a centralidade do amor

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a centralidade do amor
A CENTRALIDADE DO AMOR
Prof. Dr. Nilo Agostini
Texto publicado no livro Ética cristã e desafios atuais,
Petrópolis, Editora Vozes, 2002, p. 163-179 (esgotado).
A fé cristã tem como elemento central o amor. É sua expressão fecunda.
Lançando raízes nesta fonte, o cristão alimenta sua vida e norteia seu agir,
sentindo-se chamado a fazer-se dom. A própria sexualidade humana encontra aí o
terreno propício para o seu devido amadurecimento e integração. “A sexualidade
deve ser orientada, elevada e integrada pelo amor que é o único a torná-la
verdadeiramente humana”1.
Ao tratarmos do amor, estamos diante de um tema extremamente rico,
crucial e decisivo para as nossas vidas. Não há como dispensá-lo; seria
comprometer nosso desenvolvimento e realização enquanto pessoas humanas.
Em nossos dias, como no passado, continuam numerosas as publicações a ele
dedicadas2.
1
CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, “Orientações educativas sobre o amor
humano”. L’Osservatore Romano, edição em língua portuguesa, 11/12/1983, ou SEDOC 16 (1984),
p. 771-792, n° 6.
2
A título de exemplo, enumeramos as seguintes: M.-D. PHILIPPE, O amor na visão filosófica,
teológica e mística, Petrópolis: Vozes, 1999; W. JOHNSTON, Teología mística – La ciencia del
amor, Barcelona: Herder, 1997; A. LÓPES QUINTÁS, O amor humano: Seu sentido e alcance,
Petrópolis: Vozes, 1995; R. LINSEN, Amour, sexe et spiritualité, 4ème éditon augmentée, Paris: Le
Courrier du Livre, 1985; D. GRINGS, Casamento, Amor e Sexo, Aparecida: Santuário, 2000; J.
GALOT, O Espírito de Amor, São Paulo: Loyola, 1981; A. R. GUIMARÃES, A família e a civilização
do amor – Comentários à carta às famílias de João Paulo II, Petrópolis: Vozes, 1995; G. PERICO,
Giovani, amore e sessualità, Milano: Edizioni “Aggiornamenti Sociali”, 1988; C. BEAULIEU, Jeunes,
amour et sexualité, Charlesbourg/Ottawa: Le Renouveau/Novalis, 1986; V. COSTA, Descobrir o
amor: Projeto de vida por um homem hoje, Porto Alegre: EST/MILEM, 1987; P. BALESTRO,
Inventar o Amor – A terapia da ternura, Lisboa: Edições São Paulo, 1994; J. Z. B. MOTTA, Amor e
rivalidade sexual. Petrópolis: Vozes, 1989; F. ALBERONI, Enamoramento e amor, 7ª edição, Rio
de Janeiro: Rocco, 1991.
1
O chamado para o amor está no coração da mensagem de Jesus. Hoje,
seu dinamismo é regatado para tratar da sexualidade e devolver-lhe seu rosto
verdadeiramente humano. Ele é indispensável na superação do mal, sob o
concurso da graça. Importa igualmente compreender o amor naquilo que ele
representa para a nossa vida humana em seu alicerce divino, num convite a deternos no essencial, ou seja, a capacidade de amar inerente ao ser humano.
1. Um desafio para a filosofia e a teologia
Tanto a filosofia quanto a teologia já se debruçaram, com enorme esforço,
sobre esta realidade vital para o ser humano. Buscaram olhar de frente o que é o
amor. Propiciaram um desenvolvimento da compreensão do amor, cuja riqueza
vamos nos reportar aqui nos seus traços principais.
A capacidade de amar, inerente ao ser humano, requer que nos fixemos no
essencial, naquilo que há de maior, ou seja, naquilo que permite ao ser humano
ultrapassar-se a si mesmo, na descoberta do outro. Abre-se, nesta via, o caminho
de plenitude, pois o amor coloca o ser humano no seu lugar próprio, evitando toda
forma de degradação.
A degradação é render-se a uma caricatura do amor. Para não incorrer
nisso, importa evitar, por exemplo, cair na primazia do irracional, do instinto, do
inconsciente, do imaginário, seja lá qual for a sua forma, pois neste caso o amor
se torna miserável e ameaçador; instaura-se até o medo.
1.1. A filosofia grega
A filosofia grega traz-nos diversas e ricas reflexões sobre o amor. Hesíodo
apresenta-o como um absoluto, o termo, o fim, distinguindo-o, em sua Teogonia,
do ponto de partida/origem, onde se encontra o abismo. Homero prefere falar de
2
filia, num destaque da amizade que enobrece o coração humano, enchendo-o de
sentimentos heróicos. Parmênides destaca o impulso do amor como parte de um
grande impulso religioso e místico, na busca da verdade, que incorpora uma
atitude afetiva; para ele, chega-se, assim, à revelação do que realmente somos,
do que temos de mais puro, do Ser absoluto.
Compreendemos, então, que para a filosofia grega (os Eleatas, por
exemplo) só um grande impulso de amor nos faz realmente filosofar. “O homem
não progride na sua inteligência a não ser quando ele ama, sua inteligência não
desperta a não ser na medida em que ela está possuída por um grande desejo”3.
O amor, que não é o conhecimento, desperta a inteligência, permitindo-lhe ir até o
fim. Sem amor, há uma estagnação da inteligência.
Empédocles, para quem o amor e o ódio governam o universo, diz-nos que
é o amor que o unifica e o ordena. O ódio, ao contrário, provoca a divisão e a
oposição; leva-o à desagregação. Platão, por sua vez, coloca em evidência o
amor-eros; nele é que entramos em comunhão com o bem em si, pelo belo em si.
Assim, o eros constitui-se no amor fundamental ou num grande impulso de amor,
levando-o a ultrapassar-se e chegando à contemplação.
Aristóteles, de maneira distinta de Platão, dá primazia à filia, o amor de
amizade. Depois dele, Epicuro desenvolve uma moral do prazer; este aparece
como uma ‘propriedade’ do amor, portanto não negligenciável; porém, não é seu
aspecto principal. Para Epicuro, importa buscar o prazer supremo que é o da
contemplação, o mais perfeito, consciente e límpido, deixando de se ater ao
prazer imediato, sensível e sensual. Os estóicos, por sua vez, não colocam no
prazer a felicidade do ser humano, mas na apatheia, ou seja, na indiferença que é
fruto do domínio voluntário sobre si mesmo; para estes, o amor passional deve
desaparecer porque é mau. Importa saber dominar(-se); por isso, a primazia está
3
Cf. M.-D. PHILIPPE, op. cit., p. 17.
3
na vontade. Plotino, maior expressão do neo-platonismo, associa o amor ao
silêncio último em busca da união com o “Uno”, numa mística filosófica.
Impõem-se, a esta altura, uma distinção entre o prazer e o amor, ou de
como há uma ligação entre eles, porque distintos. Marie-Dominique Philippe é
claro ao afirmar que “quando se ama verdadeiramente, ultrapassa-se o prazer.
Mas quando se está cansado de amar, refugia-se nele. O prazer é, portanto, como
que um amor devagar, um amor que começa a se fatigar, que não tem mais o
mesmo impulso da conquista. Querido, por ele mesmo, o amor-prazer não é um
falso repouso, uma parada?... O prazer sozinho implica, necessariamente, um
dobramento sobre si, ao passo que o amor, no que ele tem de mais próprio é
‘extático’ (cf. Santo Tomás), faz sair de si e ir ao encontro do outro”4. Não
podemos identificar amor e prazer; no entanto, não podemos sequer separá-los.
Na verdade, o amor aparece como a fonte do prazer, sendo mais que o prazer.
1.2. Os Padres da Igreja e a Escolástica
A realidade primordial, no ponto de vista cristão, reside no agape. Nele, a
primazia absoluta é do amor. “Deus é amor” (1Jo 4,8). É assim que Deus se
revela. Ele nos faz participantes deste mistério de amor pela graça que nos
diviniza. Vemos como o agape resume tudo, apontando para a caridade e para o
amor divino. A revelação cristã tem a sua característica principal e fundante na
primazia do amor. A ela, associa-se o mistério da fecundidade divina, no amor de
Deus que jorra, qual fonte sem limites, que tudo abrasa/penetra pelo seu amor.
Santo Agostinho, junto com outros Padres da Igreja, captou com especial
grandeza o mistério do amor divino; é neste ponto que a sua teologia é mais rica.
Mais tarde, no século XIII, seguirá neste mesmo filão o franciscano São
Boaventura, chamado de teólogo do amor. Santo Tomás, por sua vez, reflete
4
Ibidem, p. 18-19.
4
sobre o amor-paixão, sendo a paixão o ponto de partida do amor que se desdobra
muito mais amplamente.
Na verdade, é o olhar sobre o mistério do amor que move o pensamento
dos teólogos, amor este que foi revelado por Jesus no Espírito Santo, terceira
pessoa da Santíssima Trindade, o Amor do amor. “Em Jesus Cristo, morto e
ressuscitado, revela-se e comunica-se o agape do Pai pelo Filho predileto e por
todos os homens, bem como o agape do Filho e da humanidade pelo Pai”5. Mais
adiante, sobretudo no ponto 2.2., nos deteremos um pouco mais nestes elementos
fundantes.
Tudo indicaria, assim, que a teologia e a mística andariam sempre de mãos
dadas. Porém, este não foi o caso, sobretudo quando a lógica recebeu destaque e
passou a dominar.
1.3. Dominação da lógica e busca da eficácia: o retraimento do amor
Guilherme de Occam, teólogo do século XIV, privilegia a lógica ao fazer
teologia. Busca, com isso, dar precisão à reflexão. O aspecto racional começa a
ganhar peso e até a dominar. Como tudo necessita ser logicamente definido, com
categorias claras, o mistério do amor acaba passando para um segundo plano,
quando não expulso sem mais. Fala-se ainda do amor e da caridade, porém tudo
de maneira codificada pela lógica. “Desde que a lógica se põe a dominar o
pensamento, não pode mais haver contemplação: não resta mais que uma
reflexão, uma espécie de meditação que nos fecha nas nossas idéias. A primazia
da lógica conduz à primazia da idéia e, quando a idéia se torna primeira, o amor
não pode mais ser aquilo que deve ser”6. Neste caso, a própria mística passa a
ser vista como uma espécie de sentimentalismo, de refúgio ou até de fuga.
5
6
D. TETTAMANZI, Temi di morale fondamentale, Milano: OR, 1975, p. 156.
M.-D. PHILIPPE, op. cit., p. 24.
5
A filosofia reivindica, sobretudo a partir de Descartes, o direito de
primogenitura, assinalando ser a fé a caçula, numa separação que vai se
acentuando entre a filosofia e a teologia. Tal reivindicação trouxe como
conseqüências a primazia dada à idéia de liberdade e de eficácia, ficando o amor
em segundo plano. Assim, “o amor não pode ser mais encarado senão como amor
passional, mas de uma maneira toda diferente daquela de Santo Tomás. O amor
já não é olhado como amor espiritual. Por isso, não é espantoso que se busque,
progressivamente, sua fonte no instinto sexual. Efetivamente, a vontade não é
mais fonte de amor, mas ela torna-se fonte de eficácia e de liberdade. Ela não é
mais principalmente o que nos abre ao bem, o que nos torna capazes de ser
atraídos por ele, o que nos orienta para ele e nos liga a ele: ela é antes de tudo
liberdade e eficiência”7.
Vemos como desenvolveu-se uma filosofia racionalista, deixando o amor
num lugar secundário. A primazia é da idéia e da liberdade, enquanto realidades
autônomas. A dialética hegeliana é testemunha disso. Não há mais lugar para o
amor, enquanto amor espiritual, amor de amizade e de contemplação. Ao querer
dominá-lo, o amor se esconde, até morrer e desaparecer.
As reações ao quadro acima fizeram-se ouvir com forte ressonância.
Apontavam para a necessidade de se respeitar e compreender o amor “desde
dentro”, para não estacionar numa idéia que temos do amor, pois ela não é o
amor. Kierkegaard e filósofos da existência questionaram fortemente a primazia
racionalista da idéia, apontando para a existência no ser humano de algo mais
radical. Kierkegaard salientou a necessidade de um “salto”, ao afirmar que a fé e a
fidelidade não se explicam pela razão. Voltamos, assim, ao amor. De maneira
semelhante, Bergson falou do “impulso vital” que está além do conhecimento
abstrato, do conceito. Whitehead apontou para a necessidade de redescobrir um
além da idéia, ao falar de um Deus-amor e ao referir-se ao Eros divino. Não são
7
Ibidem, p. 25.
6
poucos os que, na filosofia contemporânea, tentaram assinalar para a
necessidade de redescobrir um além da razão, algo de fundamental ou fundante.
1.4. Para uma filosofia do amor
O amor permite ao ser humano ser ele próprio, à medida que ele se
ultrapassa, saindo de si, inclusive da pretensa autonomia das próprias idéias. Isto
nos dá a possibilidade de encarar o ser humano em toda a sua plenitude, isto é,
até na sua capacidade de amar. Deixando de contemplar a capacidade de amar, o
ser humano pára no seu desenvolvimento e já não mais se ultrapassa. Isto só é
possível com um olhar mais profundo sobre o amor.
Não podemos parar no mundo das aparências, é preciso ir além até atingir
o Ser primeiro, que nomeamos Deus. Não se trata de dizer que de per si a
capacidade de amar seja rival da inteligência, já que não há amor sem um certo
conhecimento. O que se quer alertar é que os raciocínios não se transformem num
absoluto. Importa, sim, que a inteligência venha auxiliar no discernimento do bem,
da verdade e abra-nos à contemplação, deixando que o bem nos atraia. Instaurase, assim, uma colaboração entre a nossa inteligência e a nossa capacidade de
amar.
A inteligência desperta para o amor; o amor conduz a inteligência a ir mais
longe. É um fato, hoje reconhecido, que um apoio afetivo traz benefícios à
inteligência, auxilia no seu desenvolvimento, contanto que não prejudique a sua
objetividade. Pois, perdendo a objetividade, é sinal que estamos enveredando
para um amor passional, instintivo, que não vai até o fim das exigências do amor;
pára, no mais das vezes, no seu modo sensível, tornando-se partidário.
O amor exige uma visão integral do ser humano, assinalando que é o todo
da pessoa que ama, num jorro de vida tanto biológico, quanto sensível e espiritual.
Até a razão aí participa, mas o amor vai além. Na verdade, a razão é chamada a
7
estar a serviço do amor, ajudando-o a ser mais lúcido, mais pessoal, não parando
de crescer, se desenvolvendo cada vez mais.
2. A busca do essencial e do integral no ser humano
O ser humano encontra a fecundidade de vida quando contempla o amor
nas diferentes dimensões do seu viver. Quando movida pelo amor, a
complexidade do seu ser revela-se na unidade e simplicidade; cria-se a harmonia,
no equilíbrio integral do humano.
2.1. Amor e fecundidade
Há no ser humano diversas modalidades de fecundidade. Compreendê-las
é adentra-se nos segredos da plenitude da vida, na realização e irradiação do
humano. São vários os níveis desta fecundidade: biológica, espiritual, “misteriosa”,
artística e divina. A cada uma corresponde um nível de amor.
A fecundidade biológica funda-se num amor instintivo, como que num
apetite do vivente pela vida biológica. O ser humano sente que algo o impele a
ultrapassar-se, num instinto que o orienta ao encontro de outro ser para ser fonte
de uma nova vida. Esta é a primeira linguagem do amor. Aí reside algo de
fundamental e primitivo, caminho para a própria sobrevivência da espécie. No
entanto, o amor reveste-se de uma riqueza que não se atém apenas à vida
biológica.
O amor assume a vida biológica, mas não pára nela; desdobra no ser
humano diferentes graus de fecundidade espiritual. Este amor espiritual torna-nos
capazes de nos doar aos outros, tendo como primeiro nível um amor de amizade
até galgar outros mais. “Pelo amor de amizade somos capazes de nos doar ao
amigo, naquilo que há de mais profundo em nós. Bem freqüentemente, aliás, é o
amigo que, amando-nos, revela-nos a nós mesmos, o que somos... O vivente não
8
é perfeito senão quando ele se une a um outro vivente”8. Este amor nos permite
progredir; ele não envelhece, torna-se fecundo no coração do amigo, porém o
amor mostra-se capaz de ir ainda mais longe até reencontrar a fonte profunda de
sua vida: Deus.
Ao lançar-se em busca da fonte do amor, entramos na esfera do misterioso,
própria do amor contemplativo. Nesta esfera, o amor nos coloca em relação íntima
e pessoal com Aquele que é a fonte de toda fecundidade e que constantemente
nos atualiza, nos recria e nos renova na nossa capacidade de conhecer e de
amar. Indo à fonte de nosso ser, vislumbramos a comunicação de Deus que nos
envolve numa fecundidade criativa e misteriosa.
Este amor costuma ser fonte de inspiração. O trabalho executado, a obra
realizada trazem consigo uma fecundidade pelo amor com que os realizamos. É a
fecundidade artística no amor à obra. Esta vem toda embebida dos traços
qualitativos do amor, sendo a qualidade sua marca registrada. Faz da obra
realizada, fruto de um bem que atrai e suscita em nós o amor. O bem é difusivo no
amor que é fecundo.
Um olhar teológico nos faz reencontrar a fecundidade divina e faz surgir em
nós o amor ao Amor. Entramos no âmbito do amor-agape.
2.2. O amor-agape
O ponto de partida do amor-agape reside em Deus que é amor. Na
Santíssima Trindade, temos a fonte deste amor. Vemo-lo em toda a sua
expressão no amor do Filho pelo Pai e no amor do Pai pelo seu Filho. Nós somos
incorporados neste amor, no vigor do Espírito Santo, chamados a vivê-lo com o
próximo. São numerosas as passagens bíblicas que ilustram com clareza a
grandeza deste mistério. Vejamos algumas:
8
Ibidem, p. 179.
9
•
“Deus é amor” (1Jo 4,8).
•
“Se alguém me ama, (...) o meu Pai o amará e a ele viremos e nele
estabeleceremos morada” (Jo 14,23).
•
“Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como
eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisso conhecerão todos
que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,3435).
•
“O fruto do Espírito é amor...” (Gl 5,22).
•
“Quem beber da água que eu lhe darei, nunca mais terá sede. Pois a
água que eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água jorrando para a
vida eterna” (Jo 4,14).
Estamos diante do amor fundamental. Nele, vemos que a fonte divina se
inclina até nós; é um amor substancial, fonte de uma vida nova. É agape, graça e
caridade, o amor que transforma a nossa vida humana em vida divina, tornandonos co-herdeiros em Cristo da herança divina (cf. Rm 8,17). Entendemos, então,
que Karl Rahner afirme que o ser humano “é o ser que se perde para dentro de
Deus..., ponto donde e ponto para onde, como provir e porvir do homem”9.
Em Jesus, este amor tomou totalmente posse de seu coração, inflamado
que está, eterna e divinamente. Liga-o profundamente ao Pai. “Este é o meu Filho
amado, em quem me comprazo: ouvi-o” (Mt 17,5; cf. Mc 9,7). Aí está a
manifestação do mistério do agape, mistério de amor divino e substancial. Implica
no cumprimento da lei e no seu aperfeiçoamento, até criar um novo vínculo que
não é mais o da lei, mas do agape. Nele, o ápice é o amor, incluindo os próprios
inimigos. Acrescenta-se aqui que este amor implica igualmente um serviço, como
resposta ao amor divino em Jesus.
9
K. RAHNER, Teologia e antropologia, São Paulo: Paulinas, 1969, p. 163-165.
10
O agape nos introduz no mistério do Espírito Santo em nós, o mistério do
amor divino que faz de nós filhos de Deus, filhos bem-amados do Pai. Esse amor,
inscrito no mais íntimo de nossos corações, leva-nos a unir-nos profunda e
divinamente a Jesus e, por ele, ao Pai. Incorporados a Jesus, o Cristo Vivente (cf.
Ap 1,18), somos transformados nele, sendo que é “Ele que vive em nós” (cf. Gl
2,20). Faz-se, assim, comunhão, alimento por excelência que se comunica
substancialmente.
No mistério da cruz, compreendemos a qualidade deste amor que se faz
oferenda, sacrifício, na doação da própria vida. “Ninguém tem maior amor do que
aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). O verdadeiro dom se realiza
num completo ultrapassar-se e num esquecimento de si, o que se concretiza num
sacrifício. “Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se
morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12,24).
Agape é, assim, um amor substancial, primeiro, fundamental. Ele reclama
nosso retorno para Deus. Exige que amemos nossos irmãos. Cabe-nos fazer a
escolha! E, então, faremos a experiência do que há de maravilhoso e único no
agape, que é o mesmo amor substancial e fundante que nos une a Jesus, ao Pai,
ao Espírito Santo, na comunhão trinitária, e aos nossos irmãos e irmãs.
2.3. O caminho do amor na mística cristã
A mística cristã, sobretudo em sua vertente esponsal, não se contenta com
a via intellectionis (caminho do intelecto), perfaz, antes, a via amoris (caminho do
amor). De maneira distinta dos gregos, que apostavam na via do raciocínio para
alcançar a divindade, os cristãos investem nos caminhos do amor, da confiança,
do desejo para chegar a Deus. Esta experiência divina é igualmente
profundamente humana, aliando liberdade e graça, interioridade e êxtase,
incorporando o dinamismo próprio da sexualidade como caminho para Deus e
11
para o próximo. Assim, “a pessoa deixa o casulo do si-mesmo autocentrado e
egoísta, e se abre aos outros e ao Outro”10.
Faz-se necessário perfazer um caminho de crescimento que, para nós
cristãos, é caminho de santificação, pois “esta é a vontade de Deus” (1Ts 4,3). Isto
supõe como ponto de partida “ter a coragem de ser o que somos”, inclusive
enquanto corpo e sexualidade, como “condição primordial de nossas virtualidades”
e da possibilidade de “ser mais”11. Como Cristo assumiu em tudo a condição
humana, menos o pecado12, nós também somos chamados à plenitude e à
verdade sem ter que renunciar ao que somos, a não ser ao pecado13.
Sobre esta base, abre-se a possibilidade de sermos um dom por inteiro,
incluindo o rico dinamismo de nossa sexualidade. Nossa realização e felicidade
vão depender muito disso. Entendemos, então, afirmações como estas:
• “É preciso começar por uma grande e firme resolução de dar-se
inteiramente a Deus” (São Francisco de Sales)14.
• “Ele (o Senhor) te quer inteiro” (Santo Antônio de Pádua)15.
Segue-se a experiência de ser atraído, num movimento amoroso, que nos
co-move na integralidade de nosso ser. Deixemos ressoar dentro de nós as
palavras que seguem:
• “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair (Jo 6,44).
Não penses que és atraído por tua própria conta. O que atrai a alma é o
amor” (Santo Agostinho)16.
10
M. MAÇANEIRO, Mística e Erótica – Um ensaio sobre Deus, Eros e Beleza, Petrópolis: Vozes,
1995, p. 60.
11
Cf. A. A. LIMA, “Virtudes e Intervirtudes” (Excertos), Revista de Espiritualidade ‘Grande Sinal’ 3
(1993), p. 370.
12
Cf. Fl 2,7-8; Hb 2,17; 4,15; 1Pd 2,22.
13
A própria moral tomista reforça esta idéia de que precisamos ser, antes de tudo, perfeitamente
humanos, para então sermos o que Deus quer que sejamos. Cf. J.-M. AUBERT, La morale,
Paris/Montréal: Centurion/Paulines, 1992, p. 72.
14
SÃO FRANCISCO DE SALES, Filotéia - Ou introdução à vida devota, Petrópolis: Vozes, 1994.
15
SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA, Sermão do XIII Domingo de Pentecostes.
12
• “Seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir” (Jr 20,7).
• “Meu Deus e meu tudo” (São Francisco de Assis).
• “Amamos porque Deus nos amou primeiro” (1Jo 4,19).
O caminho está, então, aberto para a experiência do face a face com o
mistério que seduz, num encontro interpessoal de convivência com Deus, na
fidelidade, no amor. Vejamos o encanto das palavras que seguem:
• “Quando tu me olhavas,
teus olhos sua graça me infundiam...
Meigo, me amavas,
e nisso os meus olhos mereciam
adorar aquilo que em ti viam” (São João da Cruz)17.
•
“Arrasta-me atrás de ti!
Corramos no odor dos teus bálsamos,
ó esposo celeste!
Vou correr sem desfalecer,
até que me introduza na tua adega,
até que tua esquerda esteja sob a minha cabeça,
tua direita me abrace toda feliz,
e me dê o beijo mais feliz de tua boca” (Santa Clara)18.
No poema dos Cânticos dos Cânticos, com leveza e graciosidade, o amor é
decantado em seu vigor e aprazível êxtase. Vejamos alguns exemplos:
• “É forte o amor...
suas chamas são chamas de fogo
uma faísca de Iahweh!” (Ct 8,6).
• “Venha, meu amado!
Vamos ver se a vinha floresce,
16
SANTO AGOSTINHO, “Comentário ao Evangelho de S. João 26,4”, in Obras de San Agustín,
BAC, 1955, p. 659.
17
SÃO JOÃO DA CRUZ, Cântico espiritual, 23. Adaptação para o disco Louvemos o Senhor/8 de
M. MAÇANEIRO, op. cit., p. 59.
13
se os botões estão se abrindo,
se florescem as romãzeiras:
aí lhe darei o meu amor...” (Ct 7,13).
• “Beija-me com beijos de tua boca” (Ct 1,2).
A própria Aliança, no Antigo Testamento, e a nova Aliança com a vinda de
Jesus Cristo, são lidas como busca deste arquétipo da união plena, supondo um
profundo amor, um compromisso e uma fidelidade recíproca, num esvaziamento
de todo “ego” e, por isso, numa entrega absoluta. Veja, por exemplo:
• “Eu sou do meu amado, e o meu amado é meu” (Ct 6,3).
• “Eu serei seu Deus e eles serão meu povo” (Jr 31,33).
• “Deus amou de tal modo o mundo, que entregou seu Filho único” (Jo
3,16).
• “Ele tinha a condição divina, mas não se apegou à sua igualdade com
Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de
servo e tornando-se semelhante aos homens” (Fl 2,6-7).
Considerações finais
A possibilidade do ser humano realizar-se está no amor. Aí reside a via de
sua realização última. O ser humano só é ele mesmo à medida que vive o amor.
Então, as suas mais diferentes dimensões desdobram-se qual leque aberto, ficam
todas embebidas e, despertas, levam o ser humano a ir sempre mais longe, numa
fecundidade de vida. O instintivo e o passional abrem-se ao espiritual, não o
submergem. A inteligência auxilia no discernimento e abre-se ao contemplativo;
eleva seu olhar além do horizonte habitual quer na direção da pessoa amada quer
na direção da fonte, o Amor do amor, Deus.
Um forte apelo para remontar até fonte ressoa, qual exigência, no ser
humano. Mesmo que as águas fluam todas para o mar, importa lançar-se contra a
18
SANTA CLARA, IV Carta, 28-32.
14
corrente e, no arrancamento do amor, ir à presença daquele que é a sua fonte.
Ante tal descoberta, a atitude é de adoração que se desdobra em contemplação.
Importa fazer-se escuta atenta da ação de Deus, desenvolver a “faculdade de
escuta” como elemento indispensável para a manifestação do próprio amor, como
o é para toda a teologia da revelação19. Um olhar silencioso e contemplativo
propicia ao amor lucidez e intensidade. Uma força interior pervade todo o nosso
ser, envolve a inteligência, toma posse de todas as nossas forças vivas, permite
ultrapassar todos os nossos limites.
Bebendo desta fonte, o amor se desdobra na capacidade de receber o
outro em nossa vida, faz-se reciprocidade, cultiva a alteridade. Sente o outro como
o nosso bem. Acolhe-o com profundo e radical respeito. Vive a maleabilidade do
amor, numa flexibilidade quase infinita. O amor nos adapta a tudo o que é
necessário para atingir o bem, numa orientação implacável e irresistível que habita
o íntimo de nosso coração e que nada poderá tirar. O amor é, assim, em nós uma
força intransigente: aceita-se ou recusa-se.
19
Cf. K. RAHENR, L’homme à l’écoute du Verbe – Fondements d’une philosophie de la religion,
Paris: Maison Mame, 1968, p. 33-35.
15

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