capa universidade federal do ceará instituto de cultura e arte curso

Transcrição

capa universidade federal do ceará instituto de cultura e arte curso
CAPA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
INSTITUTO DE CULTURA E ARTE
CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL-JORNALISMO
ENTRE PROSTITUTAS E ADÚLTERAS: ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
FEMININAS NA MÚSICA BREGA
ISABELE RODRIGUES CÂMARA
FORTALEZA
2014
ISABELE RODRIGUES CÂMARA
ENTRE PROSTITUTAS E ADÚLTERAS: ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
FEMININAS NA MÚSICA BREGA
Monografia
apresentada
ao
Curso
de
Comunicação Social com habilitação em
Jornalismo do Instituto de Cultura e Artes da
Universidade Federal do Ceará, como parte
dos requisitos para obtenção do título de
graduado em Jornalismo.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena
Lucas
FORTALEZA
2014
Dados Internacionais de Catalogação na
Publicação Universidade Federal do Ceará
Biblioteca de Ciências Humanas
C177e
Câmara, Isabele Rodrigues
Entre prostitutas e adúlteras: análise das representações sociais femininas na música
brega. / Isabele Rodrigues Câmara. – 2014.
80 f.; 30 cm.
Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Ceará, Instituto de Cultura e Arte, Curso
de Comunicação Social, 2014.
Orientação: Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas.
1. Música popular – Brasil. 2. Música – Estilo musical – Mulheres. 3. Mulheres –
Canções e música. I. Título.
CDD 784.5
ISABELE RODRIGUES CÂMARA
ENTRE PROSTITUTAS E ADÚLTERAS: ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
FEMININAS NA MÚSICA BREGA
Monografia
apresentada
ao
Curso
de
Comunicação Social com habilitação em
Jornalismo do Instituto de Cultura e Artes da
Universidade Federal do Ceará, como parte
dos requisitos para obtenção do título de
graduado em Jornalismo.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena
Lucas
Aprovado em __/__/__
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas (orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_______________________________________________________________
Prof. Me. José Ronaldo Aguiar Salgado
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_______________________________________________________________
Prof. Pedro Rocha de Oliveira
Profissional
AGRADECIMENTOS
A Deus, a Nossa Senhora e a São Francisco Sales, padroeiro dos jornalistas, por iluminarem
de forma generosa o início da minha caminhada profissional.
Aos meus pais, por me ensinarem os bônus da responsabilidade e, às minhas irmãs, pelos
ótimos exemplos.
Ao meu namorado, por ser o engenheiro civil com mais alma de jornalista que já conheci na
vida.
Aos meus amigos antigos, as minhas primeiras e maiores referência de amizade. Obrigado
ainda por me apresentarem à musica brega, essa monografia também foi escrita por vocês.
Aos amigos que fiz nos últimos tempos, agradeço por se permitirem ser parte da minha vida.
E, aos amigos jornalistas, claro. Serei eternamente grata à profissão que escolhi, ela me
apresentou vocês.
E ao Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas, pela excelente orientação.
“Tem gente que não gosta lá do brega
É no brega que está a solidão
No brega entra preto e entra branco
No brega entra pobre e barão
Você vive desfazendo lá do brega
Será que você não tem coração?”
(Cidadão no Brega, Oswaldo Bezerra)
RESUMO
O objetivo desta monografia é analisar como as representações sociais femininas da prostituta
e da mulher adúltera são formadas dentro da música brega e apropriadas por esse estilo
musical, além de entender quais os resultados sociais dessas representações. O método
escolhido para a monografia é a pesquisa bibliográfica, com base, em especial, nos estudos de
Marcos Napolitano sobre música e Serge Moscovici sobre teoria das representações sociais. A
análise será empregada em seis músicas consideradas “cafonas”: “Vou Tirar Você Desse
lugar”, “Secretária da Beira do Cais”, e “Menina da Calçada”, “O Dia do Corno”, “Eu Lhe
Peguei no Flagra” e “Lua de Mel”.
PALAVRAS-CHAVE: música brega, prostituta, mulher adúltera, representação social.
ABSTRACT
The objective of this monograph at analyzing the way women's social representations of the
prostitute and adulteress are formed within the corno music is appropriate for this style,
besides understanding what social results of these representations. The method chosen for the
monograph is literature based, especially, in studies by Marcos Napolitano about music and
Serge Moscovici on social representations theory. The analysis will be conducted in six songs
considered "cafona", " Vou Tirar Você Desse lugar ", " Secretária da Beira do Cais " and "
Menina da Calçada ", " O Dia do Corno ", " Eu Lhe Peguei no Flagra " and " Lua de Mel ".
Keywords: music brega, prostitute, adulteress, social representation
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................09
2 CONHECENDO O “BREGA”..........................................................................................13
2.1“VOCÊ VIVE DESFAZENDO LÁ DO BREGA/ SERÁ QUE VOCÊ NÃO TEM
CORAÇÃO”........................................................................................................................... 13
2.2 O KITSCH ........................................................................................................................14
2.3 O KITSCH MUSICAL ......................................................................................................15
2.4 A MÚSICA BREGA DESPIDA DE PRECONCEITOS ..................................................17
2.5 A ORIGEM DA PALAVRA “BREGA” ..........................................................................19
3 AS PROSTITUTAS E AS ADÚLTERAS .....................................................................22
3.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS .......................................................................................22
3.1.1 Breve história do conceito de representações sociais ...........................................22
3.1.2 Conceito de Representação Social ...............................................................................23
3.1.3 Moscovici eDurkheim ..................................................................................................25
3.1.4 Autores que também colaboraram com as teorias das representações sociais.............27
3.1.5 Crítica às teorias das representações sociais ................................................................29
3.1.6 Como trabalhar com as representações sociais ...........................................................30
3.2 BREVE HISTÓRIA DA PROSTITUIÇÃO NO BRASIL ..............................................31
3.2.1 Antes do brega, as prostitutas habitaram o samba................................................35
3.2.2 Prostitutas no brega ......................................................................................................36
3.3 LEVIANAS, AS MULHERES QUE TRAEM ..................................................................37
3.3.1 Introdução ao mundo do adultério ..................................................................................37
3.3.2 Breve história da traição no Brasil ..................................................................................39
3.3.3 A traição e o romance na música brega ..........................................................................41
3.3.3.1 A conversa ....................................................................................................................42
3.3.3.2 O ausente ......................................................................................................................43
3.3.3.3 O coração .....................................................................................................................43
3.3.3.4 A dependência ..............................................................................................................44
3.3.3.5 A destruição .................................................................................................................44
3.3.3.6 A espera ........................................................................................................................45
3.3.3.7 Os objetos, as recordações e o saudosismo ..................................................................45
3.3.3.8 A solidão ......................................................................................................................46
4 ANÁLISE DAS MÚSICAS BREGAS................................................................................47
4.1 INSTÂNCIAS CONTEXTUAIS DA CANÇÃO ..............................................................47
4.1.1Criação ............................................................................................................................47
4.1.2 Produção .........................................................................................................................49
4.1.3 Circulação ......................................................................................................................49
4.1.4 Recepção/apropriação ....................................................................................................50
4.2 ANÁLISE DAS MÚSICAS................................................................................................55
4.2.1 “Vou Tirar Você Desse lugar”, Odair José ...................................................................56
4.2.2.“Secretária da Beira do Cais”, César Sampaio ...............................................................59
4.2.3 “Menina da Calçada”, FernandoMendes ........................................................................60
4.2.4 “O Dia do Corno”, Reginaldo Rossi ...............................................................................62
4.2.5 “Lua de Mel”, Reginaldo Rossi ....................................................................................64
4.2.6
“Eu lhe peguei no flagra”, Genival Santos ..................................................................66
4.3 A representação social das mulheres na música brega .....................................................67
4.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................................71
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................74
REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS .......................................................................................76
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1. INTRODUÇÃO
O objetivo desta monografia é questionar como as representações sociais
femininas da prostituta e da mulher adultera são formadas dentro da música brega e como são
apropriadas por esse estilo musical. O tema foi proposto depois de perceber a recorrência
destas personagens e da forma como elas são retratadas pelos letristas dessa vertente musical.
Ou seja, o objetivo da monografia é responder as perguntas: o que são essas representações?
O que representam a prostituta, a musa do brega, e a mulher leviana, escondida atrás do
“corno”, dentro desse estilo musical? A monografia será realizado por meio das teorias de
representações sociais, baseadas em Serge Moscovici, e os estudos sobre música, de Marcos
Napolitano.
A importância de estudar as representações sociais femininas também tem relação
com a maneira como as personagens da música brega podem refletir na sociedade. Isso pode
ser explicado pelo teórico Stuart Hall, “A cultura não é uma prática, nem é simplesmente a
descrição da soma dos hábitos e costumes de uma sociedade. Passa por todas as práticas
sociais e é a soma das suas inter-relações” (HALL, 1980, p. 60).
O desejo em estudar esse tema se relaciona com a tentativa de diminuir o
preconceito que essa vertente musical sofre, por ser ligada a algo de baixa qualidade. Por isso,
é interessante e necessário propor conceitos de música brega que fujam a representações
sociais pejorativas e que não abordam a complexidade do assunto.
Em relação à exclusão do brega dos estudos acadêmicos, Paulo Cesar de Araujo,
autor do livro Eu não sou cachorro, não, versa sobre como essa vertente musical é deixada de
lado pelos livros de história e de música. Para ele, “a história continua sendo mal contada”,
por meio de uma produção “autoritária e excludente”. A opinião do autor baseia-se no fato
dos historiadores, segundo ele, abordarem apenas os estilos musicais ligados a classes mais
favorecidas, excluindo, dessa forma, o brega, ritmo ouvido pelas camadas mais pobres da
população, para Paulo Cesar de Araujo.
Já Carmen Lucia José, autora do livro Do Brega ao Emergente, traz outra
interpretação desse quadro de preconceitos contra o brega. Segundo ela, existiu, sim, um
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tempo em que apenas os “produtos de alta cultura” tinham espaço nos estudos acadêmicos e
científicos. No entanto, agora a “Universidade democratiza-se” e “a cultura brasileira amplia
seus horizontes para além do que ocorria no universo das elites” (JOSÉ, 2002, p.7). Concordo
que a música brega vem ganhando mais espaço na academia, mas ainda é preciso confronta os
historiadores elitistas que Paulo Cesar de Araujo cita.
O método escolhido para a monografia é a pesquisa bibliográfica. Inicialmente, a
bibliografia foi identificada, localizada e adquirida. Posteriormente esse material foi analisado
e a monografia começou a ser produzida. O método de análise das músicas tem base nos
estudos de Marcos Napolitano. Já sobre as representações sociais, foram usados Serge
Moscovici, Denise Jodelet, Márcio S. B. S. de. Oliveira, Angela Arruda e Alda Judith AlvesMazzotti. No que se refere ao brega, os estudiosos utilizados foram Paulo Cesar de Araújo,
Adriana Mattos de Oliveira, Fernando Israel Fontanella, Abraham Moles, Carmen Lucia José
e Antonio Carlos Cabrera, além de Jairo Severiano que estuda a música brasileira. Eliana dos
Reis Calligaris, Gilberto Freyre, Mary Del Priore, Gabriela Silva Leite, Philippe Ariés e
André Béjin foram utilizados para explicar questões ligadas à sexualidade, à prostituição e aos
relacionamentos amorosos.
Voltando às representações sociais que serão tratados na monografia, é importante
saber, inicialmente, algumas informações sobre as personagens desse estudo: as prostitutas e
as mulheres que traem. Segundo Paulo César de Araújo, as prostitutas, são tema recorrente na
música popular brasileira. Canções como “Dama Do Cabaré”, “Quem Há de dizer” e “Vida
De Bailarina”, por exemplo, mostram mulheres com certo status social, no contexto da Lapa
(bairro do Rio de Janeiro) boêmia, frequentada pelos artistas. Já as prostitutas retratadas pelos
artistas bregas são mulheres solitárias, sem os mesmos status mostrados anteriormente.
Para Paulo Cesar de Araújo, estudioso da música brega, a explicação para as
prostitutas aparecerem nas canções está no fato da proximidade dos cantores desse estilo
musical com essas profissionais. A primeira mulher de Waldick Soriano foi uma prostituta de
Belém do Pará, Nelson Ned se envolveu emocionalmente com várias prostitutas em
determinada fase de sua vida e Odair José diz que tinha muita proximidade com esse tema.
Minha escolha por essas personagens deu-se pela grande recorrência em que as
prostitutas aparecem nas canções bregas, além disso, elas são a personificação do que é viver
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as margens da sociedade e sofrer preconceito. Situação semelhante ao que acontece à própria
música brega: marginalizada e vitimada culturalmente.
As músicas analisadas serão: “Vou Tirar Você Desse lugar”, Odair José;
“Secretária Da Beira do Cais”, César Sampaio; e “Menina da Calçada”, Fernando Mendes. As
músicas foram escolhidas por abordarem com profundidade a personagem prostituta, além de
trazerem à tona discussões sobre o universo da prostituição, uma vez que essas canções tratam
do amor boêmio entre o cantor brega e a prostituta, da vontade que a mulher sente de
abandonar a vida que leva, da tristeza e da solidão.
A outra personagem é a mulher que trai, a leviana. A mulher escondida atrás do
“corno” que escreve os clássicos bregas. O “chifrudo”, o “cornudo”, vítima de muitas piadas
no imaginário popular, nas quais pode ser ridicularizado, cometer crimes ou, simplesmente,
fingir que a traição não existiu.
Toda a riqueza de histórias que pode envolver essas dois personagens, o “corno” e
a leviana, acaba transformando eles em protagonistas perfeitos para uma música brega.
Reginaldo Rossi, cantor desse estilo, explica a influência do “corno”, nas histórias, por
exemplo, e como geralmente as tramas se desenrolam ao redor desse personagem: "O ‘corno’
é muito importante nas novelas. Eles deveriam ganhar um troféu. E toda novela tem final
feliz, menos para eles", explica o cantor em uma entrevista ao programa Vídeo Show. No
entanto, nessa monografia deixo de lado o protagonismo dos homens traídos para dar espaço
as mulheres que os traem.
As músicas que serão analisadas nesse tema são: “O Dia do Corno”, Reginaldo
Rossi; “Eu Lhe Peguei no Flagra”, Genival Santos; e “Lua de Mel”, Reginaldo Rossi. As
canções foram escolhidas por tratarem do universo do amor e das traições, ambiente propício
ao surgimento da personagem leviana. Além disso, as canções escolhidas são de dois grandes
nomes da música brega, Reginaldo Rossi e Genival Santos. Para analisar as seis canções,
serão levados em conta as quatro instâncias de análise contextual propostas por Marcos
Napolitano, em História & Música: história cultural da música popular, além de usar os
parâmetros poéticos e os parâmetros musicais também propostos pelo mesmo autor.
Em resumo, o primeiro capítulo apresenta o campo de estudos sobre música
brega no Brasil, conceitos relacionados ao kitsch e ao kitsch musical, a história das canções
“cafonas” também é contada.
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No segundo capítulo, começam as discussões sobre as representações sociais.
A história dessa teoria, os conceitos, os principais autores, as críticas e a relevância do estudo
serão tratados nessa primeira parte. O capítulo discutirá as duas representações sociais
trabalhadas na monografia: a prostituta e a mulher adúltera. Dessa forma, é mostrada a
história da prostituição no Brasil e como essas mulheres aparecem na música brasileira, em
especial, o samba de Noel Rosa e o brega. A última parte do capítulo traz discussões sobre a
prostituição. Inicialmente, o texto perpassa sobre as relações fora do casamento e a
sexualidade ocidental, depois o contexto volta-se para o Brasil e, por fim, a traição na música
brega.
No terceiro e último capítulo, inicialmente, são trabalhados os conceitos de
Marcos Napolitano tendo como base o livro História & Música: história cultural da música
popular. Ou seja, criação, produção, circulação e recepção/apropriação das músicas são
analisados. Depois, serão apresentas as análises de seis músicas bregas. São elas: “Vou Tirar
Você Desse lugar”, de Odair José, “Secretária da Beira do Cais”, de César Sampaio, “Menina
da Calçada”, de Fernando Mendes, “O Dia do Corno”, de Reginaldo Rossi, “Lua de Mel”,
também de Reginaldo Rossi, e “Eu lhe peguei no flagra”, de Genival Santos. Em seguida, é
feita uma análise das representações sociais das mulheres na música brega.
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2. CONHECENDO O BREGA
2.1 “VOCÊ VIVE DESFAZENDO LÁ DO BREGA/ SERÁ QUE VOCÊ NÃO TEM
CORAÇÃO?”
Inicialmente o Capítulo 1 mostra os preconceitos que a música brega sofre e como
esse tema é abordado no meio acadêmico. Em seguida, são apresentados conceitos ligados ao
kitsch e ao kitsch musical. Por fim, é mostrada a história do brega, além da origem dessa
vertente musical.
Inquieta-me o preconceito que a música brega sofre. Essa exclusão classifica o
estilo musical estudado como algo ruim, o que é resultado de um processo de hierarquia
classista, que beneficia determinados estilos musicais. Segundo Fontanella, mestre que
escreveu a dissertação A Estética do Brega, “o imaginário do belo sempre é pensado pelas
instituições da hegemonia dentro de uma legitimação dos grupos dominantes”(FONTANELA,
2005, p. 42-43).
Ainda de acordo com Fontanella (2005), a classe intelectual hegemônica tem
necessidade de impor papéis para as diferentes condições culturais de status dentro de uma
sociedade. Isso acontece porque essa classe intelectual se sente ameaçada com a tentativa de
romper com os papéis e valores por ela impostos, ou seja, quando a estética “causa
desconforto e instabilidade dentro do imaginário das representações idealizadas que sustentam
a estética hegemônica” (FONTANELA, 2005, p. 107). As transgressões causadas pelos
artistas bregas também causam incômodo às elites intelectuais, segundo Fontanella. Essas
mudanças trazidas por esse estilo de música acarretam experiências estéticas, que podem até
não terem a intenção de contestar uma hegemonia, mas acabam por desestabilizá-la, de acordo
com Fontanella. Essas mudanças podem ser as temáticas abordadas por esse estilo que trata de
prostitutas, traições e homossexualismo, por exemplo.
Existe ainda outro problema: a crítica da música popular brasileira considera o
brega de difícil classificação. Para Paulo César de Araújo (2003), a crítica julga que a música
brega não pertence nem à tradição nem à modernidade. Ou seja, esse estilo não seria
entendido como algo produzido pelo povo, uma vez que o gênero é considerado como uma
adaptação da indústria cultural para propósitos de venda, mas também não seria produzida
pelas vanguardas modernas, já que é considerada música sem valor estético.
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O mau gosto ao qual o brega é associado pode ainda ter a ver com a valoração que
esse produto cultural possui ― entende-se como produto cultural a própria música brega. Para
Carmen Lúcia José, essa explicação tem um teor social, uma vez que se alimenta da lógica da
acumulação de capital. A mercadoria é incumbida de fornecer ou não prestígio a quem a
possui:
as mercadorias bregas são aquelas cujos elementos não refletem mais o padrão
estético da elite, ou porque essa categoria cultural já dispensou definitivamente esse
objeto do seu conjunto ou porque o objeto considerado brega traz algum traço
definitivamente forte que espelha algum elemento dos segmentos sociais de baixo
poder aquisitivo (JOSÉ, 2002, p.51).
Ou seja, o que vemos mais uma vez é outra explicação que justifica a associação
do brega a algo de baixa qualidade por meio da ligação que essa vertente musical possui com
as classes menos favorecidas economicamente. No entanto, é importante entender que o
público alvo do brega mudou. Por isso, essas taxações pejorativas não fazem sentido. Hoje o
brega atinge também um segmento social diferente, podendo chegar até a ser cult. Carmen
Lúcia José explica isso como um empréstimo que a cultura popular promove quando fornece
elementos constituintes e objetos. Eles passam a ter o valor de uso e de função diferentes do
que expressam no universo de signos do determinado grupo social que pertencem.
2.2 O KITSCH
Antes de entrar em conceitos sobre o que é música brega e quais as origens do
estilo estudado, é necessário analisar um elemento diretamente ligado ao brega: o kitsch.
Segundo Abraham Moles, “o kitsch (...) nunca coincide exatamente com um estilo
artístico definido” (MOLES, 1986, p. 138).
Abraham Moles explica ainda que “é a
mercadoria barata, é uma secreção artística derivada da venda dos produtos de uma sociedade
em grandes lojas que assim se transformam, a exemplo das estações de trem, em verdadeiros
templos” (MOLES, 1972 apud JOSÉ, 2002, p.60).
Para Carmem Lúcia José, o kitsch sempre existiu. Ele está presente nas
manifestações artísticas de todos os tempos. No entanto, seu momento de efetivação foi no
triunfo da burguesia. Nesse contexto, essa classe social passou a comandar a sociedade e
alienou as outras classes sociais por meio do kitsch, que participavam do consumo de bens
acreditando serem todos indivíduos iguais.
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Segundo Umberto Eco (1972, apud JOSÉ, 2002, p.78), o kitsch é uma condição
do mau gosto, uma vez que existe a “ausência de medida”. Para ele, existe apenas uma
variação de acordo com épocas e civilizações, o que confirma o fato do kitsch sempre ter
existido.
Para entender o kitsch mais profundamente, é necessário entender como funciona
o consumo. Carmen Lúcia José explica que o consumo não é apenas adquirir. Vai além. O
consumo é, na verdade, uma “função que faz com que a vida seja um desfile acelerado de
objetos” (JOSÉ, 2002, p.62). Em relação ao consumo, o kitsch teve dois grandes momentos.
Primeiro, no contexto da ascensão da burguesia, com a consciência dos valores que os objetos
possuíam. Segundo, quando o objeto é transformado em um produto com a vida útil muito
curta. Nesse segundo momento, origina-se o brega. Vale lembrar que o kitsch opõe-se à
simplicidade, enquanto o brega a valoriza.
Muitas outras características diferenciam o brega e o kitsch. Carmen Lúcia José
explica que o Kitsch vive entre “o original e o banal”, enquanto o brega vive apenas “do
banal, do repetitivo”. É importante, no entanto, ter cuidado para essa afirmação não cair no
vão dos questionamentos pejorativos sobre o brega. É como se o kitsch se ligasse à produção
e criação, enquanto o brega se relacionasse com a cópia. Esse conceito não cabe nessa
monografia, uma vez que trabalharemos com criações bregas e a riqueza do discurso que as
letras bregas carregam.
É comum achar que os dois são a mesma coisa, porque todos são classificados
como mercadorias ordinárias. Esse é um pensamento carregado de preconceito comum nas
pessoas que tem como base a cultura erudita.
2.3 O KITSCH MUSICAL
Por mais que kitsch e brega não sejam sinônimos, é necessário entender a relação
do primeiro com a música. O kitsch na música possui relação com canções de entretenimento.
Vale lembrar que são canções clássicas, uma vez que o kitsch se caracteriza pela
popularização do erudito, do clássico, do que faz parte do gosto burguês. No livro de
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Abraham Moles, O Kitsch, o autor apresenta uma lista de compositores mais admirados pelo
grande público na época, ou seja, em 1986. São eles:
Tabela 1 ― Compositores mais admirados pelo grande público em 1986, para Abraham Moles
Chopin
15%
Tchaikovsky
24%
Strauss
25,9%
Bach
31%
Schubert
34%
Wagner
38%
Verdi
41%
Beethoven
67%
Lehar
88%
Mozart
153%
Fonte: livro O Kitsch, de Abraham Moles.
Abraham Moles enumera algumas características do kitsch musical. Primeiro, “a
desproporção entre os meios empregados e o tema ou fatores fundamentais” (MOLES, 1986,
p. 130). Por exemplo, uma orquestra tocando um funk carioca, ou seja, uma música
considerada pelo senso comum sem muito valor cultural.
Segundo, a acumulação de efeitos, que visa uma sinestesia musical. Com o uso
desse princípio, muitos canais sensoriais são estimulados ao mesmo tempo. Trazendo isso
para exemplos mais atuais podemos ver o grande aparato tecnológico que envolve os shows
de estrelas do Sertanejo universitário, do forró e até mesmo do tecnobrega. Todos são
exemplos de kitsch, uma vez que eram elementos típicos de um setor social, mas, ao
agradarem uma classe que tem o poder de disseminar algo, passaram a ser populares. Isso não
é um exemplo de fusão, uma mistura social, é mais característico de uma segregação, na qual
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a classe com poder de difusão passa para as outras classes algo que lhe agrada. Essa
disseminação é feita por meio de “mercadorias culturais, de bens de consumo, de serviços e
das mídias” (JOSÉ, 2002, p. 79). Também não são bregas partindo do conceito que é utilizado
nessa monografia.
Terceiro, meio termo, ou seja,
inserção do cotidiano da execução (instrumento, etc.) de obras concebidas e
compostas para um contexto de exceção (igrejas, coros, etc.): a marcha nupcial de
Mendelsohn no acordeão, a serenata de Toselli em órgão, a Nona Sinfonia em
orquestra de cervejaria (MOLES, 1986, p. 131).
O kitsch musical pode ainda ser dividido em categorias, mas Abraham Moles
apenas as indica e as exemplifica, sem grandes aprofundamentos. São elas: kitsch exótico (são
exemplos as músicas “Danúbio Azul”, “Olhos Negros” e “La Paloma”), kitsch romântico
(fala de amores secretos e pode se aproximar do brega, por conta da temática), kitsch kitsch
(por exemplo, a adaptação de uma música húngara para uma orquestra de blues) e o kitsch
erótico (canções carregadas de duplo sentido, o que permite um paralelo com os exemplos de
kitsch atuais, exemplificados acima.
Sertanejo universitário, o forró e até mesmo o
tecnobrega).
2.4 A MÚSICA BREGA DESPIDA DE PRECONCEITOS
Antes de mergulhar em conceitos sobre o que é brega, é necessário saber que essa
vertente musical, antes de ter uma explicação acadêmica, possui um conceito ligado ao senso
comum. As palavras “brega” e “cafona”, por exemplo, fazem parte do vocabulário do
brasileiro. Quando faladas, carregam estereótipos nacionais, preconceitos enraizados e rótulos
pejorativos. Isso causa preocupação e, baseada nessa inquietação, vejo a importância que tem
a apresentação da história e do conceito de brega.
No livro Eu não sou cachorro, não, Paulo Cesar de Araújo explica que esse estilo
de música se originou da Jovem Guarda. Essa última deriva de um programa homônimo
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exibido na Rede Record de 1965 a 1968, apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e
Wanderléa. Segundo Marcelo Fróes, no livro Jovem Guarda em Ritmo de Aventura (FRÓES,
2000), a Jovem Guarda representa um importante “momento” musical na história do Brasil,
com férteis vertentes musicais nos anos 1960, incluindo a música brega.
O programa estimulou mudanças no cotidiano dos jovens brasileiros, por conta da
influência da mídia televisiva. Estilos de vida eram mostrados. Os ídolos da juventude
apresentavam aos telespectadores maneiras de se vestir, como falar, o que pensar e como se
comportar. O contexto dessa época era a expansão da televisão. Ela chegou ao Brasil na
década de 1950, iniciando seu crescimento na década seguinte, coincidindo com o período em
que surgiu o movimento da Jovem Guarda, que também contou com divulgação através de
programas de rádio.
O programa da Jovem Guarda existiu apenas entre 1965 e 1968, mas apresentou
ao Brasil muitos talentos musicais; alguns deles mais tarde seriam de extrema importância
para a música brega. É importante notar que cantores atualmente considerados bregas tiveram
ligação com a Jovem Guarda. Reginaldo Rossi, por exemplo, foi líder dos The Silver Jets,
participando de alguns programas da Jovem Guarda. Depois o cantor decidiu seguir carreira
solo e se auto intitular Rei do Brega. A cantora Kátia, outro exemplo,também teve sua ligação
com a Jovem Guarda, uma vez que Roberto Carlos era o seu padrinho artístico.
A “música brega” também tem suas raízes em outros ritmos. Waldick Soriano, por
exemplo, cantou boleros como “Quem És Tu?” e “Só Você”; em 1961 lançou o tango “Dona
do meu coração” e o merengue “Amor de Vênus”. Nelson Ned, Lindomar Castilho e Claudia
Barroso também sofreram influência hispânica, presente no Brasil desde a década de 40, e,
por isso, cantaram boleros. Benito di Paula, Luiz Ayrão e Wando ― esse último, no início da
carreira, ainda não cantava baladas românticas― pertenciam à linha do samba ou "sambãojóia", como era chamado na época. Existiam ainda as baladas românticas com Paulo Sérgio,
Odair José, Evaldo Braga e Agnaldo Timóteo. Elas foram consolidadas por Roberto Carlos e
os músicos da Jovem Guarda. Essa mistura acontece porque a “música brega” se apropriou do
samba, das baladas românticas e do bolero, o que pode dificultar, muitas vezes, uma definição
e classificação desse tipo de música.
É importante voltar no tempo e analisar os ritmos que deram origem à música
brega. A música “cafona” recebeu influências do samba, em especial o samba-canção, uma
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vez que esse último tem como característica a letra romântica. O ritmo precisou de 20 anos
para se consolidar. Antes disso, era rotulada apenas a categoria de “samba”. Em 1948, o
samba-canção assumiu a hegemonia da música brasileira, deixando de lado a valsa e o foxcanção. Esse ano ainda marca uma popularização do bolero, ritmo que também influenciou a
música brega.
O bolero estava presente na programação das rádios brasileiras desde os anos
30. No entanto, em 1945, foi a consolidação do ritmo por meio da canção “Santa”, de Agustín
Lara, tema do filme Santa: o destino de uma pecadora. O grande sucesso abriu o mercado
cinematográfico brasileiro para a exibição de filmes mexicanos. Com as películas
estrangeiras, vieram os boleros. Para Jairo Severino, autor de Uma História da Música
Popular Brasileira, “a força do bolero, digamos, potencializou a moda do samba-canção”
(SEVERIANO, 2008, p. 290). Juntos os dois ritmos influenciaram o surgimento do brega.
O samba-canção foi organizado em duas categorias: a tradicional e a moderna.
A tradicional tinha inspiração poética e musical na Época de Ouro, os expoentes eram
Lupicínio Rodrigues e Herivelto Martins. Já a corrente moderna era renovadora tanto para o
samba-canção como para a Música Popular Brasileira. Essa última categoria inspirou a bossa
nova, enquanto o samba-canção tradicional inspirou, juntamente com o bolero e as baladas
românticas da Jovem Guarda, a música brega.
No final da década de 1960, o samba-canção começou a perder popularidade.
Era a época dos festivais televisivos, que davam espaço para baladas de ritmos variados.
A consolidação da música brega vem entre 1968 e 1978, quando artistas como
Odair José, Nelson Ned, Agnaldo Timóteo, Waldik Soriano, Cláudia Barroso, Benito di Paula
e a dupla Dom & Ravel apareciam nas listas das mais altas vendagens do mercado
fonográfico e seus discos batiam recordes de execução em rádios. Algumas das músicas de
sucesso eram “Eu Não Sou Cachorro, Não”, “Pare de Tomar A Pílula”, “Vou Tirar Você
Desse Lugar” e “Cadeira de Rodas”.
2.5 A ORIGEM DA PALAVRA “BREGA”
20
No Dicionário Brasileiro de Insultos (ARANHA, 2002, p. 60), o termo “brega”
está entre as palavras de significado pejorativo e o verbete traz ainda uma das possíveis
origens do termo:
Brega: de mau gosto, de baixo nível. Consta que a palavra teve origem em Salvador,
mais propriamente numa área urbana de baixo meretrício onde uma placa indicando
a rua Padre Manuel da Nóbrega teve gasto o letreiro, sobrando apenas as duas
últimas sílabas. Aplica-se a pessoas que se mostram sem elegância, que exibem mau
gosto. (ARANHA, 2002, p. 60)
Em 1989, durante uma entrevista coletiva para promover um show na casa de
espetáculos “Olympia”, em São Paulo, Wando contou que a origem do termo “brega” vinha
de uma boate no Norte ou no Nordeste, ele não lembra ao certo, que se chamava Manuel da
Nóbrega. Roubaram parte do letreiro e ficou apenas Manuel Brega. Por conta disso, as
pessoas começaram a usar a expressão “vamos ao brega”.
Morais Moreira tem outra versão para a história. Para ele, Manuel da Nóbrega
seria uma rua “da pesada” localizada na Bahia, que, segundo o dicionário de Houaiss, essa
região de que Morais Moreira fala é tratada como “zona de meretrício”. Isso mostra a
aproximação da música brega com o universo da prostituição, tema abordado por essa
monografia.
Para Paulo César de Araújo, o conceito de música brega ―despido de
preconceitos, vale ressaltar― é o seguinte:
A palavra “brega”, usada para definir esta vertente da canção popular, só começou a
ser utilizada no início dos anos 80. Ao longo da década de 70 ― período que
compreende o universo desta pesquisa ― a expressão utilizada é ainda "cafona",
palavra de origem italiana, “cafóne”, que significa indivíduo humilde, vilão, tolo.
Divulgada no Brasil pelo jornalista e compositor Carlos Imperial, a expressão
“cafona” subsiste hoje como sinônimo de “brega”, que, segundo a Enciclopédia da
Música Brasileira, é um termo utilizado para designar "coisa barata, descuidada e
malfeita" e a "música mais banal, óbvia, direta, sentimental e rotineira possível, que
não foge ao uso sem criatividade de clichês musicais ou literários". Ressalto que
sempre que eu fizer referência ao repertório “cafona” ― a palavra aparecerá entre
aspas porque contém um juízo de valor impregnado de preconceitos com os quais
não compartilho ―, estarei me referindo àquela vertente da música popular
brasileira consumida pelo público de baixa renda, pouca escolaridade e habitante dos
21
cortiços urbanos, dos barracos de morro e das casas simples dos subúrbios de
capitais e cidades do interior. (ARAÚJO, 2002, p. 20)
Por fim, por meio desse primeiro capítulo de monografia, conclui-se que alguns
fatores colaboram para que o brega seja visto como algo consumido apenas “pelo público de
baixa renda, pouca escolaridade”, como disse acima Paulo Cesar de Araújo. Fontanella aponta
o processo de hierarquia classista, a imposição de papéis para as diferentes condições
culturais de status dentro de uma sociedade e as transgressões causadas pelos artistas bregas.
Já Paulo César de Araújo, comenta a difícil classificação do brega, apontada pela crítica
musical. Carmen Lúcia José mostra que o valor cultural que o brega carrega contribui para a
associação desse produto com algo de mau gosto. Assim, concluímos que o mau gosto é
atribuído ao brega por conta da forma pejorativa como esse estilo de música ainda é visto pela
sociedade.
22
3. AS PROSTITUTAS E AS ADÚLTERAS
Inicialmente, nesse capítulo, serão mostrados conceitos, autores e críticas
relacionadas às representações sociais, além da importância dessas teorias para esta
monografia. Depois, será feito um resgate histórico da prostituição no Brasil. Em seguida,
será mostrado como as garotas de programa são retratadas na música, em destaque, no brega.
A segunda parte do capítulo mostra as mulheres adúlteras e a história da traição no Brasil,
além de abordar a infidelidade e o romance na música brega. Os conceitos, as teorias e as
informações sobre representações sociais são baseados em quatro autores: ALVESMAZZOTTI, 2008; ARRUDA, 2002; OLIVEIRA, 2004; JODELET, 1989. Todos os autores
se baseiam nas ideias de Serge Moscovici, o romeno naturalizado francês, que propôs
originalmente o conceito de representação social em 1961.
3.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
Neste capítulo, inicialmente, serão trabalhadas as representações sociais.
Conceitos, autores e críticas serão alguns dos assuntos tratados. A segunda parte do capítulo é
destinada à prostituição. A história dessa profissão no Brasil e como as prostitutas estão
presentes na música serão os temas vistos. Por fim, a última parte do capítulo aborda o
adultério como tema. A história da traição no Brasil e esse tema na música brega são
analisados.
3.1.1
Breve história do conceito de representações sociais
Quando se estuda representações sociais, a primeira pergunta feita é: por que
construímos representações? A resposta vem de Denise Jodelet. A autora explica que não
vivemos em um “vazio social”, dessa forma, compartilhamos o mundo com outros indivíduos
e neles nos apoiamos para compreender, gerenciar ou afrontar.
Por isso as representações são sociais e são tão importantes na vida cotidiana. Elas
nos guiam na maneira de nomear e definir em conjunto os diferentes aspectos de
nossa realidade cotidiana, na maneira de interpretá-los, estatuí-los e, se for o caso, de
tomar uma posição a respeito e defendê-la (JODELET, 1989, p. 1)
23
Em relação ao campo de estudos das representações sociais, segundo Alda Judith
Alves-Mazzotti, ele se inicia em 1960, na França, com o aumento do interesse pelos
fenômenos do domínio simbólico. A partir deles cresce a vontade de explicá-los por meio das
noções de consciência e de imaginário, segundo Angela Arruda. Foi com a publicação da obra
La Psychanalyse, son image, son public, de Moscovici, em 1961, que a matriz da teoria é
lançada.
Na década seguinte, começa a surgir na Europa um número significativo de
pesquisas nessa área. No entanto, foi somente na década de 80 que os estudos em
representações sociais chamaram atenção de pesquisadores e de revistas especializadas por
meio de um grande número de publicações em inglês e de trabalhos realizados. Do fim dos
anos 60 ao início dos anos 80, período de consolidação das teorias das representações sociais,
o contexto foi marcado por novos conceitos, como o de gênero, e representação de categorias
visando levá-las mais em consideração, como é o caso da noção de novos movimentos
sociais. Vale lembrar ainda que a Teoria das Representações Sociais não é atrelada a um
único campo de estudos. Ela é oriunda da sociologia de Durkheim, mas passa pela psicologia
social de Serge Moscovici e Denise Jodelet.
3.1.2
Conceito de Representação Social
Para Alda Judith Alves-Mazzotti, as representações sociais investigam como se
formam e como funcionam os sistemas de referência que são utilizados para classificar
pessoas e grupos, além de interpretar os acontecimentos da realidade cotidiana. As
representações surgem da seguinte maneira:
Nas conversações diárias, em casa, no trabalho, com os amigos, somos instados a
nos manifestar sobre eles [novas questões e os eventos] procurando explicações,
fazendo julgamentos e tomando posições. Estas interações sociais vão criando
“universos consensuais” no âmbito dos quais as novas representações vão sendo
produzidas e comunicadas, passando a fazer parte desse universo não mais como
simples opiniões, mas como verdadeiras “teorias” do senso comum, construções
esquemáticas que visam dar conta da complexidade do objeto, facilitar a
comunicação e orientar condutas. Essas “teorias” ajudam a forjar a identidade grupal
e o sentimento de pertencimento do indivíduo ao grupo (ALVES-MAZZOTTI,
1994, p.21)
24
Para Denise Jodelet, a ação de representar é o
ato de pensamento pelo qual o sujeito relaciona-se com um objeto. Este pode ser
tanto uma pessoa, uma coisa, um evento material, psíquico ou social, um fenômeno
natural, uma ideia, uma teoria etc.; pode ser tanto real quanto imaginário ou mítico,
mas sempre requerer um objeto (JODELET, 1989, p. 5)
Ou seja, não existe representação sem objeto. E, na relação sujeito e objeto, é
possível ver o seguinte: de um lado, “a representante mental do objeto que reconstitui
simbolicamente. De outro lado, como conteúdo concreto do ato de pensar, a representação
carrega a marca do sujeito e de sua atividade” (JODELET, 1989, p. 5).
É necessário lembrar que a importância do estudo das representações sociais está
atrelada ao fato delas contribuírem, segundo Denise Jodelet, na aproximação da vida mental
individual e coletiva. Além disso, segundo Alda Judith Alves-Mazzotti, o conceito de
representação social proposto por Moscovici busca a especificidade
através da elaboração de um conceito verdadeiramente psicossocial, na medida em
que procura dialetizar as relações entre indivíduo e sociedade, afastando-se
igualmente da visão sociologizante de Durkheim e da perspectivapsicologizante da
Psicologia Social da época (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.22)
O conceito de representação social não pode se confundir com cognição social.
Nessa última, os modelos explicativos têm como foco apenas os processos e a lógica
subjacente, ou seja, “o sujeito é visto como um processador de informações” (ALVESMAZZOTTI, 1994, p.37). A outra diferença possui relação com os erros cometidos pelos
sujeitos nos seus julgamentos sobre os objetos ou eventos sociais. Para a teoria das
representações sociais, não faz sentido falar em erro, pois as características “são decorrentes
das situações sociais em que esse pensamento se origina e das normas sociais que os moldam”
(ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.38).
Outro fato que não pode acontecer, segundo Alda Judith Alves-Mazzotti, é
confundir o conceito de representação social com simples “opiniões sobre” ou ainda “imagens
de”. O conceito é na verdade uma teoria coletiva sobre o real com lógica e linguagem
particulares, além de uma estrutura baseada em valores e conceitos.
25
A representação social, para Angela Arruda, é um saber social, uma vez que
conduz ao estudo de fenômenos de ordem cognitiva, orientada pelas
marcas sociais e as condições da sua gênese. Tal estudo apóia-se no
conteúdo dessas representações e se dá baseado no suporte desses
conteúdos: a linguagem, contida em documentos, práticas, falas,
imagens e outros. O estudo dos conteúdos implica assim abarcar o
campo da representação social, ou seja, a totalidade de expressões,
imagens, idéias e valores presentes no discurso sobre o objeto,
segundo Jodelet (2002). (ARRUDA, 2002, p. 140).
3.1.3 Moscovici e Durkheim
Para entender melhor as propostas e os conceitos de Moscovici, é necessário
aprofundar os conhecimentos sobre as pesquisas de Durkheim. Angela Arruda explica que:
As representações coletivas em Durkheim apresentavam razoável estabilidade e um
relativo estancamento no tocante às representações individuais, configurando-se em
algo semelhante ao group mind, como diria Moscovici. Consistiam em um grande
guarda-chuva que abrigava crenças, mitos, imagens, e também o idioma, o direito, a
religião, as tradições. (ARRUDA, 2002, p. 134).
No entanto, Angela Arruda critica a abrangência do conceito, o que o torna
“pouco operacional”. A própria sociologia acabou por deixá-lo de lado. A antropologia
acrescentou ao conceito o foco do simbólico e a história das mentalidades agregou a memória.
Movido pela necessidade de atualizar o conceito, Moscovici o remodela. O termo
“coletivas”, de Durkheim, é substituído por “sociais” e usado junto com a palavra
“representações”. “A pedra de toque do argumento foi, de um lado, o estabelecimento das
fraturas existentes nas ‘forças coletivas’ e, de outro, a maneira pela qual essas fraturas
impactam diversamente o cotidiano de grupos e indivíduos” (OLIVEIRA, 2004, p. 5). Além
disso, o contexto dessa troca é marcado pela intensa divisão do trabalho, na qual a dimensão
da especialização e a informação adquirem grande importância na vida das pessoas e dos
grupos, segundo Angela Arruda. Atualizar o conceito significa:
26
ao mesmo tempo, tornar o conceito operacional para ser aplicável em sociedades
com essas características, sociedades em que a velocidade da informação não lhes
outorga o tempo de sedimentar-se em tradição, na quais se impõe um processamento
constante da novidade, nas quais se conhece por delegação, uma vez que ninguém
tem acesso a todo o saber. (ARRUDA, 2002, p. 135).
Segundo Márcio S. B. S. de Oliveira, Moscovici resgata o conceito de
representações coletivas de Émile Durkheim além de estudar como a psicanálise foi
“percebida (representada), difundida e propagandeada ao público parisiense” (OLIVEIRA,
2004, p. 2). As conclusões desse trabalho são as seguintes:
Podemos sintetizá-las em três pontos fundamentais: 1) entre o que se acreditava
cientificamente ser a psicanálise e o que a sociedade francesa entendia por ela existia
um intermediário de peso, as representações sociais; 2) essas representações não
eram as mesmas para todos os membros da sociedade, pois dependiam tanto do
conhecimento de senso comum (ou popular), como do contexto sociocultural em que
os indivíduos estavam inseridos; e 3) no caso de novas situações ou diante de novos
objetos, como, por exemplo, a psicanálise, o processo de representar apresentava
uma seqüência lógica: tornar familiares objetos desconhecidos (novos) por meio de
um duplo mecanismo então denominado amarração – "amarrar um barco a um porto
seguro", conceito que logo evoluiu para sua congênere "ancoragem" –,
e objetivação, processo pelo qual indivíduos ou grupos acoplam imagens reais,
concretas e compreensíveis, retiradas de seu cotidiano, aos novos esquemas
conceituais que se apresentam e com os quais têm de lidar. (OLIVEIRA, 2004, p. 2)
Ainda para Márcio S. B. S. de Oliveira, Serge Moscovici tem a obra
classificada dentro das ciências sociais como pertencente ao campo da sociologia do
conhecimento. Segundo o autor do artigo, Moscovici não se interessou apenas em entender
como o conhecimento é produzido, mas também em analisar seu impacto nas práticas sociais
e dessas últimas no conhecimento. Como Moscovici comenta, interessou-se no “poder das
ideias” de senso comum. Ou seja, para ele, “estudo de como, e por que as pessoas partilham o
conhecimento e desse modo constituem sua realidade comum, de como eles transformam
idéias em práticas” (DUVEEN, apud, OLIVEIRA p.8). Em resumo, Moscovici interessa-se
em compreender como os grupos, os atos e as ideias constituem e transformam a sociedade.
Vale lembrar que essa preocupação está presente desde a tese de doutorado do autor publicada
em 1961, segundo Márcio S. B. S. de Oliveira.
27
3.1.4 Autores que também colaboraram com as teorias das representações sociais
Além de Émile Durkheim e Serge Moscovici, outros autores influenciaram as
teorias de representações sociais. Começaremos por Denise Jodelet, já citada nessa
monografia e a principal colaboradora de Moscovici, além de ser responsável pelo
aprofundamento teórico, esclarecimento de conceitos e de processos formadores das
representações sociais, segundo Alda Judith Alves-Mazzotti. A autora conceitua as
representações sociais com “uma forma específica de conhecimento, o saber do senso comum,
cujos conteúdos manifestam a operação de processos generativos e funcionais socialmente
marcados. De uma maneira mais ampla, ele designa uma forma de pensamento social”
(ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.27).
Doise (1989) é outro importante autor. Ele propõe uma abordagem integrada
das atitudes, relacionando o estudo do indivíduo à sua inserção em sistemas de natureza
societal e às relações simbólicas entre autores sociais, incluindo as diferenças entre os
indivíduos, os grupos e as culturas. O autor ainda propõe a utilização da tipologia elabora por
Moscovici sobre opiniões, atitudes e estereótipos.
Hewstone e Ross também são autores que contribuem com as teorias de
representações sociais. Para o primeiro,
as representações sociais podem ser consideradas, nesse contexto, como “quadros de
referência que classificam e selecionam a informação, assim como sugerem
explicações” (p.208). Propõe integrá-las ao estudo do “processamento socializado”
(usando aqui uma expressão de Wells), o qual busca compreender como as pessoas
aprendem a respeito das causas dos eventos sociais e adotam hipóteses culturais
através do processo de comunicação (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.38).
Já para Ross,
apesar da grande atenção dada aos estudos de esquemas e “scripts”, os progressos
relativos ao seu papel na precisão ou no erro inferencial são desanimadores. Conclui
que é necessário saber como os esquemas são recrutados, pois continuamos
ignorando o que faz um observador ou um ator social ser levados a aplicar um dado
esquema a uma dada situação (ROSS, 1981). A teoria das representações sociais
permite superar esse impasse, como o reconheceu Hewstone. (ALVES-MAZZOTTI,
1994, p.38).
28
Autores como Lévy-Bruhl, Vygotsky, Jean Piaget e Freud também são
importantes para as teorias das representações sociais. Moscovici recorreu a esses primeiros
autores como base para explicar algumas questões. Piaget contribui por meio dos seus estudos
relacionados ao desenvolvimento do pensamento das crianças, estruturado a partir de
imagens e também por corte-e-cola, juntando fragmentos do que a criança já
conhece para formar uma configuração que traduza o que ela desconhece ― o que
muitas vezes se manifesta mais claramente para os adultos como o “falar errado” das
crianças. Mas também, a partir do julgamento moral, indicando a importância do
contato com os adultos, primeiramente, e com outras crianças, mais tarde, para o
desenvolvimento desse tipo de juízo e para a construção das regras pelas crianças.
(ARRUDA, 2002, p. 135).
Já Lévy-Bruhl, contribui por meio de estudos sobre o pensamento místico que,
presente em povos distantes, mostra diferentes formas lógicas para pensar o mundo, levando
em conta princípios diversos do pensamento ocidental. A contribuição de Freud vem das
teorias sexuais das crianças que indicam como elas
elaboram e internalizam suas próprias teorias sobre questões fundamentais para a
humanidade, teorias que carregam as marcas sociais da sua origem: a experiência
vivida no seu grupo, na sociedade, e o diálogo com outras crianças, como as teorias
que explicam o ato sexual. (ARRUDA, 2002, p. 136).
Por último, Vygotsky é usado por Moscovici para traçar um paralelo com
Piaget. O primeiro autor tem ligação com o marxismo soviético e acredita, juntamente com
Lévy-Bruhl, que:
uma mesma cultura pode gerar distintas representações, não havendo empréstimos
ou substituições entre elas, mas eventualmente "saltos" ou "revoluções". O autor
contextualiza este debate sobre o caráter universal ou evolucionista das
representações nos anos de 1920 e em plena polêmica marxista-leninista em torno
do "controle" da consciência social e do destino único das sociedades européias. As
possibilidades históricas de então – tanto o marxismo como o nazismo, como bem
demonstrou Karl Mannheim – foram igualmente mortíferas, abreviando assim o
debate que se iniciava. (OLIVEIRA, 2004, p. 4)
29
3.1.5 Crítica às teorias das representações sociais
Segundo Alda Judith Alves-Mazzotti, os questionamentos são de nível teórico
e se referem à falta de clareza na definição dos conceitos. A principal crítica liga-se ao uso do
termo “social” aplicado às representações. Para Harré (1984; 1989), existe uma tripla
ambiguidade no uso dessa palavra:
o termo é usado para indicar que a representação é de um objeto social, ou que ela
própria, enquanto entidade, é algo social, ou, ainda, que a representação é social por
ser partilhada por um grupo. Para Harré esta última concepção seria aplicável apenas
a grupos reais, que se intercomunicam, desempenham papéis e têm entre si relações
de compromisso. (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.32).
Já para Codol (1988), é legítimo o uso do termo “social”, uma vez que as
pessoas se apropriam, atualizam e expressam as formas sociais das culturas e dos grupos que
fazem parte.
Potter e Litton (1985) também fizeram outra crítica às representações sociais.
Os autores questionam o fato de que apesar de um sujeito participar de vários grupos, nada
garante que ele sinta realmente uma identidade com aquele grupo especificado pelo
pesquisador. Essa crítica alerta para a necessidade de estabelecer critérios analíticos na hora
de escolher os grupos em estudo (LEME, 1993), além de obter informações detalhadas sobre
os indivíduos envolvidos, por meio da análise de dados.
Os autores ainda mostram preocupação com outra questão pouco clara, segundo
eles: que tamanho devem ter os grupos e qual o nível de consenso necessário para que se
possa dizer que estamos frente a uma representação social? Alda Judith Alves-Mazzotti alerta
para a grande variação desse ponto nas pesquisas. “Moscovici, em seu estudo sobre a
psicanálise, trabalhou com um grande número de sujeitos (2.265); trabalhos posteriores,
porém, usaram grupos bem menores, alguns não chegando a uma dúzia de sujeitos” (ALVESMAZZOTTI, 1994, p.33).
Outro problema é apontado por Márcio S. B. S. de Oliveira. Um dos principais
erros enfrentados pelas teorias das ciências humanas é generalizar tomando como base
observações locais, ou seja, a “teoria das representações sociais apresentam (sic) certa
incapacidade de passar da micro à macrosociedade” (OLIVEIRA, 2004, p. 6).
30
3.1.6 Como trabalhar com as representações sociais
De acordo com Denise Jodelet, as representações sociais trabalham com
“fenômenos diretamente observáveis ou reconstruídos por um trabalho científico”
(JODELET, 1989, p. 1). Depois de alguns anos, esses fenômenos se tornaram um objeto
central das ciências humanas, segundo a autora. Ao redor deles formam-se um domínio de
pesquisa constituído por instrumentos conceituais e metodologias próprias, o que interessa a
várias disciplinas. A autora lembra também que as observações das representações sociais
“circulam nos discursos, são carregadas pelas palavras, veiculadas nas mensagens e imagens
mediáticas, cristalizadas nas condutas e agenciamentos materiais ou espaciais” (JODELET,
1989, p. 1). Por isso, a relevância do estudo das representações sociais para a minha pesquisa
está no fato dessa teoria interessar-se pelos grupos sociais e os indivíduos que o compõem, no
caso dessa monografia, a música brega e seus personagens, ou seja, as prostitutas e as
mulheres envolvidas em traições.
Alda Judith Alves-Mazzotti explica que os estudos de representações sociais
podem apresentar várias abordagens, uma vez que eles são relacionados a diversas áreas e não
há uma metodologia “canônica”. Por conta dessa variedade, o pesquisador deve ter em mente
as questões que pretende responder. De acordo com Denise Jodelet, o estudioso deve
responder a dupla pergunta que constrói a base da teoria: “como o social interfere na
elaboração psicológica que constitui a representação e como essa elaboração psicológica
interfere no social” (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.34). Esse questionamento ajuda a perceber
como a visão social contribui na formação da figura da prostituta e da mulher adultera.
Ao estudar as representações sociais como produtos, deve-se procurar “apreender
seu conteúdo e sentido através de seus elementos constitutivos: informações, crenças,
imagens, valores, expressos pelos sujeitos e obtidos por meio de questionários, entrevistas,
observações, análise de documentos, etc”. (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.34). Já quando as
representações sociais são estudadas como processo, “estamos interessados na relação entre a
estrutura da representação e suas condições sociais de produção, bem como nas práticas
sociais que induzem e justificam” (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.34). Isso requer a análise de
aspectos culturais, ideológicos e interacionais. No entanto, Alda Judith Alves-Mazzotti afirma
que não se pode exigir que o pesquisador individual capte toda a complexidade dos processos
envolvidos no estudo das representações sociais.
31
3.2 BREVE HISTÓRIA DA PROSTITUIÇÃO NO BRASIL
Como foi visto anteriormente, segundo Alda Judith Alves-Mazzotti, as
representações sociais são teorias coletivas sobre o real com lógica e linguagem particulares,
além de uma estrutura baseada em valores e conceitos. Por conta disso, antes de discorrer
sobre as prostitutas na música brega, é necessário entender a história dessa profissão, uma vez
que essa história contribui para a forma das representações sociais.
Tudo começa ainda na descoberta do Brasil. Para pensar em prostituição, ou seja,
em entrega do corpo sem amor, Eliana dos Reis Calligaris, em Prostituição: O Eterno
Feminino, relembra da entrega do corpo da índia aos colonizadores. “Não foi necessária a
intermediação da linguagem, numa espécie de antecipação: ‘É o meu corpo que ele quer!’”
(CALIGARIS, 2005, p.66).
Cultural, adultério ou prostituição? É importante entender que muitos fatores
uniram a mulher índia e o homem português. O econômico não era um desses motivos, por
tanto não se pode falar em prostituição, uma vez que um dos fatores que mais caracteriza esse
ato é justamente a troca comercial que envolve sexo e dinheiro.
Segundo Gilberto Freire, em Casa Grande & Senzala, as circunstâncias (índias
andando nuas) facilitavam a luxúria. Além disso, os colonizadores possuíam um “sentimento
de justiça”, ou seja, uma necessidade de conviver bem com os índios. No início do período
colonizador, essa união acontecia pela escassez de mulheres brancas, depois era por
preferência sexual mesmo. Algumas índias se entregaram aos colonizadores por acreditarem
que eles eram deuses, além delas acharem que os europeus eram mais luxuriosos.
Dando um salto no tempo, agora no século XVIII, começa no Brasil o Século de
Ouro. Era época de explorar o interior da colônia, as capitanias de Minas Gerias, Bahia, Goiás
e Mato Grosso. Grande quantidade de ouro e de diamantes vinha desses lugares. No entanto, a
dicotomia era grande. De um lado, riquezas eram ostentadas, do outro, mulheres pobres viam
na prostituição uma forma de ganhar dinheiro, uma atividade complementar. Tudo isso se
passa no contexto do rápido povoamento dos sertões pelas pessoas que, com facilidade, eram
transformadas em ricos por meio do ouro.
As vendas eram parte de uma economia de abastecimento. Nelas podiam ser
encontrados produtos alimentícios. Lá eram lugares também considerados de “perigo social” e
32
“suposta imoralidade”, uma vez que se assemelhavam a alcovas. O secretário do governo de
Minas, Manuel Afonseca de Azevedo, preparou uma longa representação tratando desse
assunto e encaminhou-a ao rei, em 1732.
Os moradores, em grande número, têm casas de venda de comer e beber, onde põem
negras suas para convidarem os negros a comprarem [...]. Muitas vezes sucedem
retirarem-se os senhores das casas das vendas, dando os passeios [...] para darem
lugar a que as negras fiquem mais desembaraçadas para o uso de seus apetites
(PRIORE, 2010. p. 150)
Como se pode ver, essa atividade muitas vezes era apoiada pelos patrões. Luiza
Pinta, exemplo trazido no livro Histórias das Mulheres no Brasil, era dona de uma venda,
Vila Rica. Ela permitia que ali sua escrava Antonia se prostituísse. O livro conta que a dona
da venda “utilizava o estabelecimento para fins torpes e desonestos” (PRIORE, 2010. p. 151).
Nesse período, a prostituição foi amplamente combatida. Um dos frutos dessa
atividade que mais preocupavam as autoridades era o aumento do número de enjeitados, que
eram responsabilidade dos cofres municipais. Além disso, a prostituição era acusada de
aumentar a mestiçagem, que “produziam um desequilíbrio “nas gentes” que parecia ameaçar a
precária ordem social” (PRIORE, 2010. p. 165).
A prostituição não se restringia às mulheres que trabalhavam nas vendas. Esse
ofício era disseminado na cultura popular de Minas Gerais. Os prostíbulos eram conhecidos
como “casas de alcouce”. Eles se multiplicavam indiscriminadamente, até próximo de
residência de pessoas importantes. Para Caio Prado Jr., a prostituição era um fenômeno de
todo o Brasil colonial, por ser “uma espécie de expressão tipicamente feminina da pobreza e
da miséria social”. Já Gilberto Freyre, ressalta a crueldade da exploração sexual dessas
mulheres, já tão exploradas pela escravidão.
Vale ressaltar, que por mais que a prostituição seja um fenômeno presente em
todo o Brasil colonial, em Minas Gerais, essa prática atingiu proporções maiores. As
exigências burocráticas da Igreja e do Estado para os casamentos legais tornavam o
matrimônio oficial quase impossível para a grande parte da população. Além disso, existiam
muitos mineradores solitários e que não se fixavam em um local, o que tornava a constituição
de família algo difícil. Outra explicação vem dos grandes tributos que a população de Minas
33
era obrigada a pagar. As mulheres que não tinham dinheiro se prostituíam para conseguir
verba e, dessa forma, não sofrerem com confiscos, multas ou prisões.
Às vezes, essas mulheres trabalhavam no próprio ambiente familiar:
Pais consentiam na prostituição de sua prole [...] Muitas viúvas parecem ter trilhado
o caminho do meretrício e, assinalando uma embrutecedora realidade criada diante
da morte do marido, arrastavam suas filhas consigo (PRIORE, 2010. p. 163).
As imigrantes também tiveram a imagem atrelada à prostituição. Por volta de
1900, as polacas, chamadas de “polaquinhas”, viram personagens importantes no Sul do país.
Elas iam trabalhar como criadas e tinham algumas regalias. Na literatura, as polacas eram
associadas às empregadas domésticas e às prostitutas. Nos jornais, era alvo de comentários
preconceituosos: “a volubilidade dos serviçais é problema que preocupa seriamente as donas
de casa” (PRIORE, 2010. p.296). As polonesas também tinham as atividades ligadas à
prostituição, uma vez que possuíam “valores morais e comportamentos social e sexual
bastante diferentes daqueles exigidos às mulheres ‘distintas’” (PRIORE, 2010. p.297).
Dando um salto na história do Brasil, do período que vai de 1880 até a Primeira
Guerra Mundial, o cenário é de mudanças no país. Os higienistas visavam formar a “mãe
burguesa”, a “mãe educadora”. Ela deveria voltar à vida para a maternidade e a família. Era
preciso ainda se deixar dominar pelo homem, pois as mulheres eram seres caprichosos. Além
disso, era essencial ser doce e frágil, o que servia para mostrar como as mulheres eram
inferiores aos homens.
Nesse contexto, qual era o espaço destinado às prostitutas e às meretrizes? Elas
eram perseguidas e estudadas pelos sanitaristas, espécie de “polícia médica”, que interferiam
no “organismo” social, para zelar pela saúde dos cidadãos e da cidade. Eles:
investigavam seus hábitos, diagnosticavam sua “doença” e tentam regulamentar a
profissão. Em nome do “perigo venero” domesticam a sexualidade feminina. Para os
médicos, a mulher pobre que se prostitui se iguala a uma criança selvagem que
precisa de proteção superior (PRIORE, 2010. p. 429).
No Brasil, a mulher ideal envolvia várias personagens em uma: “a mãe piedosa da
Igreja, a mãe-educadora do Estado positivista, a esposa companheira do aparato médicohigienista” (PRIORE, 2010. p.528), todas esses representações sociais desembocavam na
34
pureza sexual. Por isso, a virgindade tinha um enorme valor. Por meio dela era possível
conseguir um “bom casamento”, pois a sexualidade feminina era “um tipo de patrimônio
familiar”. Uma vez a virgindade perdida, em geral, a “culpa” era da menina que deve arcar
com a consequências de tal ato, que caracterizava falta de moral feminina.
A mulher que fugia ao padrão era considerada “mulher decaída”, acusada de
conseguir dinheiro por meio da prostituição. Vale ressaltar que esse moralismo não
combinava com o contexto da época, que, por exemplo, era marcado por concubinagem, não
por casamentos.
Bastava uma mulher se separar e juntar-se a outro homem para o seu antigo
companheiro a rotular de prostituta. “Qualquer mulher que não correspondia à norma ideal era
uma ‘rameira’ em potencial” (PRIORE, 2010. p.532). Elas eram caluniadas e depreciadas no
tribunal, para perderem o direito de criarem os filhos, deixando essa responsabilidade para os
homens.
Para as mulheres pobres e sem perspectivas, se não dava para serem santas, a
outra opção era ser puta.
As alternativas abertas a mulheres de origem humilde e baixo nível de escolaridade
não eram particularmente atraentes. Historiadores e antropólogos têm demonstrado
repetidamente que, para a mulher jovem e bonita, em tais circunstâncias a
prostituição soa como opção nada desprezível (PRIORE, 2010. p. 533).
É importante saber que as prostitutas não representavam um grupo à parte da
sociedade. Elas eram casadas, amasiadas, mães solteiras e viviam ao lado das mulheres
“honestas”. Na verdade elas se localizavam “entre a condenação pela moral burguesa e a
tolerância tácita para com um modo de vida que se desviava radicalmente da norma oficial”
(PRIORE, 2010. p.534).
Além do simples fato de bastar a mulher se separar para ser difamada, outro
contexto aproxima o sexo feminino à prostituição: o trabalho. Era frequente a associação da
mulher que trabalha à falta de moralidade social. Isso porque o trabalho feminino fora do
ambiente do lar podia ser responsável por destruir a família, os laços de afeto ficariam frouxos
e as crianças cresceriam sem o olhar das mães, o que resultaria em adultos ruins. As mulheres
abandonariam as representações sociais de mães dedicadas e esposas carinhosas.
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Quando as ideias anarquistas entram no Brasil, novos conceitos de relações são
propostos, incluindo a prostituição. O casamento monogâmico e indissolúvel é criticado. O
que deve acontecer é a “livre união”, na qual homens e mulheres definiriam livremente o tipo
de relação amorosa e sexual que desenvolveriam. A separação era permitida, uma vez que
deveria trazer felicidade para ambas as partes. A prostituição, por sua vez, era vista como
fruto da exploração capitalista do trabalho, o que fica longe das teorias eugenistas defendidas
pela elite que acreditavam que a origem da prostituição estava na constituição biológica da
mulher, por conta das “taras hereditárias no sistema nervoso” (PRIORE, 2010. p.598). As
ideias anarquistas não esqueciam ainda de abordar a virgindade. Esse grupo político criticava
a grande valorização da mesma pela burguesia. Além disso, era reconhecido o direito ao
prazer sexual.
3.2.1
Antes do brega, as prostitutas habitaram o samba
Segundo Paulo Cesar de Araújo, como já foi dito anteriormente, o brega nasce
com influências da Jovem Guarda, do bolero e do samba. Então, levando em conta a
influência desse último ritmo sobre o brega, esse tópico trata das prostitutas no samba.
Segundo o livro Uma História da Música Popular Brasileira, de Jairo Severiano,
o compositor e letrista Noel Rosa, por exemplo, teve a carreira dividida em duas fases. Uma
fase tratava de amarguras ligadas ao amor, como o ciúme e a traição. Ela possuía um tom
autobiográfico. A outra fase discorria sobre a alegria, eram crônicas do cotidiano que traziam
o amor à Vila Isabel e fatos inusitados tratados em tom satírico. O sambista adotava ainda o
verso livre de métrica irregular, a paródia e o poema-piada.
Um fato curioso é que as letras de Noel trazem os episódios da vida de quem
amou várias mulheres ligadas à prostituição. No samba “Dama do Cabaré”, o músico declara
amor a uma prostituta e fica triste ao saber do caráter “diplomático” da moça que no fundo
não ama ninguém. Nesse contexto duas personagens ganham destaque na discografia de Noel:
Júlia Bernardes e Juraci Correia de Morais. Para a dama da noite Júlia Bernardes, o sambista
escreveu canções como “Meu Barracão” e “Cor de Cinza”. Em uma noite de São João, no
Cabaré Apolo, localizado na Lapa, Noel conheceu Juraci Correia de Morais, a Ceci. Para ela,
o sambista escreveu “Último Desejo”. A jovem o conquistou pelo recato, o que a diferenciava
36
das outras amigas de profissão. O romance entre Noel e Ceci foi conturbado, uma vez que o
músico tinha crise de ciúmes por conta da profissão da moça.
Outra personagem que merece destaque no capítulo da história de música que
entrelaça o samba e as prostitutas é a música “Vida de Bailarina”, escrita por Dorival Silva, o
Chocolate, e por Américo Seixas. A canção é interpretada por Ângela Maria e traz a outra
vertente da prostituição, não é mostrada o amor entre uma “mulher da vida” e um homem,
mas sim o que se ouve é a própria prostituta contando sua história:
Quem descerrar a cortina/ Da vida da bailarina/ Há de ver cheio de horror⁄ Que no fundo do
seu peito/Abriga um sonho desfeito/ Ou a desgraça de um amor
Os que compram o desejo/ Pagando amor a varejo/Vão falando sem saber⁄ Que ela é forçada
a enganar/ não vivendo pra dançar, mas dançando pra viver/ Obrigada pelo ofício a bailar
dentro do vício
Como um lírio em lamaçal/ É uma sereia vadia/ Prepara em noites de orgia/ O seu drama
passional / Fingindo sempre que gosta/ De ficar a noite exposta Sem escolher o seu par/
Vive uma vida de louca/ Com um sorriso na boca/ E uma lágrima no olhar
3.2.2
Prostitutas no brega
As prostitutas são personagens recorrentes na música brega. Para Paulo Cesar de
Araújo, escritor do livro Eu não sou cachorro, não, existe uma grande diferença entre as
prostitutas retratadas pela música “cafona” e pelo samba, que vimos anteriormente. Para ele,
esse último trata as mulheres com um certo status, no contexto da Lapa boêmia frequentada
por artistas e intelectuais. Já as prostitutas da música brega são mulheres solitárias e sem
status algum.
Segundo o autor, “esta recorrência ao tema da prostituição feminina no
repertório ‘cafona’ se dá em grande parte em virtude da proximidade desses compositores
com o universo da noite” (ARAÚJO, 2005, p. 151).
37
Odair José, por exemplo, conta que conhecia de perto o universo da
prostituição. A primeira esposa de Waldik Soriano se apresentava em um cabaré de Belém do
Pára. “Mesmo sabendo tratar-se de uma prostituta. Porém, com meu amor não tem
preconceito, amei Maria José, a Zelita, até o fim de sua vida”, conta o músico no livro de
Paulo Cesar de Araújo. Nelson Ned se envolveu com prostitutas e para elas escreveu algumas
músicas, como “Quando Eu Estiver Chorando”.
Como mostra o livro livro Eu não sou cachorro, não, alguns exemplos de
importante músicas bregas com tema da prostituição são: “Secretária da Beira do Cais” (César
Sampaio), “Dama da Noite” (Patrick), “Menina da Calçada” (Fernando Mendes), “Flor da
noite” (Totó- McDonald), “Menina da noite” (Claudio Fontana), “Mulher de Ninguém”
(Antonio Carlos e Othon Russo), “Maria Pureza” (Sobreira- Da Costa) e “Maria Esperança”
(Lindomar Castilho).
3.3 LEVIANAS, AS MULHERES QUE TRAEM
Nelson Rodrigues tem uma frase famosa: “Tudo passa, menos a adúltera. Nos
botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhores
que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém”. Trazendo essa inquietude de
querer saber mais sobre a traição, chega-se a pergunta: quem são as mulheres adulteras que
constroem as histórias contadas nas músicas bregas? A pergunta é mote para um estudo da
traição, mais que isso, uma análise das representações sociais que ligam as mulheres a tal ato.
Pela etimologia da palavra “traição”, segundo Philippe Ariès, autor do livro Sexualidade
Ocidentais, sugere uma ideia de “alteração”, não de relação sexual. Algo como se a adúltera
mudasse a ordem “certa” dos relacionamentos, no caso, caracterizado por ter apenas um
parceiro.
A fidelidade passa a importar nos relacionamentos quando as pessoas decidem se
juntar para obter prazer e satisfação. Antes os casamentos, segundo Bassanezi (1997),
existiam por questões econômicas e por status. Nessa época, a traição masculina era tolerada,
era uma forma de satisfazer os desejos sexuais.
3.3.1
Introdução ao mundo do adultério
No artigo “O combate da castidade”, presente no livro Sexualidades Ocidentais,
de Philippe Ariès e André Béjin, Michel Foucault comenta que o adultério faz parte da
38
trilogia dos pecados da carne que são: o adultério, responsável por desobedecer a fidelidade
da união conjugal, a fornicação (relações sexuais fora do casamento) e a “corrupção de
crianças”, que não fica clara se é exploração sexual ou pedofilia. Foucault apresenta ainda as
dicas presentes no Didaché, escritos que defendem as tradições do judaísmo antigo e do
cristianismo contemporâneo. “evite conversas obscenas e olhares impudentes, pois tudo isso
engendra adultério”.
André Béjin, também autor do livro Sexualidade Ocidentais, conceitua o
adultério. Para ele, esse ato está ligado ao amor à primeira vista e ao amor fogoso. O autor
acredita que o casamento é uma espécie de “porto seguro”, no qual seria mais difícil entregarse as razões apenas do coração, que incluem o adultério. No entanto, o casamento tinha suas
regras. Uma delas era manter o decoro. “Manifestar muito livremente seu carinho pela esposa
diante de outrem era rebaixá-la ao nível da amante, até da prostituta, e por tanto atentar contra
a honra, contra a dignidade dela” (BÉJIN, 1982, p. 188). Por outro lado, o sexo na traição não
necessitava de respeito às mulheres. Nele os homens poderiam expor com mais liberdade os
seus desejos.
O pecado do adultério também aparece em uma lista feita por São Paulo. Nos
escritos, ele cita a lista das infrações e as classifica. O adultério é identificado como pecado
“contra seu corpo”, que, para São Paulo, é o local sagrado. Por isso, não se possui liberdade
para fazer tudo o que se quer com o próprio corpo. Nesse grupo de pecados existem os
seguintes delitos: a prostituição, a traição com a mulher de outro homem, finalidades que
retardam o coito (como a masturbação, por exemplo) e a homossexualidade.
É interessante perceber que a traição, tanto na lista de São Paulo como nas
observações de André Béjin, aparece apenas como um ato masculino. Para Philippe Ariès, é
como se São Paulo afirmasse que apenas os homens cometessem o pecado do adultério
“porque tem o poder e são responsáveis” (ARIÈS, 1982, p. 52). Essa visão não é exclusiva de
São Paulo. É muito comum encontrar nos estudos sobre adultério uma visão unilateral, ou
seja, que tal ato é exclusivo do gênero masculino. Quando o estudo se propõem a falar de
mulheres, é mais comum colocá-las na personagem Outra, o que também caracteriza
estereotipar a mulher como ser que não emite a ação, que é trair, mas sim pessoa usada na
ação, uma espécie de meio. A explicação para esse preconceito nos estudos pode ter relação
com a repressão à sexualidade feminina.
39
Prova dessa repressão é que existem poucas pesquisas voltadas para esse assunto.
O que se tem da época do século XVII, na Europa, por exemplo, são diários íntimos de
mulheres. Mesmo sendo uma plataforma muito pessoal, as mulheres ainda não escreviam
abertamente sobre sexo em seus diários. No entanto, uma coisa é clara: a importância da
castidade. Ela devia fazer “parte da essência feminina”. No livro Sexualidade Ocidentais,
Angeline Coreau analisa o poema de Lady Carey no qual a autora apresenta a seguinte ideia:
uma mulher que deseja “chegar às alturas” almeja um poder masculino, o da ereção. Ou seja,
uma mulher não tem o direito de se satisfazer sexualmente, pois isso é um privilégio
masculino. Isso não pertence a “esfera feminina”, termo recorrente nos manuais de etiqueta
que indicavam o que cabia às mulheres. O que é estudado nessa monografia mostra um
contexto bem diferente desse, no qual mulheres não só apresentam uma maior liberdade
sexual, como também vão além dos limites propostos pela relação antes considerada
indissolúvel, quase como “o que Deus uniu o homem não separa”, e procuram satisfação fora
desses relacionamentos.
3.3.2
Breve história da traição no Brasil
Antes de analisar as músicas bregas que abordam a temática da traição, é
necessário entender o caminho que o adultério percorreu na História do Brasil.
Entre os índios, o adultério era fortemente repudiado, como mostra o livro
História das Mulheres no Brasil. A mulher que traísse era trucidada ou “abandonada nas
mãos dos rapazes”. Se a traição gerasse um filho, a criança deveria ser enterrada viva. No
entanto, não existiam castigos para os amantes, porque os índios não deveriam criar
inimizades uns com os outros, o que poderia levar a uma guerra interna. É interessante
perceber que apesar de todo esse caráter moralista em relação à traição feminina, o mesmo
não acontecia com a virgindade. Segundo Jean de Lévy, “é muito raro entre eles que uma
jovem se case virgem” (PRIORE, 2010, p. 20).
No Brasil Colônia, a diferença entre homens e mulheres continua. Aos maridos,
era permitida uma vida mais livre, isso era admitido pelo Estado e pela Igreja. Além disso, os
homens tinham o poder sobre suas mulheres, para assegurar-lhes a honra. Quando o marido
viajava, por exemplo, ele podia deixar a esposa em uma casa de recolhimento, que podiam ser
os conventos. No livro de Mary Del Priore, conta-se o caso de uma senhora que passou 20
40
anos no Recolhimento dos Perdões, porque seu marido viajou a Lisboa e “esqueceu” a esposa
lá.
O homem sofria com a possibilidade de ser traído, pois caso isso acontecesse, ele
seria julgado socialmente como um marido que não satisfez sexualmente a esposa. Pelo
menos, aqui já vemos a liberdade da mulher em sentir prazer, ainda que com muitas regras e
opressões. Ao homem traído, cabia ainda o direito de matar a mulher e o amante, isso era
previsto pela lei, no código penal de 1890, em nome da “legítima defesa da honra”. Muitas
tragédias aconteceram, mas o mais comum era a separação (ainda não existia o divórcio
legal) ou a mulher passava um período em uma casa de recolhimento. Ou seja,
aprisionamento e punição pelo crime do adultério.
Em um artigo intitulado de Ser mulher, mãe e pobre, escrito por Cláudia Fonseca,
é contada a história de Eutherpe R., mulher de Joaquim de C. Sobrinho. O contexto é a
República do Brasil recém consolidada. O marido acusa a esposa de “mulher adúltera”,
“mulher desregrada” e “indigna mãe”, uma vez que cometeu “um crime perante a Lei, perante
a Sociedade” juntando-se a um “homem perdido em vício, jogos e bebedagem” (PRIORE,
2010, p. 513).
A mulher é acusada e humilhada. Cláudia Fonseca analisa a fundo esse caso e
mostra que o discurso do marido traído é marcado por palavras empregadas de forma que
persuadisse os ouvintes e, dessa forma, mostrasse a culpa da mulher adúltera que pode nem
ter cometido, de fato, a traição. Para a autora, o homem do exemplo é um grande “contador de
histórias”. Quantas Eutherpes não devem ter existido? E o pior: sendo as vítimas. E quantas
ainda não existem?
Eutherpe R. ainda é acusada de ser uma “mulher desregrada” e isso é justificado
pelo fato dela ter uma patologia. A doença não é citada, mas muitas mulheres foram
condenadas por serem histéricas.
Era um momento de “disciplinarização dos corpos e mentes”, segundo Magali
Engel. Era o momento de medicalização da loucura que passava a ser uma doença mental. O
artigo traz o exemplo de M.J., mulher diagnosticada como histérica e com crises epiléticas,
que apresentou melhoras no quadro clínico depois de ter casado e mostrado “extrema
dedicação ao marido”, o que deixa claro que mulher “normal” é a submissa ao esposo, capaz
41
de anular a própria vida em prol do cônjuge. No entanto, depois M.J. o abandonou e se
relacionou com “três homens de classe baixa”. Os médicos ligavam a histeria ao fato das
mulheres rejeitarem sexualmente seus maridos e sentirem interesse por outros homens, o que
poderia levar ao “abandono do lar”. Isso destruía o papel da mãe zelosa e da esposa carinhosa.
A situação de vulnerabilidade social a qual as mulheres eram obrigadas a viver
dava margem ainda para a sedução seguida de abandono. Magali Engel, ainda em seu artigo,
conta a história de M.F.L. doméstica de 28 anos que foi seduzida e depois abandonada pelo
seu amante. A mulher tentou o suicídio e depois apresentou sintomas de histeria.
Na década de cinquenta, segundo Carla Bassanezi Pinsky, eram comuns os crimes
passionais e os castigos às mulheres adúlteras cometidos pelo maridos traídos. As autoridades
perdoavam o criminoso passional. Para as mulheres, sobrava o divórcio, pois se acreditava
que elas não seriam boas mães. Já se o marido mostrasse sinais de que estava traindo a esposa,
mas não deixasse de sustentar a família, a mulher não deveria fazer nada. A infidelidade
masculina era explicada pelo temperamento poligâmico. Toda a raiva que a mulher traída
sentisse deveria recair sobre a amante, não sobre o marido que sempre volta. Mais uma vez
mulheres, no caso a Outra, são culpabilizadas pela traição masculina.
3.3.3
A traição e o romance na música brega
Segundo Carmen Lúcia José, autora já citada nesta monografia e escritora do livro
Do Brega ao Emergente, o gênero literário romântico foi “a matriz ou o modelo copiado na
composição do discurso musical brega” (JOSE, 2002, p. 94). De fato, a exaltação do amor,
seguida dos ônus e bônus desse sentimento, está muito presente na música “cafona”. Carmen
Lúcia José ressalta ainda que o romantismo que aparece no século XIX, no Brasil, vem como
uma imitação do que era feito na Europa. Em especial, a segunda geração, desiludida com o
desenrolar dos movimentos que geraram o romantismo (Revolução Industrial e Revolução
Francesa).
E, voltando para a música brega, um dos temas que mais abordam as tristezas das
canções “cafonas” é a traição, a rejeição da mulher amada, seguida da troca por outro homem.
Isso pode ser explicado pela aproximação entre “a composição da poesia romântica e a
estrutura de composição do discurso musical brega” (JOSE, 2002, p. 100). Nas duas vertentes
42
artísticas, a arte gira em torno do EU e da forma como ele vê o mundo ao seu redor e sente as
experiências vividas.
O AMOR aparece nas letras das músicas bregas, e não só nelas, mas em todas as
canções de massa, com um conto resumido em fragmentos que dá ao ouvinte a
ilusão de ser a sua história de amor. (...) outros aspectos da vida social, das relações
pessoais não são assuntos das canções (JOSE, 2002, p. 101).
A autora afirma ainda que o valor do amor, estereotipado pela música brega, é
colocado num patamar da paixão triste e do ressentimento que são exaltados nas canções. Por
isso, as músicas apresentam um teor melancólico, como um desabafo ou uma lamentação. A
mulher que trai o homem que canta suas dores foi a semente para esses sofrimentos.
Carmen Lúcia José indica fragmentos de clichês amorosos, que servem para a
análise de temas recorrentes nas músicas bregas. Abaixo eles serão elencados e citarei
músicas em que julgo que estão presentes:
3.3.3.1 A conversa:
Os autores das músicas bregas necessitam externar seus sentimentos, suas dores,
para isso fazem uso da conversa, é um testemunho do amor, um desabafo de um sentimento
contido.
Muitas vezes, a figura do garçom aparece como um ouvinte dessas lamentações.
O garçom está na música brega atrelado à figura da bebida. O álcool é uma forma de
esquecer dores e desilusões, pode ainda liga-se ao personagem traído e curar a chamada ‘Dor
de corno’. É uma anestesia para o sofrimento. Uma das explicações para o recorrente uso da
figura do bêbado pode ser a mesma da utilização das prostitutas: os músicos pertencem ao
universo boêmio, mundo que os fazem conviver com a bebida.
Exemplo de música 1:
“Garçom! Mas eu!/ Eu só quero chorar/ Eu vou minha conta pagar/ Por isso eu lhe peço
atenção...” (“Garçom”, Reginaldo Rossi).
Exemplo de música 2:
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“Garçom, Olhe pelo espelho/ A dama de vermelho/Que vai se levantar/ Note, que até
orquestra/ Fica toda em festa/ Quando ela sai para dançar”. Em outro trecho da música:
“Garçom, amigo! /Apague a luz da minha mesa/ Eu não quero que ela note /Em mim tanta
tristeza”. (“Dama de vermelho”, Reginaldo Rossi).
3.3.3.2 O ausente:
Na música brega, o sentimento de ausência é colocado como a falta do objeto
amado e, como consequência disso, o autor da canção se sente rejeitado, uma vez que a
ausência é a “prova do abandono”. “o EU (o apaixonado) fala de sua dor, de seu sofrimento,
de suas lembranças, de suas decisões e do valor do seu amor” (JOSE, 2002, p. 106). A mulher
amada pode trair o homem e o abandonar.
Exemplo de música 1:
“E mais um dia sem você/ Mais uma noite que eu espero” (“Fui Eu”, José Augusto).
Exemplo de música 2:
“Um amor quando se vai, deixa a marca da paixão” (“Chora Coração”, Wando)
3.3.3.3 O coração:
Esse órgão possui caráter simbólico. Ele guarda os sentimentos, sofre com as
tristezas e representa o sentimento amoroso. O discurso colocado como do coração pode ainda
representar o desejo do autor da música que culpabiliza esse órgão pelo sentimento vivido,
uma vez que é simbolicamente colocado como uma parte do corpo movida apenas por
sentimentos, ou seja, nada racional.
Exemplo de música 1:
“Meu coração/ Bobo demais/É um coração coitado/Meu coração/Besta demais/É um coração
safado/Chora demais/Sofre demais/Vive atormentado/Gosta do amor/Tem medo do amor/É
um coração pirado/Canta, coração/Chora, coração/Pobre coração/Como se perdeu/O amor
é muito louco, doido/E eu te avisei” (“Coração Safado”, Reginaldo Rossi).
Exemplo de música 2:
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“Eu tento esquecer, mas não consigo/ Pois esse amor é bem maior que eu/ Viver sozinho
assim é um castigo/ Meu bem, meu coração ainda é seu”. (“Meu Coração Ainda É Seu”,
Odair José).
3.3.3.4 A dependência:
O cantor brega descobre a dependência em relação à pessoa amada quando os
dois se separam. Então, o homem é acometido pelo “mal do amor”, ou seja, “o sofrimento do
EU com a ausência do OUTRO; o fim do sofrimento é algo que o EU não domina porque sabe
que só a pessoa amada pode pôr fim nele” (JOSE, 2002, p. 108).
Exemplo de música 1:
“Depois que perdi você/ Jamais tive outro alguém/Minha madrugada é fria” (“Não Consigo
Te Esquecer”, Amado Batista).
Exemplo de música 2:
“A minha historia/ Talvez seja igual a sua/ Porque quem ama se habitua/ A sofrer desilusão”
(“Taça da Amargura”, Waldick Soriano).
3.3.3.5 A destruição
Já que a dependência existe, como viver sem o ser amado? Uma das saídas
para isso é a autodestruição, uma vez que é difícil viver com o peso de ter sido abandonado
pelo objeto amado. A destruição é apresentada como uma consequência da separação.
Exemplo de música 1:
“Sinto que eu vou morrer/De tanta solidão/De tanta tristeza/De tanta paixão/Da tremenda
falta/Que você me faz/Corre, volta bem depressa/Volta, meu amor!/Vem curar/As dores desse
sofredor/Que vai pouco a pouco/Morrendo de amor” (“Morrendo de Amor”, Reginaldo
Rossi).
Exemplo de música 2:
“Oi, vem me devolver/ O gosto de viver/ Sem você, meu amor/ Eu juro que eu não sinto nada”
(“Tão Sofrido (Triste Pena)”, Reginaldo Rossi).
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3.3.3.6 A espera
A espera na música brega é caracterizada pela espécie de resolução do conflito
amoroso que separou o casal. A mulher amada voltaria e o EU teria a reconstrução da sua
felicidade.
Exemplo de música 1:
“Mas o tempo vai te convencer/ E um dia vai reconhecer/ Que sem mim não pode mais viver”
(“Fui Eu”, José Augusto).
Exemplo de música 2:
“Quando você quiser voltar/ Estou a lhe esperar/ Com todo um grande amor” (“Quando
Você Foi Embora”, Reginaldo Rossi).
3.3.3.7 Os objetos, as recordações e o saudosismo
Os objetos tocados ou usados pela mulher amada viram referência desse ser.
As referências podem ser ainda ligadas a recordações de experiências vividas ou o
saudosismo em relação a um lugar.
Exemplo de música 1:
“Eu me sento na varanda do quintal/Pra lembrar do tempo que passou/Uma vida onde
sonhos eu vivi/Tanta coisa que eu ainda não esqueci
Eu agora vejo tudo diferente/Eu agora simplesmente posso recordar/Esse mundo é passado,
não mais existe/Eu fico triste que vontade de chorar” (“Lembranças”, Odair José).
Exemplo de música 2:
“Lembro
com
muita
saudade/Daquele
bailinho/Onde
a
gente
dançava/Bem
agarradinho/Onde a gente ía mesmo/É prá se abraçar...” (“A Raposa e as Uvas”, Reginaldo
Rossi) Vale destacar que nesta música Reginaldo Rossi canta os objetos que remetem a
mulher amada e ao tempo passado. O laquê no cabelo, o vestido rodado, a lambreta, os
perfumes usados, além, claro, dos costumes da época (o patriarcalismo seguido dos fortes
valores morais).
46
3.3.3.8 A solidão
O cantor brega apresenta a seguinte situação: ele não está com a mulher amada,
por isso, se sente só e por esse motivo também acredita não ter ninguém mais na vida. Diante
dessa situação, o personagem pode apresentar o “mal de amor”, ou seja, “um amor suspenso”,
naquele momento ele não existe. Os personagens podem estar separados ou o próprio amor
pode não existir.
Exemplo de música 1:
“Às vezes eu me lembro das coisas que a gente fazia/Nosso amor era grande só existia um
caminho/ Um dia sem dizer a razão, você foi embora” ( “Que Saudade de Você”, Odair José).
Exemplo de música 2:
“você plantou e agora vai colher/ prefiro a solidão/ eu lavo as minhas mãos/ vou refazer a
vida, adeus” (“Cada Um Por Si”, Wando).
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4. ANÁLISE DAS MÚSICAS BREGAS
4.1 INSTÂNCIAS CONTEXTUAIS DA CANÇÃO
Inicialmente, serão trabalhadas as instâncias contextuais propostas por Marcos
Napolitano. Em seguida, serão analisadas as músicas “Vou Tirar Você Desse lugar”, de Odair
José, “Secretária da Beira do Cais”, de César Sampaio, “Menina da Calçada”, de Fernando
Mendes, “O Dia do Corno”, de Reginaldo Rossi, “Lua de Mel”, também de Reginaldo Rossi,
e “Eu Lhe Peguei no Flagra”, de Genival Santos. Depois da análise das músicas, será o
momento de discutir as canções à luz dos conceitos teóricos ligados às representações sociais.
Por fim, serão apresentadas as considerações finais sobre essa monografia.
Marcos Napolitano, no livro História & Música: história cultural da música
popular, explica que na análise de canções é importante estudar também o “contexto”, não só
o “texto”.
O grande desafio de todo pesquisador em música popular é mapear as camadas de
sentido embutidas numa obra musical, bem como suas formas de inserção na
sociedade e na história, evitando, ao mesmo tempo, as simplificações e mecanismos
analíticos que podem deturpar a natureza polissêmica (que possui vários sentidos) e
complexa de qualquer documento de natureza estática (NAPOLITANO, 2002, p. 7879)
Ainda segundo Marcos Napolitano, existem quatro instâncias de análise
contextual. São elas: criação, produção, circulação e recepção/apropriação. Elas estão
ligadas ao pólo “contextual”. Por meio delas, o pesquisador deve “traçar o mapa dos circuitos
socioculturais e das recepções e apropriações da música” (NAPOLITANO, 2002, p. 101).
Essas instâncias serão analisadas abaixo tendo como objeto de estudo a música brega.
4.1.1 Criação
Para Marcos Napolitano, “a canção é produto de uma subjetividade artística”
(NAPOLITANO, 2002, p. 100). As músicas apresentam tradição estética, formação cultural,
singularidades biográfica e psicológica, colocação social e simbólica no tempo. Por isso, em
uma análise, é necessário o estudo do universo referencial. No caso da música brega, será
48
observado o contexto em que essa vertente musical se desenvolveu. Isso ajudará a entender as
letras.
No primeiro capítulo, o tópico “A música brega despida de preconceitos”, já foi
explorada a história das canções “cafonas”. Sabe-se que esse estilo musical nasceu na década
de 60, com influências da Jovem Guarda, do bolero e do samba-canção. Nessa mesma época,
o Brasil passa a ser governado por militares, foi o chamado golpe militar (1964-1985). As
produções culturais sofriam repressão e censura, quando iam de encontro às ideias defendidas
pelos novos governantes do país. Eles defendiam os “bons costumes” e se baseavam em
slogans e lemas como “Milagre Econômico”, “Brasil, ame-o ou deixe-o” e “Você precisa
acreditar”.
Nesse contexto, alguns cantores bregas sofreram censura e já outros, em
contrapartida, foram esquecidos pela ditadura, por acreditarem que esse tipo de música não
protesta contra situação política. Para Paulo Cesar de Araújo, “o ceticismo e a melancolia do
repertório ‘cafona’ acabam por adquirir, mesmo que não intencionalmente, um caráter
transgressor e de resistência ― principalmente quando a tristeza vinha associada às questões
sociais do país” (JOSÉ, 2002, p. 265). A canção “Eu não sou cachorro, não”, por exemplo,
inserida no contexto autoritário e excludente da sociedade brasileira, acaba ganhando outro
sentido e conotação, segundo Paulo Cesar de Araújo. Para ele, poderiam ser trabalhadores
massacrados cantando: “eu não sou cachorro, não/ para ser tão humilhado”. Essa nova
interpretação foi proposta pela primeira vez por alunos de curso de Comunicação da PUC de
Belo Horizonte, em 1973.
Artistas populares como Luiz Ayrão, Benito di Paula e Wando, por exemplo,
fizeram letras com críticas à situação do pais, mas a censura deixou passar, porque esses não
eram cantores da MPB e, por isso, “não seriam capazes de refletir e criticar” (JOSÉ, 2002, p.
127). Na música de 1977, “Presidente da favela”, por exemplo,Wando conta a história de uma
comunidade que hoje oferece melhores condições para seus moradores por conta do trabalho
de um líder comunitário. A música cheia de reflexões sociais passou despercebida pela
censura.
Odair José foge à regra. Ele não passou impune pela censura. Depois de escrever
“Vou tirar você desse lugar”, a ditadura passou a prestar mais atenção no cantor. Ele devia
49
enviar suas composições para a Divisão de Censura. Suas letras eram acusadas de ferirem “a
moral e os bons costumes”, segundo Assunção e Bonfim (2011).
4.1.2 Produção
Para Marcos Napolitano, a canção passa pela leitura, ou seja, a interpretação do
cantor e passa também por um tratamento técnico “lastreado por uma tecnologia de registro e
suporte sonoro historicamente determinado. Esta cadeia tecno-industrial, por sua vez, acaba
interferindo no próprio ato do criador e do interprete” (NAPOLITANO, 2002, p. 69).
No caso da música brega, esse processo de criação dos artistas “cafonas” foi
influenciado pelo contexto musical da época, ou seja, pelo crescimento da indústria
fonográfica. Entre 1970 e 1976, essa indústria cresceu 1.375% em faturamento, no Brasil.
Nessa época, as vendas de LPs e de compactos aumentaram de 25 milhões de unidades por
ano para 66 milhões de unidades. O consumo de toca-discos, entre 1967 e 1980, cresceu em
813%. Isso rendeu ao Brasil o quinto lugar no mercado mundial de discos, conta Paulo César
de Araujo. Muitos discos foram gravados nesse período. Eram sambas, boleros e baladas.
4.1.3 Circulação
Segundo Marcos Napolitano, a circulação é “complexa, entrecruzada e costuma
caracterizar um determinado hábito musical ou uma forma social e histórica de escuta”
(NAPOLITANO, 2002, p. 101). No contexto da música “cafona”, a circulação dos artistas
teve uma ajuda dos programas de auditório, de acordo com Antônio Carlos Cabrera, autor do
livro Almanaque da música brega.
Almoços com as Estrelas e Clube dos Artistas eram apresentados por Airton
Rodrigues e Silva Gonçalves Rodrigues Leite, a Lolita Rodrigues. Esses eram dois
importantes programas que mostravam para o resto do pais, não só eixo Rio―São Paulo, o
que fazia sucesso. Silvio Santos também foi importante para a divulgação dos cantores
nacionais. Entre seus programas e seus quadros estavam: Os Gãlas Cantam e Dançam
(quadro exibido dentro do Programa Silvio Santos na década de 70), Música É Alegria
(primeiro programa de Silvio na TV), Qual é a música (gincana musical), Show de Calouros
50
(sempre com a participação de um cantor já consagrado) e Rei Majestade (onde apareciam
cantores já afastados da mídia).
4.1.4 Recepção/apropriação
Recepção e apropriação não significam a mesma coisa, mas Marcos
Napolitano mantém as duas juntas para efeito didático. No entanto, as duas relacionam-se
com as formas de recepção das canções, o que pode ter muitas variantes: “grupo ou classe
social; poder aquisitivo; faixa etária, gênero sexual; escolaridade; preferências ideológicas e
culturais” (NAPOLITANO, 2002, p. 103).
Na década de 70, artistas como Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil e Milton
Nascimento, em discos como "Sinal fechado", “Falso Brilhante” e "Clube da Esquina",
faziam sucesso. No entanto, eram consumidos por um público mais restrito, a classe média.
Isso reforça a ideia preconceituosa de que a música brega era consumida por quem possuía
menos estudo e menor poder aquisitivo. Rótulo que permanece até os dias de hoje, ainda que
o brega tenha ganhado status de cult, como já foi comentado.
De acordo com Paulo César de Araújo (2003), enquanto a vertente da tradição faz
uma “defesa intransigente de uma música popular brasileira ‘autêntica’, ‘pura’” (2003; p.
339); a vertente da modernidade entende “os compositores modernos como aqueles que
deram um passo à frente” (2003; p. 343). Acredita-se que “são exatamente todos estes artistas
― os da tradição e os da modernidade ― que hoje formam aquilo que o público qualifica de
MPB” (2003; p.343); já “nomes como Nelson Ned, Agnaldo Timóteo estão muito longe de
qualquer coisa do que se considera tradição ou modernidade” (2003; p. 344). Isso explica a
difícil classificação da música brega, quanto à temporalidade, o que acaba se tornando motivo
para descriminar esse estilo musical, o que já foi abordado anteriormente.
No entanto, mesmo com essas formas negativas de categorizar a música brega,
ela é responsável por auxiliar a definir as identidades culturais brasileiras. Isso acontece
porque a cultura é plural, o que permite pensamentos diversos sobre um mesmo assunto.
Enquanto os críticos e as classes intelectuais criminalizam a música brega, o público a utiliza
como forma de definir identidades culturais. Essa dupla função só é permitida porque,
segundo Alfredo Bosi:
51
Não existe uma cultura brasileira homogênea, matriz dos nossos comportamentos e
dos nossos discursos. Ao contrário: a admissão do seu caráter plural é um passo
decisivo para compreendê-la como “efeito de sentimento”, resultado de um processo
de múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço (BOSI, 2003, p. 7)
Nos últimos anos, a música brega sofreu algumas mudanças no seu processo de
aceitação pelo público e pela crítica. Algo semelhante ao que aconteceu ao samba, segundo
Vinícius Souza, mestre pela Universidade Federal da Bahia com o Projeto de Investigação
Brega: música em transformação. Para ele, esse ritmo foi alvo de preconceitos intelectuais,
nas décadas anteriores, mas foi passando por transformações, até virar um símbolo nacional.
O samba foi se expandindo para os lugares frequentados pela classe média carioca, dessa
forma, foi perdendo o que era considerado rusticidade e ganhando intelectualização.
Em relação à música brega, alguns exemplos mostram essa maior aceitação que
aconteceu nos últimos anos. Carlos Bonfim (2005) percebe um fenômeno que ele intitula de
“revisão nos estereótipos construídos historicamente”. Esse conceito denomina o que acontece
quando músicas antes cantadas por artistas considerados bregas, como Márcio Greyck, Lílian
e Reginaldo Rossi, passam a ser interpretadas por cantores que não recebem essa intitulação,
como Lenine, Zeca Baleiro, Mundo Livre, Otto, Caetano Veloso, Adriana Calcanhoto e Chico
César.
Outro exemplo é o caso de Odair José. O cantor foi intitulado pela crítica de
forma pejorativa como “Cantor das empregadas” e “Bob Dylan da Central”, uma vez que o
seu público-alvo eram pessoas de classes com menor poder aquisitivo. No entanto, a biografia
de Odair José escrita por Paulo César de Araújo em seu livro Eu não sou cachorro não e o
CD Vou Tirar Você Desse Lugar -- Tributo a Odair José em sua homenagem, com
participação de Paulo Miklos, Pato Fu, Zeca Baleiro, Mombojó, Mundo Livre S/A, dentre
outros, fizeram com que o cantor brega passasse a ser mais aceito pelo grupo que não era o
público-alvo anterior.
Ter a biografia contada no livro Eu não sou cachorro, não e a música Você não
me ensinou a te esquecer interpretada por Caetano Veloso também ajudaram o músico
52
Fernando Mendes a ser aceito. Em entrevista para o site da Musizcity (2008), o artista
confessou ter sentido dificuldades para participar de alguns programas de televisão, mas com
a ajuda do livro e da música gravada por Caetano Veloso ele diz que passou a ser encarado de
outra forma. Isso rendeu prêmios importantes, entre eles a indicação para o Gremmy Latino
2004. Uma nova fase na carreira do cantor começou e ele chegou a propor o lançamento de
um DVD em que cantores da MPB interpretariam suas músicas.
Waldick Soriano é outro exemplo. Além da biografia, também, pesquisada pelo
livro Eu não sou cachorro, não, o artista foi tema de um documentário feito por Patrícia Pillar
intitulado Waldick - sempre no meu coração. O cantor teve ainda um show ao vivo também
dirigido pela atriz e lançado em forma de DVD pela Som Livre. Esses projetos foram
transformando o artista, antes vítima de ostracismo, em músico cult. Além disso, essas novas
versões para a música “cafona” mostram que o que torna uma canção brega não é a melodia
ou a letra, que não muda nessas releituras, mas a performance de quem a interpreta. Segundo
Marcos Napolitano, a “letra” carrega os parâmetros poéticos (mote, “eu poético”,
desenvolvimento da história narrada, intertextualidade literária, tipos de rimas e formas
poéticas, figuras e gêneros de linguagem) e a “música” traz os parâmetros musicais (melodia,
arranjo, andamento, vocalização, gênero musical, intertextualidade musical, “efeitos” eletroacústicos e tratamento técnico de estúdio) (NAPOLITANO, 2002. P. 99-100)
Por mais que esses projetos, que fazem esse estilo de música ser mais aceito,
tragam inovações, a essência ainda é da música brega:
Sempre que uma inovação penetra a cultura popular, ela vem de algum modo
traduzida e transposta para velhos padrões de percepção e sentimento já
interiorizado e tornados como uma segunda natureza. De resto, a condição material
de sobrevivência das práticas populares é o seu enraizamento (BOSI, 2003, P. 11)
Agora, com um contexto em que o brega passa a ser mais aceito, essa vertente
musical convive com uma dicotomia: ora é atacado e considerado uma mercadoria de mau
gosto, ora é endeusado por ser considerado algo cult. Quando essa última situação acontece, é
possível até ver indivíduos diferentes do público-alvo que a música brega possui consumindo
essa mercadoria.
Para Carmen Lucia José, existem dois momentos de consumo do brega.
Primeiro, quando essa mercadoria é ligada a algo de mau gosto, uma vez que tem relação com
53
o proletariado. Ressalvo que não concordo com essa colocação. O segundo momento, quando
o brega se torna mercadoria cultural. Nesse último, o consumo desse objeto pode ser feito por
qualquer segmento social. No entanto, vale lembrar que os preconceitos existem mesmo com
a maior aceitação.
É importante ressaltar ainda que o gosto popular pelas músicas tidas como bregas
pode ser considerado uma herança melancólica portuguesa, em que o amor associa-se à dor, o
que pode ser visto no fado, que é “o gênero musical que melhor representaria essa tendência
cultural para o saudosismo piegas do povo português, o brega seria o representante luso desse
pieguismo” (COELHO, 1986 apud ARAUJO, 2002, p. 259).
O brasileiro é naturalmente triste, porque tristes são as três raças que contribuíram
para a nossa formação. O português é nostálgico como a lânguida toada dos seus
fados; o africano é um abatido, suas revoltas são gritos de dor contra as agruras do
exílio em que o puseram; e o índio é um sofredor, tem na alma a resignada queixa
dos rios e o murmúrio das selvas silenciosas (CARVLHO, 1984 apud ARAUJO, p.
259).
No contexto atual, existem bandas que utilizam referencias da música brega, para
compor seu estilo. A banda de Goiânia, Pedra Letícia, por exemplo, surgiu em 2005. Os
músicos tocam rock, com letras que prezam pelo lado cômico, sendo classificados como
bregas. Os temas tratados nas canções, no geral, são os mesmos de muitas baladas românticas
bregas, as dificuldades enfrentadas em relacionamentos amorosos.
“Confesso Eu Sou
Cafajeste”, “Pega uma Baranga”, “Como Que Ocê Pôde Abandoná Eu” e “Eu Não Toco
Raul” são algumas músicas do grupo.
No Ceará, uma banda que também se destaca é a Leite de Rosas e os Alfazemas.
A banda é cover, ou seja, não possuem canções autorais, nos shows, cantam músicas de
artistas já consagrados. A banda faz ainda versões bregas de músicas famosas da MPB.
Outros elementos característicos do estilo brega são usados pelos músicos, como por
exemplo, o vestuário, que é composto por roupas exageradamente coloridas e acessórios
considerados como fora de moda.
No entanto, o brega não é só música. Ele é também comportamento. Para Carmen
Lucia José:
54
O comportamento brega pode ser visto como um ajustamento que esses sujeitos
fazem, com base em escolhas amplamente pessoais, diante de um mundo de objetos
atraente, sedutores, que, nas palavras de Jean Baudrillard, atuam sobre impulsos
primitivos, antipatias e aversões tradicionais (JOSÉ, 2002, p. 79).
A autora ainda afirma que o universo brega, composto por objetos, textos e
comportamentos, acaba tornando-se referência para as populações de baixo poder aquisitivo.
Vale lembrar que essa ligação do brega com as classes baixas não pode servir de pretexto para
classificar essa vertente cultural como de baixa qualidade.
Carmen Lucia José acredita ainda que a aquisição das mercadorias brega significa
o consumo do “espetáculo que expõe/impõe a tradição como valor positivo” (2002, p. 25).
Vale lembrar que as mercadorias bregas também são consumidas por segmentos
sociais distintos do público-alvo que as caracteriza. Carmen Lucia José compara isso ao
consumo de artesanatos. É como se o valor da cultura se transformasse em adorno. A cultura
popular empresta seus elementos ou seus objetos, os quais são deslocados da sua função e do
seu grupo social característico virando uma mercadoria diferente.
Em resumo, o brega é uma maneira de selecionar e relacionar objetos e signos
disponíveis para o consumo, além de ser um conteúdo único e uma forma de fazer uma
analogia com a classe que escolheu comprá-lo. Esse paralelo é feito pelo fato de ao adquirir
um objeto brega, deseja-se parecer com determinada classe. Esse conceito aproxima-se do
kitsch, uma vez que o consumo do kitsch carrega o desejo de parecer com a burguesia.
O brega é ainda um comportamento massificado do consumo, também segundo
Carmen Lucia José. O consumidor é um receptor de informações, às quais ele responde
comprando ou não uma mercadoria. A hipótese utilizada traz uma dialética entre a mercadoria
e o consumo, “na medida em que a primeira significa o segundo, ao mesmo tempo em que o
segundo ocupa uma posição social determinada pelo primeiro” (JOSÉ, 2002, p. 14). Essa
dialética permite pensar quais são os objetos rotulados como bregas e como se caracteriza o
grupo de pessoas que adquirem esses produtos.
No consumo, a divulgação ganha um papel de destaque. Ela funciona a partir da
redundância, que expõe um modelo até obter a certeza que ele “tenha sido interiorizado pelo
55
conjunto social e, assim, passe a se constituir como uma forma, um espelho” (JOSÉ, 2002, p.
15). Os objetos são expostos, aprovados e desaprovados, ou seja, consumidos ou não.
4.2 ANÁLISE DAS MÚSICAS
Outros conceitos de Marcos Napolitano, agora tratando-se
de “letra” e de
“música”, no livro História & Música: história cultural da música popular, servem de mote
para a análise das canções bregas. As músicas estudadas são: “Vou Tirar Você Desse lugar”,
de Odair José, “Secretária da Beira do Cais”, de César Sampaio, “Menina da Calçada”, de
Fernando Mendes, “O Dia do Corno”, de Reginaldo Rossi, “Lua de Mel”, também de
Reginaldo Rossi, e “Eu Lhe Peguei no Flagra”, de Genival Santos.
Em relação aos estudos de Marcos Napolitano, existem os parâmetros poéticos,
que são ligados à “letra”: mote (tema geral da canção), identificação do “eu poético” (“quem”
fala por meio da “letra” da música) e seus possíveis interlocutores (“para quem” se fala
através da música), tipos de rimas e formas poéticas, ocorrência de figuras, gêneros literários
ou intertextualidade literária (citação de outros textos literários ou discursos). Existe ainda o
conceito de desenvolvimento, que não será usado na análise dessa monografia. Ele refere-se a
qual fábula é narrada, quais imagens poéticas são utilizadas, além de quais o léxico e sintaxe
são predominantes.
Já sobre os parâmetros musicais, ou seja, os conceitos de avaliação ligados à
“música”, são eles: melodia (pontos de tensão/repouso melódico; clima predominante, ou
seja, se é alegre ou triste, por exemplo), andamento (rápido ou lento), vocalização (tipos e
efeitos da interpretação vocal) e ocorrência de intertextualidade musical (citação de partes de
outras obras ou gêneros musicais). Parâmetros como arranjo, gênero musical, além de efeitos
eletro-acústicos e tratamento técnico de estúdio não serão levados em conta na análise das
músicas dessa monografia.
Fatores, como por exemplo, qual versão da música será analisada e história do
interprete também são levados em conta. Marcos Napolitano propõe ainda um
questionamento: “a prática musical provoca debates?”, que também é usado como mote da
56
discussão sobre as músicas. Por último, existem as classificações relacionadas aos valores
comunicativos:
Valores comunicativos: a música diz alguma coisa, similar às funções emotiva e
referencial de R. Jakobson. Valores rituais: criação de solidariedade, consciência dos
problemas cotidianos etc.. Função fática. Valores técnicos: explicitam como a
música é feita, tornam familiar seus códigos, normas e fórmulas. Função
metalingüística. Valores eróticos: música envolve, energiza e estrutura o corpo, sua
superfície, músculos, gestos e desejos. Função conativa. Valores políticos: podem
ser expressão de identidade (opositora ao sistema) ou de protesto, estrito senso
(denúncia de algo). No primeiro caso, função fática. No segundo, emotiva e
referencial. (NAPOLITANO, 2002, p. 104 e 105)
4.2.1 “Vou Tirar Você Desse lugar”, Odair José
Olha... A primeira vez que eu estive aqui/Foi só pra me distrair /Eu vim em busca do
amor/ Olha... /Foi então que eu te conheci/Naquela noite fria/ Em seus braços/meus
problemas esqueci/ Olha... / A segunda vez que eu estive aqui/ Já não foi pra distrair/ Eu
senti saudade de você
Olha... / Eu precisei do seu carinho/ Pois eu me sentia tão sozinho/ Já não podia mais lhe
esquecer/Eu vou tirar você desse lugar/ Eu vou levar você pra ficar comigo/E não
interessa/ O que os outros vão pensar/ Eu vou tirar você desse lugar/Eu vou levar você pra
ficar comigo/ E não interessa/O que os outros vão pensar
Eu sei... / Que você tem medo de não dar certo/ Pensa que o passado vai estar sempre
perto/ E que um dia eu posso me arrepender/ Eu quero/ Que você não pense nada triste/ Pois
quando o amor existe/ Não existe tempo pra sofrer
Eu vou tirar você desse lugar/ Eu vou levar você pra ficar comigo/ E não interessa/
O que os outros vão pensar/ Eu vou tirar você desse lugar/ Eu vou levar você pra ficar
comigo/ E não interessa/ O que os outros vão pensar/ Eu vou tirar você desse lugar
57
A primeira música a ser analisada é uma versão de 1972 de “Vou Tirar Você
Desse lugar”, Odair José. Essa canção foi escolhida para ser estudada porque, segundo Paulo
Cesar de Araújo, “a temática da prostituição feminina foi incorporada ao repertório “cafona” a
partir de 1972, quando Odair José alcançou grande sucesso com a balada Vou Tirar Você
Desse lugar” (ARAÚJO, 2002, p. 149).
Antes de analisar a canção, é necessário conhecer a história do compositor e
intérprete. Odair José nasceu em Morrinhos, em Goiás. Na infância aprendeu a tocar violão,
piano e gaita. Na adolescência, formou uma dupla de sertanejo com o amigo chamado
Demetrius. O colega faleceu logo depois da criação do dueto, vítima de uma reação alérgica.
Quando completou 18 anos, Odair José mudou-se para o Rio de Janeiro. Sem
dinheiro, o músico dormia na rua e chegou a trabalhar em “inferninhos e boates ‘barrapesadas’”, como intitula Antonio Carlos Cabrera.
Mas foi graças a essa vivência na noite que Odair lapidou um estilo de cantar único
e marcante. Especializou-se em narrar as mazelas dos mais desafortunados, como as
empregadas domésticas, operários, deprimidos e apaixonados. Foi maldosamente
apelidado de “terror das empregadas domésticas”, por ter nesse público muita
aceitação. Chegou a participar de dois shows um no Rio de Janeiro e outro em São
Paulo, em apoio à regulamentação da profissão dessa categoria (CABRERA, 2007.
p. 91)
O talento de Odair José também foi reconhecido por outros artistas. No
camarim de um show, Dorival Caymmi disse: ”Odair, eu sou apaixonado por aquela sua
canção que diz ‘vou tirar você desse lugar’. De todos nós compositores, você foi quem melhor
descreveu a história da puta” (ARAÚJO, 2002, p. 149).
No entanto, a história que inspirou essa canção não fala de prostitutas nem
mesmo bordéis. Segundo Paulo Cesar de Araujo, a letra faz referência à gravadora CBS, onde
Odair estava antes de trabalhar na Phonogram.
Naquele primeiro semestre de 1972 o cantor vivia o limite do desgaste de
relacionamento com os dirigentes da gravadora e o ambiente de trabalho tornava-se
para ele cada dia mais insuportável. A ideia da canção surgiu nesse contexto.
(ARAÚJO, 2002, p. 150).
58
Em entrevista a Paulo Cesar de Araujo, Odair contou que um dia saiu da
gravadora aborrecido e cantou para si mesmo “eu vou tirar você desse lugar”. Ao chegar em
casa, começou a trabalhar nos versos e na melodia tentando relacionar o problema da
gravadora com o tempo em que atuava como cantor na noite. Então surgiu “Vou Tirar Você
Desse lugar”.
Como foi mostrado, a letra e a performance partem do mesmo artista, Odair
José. O mote geral é a história de um homem que se apaixona por uma prostituta e quer tirá-la
desse emprego. Odair José representa o “eu poético” desse homem enamorado e o interlocutor
é o ser amado, a garota de programa. Em relação às rimas, Odair opta por usar versos
seguidos que terminam com palavras rimadas, por exemplo: “Eu precisei do seu carinho / Pois
eu me sentia tão sozinho”, “O que os outros vão pensar/ Eu vou tirar você desse lugar”, “Que
você tem medo de não dar certo / Pensa que o passado vai estar sempre perto ”e “Que você
não pense nada triste/ Pois quando o amor existe”. As rimas são externas, uma vez que
acontecem no final dos versos.
Já em relação aos parâmetros musicais também propostos por Marcos Napolitano,
o clima predominante é calmo, com andamento lento, e até um pouco triste, no entanto, o
refrão é um pouco mais vibrante que o resto da canção. É no refrão também que a
interpretação vocal de Odair José ganha mais força.
Por conta da temática abordada nessa música, ou seja, a prostituição, e nas outras
duas canções que serão analisadas (“Secretária da Beira do Cais”, César Sampaio; e “Menina
da Calçada”, Fernando Mendes), elas provocam debates. Isso está ligado à forma de avaliar e
analisar a eficácia política da música proposto por Richard Middeton (MIDDLETON, 1990
apud NAPOLITANO, 2002, p. 103). No caso dessa primeira canção estudada, “Vou Tirar
Você Desse Lugar”, a discussão gira em torno do amor entre pessoas de mundos diferentes,
preconceitos em relação à profissão de prostituta, a dicotomia entre amor e sexo, além de falar
sobre solidão e carência, uma vez que aponta o fato do “eu poético” precisar pagar por amor
indo a um prostíbulo. A música tem portanto valores rituais e função fática, ou seja, atuam na
“criação de solidariedade, consciência dos problemas cotidianos etc.”. (NAPOLITANO,
2002, P. 105). Além de apresentar a função emotiva, essa função refere-se ao estado
emocional de quem interpreta as músicas.
59
4.2.2 “Secretária da Beira do Cais”, César Sampaio
Ela espera e não desespera na beira do cais/ Ela quer quem vier, quem trouxer, quem der
mais/ Ela sabe que os homens de branco estão pra chegar/ E em câmara lenta ela tenta a
vida ganhar
Seu olhar inquieto vacila em qualquer direção/ O seu corpo empinado desfila na escuridão/
Ela é uma estrela que brilha na vida que traz/ Ela é a mulher maravilha da beira do cais
Fim de mês é a hora e a vez de rever os parentes/ Ela vai levando nas mãos milhões em
presentes/ Num instante se torna a mocinha do interior/ Num alguém com a pureza de quem
nunca teve um amor
Como vai pergunta o pai a filha querida/ Ele quer saber como é que está sua vida
Ela diz que é muito feliz na vida que traz/ Que trabalha como secretária da beira do cais (4x)
A segunda música escolhida para ser analisada é “Secretária da Beira do Cais”,
versão gravada em 1975, escrita por Xavier e Nenzinho e interpretada pelo cantor César
Sampaio. Vale lembrar que, para Marcos Napolitano, os cantores ou instrumentistas fazem
mais sucesso que os compositores principalmente “nas músicas de maior apelo popular,
direcionados para o sucesso fácil” (NAPOLITANO, 2002, P. 58). A canção é escolhida
porque mostra a figura da prostituta de uma maneira diferente da representada em “Vou tirar
você desse lugar”. Essa fala abertamente da história de amor de um cliente e uma garota de
programa, aquela comenta de maneira penalizada e cheia de eufemismos a dor de uma
prostituta.
Segundo o livro Almanaque da música brega, o compositor carioca César
Sampaio
teve sua primeira oportunidade na Polydor, depois de inúmeras tentativas em várias
gravadoras sem sucesso. Entrou no estúdio da Polydor para gravar uma fita de
demonstração, as famosas “fitas demos”, com a música Secretária da beira do cais,
dos compositores Chico Xavier e Nem. A banda de apoio para a gravação foi a hoje
internacionalmente prestigiada Azymulth, que na época era a banda de estúdio da
Polydor. O produtor Tony Bizarro tinha vinte artistas para produzir e, mesmo assim,
60
apresentou a “fita demo” em uma reunião com o executivo André Midani, que
autorizou a gravação do compacto imediatamente, farejando o sucesso da canção
(CABRERA, 2007. p. 34)
Ainda sobre a história de César Sampaio, também segundo Antonio Carlos
Cabrera, o cantor gravou vinte LPs, vinte compactos e noves CDs com 20 milhões de cópias
vendidas no total. Em relação aos prêmios, ganhou quatro discos de ouro no Brasil. O grande
sucesso do intérprete foi “Secretária da beira do cais”.
A canção conta a história de vida de uma prostituta mostrando a relação da
moça com a família e com os clientes. O “eu poético” é quem conta essa história e seu
possível interlocutor é o próprio público. Os compositores escolheram rimar as palavras
seguidas no fim das frases. As palavras rimadas são: “cais” e “mais”, “chegar” e “ganhar”,
“direção” e “escuridão”, “traz” e “cais”, “parentes” e “presentes”, “interior” e
“amor”,“querida”e “vida”. A rima é do tipo emparelhada, uma vez que as últimas palavras
dos dois primeiros versos rimam e o mesmo acontece com os dois últimos versos de cada
estrofe.
A canção é formada por metáforas, uma escolha para tratar de forma mais
discreta o assunto prostituição. “Secretária da beira do cais” é a profissão falada no lugar de
garota de programa. “Homens de branco” são os cliente das prostitutas, eles podem ser os
marinheiros que possuem fardamento branco e convivem na beira do cais.
Em relação aos fatores que atuam na música (MIDDLETON, 1990 apud
NAPOLITANO, 2002, p. 103) a melodia é lenta e permanece a mesma em toda a canção. Já
sobre a letra, ela faz pensar sobre a relação das prostitutas com a vida que levam, com os
clientes e com a família. Como elas lidam com isso tudo, como escondem dos pais a
profissão, como os dias passam para elas e como no fundo elas são as mocinhas puras do
interior que nunca amaram. A letra traz valores rituais e função fática, ou seja, como indica
Marcos Napolitano,conscientizam para os problemas cotidianos, no caso, o problema social
da prostituição.
4.2.3 “Menina da Calçada”, Fernando Mendes
61
Tão sozinha na calçada/ Vendo gente a passar/ O seu corpo tão pequeno/ Qualquer um
pode levar
Seu passado é tão triste/ Seu futuro ilusão/ Uma espera infinita/ Teu amor que nunca vem
Mas eu cruzei o seu caminho/ Vou mudar o seu destino/ Vou lhe dar o meu amor/ Sei que é
menina da calçada/ Mas será a minha amada
Tão sozinha na calçada/ Sem ninguém pra conversar/ Esperando por alguém/ Que talvez
nem vá chegar
Os seus olhos não encontram/O que o pensamento busca/ No seu peito uma tristeza/ E a
vontade de chorar...
Mas eu cruzei o seu caminho/ Vou mudar o seu destino/ Vou lhe dar o meu amor/ Sei que é
menina da calçada/ Mas será a minha amada/ Vou viver só pra você
A terceira música analisada é “Menina da Calçada”, versão gravada em 1976,
através da EMI Music Brasil Ltda, escrita e interpretada por Fernando Mendes em um
álbum que leva o seu nome. Segundo o site oficial do cantor, a canção ficou conhecida por
ser tema da novela exibida pela Rede Globo de Televisão, "Duas Vidas".
A música foi escolhida porque se diferencia ainda mais da outra duas
analisadas. “Vou Tirar Você Desse lugar” fala da prostituição de forma mais clara, se
comparada às outras duas. “Secretária da Beira do Cais” faz uso de metáforas para entra
nesse assunto. Já “Menina da Calçada” comenta a prostituição de uma maneira ainda mais
discreta e velada. Sem nem mesmo usar palavras que se refiram a esse mundo.
Para Paulo Cesar de Araújo, essa canção fala da prostituta de uma maneira
diferente que era mostrada antes pela música popular brasileira. “Dama do cabaré”, de
Noel Rosa, “ Quem A de Dizer”, de Lupicínio Rodrigues, e “Vida de Bailarina”, de Ângela
Maria, são exemplos de canções em que
apesar de serem “obrigadas pelo ofício a bailar dentro do vício”, as personagens
dessas canções ocupam um certo status dentro do processo de hierarquização social
62
que também permeia a atividade das prostitutas. Afinal, são todas dançarinas e mais
ou menos contemporâneas de uma Lapa ainda boêmia, frequentada por artistas e
intelectuais. Já as personagens retratadas pelos compositores “cafonas” na década de
70 são de outra ordem e atuam em outro espaço: exibem-se solitárias pelas ruas da
cidade. Como ilustram as canções Secretária a beira do cais (Xavier-Nenzinho),
Dama da noite (Patrick) e Menina da calçada, gravação do cantor Fernando
Mendes. (ARAÚJO, 2002, p. 149).
O interprete da canção analisada, Fernando Mendes, nasceu em Minas Gerais.
O cantor e compositor ficou conhecido em 1973, quando gravou o primeiro compacto
chamado A desconhecida. O primeiro LP vendeu 100 mil cópias e o seu maior sucesso foi
“Cadeira de rodas”, em 1975, no qual ele conta a história de uma cadeirante. Em 2003,
Fernando Mendes passou de cantor “cafona” para cult. Foi quando Caetano Veloso gravou
“Você não me ensinou a te esquecer” para a trilha sonora do filme Lisbela e o Prisioneiro.
A canção analisada, “Menina da Calçada”, fala da tristeza e da falta de
perspectiva de uma prostituta. Por isso, provoca reflexões sobre as condições de vida das
garotas de programa, através da função fática e do valor ritual. No entanto, tudo muda
quando o “eu poético” entra na sua vida salvando-a da melancolia. “Mas eu cruzei o seu
caminho/ Vou mudar o seu destino/ Vou lhe dar o meu amor”, diz a letra.
O compositor faz uso tanto de rimas em versos seguidos (calçada e amada,
caminho e destino) como também rima em versos intercalados (passar e levar, conversar e
chegar). A letra apresenta algumas metáforas. Em “qualquer um pode levar”, pode-se
entender como qualquer indivíduo pode se relacionar com a prostituta, basta pagar. “Cruzei
o seu caminho” pode ser uma metáfora para entrar na vida de alguém. A música tem
melodia triste reforçada pela voz rouca de Fernando Mendes. A melancolia é quebrada pelo
refrão.
4.2.4“O Dia do Corno”, Reginaldo Rossi
Hoje é o dia do corno⁄ Foi bom te encontrar⁄ Vamos tomar um bom porre⁄ Pra comemorar
A mulher que você ama⁄ Eu amo também⁄ Pelo que eu sei⁄ Ela já enganou mais de cem
63
Até um galã de novela⁄ Que dela gostou⁄ Tornou-se um pobre coitado⁄ Que ela arrasou⁄
Contigo fez gato e sapato⁄ Do teu coração⁄ Comigo deixou-me de quatro⁄ Me arrastando no
chão
Hoje é um dia pra gente⁄ Jamais esquecer⁄ Vamos unir nossas dores⁄ Chorar e beber⁄ Vamos
tomar um bom porre⁄ Pra comemorar⁄ Hoje é o dia do corno⁄ Foi bom te encontrar
Mas homem adora mentir⁄ E enganar a mulher⁄ Homem adora trair⁄ Mas a quer bem fiel⁄
Então tem que levar o troco⁄ Ele tem que pagar⁄ Sofrendo, chorando e bebendo⁄ Na mesa de
um bar
Hoje é um dia pra gente⁄ Jamais esquecer⁄ Vamos unir nossas dores⁄ Chorar e beber⁄ Vamos
tomar um bom porre⁄ Pra comemorar⁄ Hoje é o dia do corno⁄ Foi bom te encontrar
Hoje
é
um
dia
pra
gente⁄
Jamais
esquecer⁄
Vamos
unir
nossas
dores⁄
Chorar e beber⁄ Vamos tomar um bom porre⁄ Pra comemorar
Hoje é o dia do corno⁄ Foi bom te encontrar⁄ Hoje é o dia do corno⁄ Foi bom te encontrar⁄
Hoje é o dia do corno⁄ Foi bom te encontrar
As duas primeiras músicas relacionadas à traição, “O Dia do Corno” e “Lua de
Mel”, são do cantor e compositor Reginaldo Rossi. O artista é pernambucano nascido em
Recife em 1944. O cantor começou a carreira em 1964 cantando no grupo The Silver Jets. O
estilo da banda se parecia com o do cantor Roberto Carlos.
O primeiro disco foi O pão, pela gravadora Chantecler. O segundo LP lançado foi
Festa dos pães. Em 1970, Reginaldo Rossi mudou para a gravadora CBS, foi quando
“mergulhou no romantismo exagerado, criando uma marca que permanece até hoje”
(CABRERA, 2007. p. 102). Já em 1990, o cantor se torna conhecido no resto do país por
conta da música “Garçom” (gravada em 1987), o que fez o cantor vender mais de um milhão
de cópias.
Sobre a escolha da música “O Dia do Corno”, ela será analisada por ser outra
vertente do brega. Repleta de exageros românticos e, ao mesmo tempo, de um bom humor que
torna a tragédia da traição algo cômico. Por isso, em relação aos parâmetros musicais, a
64
melodia é predominantemente lenta, porém alegre, por conta desse tom jocoso, seguido de um
refrão em que Reginaldo parece aumentar um pouco o tom de voz. Em um artigo escrito por
Tiago Barbosa ao Diário de Pernambuco intitulado “REI DO BREGA: Como Reginaldo
Rossi reinventou a figura do corno”, Reginaldo comenta sobre essa canção: “É onde eu digo
tudo”. O artigo ainda fala que
As colocações simples, cômicas e quase despretensiosas cutucam a ferida aberta por
padrões patriarcais e machistas comuns à sociedade brasileira, especialmente à
nordestina, na qual o homem introjeta desde cedo a ideia de ser livre para trair,
controlar e mandar nas mulheres. Rossi compreende o quadro de subjugação. Inverte o
rumo. E equilibra os sexos no imprevisível jogo de amores e paixões. Sujeita letras
próprias ou de outros autores a um feminismo às avessas, reduz a carga de desilusões
amorosas e encaixa elementos do cotidiano para se aproximar da realidade do público,
com a licença do trocadilho, fiel às composições. (BARBOSA, 2013)
A música analisada é uma versão gravada em 1998 no CD O Melhor de
Reginaldo Rossi: ao Vivo. A letra traz como “eu poético” um “corno” que encontra no bar
outro homem, seu interlocutor, que também foi enganado pela mesma mulher que ele. O “eu
poético” desabafa e sugere que os dois unam as dores, para chorar e beber. Em determinado
momento, Reginaldo Rossi comenta: “Homem adora trair, mas a quer bem fiel/ Então tem que
levar o troco, ele tem que pagar/ Sofrendo, chorando e bebendo na mesa de um bar”. Nesse
trecho, ele faz referência à cultura machista que exige a fidelidade da mulher e, por outro
lado, entende e justifica o fato dos homens serem infiéis.
O compositor usa rimas de versos seguidas. Por exemplo, as palavras seguintes
são usadas de forma seguida: encontrar e comemorar, também e cem, gostou e arrasou,
coração e chão, esquecer e beber, pagar e bar. Reginaldo debocha do tão temível “chifre”. Por
conta dessa quebra, falar de algo trágico em tom bem humorado, a letra promove um
“choque” (NAPOLITANO, 2002, P. 103). A letra apresenta ainda valores comunicativos,
“porque diz alguma coisa” (NAPOLITANO, 2002, P. 105), no caso, ela conta a história de
um homem traído. Além de fazer uso da função emotiva, uma vez que mostra estado
emocional do interprete da música.
4.2.5 “Lua de Mel”, Reginaldo Rossi
65
Toda vez que o seu namorado sai/ Você vai ver outro rapaz/ Olha todo mundo já está
comentando/ Seu cartaz tá aumentando.
Moça linda, por favor, / Guarde todo esse amor pra um rapaz/ Dá vergonha de dizer/ O que
disseram de você mas ouça: Dizem que o seu coração/ Voa mais que avião/ Dizem que o seu
amor/ Só tem gosto de fel/ Vai trair o marido em plena lua de mel
A segunda música sobre traição analisada é uma versão de “Lua de Mel”, de
Reginaldo Rossi, gravada em 1999 para o CD Meus Momentos: Reginaldo Rossi. A escolha
da música é explicada pelo fato da letra trazer um Reginaldo Rossi diferente do cantor
apresentado nas outras canções, o que provoca o questionamento apresentado abaixo. Na
maior parte do repertório “cafona” escrito por esse compositor, o comum é ver a traição como
merecida pelo homem que também não era fiel à mulher.
O homem traído jocosamente retratado nas linhas simples dos cordéis, nas costuras
orais de rimas dos poetas populares, na piada maldosa do dia a dia ou na vingança
desmedida registrada pelas estatísticas criminais ganha, nas canções entoadas pelo
Rei do Brega, uma justificativa moral para existir e deve se conformar com os
chifres colocados sobre a cabeça (BARBOSA, 2013).
Em “Lua de Mel” vemos o contrário: uma preocupação, acompanhada de
conselhos machista, com o fato de a mulher correr o risco de ficar “mal falada”, já que traiu o
namorado. O “eu poético” avisa a sua interlocutora que “todo mundo já está comentando” que
ela se encontra com outro rapaz, quando o seu namorado vai embora. Ele aconselha: “Moça
linda, por favor,/ Guarde todo esse amor pra um rapaz”. O tom machista aparece na frase “Dá
vergonha de dizer/O que disseram de você”, que expõem o fato da menina ser alvo das
fofocas e do estigma de não servir para ser uma boa esposa. Isso fica claro em: “Vai trair o
marido em plena lua de mel”. A música poderia até, por conta da temática do machismo
presente nela, iniciar discussões sobre esse assunto e, dessa forma, apresentar valor ritual e
função fática. No entanto, a letra usa um tom jocoso para tratar a traição e o machismo, o que
acaba não deixando espaço para uma abordagem discursiva de um tema tão sério.
66
Em relação aos parâmetros poéticos, Reginaldo Rossi rima versos seguidos:
comentando e aumentando. Na última estrofe, as últimas palavras dos dois primeiros versos
rimam (coração e avião), o mesmo acontece com os dois últimos versos (fel e mel). Na
canção, duas metáforas aparecem. O avião é usado para explicar que o coração da moça é
rápido, ou seja, seus sentimentos mudam com velocidade. Por isso, ela trai o namorado. O
gosto nada saboroso do fel também é utilizado para caracterizar o amor da personagem da
canção. Já os parâmetros musicais, a melodia é predominantemente alegre e ganha mais força
no refrão, onde a musicalidade parece mais rápida e outras vozes se juntam a de Reginaldo
Rossi.
4.2.6 “Eu Lhe Peguei no Flagra”, Genival Santos
Eu lhe peguei no fragra/ E não quero explicação/ Você beijando um cara/ Com que cara?
/ Vou lhe dar o meu perdão
Eu lhe peguei no fragra/ E não quero explicação/ Você beijando um cara/ Com que cara?
/ Vou lhe dar o meu perdão⁄ Não, não, não
Você não tem coração/ Não, não, / Não quero amor a prestação/Agora estou/ Estou de
mal contigo/ Você me magoou/ Perdoar eu não consigo, eu não/ Não, não, não/ Você não
tem coração/ Não, não/ Não quero amor à prestação/ Eu lhe peguei no fragra...
A última música analisada é “Eu Lhe Peguei no Flagra”, de Genival Santos,
gravada em 1998 no CD 20 Sucessos: Genival Santos. A canção fez sucesso em meados dos
anos 70. O interessante é que a letra traz um erro de português. Genival canta “fragra” e não
“flagra”. Segundo entrevista para o blog Farofafá, da Carta Capital, o artista afirmou que hoje
brinca com o erro de português e acentua a pronúncia da palavra errada, durante os shows.
Em relação à história de vida de Genival, o cantor é paraibano da cidade de
Campina Grande. Ele começou a carreira no programa de Flávio Cavalcanti, conta a jornalista
e socióloga Fabiana Moraes, em seu blog Farofafá. Na primeira apresentação, ganhou nota
zero de quase todos os jurados que eram a cantora Maysa, o compositor Ronaldo e o cantor e
apresentador José Messias. No entanto, a atriz Márcia de Windsor deu nota dez para o novo
cantor e ainda antecipou que ele iria vender mais discos que Gilberto Gil e Caetano Veloso.
67
Dias depois, muitas cartas chegaram à produção de Flávio Cavalcante. As pessoas queriam
ver de novo Genival Santos no programa de televisão. Ele voltou e cantou “Meu Coração
Pede Paz“, música que deu nome ao seu primeiro LP que vendeu 85 mil cópias. Depois
vieram 28 discos e cinco milhões de cópias comercializadas.
A música “Eu Lhe Peguei no Flagra” foi escolhida para análise porque é uma das
canções mais presentes no imaginário popular quando se fala de traição. Na letra, o “eu
poético” fala para sua parceira, que também é sua interlocutora, sobre ter lhe pego no ato da
traição. Diferente da primeira música analisada, na qual o autor conversa com um homem
também traído, e da segunda canção que o “eu poético” conversa com uma moça que trai o
namorado, mas não tem relação com o autor.
É usada a rima solta, uma vez que as palavras rimadas não seguem um padrão. No
refrão, as seguintes palavras rimam: coração, não e prestação. Em outras partes da música,
existem as rimas: “perdão” e “explicação” e “flagra” e “cara”. O autor da música usa ainda
um jogo de palavras empregando em dois versos seguidos a palavra “cara”, mas com
significados diferentes. Na seguinte parte: “Você beijando um cara/ Com que cara?”.
Em relação aos parâmetros musicais, a melodia da canção é típica da música
brega, ou seja, é muito semelhante ao bolero, ritmo que influenciou o repertório “cafona”. A
melodia é a mesma em toda a música, mas na segunda estrofe a vocalização ganha a presença
de backing vocals. Assim como “Em Plena Lua de Mel”, o tom jocoso da música prevalece
em relação ao possível debate que ela provocaria sobre como um homem pode reagir à
traição. O mesmo acontece com o valor ritual e a função fática, a letra poderia conscientizar
para um acontecimento ligado ao cotidiano, a descoberta de um adultério, mas o tom de
brincadeira chama mais atenção do que isso. No entanto, a canção apresenta função emotiva,
uma vez que apresenta o estado emocional do interprete da música.
4.3 A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DAS MULHERES NA MÚSICA BREGA
Fazendo um apanhado das três canções ligadas à prostituição analisadas verificase que as versões são da década de 1970. “Vou Tirar Você Desse lugar” é de 1970,
“Secretária da Beira do Cais” foi gravada em 1975 e “Menina da Calçada” é uma versão de
1976. Isso ratifica a afirmação de Paulo Cesar de Araújo, em Eu não sou cachorro, não, de
68
que a canção de Odair José citada lança a temática da prostituição feminina no repertório
“cafona”. Depois dela, como pode ser visto, outros letristas se apropriam do assunto.
Já as versões escolhidas para tratar o tema da traição foram sucessos na década de
1990. “O Dia do Corno” é de 1998, “Lua de Mel”, foi gravada em 1999, e a versão escolhida
de “Eu Lhe Peguei no Flagra” é de 1998, resultado de uma coletânea de sucessos. Em relação
a Reginaldo Rossi, a fama nos anos 1990 é explicada porque o cantor ficou nacionalmente
conhecido após a repercussão da música “Garçom”, a qual já tinha sido gravada em 1987.
Em relação à melodia, um dos parâmetros musicais propostos por Marcos
Napolitano, o que predomina nas músicas analisadas é a lentidão, o que pode caracterizar uma
melancolia. Essa aparente tristeza na canção brega aproxima a música cafona do pieguismo
do fado português, como sugere Teixeira Coelho. Vale ressaltar que “Lua de Mel”, de
Reginaldo Rossi, é a única das canções analisadas que se afasta dessa melodia triste das outras
músicas. É importante também entender que o que caracteriza uma música como brega não é
a letra ou a melodia, mas a interpretação do cantor. Um exemplo que ilustra isso é o fato de
“Você não me ensinou a te esquecer”, ser considerada brega na voz de Fernando Mendes, mas
cult quando cantada por Caetano Veloso. A melodia usada pelos dois cantores é muito
semelhante, mas a interpretação de Fernando Mendes é mais visceral, mais passional. Já
Caetano é mais contido.
Em relação às rimas, que fazem parte dos parâmetros poéticos no que diz respeito
aos tipos de formas, todas as músicas usam rimas seguidas, ou seja, as últimas palavras dos
versos rimam. Todas as canções apresentam ainda a rima externa, uma vez que é no final do
verso que estão as palavras que rimam. Em “Menina da Calçada” aparecem ainda as rimas
intercaladas. Elas acontecem quando as palavras que rimam são separadas por um verso. E em
“Eu Lhe Peguei no Flagra”, as rimas soltas são utilizadas, ou seja, não existe um padrão.
Todas as canções analisadas sobre prostituição podem gerar debate. Elas são
motes para discussões sobre os assuntos que permeiam essa profissão, além de fazerem pensar
sobre as representações sociais das mulheres. Por conta disso, essas músicas apresentam
valores rituais, ou seja, criam solidariedade, uma vez que formam consciência dos problemas
do cotidiano, segundo o conceito de Marcos Napolitano. E, por isso, apresentam também a
função fática. Segundo o linguista Roman Jakobson, “dificilmente lograríamos, contudo,
encontrar mensagens verbais que preenchessem uma única função. A diversidade reside não
69
no monopólio de alguma dessas diversas funções, mas numa diferente ordem hierárquica de
funções” (JAKOBSON, 2007, p. 82). Ou seja, dificilmente um texto apresentará uma única
função. Dessa forma, ressalto ainda que as canções “Vou Tirar Você Desse lugar”, “O Dia do
Corno” e “Eu lhe peguei no flagra” apresentam também a função emotiva, uma vez que as
músicas mostram as emoções de quem canta. As canções sobre traição não geram debate por
conta do tom jocoso que apresentam. As brincadeiras relacionadas ao “corno” acabam sendo
o maior foco dessas músicas, o que leva ao adultério, o machismo e o sexismo ficam em
segundo plano.
Essas discussões geradas pelas canções sobre prostituição são justamente as
citadas anteriormente, as questões sociais relacionadas à prostituição, que aparecem nas
músicas analisadas. Inclui-se o preconceito com as prostitutas, como essas mulheres
vivenciam os relacionamentos amorosos, a solidão que esse trabalho ocasiona e como elas são
excluídas socialmente.
As músicas também geram discussões no campo da teoria das representações
sociais. Usando como base os conceitos de Jodelet, pode-se dizer que toda representação se
refere a um objeto, no caso das canções “cafonas”, esse objeto é a mulher. Esse objeto está
“imerso em condições específicas de seu espaço e tempo” (ARRUDA, 2002, p. 142).
Jodelet propõem ainda os fatores que servem como condição de produção das
representações sociais. São eles: a cultura, a comunicação e linguagem, e a inserção
socioeconômica, institucional, educacional e ideológica. No caso das representações sociais
existentes na música brega, as canções estão inseridas em um contexto cultural. Em relação às
segundas condições, comunicação e linguagem, entende-se, segundo Angela Arruda, que “a
representação social encadeia ação, pensamento e linguagem nas suas funções primordiais de
tornar o não-familiar conhecido”, o que possibilita a comunicação e favorece o controle sobre
o meio em que se vive, além de ajudar na compreensão do mundo e das relações que nele
existem. E as inserções socioeconômica, institucional, educacional e ideológica acrescentam
conteúdo às representações sociais da prostituta e da mulher adúltera.
Existem ainda dois conceitos importantes para entender o processo de formação
da representação social: a objetivação e a ancoragem. A primeira consiste na “passagem de
conceitos ou idéias para esquemas ou imagens concretas” (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.24)
e, dessa forma, as representações da prostituta e da mulher adúltera presentes nas músicas
analisadas se tornam “supostos reflexos do real” (Moscovici, apud Alves-Mazzotti, p.24). Já a
70
ancoragem, é a constituição de “uma rede de significações em torno do objeto, relacionando-o
a valores e práticas sociais” (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.24). Objeto que, no caso, é a
mulher retratada nas letras.
Como foi visto no primeiro capítulo, por mais que kitsch e brega não sejam
sinônimos, segundo Carmen Lucia José, é impossível não achar a definição de Abraham
Moles para kitsch musical do tipo romântico semelhante às músicas de brega analisadas. Para
o autor, o kitsch musical pode ser romântico quando fala de amores, como é o caso dessas
canções estudadas. Apenas “Secretária da Beira do Cais”, de César Sampaio, não apresenta o
tema romance como assunto central da letra da música. Vale lembrar que o conceito de
romântico usado aqui é simplesmente o que se refere ao relacionamento amoroso, de acordo
com Abraham Moles.
O uso de representações sociais da prostituta e da mulher adúltera não são
exclusividades da música brega. A Música Popular Brasileira têm importantes personagens
com essas características. Chico Buarque cantou os julgamentos sociais sofridos por uma
prostituta em “Geni e o Zepelim”. “Joga pedra na Geni!/ Ela é feita pra apanhar!/ Ela é boa de
cuspir!/ Ela dá pra qualquer um!/ Maldita Geni!”, canta Chico Buarque. O compositor
também mostrou a prostituta como mãe, na música “Minha História”. Na canção, Jesus, filho
de uma garota de programa, conta como sua mãe ficou grávida de um homem que trabalhava
no mar e que fugiu antes do menino nascer. “Me ninava cantando cantigas de cabaré”, canta
ele.
Em 1983, Raul Seixas lança a música “Babilina”. Nela o Maluco Beleza implora a
exclusividade do amor de uma prostituta. “É dentro de casa que eu te quero, meu amor/
Larga desse emprego, baby”, ele canta. “Você me garante que não sente nada, não/ E que só
comigo você tem satisfação”, continua. Em 1978, Mauro Kwitko escreveu a música “Mal
Necessário” para Ney Matogrosso cantar. “Nos bares, nas camas, nos lares, na lama/ Sou o
novo, sou o antigo, sou o que não tem tempo/ O que sempre esteve vivo, mas nem sempre
atento”, diz a canção. O nome da música e esse trecho parecem fazer referência ao universo
da prostituição, o qual algumas vezes é visto socialmente como “mal necessário”, uma vez
que é reconhecido como profissão, mas ainda é vítima de preconceitos sociais.
Já sobre traição, as personagens mostradas na MPB são diversas. Alcione, em “A
Loba”, afirma ser fiel e, por isso, não aceita traições. “Não pise na bola/
71
Se pular a cerca/ Eu detono”. Martinho da Vila, em “O Preço da Traição”, conta a história de
um
homem
que
traiu
e
depois
foi
traído.
“Onde
eu
cheguei/
Com outro alguém em meus braços/Ela chegou também/Nos braços de outro alguém/Foi o
momento pior/ Que eu tive na vida”. Chico Buarque acaba com qualquer clichê e desculpa o
ser traído por ter cometido tal ato em “Mil Perdões”. “Te perdôo porque choras/ Quando eu
choro de rir/Te perdôo/ Por te trair”, canta Chico Buarque.
A MPB constrói as representações sociais das prostitutas e dos seres adúlteros ―
ressalto que os personagens que cometem a traição nos exemplos mostrados acima não são
apenas mulheres ― com condições de produção diferentes da música brega. O contexto
cultural não é igual, por serem estilos de música distintos. A forma de comunicar e as
linguagens utilizadas também são diferente, uma vez que as personagens são retratadas de
diversas formas nas músicas de MPB. E as inserções socioeconômica, institucional,
educacional e ideológica também acrescentam conteúdo às representações sociais da
prostituta e da personagem adúltera na MPB, assim como na música brega.
4.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo geral dessa monografia foi questionar como as representações sociais
femininas da prostituta e da mulher adultera são construídas dentro da música brega e como
são apropriadas por esse estilo musical. Os questionamentos iniciais foram: o que são essas
representações? O que representam a prostituta e a mulher leviana dentro da música brega?
Inicialmente, no primeiro capítulo, é apresentado como está o campo de estudos
sobre música brega no Brasil, conceitos relacionados ao kitsch e ao kitsch musical. Em
seguida, a história das canções “cafonas” é contada. No fim do capítulo, são trabalhados os
conceitos de Marcos Napolitano tendo como base o livro História & Música: história cultural
da música popular. Dessa forma, criação, produção, circulação e recepção/apropriação das
músicas são discutidas.
O segundo capítulo começa com discussões sobre as representações sociais. A
história dessa teoria, os conceitos, os principais autores, as críticas e a relevância do estudo
são assuntos tratados nessa primeira parte. O capítulo abre espaço, então, para as duas
72
representações sociais trabalhadas na monografia: a prostituta e a mulher adúltera. Dessa
forma, é mostrada a história da prostituição no Brasil, como ela pode ser uma fantasia
feminina e como essas mulheres aparecem na música brasileira, o samba de Noel Rosa e o
brega. A última parte do capítulo traz discussões sobre a prostituição. Inicialmente, o texto
perpassa sobre as relações fora do casamento e a sexualidade ocidental, depois o contexto
volta-se para o Brasil e, por fim, a traição na música brega.
No terceiro capítulo, apresenta-se a análise de seis músicas bregas. São elas: “Vou
Tirar Você Desse lugar”, de Odair José, “Secretária da Beira do Cais”, de César Sampaio,
“Menina da Calçada”, de Fernando Mendes, “O Dia do Corno”, de Reginaldo Rossi, “Lua de
Mel”, também de Reginaldo Rossi, e “Eu Lhe Peguei no Flagra”, de Genival Santos. Em
seguida, é feita uma análise das representações sociais das mulheres na música brega.
A partir dessas discussões conclui-se que, como mostra Alda Judith AlvesMazzotti, a representação é construída valendo-se do “já pensado”. Isso traz à tona
pensamentos antigos e posições preestabelecidas, que surgem a partir da classificação,
categorização e rotulação. E essas ações estão relacionadas à teoria que temos sobre o objeto.
Trazendo essa teoria para a monografia, entende-se que a maneira como a música
brega apresenta as personagens prostitutas e as mulheres adúlteras colabora para que o
público forme uma imagem composta por características machistas, como por exemplo, a
ideia de que apenas um homem pode salvar a mulher da prostituição, por meio do amor, ou a
noção de que o adultério deve ser castigado e a mulher que o cometeu pode ser difamada.
Em relação às músicas sobre prostitutas, os eufemismos e as metáforas, além do
fato de não falar abertamente sobre a prostituição, caracterizam um preconceito velado. Nos
trechos de duas das canções analisadas, aparece um forte teor machista: “Eu vou tirar você
desse lugar/ Eu vou levar você pra ficar comigo” e “Mas eu cruzei o seu caminho/ Vou mudar
o seu destino”. O homem é o grande responsável por salvar a mulher daquela situação de
sofrimento e o único capaz de mudar aquela realidade.
Respondendo as perguntas propostas no início da monografia, as prostitutas
representam as musas inspiradoras dos cantores de brega. Os dois convivem no mesmo
universo da boemia. Além dos dois serem personagens marginalizados. Eles vivem nas
margens da cultura, por produzirem um estilo musical ainda não tão aceito. Elas são
73
marginalizadas socialmente, porque ganham dinheiro de forma julgada popularmente como
condenável.
Já sobre as canções que tratam da temática do adultério, na música brega, por um
lado, o tema ganha um teor cômico. Por outro, também se vê características machistas. As
duas primeiras músicas analisadas, em especial, apresentam fortemente esse caráter, o que
pode ser visto nos trechos “Homem adora trair, mas a quer (a mulher) bem fiel”, presente na
música “Dia do Corno”, e “Dá vergonha de dizer/O que disseram de você”, na canção “Lua
de Mel”, com forte teor moralista, também. O machismo que reveste as canções que tratam do
tema do adultério apenas reflete como o ato é visto na sociedade. Ou seja, algo moralmente
condenável, desculpa para a difamação da mulher e impossível de perdoar.
Dessa forma, entende-se que, como propõe Jodelet, o social interfere na
elaboração psicológica que constitui a representação. Para essa estudiosa, o pesquisador deve
responder esses dois questionamentos. A elaboração psicológica interfere na social quando
colabora com o “já pensado”. Os conceitos sobre o objeto são formados tendo como base o
que já se conheceu previamente sobre ele. Enxerga-se a prostituta na canção brega com base
nas referências culturais, religiosas e sociais que se tem sobre essa profissão. O mesmo
acontece com o ato de trair e, consequentemente, com a mulher adúltera.
No entanto, ainda que as músicas brega não gerem discussões, levando em conta o
conceito de Marcos Napolitano para valores rituais e função fática, essas canções trazem um
tema pouco comum e extremamente válido: a traição feminina. Como foi visto no capítulo 2,
segundo São Paulo e André Béjin, esse ato era tratado como exclusivamente masculino. Ao
retratar as personagens adúlteras, essas músicas dão mais espaço às mulheres, ainda que
muitas vezes de forma pejorativa ou jocosa. E o que representa a mulher leviana, escondida
atrás do “corno”, dentro da música brega? A reposta para a pergunta feita no início da
monografia encontra-se no fato da adúltera representar um personagem que comete ações
dentro da história contada na música. Ela não é um ser passivo, pelo contrário, ela faz a ação
e, dessa forma, faz a história acontecer. Por isso, ela representa a mulher no papel de
destaque, ainda que não seja ela o “eu poético”. O mesmo acontece com as canções sobre
prostituição. Por mais que, às vezes, sejam machistas, falam sobre o universo marginalizado
das prostitutas. E, por isso, levantam discussões sobre esse meio, o que é muito importante.
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