedimento é a soberba e a vida deliciosa, porque a soberba impede a graça, e a vida deliciosa impede a cooperação com a mesma graça. (Exame para o primeiro dia, n. 65 ). Sobre as paixões desordenadas, o texto era enfático ao determinar o afastamento do “amor desordenado a delícias”. Para Moreau (2003), os princípios da Companhia mostravam um forte pessimismo em relação à ação humana fora dos limites da obediência. “O homem só poderia se salvar pela total submissão à vontade divina, revelada na meditação”. Para o autor, ao escrever os Exercícios, Loyola esperava purgar os pecados dos discípulos e ajudá-los a descobrir a vontade de Deus sobre eles, “que em muitos casos era exatamente entrar para a Companhia”. Assim é que, pelos Exercícios, o praticante deveria passar uma semana contemplando a ideia de que o homem foi criado para servir a Deus e, assim, alcançar a salvação. Por 5 Os grifos constantes em todas as citações são de autoria do Autor. Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. conseguinte, lembra o autor, “nos Exercícios (...), o penitente deveria pôr a mão no coração cada vez que pensasse em pecado”. (MOREAU, 2003, p. 242-3). Repare-se que, no excerto seguinte, Loyola apresentava a proximidade do lícito com o ilícito e o corpo como “inimigo da alma” – que por isso deveria ser vigiado. A alegria na vida presente também não era um bom sinal para a alma que queria a salvação. O texto recomendava, pois, a prudência como reta intenção. Veja-se: Examina-te sobre o amor desordenado a delícias. Não se fala aqui dos pecados contra a castidade, que por si mesmos se dão a conhecer e se devem examinar quando se hão de confessar sacramentalmente. Examina-te, pois, agora sobre o demasiado desejo de te dares a passatempo, e de tomares todos aqueles divertimentos que à primeira vista te parecem inocentes, mas continuados acabam frequentemente em graves pecados. Aquelas moscas que de passagem gostam o mel não sentem dano, mas se se introduzem e detêm no mel ficam presas e perdem a vida. É muito dificultoso entreter-se um nos confins do lícito, sem passar ao ilícito. Além de que passar a vida alegremente com excesso n’este mundo é sinal de condenação, dizendo o Senhor no Evangelho: ai de vós os que agora rides. É uma desordem monstruosa pretender para a alma uma eterna felicidade, e entretanto não suspirar mais que de ter contente o corpo, que é inimigo da alma, e empregar todos os cuidados e todos os pensamentos nas delícias da carne, que com as mesmas delícias mete em risco a nossa salvação, fazendo-nos tão dessemelhantes de Jesus Cristo, modelo de todos os predestinados. (Exame para o segundo dia, n. 5). Se o corpo seria lugar do pecado, cabe perguntar: o que faria, pois, o ser humano ser condenado? De acordo com a Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 67 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 visão ascética do autor dos Exercícios, eram os afetos desordenados. No tocante aos afetos de uma alma condenada, Loyola dizia que o pecado “obrigava” Deus a tratar rigorosamente uma alma. Essa era uma característica interessante dos Exercícios, pois Deus era apresentado constantemente como o “Justo Juiz”, pouco misericordioso, mais parecido com um comandante de batalha. Observe-se: Oh maldito pecado, que obrigas a um Deus tão bom a tratar tão rigorosamente a uma alma que tinha sido sua esposa, e agora será para sempre troféu da justiça divina, plantado imovelmente no fogo eterno! (Quarta meditação para o terceiro dia, n. 2). Sobre o “modo de proceder contigo mesmo”, ficava clara a linguagem de tribunal usada pelo autor. O Deus castigador estava prestes a agir neste tribunal com penas eternas: És, pois juntamente réu e juntamente juiz de ti mesmo, e se não exercitares este ofício retamente sobrevirá Deus com a sua divina justiça a castigar-te, não com penas temporais, que somente são para os penitentes, mas com penas eternas, que justamente merecem os impenitentes. (Exame para o quarto dia, n. 1). Vigilância sobre si mesmo, disciplina e ascese estavam presentes no texto seguinte, sob a forma de mortificação dos sentidos e da prática do jejum. Note-se a referência aos divertimentos e a censura às más companhias. Aproveitar bem o tempo era a estratégia usada para preencher os espaços vazios que, do contrário, seriam tomados pela força do mal. Por isso, declarava-se que o desperdício do tempo com ociosidade era a origem dos vícios: Examina qual seja a tua penitência externa: 1. Se te privas de alguns gostos lícitos, mortificando em Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. algumas cousas os teus sentidos. 2. Se afliges o corpo com alguns jejuns de mais, ou com alguma outra sorte de aspereza (...). Examina-te sobre os teus divertimentos; quais eles sejam: 1. Se perigosos para te conduzir ao pecado. 2. Se misturados com alguma coisa ilícita. 3. Se em companhia de pessoas perversas que ou louvam o mal, ou falam sempre palavras que te levariam ao mal (...). Se desperdiças esta tão grande riqueza do tempo em uma mera ociosidade, a qual só é a origem de todos os vícios. (Exame para o quarto dia, n. 3, 4 e 5). Sobre “os dois estandartes” o texto assumia, enfaticamente, características de ordem de batalha. A imagem do duplo pavilhão era usada para caracterizar a vocação jesuítica. Os jesuítas eram, nesse sentido, os soldados de Cristo em campo de batalha. Os dois senhores estavam ali, em “pé de igualdade”, arrebanhando discípulos ou, como citava o texto, levantando bandeira e fazendo gente. A referência à batalha era forte, porquanto se empregava o termo alistamento para designar a evangelização. Cristo usava armas de mortificação aos afetos desordenados, mas era humilde e amoroso. Lúcifer, por outro lado, também estava trabalhando com seus soldados. Estes usavam armas contrárias ao do outro senhor (Cristo), como a concupiscência da carne e dos olhos. Acompanhe-se o texto e suas imagens: Considera que no mundo se acham dois senhores: um legítimo senhor, que é Cristo; o outro, tirano, que é Lúcifer. Ambos levantam bandeira, fazem gente, procurando trazer muita ao seu próprio partido. Considera, pois que Jesus Cristo, assentado em um lugar humilde, com rosto benigno e amoroso, rodeado de seus discípulos, lhes ordena que vão por todas as partes do mundo a chamar os homens ao seu serviço, alistando-os debaixo da bandeira da sua cruz; que da outra parte contrária Lúcifer, príncipe das trevas, assentado em Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 68 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 trono de fogo, com semblante horrível, os olhos abrasados, a boca ensanguentada e cheia de fumo, sumamente enraivado e furioso, manda também a inumeráveis demônios, de que está rodeado, que se espalhem por toda a Terra e chamem a todos os homens a se rebelarem contra Deus. Sendo pois estes dois capitães tão diversos e contrários, são também diferentes as armas com as quais querem se combata. Lúcifer quer que os seus soldados combatam contra Deus com a força do amor próprio, que é o monstro das três cabeças, de que fala S. João: concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida; convidando a todos a procurarem para si gostos, riquezas e honras juntamente com ofensas de Deus. Porém Jesus Cristo, totalmente oposto, quer que os seus soldados combatam com o ódio santo de si mesmos, e com a mortificação universal de todos os afetos desordenados. (Primeira meditação para o sexto dia, n. 1). Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. amor, esta cruz é abundante da verdadeira suavidade e da verdadeira paz (...). Considera a paga que para o futuro prometem estes dois capitães. Uma paga se dá aos soldados no tempo da guerra, e outra maior recompensa se lhes dá depois da vitória. Portanto, Lúcifer, depois de ter tratado tão mal na vida presente aos que o seguem, não lhes dá na outra vida mais que chamas horríveis. Este ladrão infernal o que pretende é no tempo da vida roubar-te a paz do coração e dar morte à tua alma com um pecado grave. (Primeira meditação para o sexto dia, n. 2 e 3). A premiação que ofereciam os dois capitães também era diversa, por conseguinte. Interessante perceber que Deus e o Diabo estavam ativos em todo o processo de batalha. A paga oferecida por Cristo passava pelo caminho estreito da cruz, da pobreza e da humilhação, cujo prêmio, porém, era a paz. Por outro lado, Lúcifer oferecia as chamas como premiação, mas estava implícito no relato que este enganava, oferecendo muitas vezes o caminho largo das delícias mundanas para atrair para si soldados desavisados. Nos seus próprios termos e imagens: Sobre o “modo de proceder com Deus”, o texto seguia sempre a ordem seguinte: examina-te quanto aos pensamentos; examina-te sobre as palavras; examina-te sobre as obras; examina-te sobre as omissões (Exame para o sexto dia). O quarteto: pensamentos, palavras, obras e omissões formava, pois, um itinerário para o autoexame da pessoa que se pretendia seguidora de Cristo, principalmente, no caso, o aspirante a fazer parte da Companhia de Jesus. Com as palavras acima, Loyola oferecia um completo roteiro para uma eficiente avaliação de consciência diante do caminho de seguimento a Cristo. Sobre os maus hábitos e o seu remédio, o texto era claro ao asseverar que o tempo era fator fundamental na retomada do bom caminho. Era preciso, pois, não deixar que os maus hábitos se enraizassem a ponto de ficar difícil sua extirpação. Recorrendo à Sagrada escritura, o fragmento apontava o jejum e a oração como os dois remédios para os maus hábitos. Considera a paga que dão de presente estes dois capitães, Cristo e Lúcifer, aos seus soldados. Jesus Cristo fala só de cruz, de pobreza, de humilhação, de ódio de cada um a si mesmo; mas esta pobreza é a verdadeira riqueza, esta humilhação é a verdadeira exaltação, este ódio é o verdadeiro Examina os maus hábitos que tens por causa da tua má vida, e primeiramente quanto tempo há que os tens, porque maior força se requer para arrancar uma planta antiga e muito arraigada, do que para arrancar uma nova e tenra [...]. Os remédios são dois que nos manifestou o Senhor quando Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 69 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 livrou aquele endemoninhado desde menino. Esta casta de demônios, disse o Senhor, não pode sair senão com a oração e com o jejum. (Exame para o sétimo dia, n. 1 e 2). O texto seguia normatizando a oração. Enfatizava-se a humildade e a perseverança, e para isto se recorria à imagem da tempestade: Examina-te, pois sobre a oração. Isto não quer dizer rezar somente algumas orações com o coração vagabundo, e com o entendimento distraído, mas quer dizer recorrer com grande instância ao Senhor, pedindo-lhe a sua graça com grande humildade e com grande perseverança, como farias se no meio de uma tempestade não tivesses outra esperança de te salvar no naufrágio mais que a ajuda de Deus. A esta sorte de oração nenhuma coisa se nega das necessárias para a salvação. (Exame para o sétimo dia, n. 3). Sobre o outro remédio, o jejum, os extratos o qualificavam como sendo todo tipo de mortificação dos sentidos que se pudesse fazer. O jejum era, pois, muito mais que se privar de alimentos: era privarse também de todas as delícias da carne, tais como a comodidade, a gula, a ociosidade, as paixões mundanas e os apetites perversos. Repare-se, pois, no texto e suas recomendações: Examina-te sobre o jejum, pelo qual se entende todo o gênero de mortificações que sirvam ou para castigar os excessos passados, ou para prevenir as caídas futuras. Se concederes ao teu corpo todos os cômodos, se lhe dás todos os alívios, se buscas toda a brandura no leite, e todas as delícias na mesa; se queres achar-te a todos os passatempos e intervir em todas as conversações; perder o tempo com toda a sorte de ociosidade; em uma palavra, se não queres negar satisfação alguma às tuas Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. paixões e apetites, nem queres fugir a perigo algum dos que fugiram os Santos, como podes racionalmente esperar que te hás de emendar? (Exame para o sétimo dia, n. 1, 2, 3 e 4). Para O’Malley, todavia, era fundamental considerar o texto dos Exercícios não destinado a exprimir um ponto de vista teológico em particular. Suas origens não repousavam num estudo erudito, numa disputa acadêmica, numa sala de corte inquisitorial ou num conselho eclesiástico. Não era uma contradição a Lutero. Ele se originava na experiência religiosa do autor e seus elementos básicos estavam corretamente colocados antes que Loyola tivesse alguma educação teológica. Não se tratava, pois, de um livro de dogmas, mas de um livro dogmático – ou seja, que assumia que sua mensagem básica era a herança cristã comum e que tal mensagem não necessitava ser debatida. Era necessária, portanto, uma apropriação pessoal, um apego de todo o coração à mensagem e, depois, a tradução de tudo isso de todo o coração para a própria vida. (O’MALLEY, 2004, p. 71). A Pedagogia das Constituições Jesuíticas De acordo com Castelnau-L’Estoile (2000), o governo da Ordem jesuítica estabelecia “l’unité d’un corps disperse”. Nesse sentido, segundo a autora, a Companhia era entendida a partir da metáfora do corpo humano: o jesuíta é um membro do corpo unido à cabeça: o geral de Roma. É neste sentido que a autora destaca o papel e o conteúdo das Constituições e faz notar que a redação destas se deu no momento em que os primeiros membros da Companhia começaram a se dispersar. Era preciso estabelecer, pois, a unidade do corpo, já que os membros se espalhavam. Para a autora, as Constituições determinavam, ainda, a “identidade jesuítica”, ao instituir a “demanda a ser admitida dentro da Companhia”. (CASTELNAU-L’ESTOILE, Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 70 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 2000, pp. 60-1). Na introdução ao texto das Constituições, Pe. Iparraguirre ressalta que nelas se pretendeu legislar para toda a vida, regular as ações não só internas, mas também as que se davam com os superiores, iguais e inferiores; estabelecer, em uma palavra, uma base jurídica e dar normas práticas de ação. Para o religioso, a história da elaboração do texto se iniciou em 1540 e em 4 de março de 1541 começaram as deliberações dos seis padres que puderam se reunir: Loyola, Laínez, Salmerón, Coduri, Broët e Jayo, que trataram dos pontos vitais: a admissão à Companhia, as causas de se despedir alguém, o sentido do voto de pobreza, o exame dos noviços, a formação dos que eram admitidos, as atribuições do geral, o ensino do catecismo às crianças, as vestes que deveriam usar, a oração do ofício divino, a celebração da missa e questões parecidas. Esta não foi à organização definitiva do documento, mas um esboço das questões cruciais das quais deveria tratar, não necessariamente na ordem apresentada. Resolvidos tais pontos, eleito geral Loyola por voto unânime de seus companheiros e emitida à profissão na Basílica de São Paulo (em 22 de abril de 1541), Loyola e Coduri permaneceram em Roma, encarregados de elaborar e estruturar as decisões tomadas, trabalho concluído em 1545. Loyola decidiu, então, comunicar a toda a Companhia as conclusões adotadas, que teriam força de lei, mas cuja redação era provisória. Queria que suas disposições passassem pela prova da experiência, antes de sua aprovação definitiva. Em 1547, Loyola convidou Juan de Polanco para ser secretário da Companhia, o qual teve importância fundamental na fase preparatória da composição das Constituições. Em 1551, a Ordem já contava com um código bem definido e preciso. No entanto, somente em 1556, com as devidas correções feitas por Loyola, é que se chegou ao texto definitivo das Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. Constituições, cuja edição oficial e autêntica saiu em 1558. (LOYOLA, 1952, pp. 345-56). O texto das Constituições inicia-se com um primeiro “exame geral”, dividido em oito capítulos que tratam do “que se há de propor a todos os que puderem ser admitidos na Companhia de Jesus”; seguido de um “Proemio de las Constituciones”. A seguir, temos as dez partes, chamadas “principais”, a saber: a primeira trata “del admittir a probación”; a segunda, “del despedir los que no approbasen bien de los admittidos”; a terceira, “del conservar y aprovechar los que quedan en probación”; a quarta, “del instruir en letras y en otros médios de ayudar a los próximos los que se retienen en la compañia”; a quinta, “de lo que toca al admittir o incorporar en la compañia”; a sexta, “de lo que toca a los ya admitidos o incorporados en la compañia quanto a si mesmos”; a sétima, “de lo que toca a los ya admitidos en el cuerpo de la compañia para con los próximos, repartiendose en la viña de Cristo Nuestro Señor”; a oitava, “de lo que ayuda para unir los repartidos con su cabeza y entre si”; a nona, “de lo que toca a la cabeza y gobierno que della desciende”; e a décima, “de como se conservara y augmentara todo este cuerpo en su buen ser”. Esta pesquisa se restringe, no entanto, às prescrições ligadas à educação. Nesse sentido, há que ressaltar o quanto era caro aos jesuítas o ofício de ensinar. Assim, quando se falam em virtudes necessárias aos que são recebidos nas casas, ou em admissão ou demissão da Ordem, ou em decoro e disciplina, o que está em debate é a educação como meio pelo qual tudo isso seria possível. O ofício do ensino é, pois, a “menina-dos-olhos” da Companhia. As Constituições descrevem os colégios, por conseguinte, como uma “obra de caridade”. (cf. par. 440/51). Antes de ingressar no colégio jesuítico, as Constituições estabeleceram a criação das casas de probación. Segundo as Constituições, estas casas de “Probación” Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 71 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 eram como partes dos colégios, onde se aceitavam e se provavam por um tempo os que depois entrariam neles (cf. Constituciones, par. 5-6). A criação de tais casas, a meu ver, tinha uma forte ligação com a ideia de Loyola de que era preciso ser provado para ser aprovado, ideia que se percebe trilhando as linhas mestras dos Exercícios espirituais. Segundo as Constituições, várias regras precisavam ser observadas antes do ingresso em uma casa da Companhia. No parágrafo 18 lê-se: La primera, estando em la Casa de la primera probación, donde suelen recibirse los que quieren entrar em la Compañía, como huéspedes por doce o quince dias, para mejor mirar em sus cosas antes que entren en la Casa o Colégio de la Compañía para cohabitar y conversar con los otros. La segunda, pasando por seis meses de experiências y probaciones. La tercera, a los otros seis meses; y assí conseqüentemente, hasta que haga professión el que há de ser Professo acabados sus studios, y los três votos el que há de ser Coadjutor, y los suyos con su promessa el que ha de ser Escolar approbado. Y esto porque de una parte y de otra se proceda con mayor claridad y conocimiento en el Señor nuestro, y porque quanto más aprobada fuere su Constancia, tanto sean más stables y firmes en el servicio divino y vocación primera, para gloria y honor de su divina Magestad. (cf. par. 18). Como se pode observar, a Companhia estabelecia com as Constituições uma progressão gradativa dentro de suas casas. Existia, pois, hierarquia, que instituía a organização interna da Ordem. Os escolares, como eram chamados os estudantes internos aprovados, não podiam ter contato com os “hóspedes”, a não ser depois de um tempo mínimo de aprovação. Sobre as qualidades requeridas a quem pretendia ingressar em uma casa da Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. Companhia, assim se escreveu: quanto ao exterior, deveriam ter “honesta aparência”, saúde, idade e forças para os trabalhos corporais que ocorriam na Companhia; quanto ao entendimento, deveriam ter “doutrina sã” e habilidade para aprendê-la; quanto à memória, aptidão para aprender e fidelidade para reter o aprendido; quanto à vontade, que fossem desejosos de toda virtude e perfeição espiritual, quietos, constantes; ainda quanto ao exterior, era de desejar a “graça no falar”, tão necessária para a comunicação com o próximo. (cf. par. 154-7). Sobre os impedimentos para ser recebido na Companhia, o texto ressalta que o fato de alguém ter se apartado “del gremio de la Santa Iglesia, renegando la fé entre infieles, o incurriendo en errores contra ella, en los quales haya sido reprobado por sentencia pública; o apartándose como seismático de la unidad della” constituem alguns dos empecilhos (Constituciones, par. 165). Denota-se, aqui, o horror aos heréticos, típico da época, sobretudo considerando-se a Reforma Protestante. Outros impedimentos relevantes: “El haber sido homicida o infame por pecados enormes” (Constituciones, par. 168), donde se ressalta a importância da conduta anterior ao ingresso na Companhia e a impossibilidade de pensar em uma mudança de conduta ou caráter. “El haber tomado hábito de Religión, o sido hermitaño con vestidos monacales” (Constituciones, par. 171); tal impedimento é, no mínimo, interessante, pois demonstra uma certa querela com outras ordens religiosas, principalmente as classificadas como monásticas – o que permite entender melhor a Ordem jesuítica, cujas raízes estão lançadas sobre a inspiração da Devotio moderna, ligada à idéia da inserção do trabalho missionário no mundo. Ou seja, o mundo seria o palco predileto para a atividade missionária, é no mundo que alguém se converte e que se faz a conversão para Deus. Outro impeditivo: “El ser ligado Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 72 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 con vínculo de matrimonio, o servitud legítima” (Constituciones, par. 172), evidenciando a proibição de liames anteriores à entrada na Companhia, certamente para evitar “escândalos”. O trecho que se segue é enfático ao detalhar minuciosamente outros impedimentos. Fala da religião mesclada com desejos humanos (sem dúvida relacionados à promoção pessoal e atitudes do gênero); refere-se à questão da inconstância e das “devoções indiscretas”6 que podem levar à ilusão; alude, também, às inaptidões intelectuais, chamando-as de “falta de letras” e, por fim, às qualidades exteriores, ressaltando a importância da aparência física e da idade. Atente-se: Intención no tan recta para entrar en Religión como convendría, antes mezclada con humanos diseños. Inconstância o floxedad notable, en que pareciese sería para poço el que pretiende entrar. Indiscretas devociones, que hacen a algunos caer en ilusiones y errores de importancia. Falta de letras o aptitud de ingenio o memória para aprendellas o lengua para explicallas, en personas que muestran tener intención o deseo de 6 Cabe citar aqui as anotações de Hansen (2001; 2002), quando discute o ideal de homem discreto visado pela educação jesuítica. O autor se reporta à obra El discreto, de 1646, do jesuíta espanhol Baltasar Gracián, que foi padre da ContraReforma, na qual se tratou da vida sob o ponto de vista da morte e dos fins últimos, prescrevendo que a educação era uma arte que preparava o discreto para morrer bem. “Etimologicamente, o substantivo discreto, como em ‘o discreto’, vem do particípio passado do ‘discernir’. O termo significa a qualidade intelectual do juízo capaz de penetrar no mais intrincado dos assuntos, como perspicuidade ou perspicácia, para distinguir o verdadeiro do falso e estabelecer o meio-termo justo que é próprio da prudência. A discrição relacionava-se intimamente ao talento intelectual da invenção, o engenho, definido nesse tempo como um talento natural onde converge retórica e dialética, ou seja, capacidade lógico-analítica da avaliação dos assuntos, como juízo dialético, que se acompanha de formas sintéticas ou agudas de expressão. (HANSEN, 2001, pp. 36-40). Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. passar más adelante que suelen los coadjutores temporales. Falta de juicio, o dureza notable en el proprio sentir, que en todas Congregaciones es muy trabajosa. Quanto a lo exterior, falta de la integridad corporal, enfermedades y flaqueza o fealdades notables. Edad muy tierna o muy cargada. (Constituciones, par. 180-55). Sobre o modo que se há de ter com os que são admitidos, as Constituições destacam que fazia parte da prática dentro das casas da Companhia a recitação das leis e normas. Ou seja, era preciso conhecer as próprias Constituições, o que significava saber de cor, quer dizer, saber repetir sem hesitação as partes mais importantes do documento: Pasados dos o tres días después de entrados en la probación, comenzará a ser examinado más en particular, al modo que en el officio del Examinador se declara; y déxesele en escrito el Examen, para que por si le considere más despacio; y después verá las Bulas y Constituciones y Reglas que deben oservarse en la Compañia y Casa donde entra; y los que han estudiado, lean una lección de cada facultad en que han sido versados, delante las personas que el Superior ordenar, para que se conozca su talento en lo que toca a dotrina y modo do proponerla. (Constituciones, par. 198). Vê-se que a provação iniciava-se logo após a entrada (dois ou três dias) e que o exame era particular e ordenado pelo “ofício do Examinador”. Era preciso ser apresentado às Bulas, Constituições e Regras. Logo nos primeiros dias de estada numa casa da Companhia fazia-se questão de conhecer o talento de cada um. Sobre as virtudes necessárias aos alunos, as Constituições destacavam a importância do cuidado de guardar com muita diligência as portas dos sentidos, em Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 73 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 especial os olhos, ouvidos e língua, de toda desordem; recomendava-se a paz, a verdadeira humildade da alma, e dela dar mostra no silêncio; a modéstia do rosto, a madureza em andar e todos os movimentos sem nenhum sinal de impaciência e soberba. (Constituciones, par. 250). Tais virtudes seriam alcançadas pela prática dos Exercícios espirituais. Aliás, o método usado na provação era o exercício espiritual, proposto em forma de retiro, tendo cada dia a sua tarefa e meditação correspondente. Nesse sentido, pode-se perceber uma ligação forte entre os Exercícios e as Constituições, pois os critérios fundamentais dos primeiros formam, por assim dizer, a espinha dorsal destas últimas. Destaca-se também a importância do exame de consciência e da confissão a cada oito dias, pelo menos. (Constituciones, par. 261). O que faz ver uma forma de controle por parte dos superiores, pois por esta via se tinha uma completa abertura do penitente em relação ao seu confessor, que poderia aconselhar, restringir, proibir – a confissão funcionava, assim, como um dispositivo de controle. Ainda no tocante à vivência das virtudes, as Constituições deixam claro que os estudos se destinam à abnegação e ao crescimento na virtude e devoção. Nesse sentido, estabelecia-se que os estudos das letras não se fariam numa casa, mas sim nos colégios, pois “los Colégios son para aprender letras, las Casas para exercitallas los que las han aprendido, o preparar el fundamento dellas de humildad y virtud, los que las han de aprender”. (Constituciones, par. 289 – grifos meus). Por conseguinte, a fim de garantir a vivência das virtudes, o documento instituía figuras importantes para o cumprimento do que estava disposto, como a do “síndico” nas casas, cujo ofício era zelar pela honestidade e decência exterior, andando pela igreja e casa, notando o que não conviria e avisando ao superior. (Constituciones, par. 271). Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. No que diz respeito à “conservación del cuerpo”, as Constituições submetem à observância do decoro, da modéstia, da decência. Tais conceitos estão profundamente ligados ao espírito que anima as linhas mestras do texto, a saber, a vivência e o zelo pelas virtudes cristãs. Recomendava-se o cuidado com a saúde e forças corporais; no que se refere às vestes, sugeria-se “Con los escolares aprobados y los que attienden al studio, parece que en lo que toca al vestir, podría tenerse más respecto a la decencia exterior y comodidad, atentos los trabajos del studio, y que tienen renta los Colégios; bien que sienpre se debe evitar toda demasia”. (Constituciones, par. 288). Trata-se agora de discutir a denominada quarta parte das Constituições, da qual os primeiros capítulos tratam especificamente dos colégios jesuíticos. Logo no início, dá-se a fundamentação a respeito do ofício de ensinar, tão caro aos jesuítas, como já foi ressaltado anteriormente. Perceba-se que o destaque principal recai sobre a expressão “ajudar as almas” através da doutrina. O texto ainda salienta a “abnegação de si mesmos” como precedente ao “edifício das letras”. Era para “ajudar as almas” que a Companhia “abraça” os colégios e universidades. Nos termos do documento: Siendo el scopo que derechamente pretiende la Compañia, ayudar las animas suyas y de sus próximos a conseguir el último fin para que fueron criadas; y para esto, ultra del exenplo de vida, siendo necessária doctrina y modo de proponerla; después que se viere en ellos el fundamento debido de la abnegación de si mesmos y aprovechamiento en las virtudes que se requiere, será de procurar el edifício de letras y el modo de usar dellas, para ayudar a más conocer y servir a Dios nuestro Criador y Señor. Para esto abraza la Conpañia los Colégios y también algunas Universidades, donde los qua hacen buena prueba en las Casas, y no Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 74 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 vienen instruídos en la doctrina que es necessaria, se instruyan en ella, y en los otros médios de ayudar las ánimas. (Constituciones, par. 307). O texto destaca, por conseguinte, que nos colégios não se deveria admitir nada que viesse distrair ou atrapalhar os estudos. Admitir-se-ia até, em nome do aproveitamento dos estudos, a não obrigação de missas. (Constituciones, par. 324). Sobre a “administração dos bens divinos”7, o texto que estou expondo coloca sob a responsabilidade dos reitores a conservação e administração dos objetos temporais dos colégios. A Companhia, para uso de seus escolares, exercitará a administração da renda pelo prepósito geral ou provincial, a fim de defender e conservar as posses e rendas dos colégios. (Constituciones, par. 326-7). Sobre o que se há de estudar, o texto destaca uma divisão que deveria perdurar por vários anos na prática pedagógica da Companhia. Ou seja, o currículo permaneceu quase inalterado no próprio texto do Ratio studiorum de 1599. Escrevo isso me referindo à nomenclatura das disciplinas aplicadas como “letras de humanidade de diversas línguas”, “lógica”, “filosofia natural e moral”, “metafísica”, “teologia escolástica e positiva”, “Sagrada Escritura”, “gramática” e “retórica”. Destaca-se que tal conteúdo tem como fim 7 Paulo de Assunção (2004) discute “o cotidiano da administração dos bens divinos” em sua obra Negócios jesuíticos. O autor insere sua análise na atuação econômica da Ordem jesuítica, infiltrando-se nas entranhas financeiras e cofres da Companhia, em que se definiam estratégias, empreendimentos e negócios. Para falar dos missionários jesuítas, que tão próximos ao mundo acabaram por se envolver com coisas mundanas, coloca a questão: “Quais eram os negócios jesuíticos?” A pergunta é provocante e se desdobra em respostas que visitam temas como a expulsão do Brasil dos padres da Companhia, a administração dos bens divinos, as características do patrimônio inaciano, as tensões e descaminhos em torno dele (p. 15). Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. ajudar as almas. Acompanhe-se: Siendo el fin de la doctrina que se aprende en esta compañia ayudar con el divino favor las ánimas suyas y de sus próximos; con esta medida se determinarán en universal y en los particulares las facultades que deben aprender los Nuestros, y hasta dónde en ellas deben passar. Y porque, generalmente hablando, ayudan las Letras de Humanidad de diversas lenguas y la Lógica y Filosofia Natural y Moral, Metafísica y Teologia scolástica y positiva, y la Scritura sacra; en las tales facultades studiarán los que se enbían a los Colegios; insistiendo con más diligencia en la parte que para el fin dicho más conviene, attentas las circunstancias de tiempos y lugares y personas etc., según en el Señor nuestro parezca convenir a quien el cargo principal tuviere. Debajo de Letras de Humanidad, sin la Gramática, se entiende la Retórica. (Constituciones, par. 351-2). Quanto à passagem de um nível para outro dentro do colégio, a determinação ficava a cargo do Reitor, após conveniente exame. (cf. par. 357). Sobre o método de estudo, assim se recomendava: “Los studiantes sean continuos en ir a las lecciones, y diligentes en el proveerlas, y después de oídas en el repetirlas; y demandar lo que no entiendem, y anotar lo que conviene, para suplir la memoria para adelante”. (Constituciones, par. 374 – grifos meus). Percebe-se o quanto o método valorizava a repetição como meio de aprendizagem e dá a entender que era proibido passar de uma lição a outra sem ter entendido suficientemente a precedente. Sobre o exercício de disputar, o texto destaca que, especialmente para os estudantes de artes e teologia escolástica, seria conveniente que houvesse no colégio, a cada domingo, depois da refeição, um estudante de cada classe de artistas e Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 75 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 teólogos (indicados pelo reitor) que sustentasse algumas conclusões, e que as fixasse por escrito na porta das escolas, na tarde do dia anterior, a fim de que os que desejassem viessem disputar; e depois que brevemente houvessem provado suas conclusões, arguiriam os que quisessem, de fora e de dentro da casa. (Constituciones, par. 378). Nota-se aqui uma prática que depois seria reafirmada pelo Ratio studiorum, que diz respeito a um dos métodos mais incentivados nos colégios da Companhia. Era uma prática, a meu ver, abrangente, pois nela estava incluído o exercício da retórica, os livros e autores autorizados dentro dos colégios e a apresentação dos alunos às autoridades locais. Cabe ressaltar, nesse sentido, que, especialmente para os humanistas, era exigido saber latim e exercitar o estilo em composições (cf. par. 381). Há aqui também, no entanto, uma abertura às adaptações necessárias a cada lugar. Vejase, nesse sentido, o parágrafo 382: “De los exercicios de repeticiones y disputaciones y hablar latín, si alguna cosa por las circunstancias de los lugares, tiempos y personas deba mudarse, quedará este juicio a la discreción del Rector, con auctoridad a lo menos in genere de su Superior”. O excerto faz entender que a repetição, a disputa e o falar latim eram adaptáveis às circunstâncias locais. No parágrafo 392, o texto recomenda que haja pelo menos escolas de letras de humanidade, segundo a disposição que houver nas terras onde se encontram os colégios, visando sempre ao maior serviço de Deus. O parágrafo 394 continua ressaltando que é disposição da Companhia que se ensinem nos colégios letras de humanidade e línguas, além da doutrina cristã e, ainda, casos de consciência. E o parágrafo seguinte ressalta que há que considerar a existência de grande variedade, segundo as circunstâncias, de lugares e pessoas. Sobre as qualidades que se requeria Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. ao reitor, o texto ressalta como não poderia deixar de ser, a importância das virtudes cristãs. Recomendava-se, assim, o exemplo, a edificação, a mortificação, que fosse especialmente provado na obediência e humildade; que fosse discreto e apto para o governo; que soubesse mesclar a severidade, a seu tempo, com a benignidade; que fosse cuidadoso e letrado; e, finalmente, que fosse alguém em quem se pudesse confiar e a quem se pudesse comunicar seguramente a autoridade do governo de um colégio. (cf. par. 423). É, sem dúvida, interessante a referência à boa administração como qualidade para ocupar o cargo de reitor. Sobre o ofício do reitor o texto ressalta que era seu dever zelar pela observância das Constituições, o que denota a importância que este documento assumiu após sua aprovação. Para comprová-lo, sabe-se que o Pe. Manuel da Nóbrega, na condição de provincial, fez questão de levar o documento em suas viagens e, certamente, cobrou a sua observância8. Assim, no sentido de perceber a importância que assume tal documento, saliente-se o parágrafo 424, em que está disposto que, depois de sustentar todo o colégio com a oração e santos desejos, o ofício do reitor será fazer que se guardem as Constituições, velando sobre todos com muito cuidado, guardando-os de inconvenientes de dentro e fora da casa; cuidar do aproveitamento nas virtudes e nas letras; conservar a saúde dos escolares e também cuidar das coisas temporais (cf. par. 424). A tarefa do reitor era ampla, como se pode observar: abrangia desde o zelo pelas virtudes e letras até o cuidado com a saúde dos escolares e com outras questões “seculares”. Algumas Considerações Depois de visitar e articular alguns excertos dos Exercícios de Loyola e das Constituições de 1556 percebe-se o quanto 8 Cf. Carta do Pe. Manuel da Nóbrega para Pe. Inácio de Loyola – Piratininga, 1556. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, vol. 5, n. 11, p. 62-76, jul/2010. 76 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 esses documentos formavam a “espinha dorsal” do itinerário pedagógico jesuítico no século XVI. Os Exercícios eram orientações práticas destinadas, acima de tudo, aos padres que queriam dedicar suas forças à batalha espiritual do seguimento das pegadas de Cristo. Constituíam-se, pois, em textos de formação e orientação para o padre. Para formar o missionário, o texto dos Exercícios utilizava-se de imagens de “batalha”. Isso, certamente, é uma consequência do próprio processo de conversão de Loyola, que se deu após ser ferido em campo de batalha, quando era soldado. Posteriormente, alguns anos após a fundação da Companhia de Jesus ficou clara a função importantíssima que as Constituições tiveram na organização e na reorientação do ensino jesuítico. A hipótese segundo a qual a promulgação das Constituições determinou uma reorientação do ensino está expressa nas cartas de Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, por exemplo. A promulgação das Constituições instituiu, portanto, uma mudança – lenta, porém relevante – na prática pedagógica jesuítica. Essas mudanças foram absorvidas pelo próprio Ratio Studiorum, código pedagógico jesuítico de 1599. REFERÊNCIAS ASSUNÇÃO, Paulo. Negócios jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo, Edusp, 2004. BASYROV, GARIF. Man s Conscience. Marca D’água. Disponível em: <http://www.images.com/artist/garifbasyrov/?page=2&size=small&results_per_ page=60> Acesso em: 05 jun 2010. CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte. Les ouvriers d’une vigne stérile: les jésuites et la conversion de Indiens au Brésil, 15801620. Lisboa, Fundação Caluste Gulbenkian, 2000. CERTEAU, Michel de. El espacio del deseo. Arte y Espiritualidad Jesuitas: Vol. 5, Edição 11, Ano 2010. Princípio y fundamento. 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