Primado Petrino - Diocese Anglicana Santa Mãe de Deus

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Primado Petrino - Diocese Anglicana Santa Mãe de Deus
O QUE O ANGLO-CATOLICISMO NÃO É:
A QUESTÃO DO PAPADO
Revdo. Pe.Rodson Ricardo S. do Nascimento. Comunidade da
natividade/Natal – RN. Diocese da Santa Mãe de Deus.
Introdução
Hoje o anglo-catolicismo é uma tradição cristã viva não apenas no interior da Comunhão
Anglicana como fora dos limites do anglicanismo. Em linhas gerais, o anglo-catolicismo
afirma ser uma continuação e desenvolvimento de uma tradição existente na Igreja da
Inglaterra desde antes da Reforma. Segue o “cânone vicentino”: Aquilo que foi tido e crido,
em todo lugar, em todo tempo e por todo fiel.
Meu objetivo com este texto é contribuir na formação de uma identidade anglo-católica no
Brasil. As raízes do que hoje conhecemos como “anglo-catolicismo” se confundem com as
origens do cristianismo celta. Mas suas influências mais recentes estão nos “teólogos
carolinos” da chamada “Igreja Alta” e, de forma axial, no surgimento do movimento de
Oxford do século XIX.
O anglo-catolicismo sempre se manifestou como uma presença profética do caráter
histórico e apostólico da Igreja da Inglaterra. Seja na luta contra o radicalismo puritano seja
na defesa da fé contra as heresias modernistas. Contra a aridez racionalista do liberalismo
ou contra o pragmatismo litúrgico puritano ele tem lutado contra o perigo de influências
secularizantes, a indiferença á Tradição e o desleixo pastoral.
Para muitos, e eu me incluo entre estes, os objetos do Movimento de Oxford continuam
sendo validos para o século XXI:
(1) a defesa da catolicidade da Igreja da Inglaterra;
(2) a reafirmação de sua identidade com o cristianismo pré-reforma;
(3) a defesa da sucessão apostólica;
(4) a valorização da liturgia e da espiritualidade antiga;
(5) a importância da vida sacramental;
(6) a recuperação da dimensão e missionária da Igreja;
(7) o desenvolvimento de uma piedade pessoal e comunitária.
Infelizmente o anglo-catolicismo nem sempre tem sido fiel a este legado e alguns acabaram
por sucumbir a um tradicionalismo infértil ou a um modernismo inconseqüente. Para
melhor compreender a posição atual do anglo-catolicismo no mundo, e para melhor avaliar
suas possibilidades futuras, vamos considerar primeiro “o ele não é” e, em seguida, avançar
para considerar “o que ele é”.
II. O que o anglo –catolicismo NÃO É
Em primeiro lugar devemos entender que o anglo- catolicismo NÃO conduz, logicamente,
ao Catolicismo Romano. Após o Concílio Vaticano II (1961-1965) as diferenças litúrgicas
entre uma paróquia anglo-católica e uma paróquia católica romana diminuíram.
Executando-se a questão do celibato ficou difícil para um fiel comum entender qual a
diferença entre ambos. Uma crítica muitas vezes feita por protestantes é que o anglocatolicismo termina logicamente no catolicismo romano.
No entanto esta diferença existe e é importante conhecê-la. Alguns católicos, geralmente
citando os casos de Henry Newman (1801-1890), acreditam que ser anglo-católico é
“estagiar para ser católico romano”. Mas será que a questão é assim tão simples?
Vamos supor que uma pessoa acredite, por motivos que lhe parecem suficientes, nas
doutrinas da transubstanciação, na invocação da Virgem Maria e dos demais santos, na
confissão auricular, no estado intermediário, na importância da vida consagrada e do
celibato clerical, que encontre, além disto, valor espiritual no uso de rosários, escapulários,
relíquias, imagens, incenso, água benta etc. Ainda assim isto não o levaria necessariamente à
Igreja Romana. Nenhuma destas coisas o leva a acreditar que somente a Igreja Católica
seria verdadeira, e, principalmente, que o critério da catolicidade é a submissão à autoridade
do Bispo de Roma e aceitação de sua infalibilidade em questões de moral e fé. E são, estes
últimos elementos, e não os primeiros que tornam alguém católico romano.
2. O problema da Autoridade na Igreja
Jesus deu “autoridade” (“exousía”) aos Doze Discípulos (Mt 10, 1). Dentre os Doze
discípulos, Pedro, possuía uma posição especial. Esta posição é conhecida como “a
primazia de Simão Pedro”. (Mt. 16,18). Mas o Evangelho esclarece que se trata de uma
autoridade “para expulsar demônios e curar enfermos”. É, antes um “poder terapêutico”
(Lc 22, 32). Não é um poder doutrinal e, menos ainda, judicial. É um poder para aliviar o
sofrimento e tornar felizes as pessoas nas suas relações com os outros e com Deus.
Por sito a questão principal entre anglo – catolicismo e o catolicismo romano é
compreensão sobre “a base” ou a “fonte” da autoridade na Igreja. Ou seja: o significado e
o lugar do papado no cristianismo. Este aspecto é o centro das divergências dos anglocatólicos e ortodoxos com Roma e é dele que fluem todas as outras diferenças de fé,
adoração, disciplina e espiritualidade.
O termo “Papa”, possivelmente provém do latim “Papa” através do grego πάππας, como
uma forma carinhosa para “Pai”. Originalmente, a palavra grega papas ou a latina papa foi
aplicada a altos oficiais eclesiásticos de todos os tipos, especialmente aos bispos. A partir de
meados do quinto século passou a ser aplicada quase que exclusivamente aos bispos de
Roma. No Oriente é reservado apenas para o Patriarcado de Alexandria.
Já o termo “papado” (papatu), origina-se apenas em torno do século XII, para referir-se
exclusivamente ao sistema eclesiástico governamental do Bispo de Roma. Foram múltiplos
e complexos os fatores que levaram ao reconhecimento de que esses bispos detinham
autoridade suprema sobre a Igreja ocidental que não cabem serem desenvolvidas neste
texto.
O importante é ressaltar que os anglo-católicos diferenciam o exercício do “Ministério
petrino”, como Patriarca do Ocidente e primaz do cristianismo, do surgimento da
instituição moderna do “papado romano”. Não é possível deixar de reconhecer que ainda
na Igreja Antiga os bispos de Roma alcançaram grande preeminência que, o Bispo de
Roma, em muitas ocasiões prestou serviços crucialmente relevantes à Igreja e à sociedade e
que muitos papas foram homens de grande piedade, integridade moral, saber teológico e
habilidade administrativa.
Além disto, ao longo dos séculos, muitos dos principais eventos da história do cristianismo
nas áreas da teologia, organização eclesiástica e relações entre a Igreja e a sociedade tiveram
conexão com a instituição papal. Na verdade a história do anglicanismo está intimamente
ligada a Sé Romana. Por isto que o papado é uma questão tão importante para os anglocatólicos.
2.1. Primado de Pedro e papado
O papado é uma instituição que sofreu enormes mudanças durante o tempo. O que hoje
conhecemos como Papado é bem diferente do que existia na patrística, na Idade Media e
mesmo no início do século XX. Por isto é importante diferenciar o “ministério petrino” do
“papado moderno”. Enquanto o primeiro é antigo o segundo somente recebeu força
dogmática recentemente. Durante todo o primeiro milênio Roma teve como parceiro os
primados patriarcais. Por isto que o oriente jamais interpretou da mesma forma o
ministério do Patriarca do Ocidente.
As quatro palavras – chaves, que compõem as reivindicações papais atuais são: primazia,
supremacia espiritual, supremacia temporal e infalibilidade em questões de fé e moral. De
acordo com o Catolicismo Romano, o Bispo de Roma, em virtude de sua sucessão à Sé de
Pedro, é o “Vigário de Cristo na terra”. Portanto, ele não é apenas o “primaz de toda a
cristandade” no sentido de ser “o primeiro entre iguais” (que é o significado da primazia),
mas ele também afirma ser “a autoridade espiritual suprema” acima de todos os bispos e
clero, de modo que todos os bispos são praticamente “sufragâneos” dele. Todos os demais
bispos devem a ele o seu direito de consagração, a sua jurisdição e sua obediência à Sé de
Roma.
Segundo Roma o Papa é o “Vigário de Cristo” na terra (Inocêncio IV se chama a si mesmo
de “Vigário de Deus). O termo “vigário” vem do latim vicarius, que quer dizer “ao invés
de”. Na Igreja Católica, o vigário é o representante de um oficial de posição superior, com
toda a autoridade e poder do oficial. Ao chamar o papa de “vigário de Cristo”, se estar
dizendo que ele tem o mesmo poder e autoridade que Cristo teve sobre a Igreja.
Desta forma o Papa torna-se “a cabeça” da Igreja visível, da mesma forma que Cristo é “a
cabeça” da Igreja invisível. Nas palavras do Papa Pio XII (1856-1958): “Nem se objete que
com o primado de jurisdição instituído na Igreja ficava o corpo místico com duas cabeças.
Porque Pedro, em força do primado, não é senão vigário de Cristo, e por isso a cabeça
principal deste corpo é uma só: Cristo; o qual, sem deixar de governar a Igreja
misteriosamente por si mesmo, rege-a também de modo visível por meio daquele que faz
as suas vezes na terra; e assim a Igreja, depois da gloriosa ascensão de Cristo ao céu não
está educada só sobre ele, senão também sobre Pedro, como fundamento visível.”
Além de reivindica a supremacia espiritual sobre toda a Igreja, o Bispo de Roma também
exige a supremacia temporal sobre todos cristãos, os estados civis e poderes públicos; em
caso de conflito entre os poderes civis e espirituais ou eclesiásticas, o poder civil deve se
curvar ao poder espiritual, que em última análise o poder absoluto (sob o sistema romano)
é o papado, ele é o “Sumo pontífice” (O “Bispo Supremo”).
O Concílio Vaticano II, na Lumen gentium, recorda que o Papa, “em virtude do seu cargo de
vigário de Cristo e pastor de toda a Igreja, tem nela pleno, supremo e universal poder que
pode sempre exercer livremente” (n. 22). Por isso, ele “é perpétuo e visível fundamento da
unidade, não só dos bispos, mas também da multidão dos fiéis” (n. 23). Portanto, o Papa é
vigário de Cristo enquanto exerce sua autoridade sobre toda a Igreja. É um modelo de
episcopado altamente centralizado, autoritário e hierárquico.
Ora para que o Papa pudesse ser “o cabeça da Igreja” em pé de igualdade, como “Vigário
de Cristo” seria necessário que ele tivesse algum atributo divino, como a infalibilidade. Foi
exatamente isto que fez a Igreja romana em 1870, desde então os católicos romanos
precisam acreditar que o Bispo de Roma é infalível em questões de fé e moral.
A definição da infalibilidade papal pelo Conselho do Vaticano I conforme a Constituição
Pastor Aeternus de 1870, cap IV, é a seguinte: “Nós ensinamos e definimos como dogma
divinamente revelado que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra - ou seja, quando,
em seu caráter como Pastor e Doutor de todos os cristãos, e em virtude de sua suprema
autoridade apostólica, ele prevê que uma determinada doutrina sobre fé e moral é
vinculativa para a Igreja universal Igreja- pois ele possui, pela assistência divina que foi
prometida a ele na pessoa de bem-aventurados São Pedro, essa mesma infalibilidade com
que o Divino Redentor pensamento apto para dotar a sua Igreja, para definir a sua doutrina
que diz respeito à fé e moral; e, por conseguinte, que estas definições do romano Pontífice
são irreformável em si mesmos, e não em conseqüência do consentimento da Igreja”.
O dogma da infalibilidade é a causa de sérios problemas para os anglo-católicos. Roma tem
outras doutrinas que são de fide (necessárias para a salvação), tais como Transubstanciação e
o dogma da Imaculada Conceição da Virgem Maria, ou seja, que a Santíssima Virgem Maria
nasceu sem pecado original. Se qualquer anglo-Católico aceita esses dois dogmas, ele pode
fazê-lo apenas como opinião piedosa, mas não como “essenciais à salvação”.
Além disto a infalibilidade papal é vista como uma prerrogativa “pessoal, separada e
absoluta do Bispo de Roma”. Embora possa haver muita confusão sobre o significado da
expressão ex cathedra isto não nega o essencial: após este concílio o Bispo de Roma passou a
possuir um atributo divino e destacou sua autoridade do resto da Igreja. Os anglo-católicos
defendem o caráter divino da Igreja e sua indefectibilidade na fé, reconhecem a importância
capital no ministério dos bispos, e em especial, do primado do Bispo de Roma, mas não
entendem como tais “inovações romanas” podem ser comprovadas nas escrituras e na
Tradição da Igreja.
Na verdade não podem. Elas se fundamentam numa tautologia. Todas estas reivindicações
fundamentam-se sobre os seguintes pressupostos: 1) o bem-aventurado São Pedro não foi
apenas o líder do colégio apostólico, ou “primeiro entre iguais”, mas antes, que ele era um
“Super Bispo”, que exercia um poder absoluto sobre os demais apóstolos (e mesmo sobre
assuntos civis e materiais); 2) O Bem-Aventurado São Pedro era dotado de um caráter
divino especial que lhe permitia ser infalível em questões de fé moral; 3) Tais poderes e
prerrogativas, uma vez concedidas ao Bem-Aventurado São Pedro, foram transmitidas de
forma clara aos seus sucessores na Sé de Roma, em perpetuidade.
Não é a toa que anglo-católicos, vétero-católicos, ortodoxos e protestantes rejeitam tal
doutrina como estranha ao núcleo central da fé. Nós rejeitamos essas reivindicações, exceto
a da primazia, com os seguintes fundamentos:
(1) Não há nenhuma evidência na Escritura ou em qualquer outro lugar que Cristo conferiu
todas essas competências a São Pedro;
2) Não há nenhuma evidência de que São Pedro reivindicou-as para si mesmo ou para seus
sucessores. Pelo contrário: há fortes evidências contrárias que São Pedro cometeu um erro
de um assunto importante da fé em Antioquia (a questão da alimentação para pagãos e
judeus cristãos) que afetaria todo o futuro da Igreja e da Religião Cristã, e este lapso era tão
grave que São Paulo “resisti-lhe na cara” (Cf. Gálatas 2, 11-16);
3) São Pedro não presidir a primeira reunião do Conselho da Igreja em Jerusalém e não
proferir a decisão do Conselho;
4), Segundo a Tradição ele foi bispo de Antioquia, antes de sê-lo em qualquer outro lugar,
e, se as reivindicações papais são de algum modo verdadeiras, o bispo de Antioquia tem
uma melhor direito de exigi-las;
(5) Mesmo que São Pedro tenha sido Bispo de Roma não há evidência alguma de que ele
conferiu tais poderes sobre os seus sucessores na Sé de Roma;
(6) não houve aceitação da Igreja Primitiva sobre tais alegações, e nunca houve aceitação
universal sobre isto nos períodos anteriores ao Concílio;
7) a história registra diversos “momentos obscuros do papado” em que o magistério
petrino claramente se equivocou (a defesa da violência contra não-cristãos por Urbano II, a
injusta perseguição a santos como Cirilo e Metódio por Nicolau I, a condenação da Carta
Magna e da democracia por Inocêncio III, a condenação de Galileu etc).
O nosso problema não é com o primado de Roma, mas com a instituição moderna do
papado. Assim, vemos que Roma representa um catolicismo autocrático em que a regra
final está confinada a pessoa do Papa. O anglo-catolicismo representa um catolicismo
conciliar em que todos os grupos e ordens têm voz, direitos e poderes (embora
diferenciados) no exercício do governo da Igreja, quer diretamente, quer indiretamente,
através de representantes devidamente credenciados.
Isto lembra outro ponto importante que é o lugar do leigo na igreja. A importância dos
leigos em matéria de fé sempre foi real, embora freqüentemente esquecida ou ignorada por
Roma. Neste aspecto Martinho Lutero e o Concílio Vaticano II buscaram, ao seu modo,
corrigir este erro.
Os anglo-católicos, ao mesmo tempo em que defendiam o episcopado e a sucessão
apostólica, denunciavam o perigo de uma centralização clerical e episcopal sobre a Igreja.
Cremos que a infalibilidade é confiada a toda a Igreja e não apenas a um único bispo. Além
disto, historiadores alertam que, em momentos críticos, foi a fidelidade dos leigos, que
persistiu, no seu conjunto, que impediu a igreja de sucumbi a heresias como o arianismo.
Nos recentes diálogos com Roma os anglo-católicos, reconhecem o Bispo de Roma como
Patriarca do Ocidente e como centro de unidade da Igreja, mas pedem da teologia católica
uma melhor articulação do primado com a colegialidade, uma definição mais precisa do
estatuto das igrejas locais e particulares no seio da comunhão e uma renovação do papel
dos leigos e da colegialidade.
Nossas divergências com o papado se entendem ao campo da ciência política. Temos
dificuldades com “poderes ilimitados” e “governos mundiais” antes da volta de Cristo.
A tese que o Papa tempo poder temporal absoluto sobre toda a terra, explicitada por
Bonifácio VIII (1294-1303), na bula Unam Sancta, de 1302, é estranha e assustadora para os
anglo-católicos.
Segundo esta bula: “Duas são as espadas que estão em seu poder: uma espiritual, outra
temporal. As duas espadas, a material e a espiritual, estão em poder da Igreja, entretanto
com a diferença de que a material deverá ser empunhada em favor da Igreja e a espiritual
pela Igreja [...] Uma espada será subordinada à outra, e a autoridade temporal ao poder
espiritual”. É difícil não perceber nisto uma semelhança com os estados teocráticos
islâmicos. Mas o mais sério é que Bonifácio VIII estabelece uma “identidade entre o papa e
Cristo” que transforma aquele não em “vigário”, mas em “Substituto de Cristo”.
Assim ele termina seu texto: “Declaramos, afirmamos, definimos e pronunciamos que é
absolutamente necessário para a salvação de cada criatura humana que ela esteja sujeita o
pontífice romano”. O Papa julga todos os reinos e só é julgado por Deus. em nenhum
momento sequer ele pensa que o papa também está submetido a Cristo! Tudo isto
aconteceu porque houve uma “faronização do primado romano”. Isto explica porque
muitos duvidaram da possibilidade da democracia ser conciliada com o papado moderno.
Por razões históricas e teológicas o Catolicismo anglicano é mais tolerante e democrático
que o catolicismo romano. Em primeiro lugar, cremos que a coerção, a força ou compulsão
em matéria de crença e prática espiritual é totalmente estranho ao caráter de nosso Senhor
Jesus Cristo, conforme revelado nos Evangelhos. Os discípulos originais foram levados e
não forçado a acreditar nele e a segui-lo. Ele nunca foi impaciente com sua cegueira, sua
fraqueza e hesitação, mesmo quando alguns (como São Pedro) o negaram em momentos
cruciais. Ele desejava acima de tudo a sua obediência voluntária solicitada pelo amor e a
lealdade de homens livres e não de escravos. No final, ele possuía, não muitos, mas alguns
desses discípulos.
Por isto a “liberdade de consciência” é algo tão importante para o anglo-catolicismo e
permaneceu mesmo quando o Henry Newman, um dos líderes do movimento de Oxford,
nos deixou para se unir a Roma. É difícil não notar a “influencia anglicana”, trazida por
Newman sobre o tema. Assim o direito à liberdade religiosa afirmada pelo Vaticano II na
Declaração Dignitatis humanae (DH) é parte da “herança democrática do catolicismo inglês”.
Embora não acreditemos que exista “sistema políticos perfeitos” defendemos que a
democracia, apesar de suas fraquezas e limites, é a melhor forma de governo já descoberto
pela qual os homens podem em medida mais plena desenvolver suas personalidades e levar
a bom termo os poderes latentes, talentos e capacidades com que Deus os dotou. As
Ditaduras às vezes podem ser convenientes por um determinado tempo, mas são sempre
perversas em longo prazo. Pensamos que a democracia esta mais próxima da ordem divina
e mais parecida com “a mente de Cristo”.
3. O Primado de Pedro e o Anglicanismo contemporâneo
Uma tentativa de “recepção” do Papado pelo Anglicanismo só ocorreu no século XX. A
situação começou a mudar após o Papa João XXIII cuja fundação do “Secretariado para a
promoção da Unidade dos Cristãos” encorajou o então arcebispo de Cantuária, Geoffrey
Fischer, para uma visita histórica (embora ainda não oficial) ao Vaticano em 1960. Como
conseqüência desta visita o Bispo de Ripon, John Moorman, liderou uma delegação de
observadores anglicanos ao Concçilio Vaticano II. Em 1966, o arcebispo de Cantuária,
Michael Ramsey fez a primeira visita oficial ao Papa Paulo VI.
O diálogo entre os Anglicanos e os Católicos Romanos tem dado sinais evidentes de
progresso quanto à questão da autoridade na Igreja. Esse progresso já pode ser percebido
na convergência alcançada em declarações da Comissão Internacional Anglicana-Católica
Romana (Anglican Roman Catholic International Commission – ARCIC, em inglês) sobre
o tema.
3.1. O Dom da Autoridade
O mais importante destes documentos é “O Dom da Autoridade”. O documento “O Dom
da Autoridade” (DA) veio à luz em 1998, fruto do trabalho da ARCIC internacional. Tratase de um texto que tenta encontrar pontos em comum no tocante à compreensão de
questões eclesiológicas. Uma das questões mais cruciais no texto surge precisamente nesse
ponto, em que a ARCIC II tenta harmonizar a autoridade infalível de magistério do colégio
de bispos com a recepção de seus ensinamentos por todo o corpo de fiéis. Este documento
chegou a pontos em comum sobre o conceito de autoridade, de maneira notável, como:
1) a admissão de que O Espírito do Senhor Ressuscitado mantém o povo de Deus
obediente à vontade do Pai. Por essa ação do Espírito Santo, a autoridade do Senhor é
ativa na Igreja (cf. Relatório Final, Autoridade na Igreja I, 3);
2) o reconhecimento de que, graças ao seu batismo e à sua participação no sensus fidelium,
os leigos constituem parte integral do poder decisório da Igreja (cf. Autoridade na Igreja:
Elucidação,
3) a complementaridade da primazia e da conciliaridade como elementos de episcope
dentro da Igreja (cf. Autoridade na Igreja I, 22);
4) a necessidade de uma primazia universal exercida pelo Bispo de Roma como sinal e
salvaguarda da unidade dentro de uma Igreja re-unida (cf. Autoridade na Igreja II, 9);
5) a necessidade de o primaz universal exercer seu ministério em associação colegiada com
outros bispos (cf. Autoridade na Igreja II, 19);
6) uma compreensão da primazia universal e da conciliaridade que complemente e não
suplante o exercício da episcope em igrejas locais (cf. Autoridade na Igreja I, 21-23;
Autoridade na Igreja II, 19).
No documento a posição anglicana é resumida da seguinte maneira: “[...] o fundamento, na
Escritura e na Tradição, do conceito de uma primazia universal, em conjunção com a
colegialidade, como instrumento de unidade, que é o caráter de tal primazia na prática, e
que se valesse da experiência de outras Igrejas Cristãs no exercício da primazia,
colegialidade e conciliaridade”. Assim o anglicanismo, e os anglo-católicos em especial,
estão conscientes da importância do primado de Pedro para a cristandade, mas procuram
recuperar o seu real sentido na história da Igreja.
Considerações finais
Os anglo-católicos não teriam nenhum problema é reconhecer que o Papa é o bispo de
Roma, o Metropolitano da Província Romana, o Primaz da Itália, ou mesmo o Patriarca do
Ocidente. Além disto, reconhecem que a Sé de Roma sempre teve um papel especial na
história da Igreja. Os Concílios Ecumênicos e Santa Tradição dão ao o primado do Bispo
de Roma uma primazia espiritual sobre todo o mundo cristão. Assim, uma primazia de
honra e respeito, certamente, é devida ao Santo Papa. Neste sentido ele atua como “Vigário
de Cristo”. Porque todo Bispo, como sucessor dos apóstolos, é um “vigário” ou
“representante de Cristo” para o mundo, e os bispos em geral, e o primeiro bispo do
mundo cristão (Primus inter pares), que é o Bispo de Roma, em particular, é vigário de Cristo
em um sentido especial.
O “ministério petrino” é uma realidade, mas tal ministério não é exclusivo a Sé Romana.
Os anglo - católicos reconhecem que São Pedro foi o “primeiro dos Apóstolos” e que o
Papa é o seu sucessor como Bispo de Roma. Não faz sentido negar a antiga tradição que
liga Pedro a Sé Romana.
No entanto, Pedro também foi, de acordo com as mesmas tradições antigas, o primeiro
bispo de Antioquia. São Gregório Magno, em cartas aos patriarcas de Antioquia e de
Alexandria, diz que ele compartilha o ministério petrino com os ambos, visto que Pedro
também foi primeiro bispo de Antioquia e enviou São Marcos para fundar a Igreja em
Alexandria (ver Livro V, Epístola 39, Livro VI, Epístola 60, e, especialmente, Livro VII,
Epístola 40).
Assim, seja qual for a forma correta de entender o ministério petrino, O papa Gregório
Magno estava disposto a vê-lo como algo compartilhado. Este é um ponto importante: os
anglo-católicos consideram esta ideia de um “ministério petrino compartilhado” como um
ponto de partida para um diálogo ecumênico futuro sobre o assunto das reivindicações
romanas.
Mas, para isto é preciso resolver a herança dogmática dos Concílios ecumênicos modernos
(Vaticano I e II). Estes concílios afirmam explicitamente que a autoridade papal pode ser
exercida independentemente de qualquer e de todos os bispos do mundo. Isto levanta a
primeira grande preocupação Anglicana. Anglo-católicos não se opõem a ideia de o Papa
ser o líder da Igreja ou articular o pensamento da Igreja e a vontade de Deus de uma forma
única.
No entanto, a ideia de que o Papa possa agir completamente sozinho, mesmo para além
dos bispos de Antioquia e de Alexandria e o outras grandes Sés apostólicas, parece
perigoso para os anglicanos. A parte não é maior do que o todo. O sentido da Igreja e da
mente de Deus primordialmente inerentes a toda a Igreja e todos os seus bispos e os bispos
como um corpo, portanto, devem exercer a autoridade final. A doutrina romana, se mal
interpretada, tende a transformar os outros Bispos em simples “administradores
eclesiásticos”.
De forma mais profunda é difícil para os anglicanos aceitarem a atual doutrina da
infalibilidade pessoal dos papas. É um fato histórico que Papas individuais, por vezes,
erraram ou foram lentos para aceitar a evolução da doutrina ou posições teológicas que
foram finalmente julgadas heréticas.
A explicação romana que quando ele exerce seu poder “exa cathedra” ou seja, “de forma
extraordinária” ele apenas falaria em nome do “Consenso dos fiéis” é igualmente
problemática. Nas raras vezes em que ele foi utilizado, como na definição da própria
infalibilidade papal pelo Vaticano I e Pio IX e da Assunção de Maria, em 1950, o seu
resultado parece questionável: nem anglicanos nem ortodoxos, nem católicos orientais,
aceitam qualquer uma dessas doutrinas em sua forma romana; nenhum deles pode ser
encontrado diretamente a partir da Escritura e da Tradição; e ambos, de fato, são inovações
na doutrina.
A posição católica romana moderna exige uma crença no desenvolvimento da doutrina de
um modo que foi rejeitada pelos anglo-católicos desde Newman (aliás foi este o real
motivo de sua saída da Igreja da Inglaterra). Os anglo-católicos são bem mais ortodoxos
neste sentido. Continuam afirmando, como princípio orientador da autoridade na Igreja,
que nenhuma doutrina ou crença pode ser considerada dogma se não puder ser provada
diretamente da Escritura. A “Tradição viva” não significa que qualquer coisa possa ser
estabelecida pelo magistério da Igreja. A Tradição articula, esclarece e interpreta a Escritura
com autoridade, mas não produz desenvolvimentos que carecem de fundamento bíblicos
claros.
Em suma, as reivindicações modernas do papado romano não são fundamentadas pela
Escritura ou tradição antiga. A maioria dos argumentos para as reivindicações do papado
moderno são tautologias. No entanto, os católicos anglicanos devem estar abertos à ideia
de um “papado reinterpretado”, de um primado universal, que corrija centralizações
excessivas e que relaciona com firmeza o exercício da autoridade a sua relação com
Tradição e o todo da Igreja.

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