Metáforas em identidades, ritos e cerimônias

Transcrição

Metáforas em identidades, ritos e cerimônias
USCS – Universidade Municipal de São Caetano do Sul
Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa
Programa Institucional de Iniciação Científica
Memórias do ABC – Núcleo de Pesquisas e Laboratório de Produções
Midiáticas
Raquel Nantes Tavares
CULTURAS E LINGUAGEM:
Metáforas em identidades, ritos e cerimônias nas
narrativas orais de imigrantes no ABC (1930-1960)
São Caetano do Sul
2009
USCS – Universidade Municipal de São Caetano do Sul
Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa
Programa Institucional de Iniciação Científica
Memórias do ABC – Núcleo de Pesquisas e Laboratório de Produções
Midiáticas
Raquel Nantes Tavares
CULTURAS E LINGUAGEM:
Metáforas em identidades, ritos e cerimônias nas
narrativas orais de imigrantes no ABC (1930-1960)
Monografia apresentada ao Programa
Institucional de Iniciação Científica,
desenvolvida no Memórias do ABC –
Núcleo de Pesquisas e Laboratório de
Produções
Midiáticas
–
da
Universidade Municipal de São
Caetano do Sul – USCS, sob orientação
da Profa. Dra. Vilma Lemos.
São Caetano do Sul
2009
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos os senhores e a todas as senhoras que, com muito carinho, dedicaram um
tempo de suas vidas para compartilhar experiências e, assim, ajudar a compor esta
monografia.
Ao meu pai, minha mãe e minha irmã pelo apoio silencioso, mas sempre presente.
Ao companheiro e amigo Jefferson, pelos palpites e conselhos.
À Amanda, pelo apoio nos momentos mais difíceis.
Sou grata à professora Vilma Lemos, por ter enxergado em mim a pesquisadora que nem eu
mesmo sabia existir, lapidando meus conhecimentos.
Ao “Memórias do ABC” e sua coordenadora, professora Priscila F. Perazzo, por ter me dado
a oportunidade de expandir meus horizontes.
Também agradeço à Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS – por propiciar
auxílio durante meu percurso de pesquisadora de Iniciação Científica.
RESUMO
Esta pesquisa trabalha com a memória de imigrantes – homens e mulheres – na região do
ABC, que aqui chegaram entre as décadas de 1930 e 1960, analisando suas narrativas orais de
histórias de vida. Destaca seus ritos e cerimônias e analisa suas identidades. Na sua finalidade
social, valoriza a memória dos mais velhos, que contaram sobre sua vinda, sobre o período de
adaptação ao Brasil e à região, as relações de trabalho, as familiares, a escolarização.
Observaram-se, como resultado, pela análise da linguagem das narrativas, a metáfora do
desenraizamento, relacionada à identidade, a metáfora de velório para a tristeza relacionada à
cerimônia de despedida. Em relação aos ritos e cerimônias desses imigrantes de diferentes
nacionalidades, surge uma memória coletiva no que se refere ao salário, entregue, geralmente,
à mãe, ao namoro, sempre na presença de familiares e ao rigor em relação aos estudos, muito
valorizado pelos pais.
PALAVRAS CHAVE : imigrantes no ABC – identidades e metáforas – ritos e cerimônias
LISTA DE DEPOENTES 1
Ângela Dall´Anese Nóbrega, 78 anos, imigrante italiana
Antônio Laureano de Almeida, 80 anos, imigrante português
Corvina de Jesus Fernandes Andrade, 74 anos, imigrante portuguesa
Erzsébet Klementina Keresztes, 67 anos, imigrante húngara
Gines Lorente Castells, 76 anos, imigrante espanhol
Grada Theresia Broekman van der Zwaan, 70 anos, imigrante holandesa
Henrique de Almeida Borges, 55 anos, imigrante português
Júlio Dimov, 92 anos, imigrante bessarabiano
Lucas Diaz Martin, 77 anos, imigrante espanhol
Maria Tereza Caymel Lorente, 65 anos, imigrante espanhola
Miguel Zvonimir Krouman, 83 anos, imigrante iugoslavo
Nikolaj Iwtchenko, 75 anos, imigrante polonês
Olga Iwtchenko, 59 anos, imigrante russa
Vincenzo Calógero Sortino, 63 anos, imigrante italiano
1
As idades referem-se à data de gravação dos depoimentos, entre novembro e dezembro de 2007, à exceção de
Ângela Dall’ Anese e Júlio Dimov, cujas entrevistas foram gravadas em 2004.
LISTA DE FIGURAS
Foto 01 – Olga Iwtchenko (direita), aos 13 anos, com uma amiga chinesa, pouco antes da
viagem ao Brasil.........................................................................................................................22
Foto 02 – Corvina de Jesus Fernandes Andrade, aos 22 anos....................................................23
Foto 03 – Vincenzo entre os dois irmãos mais novos, Ângelo Calógero Sortino (direita), e
Antônio Calógero Sortino (esquerda). A foto foi tirada pouco depois da chegada ao Brasil, para
mandar para os avós que ficaram na Itália..................................................................................25
Foto 04 – Foto do passaporte de Miguel Zvonimir Krouman e a mãe, Liza Dubanic...............26
Foto 05 – Nikolaj Iwtchenko (direita) e sua mãe, Klawdia Iwtchenko, passeando pelas ruas da
Alemanha, pouco antes de virem para o Brasil...........................................................................27
Foto 06 – Miklós Keresztes (de terno), pai de Erzsébet (à frente), com os filhos, Laszlo
(esquerda), Miklós (direita), em frente à casa que a família deixou na Hungria. Foto de
1941.............................................................................................................................................28
Foto 07 – Visita do cardeal holandês Alfrink às obras de urbanização das favelas do bairro
João Ramalho, em Santo André. Grada é a senhora de vestido escuro, com colar, atrás do
cardeal. Shirley, a filha mais velha de Grada, cumprimenta-o enquanto amigas da comunidade
os observam................................................................................................................................30
Foto 08 – Presidente da colônia holandesa de Holambra, interior de São Paulo, quando visitou
o centro comunitário do Parque João Ramalho, Santo André. Ao fundo, a casa de Grada, em
rua sem asfalto do Bairro João Ramalho, na década de 1970.....................................................33
Foto 09 – Da esquerda para direita: Veronika Kavói (esposa de Antônio), Amélia (amiga da
família), Vera Lúcia e Valkiria (filhas de Antônio), Antônio, Tadeu (amigo) – agachado – e sr.
Mário (também amigo). Em frente à casa de Antônio, na Rua João Ribeiro, no Bairro
Campestre, Santo André.............................................................................................................34
Foto 10 – Da esquerda para direita: Veríssimo Laureano de Almeida (irmão), Antônio (com
dois anos), Olívia de Jesus Vieira (mãe), José Laureano de Almeida (irmão no colo de OIívia)
e Capitulina de Almeida (irmã). Ao fundo, a casa da família, feita de pedras, em Portugal, que
foi vendida para a viagem ao Brasil............................................................................................37
Foto 11 – Corvina (esquerda) e o pai, Luis Fernandes no bar da família, no Bairro
Ipiranguinha, em Santo André, na década de 1950....................................................................41
Foto 12 – Casamento de Miguel e Catharina Zvonimir, em 1950.............................................42
Foto 13 – Maria Tereza e Gines Lorente, quando ainda namoravam, no início da década de
1960.............................................................................................................................................43
Foto 14 – Corvina e João Andrade, no dia do casamento em 12 de setembro de 1959.............44
Foto 15 – Casamento de Júlio e Anna Dimov, em 1936............................................................45
Foto 16 – Registro da festa de casamento de Julio e Anna Dimov, que reuniu toda a família,
em 1936.......................................................................................................................................46
Foto 17 – Rosália e Mathias Kavói, sogros de Antônio.............................................................47
Foto 18 – Antônio e Veronika, quando ainda namoravam, em época de Carnaval, na década de
1950.............................................................................................................................................48
Foto 19 – Gines (direita) e o irmão Jaime quando crianças, em Barcelona, na Espanha, na
década de 1940............................................................................................................................52
Foto 20 – Miguel, aos 14 anos, e a mãe, Liza Dubanic..............................................................54
Foto 21 – Família espanhola que acolheu a família de Maria Tereza, no Bairro Barcelona, em
São Caetano do Sul. Eles moravam com mais duas famílias numa mesma casa, na Rua
Conselheiro Lafayete, onde hoje fica o prédio do campus I da USCS em meados da década de
1950.............................................................................................................................................55
Foto 22 – Da esquerda para direita: Liza Dubanic, mãe de Miguel, Miguel e o padrasto
Richard, com galinhas nas mãos. Essa era a casa da família, na Rua Xingu, na Vila Valparaíso,
em Santo André...........................................................................................................................60
LISTA DE DOCUMENTOS
Documeto 01 (a) – Registro de Empregados de Ângela, na Pan, fábrica de chocolates de São
Caetano.......................................................................................................................................40
Documeto 01 (b) – Registro de Empregados de Ângela, na Pan, fábrica de chocolates de São
Caetano.......................................................................................................................................40
Documento 02 – Registro de casamento de Júlio e Anna Dimov..............................................46
Documento 03 – Boletim de Erzsébet do período em que viveu com os pais em um
acampamento de húngaros na Alemanha, durante a Segunda Guerra........................................50
Documento 04 – Certificado de Nacionalidade de Gines..........................................................63
Documento 05 – Certidão de nascimento de Grada...................................................................64
Documento 06 – Certidão de batismo de Miguel......................................................................65
Documento 07 (a) – Certificado de naturalização de Miguel (frente).......................................66
Documento 07 (b) – Certificado de naturalização de Miguel (verso).......................................66
Documento 08 – Certificado de batismo de Erzsébet................................................................69
Documento 09 (a) – Certificado de Naturalização de Erzsébet (frente)....................................70
Documento 09 (b) – Certificado de Naturalização de Erzsébet (verso)....................................70
Documento 10 (a) – Cartão postal com o registro da viagem feita por Sortino, a mãe e os
irmãos da Itália para o Brasil, em 1956 (frente).........................................................................72
Documento 10 (b) – Cartão postal com o registro da viagem feita por Sortino, a mãe e os
irmãos da Itália para o Brasil, em 1956 (verso)..........................................................................72
Documento 11 – Passaporte de Caterina Michelin Dall´Anese e dos filhos (da esquerda para
direita): Angela, Arthur, Augusta, Mário e Ada.........................................................................74
Documento 12 – Passaporte da família de Júlio Dimov. Da esquerda para direita: João Dimov
(pai), Anna (irmã), Júlio, Matrona Dimov (mãe) e, atrás, as irmãs de Julio, Maria (esquerda) e
Irina.............................................................................................................................................76
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................11
CAPÍTULO I – O PROCESSO MIGRATÓRIO ENTRE 1870 E 1960........................19
1.1 O CENÁRIO POLÍTICO E SOCIAL DA EUROPA....................................19
1.2 OS IMIGRANTES CHEGAM AO BRASIL: SÃO PAULO........................21
1.3 OS IMIGRANTES NO ABC PAULISTA.....................................................31
CAPÍTULO II – CULTURAS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DE IMIGRANTES......35
2.1 O TRABALHO E O RITUAL DA ENTREGA DO SALÁRIO AOS
PAIS........................................................................................................................36
2.2 O RITUAL DO NAMORO E DO PEDIDO DE CASAMENTO.................42
2.3 OS PAIS E AS MEDIDAS DISCIPLINARES NA ESCOLA......................49
2.4 O IMAGINÁRIO DOS IMIGRANTES SOBRE O BRASIL E A
IMIGRAÇÃO..........................................................................................................51
CAPÍTULO III – AS METÁFORAS NO DISCURSO DOS IMIGRANTES................58
3.1
3.2
3.3
3.4
3.5
AS METÁFORAS DE IDENTIDADES..........................................................60
AS METÁFORAS NOS RITUAIS DE DESPEDIDA....................................71
AS METÁFORAS DO NAMORO..................................................................77
AS METÁFORAS RELACIONADAS À FAMÍLIA......................................79
AS METÁFORAS SOBRE O BRASIL E A IMIGRAÇÃO...........................80
CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONTRIBUIÇÕES DA PESQUISA..........................83
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................85
11
INTRODUÇÃO
Para se entender a imigração, é preciso retomar os acontecimentos históricos que
resultaram na movimentação dos povos. No final do século XIX, a Europa enfrentava um
período de transições com a consolidação das indústrias. O antigo sistema agrário, com
pequenos produtores e agricultura de subsistência, começa a sentir os efeitos em decorrência
das novas máquinas e técnicas do sistema capitalista de produção. Os grandes produtores
monopolizam as terras e os pequenos proprietários contraem dívidas. As máquinas agrícolas
substituem, gradualmente, o elemento humano que, por isso, migra para as cidades em busca
de trabalho nas indústrias, aumentando a densidade demográfica dos centros urbanos. A
economia mundial, antes centrada na Europa, entra em crise e a América começa a competir
com produtos mais baratos. A vinda para o Novo Continente é vista como uma esperança por
muitos que viviam em condições precárias na cidade ou no campo.
Em 1870, inicia-se a grande imigração, que durará até 1930. Países como Itália, Japão
Espanha, Áustria Hungria, Rússia e Bálcãs veem um grande contingente de sua população
rumar para a América. O Brasil receberá, principalmente, italianos, japoneses, espanhóis e
portugueses que formam colônias no Sul e no Sudeste. Para São Paulo vieram, sobretudo,
italianos, japoneses e espanhóis. Não se sabe com exatidão quantos imigrantes chegaram ao
país, porque os registros da época eram precários, não havendo informações precisas sobre
quantos entraram, quantos retornaram aos seus lugares de origem ou, ainda, quantos
redirecionaram seu destino para outros países.
A abolição da escravatura no Brasil, em 1888, intensificou ainda mais a entrada de
imigrantes, principalmente para as pequenas propriedades agrícolas no Sul ou para as lavouras
de café na região Sudeste. No final do século XIX, as despesas de transporte e moradia dos
imigrantes deixam de ser responsabilidade exclusiva dos Estados, que passam a dividir os
encargos com o governo das províncias e os fazendeiros. Como São Paulo vivia um período
de fartura, pôde recrutar um número maior de mão de obra para as suas lavouras.
Com a Primeira Guerra Mundial, há uma reação nacionalista contrária à entrada de
estrangeiros no Brasil. Os líderes de movimentos socialistas e anarquistas, em sua maioria,
europeus, segundo Maram (1979), receberam da imprensa brasileira a alcunha de
“indesejáveis”, o que redundou, em 1921, na formulação da “lei dos indesejáveis”, regulando
12
a proibição do processo migratório e a expulsão de estrangeiros envolvidos com os
movimentos socialistas/anarquistas.
O perfil dos imigrantes no Brasil muda após o término da Segunda Guerra Mundial. O
IBGE, no livro Brasil – 500 anos de povoamento (2007, p. 229), informa que, em 1945,
entraram no Brasil 707 imigrantes de diferentes nacionalidades, considerados “operários
qualificados”. Em 1960, esse número aumenta para 5.444 imigrantes. O mesmo ocorre com os
estrangeiros considerados técnicos, que em 1945 eram 273 e em 1960, 717. Eles não partem
mais das pequenas províncias, mas sim das grandes cidades e chegam ao país com melhor
formação escolar e profissional. Esses novos imigrantes é que vão constituir a massa de
trabalhadores das novas indústrias que se instalavam no Brasil, inclusive na região do Grande
ABC, onde começavam a funcionar as fábricas.
Neste contexto, esta pesquisa pretende recuperar, pelos relatos orais de imigrantes,
ritos e cerimônias (festas, rituais religiosos, relação pais e filhos, marido e mulher, idosos e
crianças, brincadeiras, cumprimentos etc.) que configuraram as culturas e identidades
daqueles que se estabeleceram no ABC Paulista – especificamente Santo André, São
Bernardo do Campo e São Caetano do Sul.
Para tanto, é necessário retomar a noção de identidade cultural discutida por Burke
(1995), que vem ao encontro da idéia de que as identidades se formam na interação com o
coletivo. Segundo o autor, devemos entender o processo de formação das identidades
culturais como uma “construção”, por serem produtos ou invenções expressas e
“’incorporadas’ em veículos, tais como: ritos, mitos e cultura material” (op.cit., p. 92).
A opção pelo termo culturas, no plural, remete a historiadores, antropólogos e
intelectuais, que alertam para o perigo do termo no singular, como resume Couceiro (2002, p.
15).
“[o termo “cultura”] não constitui um complexo unificado coerente, mas sim, um
conjunto de ‘significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas em
que eles são expressos ou encarnados’, que são construídos socialmente, variando,
portanto, de grupo para grupo e de uma época a outra”
Ao privilegiar a narrativa oral das pessoas anônimas que vivenciaram os
acontecimentos, objetiva-se identificar, nos relatos de imigrantes, a manifestação de metáforas
que representam seus ritos e cerimônias, sua forma de entender a realidade expressa pela
13
linguagem. Busca-se, ainda, compreender de que forma essas metáforas configuram suas
identidades.
Hall (1999, 88-89) explica que os imigrantes traduzem sua identidade, no sentido
latino de “transportar”, “transferir”. Ou seja, os imigrantes habitam, no mínimo, duas
identidades e precisam aprender a falar duas línguas culturais, traduzi-las e negociar entre
elas. Eles não podem mais ambicionar a pureza de cultura e identidade, porque são produtos
de várias histórias e culturas interconectadas.
As narrativas orais aqui enfocadas não se referem à ordem da ficção, pois trata-se de
histórias de vida. Como tal, são constitutivas do pensamento, memória e subjetividade na
formação de uma identidade pessoal. Ainda que a definição do termo “narrativa” seja ponto
de discussão entre estudiosos do assunto, inegavelmente ela integra a competência lingüística
e simbólica dos seres humanos. É pela linguagem que representam algo que já ocorreu no
tempo e está ausente no espaço, transcendendo, portanto, a ambos. Tem-se um ato de fala e a
referência aos acontecimentos, selecionados pelos sortilégios da memória.
Ao narrar, o depoente pode compreender uma experiência, quando o tempo e o espaço
de sua narrativa se encontram com o da sua audiência. Segundo Bruner (1986, p. 4), essa
experiência, além da cognição e da razão, abrange sentimentos e expectativas. Como
experiência vivida (pensamento, desejo, etc.) é individual e nunca será plenamente
compartilhada, interpretam-se as expressões da experiência pela análise das narrativas, cientes
de que, no fluxo da memória, iluminam-se ou não algumas causas: esquecimentos, silêncios,
silenciamentos, que fazem parte do ato de rememorar. É a recuperação do vivido segundo
quem o viveu, pois “Lembrar nunca é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com
imagens e idéias de hoje, as experiências do passado” (CRUZEIRO, 1996, p. 3).
Levando em consideração esses aspectos sobre a imigração, parte-se das seguintes
perguntas de pesquisa:
•
Como as metáforas configuram as identidades desses imigrantes?
•
Que ritos e cerimônias se manifestam nas suas narrativas orais de histórias de
vida?
Desse questionamento decorrem os seguintes objetivos:
14
•
Identificar, nos relatos dos imigrantes, seus ritos e cerimônias.
•
Destacar e analisar as metáforas de identidades nas narrativas orais dos
imigrantes, bem como nos seus ritos e cerimônias.
Com isso, pode-se enriquecer a memória local sobre imigrantes, contribuindo para os
estudos culturais das cidades do ABC, bem como pode-se constatar, pela linguagem, como o
imaginário daqueles que aqui se instalaram se manifesta sobre esse passado não muito
distante, contribuindo, dessa forma, para configurar uma memória coletiva regional. Também
justifica-se esta pesquisa pela valorização da subjetividade, que destaca as versões de cada
depoente, já que eles vivenciaram os acontecimentos passados e trazem consigo suas
impressões e reflexões desse passado. A memória dos mais idosos guarda uma riqueza
cultural e, por si só, justifica-se valorizá-los para entender a configuração do ABC, pela
influência desses imigrantes. É importante ressaltar que a finalidade desta pesquisa não é
contrapor versões, mas sim, complementá-las.
Seus depoimentos e “relíquias” (fotos, passaportes, medalhas, diplomas etc.) serão
inseridos num banco de dados sobre memória / história oral relacionados ao ABC – o
HIPERMEMO2 - para futuros pesquisadores e interessados no assunto. As histórias de vida
coletadas, sobretudo aquelas que, até então, eram de estrito domínio familiar, serão de grande
valia, contribuindo para estudos que buscam entender a formação cultural da região.
Serão analisados os relatos de quatorze imigrantes, – três espanhóis (dois homens e
uma mulher), três portugueses (dois homens e uma mulher), dois italianos (um homens e uma
mulher), uma russa, uma holandesa, uma húngara, um iugoslavo, um polonês e um
bessarabiano – oito homens e seis mulheres, com idades entre 55 e 96 anos, chegados ao
Brasil entre as décadas de 1930 e 1960 (à exceção do bessarabiano, que chegou ao Brasil em
1926), moradores no ABC. Todos os depoimentos foram gravados entre novembro e
dezembro de 2007, à exceção do senhor Julio Dimov e da senhora Ângela Dall´Anese
Nóbrega, cujas entrevistas datam de 2004, no Memórias do ABC – Núcleo de Pesquisas e
Laboratório de Produções Midiáticas da Universidade Municipal de São Caetano do Sul –
USCS.
2
O HIPERMEMO é um Banco Hipermídia de Memórias do ABC, da Universidade Municipal de São Caetano
do Sul – USCS – e está sendo construído pelo Memórias do ABC - Núcleo de Pesquisas e Laboratório de
Produções Midiáticas, grupo no qual se insere esta pesquisa.
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A técnica utilizada é a da história oral, que privilegia a realização de entrevistas com
participantes ou testemunhas de acontecimentos, como forma de se aproximar do objeto de
estudo. Como explica Alberti (2005, p. 13).
[a história oral] é legítima como fonte, porque não induz a mais erros do que outras
fontes documentais e históricas. (...) Na história oral a versão representa a ideologia
em movimento e tem a particularidade, não necessariamente negativa, de
“reconstruir” e totalizar, reinterpretar o fato.
Há quem discorde da metodologia da história oral pelo seu caráter subjetivo, porém a
objetividade que se espera da história oral é a mesma que se deve buscar em qualquer outro
documento escrito produzido pelo homem, pois esses também sofrem a influência do contexto
e de ideologias.
Os depoimentos centram-se na história de vida dos imigrantes, abordando desde a
infância, passando pela adolescência, fase adulta, até o tempo atual. A importância do
indivíduo para entender uma coletividade é demonstrada por Alberti (op.cit., p.24), que atenta
para o fato de a história ser a reunião das histórias das pessoas que vivem um determinado
acontecimento.
É essa visão de mundo [a do depoente] que norteia seu depoimento e que imprime
significados aos fatos e acontecimentos narrados. Ela é individual, particular àquele
depoente, mas constitui também elemento indispensável para a compreensão da
história de seu grupo social, sua geração, seu país e da humanidade como um todo.
(...) se trabalhamos com visões particulares e muitas vezes idiossincráticas para
ampliar nosso conhecimento acerca da história, é porque de alguma forma
acreditamos que a história é um nome genérico para designar as histórias vividas e
concebidas, diferentes ou parecidas, criadas por pessoas em contato com o mundo.
Esses depoimentos, influenciados pelo presente dos depoentes, devem ser entendidos
como reinterpretações do passado, porque movidos pela memória, considerada, aqui, não
como um fenômeno individual, mas sim como uma construção social. Para Halbwachs (1990,
p. 51), o pensamento individual sustenta-se no coletivo; cada memória individual é um ponto
de vista sobre a memória coletiva e este ponto de vista muda conforme o lugar ocupado na
sociedade.
O historiador Le Goff (1984, p. 12), ao fazer uma retrospectiva sobre o estudo da
memória, informa que o ato mnemônico fundamental é o comportamento narrativo, por
possuir uma função social – a comunicação de uma informação, na ausência do
acontecimento ou objeto narrado – e sofrer a intervenção da linguagem, produto da sociedade
16
que é uma extensão essencial das possibilidades de armazenamento e reprodução da nossa
memória.
É preciso lembrar que, ao narrar algo, tem-se por alvo uma audiência e mantém-se,
entre narrador e ouvinte, uma relação dialógica (BAKHTIN, 1979). No tempo de uma hora
de entrevista, o depoente comprime as lembranças de sua história de vida e é nesse momento
que sua subjetividade aflora e, por meio dela, ele reconstrói a realidade, reorganiza suas
experiências de vida. Não cabe aqui fazer um juízo moral de valor, se elas são mais
verdadeiras ou mais ficcionais em relação à história oficial, porque, como bem lembra Sandro
Portelli (apud. THOMPSON, 2002, p. 183):
Os fatos de que as pessoas se lembram (e se esquecem) são, eles mesmos, a
substância de que é feita a história. (...) A subjetividade é do interesse da história,
tanto quanto os ‘fatos’ mais visíveis. O que o informante acredita, é, na verdade, um
fato (isto é, o fato de que ele acredita nisso) tanto quanto o que ‘realmente’
aconteceu.
A lembrança é uma reconstrução do passado no presente e, além disso, é influenciada
por outras reconstruções feitas no passado (HALBWACHS, 1990, p 71). As falhas da
memória não constituem problema, já que os esquecimentos são inerentes quando se trata de
lembranças, pois “o processo de seleção do que lembrar implica do que se esquecer”
(MEIHY, 2005, p.75) e, como afirma Alberti (2005, p.19):
Não é mais fator negativo o depoente poder “distorcer” a realidade, ter “falhas” de
memória ou “errar” em seu relato; o que importa agora é incluir tais ocorrências
em uma reflexão mais ampla, perguntando-se por que razão o entrevistado concebe o
passado de uma forma e não de outra e por que razão e em que medida sua
concepção difere (ou não) das de outros depoentes.
Nesses depoimentos, buscaremos, especificamente, as metáforas que configuram os
ritos, cerimônias e as identidades dos imigrantes, porém, não se entenda a metáfora segundo a
tradição retórica, considerada um fenômeno de linguagem, um ornamento lingüístico, sem
nenhum valor cognitivo. Busca-se a metáfora segundo o conceito de Lakoff e Johnson
(2002), vista como uma operação cognitiva fundamental na apreensão e compreensão do
mundo objetivo. Nesse sentido, a metáfora é um elo entre domínios semânticos diferentes.
Por exemplo, posso relatar um acontecimento político usando expressões do domínio
semântico do teatro: cena, cortinas, atores etc., com toda simbologia inerente a este domínio.
Para estudiosos da metáfora, essa seria uma forma simbólica para expressão do pensamento
abstrato, na tentativa de fazer o mundo abstrato compreensível, ou trazer o mundo para dentro
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de nós mesmos, ou, ainda, de irmos até ele, segundo Pollio et all (1990). Considerar a
metáfora como inerente à forma de as pessoas verem o mundo, implica ir além dela como
recurso de imaginação, próprio de textos literários. Também quer dizer que não se restringirá
à palavra, porque salientam-se o pensamento e a ação. Assume-se, portanto, que a metáfora
está infiltrada na vida cotidiana, embora, na maioria das vezes, não se perceba sua presença.
Nas palavras de Lakoff e Johnson, 2002, p. 46):
Os conceitos que governam nosso pensamento não são meras questões de intelecto.
Eles estruturam o que percebemos, a maneira como nos comportamos no mundo e o
modo como nos relacionamos com outras pessoas. Tal sistema conceptual
desempenha, portanto, um papel central na definição de nossa realidade cotidiana.
Se estivermos certos, ao sugerir que esse sistema conceptual é em grande parte
metafórico, então o modo como pensamos o que experenciamos e o que fazemos
todos os dias são uma questão de metáfora.
Na análise detalhada das fontes – os depoimentos transcritos – procuram-se as
metáforas que configuram o discurso dos imigrantes, o que auxiliará a compreensão de suas
visões de mundo, permeadas por suas crenças, valores, tradições, suas culturas.
Para melhor compreensão das metáforas cotidianas, segue-se um exemplo dos autores
mencionados de como um conceito estrutura uma atividade cotidiana e pode, por isso, ser
considerado metafórico.
Metáfora conceptual: A VIDA É UMA VIAGEM
Linguagem Cotidiana:
Ela sabe para onde está indo;
Ele tinha dois caminhos pela frente;
O neném chegou;
Seus caminhos se cruzaram;
Finalmente ela chegou lá (obteve sucesso);
Ele nos deixou (morreu).
Esse exemplo leva à compreensão de que, muitas vezes, fala-se sobre vida em termos
de viagem: chegar, ir, escolher um caminho etc., portanto, trata-se de uma metáfora da cultura
que estrutura a vida como uma viagem. O domínio fonte é viagem e o domínio alvo é vida.
Portanto, metáforas são mapeamentos entre domínios conceituais, de um domínio fonte para
um domínio alvo. Tais mapeamentos precisam ser legitimados socialmente para assim fazer
parte de nossa maneira de compreender uma experiência (LAKOFF; JOHNSON, 2002).
Foi com esse referencial que se verificaram as metáforas de identidades dos
imigrantes e de seus rituais cotidianos, mesmo cientes de que esses imigrantes traziam
culturas diferentes e, ainda, que tenham se passado tantos anos de sua chegada ao Brasil.
18
Portanto, serão possíveis diferentes formas de identificação, ou, ainda, que o novo contexto
em que os grupos se inseriram lhes permitam novas e comuns formas de ver e entender o
novo, o desconhecido. Compreender essa estruturação de mundo em narrativas orais pode, no
dizer dos autores Lakoff e Johnson, tornar coerentes nosso próprio passado, nossas
atividades presentes, nossos sonhos, nossas esperanças e nossos objetivos (2002, p. 352).
Também os depoimentos transcritos foram analisados com base nas tendências
francesas da análise do discurso – AD (MAINGUENEAU, 2000). Um centro de interesse foi
analisar como os sujeitos imigrantes se inscrevem em seu discurso ao relatar suas histórias de
vida, seus ritos e cerimônias, inseridos no universo cultural da nova sociedade. Ressaltamos,
ainda, que a análise do discurso é interpretativa e, portanto, não há passos ou procedimentos
técnicos mecânicos para a análise das narrativas.
Para responder às questões que orientam esta pesquisa, esta monografia organiza-se
em três capítulos.
No capítulo I, aprofundam-se as questões sobre imigração, os motivos para a saída dos
imigrantes dos países de origem, suas condições de vida no Brasil e a adaptação no ABC
Paulista.
O capítulo II trará uma análise dos ritos e cerimônias desses imigrantes.
No capítulo III, serão identificadas e analisadas as metáforas conceituais no discurso
dos imigrantes.
Fecham esta monografia as considerações finais, respondendo às perguntas de
pesquisa e apresentam-se as contribuições do trabalho desenvolvido.
19
CAPÍTULO I – O PROCESSO MIGRATÓRIO ENTRE 1870 E 1960
1.1 O cenário político e social da Europa
Os aspectos que determinam as levas migratórias a espalhar-se pelo mundo têm raízes
econômicas, políticas ou sociais. A grande imigração de 1870 teve como pano de fundo as
mudanças econômicas enfrentadas pela Europa. A industrialização consolidava-se e as
propriedades que ainda trabalhavam em regime de subsistência foram incorporadas pelos
grandes proprietários, que começaram a desenvolver um sistema capitalista de produção. Os
pequenos lavradores, antes proprietários, passaram a pagar impostos do uso da terra e não
conseguiam concorrer com os grandes produtores, que substituíram o elemento humano por
máquinas mais baratas e potentes. Os trabalhadores não tiveram outra escolha a não ser buscar
emprego nas indústrias que se desenvolviam nas cidades.
Os centros urbanos, ainda em desenvolvimento, não tinham capacidade para abrigar o
grande contingente de trabalhadores que procuravam trabalho e moradia. A taxa de
crescimento da população aumentou drasticamente, contribuindo para que ocorresse uma
“transição demográfica”, como explica Elias (2005, p. 14-15).
(...) a Europa (e, pouco depois, a Ásia) começava a conviver com grande excedente
populacional. Melhorias na agricultura e queda nas taxas de mortalidade ao longo
do século XIX contribuíram para que ocorresse o que os estudiosos chamam de
“transição demográfica”. Como no caso português, que, de uma taxa de 0,16% ao
ano em 1820, passou para 1% em 1890. Um salto de 600%.
Ainda segundo o historiador, a produção não acompanhou o salto demográfico, porque
entre 1840 e 1890, a produção agrícola apenas dobrou e o contingente populacional
empregado subiu de 50 para 66 milhões (pouco mais de 15%). Em contrapartida, os meios de
transporte mais potentes, como as embarcações a vapor, facilitaram a locomoção de
considerável número de pessoas.
Muitos imigrantes não viam mais uma perspectiva de evolução para a vida no lugar
onde estavam. Julio Dimov nasceu em Maneperjo, na antiga Bessarábia, pertencente ao
20
Império Russo, em 1911. Ele explica o porquê de seus pais terem decidido tentar vida nova na
América, em 1926.
Na época o povo já estava cansado de levar aquela vida muito
restrita, muito fechada. A pessoa não podia conseguir descobrir
uma brecha para desenvolver a vida, para viver melhor, progredir.
(...) Fome não se passava. Só que era aquela vidinha limitada, da
roça para a casa, de casa para a roça. Era isso e mais nada.
Assim como para a família de Júlio, a solução encontrada foi buscar novas
perspectivas de vida, para muitos outros também foi a saída do país de origem em busca de
um futuro melhor, já que os países do Novo Continente, como o Brasil, estavam em franco
desenvolvimento e começavam a competir com os produtos europeus. Bons exemplos são o
café brasileiro e o trigo norte-americano (CANO; TOLEDO, 2003, p. 16). Os governos dos
países europeus começaram a incentivar a emigração com o intuito de diminuir a
concentração de pessoas nas cidades, evitando revoltas, e, ainda, recebiam dinheiro dos
imigrantes que enviavam seus salários aos familiares que permaneciam no país de origem. A
Itália é citada como exemplo por Freitas (2001, p. 22).
O governo italiano avaliava a emigração como parte da solução de seus problemas
internos através dos lucros obtidos nas remessas feitas pelos imigrantes. Por isso
incentivava a saída. (...) as remessas alimentavam o comércio interno, o intercâmbio
da Itália como exterior e constituíam o grande fundo da poupança nacional daquele
período.
Segundo o Boletim do Departamento de Imigração e Colonização de dezembro de
1950 (FREITAS, 2001, p. 14), os países que mais receberam imigrantes no continente
americano, desde o início do século XIX (1814) até a Primeira Guerra Mundial (1914) foram,
nessa ordem, os Estados Unidos, com 21.862.694 imigrantes, o Canadá, com 4.113.501, a
Argentina, com 4.220.084 e o Brasil, com 2.897.645 imigrantes, algumas vezes ultrapassando
a Argentina consideravelmente.
No entanto, como será mostrado a seguir, os números referentes aos imigrantes que se
estabeleceram no Brasil e, no caso desta pesquisa, no estado de São Paulo – especificamente a
região do Grande ABC – são pouco precisos, principalmente no que se refere às
nacionalidades.
21
1.2 Os imigrantes chegam ao Brasil: São Paulo
Os dados quantitativos referentes à imigração variam conforme a fonte pesquisada,
porque os registros de pessoas que retornaram aos seus países ou redirecionaram seu destino
para outros lugares não são exatos ou, ainda, apresentam confusão quanto às nacionalidades,
porque, países como a Iugoslávia e União Soviética, estavam se desmembrando em países
menores, o que gerou incertezas quanto à origem de alguns imigrantes.
O IBGE, no livro Brasil – 500 anos de povoamento (2007, p. 226) traz a seguinte
tabela geral sobre a entrada de imigrantes no país entre 1945 e 1959.
Tabela 1 – Imigração no Brasil, segundo nacionalidade-período
Nacionalidade
Anos
Total
Alemães Espanhóis Italianos Portugueses Japoneses Outros
3.230
22
74
180
1.474
0
1.470
1946 13.039
174
203
1.059
6.342
6
5.255
1947 18.753
561
653
3.284
8.921
1
5.333
1948 21.568
2.308
965
4.437
2.751
1
11.106
1949 23.844
2.123
2.197
6.352
6.780
4
6.388
1950 35.492
2.725
3.808
7.342
14.739
33
6.845
1951 62.594
2.858
9.636
8.285
28.731
106
12.978
1952 88.150
2.364
14.898
15.207
42.815
261
12.605
1953 80.242
2.305
13.677
15.543
33.735
1.928
13.054
1954 72.248
1.952
11.338
13.408
3.062
3.119
39.369
1955 55.166
1.122
10.738
8.945
21.264
4.051
9.046
1956 44.806
844
7.921
6.069
16.803
4.912
8.257
1957 53.613
952
7.680
7.197
19.471
6.147
12.166
1958 49.839
825
5.768
4.819
21.928
6.586
9.913
1959 44.520
890
6.712
4.233
17.345
7.123
8.217
1945
Fonte: IBGE – Livro “500 anos de povoamento”
22
Por essa tabela, podemos perceber que, entre os anos 1945 e 1959, aproximadamente
162 mil imigrantes entraram no país sem uma identificação precisa da nacionalidade, o que
corresponde a 24% do total de imigrantes do período.
A história de vida de Olga Iwtchenko, 59 anos, reflete essa confusão em relação às
nacionalidades. Ela nasceu em uma colônia russa na cidade de Yakeshi, na China, mas conta
que, quando entrou no Brasil, no seu passaporte constava que ela era apátrida.
Meu nome de solteira é russo, do meu pai. Meu pai é russo. Russo,
só que ele é fugitivo da guerra, ele fugiu com a minha avó para
China. Minha mãe já nasceu na China, também é filha de russos.
Aí, depois, eu nasci na China também. A gente era russo, só que
morava na China. A gente não era chinês e não era russo porque
estava lá. Então todo mundo era apátrida.
Foto 01 – Olga Iwtchenko (dir.), aos 13 anos, com uma amiga chinesa, pouco antes da viagem ao
Brasil
Os boletins da Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio registram que o Estado
de São Paulo recebeu, entre os anos 1940 e 1960, 1.156.255 imigrantes, sendo que 15% eram
italianos, 26% portugueses, 12% espanhóis, 17% japoneses e pouco mais de 28% eram de
nacionalidades diversas (FREITAS, 2001, p. 15).
Corvina de Jesus Fernandes Andrade, 74 anos, é uma das imigrantes portuguesas que
vieram para o Brasil nesse período. Ela conta que o vilarejo onde nasceu – Teixeira – tinha
23
como principal prática a agricultura de subsistência. O lugar fora afetado pela Segunda Guerra
Mundial, por isso, em 1948, os pais resolveram emigrar para o Brasil.
A guerra, tava muito ruim, por causa da guerra, tinha acabado,
acho que acabou em 48, não me lembro. E a minha mãe falou:
“Não, eu vou para deixar um lugar melhor para os filhos, né?”.
Ter uma vida melhor para a gente. Ali era alegre, mas era muito
sacrificado. Quantas vezes a minha mãe ia trabalhar no campo,
quando voltava não trazia ou o sapato, ou metade da saia ficava
lá. Não era assim, que nem agora, tudo em paz.
Foto 02 – Corvina de Jesus Fernandes Andrade, aos 22 anos
Lucas Diaz Martin, 77 anos, também está nessas estatísticas. Nasceu na Espanha, em
uma pequeno vilarejo chamado Santibañez de Bejar, onde trabalhava com o pai no comércio
de animais e na agricultura de subsistência. O depoente conta que veio para o Brasil, com 27
anos, em 1957, buscando algo novo e melhor para a vida.
Agora, por que o Brasil? No meio daquela dificuldade, tinha aqui
um irmão da minha mãe, o irmão menor dela e “para onde é que
eu vou?”. Eu não queria ir para a Europa, porque muitos
imigrantes, inclusive da minha aldeia, imigraram para a Europa.
24
Eu não sei, tinha uma esperança da América. A América para nós,
ela soava, assim, como algo puro, algo de esperança.
O imigrante italiano Vincenzo Calógero Sortino nasceu na cidade de Bruscata, na
região da Sicília e veio para o Brasil com a mãe e os irmãos com 11 anos de idade, em 1956.
O pai viera um ano antes em busca de emprego e uma casa para a família. Ele conta como foi
a adaptação do pai aqui, antes da chegada do restante da família em 1956.
Maioria italiano e muitos espanhóis que ele [o pai] encontrou.
Eles vinham para trabalhar na América do Sul, que era, digamos
assim, a esperança de todos os europeus, era a América do Sul,
que era uma região em desenvolvimento, uma região onde eles
podiam ter as coisas que eles não tinham lá e inclusive ele morou
por 6 meses no Brasil. Ele quis ir embora, ele tentou sair do país,
que a situação que ele vivia era muito fraca e o dinheiro era muito
fraco então o pouco que ele mandava para a Itália quem recebia
era a mãe, e se tornava menos ainda. E aí queria ir para a
Argentina. Eu acho que ele não tinha muita esperança. Começou
aquela briga terrível entre Argentina e o movimento comunista,
Evita Perón. E aí ele não foi, ele mesmo declarou uma vez para
gente: ‘saí do meu país por causa de briga, vou me meter numa
briga que nem minha é?’ Então ele não foi para a Argentina, ficou
por aqui mesmo e acostumou, não queria sair daqui, mais nem
com decreto do Papa.
25
Foto 03 – Vincenzo entre os dois irmãos mais novos, Ângelo Calógero Sortino (direita), e Antônio
Calógero Sortino (esquerda). A foto foi tirada pouco depois da chegada ao Brasil, para mandar para
os avós que ficaram na Itália
Os imigrantes chegavam ao Porto de Santos ou do Rio de Janeiro e eram
encaminhados para as Hospedarias da Ilha das Flores – Rio de Janeiro –, de Santos e do Brás
– São Paulo –, a maior de todas. A Hospedaria do Brás, onde hoje funciona o Memorial do
Imigrante, tinha capacidade para três mil imigrantes, chegando a abrigar oito mil pessoas de
uma vez em ocasiões de maior fluxo de imigrantes. Nesses locais de estada temporária, os
recém-chegados podiam providenciar documentos, fazer exames médicos e se inscrever,
como numa agência, para as diversas vagas de emprego.
Miguel Zvonimir Krouman, nascido em Slavonski Brot, na Croácia, quando o país
ainda fazia parte do Reino da Iugoslávia. Veio para o Brasil com a mãe, aos 5 anos, em agosto
de 1930. Apesar da pouca idade, Miguel se recorda da chegada ao Porto de Santos e da ida à
Hospedaria do Brás.
26
Chegamos à noite, aí pegamos o trem para ir para a imigração,
passamos não sei quanto tempo na imigração, pelo menos na
primeira noite nós dormimos lá, não sei depois se dormimos mais.
Mas eu me lembro muito bem que era de noite e nós subimos a
serra e eu me lembro daquele sistema de puxar o trem para cima,
aquelas roldanas grandes, cabo de aço grosso, aquilo fazia um
barulho, né? Eu me lembro daquele barulho até hoje. Eu subindo
a serra, olhava para todos os lados, tava escuro, não via. Depois
desembarcamos na imigração, que tinha uma estação própria
para imigrantes, né? Tinha alojamento lá para os imigrantes.
Foto 04 – Foto do passaporte de Miguel Zvonimir Krouman e a mãe, Liza Dubanic
Nikolaj Iwtchenko nasceu na Polônia, no dia 16 de março de 1932. Veio para o Brasil
em 1949. O primeiro contato que teve com o país foi na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro.
Nós saímos de lá no inverno, quase 40 graus abaixo de zero, era
um frio tremendo. E nós chegamos no Brasil, no Rio de Janeiro,
calor insuportável, teve que tirar todas as blusas, cachecóis,
chapéus. E nos mandaram para a Ilha das Flores. Todos os
imigrantes que vinham do exterior, imigrantes e refugiados de
guerra iam para a Ilha das Flores. Nós ficamos, acho que uns
quatro, cinco meses lá e calor insuportável. E sabe que para tomar
banho em pleno rio, e era isolado, ninguém podia fugir, porque
eles tinham medo que os gringos, que vem com doenças,
transmitir, então deixaram ninguém entrar, “não pode pisar no
mar aí, porque tem cobras venenosas”, assustaram nós assim.
E aí que é, como aquele calor, então a gente queria tomar banho.
Aquelas barracas, sabe? Feito barracas desmontáveis para os
imigrantes e caixas d´água, a água caía quente, não dava nem
para tomar banho, viu? Para dormi... pelado a gente dormia,
porque não agüentava o calor, é fogo viu? Era muito quente.
Então ficamos um tempo lá, comendo banana laranja, comida
27
brasileira, né? Então assim, depois viemos, o governo brasileiro, o
governo brasileiro chamou os imigrantes para trabalhar.
Foto 05 – Nikolaj Iwtchenko (direita) e sua mãe, Klawdia Iwtchenko, passeando pelas ruas da
Alemanha, pouco antes de virem para o Brasil.
A imigrante húngara Erzsébet Klementina Keresztes também ficou hospedada na Ilha
das Flores, com os pais e os quatro irmãos, onde aprendeu as primeiras palavras em
português.
Ficamos na Ilha das Flores, porque não davam direito a você sair
da Ilha enquanto não tivesse emprego, eles não queriam aumentar
isso. Então, tinha que ter um emprego para você poder sair da
Ilha. Então, lá na Ilha das Flores, também era lugar de soldados,
era acampamento de soldados, o sistema sempre foi o mesmo,
mulheres e crianças de um lado, homens do outro lado, homens
com crianças de 12 anos para cima, do outro lado. Então na Ilha
da Flores o tratamento era bacana, eles até faziam cursos de
português para gente. O meu primeiro contato com o português foi
numa escolinha lá na Ilha das Flores, tinha uma irmã que dava
aula. Não sei nem o que eu aprendi, mas foi, provavelmente, “bom
dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “como vai?”, essas coisas
primeiras da língua a gente aprendeu lá na Ilha das Flores,
começando lá uma alfabetização em português.
28
Foto 06 – Miklós Keresztes (de terno), pai de Erzsébet (à frente), com os filhos, Laszlo (esquerda),
Miklós (direita), em frente à casa que a família deixou na Hungria. Foto de 1941.
Após a Primeira Guerra Mundial, e durante os anos 1920, instalaram-se no país
movimentos nacionalistas contrários à vinda de estrangeiros. Os imigrantes operários, em sua
maioria, italianos, portugueses e espanhóis, formaram a liderança do primeiro movimento
operário brasileiro (MARAM, 1979, p. 13) durante o processo de industrialização de São
Paulo, mobilizam-se em número significativo nos movimentos sindicais e nas reivindicações
de leis sociais e trabalhistas. Esses movimentos, com os anarquistas, socialistas e comunistas,
se intensificam a partir de 1917, ano da greve mais famosa do período, segundo Maram (op.
cit., p. 20).
(...) a liderança [da greve] era quase totalmente européia. A greve iniciou-se na
indústria têxtil e, na segunda semana de julho de 1917, já paralisava toda a indústria,
o comércio e os transportes da cidade de São Paulo. Por quase três dias os grevistas
controlaram as ruas.
O que resultará, por parte dos brasileiros, numa reação anti-operário. No começo da
década de 1920, artigos de jornais são escritos em apoio às deportações, como no Correio
Paulistano, que publica em primeira página a necessidade de separar o operariado, pois “os
indesejáveis” eram aqueles “que com suas idéias anarquistas penetravam no meio dessa
classe operosa e virtuosa...” (apud. MARAM, 1979, p. 65). Em 1921, formulam-se as “leis
dos indesejáveis”, que regulavam a proibição do processo migratório e a expulsão de
estrangeiros. O imigrante torna-se representante, no imaginário do local, do inimigo externo.
Na década de 1930 a imigração começa a entrar em declínio e os migrantes nordestinos
chegam às metrópoles. As novas leis do Estado Novo de Getúlio Vargas defendem o
29
trabalhador nacional e 2/3 dos empregos são reservados aos brasileiros, nas palavras de
Freitas (2001, p. 34):
(...) A lei dos 2/3 (Decreto n. 19.482 de, 12/12/1930), promulgada na gestão do
ministro Lindolfo Collor, garantia a quota de 2/3 de brasileiros natos em todas as
categorias profissionais.
A Constituição de 1937 reserva ao governo federal o direito de limitar ou suspender a
entrada de novos imigrantes e proíbe a formação de núcleos, assim como o ensino em língua
estrangeira e a circulação de jornais e revistas em língua estrangeira, a não ser com
autorização do Ministério da Justiça. Em 1939, o abrasileiramento torna-se política de
governo e, em 1942, os imigrantes provenientes dos países formadores do Eixo – alemães,
italianos e japoneses – passam a ser perseguidos.
As duas grandes guerras tornaram mais difíceis a vida no campo e muitos não
encontravam emprego em sua terra natal. Vincenzo lembra as dificuldades no pós-guerra,
quando fala dos motivos para a vinda do pai ao Brasil.
Como a cidade já era uma cidade do interior, não tinha recurso
nenhum e com o pós-guerra, com as bombas, muitos morreram. O
governo italiano, inclusive, eles fizeram um esquema para as
pessoas de cada região cadastrados só trabalhavam seis meses
por ano. Seis meses trabalhavam, seis meses para comer, para o
outro trabalhar. Era rodízio, o pouco trabalho que tinha, era feito,
para que todos pudessem trabalhar um pouquinho. E fora deste
rodízio, se virava assim por conta própria, o que dava para fazer e
o que conseguia fazer alguma coisa, se não, não.
Terminada a Segunda Guerra Mundial, o perfil dos imigrantes muda. Segundo Freitas
(2001, p. 328), eles não partem mais das aldeias, mas sim das grandes cidades, têm maior
escolarização e formação profissional.
A holandesa Grada Theresia Broekman van der Zwaan pode ser considerada um
exemplo desse novo perfil. Formada em enfermagem e nutrição, sempre trabalhou com
serviços sociais e veio para o Brasil em 1969, depois de ter visto um vídeo sobre as pessoas
que viviam nas favelas do Parque João Ramalho, em Santo André.
Na Holanda, naquela época, tinham muitas obras sociais. Se
dedicavam muito a hospitais, meninos de rua, modo de dizer,
meninos, assim, que ficam em orfanatos, asilos. E além disso, eles
tinham obras no terceiro mundo, como falavam na época, terceiro
mundo. Então daí, houve uma oportunidade, eu tinha 30, 31 anos,
eles pediram uma pessoa para o Brasil, para Santo André. Então
30
foi lá uma jornalista, que fez aqui no Brasil uma reportagem sobre
o projeto aqui e levou para lá. (...) O projeto que tinha era Brasil,
tinha um na Indonésia e tinha alguns projetos na Holanda mesmo,
como orfanatos, meninos de rua. Mas como eu queria sair, eu
queria viver uma coisa a mais, algo a mais, então eu saí.
Foto 07 – Visita do cardeal holandês Alfrink às obras de urbanização das favelas do bairro João
Ramalho, em Santo André. Grada é a senhora de vestido escuro, com colar, atrás do cardeal. Shirley,
a filha mais velha de Grada, cumprimenta-o enquanto amigas da comunidade os observam.
A imigração nesse período era legalizada por meio de acordos entre países, como
mostra Freitas (2001, p. 46)
“[estabeleceram-se acordos] com a Itália: criada a Companhia Brasileira de
Colonização e Imigração Italiana cujos estatutos foram aprovados pelo
Decreto n. 28.897, de 30 de novembro de 1950); com a Holanda, o Decreto n.
30.692, de 29 de março de 1952, promulga o Acordo de Imigração e
Colonização, entre o Brasil e os Países Baixos.
Essa nova leva de imigrante será responsável pela retomada da vida associativa,
agregando as comunidades de imigrantes, enfatizando lazer e cultura, diferentemente dos
imigrantes das primeiras décadas da República, que vieram de pequenas cidades ou aldeias,
sem instrução.
31
Ainda segundo Freitas (op. cit., p. 50), outra hospedaria foi construída nessa época, em
Campo Limpo, pois a do Brás estava sendo ocupada pela Escola Técnica de Aeronáutica
(1943-1951). Depois de passarem pela Hospedaria, os imigrantes eram encaminhados para
serviços no campo ou na cidade pelo Serviço de Imigração e Colonização (SIC, 1939-1946) e,
depois, pelo Departamento de Imigração e Colonização (DIC, 1946-1968).
Posteriormente, eram recebidos e encaminhados pela Secretária da Promoção, por
meio do Departamento de Amparo e Integração Social (DAIS), que, por sua vez, criou o
Serviço de Reabilitação Social (SRS) e o Serviço de Imigrantes Estrangeiros (SIE). Esse
último funcionou até 1978, quando a Polícia Federal passou a registrar a entrada de
estrangeiros no país.
O contingente de imigrantes que veio para o Brasil após a Segunda Guerra Mundial,
assim como alguns dos imigrantes que viviam nas fazendas, deslocaram-se para as grandes
cidades, em busca de emprego nas indústrias que começavam a se instalar no país entre as
décadas de 1950 e 1960. Freitas (2001, p. 54) ainda salienta que as indústrias de base no país
possibilitaram a expansão de indústrias de ferramentas e eletrodomésticos. Esse surto
industrial incrementou as correntes migratórias internacionais e nacionais, inclusive para a
região do Grande ABC.
1.3 Os imigrantes no ABC Paulista
Como já se observou, não há como saber ao certo quantos imigrantes redirecionaram
seus destinos para outras cidades ou estados do Brasil. Dez dos quatorze imigrantes
entrevistados para essa pesquisa estabeleceram-se primeiro na capital ou interior paulista para
depois se mudar para alguma cidade do ABC. A região, por estar próxima do centro de São
Paulo, ter terras férteis, abrigar novas fábricas e localizar–se nas cercanias da estrada de ferro,
era mais uma opção para os imigrantes. As estações de trem tornam-se referência ao falar das
cidades, como nas lembranças do senhor Júlio Dimov, ao falar de São Caetano do Sul no
começo da década de 1930.
[São Caetano do Sul] Era a estação. Tinha aquelas porteiras.
Tinha umas casas, quando vai para a Vila Bela, uma loja grande.
[As porteiras serviam], para o pessoal passar, pedestres, carros.
32
Quando o trem passava, fechava a porteira.(...) Aqui onde eu
moro, até hoje, 64 anos, ali da Joaquim Nabuco até o Jardim, era
mato, na Senador Roberto Simonsen e na Espírito [Santo], era
mato. A meninada jogava bola, tinha formigueiro que dava medo,
cobra.
Quando Miguel Z. Krouman casou-se, em 1950, mudou-se da Vila Valparaíso para o
Bairro Campestre, em Santo André, na rua Vitória Régia, lugar onde mora até os dias de hoje.
Ele lembra que os mais antigos preferiam comprar terrenos e construir casas próximo das
estações, pela facilidade na locomoção.
A casa que eu moro agora é atrás do Tognato. Não existia a
[estação] Prefeito Saladino, não existia aquela entre o Ipiranga e
São Caetano. Depois que começou a vir o automóvel para o
Brasil, é que aquela surgiu lá. Chamava-se Estúdio B, estação
Estúdio B. A Tamanduateí. Os antigos compravam propriedades,
eles sempre falavam que para a propriedade, terreno plino e perto
da estação, porque o trem era muito importante. Para o trabalho,
né? Quem trabalhava em São Paulo, sempre pegava o trem,
porque o ônibus não tinha horário, era muito caro. O trem não. O
trem vinha no horário.
Outro fator que atraiu grande contingente de imigrantes foram as indústrias que
começaram a ser implantadas ainda na década de 1930, algumas delas carregando nome de
imigrantes, como as Indústrias Reunidas F. Matarazzo e a Kowarick & Cia. (KLINK, 2001,
p.95).
Acompanhando o processo de industrialização do restante da região Sudeste, nas
décadas de 1950 e 1960, as fábricas no ABC também se consolidam, transformando a região
em grande parque industrial, com fábricas automobilísticas, tecelagens etc., o que atrairá mais
imigrantes para a região.
Mesmo com as indústrias, o ABC ainda conservava aspectos de pouco
desenvolvimento, lembrados por alguns dos imigrantes, como Grada, ao descrever o bairro
João Ramalho, Santo André.
Naquela época, falavam que Santo André era cidade do interior
de São Paulo. Não tinha quase lojas. O centro de Santo André, que
hoje é a Coronel Oliveira, não era calçadão, era rua. A cidade era
tudo ruas estreitas e tinha pouca loja. Quem precisava comprar
roupa melhor, tinha ir para São Paulo. Então cidade era bem
assim, como se diz, era gostoso, não tinha dificuldade, o trânsito
era bem menos, mas as ruas eram tudo assim, mão dupla. Você
33
andava de carro pelo centro inteirinho. Na Coronel Oliveira, na
Elisa Fláquer, eram tudo para andar de carro. E fora do centro as
ruas eram todas batidas de terra, terra vermelha, tudo sem asfalto.
Foto 08 – Presidente da colônia holandesa de Holambra, interior de São Paulo, quando visitou o centro
comunitário do Parque João Ramalho, Santo André. Ao fundo, a casa de Grada, em rua sem asfalto do
Bairro João Ramalho, na década de 1970.
Não é raro ouvir que muitos encontravam outras famílias de imigrantes, alguns da
mesma região onde moravam. A família de Vincenzo mudou-se para a Vila Floresta, em
Santo André no final da década de 1950.
Era horrível, era só mato, uma casa aqui, outra lá na ponta da
quadra. Contava as casas nos dedos e a maioria era de
italianos.(...) Eu lembro desse período na casa dos meus pais que
tinha um senhor, era português inclusive, ele passava com uma
charretinha, o leite era em litro, era vendido, naquele tempo ele
deixava o leite na porta de casa e o pão numa sacolinha de pano,
que a maioria das pessoas tinham, deixava pendurado na porta
“pra” gato ou cachorro não avançar, inclusive.
Antônio Laureano de Almeida, de Portugal, chegou ao Brasil em 1940, aos 13 anos.
Ele também conserva lembranças da época em que mudou-se da Mooca para o bairro
Campestre, em Santo André, logo após casar-se.
Quando eu comprei o terreno, minha prima na Mooca brigou
comigo: “porque você comprou? Lugar onde mora índio? Só mora
índio”. E tinha índio mesmo. Você acredita? Aí no Campestre
tinha uns índios que vinha do Mato Grosso ficar numa casa. (...).
Era mato, quando eu vim aí no Campestre, tinha vinte casas na
minha rua.(...), mas não tinha calçada, não tinha parede, não
tinha nada, era o meio do mato. Fizemos a casa no meio do mato,
fazia aquelas escadas de barro. Não tinha nem cerca quando eu
vim morar aí. (...) Eu sei que eu vim e comprei o terreno e não me
34
arrependi. Eu pagava 525 e 900 mil réis no terreno, era o tempo
de mil réis. E pagava o material que eu comprei a prazo, 500 mil
réís.
Foto 09 – Da esquerda para direita: Veronika Kavói (esposa de Antônio), Amélia (amiga da
família), Vera Lúcia e Valkiria (filhas de Antônio), Antônio, Tadeu (amigo) – agachado – e
sr. Mário (também amigo). Em frente à casa de Antônio, na Rua João Ribeiro, no Bairro
Campestre, Santo André.
Até meados de 1970, o ABC era líder na produção de automóveis e foi considerada a
região mais industrializada do país. Em 1980, as fábricas começam a baixar as portas e
mudam suas instalações para cidades do interior paulista, em busca de incentivos fiscais e
mão de obra mais barata.
Os imigrantes que afluíram para a região participaram das transformações geopolíticas
e culturais dos municípios. Essas modificações permeiam a vida e o cotidiano desses
indivíduos, assim como as lembranças da terra natal, dos antepassados, da viagem de vinda
para o Brasil e, também, a adaptação à nova terra. No próximo capítulo, esses e outros
aspectos serão abordados para entender os ritos e as cerimônias, as culturas dos imigrantes,
por meio da análise dos seus relatos de história de vida.
35
CAPÍTULO II – CULTURAS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DE
IMIGRANTES
Para analisar determinada cultura ou, ainda, diversas culturas, como é o caso desta
pesquisa, que tem como base a história de pessoas de origens diversas, é preciso esclarecer
que o conceito de cultura não é aqui entendido como um termo que opõe erudito e popular.
Não seria possível aglomerar, em um único conceito, as diversas manifestações culturais dos
povos aqui estudados. É importante salientar que se entende a cultura no plural, culturas, por
ser um conjunto de valores, atitudes, significados e manifestações construídos e partilhados
socialmente. As culturas, então, seriam como uma teia complexa de conhecimentos e
significados, de acordo com Geertz (1978, p. 15):
Acreditando que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto não
como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência
interpretativa, à procura do significado.
Esses significados são formados e instituídos no cotidiano, pela convivência social e
são transmitidos por meio da linguagem verbal (falada ou escrita) e não-verbal (gestos,
vestuário, ritos etc) e fazem sentido somente no contexto em que se inserem. Eles é que,
segundo Arantes (1981, p. 26), fazem-nos sentir como membro de um grupo social, em que é
possível “compartilhar modos específicos de comportar-se em relação aos outros homens e à
natureza”. Assim, os seus membros identificam-se entre si e não com outro qualquer. Burke
(1989, p. 21) reflete sobre a amplitude dessas significações.
Hoje, seguindo o exemplo dos antropólogos, os historiadores e outros usam o termo
cultura muito mais amplamente, para referir-se a quase tudo o que pode ser
aprendido em uma dada sociedade – como comer, beber, andar, falar, silenciar e
assim por diante. Em outras palavras, a história da cultura inclui agora a história
das ações ou noções subjacentes à vida cotidiana. O que se costumava considerar
garantido, óbvio, normal ou “senso comum” agora é visto como algo que varia de
sociedade a sociedade e muda de um século a outro, que é construído socialmente e,
portanto requer explicação e interpretação social e histórica.
Ou seja, a cultura de uma pessoa não se resume somente às festas de seu povo, às suas
comidas e vestes típicas, mas abrange o seu modo de vida, a maneira com que se adapta ao
meio onde vive, que valor dá ao trabalho e ao dinheiro, como são as relações entre familiares,
36
entre idosos e crianças, entre marido e mulher, como são a amizade, o namoro e o casamento,
jogos, brincadeiras ou tudo o que possa fazer parte de seu cotidiano.
Ao estudar as culturas de indivíduos que em determinado momento de suas vidas
tiveram de deixar a terra natal para se estabelecer em um novo país com língua e cultura
diversas, é preciso considerar que alguns valores tradicionais permanecem no cotidiano, na
tentativa de manter o vínculo com a terra ou povo de origem e outros se misturam às práticas
da nova terra, caracterizando uma nova cultura e identidade desses indivíduos. As
interpretações acerca da viagem, a forma de adaptação ao local de destino, o relacionamento
entre pais e filhos e outros podem ser consideradas parte das culturas dos imigrantes, porque
constituem sua história, marcando as narrativas acerca da trajetória de vida dessas pessoas.
Nos trechos de depoimentos a seguir, busca-se, então, identificar os ritos e cerimônias
do cotidiano de imigrantes, interpretando-os e a seus significados.
2.1 O trabalho e o ritual da entrega do salário aos pais
Um discurso recorrente na fala dos imigrantes entrevistados é a importância dada ao
trabalho e o valor conferido ao salário de todos os integrantes da família, inclusive ao das
crianças. Como a maioria das famílias vinha para o Brasil sem recursos e reconstruíam a vida
no lugar de destino, o discurso do trabalho árduo era transmitido para os filhos ainda quando
pequenos.
O pai de Antônio emigrou para o Brasil quando o filho tinha apenas um ano de vida,
por isso, ele viveu boa parte da infância ao lado da mãe e dos irmãos. Quando pequeno,
Antônio amassava uvas com os pés na aldeia em que vivia e pegava pequenos insetos nas
videiras, ganhando poucos centavos por cada inseto recolhido. Mesmo assim, o dinheiro
ganho era entregue à mãe.
No tempo que eu era menino, tinha um senhor, dono de uma casa,
um homem muito rico, chamavam de capitão. E tinha um lugar
onde tinha as uvas, é mais ou menos, eu vou calcular mais ou
menos, não muito, a redondeza de São Caetano, Vila Alpina, era
tudo uva, tudo. E ele dizia para nós, “vocês vão catar para mim os
‘pedrulho’?”. Sabe o que é ‘pedrulho’? É um besouro, quando
começa a nascer o talo da uva, ele come, então nós ia catar. Ele
pagava um centavo, não era um centavo, pagava uma moedinha
para nós. Nós ganhava uma caixinha de fósforo, punha o
‘pedrulho’ lá dentro, fechava e de noite ele contava. Ele dava
tanto dinheiro para aquele... era centavos, centavos, era uma coisa
37
assim. [Esse dinheiro eu] dava para minha mãe. Minha mãe que
cuidava de nós.
Foto 10 – Da esquerda para direita: Veríssimo Laureano de Almeida (irmão), Antônio
(com dois anos), Olívia de Jesus Vieira (mãe), José Laureano de Almeida (irmão no colo de
OIívia) e Capitulina de Almeida (irmã). Ao fundo, a casa da família, feita de pedras, em
Portugal, que foi vendida para a viagem ao Brasil.
Casos assim não são exceção, já que muitos homens casados imigravam sem a família,
em busca de um emprego e uma casa, no intuito de estabilizar-se e, posteriormente, enviavam
uma carta de chamada para que a família viesse ao seu encontro. A mulher, então, assumia
papel importante de administradora do núcleo familiar, gerindo as despesas da casa.
Laureano conta que, ao chegar ao Brasil, não continuou os estudos iniciados em
Portugal. O pai já o havia incumbido de vender bananas nas ruas do Brás e da Mooca, em São
Paulo.
[Quando cheguei] Não fui mais para a escola. Eu já sabia ler e
escrever bem. [Eu fui] trabalhar. A primeira coisa que eu fui fazer
foi vender bananas aqui. Olha eu digo para você, meu pai, meu
pai trabalhou muito. De manhã cedo, para levantar, ele só
chamava uma vez, segunda vez ele já não chamava mais. Meu pai
era rigoroso.
38
No Brasil, o salário não era mais entregue à mãe, mas sim ao pai, que cuidava de
todas as despesas, inclusive das do casamento do filho, o que atesta o pátrio poder nas
relações familiares.
[O salário] eu entregava para o meu pai, quando eu recebia o
envelope, quando eu trabalhei na Johnson vinha um envelope com
o dinheiro tudo dentro.
[Quando eu casei] meu pai que pagou tudo, meu pai comprou
tudo. Eu dava para ele o pagamento: “se reúne tudo, que eu vou
comprar tudo para você”
O papel da mulher na gerência dos salários da família é mais uma vez verificado no
relato do imigrante português Henrique de Almeida Borges, que chegou ao Brasil em 1955. O
depoente conta como ele e os irmãos deviam proceder no dia de pagamento.
Naquela época, a gente recebia no dia 10, então o sistema nosso
era assim. Todos recebiam no dia 10 e colocavam ali na mesa
todos os salários, o meu, do meu pai e das minhas irmãs, todos ali.
(...) A mãe pegava para pagar tudo. O que sobrava a gente ia
usando. Mas primeiro se pagava as contas e depois você ia usar o
dinheiro
No depoimento, a força da mulher (esposa e mãe), na condução dos gastos da família é
observável: não se cogitava que cada um retivesse seu pagamento, porque a mãe era a
responsável por gerir as despesas da casa, razão pela qual todo dinheiro dos membros da
família era centralizado em suas mãos.
Grada passou a infância, a adolescência e parte da idade adulta na Holanda, chegando
ao Brasil aos 33 anos. Ela relembra a época da infância, quando morava com os pais e os 13
irmãos em uma fazenda na cidade de Heino. Além de estudarem das nove horas da manhã às
quatro da tarde, ao chegar em casa, dividiam as tarefas domésticas e trabalhavam fora para
ajudar com as despesas da família.
Fazia de tudo. Porque 14 filhos então ninguém fica quieto.(...) Mas
a gente ficava na escola, das nove horas da manhã até quatro
horas da tarde. Chegava em casa, aí tinha que ajudar em casa:
preparar a comida, limpar a casa, todo mundo tinha uma tarefa.
Sábados e domingos a gente brincava, a gente ia na casa dos tios,
das tias. Mas assim, trabalhar para ajudar dentro da família.
Quando eu tinha 13 anos eu já fui trabalhar fora, porque era o
sistema daquela época, hoje não tem mais. Naquela época tinha.
Outros familiares contratavam uma pessoa, menina, para ajudar
39
aquela família. Então, assim eu trabalhei três anos em outra
família, ganhava o meu dinheirinho, mas esse dinheiro tinha que
ser entregue para os pais, porque era para ajudar a família.
Percebe-se, no depoimento, a importância dada ao trabalho, tanto dentro quanto fora
de casa. Ela ainda reforça que o dinheiro ganho tinha de ser entregue aos pais, para que eles
gerissem as despesas da família. Os jovens não questionavam e também não reivindicavam o
salário para si, porque, segundo o relato da depoente, a família era a prioridade nos costumes
da época.
Ângela Dall´ Anese também começou a trabalhar muito jovem, aos 12 anos, na
colheita de café no interior de São Paulo. Aos 14 anos, obteve a carteira de trabalho e foi
trabalhar nas fábricas de São Caetano. Para conseguir a autorização de trabalho, as crianças
tinham que fazer uma prova de aritmética no Palácio do Trabalho, que ficava no Parque Dom
Pedro II.
A gente via as pessoas passando, tinha 12 anos, eu via passando
pessoas para ir trabalhar lá, para escolher café. Eu falei para a
minha mãe que ia trabalhar. A gente ia a pé da Candelária até a
Vila Prosperidade para trabalhar. Levava uma cestinha de
comida, chegava lá, isso em 1938, 39, e a gente esquentava a
comida numa latinha de massa de tomate, colocava álcool e dois
tijolos e esquentava a comida. E éramos felizes. Quando chegava a
papeleta do pagamento, todo mundo ficava feliz. A família contava
com aquele dinheirinho que chegava em casa, o pai, a mãe, os
irmãos.
Depois fiz 14 anos e pensei em tirar o diploma do primário. Ali
onde é o Palácio das Indústrias, onde foi a Prefeitura de São
Paulo, em que a Marta Suplicy trabalhava, no Parque D. Pedro,
ali era o Ministério do Trabalho. Então, quem não tinha diploma,
tinha de ir lá fazer as contas. A gente falava operações, as quatro
contas, de dividir, multiplicar, somar e diminuir. Tinha aquela fila
de meninada, todos com papelzinho. Achei que não ia passar. Eu
pegava o trem em São Caetano de manhã e fui lá fazer. Saí de lá
tão contente porque tinha tirado documento para trabalhar.
40
Documeto 01 (a) – Registro de Empregados de Ângela, na Pan, fábrica de chocolates de São
Caetano
Documeto 01 (b) – Registro de Empregados de Ângela, na Pan, fábrica de chocolates de São
Caetano
Logo que chegou ao Brasil, Corvina também começou a trabalhar, primeiro como
babá, depois da Tecelagem Ipiranguinha, em Santo André, ao mesmo tempo que ajudava os
pais no bar da família, que ficava no Bairro Ipiranguinha.
[com 15 anos] Fui trabalhar na [Tecelagem] Ipiranguinha,
trabalhei dois anos e eu era muito esforçada, sempre fui
trabalhadora, sempre fui. E como eu era a mais velha, então eu
achava na obrigação, também, de ajudar meu pai e minha mãe.
41
Tinha mais três irmãos.Meu pai comprou um bar em frente até a
Ipiranguinha, onde, sabe aquele jardim? Tem o Habib´s. Era ali,
naquela esquina. Trabalhei oito anos, com meu pai e a minha mãe,
para ajudar meus irmãos, né? E foi interessante, que nessa
idade eu fiz os meus, quantos anos eu fiz? Acho que foi 18
anos, meu pai me levou uma lembrancinha e falou assim:
“Olha filha, vou te pedir um favor. Não namora muito cedo,
você tem que nos ajudar, você é a mais velha”. Eu falei
assim: “tá bom, pai. Não namoro até passar 20 anos, até os
20 anos”. Até os 22, parece que eu falei. Mas não é certo
falar isso, eu acho que não, eu cumpri, mas não é certo.
Foto 11 – Corvina (esquerda) e o pai, Luis Fernandes no bar da família, no Bairro Ipiranguinha, em
Santo André, na década de 1950.
No depoimento de Corvina, constata-se o peso e a importância da família nas decisões
de cada um de seus integrantes. A depoente trabalhava em dois lugares, por ser a mais velha e
ter a obrigação de ajudar os pais a cuidar dos irmãos mais novos. Outro aspecto a se ressaltar
no trecho anterior é o fato de a depoente prometer ao pai que não namoraria para continuar
ajudando a família. Percebe-se o rigor com que era tratado o trabalho dentro da família, tanto
que passou a influenciar a decisão dela em relação ao namoro.
42
2.2 O ritual do namoro e do pedido de casamento
A formação de um novo núcleo familiar era acompanhada de perto pela família do
casal de namorados e futuros noivos, principalmente pela família da moça. O ritual do namoro
e do pedido de casamento aos pais da namorada pode ser identificado no depoimento de
Miguel, quando ele lembra do tempo em que conheceu sua esposa, em um baile em São
Caetano do Sul.
Minha mulher freqüentou a escola alemã. E eu conheci ela no
Teuto, ela dançava no Teuto. Só que naquele tempo dançar, o
dançar, vamos dizer assim, era realmente terrível, porque todas as
mães e avós vinham no clube, sentavam todas em volta no clube,
tinha cadeiras, sentavam todas em volta e fiscalizavam. Ai meu
Deus, que dureza! Que dureza!
Foto 12 – Casamento de Miguel e Catharina Zvonimir, em 1950.
43
Mais uma vez, observa-se a presença marcante das mulheres da família intervindo na
vida dos filhos, dessa vez, na proteção à filha em relação ao pretendente. As mulheres
zelavam para que normas e valores fossem seguidos, mantendo, assim, a integridade da
moça.
A imigrante espanhola Maria Tereza Caymel Lorente conta que o irmão mais novo era
o encarregado de vigiar o namoro.
Na época, se ia muito no cinema, não tinha barzinho, mas ia no
cinema, podia se comer numa lanchonete, isso ainda existia, só
que meus pais eram muito tradicionais, não me deixavam sair
sozinha, tinha o meu irmão, então eu ia no cinema com meu irmão.
Se era proibido pra 14 anos, meu irmão era menor, não entrava,
tinha que voltar pra casa sem ir no cinema, o que deixava meu
namorado ‘p’ da vida, porque realmente, imagina “Ben-Hur”, nós
fomos assistir “Ben-Hur”, era proibido pra 14 anos, era um filme
que todo mundo queria assistir, na época, foi um sucesso e eu não
podia assistir por causa do meu irmão
Foto 13 – Maria Tereza e Gines Lorente, quando ainda namoravam, no início da década de 1960.
Algumas vezes, outras pessoas, como amigos e conhecidos da família é que ficavam
responsáveis pelas moças. Corvina, por exemplo, conheceu o marido na festa de casamento
44
de uma colega de trabalho, à qual ela e a irmã só puderam ir depois que a mãe da noiva
responsabilizou-se pelas duas.
Fomos eu e a minha irmã. A nossa mãe nos deixou ir com a mãe
da que ia casar. (Ela) era responsável por nós duas. À noite, para
dormir, elas dormiam no chão, perto da nossa cama, nós
dormimos as duas numa cama de casal, elas não saíam dali,
porque eram nossas responsáveis. E foi lá que eu conheci o João.
Tinha um primo dessa moça, chamava-se Queijo, o sobrenome. E
era bonito. Então ele chamava-se Antônio não sei o que Queijo. Aí
ele começou a dançar muito comigo. Aí a noiva falou assim para
mim: “Corvina, ele está comprando móveis já”. Aí ele falou
comigo e eu falei assim: “Não, você está comprando móveis”.
“Ah, mas eu largo”. Falei: “O que eu não quero para mim, não
quero para os outros”. Aí apareceu o João com esse rapaz. Eu
estava lá brincando com a noiva e falei assim: “Ih, lá vem o meu
namorado”, para ela. Vinha com o primo dela, com o Antônio.
Depois ele me contou, que não sabia se chamava a mim, se
chamava a minha irmã para dançar. Dançamos, tudo, tal, não era
bonito o rosto, mas ele tinha um corpo muito bonito. Aí
começamos a namorar. “Tá” comigo até hoje.
Foto 14 – Corvina e João Andrade, no dia do casamento em 12 de setembro de 1959.
45
Note-se como a preocupação familiar em relação ao namoro manifesta-se também no
depoimento de Júlio Dimov. Quando questionado sobre como foi o dia em que conheceu a
esposa Ana, ele logo procura explicar como era o processo para que a família aprovasse o
namoro e o casamento.
Eu a conheci, começamos a conversar e tal, e um dia eu vim do
interior, a gente foi se conhecendo um pouco mais. Agora, o nosso
hábito, os búlgaros, eles respeitam muito as mulheres. Um respeito
fora de série. Quando os jovens se conhecem, passa uma semana,
um mês, dois meses, três meses, a menina convida o rapaz que veio
na casa dela para um almoço para se conhecer os pais, depois o
menino convida a menina na casa dele. Mas não é só isso.
Conhecer a raiz da família, se é um povo, aquela família. Não é só
no papel. (...)Lá era muito o hábito de o povo procurar a família,
até a quarta geração, para ver se não tem alguma coisa.
Foto 15 – Casamento de Júlio e Anna Dimov, em 1936.
46
Foto 16 – Registro da festa de casamento de Julio e Anna Dimov, que reuniu toda a família, em 1936.
Documento 02 – Registro de casamento de Júlio e Anna Dimov
47
No depoimento, a memória de antepassados é evocada para atestar o respeito pelas
mulheres e a importância dada à história da família dos pretendentes. Embora Júlio dê poucos
detalhes sobre o namoro, destaca-se, no seu discurso, o respeito dos búlgaros pelas mulheres,
uma forma de valorizar, para sua audiência, valores ancestrais de sua origem.
O depoimento de Antônio Laureano atesta a força e a importância da família nos
rituais que implicavam a constituição de novo núcleo familiar.
Eu sei que quando eu fui pedir ela em casamento, veio meu pai,
minha mãe, eu nunca esqueço, meu sogro sentou ali, minha
senhora sentou aqui, minha sogra sentou aqui, meu pai e minha
mãe sentou aqui e eu sentei lá no fim. Não sentei perto dela não,
eles não permitiam.
Foto 17 – Rosália e Mathias Kavói, sogros de Antônio
48
Foto 18 – Antônio e Veronika, quando ainda namoravam, em época de Carnaval, na década de 1950.
No momento do pedido de casamento, os noivos não tinham a permissão de ficar
próximos um do outro. Os pais ficavam entre o casal, representando, simbolicamente, a
importância e interferência da família no futuro casamento.
Ângela Dall´ Anese lembra do namoro como uma época de brincadeiras, nada muito
sério.
(Quando comecei a namorar tinha) 15 para 16 anos. Eu namorava,
mas vivia desistindo.A gente ia, na semana santa, à procissão. Não
tinha outra coisa. Era igreja e igreja. No cinema não dava para ir
porque a gente chamava de pulgueiro. A gente ia às vezes. Meu
marido até hoje não gosta de cinema. A gente fazia bagunça na
igreja. Eu cantava no coral da igreja, jogava futebol. A gente
brincava dessas coisas. Outra tinha um quintal grande, a gente
brincava de bola. Eram essas brincadeiras. Eu não namorava na
igreja. Meu namorado esperava fora, ele não entrava.(...) A gente
não namorava sozinha, sempre levava uma amiga. Foi bom, foi
tudo bem.
Conclui-se que o ritual do namoro era acompanhado de perto, seja pelos familiares
seja por amigos e conhecidos da família. A integridade da moça, o cumprimento de regras e
manutenção dos valores eram sempre lembrados pela presença da família quando o casal de
namorados estava em casa ou fora dela.
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2.3 Os pais e as medidas disciplinares na escola
O rigor dos pais em relação aos estudos dos filhos pode ser interpretado como uma
forma de transmitir às crianças conceitos abstratos, como respeito e disciplina, que
constituíam valores importantíssimos da época, por meio de ações mais concretas, como os
castigos físicos. A conivência dos pais em relação às medidas disciplinares aplicadas aos
filhos na escola é notória no depoimento de Vincenzo. Ele conta que preferia não dizer aos
pais que havia apanhado do professor, porque sabia que seria castigado novamente em casa.
(...)a disciplina era muito rigorosa. (...) Os professores usavam
uma varinha de marmelo, a coisa na Cecília era sério. (...) De vez
em quando, eu levava nas pernas. As crianças na Cecília até doze,
treze anos, não usava calças compridas, era calça curta, tinha que
estar com as pernas visível para a varinha de marmelo. (...) Se eu
contasse que tinha levado um pito do professor, chegava em casa e
apanhava, porque era assim, eu já estava errado sem abrir a boca.
A cultura era assim se o professor deu o pito era porque eu
merecia e seu eu merecia eu fiz o quê? Ai já apanhava do pai e da
mãe, era melhor ficar quieto.
A criança não tinha o direito de questionar o castigo dado na escola, muito menos de
reclamar com os pais, porque eles concordavam plenamente com a avaliação dos professores,
caso decidissem castigar os alunos. O depoente ainda enfatiza o uso de calças curtas pelos
meninos, um costume da época, como um facilitador para que os professores batessem nas
pernas das crianças.
Erzsébet também lembra da importância que os pais atribuíam aos estudos e do rigor
em relação à disciplina em sala de aula.
(...) na minha casa, o mais importante era o estudo, porque só
tinha que estudar. Meus pais diziam assim, duas coisas não
podiam acontecer com a gente, que os professores reclamassem
por malcriação e que a gente repetisse de ano, isso não podia
acontecer. E não precisava de professor particular também. Tinha
que se virar sozinha, era uma exigência natural, a gente sabia que
tinha que fazer isso, pelo menos isso. Não precisava ser brilhante,
mas tinha que trabalhar para corresponder àquilo que
minimamente se esperava.
50
Documento 03 – Boletim de Erzsébet do período em que viveu com os pais em um
acampamento de húngaros na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial
No trecho anterior, a depoente associa os estudos ao trabalho, em que era preciso
corresponder às exigências dos pais e professores. De maneira alguma era permitido que os
filhos dessem margem a reclamações dos professores e, ainda, que eles repetissem de ano.
Desde pequenos, eles já sabiam qual era a obrigação que lhes cabia, ou seja, serem bons
alunos.
51
2.4 A mistificação da idéia de Brasil e dos motivos da imigração
Muitos imigrantes não conheciam exatamente o destino que os aguardava, quando
deixavam a pátria. Alguns sabiam que viajavam para a América, mas sem ter consciência do
país de destino. Nos relatos, os imigrantes reelaboram essa incerteza por meio da mistificação,
em que eles atribuem motivos fantasiosos ou religiosos à saída do país de origem.
Olga Iwtchenko conta que o pai escolheu vir para o Brasil por gostar da sonoridade
do nome do país.
O governo chinês expulsou a gente de lá, tinha que ir de qualquer
jeito para algum lugar. (...) Aí a gente tinha que escolher, ou
Estados Unidos ou Brasil, Rússia... Austrália, né?Aí meu pai
gostou do nome do Brasil e veio para o Brasil.(...) porque gostou
do nome, porque nunca ouviu falar do Brasil, né? (...) Meu pai
não tinha estudos, então ele nem sabia da existência do Brasil.
No relato de Olga, percebe-se que a escolha pelo Brasil foi por acaso, motivada pela
sonoridade do nome, já que a família não sabia exatamente para onde estava indo. E, ao
mesmo tempo, sabe-se que os imigrantes não tinham escolha e, como a família de Olga, eram
obrigados a sair de seu país de origem. Essa reelaboração do discurso da depoente sobre a
saída confere um caráter de heroísmo ao ato do pai e da vinda da família para o Brasil, talvez
para diminuir o sofrimento e demonstra à audiência para a qual conta sua história que o pai,
mesmo com as dificuldades, enfrentou a situação com simplicidade. No momento em que
conta a sua trajetória, a depoente elabora a narrativa da própria história de vida, como destaca
Alberti (2000).
O relato de vida costuma ser a apresentação oficial de si, que varia conforme o
“mercado” no qual é oferecido. (...) Em um trabalho de história oral, a biografia, a
trajetória individual, não é coisa oferecida, mas construída à medida mesmo em que é
feita a entrevista.
Assim como Olga, o imigrante espanhol Gines Lorente Castells, 76 anos, também
retrata como uma aventura a vinda de sua família para o Brasil, na década de 1950.
Veio aquela moda de vir para a América, falavam da América, né?
O que atraia era o seguinte, uma parte, uma parte, é aventura, né?
De fanfarrão. Em 58, passava aquele filme sobre o Rio de Janeiro,
a Carmem Miranda fez um sucesso na Europa tão grande que
saiam o Pato Donald, o Zé Mexicano e a Carmem Miranda.
52
Cantava, fazia bossa e ela subia numa esteira e falava para o Pato
Donald: “Aonde nós vamos, Zé Carioca?” “Vamos para o Rio”.
Aí aparecia o Rio, lindo pra caramba. Então a turma começou,
né? Uns vieram por necessidade, e outros, meu pai não precisava
ter vindo, porque ele tava indo bem com o negócio, então, mas ele
era, ele, ele era aventureiro, falou “vamos e vamos”. Ele pos na
cabeça “vamos”.
Foto 19 – Gines (direita) e o irmão Jaime quando crianças, em Barcelona, na Espanha, na década de
1940.
Gines lembra do pai como um aventureiro que, apesar de ter um negócio próspero em
Barcelona, resolveu vir para o Brasil tentar uma vida nova. Também aqui, a reelaboração
discursiva do acontecimento confere-lhe um aspecto mais heróico, fator que atrai a atenção da
audiência que ouve a história.
Julio Dimov também faz uma construção mítica da vinda de sua família para o Brasil.
Quem queria se inscrever para ir para o Brasil, não dava nome de
Brasil, mas América. (...) Um dia meu pai pega e vai lá saber
alguma coisa. Ele volta em casa, nós sentados à mesa, “o que
vocês acham”, ele perguntou. “Vamos para a América?” Minha
mãe falou que não iria, porque não sabia onde era. (...) Meu pai
volta dizendo que nós íamos, ele pega um livro. (...) Era um
dicionário. Qualquer coisa que a pessoa sonha, talvez contando
uma história desse tipo, acho que tem gente que pensa que isso é
bobagem, acreditar em sonho, mas eu conto o que aconteceu.
Minha mãe pega esse livro e vai à casa do vizinho, senhor
53
Jorgeman, um senhor de idade, sabe, o jovem, qualquer coisa,
casais, as mulheres principalmente, porque acham que vai
acontecer assim ou assado, eles vão lá e fazem uma consulta. E o
senhor abre esse livro, olha e diz que acha que vocês vão para a
América. Mas eu não vou, porque eu tive um sonho muito
marcante. E ela começa a contar para ele o que foi. Ela contou
que ela viu uma corda no infinito, como se fosse um cabo, a minha
família, meu avô, meu pai, minha mãe, minhas três irmãs e eu,
sentados como se fosse numa sala, segurando essa corda. Toda a
minha família. Ele abre o livro, olha e fala: Aqui dá antes ou
depois da meia-noite, o próximo acontecimento sendo mais tarde,
ou um pouco mais longo, que pode acontecer. Ele fala que a gente
ia, que ali falava. O que aconteceu? Minha mãe volta e conta para
todos. Minha mãe pega e fala para o meu pai: Eu pensei e pensei e
nós vamos. Nós temos de criar os nossos filhos, educar a nossa
família. Eu já concordo e você pode ir lá pôr o seu nome, porque
nós vamos. E assim aconteceu.
Como no relato anterior, a vinda para a América é associada a algo fantasioso, mítico:
o sonho da mãe interpretado por um senhor idoso, um tipo de adivinho. O depoente afirma
ter consciência de que algumas pessoas podem achar uma “bobagem” acreditar em sonhos,
mas ressalta que conta “o que aconteceu” realmente. Essa reelaboração, como explica Isabel
Carvalho (2003, p. 288), ocorre porque “a história de uma vida não cessa de ser refigurada
por todas as histórias verídicas ou fictícias que um sujeito conta sobre sim mesmo”.
Miguel Krouman é outro depoente que associa a vinda para o Brasil a um motivo
mítico.
Minha mãe então, ela sempre dizia, quando nós estávamos no
Brasil, que Deus mandou ela para o Brasil. Por quê? Porque eu
tinha uma tia nos Estados Unidos, já tinha propriedades e mandou
documentação para nós, garantindo a nossa ida para os Estados
Unidos. Minha mãe não quis ir, veio para o Brasil. Ela falou que
Deus mandou ela para o Brasil, o país que tem formato de uma
cruz. Aí eu fiquei analisado, acho que ela fez bem. Porque se eu
fico na Iugoslávia, com a ida dos alemães para atacar a Rússia,
passaram pela Iugoslávia, fizeram estripulias. Perderam e
voltaram correndo, o russo atrás, aí o russo chutou todos nós,
todos os alemães, chutou todos os alemães, porque naquela época
eu já não estava mais lá, e fez estripulias também, né? Então, acho
que minha mãe fez bem nesse ponto. Quanto aos Estados Unidos
ela fez bem também, por quê? O meu primo, ele foi o primeiro a
viajar para a guerra, ele foi fuzileiro naval, lutou contra o Japão
no Pacífico. Ele teve sorte, ele morreu de velho. Sei lá se eu teria
tanta sorte. Então no Brasil eu fiquei a salvo. Minha mãe, ela quis
salvar o filho dela e conseguiu.
54
Foto 20 – Miguel, aos 14 anos, e a mãe, Liza Dubanic.
O depoente faz uso do discurso da mãe para relatar as circunstâncias de vinda para o
Brasil. Ele ainda reinterpreta essas circunstâncias para legitimar o motivo da decisão da mãe
para a viagem – poupar a vida do filho. Ressalta-se ainda a associação feita entre o formato do
mapa do Brasil com uma cruz, fruto de um misticismo religioso.
Como salientado anteriormente, a cultura de uma pessoa é formada por significados,
atitudes e valores e os símbolos em que eles são expressos. Portanto, a associação do Brasil a
um símbolo cristão no imaginário do depoente faz do país um lugar sagrado, que o manteve a
salvo. Assim, por meio de sua cultura, o depoente significou, de forma sobrenatural, um
acontecimento aparentemente natural da época, a imigração para uma nova terra. Para Laraia
(1999, p. 95), esse é um processo comum, porque “cada cultura ordenou a seu modo o mundo
que a circunscreve e esta ordenação dá um sentido cultural à aparente confusão das coisas
naturais”.
Corvina Andrade, recorrendo a relato de terceiros, também constrói uma narrativa em
que a fantasia sobre o Brasil da época era marcante.
55
Quando nós estávamos lá na nossa terra, tinha um senhor que já
tinha estado no Brasil e falava para nós: “Olha, tem gente da cor
desse xale”. Xale é, sabe o que é? Renda, né? “Lá tem a mula sem
cabeça”, eu falava essas coisas também, “tem cobra que te espera
numa árvore”, assim que ele falava. Tinha vez que tava na lareira,
assim no inverno e a gente ia fazer serão um na casa dos outros e
ele então começava a contar essas histórias, toda molecada que
estava na frente do fogo ia para trás. De medo.
Assim como no depoimento de Corvina, no relato de Maria Tereza pode-se perceber
que a idéia que se fazia do Brasil em Barcelona, na década de 1950, era a de um país
inexplorado, mas com potencial e riquezas a serem aproveitadas pelos imigrantes, aliado
também a uma visão fantasiosa.
Ah, que Brasil era uma coisa, que era uma coisa assim virgem,
mas com muita riqueza aqui o ouro era, era, se encontrava na rua,
sim sabe, pedras se encontrava na rua, não precisava trabalhar
muito, na época. (...).Não sei quem, de onde saiu tudo isso e, não
era só no Brasil não, foram pro Chile, pro Paraguai, Colômbia,
foi muito espanhol pra Colômbia também, não é, veio mais pro
Brasil, mas foram pra esse países que se achava que tinha que se
explorar, eram países bem atrasados pra se explorar, pra poder
enriquecer.
Foto 21 – Família espanhola que acolheu a família de Maria Tereza, no Bairro Barcelona, em São
Caetano do Sul. Eles moravam com mais duas famílias numa mesma casa, na Rua Conselheiro
Lafayete, onde hoje fica o prédio do campus I da USCS, em meados da década de 1950.
56
Ao relatar os motivos da imigração, Lucas Diaz Martin lembra que o que o impulsionou foi o
conselho da mãe para aliviar sua tristeza e, ainda, refere-se ao Brasil como “América” e como
um lugar puro, sinônimo de esperança.
Diz a minha mãe que eu estava triste, abatido, estressado, sem
esperança. Nos meus 20 anos (?), lembro que em setembro de
1957, eu estava lendo, naquele baixo-astral que me caracterizava
e forçava inclusive aquela vibração, ela falou assim: “Se tivesse a
tua idade, eu sumia, eu ia em qualquer lugar do mundo, não ficava
aqui”. Não gostava. Fechei meu livro e falei assim: “Ela está
certa”. Eu não queria ir para a Europa, porque muito imigrantes,
inclusive da minha aldeia, imigraram para a Europa. Eu não sei,
tinha uma esperança da América. A América para nós, ela soava,
assim, como algo puro, algo de esperança.
No depoimento de Lucas, confirma-se a incerteza do destino e como, de certa maneira,
ele era “idealizado”, transformando a imigração em uma busca cheia de esperança. Por outro
lado, Lucas afirma que o imigrante é impelido pelo medo e não pela vontade de prosperar,
como outros depoentes afirmaram em seus relatos.
A vida de um imigrante, as pessoas se enganam, dizem que nós
somos corajosos, não somos não, pelo contrário, nós somos
covardes, porque o que nós fizemos foi sair de uma situação ruim
e, por ter medo, abandonamos a família, os amigos. É medo que
nos empurra.
Por meio da análise dos depoimentos, pode-ser perceber que, apesar de se tratar da
reunião de relatos de indivíduos de culturas e nacionalidades diversas, alguns ritos e
cerimônias são comuns a essas pessoas que, em determinado momento de suas histórias, se
viram obrigadas a mudar de país e, consequentemente, de vida. O corpus de análise mostrou
que a união das memórias individuais, por meio da história oral e da história de vida de cada
depoente, pode formar uma memória coletiva relacionada à imigração e à adaptação à nova
terra, o Brasil, especificamente o ABC Paulista, como esclarece Meihy (2005, p. 81).
Cada indivíduo é único, sua inscrição no coletivo se dá mediante decisões temáticas
afins. Por outro lado, a experiência coletiva se manifesta nos indivíduos explicando
sua relação com o mundo. É por isso que se diz que a historia oral individual, além
de social, é cultural.
O discurso, então, manifesta uma memória coletiva, como explicita Fernandes (2007,
p. 59-60).
57
Os discursos exprimem uma memória coletiva na qual os sujeitos estão inscritos. É
uma memória coletiva, até mesmo porque a existência de diferentes tipos de discurso
implica a existência de diferentes grupos sociais
As transformações vividas pelos imigrantes, tanto em seus países de origem, quanto no
Brasil, não influenciaram somente a formação e transformação de suas culturas, mas também
as formas de se identificar ou não com o mundo e as pessoas que os rodeiam. As percepções
dos imigrantes acerca de si e da sua própria identidade serão discutidas a seguir.
58
CAPÍTULO III – AS METÁFORAS NO DISCURSO DOS IMIGRANTES
Este capítulo se propõe a analisar as metáforas recorrentes no discurso dos imigrantes,
observando-se suas identidades, seus ritos e valores, sua forma de ver o Brasil. Para tanto,
aborda, inicialmente, aspectos relacionados às identidades.
No decorrer do século XX, principalmente a partir dos anos 1960, o processo de
definição da identidade individual sofreu alterações, reflexos das transformações estruturais
das sociedades e do mundo ocidental em geral.
As identidades individuais, antes desse período, confundiam-se com a identificação
em relação ao Estado Nação, ou seja, os indivíduos, geralmente, identificavam-se como sendo
cidadãos de alguma pátria, por exemplo, brasileiros, alemães, russos etc. Hoje, o país de
origem é usado para a definição de identidades somente provisoriamente, como explicita
Leyla Perrone-Moisés, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 2007.
A “identidade”, seja ela pessoal ou nacional, é uma construção mental na qual o
homem se ancora para existir e agir. Na vida política das nações, há momentos em
que ela precisa se afirmar, diante de ameaças externas. Mas ela deve ser sempre
reconhecida como provisória.
Stuart Hall (1999) cita uma série de mudanças estruturais da sociedade, como a
descoberta do inconsciente por Freud, que modificaram essas formas de o indivíduo
identificar-se. O autor (op.cit., p. 36) lembra que a teoria de Freud demonstra que nossas
identidades, assim como a nossa sexualidade e os desejos “são formados por processos
psíquicos e simbólicos do inconsciente, que funciona com uma “lógica”. (...) arrasa com o
conceito do sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada” – o
sujeito cartesiano do Iluminismo.
Outra mudança citada por Hall são os estudos do linguista estrutural Ferdinand de
Saussurre, que demonstrou que nós não somos os reais “autores” das afirmações que fazemos,
justamente por nos expressarmos usando as regras da nossa língua e os significados da nossa
cultura, ambos anteriores a nós (op.cit., p. 40)
A globalização intensa do final do século XX também fomentou a desconstrução da
identidade do sujeito, por possibilitar uma maior interação entre as diferentes culturas do
mundo inteiro. Assim, o abalo das antigas referências do indivíduo faz com que os sujeitos
contemporâneos sofram uma crise de identidade. O que começa a fazer sentido, então, para
59
esses indivíduos, não é mais definir uma identidade, mas sim buscar uma identificação, como
afirma Bauman (2005, p. 30).
Quando a identidade perde as âncoras sociais que a faziam parecer
“natural”, predeterminada e inegociável, a “identificação” se torna cada vez
mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um “nós”
a que possam pedir acesso.
Conclui-se que os indivíduos contemporâneos não têm uma “identidade fixa, essencial
ou permanente”, como constata Hall (1999, p. 13)
A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam
Os imigrantes podem ser considerados personagens característicos dessas novas
formas de definir a identidade. Por entrarem em contato com pelo menos duas culturas
diferentes (a sua e a do outro), as suas identidades sofrem a influência dessas culturas. Hall
(op.cit, p. 88) considera que a pessoa que foi dispersada para sempre de sua terra natal “retém
fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno
ao passado”. Ela passa a negociar com as novas culturas a que tem acesso, mas que não são
completamente assimiladas e não perde completamente sua identidade de origem.
Os imigrantes nunca terão uma identidade unificada e, segundo o autor (op. cit., p.
89), “devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens
culturais, a traduzir e a negociar entre elas”.
As interpretações que os imigrantes fazem do mundo e dos acontecimentos que
vivenciaram, a maneira como se relacionam, a forma como se adaptaram à nova terra refletem
essa pluralidade de identidades e identificações. Quando contam suas histórias de vida, do
discurso dos imigrantes, afloram metáforas conceituais que os auxiliam no processo de
compreensão, interpretação e expressão dos acontecimentos vividos, como explicita Sérgio
Carvalho (2003)
O sistema conceitual do homem, portanto, surge de sua experiência com o próprio
corpo e o ambiente físico e cultural em que vive. Tal sistema, compartilhado pelos
membros de uma comunidade lingüística, contém metáforas conceituais, sistemáticas,
geralmente inconscientes e altamente convencionais na língua.
60
3.1 As metáforas de identidade
Nos depoimentos a seguir, analisar-se-á a narrativa dos imigrantes, destacando-se suas
identidades. Buscam-se as evidências das novas formas de identificação dos indivíduos e,
ainda, procura-se entender de que maneira as metáforas configuram suas identidades no
discurso.
No discurso dos imigrantes, percebe-se que há uma identificação com a nova terra
pelo uso de adjetivos valorativos de caráter positivo. Ao falar sobre a vida no Brasil, o
imigrante iugoslavo Miguel faz o seguinte comentário:
Aí meu pai, então, tinha criação de pato, galinha, tinha plantação,
horta, tinha árvores frutíferas, plantava batata. Então a gente
nunca passou fome no Brasil, sempre teve fartura, sempre teve
fartura, porque a gente, meu pai sempre matava porco, fazia
lingüiça e tal. Tinha bastante, minha mãe fazia os pratos em casa,
fazia pão em casa, aqueles pão redondo grande, né? Dava para
uma semana. Então era uma vida sem conforto, mas boa. (...) a
vida no Brasil sempre foi boa.
Foto 22 – Da esquerda para direita: Liza Dubanic, mãe de Miguel, Miguel e o padrasto Richard, com
galinhas nas mãos. Essa era a casa da família, na Rua Xingu, na Vila Valparaíso, em Santo André
61
É importante ressaltar que Miguel viveu parte da infância na Iugoslávia (país que
havia participado da Primeira Guerra como aliado à Tríplice Entente3, formada pelo Império
Russo, França e Reino Unido) e veio para o Brasil em agosto de 1930, período entre as duas
guerras mundiais, quando a Europa vivia um período de escassez e pobreza. Provavelmente,
é por esse motivo que o depoente associa a fartura de alimentos à vida boa no Brasil.
O depoimento de Julio Dimov também mostra a identificação com o Brasil pelo uso
de adjetivos valorativos, indicando afeto.
A minha família, quando nós deixamos, em 1926 partimos
para esta terra querida que é o Brasil, nós viemos, meu avô,
meu pai, minha mãe, minha irmã mais velha, com 18 anos,
minha segunda irmã, com 16 anos, eu com 14 anos, e minha
irmã caçula, com 7 anos.
Um aspecto importante a ser destacado no trecho anterior é a associação que o
depoente faz entre país e terra. Como explicitado anteriormente, o povoado de Julio, na
Bessarábia, era essencialmente agrícola, por isso a associação mental entre país e a terra, lugar
onde vivem e trabalham.
Percebe-se, ainda, no discurso de Julio, a ambivalência de identificações, porque o
orgulho da raiz ancestral permanece, apesar da identificação com o Brasil, como no trecho a
seguir:
Mas volto a dizer: nós somos de origem búlgara, porque os
meus tataravós já emigraram em 1830 para a Bessarábia,
quando a Bulgária estava sob o domínio turco(...). Nós
somos de origem búlgara, sangue búlgaro, que vem de
muitos anos atrás, de raiz (...)”
A reiteração do lugar de origem nesse trecho mostra que, apesar de o depoente
identificar-se com o Brasil, ainda valoriza sua origem. Ele, então, identifica-se, ao mesmo
tempo com o Brasil e a Bulgária. Hall (1999, p. 87) explica que algumas identidades giram
em torno da “tradição”, “tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e
certezas que são sentidas como tendo sido perdidas”. Julio Dimov nasceu na Bessarábia, mas
mantém o discurso da origem de seus antepassados, que emigraram da Bulgária. O trecho
anterior ainda ratifica a metáfora da família como árvore (FAMÍLIA É RAIZ), porque a
3
A Tríplice Entente foi uma aliança feita entre a Inglaterra, França e o Império Russo para lutarem na Primeira
Guerra Mundial contra as expansões da Tríplice Aliança – formada pela Alemanha, Áustria-Hungria e Itália –
pela Europa.
62
expressão “de raiz”, mostra que a família tem um começo, uma história. Pode-se firmar aqui
uma metáfora biológica, associada à natureza. Essa metáfora aparecerá em outros discursos
mais adiante.
A ambivalência da identidade também pode ser conferida no discurso de Corvina que,
em um momento, afirma ser portuguesa e, em outro, brasileira.
“Pegamos o comboio, viemos até o Porto. (...) Lá é comboio, eu
falo português [de Portugal].”
“Não, agora sou brasileira, porque eu tenho 60 anos já de
Brasil.”
“Mas se eu estiver aqui eu tenho saudade de lá, se eu estiver lá eu
tenho saudade daqui. A primeira vez que eu fui para Portugal, nós
fomos procurar barzinho de brasileiros, porque a gente sentia
tanta saudade daqui, isso eu lembro, em Lisboa nós andamos e
procuramos uma tosca lá, uma tasca, que fala, né?, de brasileiros
que eram sambistas, muito gostoso”
“[os portugueses] chamavam a gente de brasileiro”
A depoente justifica que fala o português de Portugal, ao usar a palavra “comboio”,
para se referir a trem. Mas, ao mesmo tempo, ela diz ser brasileira, por viver aqui há muitos
anos. Essa ambivalência de identificações pode ser percebida também quando ela diz sentir
saudades dos dois países quando está longe de ambos. Mesmo estando em Portugal, sua terra
de origem, ela sente falta do Brasil e do povo brasileiro. Ao afirmar que os portugueses a
chamam de brasileira quando está em Portugal, a depoente reitera a ambivalência de sua
identidade de imigrante.
Essa forma de se identificar também aparece no discurso a seguir de Gines Lorente
Castells, que diz ser espanhol e brasileiro ao mesmo tempo.
[Eu sou] Brasileiro. Sou espanhol também e brasileiro, os dois.
Não dá, essa divisão é difícil, eu vou lhe dizer o porquê, eu quando
vou na Espanha, eu não suporto que me falem mal do Brasil,
porque eu adoro o Brasil. [Tenho] coração brasileiro.
63
Documento 04 – Certificado de Nacionalidade de Gines
Ao afirmar ser espanhol e brasileiro, Gines ainda enfatiza que não lhe agrada que
falem mal do Brasil. Percebe-se a ligação afetiva com o país na afirmação final do trecho
anterior, “tenho coração brasileiro”. Gines, então, adotou para si a nacionalidade brasileira,
mas não abriu mão de sua nacionalidade primeira, a espanhola.
O uso de intensificadores também é uma forma de os imigrantes expressarem, pela
linguagem, as suas múltiplas identificações. Como no relato de Grada Theresia. Quando
interpelada sobre músicas que eram cantadas no período das festas de final de ano na
Holanda, ela se justifica por não lembrar.
Nem lembro direito, não me lembro mesmo, porque faz 40 anos
quase que não fui mais lá. Noite feliz era cantado que eu sei. (...)
Eu lembro bem pouco. Era assim... desde que eu cheguei aqui não
falei mais holandês, mas acho que era assim (ela canta a canção).
64
Se eu soubesse que eu ia cantar... não lembro direito, aí eu peço
desculpas, porque eu sou mais brasileira do que holandesa.
Documento 05 – Certidão de nascimento de Grada
Grada saiu de seu país de origem com mais de 30 anos, porém, afirma que vive aqui
há muitos anos, por isso não lembra bem como é a canção. Nesse trecho, surgem as duas
identidades – holandesa e brasileira – com o uso do intensificador “mais” para enfatizar sua
identidade brasileira, atestando que, enquanto ela está no Brasil, a identidade holandesa fica
suspensa, dando lugar à brasileira.
O imigrante iugoslavo Miguel Zvonimir, também usa o intensificador “mais” para
demonstrar a sua identificação com o Brasil.
Eu sou naturalizado brasileiro, né? Quando eu fui perante ao juiz
em Santo André, só estava o juiz e a secretária, a secretária me
veio, eu contei minha vida para ele, ela veio com um livro para
mim escrever e veio, para mim lê, o código brasileiro. O juiz
65
falou: “Não precisa não, esse cara é mais brasileiro que nós dois
juntos”.
Documento 06 – Certidão de batismo de Miguel
66
Documento 07 (a) – Certificado de naturalização de Miguel (frente)
Documento 07 (b) – Certificado de naturalização de Miguel (verso)
67
Por meio do discurso do juiz, o depoente demonstra à sua audiência o quanto ele se
identifica com o país, porque garantiram que ele é mais brasileiro do que dois brasileiros
juntos.
Nos dois trechos anteriores, os imigrantes expressam as suas identificações, de forma
que parece ser possível para o indivíduo possuir e mensurar mais de uma identidade e, ainda,
poder escolher o momento adequado para destacar uma em detrimento da outra.
Lucas D. Mártin também usa duas identificações distintas para se auto-definir, ao
mesmo tempo em que diz não ter uma nacionalidade definida e, por conseguinte, uma
identidade una e indivisa.
Eu sou brasileiro naturalizado, eu sou espanhol de nascimento. Eu
gosto muito da Espanha, gosto do livros, dos escritores espanhóis,
gosto de flamenco, mas eu gosto de um samba, é uma paixão,
porque para mim é tudo igual. Se eu estivesse, por exemplo,
morando na Colômbia, seria colombiano, naturalizado
colombiano, com todos os problemas deles. Eu adoro o Brasil,
como teria adorado se estivesse na Colômbia.
Pela minha cultura, pela minha leitura eu não acredito em terras,
não sou espanhol, não sou brasileiro. É curioso, nós não temos
pátria, porque eu aqui sou espanhol, mas na Espanha, sou
brasileiro. Então... não tenho nacionalidade.
O discurso de Lucas reflete a discussão feita anteriormente, sobre os impactos do
deslocamento de um país para o outro sobre as identidades dos indivíduos. O depoente não se
sente preso a nenhuma nação, não se sente obrigado a definir-se de forma definitiva e ainda
reflete que assim seria mesmo que tivesse escolhido outro país para viver. De certa forma, ele
se mostra como um indivíduo sem conceitos pré-estabelecidos, aberto a conhecer novas
culturas.
Assim como Lucas, Erzsébet Klementina afirma não ter nacionalidade.
(...) Essa variação de lugares, isso faz com que você acabe se
tornando um cidadão do mundo(...) você não tem nem pátria
Lucas e Erzsébet reelaboram o discurso da imigração de forma que a audiência
perceba um aspecto positivo de deixar o país de origem, de conhecer outras culturas e a
possibilidade de não se prender à nenhuma identidade, à nenhuma pátria, como enfatiza
Bauman (2005, p. 20).
Pode-se reclamar de todos esses desconfortos e, em desespero, buscar a redenção,
ou pelo menos o descanso, num sonho de pertencimento. Mas também se pode fazer
68
desse fato de não ter escolha uma vocação, uma missão, um destino consciente
escolhido – ainda mais pelos benefícios que tal decisão pode trazer para os que a
tomam e a levam a cabo, e pelos prováveis benefícios que estes podem então oferecer
a outras pessoas
Mas o autor faz um alerta aos imigrantes ou aqueles que procuram sempre se definir,
por estarem deslocados.
Pode-se até começar a sentir-se chez soi, “em casa”, em qualquer lugar –
mas o preço a ser pago é a aceitação de que em lugar algum se vai estar
totalmente e plenamente em casa (op. cit., p. 19-20)
Outro aspecto importante a se ressaltar no trecho do depoimento de Erzsébet é o uso
de palavras negativas – “não” e “nem” – para se definir. Em outro trecho, outras palavras
negativas também são usadas.
Eu aprendi na vida que amizade assim, amigos para quê? A gente,
quando começa a fazer amizade mais profunda, vai embora,
certo? Então sem querer, fiquei um pouquinho sem raiz nessa
parte. (...) A única coisa que eu sinto como estrangeira, que eu já
falei para vocês, que, apesar que eu tenho idade no Brasil mais de
50 anos, mas me falam estrangeira, eu sou estrangeira, não que o
Brasil não me aceitou como não estrangeira, na verdade me
aceitam, mas agente acaba ficando assim, principalmente depois
de muitos lugares que você foi, não conseguiu se agarrar a nada,
você acaba sendo sem raiz, mesmo os meus filhos continuam sem
raiz.
Essa reiteração de palavras de caráter negativo para se auto-definir parece conduzir
para a metáfora biológica do desenraizamento (IMIGRANTE É SEM RAIZ) na identidade
dos imigrantes, fato recorrente em alguns discursos aqui analisados.
69
Documento 08 – Certificado de batismo de Erzsébet
70
Documento 09 (a) – Certificado de Naturalização de Erzsébet (frente)
Documento 09 (b) – Certificado de Naturalização de Erzsébet (verso)
71
É do discurso da imigrante Erzsébet o uso da palavra “estrangeira” para definir a
própria identidade. Isso mostra que, apesar de viver no Brasil há mais de 40 anos, ela não se
identifica com o país, não acolheu a identidade brasileira para si. Koltai (1998, p. 17)
esclarece que o “estrangeiro” é sempre criado para que outro alguém possa definir-se, porque,
segundo a autora
nesse quadro de crise (pós-moderna), já não sei bem qual o meu lugar nesse mundo,
ou o que pensar das coisas, como classificá-las, como ajustá-las num todo coerente e
satisfatório. [Por isso] me defino pelo que não sou.
A depoente, então, usa a definição “estrangeira”, ratificando a autodenominação
“cidadã do mundo”. Assim, ela não se identifica com uma ou outra nação, uma ou outra
identidade de forma definitiva.
Por fim, ao falar de si, a depoente usa a expressão “sem raiz”, associando a própria
identidade a uma árvore. Daí o afloramento da metáfora do desenraizamento para referir-se à
sua identidade, ao seu não pertencimento a nenhum lugar, nenhuma pátria.
3.2 As metáforas nos rituais de despedida
Como explicitado anteriormente, a imigração dos povos estudados nesta pesquisa se
dá em períodos conturbados da história dos países, como guerras, mudanças econômicas e
estruturais da sociedade. O conseqüente empobrecimento de grande parte da população
impele os indivíduos a buscarem uma nova oportunidade em outros países. Famílias inteiras
emigravam na esperança de construir uma vida melhor. O momento de despedida é marcante
porque muitos acreditavam que nunca mais voltariam ao país de origem e não teriam mais
contato com os parentes que permaneciam.
O relato de Vincenzo sobre o dia da despedida da terra natal é marcado pela
comparação feita com a morte.
É estranho, nós saímos da Itália nós pegamos o navio na Itália,
veja bem, nós saímos da Sicília e fomos para Napoli. O porto de
Bruscata é pequeno para nossa turma, fomos para Napoli e
embarcamos em Napoli, é na verdade com a mentalidade da
época, quando a gente saía de um país era para nunca mais voltar,
nem tinha condições, era despedida igual a morte.
72
Documento 10 (a) – Cartão postal com o registro da viagem feita por Sortino, a mãe e os irmãos da
Itália para o Brasil, em 1956 (frente)
Documento 10 (b) – Cartão postal com o registro da viagem feita por Sortino, a mãe e os irmãos da
Itália para o Brasil, em 1956 (verso)
73
Provavelmente, o depoente reproduz o discurso dos pais em relação à sensação da
morte no momento da despedida da terra natal, porque ainda era uma criança e não tinha
maturidade suficiente para avaliar e compreender o acontecimento. Ele ainda usa a expressão
“mentalidade da época” para justificar sua interpretação sobre a despedida. Ressalte-se
também que o depoente rememora o fato a partir do presente, sendo a reelaboração do
discurso e da memória algo a se considerar na análise da fala. E, nessa reelaboração,
evidencia-se uma metáfora: EMIGRAR É MORRER.
Halbwachs (1990) explica que os indivíduos fazem uso da memória de outrem para
embasar e conferir veracidade à própria memória.
“(...) se nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança, mas
também sobre a dos outros, nossa confiança na exatidão de nossa evocação será
maior, como se uma mesma experiência fosse recomeçada, não somente pela mesma
pessoa, mas por várias” (op. cit., p. 25)
Angela Dall´Anese veio da Itália para o Brasil com seis anos de idade. Ao contar
como foi a viagem, provavelmente ela também reproduz o relato da mãe no seu próprio relato,
encaixando as memórias da família sobre o fato.
Essa viagem foi muito desastrosa, porque meu irmão mais velho
era moleque levado, então meu avô levou a gente para tomar o
navio. Minha mãe ficou no convés com as crianças e meu irmão
mais velho quis dormir. Minha mãe o pegou e foi colocar no
berço. Ela pegou e voltou no convés para ver meu avô, para dar o
último adeus, mas só viu água, e ela começou a chorar porque não
tinha dado o último adeus para o pai dela.
74
Documento 11 –Passaporte de Caterina Michelin Dall´Anese e dos filhos (da esquerda para direita):
Angela, Arthur, Augusta, Mário e Ada.
75
É provável que, por ser ainda uma criança na época, a depoente não tivesse condições
de lembrar como foi a viagem, mas, mesmo assim, ela compara o acontecimento a um
desastre. A metáfora do sofrimento e da morte aflora mais uma vez, no uso da expressão
“último adeus” e também da presença do choro no relato, ao tratar da despedida da terra natal.
No trecho a seguir da narrativa de Júlio Dimov, identifica-se uma ambigüidade de
sentimentos vividos no momento da despedida – ora ele relata o momento como uma festa,
ora como um velório.
Assim aconteceu. Às 4 horas da manhã, a rua, era como
daqui até a esquina, uma carroça atrás da outra e saímos.
Jovens com 20 anos, moças, meninas com 14, 16 anos. Tinha
um com violino, outro com acordeão, outro com flauta,
aquela festa. E a pessoa de idade ia com uma vela acesa.
Outro ia com um quadro de santo no colo, chorando, aquela
choradeira, aquele desespero. Para mim representava que
nós não tínhamos mais lugar para sobreviver em cima dessa
terra. Parecia para mim que a gente ia para o extermínio.
(...) Fomos até o porto Austridahm para tomar o navio. Era
mais ou menos 4 horas, ficou o tempo escuro, para chuva, e
aquele povo estava se preparando no pátio para tomar o
navio. Quando abriram, que o povo começou a entrar, não
dá para explicar, parecia que ia acabar o mundo. Eram um
choro tão grande, gritos tão grandes, desespero tão grande
que não tem como dizer. Até se o Brasil fosse um pouco mais
perto dava para ouvir o desespero, as lágrimas que o povo
perdeu. Por isso que a onda do mar aumentou.
76
Documento 12 – Passaporte da família de Júlio Dimov. Da esquerda para direita: João Dimov (pai),
Anna (irmã), Júlio, Matrona Dimov (mãe) e, atrás, as irmãs de Julio, Maria (esquerda) e Irina.
A seleção lexical do depoente ganha tons dramáticos na forma de relatar para sua
audiência o evento da partida: “não ter mais lugar para sobreviver em cima dessa terra”,
“desespero”, “extermínio”. Então, EMIGRAR É MORRER. De outro lado, apresenta-se
também a visão dos jovens da situação. No trecho: “Jovens com 20 anos, moças, meninas
com 14, 16 anos. Tinha um com violino, outro com acordeão, outro com flauta, aquela
festa”, aflora a metáfora EMIGRAÇÃO É UMA FESTA, confirmando a mistura de
sentimentos contraditórios que envolvem o momento da despedida da terra natal.
Da mesma maneira, Corvina também expressa em seu depoimento a tristeza
(metáfora da morte) e a alegria no momento da despedida de sua aldeia, em Portugal.
Eu lembro que parecia um velório. A molecada, nós, por exemplo,
e o resto de lá, dançávamos e outros choravam, mas choravam, eu
lembro de tudo isso, mas choravam e nós dançávamos. Aí chegou a
hora de ir embora, né? De pegar o comboio. Um levou um cavalo,
outro, dez crianças, então tinha que ajudar, todo mundo ia com os
animais deles ajudavam a gente, carro não existia. Eu sei que nós
viemos assim, de madrugada, tinha aquela estrela grande, estrela
Dalva, né? Então nós começamos a cantar assim: “Adeus, ó terra.
Adeus, linda serra, da neve a brilhar. Adeus, aldeia, eu levo na
idéia um dia cá voltar”.
77
Para Orlandi (2005, p. 10) a formulação4 envolve o momento em que o sujeito diz o
que diz, porque os sentidos são como se constituem, como se formulam e como circulam (p.
12). É o que Corvina apresenta, no seu discurso, ao rememorar a partida de sua família de
Portugal, porque alia a metáfora de velório e a metáfora de festa, num movimento que destaca
o paradoxo da cena na (re)construção do discurso pela memória: dança, canto, choro.
Nos dois trechos anteriores de Julio e Corvina, alternam-se alegria e tristeza, risos e
lágrimas, uma forma de reiterar a dualidade de sentimentos daqueles que deixavam a terra de
origem em busca de lugares remotos e desconhecidos. Pode-se afirmar que a metáfora do
velório expressa-se por meio do choro, das velas, ao mesmo tempo que outra metáfora se
manifesta, a da situação como festa: violino, acordeão, flauta e a dança.
A reelaboração do discurso de Julio Dimov para a sua audiência no momento do
depoimento é super-dimensionada numa construção hiperbólica que engrandece ainda mais a
cena no que há de poético nela, quando diz: “Até se o Brasil fosse um pouco mais perto dava
para ouvir o desespero, as lágrimas que o povo perdeu. Por isso que a onda do mar
aumentou”. Essa reelaboração do discurso por parte do depoente resulta numa bela metáfora
do sofrimento, talvez porque, sabendo que falava para uma audiência específica, buscou
acentuar esse componente de seu depoimento.
Por abranger sentimentos e expectativas, além do conhecimento e da razão, o ato de
narrar pode ser um momento de compreensão das próprias experiências, nesse encontro entre
o tempo e o espaço do depoente e o de sua audiência (BRUNER, 1986).
3.3 As metáforas do namoro
Como observado anteriormente, a formação de um novo núcleo familiar, iniciado no
namoro, era acompanhado de perto pelos familiares, principalmente pelos pais da moça.
Observa-se a presença marcante das mulheres da família intervindo na vida dos filhos, na
proteção à filha em relação ao pretendente. Percebe-se o uso da metáfora da fiscalização
(CUIDADO DA FAMÍLIA É FISCALIZAÇÃO) no cuidado da família com os namoros das
filhas mulheres. Os membros da família exerciam o papel de fiscais, zelando para que
normas e valores fossem seguidos, mantendo, assim, a integridade da filha/neta/irmã. Nesse
sentido, o depoimento do imigrante iugoslavo Miguel é representativo.
4
A formulação é atualização, a textualização da memória. Eni ORLANDI, Discurso e Texto, p.16).
78
(...)Naquele tempo dançar (...) era realmente terrível, porque todas
as mães e avós vinham no clube, sentavam todas em volta e
fiscalizavam.
Aqui, as mulheres ficam literalmente ao redor dos jovens durante o ritual do namoro.
Elas exercem o papel do fiscal para garantir a integridade da moça.
Não só no namoro, mas também no noivado, a família mostrava-se presente, como
quando Antônio Laureano pediu a namorada em casamento.
Eu sei que quando eu fui pedir ela em casamento, veio meu pai,
minha mãe, eu nunca esqueço, meu sogro sentou ali, minha
senhora sentou aqui, minha sogra sentou aqui, meu pai e minha
mãe sentou aqui e eu sentei lá no fim. Não sentei perto dela não,
eles não permitiam.
Mais uma vez, a metáfora do cuidado da família como fiscalização está no discurso do
imigrante, ratificando a preocupação dos familiares na constituição de um novo núcleo familiar
iniciado no namoro/noivado.
Quando a presença física dos pais não é possível, a fiscalização é feita por outra
pessoa da família, um irmão, no caso da imigrante espanhola Maria Tereza.
(...) Meus pais eram muito tradicionais, não me deixavam sair
sozinha, tinha o meu irmão, então eu ia no cinema com meu irmão.
Nos momentos em que era permitido ao casal sair do âmbito familiar, um membro da
família da moça era encarregado de fiscalizar o namoro e zelar por ela.
Percebe-se também, que a força do discurso paterno nas relações de namoro,
interiorizado pelos jovens, como é o caso de Corvina.
[Quando eu fiz] 18 anos, meu pai me levou uma ‘lembrancinha’ e
falou assim: “Olha filha, vou te pedir um favor. Não namora muito
cedo, você tem que nos ajudar, você é a mais velha”. Eu falei
assim: “tá bom, pai. Não namoro até passar 20 anos, até os 22
anos”.
Mas, de modo geral, sempre havia alguém a postos para fiscalizar as moças da família
quando elas saíam de casa. Corvina só obteve autorização para ir ao casamento em que
conheceu o marido, quando a mãe da noiva responsabilizou-se por ela e pela irmã.
79
Fomos eu e a minha irmã. A nossa mãe nos deixou ir com a mãe
da que ia casar. (Ela) era responsável por nós duas. À noite, para
dormir, elas dormiam no chão, perto da nossa cama, nós
dormimos as duas numa cama de casal, elas dormiram ali, não
saíam dali, porque eram nossas responsáveis.
Quando Corvina começou a dançar com um rapaz na festa de casamento, a noiva logo
avisou que ele já estava noivo, comprando os móveis para casar.
Tinha um primo dessa moça, (...) ele começou a dançar muito
comigo. Aí a noiva falou assim para mim: “Corvina, ele está
comprando móveis já”
Ângela Dall´Anese, ao contar como eram os namoros na juventude faz a seguinte
afirmação: “A gente não namorava sozinha, sempre levava uma amiga”.
Mais uma vez, alguém que não era da família, nesse caso uma amiga, fazia o papel do
fiscal, comprovando quão comum era ter alguém por perto no momento do namoro.
Constata-se, então, que os amigos e conhecidos eram uma extensão da família no que
se tratava do cuidado e fiscalização dos jovens no momento do namoro.
3.4 As metáforas relacionadas à família
No que se refere à família, a metáfora FAMÍLIA É RAIZ aflora no depoimento de
Júlio Dimov, quando fala sobre a importância dada, em seu país de origem, aos ancestrais e à
história das famílias, no momento em que se escolhe o(a) futuro(a) esposo(a).
O nosso hábito, os búlgaros, eles respeitam muito as mulheres.
Um respeito fora de série. Quando os jovens se conhecem, passa
uma semana, um mês, dois meses, três meses, a menina convida o
rapaz que veio na casa dela para um almoço para se conhecer os
pais, depois o menino convida a menina na casa dele. Mas não é
só isso. Conhecer a raiz da família, se é um povo, aquela família.
Não é só no papel. (...)Lá era muito o hábito de o povo procurar a
família, até a quarta geração, para ver se não tem alguma coisa.
O uso da metáfora biológica FAMÍLIA É RAIZ poderia se explicar, talvez, por terem
vivido em uma sociedade essencialmente agrícola no país de origem. Talvez os familiares de
Júlio associassem a família a uma árvore. Os valores seguidos pelos membros da família
formavam a raiz desta família.
80
É possível concluir, então, que, naquela época, havia uma preocupação dos pais em
buscar pretendentes de famílias respeitáveis, para que o casamento gerasse bons filhos, assim
como uma árvore dá bons frutos, se a raiz é resistente e boa.
Observando o depoimento da imigrante húngara Erzsébet, outro aspecto da família é
revelado, o da proteção (FAMÍLIA É SEGURANÇA). Ao mesmo tempo, contrapõe o
imigrante como sem base (IMIGRANTE É SEM RAIZ). Duas metáforas freqüentes no grupo
desta pesquisa.
A gente acaba ficando assim, principalmente depois de muitos
lugares que você foi, não conseguiu se agarrar a nada, você acaba
sendo sem raiz, mesmo os meus filhos continuam sem raiz. Quem
vive dentro de uma redoma de família, dentro de um país, não
sabe que beleza que tem na mão, vocês têm tios, têm mães, têm
pais, têm conhecido, têm não sei quê, todos que numa hora de
dificuldade, um ou outro poderá dizer: “não, na minha fábrica tem
um lugar que você pode ir! Não, eu tenho esse dinheiro para
emprestar!”. Você como estrangeira não tem isso. Você vale por
você.
No discurso de Erzsébet a família é representada por um lugar, onde se está protegido
das dificuldades que possam surgir. Por ser imigrante, ter vivido em diversos lugares e não ter
se apegado a nenhum deles, Erzsébet afirma que não usufrui dessa proteção que a família
proporciona.
3.5 As metáforas sobre o Brasil e a imigração
Como constatado anteriormente, os imigrantes não tinham muitas certezas sobre o
lugar para o qual estavam indo quando deixavam o país de origem. Até mesmo os motivos
pelos quais imigraram são reelaborados no discurso, conferindo-lhes um aspecto místico,
cuja evidência são as metáforas conceituais analisadas a seguir.
Alguns imigrantes afirmam que vinham para a “América” e não para o Brasil e
associavam-na à pureza e à esperança de uma vida melhor. O relato de Lucas Martin é um
exemplo.
Eu não queria ir para a Europa, porque muito imigrantes,
inclusive da minha aldeia, imigraram para a Europa. Eu não sei,
tinha uma esperança da América. A América para nós, ela soava,
assim, como algo puro, algo de esperança.
81
Pode-se perceber o afloramento da metáfora AMÉRICA É ESPERANÇA. Como se
sabe, no início das grandes imigrações, agentes foram contratados para fazer propagandas
positivas sobre o Brasil e a América, com intuito de arregimentar mão de obra para a lavoura.
Mesmo vindo em um período posterior a esse, Lucas provavelmente reproduz o discurso do
imaginário daquela época, em que se esperava que a vida fosse melhor na América, com
emprego e condições de vida melhores.
Mas ao refletir sobre os motivos da imigração dos povos, o imigrante espanhol afirma
que o que impulsiona alguém a deixar o seu país para tentar uma vida nova em outro lugar é a
covardia, o medo de enfrentar os problemas que surgem. Aí, tem-se uma metáfora conceitual
inovadora, única nos discursos aqui analisados IMIGRAR É COVARDIA. Essa metáfora
contrapõe-se ao discurso do senso comum, em que, para imigrar, é preciso muita coragem.
A vida de um imigrante, as pessoas se enganam, dizem que nós
somos corajosos, não somos não, pelo contrário, nós somos
covardes, porque o que nós fizemos foi sair de uma situação ruim
e por ter medo abandonamos a família, os amigos. É medo que nos
empurra.
Outro depoimento, o da imigrante espanhola Maria Tereza reflete o imaginário
associado ao Brasil das riquezas e das oportunidades, disseminado na Europa durante as
grandes imigrações.
[O] Brasil era uma coisa assim virgem, mas com muita riqueza.
Aqui o ouro se encontrava na rua, pedras se encontravam na rua,
não precisava trabalhar muito, na época. (...).Não sei quem, de
onde saiu tudo isso e, não era só no Brasil não, foram pro Chile,
pro Paraguai, Colômbia, foi muito espanhol pra Colômbia
também, não é, veio mais pro Brasil, mas foram pra esse países
que se achava que tinha que se explorar, eram países bem
atrasados pra se explorar, pra poder enriquecer.
Gines, imigrante espanhol, também lembra da experiência de imigrar como um
momento de aventura.
Veio aquela moda de vir para a América, falavam da América, né?
O que atraia era o seguinte, uma parte, uma parte, é aventura, né?
De fanfarrão. Em 58, passava aquele filme sobre o Rio de Janeiro,
a Carmem Miranda fez um sucesso na Europa tão grande que
saiam o Pato Donald, o Zé Mexicano e a Carmem Miranda.
Cantava, fazia bossa e ela subia numa esteira e falava para o Pato
Donald: “Aonde nós vamos, Zé Carioca?” “Vamos para o Rio”.
Aí aparecia o Rio, lindo pra caramba. Então a turma começou,
né? Uns vieram por necessidade, e outros, meu pai não precisava
ter vindo, porque ele tava indo bem com o negócio, então, mas ele
82
era, ele, ele era aventureiro, falou “vamos e vamos”. Ele pos na
cabeça “vamos”.
Nos dois trechos anteriores, aflora a metáfora EMIGRAR É AVENTURAR-SE.
Outro ponto a se ressaltar é a idéia fantasiosa que faziam do Brasil, baseada nos filmes e nas
histórias que viam e ouviam sobre o país. Essas histórias são relatadas, também, por Corvina.
Quando nós estávamos lá na nossa terra, tinha um senhor que já
tinha estado no Brasil e falava para nós: “Olha, tem gente da cor
desse xale”. Xale é, sabe o que é? Renda, né? “Lá tem a mula sem
cabeça”, “tem cobra que te espera numa árvore”, assim que ele
falava.
No trecho a seguir, do relato do imigrante iugoslavo Miguel, percebe-se um aspecto
religioso do misticismo sobre a viagem (uma vontade divina), bem como sobre o Brasil (um
lugar místico, de salvação).
Minha mãe sempre dizia que Deus mandou ela para o Brasil (...) o
país que tem formato de uma cruz.(...) Minha mãe quis salvar o
filho dela e conseguiu.
Assim, dos três trechos anteriores, conclui-se que, para o imigrante, o BRASIL É
LUGAR DE FANTASIA, onde era possível aventurar-se em busca de novas esperanças ou
salvar-se dos perigos que a Europa oferecia.
Portanto observam-se, nos relatos individuais de memórias desses imigrantes que se
estabeleceram no ABC, metáforas que constroem uma memória coletiva sobre a imigração
no Brasil do período analisado, enfocando-se suas identidades, seus ritos, a visão da nova
terra.
Finalizando esta pesquisa, apresentam-se as contribuições e considerações finais,
levando em consideração a amostra de depoimentos analisada.
83
CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONTRIBUIÇÕES DA PESQUISA
Não há dados quantitativos acerca do número de imigrantes que se estabeleceram no
Grande ABC, porque muitos deles vinham primeiro para trabalhar na cidade de São Paulo e,
posteriormente, mudavam-se para alguma cidade da região. Não há, tampouco, estudos
referentes às culturas e identidades de imigrantes no ABC por meio da análise do discurso.
Estudar as manifestações culturais de indivíduos que vivem nessa região e de origens tão
diversas, portanto, é uma tarefa complexa.
Desta maneira, buscou-se, nesta pesquisa, investigar como a linguagem e as metáforas
configuram as identidades, os ritos e as cerimônias de imigrantes de diversas nacionalidades
que se estabeleceram no ABC, por meio da análise de suas narrativas orais de histórias de
vida.
A análise dos depoimentos evidenciou pontos em comum nas narrativas, como os
rituais da entrega do salário aos pais, do namoro e do pedido de casamento, da conivência dos
pais em relação às medidas disciplinares aplicadas aos filhos na escola e a mistificação da
idéia de Brasil e dos motivos da imigração –, bem como as metáforas – EMIGRAR É
MORRER, EMIGRAÇÃO É UMA FESTA, CUIDADO DA FAMÍLIA É FISCALIZAÇÃO,
FAMÍLIA É RAIZ, FAMÍLIA É UMA SEGURANÇA, AMÉRICA É ESPERANÇA,
IMIGRAR É COVARDIA, EMIGRAR É AVENTURAR-SE, BRASIL É LUGAR DE
FANTASIA – evidenciando a presença de uma memória coletiva da imigração na memória
individual e na interpretação do mundo desses imigrantes.
No campo das identidades, constatou-se o uso da metáfora do desenraizamento
(IMIGRANTE É SEM RAIZ), fruto das identidades fragmentadas, ratificada pelo uso de
expressões negativas ao se referirem às suas identidades. Nos discursos sobre o país de
acolhida, os relatos dos depoentes mostraram uma identificação com a nova terra, apesar do
orgulho da terra de origem permanecer, o que atesta a ambivalência identitária.
Assim, a união das memórias individuais de cada depoente pôde formar uma memória
coletiva relacionada à imigração e à adaptação à nova terra, o Brasil, especificamente ao ABC
Paulista. Por meio de sua cultura ancestral e dos valores e costumes encontrados na terra de
acolhida, ritos e cerimônias mesclaram-se e, dessa forma, esses imigrantes puderam adaptarse, educar seus descendentes, formando uma família, construindo sua história de vida e, ao
mesmo tempo, a do ABC.
84
Com o auxílio da metodologia da história oral, enriqueceu-se um patrimônio cultural
intangível e ressaltou-se a importância daqueles que contribuíram para a constituição de uma
identidade local, os mais velhos, cujas memórias devem ser registradas, permitindo
interpretações de acontecimentos vivenciados por eles – o processo migratório e a adaptação à
região do ABC.
85
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