20.07.2009 às 09:18 De como Tarzã me fez escritor

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20.07.2009 às 09:18 De como Tarzã me fez escritor
20.07.2009 às 09:18
De como Tarzã me fez escritor
Homero Fonseca
O primeiro livro que me chegou às mãos, dado
ou emprestado por meu tio Biu, quando eu tinha
12 anos, foi uma das aventuras escritas pelo
americano (que durante muito tempo julguei ser
inglês, dado o enredo) Edgard Rice Burroughs,
creio que “Tarzã e a Cidade Perdida”. O impacto
foi tremendo. Até então eu lia gibis –
Superhomem, Capitão Marvel, Fantasma,
Mandrake, Rocky Lane, Luluzinha e, claro, o do
próprio homem-macaco. De repente, me via
diante de um texto sem figuras ilustrativas. E aí
tive de botar a cabeça pra funcionar, para
“visualizar” os personagens, as cenas, os
ambientes...
Tenho a convicção de que uma obra literária (e
de qualquer outra arte) só se completa quando
lida (apreciada). O trabalho do Autor necessita
fundamentalmente da presença do Outro que, no
caso do livro (o leitor), se torna um co-autor.
Antes de ser lido, todo texto é uma obra em
latência (já falei nisso em outro post aqui, mas
vamos adiante, completando o que falei no Café
Cultural).
Quando mergulhei nas aventuras do lord
Greystoke em plena selva africana (e hoje
percebo a tremenda carga colonialista dessas
histórias), tive de ir construindo na cabeça tudo
que Burroughs narrava. Isso era mais trabalhoso
do que ler as revistas em quadrinhos, mas o
prazer era bem maior. Foi meu primeiro
alumbramento literário e creio que naquele
O
momento mesmo fui picado pelo micróbio da
mais famoso Tarzã do cinema, Johnny Weismüller
febre de escrever (pois datam dessa época meus
primeiros cometimentos, tudo imitação do que
lera antes e lia a partir de então e de filmes, dos muitos filmes que povoaram minha adolescência).
Além do esforço-gozo de co-operar o texto do escritor, percebi também que, para minha idade, a trama era bem mais
complexa do que a dos quadrinhos. O enredo não se desenrolava tão linearmente, tão simplesmente. Muita coisa era
sugerida e eu tinha de... “adivinhar” o pensamento de um personagem ou a sequência de uma ação narrada de forma
incompleta. (Claro que tal nível de complexidade era bem inferior à de qualquer obra de maior qualidade literária, afinal as
aventuras de Tarzã foram escritas visando o puro entretenimento. Mas, de todo modo, estava ali, se descortinando diante de
meus olhos abismados, o “truque” essencial da literatura: ao contrário das narrativas jornalísticas, por exemplo,
fundamentalmente DENOTATIVAS, o texto literário é, por excelência, CONOTATIVO. A partir dessa compreensão, o resto vem
por acréscimo.)
Para quem não conhece, Edgar Rice Burroughs (1875 - 1950), além de mais de duas dezenas de livros com as aventuras de
Tarzã (que lhe renderam fama e dinheiro, transformando-se em revista de quadrinhos e numerosos filmes), escreveu outras
histórias fantásticas, passadas em recantos ignotos da Terra ou em outros planetas, como a delirante saga de John Carter,
herói da guerra civil americana que foi abduzido por marcianos verdes, salvou uma princesa inimiga e se meteu na guerra
civil marciana.
Dos filmes sobre o personagem criado entre os macacos, o mais interessante é “Greystoke - A lenda de Tarzan, o rei da
selva”, produção britânica de 1984, dirigida por Hugh Hudson, com Christopher Lambert no papel do próprio. Os outros, como
as célebres fitas das décadas de 30 e 40 estreladas por Johnny Weissmüller, eram diversão infantil. "Greystoke", com sua
abordagem de viés antropológico, mostrando as dificuldades de adaptação de Tarzã à civilização ao ser levado à Inglaterra,
é mais fiel aos romances de Edgard Rice Burroughs e, portanto, mais complexo e adulto. O que é uma raridade no mundo da
indústria cultural, cada vez mais empenhada na infantilização da humanidade, visando o “consumismo intransitivo”, como tão
bem definiu o professor Hélio Jaguaribe.

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