Os romances campestres de George Sand revisitados
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Os romances campestres de George Sand revisitados
Os romances campestres de George Sand revisitados Mônica Cristina Corrêa* Resumo Este artigo propõe uma pequena análise de três romances de George Sand tidos como “romances campestres” e sua retomada a partir de traduções brasileiras em que vimos trabalhando desde 2006. Assim como tais romances se constituem num caso específico da obra sandiana, as traduções buscam recuperar seus aspectos mais relevantes, alguns dos quais são comentados aqui. Entre os que se destacam, estão os traços do Romantismo que se encontram em tais obras. Palavras-chave: Romance. Romantismo. Literatura francesa. Tradução. 1 Introdução “Sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e compreende se tornará, não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do ser humano” Tzvetan Todorov Ao comentar a discussão literária epistolar entre George Sand e Gustave Flaubert em torno da razão de ser da literatura (1875-1876), Tzvetan Todorov, numa de suas obras recentes, ressalta que o motivo central do desacordo entre os dois monumentais escritores franceses não se centra tanto no que se refere aos seus ideais, quanto na forma de expressá-los. Desse modo, Todorov reconhece que “uma mesma concepção de literatura continua a afirmar-se entre os dois correspondentes: esta permite melhor compreender a condição humana e transforma do interior do ser cada um de seus leitores” (TODOROV, 2007, p. 79-90). A preocupação de Todorov, em sua pequena obra La littérature en péril, é assinalar os problemas que a análise literária vem sofrendo, especialmente no que diz respeito ao seu ensino nas escolas. Para o estudioso, a literatura se tornou, nas últimas décadas, objeto de uma teorização sem * Doutora em Literatura Francesa pela Universidade de São Paulo, pesquisadora da FAPESP em nível de pós-doutorado, vinculada à USP e tradutora literária. (E-mail: [email protected]). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 53-61, jan./jun. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 53 grande conexão com o texto literário em si. Aprende-se, segundo crê, a “decompor” o texto em elementos supostamente reconhecíveis em conformidade com uma gama de dados tal ou qual, ou ainda perde-se tempo com análises que descartam os valores intrínsecos à própria leitura. Segundo afirma: Em regra geral, o leitor não profissional, hoje como ontem, lê as obras não para dominar melhor um método de leitura, nem para tirar delas informações sobre as sociedades em que foram criadas, mas para encontrar um sentido que lhe permita melhor compreender o homem e o mundo, para descobrir uma beleza que enriqueça sua existência; assim fazendo, ele entende melhor a si mesmo” (TODOROV, 2007, p. 24). Ora, o conteúdo do “alerta” de Todorov, que parte de uma reflexão baseada na experiência – como narra no início de seu livro – de orientar sua filha nos estudos literários quando esta frequentava o ensino médio, coincide com o ideário de George Sand no século XIX, e não é à toa que o autor foi a essa fonte, retomando a correspondência da escritora com o grande Flaubert. A atualidade dos críticos literários acabou, não raras vezes, por colocar em xeque a situação da própria literatura, tornando-a antes um objeto distante do sujeito, passível de recortes meramente eruditos e sem relação com a vida. Nesse cenário, não é surpreendente que George Sand tenha sido incluída, infelizmente, na lista dos autores negligenciados ou menos lidos e valorizados na era contemporânea. As razões que poderiam explicar tal fato são várias, mas o argumento de Todorov parece aplicar-se perfeitamente. A literatura passou por um processo de “complexificação”, tendo-se tornado objeto quase empírico e qualificado sob óticas pouco voltadas à obra em si. É natural que o teor de uma escritora do século XIX cujo escopo literário foi o de manifestamente escrever sobre a vida. Tenha sido posto de lado. Conforme explicita George Sand numa das cartas a Flaubert: “Quanto a mim, quero gravitar até meu último sopro, não com a certeza ou a exigência de encontrar alhures um bom lugar, mas porque meu único gozo é o de manter-me com os meus no caminho que sobe” (TODOROV, p. 84-85). Tal postura a escritora defendeu e expandiu em sua vasta literatura. 2 Os romances campestres Nesse contexto, são os romances ditos “campestres” de George Sand os mais subestimados. Considerados quase como “didáticos”, tais romances ficaram por longo tempo tachados como ”infanto-juvenis”, sem encontrar fortuna crítica adequada. São eles, segundo os cânones: La mare 54 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 53-61, jan./jun. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> au diable (1846), La Petite Fadette (1848) e François le Champi (1850). Alguns críticos incluem ainda Les maîtres sonneurs (1853), mas certamente os mais relevantes, ou que têm o maior número de traços em comum, são os três primeiros. No entanto, é nessas três obras que George Sand se propôs fazer um trabalho excepcional, transformando o prazeroso exercício literário na recuperação, em várias passagens, de uma tradição que já remontava, naquele tempo, ao medievo. Não se trata de construir romances “bucólicos”, como muitas vezes podem ter levado a crer certas interpretações rasas. Os romances ditos “campestres” o são na medida em que procuram retratar o camponês e os costumes da região de procedência da autora, o Berry, no coração da França. Todavia, são enredos que fazem brotar personagens de fina construção psicológica, transformando tais obras em algo mais universal, obras passíveis de análises mais profundas. No caso da Pequena Fadette, o mais célebre, aspectos do caráter feminino – e não feminista propriamente – são dignos de nota. Mais do que a aventura da moça de aparência feiosa na adolescência e de classe social inferior que atinge, pelo amor e pelo casamento, um status maior do que o previsto, está o ciúme doentio entre irmãos, o que leva o leitor atento às profundezas das mazelas humanas. Se no pano de fundo estão os camponeses rudes, os costumes imperiosos e as agruras da vida rural ditadas pelas intempéries e pelas estações, no centro da narrativa se forma o triângulo amoroso, a descoberta da mesquinhez e da astúcia humanas como é de esperar-se em qualquer bom romance. Trata-se também de reverter a exclusão: a personagem Fadette é rejeitada até conseguir inserir-se com dignidade nos meios sociais. A própria George Sand não passou ao largo dessas dificuldades, e é possível vislumbrar nisso elementos autobiográficos. Não há exatamente um final feliz para todos, já que um dos personagens nunca encontra solução para seus dilemas: há uma “acomodação” sempre questionável que deixa atrás de si uma história narrada como um conto, numa temporalidade que remete à oralidade, à narrativa de um “caso” contado ao pé do fogo numa noite invernal das campanhas. A própria temporalidade dos romances campestres de Sand parece desafiar o gênero romance: a interseção do relato oral – com suas hesitações e cortes e da lapidação literária – que resgata dialetos, linguagem rural, regionalismo, assinalados pelo estilo próprio à autora faz desses romances algo singular. La mare au diable vai tratar sobretudo da ascensão social pelo casamento – novamente o tema – e pela sobreposição do amor às questões financeiras, aspecto que diz respeito ao Romantismo. É a jovem Marie que desperta o amor de um patrão viúvo e mais velho e mais rico; a moça humilde, porém sábia, que encanta o homem feito no cenário do campo pantanoso que à noite parece enfeitiçar os ânimos. Talvez seja nessa obra que os aspectos hierárquicos da vida rural estejam mais marcados. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 53-61, jan./jun. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 55 É também nesse romance que a autora remonta às mais antigas tradições – já em extinção em seu tempo – do casamento típico das campanhas e à moda dos costumes medievos. Um raro trabalho quase etnográfico se encontra ao fim da obra, descrevendo as etapas das festividades nupciais já remotas nos oitocentos. Se a narrativa desse primeiro romance campestre de George Sand se pauta numa certa “simplicidade”, visando mostrar o homem do campo como ser ingênuo e afeito às tradições, seu ponto de partida é decerto um dos mais complexos: desafiar crenças arraigadas de que a vida do campo possa formar-se numa dicotomia reducionista entre o homem rude e incapaz de grandes arroubos sentimentais e ao mesmo tempo inserto numa realidade do locus amoenus. A velha oposição rousseauísta que tende a ver o homem próximo da natureza como mais feliz porque menos complexo do que o homem da cidade, arrastado pelas exigências da vida mundana e, portanto, menos feliz, vítima até de seu pretenso maior desenvolvimento psíquico e emocional. Em La mare au diable, tais oposições desaparecem, pois os personagens são apenas os campesinos (não há os homens da cidade interferindo), e tanto a complexidade quanto as dificuldades do mundo rural desses seres despontam a mostrar que não são o que parecem, como sugerem as avaliações incautas. De grande profundidade psicológica é o romance François le champi. Trata-se pois, de amor materno comutado em amor sensual entre uma mulher mais velha e seu filho adotivo, François. O tema desse romance, no qual também são apenas os camponeses os personagens, é sobretudo o da adoção por uma mulher de dezoito anos de um menino de cinco, abandonado e órfão, designado então “champi”. Com o passar do tempo, a moça, objeto de adoração daquele filho adotivo, livra-se de um marido alcoólatra que a maltrata. De fato, ela fica viúva quando o menino já se faz um vigoroso jovem, beirando os vinte anos. Tendo passado o fim da adolescência numa fazenda longe daquela de sua mãe adotiva, François retorna e as circunstâncias permitem que despose a moça que fez as vezes de sua mãe. Evidentemente, o tema suscitou escândalo à época, e não é de estranhar que ainda cause certo espanto. É notório, porém, o tom desenvolto com que Sand trata do assunto e o contextualiza no cenário campesino de outrora. Ela o faz sem perder a profundidade do tema; e nesse sentido o romance é atemporal, pois trata de uma matéria universal também. Se, por um lado, o ideário romântico é perceptível na dicotomia maniqueísta que divide os personagens em bons ou maus, com o encontro da plenitude pelos primeiros; por outro, a solução que visa dar ao menino órfão e à esposa infeliz uma promessa de futuro melhor traz um desfecho que dá margem, atualmente, à análise psicanalítica. Enfim, os romances campestres de George Sand, se têm componentes do Romantismo, prefiguram também o Realismo da cena rural e 56 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 53-61, jan./jun. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> avançam alguns temas revolucionários, refletindo a luta de classes que tanto afetaram a autora. Deles não está ausente um projeto específico, que a cada “notice” ou “avant-propos” Sand dá um pouco a conhecer. Conforme observa Reinhold R. Grimm em artigo consagrado a esse projeto de Sand, O ‘romance campestre’ é uma tentativa de transformação profunda do ‘romance bucólico’. Ele quer romper com a perspectiva ‘sentimental’, com a alegoria latente, mas, sobretudo, quer substituir a identificação fictícia por uma solidariedade concreta que George Sand nomeará ‘conversão’. (GRIMM, 1977, p. 66). Todas essas características tornam os romances campestres dignos de atualização crítica e fazem de sua leitura prazerosa uma oportunidade para visitar temas repletos de contemporaneidade. 3 Tradução e atualização crítica dos romances campestres sandianos Com o intuito de recuperar a fortuna crítica eventualmente negligenciada de George Sand, propusemo-nos a traduzir seus romances campestres no Brasil. De tal empreitada, começamos pelo mais célebre deles, A pequena Fadette (2007) e seguimos com La mare au diable, a ser lançado neste mês de maio, e continuamos com François le champi, previsto para 2011, todos pela Editora Barcarolla. Tal opção se baseia ainda no fato de esses romances encerrarem uma especificidade tanto temática quanto linguístico-vocabular. Dessa caracterização emana toda a problemática da tradução quando o objetivo é, justamente, ressalvar as referências culturais sem o apagamento de uma linguagem mais do que típica, uma linguagem autoral. Em prefácio à edição brasileira de A Pequena Fadette, a especialista Denise Brahimi anota: A Pequena Fadette beneficia-se dessa reflexão sobre a “linguagem campestre” que, longe de ser uma cópia da realidade, é de fato uma genial criação da autora George Sand. Está claro que o falar dos camponeses berrichons não está ausente, mas ela elabora a partir daí, consciente e voluntariamente, uma língua que possa escrever nos romances. O que ela diz a esse respeito no prefácio de François le Champi é completamente esclarecedor: é preciso inventar uma escrita tal como se estivéssemos ao nosso lado um parisiense e um camponês, eles seriam igualmente capazes de se compreender e apreciar. (BRAHIMI, 2006, p. 10). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 53-61, jan./jun. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 57 Conforme essa observação, percebe-se estar, de fato, diante de textos sui-generis, pois a linguagem que os veicula é uma miscelânea dos dialetos berrichons, repleta de arcaísmos, tudo lavrado na pena de Sand, que pretende ser compreendida por todos. Afora isso, as dificuldades advindas do tempo que passou largamente entre a tradução e o original faziam sempre correr o risco de resultar a versão em romances eruditos (o que não eram em sua época) ou de uma “pasteurização” que só remontasse ao “enredo” em si – coisa de que os romances sandianos já foram passíveis no Brasil, segundo constatou John Milton (2002), em seus estudos sobre traduções a partir do antigo “Clube do livro”–. Títulos de George Sand faziam parte da coleção, e suas obras também foram “pasteurizadas”, pois questões de estilo não prevaleciam: tratava-se de adaptar um enredo e fazê-lo para contentar uma determinada classe social, a média, nos idos anos 1970-1980. Entre os romances campestres de George Sand, A pequena Fadette foi o que melhor se prestou à homogeneização, sendo por muito tempo considerado como obra infanto-juvenil. Assim, procuramos traduzi-lo com outro olhar, não o incluindo em qualquer categoria fixa que fosse, mas com a preocupação de verter um romance cuja força estaria, em grande parte, no delicado trabalho de linguagem a que se propôs sua autora. O caminho por que optamos jamais se pretendeu definitivo, mas tentamos salvaguardar aspectos que ressaltassem uma linguagem diferencial, um tom próprio. Naturalmente, não poderia ser o mesmo da época sandiana nem de sua natureza, pois quem falaria em português um dialeto ou com uma especificidade de um berrichon em 1848? O principal problema já se colocava no título. O termo “fadette” é interpretado como um diminutivo francês de “fada”, o que faz sentido no interior do romance, pois a menina, personagem principal, é considerada uma espécie de feiticeira. Seu sobrenome é “Fadet” (daí o diminutivo “fadette”) – que tem também outra significação, a de “duende”, – restando ainda que a palavra sugere às vezes o gênero masculino de “fadette”. Surge ainda, ao lado desses termos, a palavra “folet”, relativamente ao que se chama de “fogo fátuo”, fenômeno natural nas campanhas e muito temido antigamente por parecer aos camponeses algo sobrenatural. Ora, num dado momento da obra, Sand lançará mão dessas palavras de forma encadeada e rimada, fazendo com que se destaquem seus sentidos duplos ou múltiplos para, enfim, caracterizar os mistérios em torno da Fadette. A solução que encontramos, para que não ocorresse um apagamento de tais referências, foi manter a palavra “fadette”, que em português também remete a fada, e criar rimas equivalentes para as demais. Sem pretender uma “nacionalização” das referências culturais da vida campestre francesa de outrora, buscamos correlatos, guardadas as devidas proporções, no vocabulário tipicamente brasileiro. Foi o que se deu com um termo largamente repetido no romance de Sand: “bessons”, 58 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 53-61, jan./jun. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> significando "gêmeos". Em desuso esse termo regional francês, procurarmos “imitá-lo” com a expressão "babaço", que é também regional, mas brasileira. O que de fato ocorre é que, se não se pode recuperar um termo de época e regional, é possível, ao menos, causar certo impacto com o uso de outro vocábulo com as mesmas características (regional e em desuso). Os exemplos se multiplicam ao longo da obra. E se diversificam nos demais romances campestres, já que Sand não os escreveu de maneira homogênea. Em François le champi, apresenta-se também um problema já no título, pois “champi” se refere a uma criança camponesa órfã e abandonada. A palavra vem carregada do tema que será tratado e não há, aparentemente, um correlato em português que dê conta dessa carga semântica. Qualquer que venha a ser a opção, implicará uma perda ou um acréscimo, na medida em que tenderá ou a privilegiar a menção à origem campesina do personagem ou sua condição de criança abandonada. É diante dessa tarefa que, ao nosso entender, deveria colocar-se um tradutor dos romances campestres de George Sand. Sem pretender chegar a soluções definitivas, essa postura do tradutor já propicia que a leitura dessa escritora do Romantismo se faça à luz de sua própria obra, sem desmerecer os valores que ela mesma enalteceu: os traços do homem do campo. Traduzir, ao contrário, apenas o fundo conteudístico dos romances campestres sandianos, como parece ter acontecido durante anos, é reduzir sua obra a textos quase didáticos, inserir-lhes uma função pedagógica que não têm. Nesse sentido, o próprio ideário romântico presente nos livros de George Sand se perde, pois que passam a ser vistos como pequenas obras de ficção, sem as premissas que de fato a autora expressou. Os três romances aqui mencionados trazem as lutas diárias do homem do campo também em sua divisão microcósmica da sociedade: o campesino já abastado e um tanto aburguesado frente àquele de menos posses. Nos três casos um elemento será fundamental para uma possível “subversão” dessa hierarquia velada mas real: o amor. É por amor que Landry, de classe mais alta, se casa com a pobre Fadette, por suas qualidades pessoais; é por amor que o “fino lavrador” (le fin laboureur) Germain se casa com a paupérrima Marie, espirituosa e sábia jovem; finalmente, também é por amor que Madeleine Blanchet adota e depois se apaixona pelo homem feito, François, o antigo “champi”, ou seja, o órfão abandonado nos campos. Em todos esses casos, um dos elementos que fazem notar a hierarquia entre os camponeses é a linguagem. Em François le Champi, é um aspecto sobremaneira notório, porque o menino mal sabe falar, e todos zombam dele como se fosse “ignorante”. Mas os “modos” e o linguajar tanto da pequena Fadette quanto da pequena Marie também denunciam seus míseros status quo. Do mesmo modo, e no caminho inverso, as narrativas darão a conhecer a “ascensão” desses três personagens menos privilegiados; e é também pelo aprimoramento de sua linguagem que tal ascensão se faz notar. Assim, tentando recuperar de algum modo as variações da linguagem empregada por Sand, sobretudo Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 53-61, jan./jun. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 59 quando se trata de discurso direto, acaba-se, de certo modo, preservando a densidade de seus romances campestres. Nessas obras ressaltam-se certas características do Romantismo. Visivelmente, está o amor como elemento principal, capaz de reduzir a cinzas as diferenças de classe. O sacrifício e as mudanças exigidas a cada um dos personagens constituem, pois, a própria matéria dos dramas. Nesse sentido, em George Sand pode ser apontada a força do Romantismo. Mas não é possível fazê-lo com o desprezo de suas ideias políticas, as quais ficam numa camada sublinear, mas se pronunciam e prenunciam uma literatura mais engajada. 4 Conclusão Naturalmente, o estudo dessa autora e de sua inusitada biografia levarão a concluir que George Sand não pode ser incluída de forma estanque em uma corrente literária. Suas mudanças seguem o curso de uma vida agitada por amores, afetos e lutas, que muitas vezes a colocaram à frente de seu tempo. A mulher a que o grande amigo Balzac chamou de a “leoa do Bérry” era grande anfitriã, e sua casa em Nohant, no centro da França, frequentada por celebridades, está hoje transformada em museu. As salas dos teatros de marionetes do filho Maurice, um piano ao lado da lareira na sala de jantar remetem aos tempos idos de saraus animados por Chopin e Litz, entre outros. As discussões literárias se fizeram com Flaubert, Balzac e tantos autores. Entre os pintores estava Delacroix. A lista é longa e faz pensar na excepcionalidade de Sand, que atraiu todos esses artistas; que se divorciou, teve filhos, netas, travestiu-se de homem, fez jornalismo, discutiu revoluções e arte e fumou charutos, sempre mantendo a identidade de pessoa singular. Nos escritos, as múltiplas faces dessa identidade se deram a conhecer. Os romances campestres sandianos são, evidentemente, o reflexo de um período da vida da autora e de uma vivência que revelou muito de sua intimidade com a natureza – outro traço romântico – mas longe estão de constituir a tônica de sua vasta obra. Mas eles têm uma ligação profunda com a biografia de Sand: sendo um projeto da autora, conforme ela explica em suas introduções, linguístico e literário, nascem da observação de uma terra marcadamente sua. Esse seria, pois, um traço visível do que apontava Todorov: do vínculo inextricável da literatura com a condição humana. E, nesse sentido, obedece ao projeto de vida que a autora descreveu ao seu amigo Flaubert: escrever até o último sopro não sobre um alhures, mas sobre o entorno e seu presente. Hoje, que tudo é passado, pode-se dizer que a promessa foi sabiamente cumprida. Seus romances campestres são, pois, uma “fatia” desse entorno mutante e dessa vida um tanto errante da autora. Mas é um recorte de riqueza inde60 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 53-61, jan./jun. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> lével e merece ser revisitado como obra peculiar ou como um passeio pelo movimento romântico ao som da música daquele que foi um dos grandes amores da escritora e que com ela viveu por nove anos, justamente em Nohant, Frédéric Chopin. Recebido em abril de 2010. Aprovado em abril de 2010. Countryside Novels by George Sand Revisited Abstract The purpose of this work is to undertake a brief analysis of three novels by George Sand called “country novels” revisited by some Brazilian translations on which I have been working since 2006. These novels are a specific facet of Sand's works and their translations are an attempt to recover their most relevant aspects, some of which are commented here. Traces of Romanticism can be found among the elements that stand out here. Key words: Novel. Romanticism. French literature. Translation. Referências BRAHIMI, Denise. Prefácio. In: SAND, George. A pequena Fadette. Tradução de Mônica Cristina Corrêa. São Paulo: Barcarolla, 2006. GRIMM, Reinhold. Les romans champêtres de George Sand: l'échec du renouvellement d'un genre littéraire. In: Romantisme, Université Lyon, v. 7, n. 16, p. 64-70, 1977. Disponível em: <http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/roman_00 48-8593_1977_num_7_16_5097 >. Acesso em 29 jan. 2010. MILTON, John. O clube do livro e a tradução. Campinas: Edusc, 2002. SAND, George. A pequena Fadette. Tradução de Mônica Cristina Corrêa. São Paulo: Barcarolla, 2006. TODOROV, Tzvetan. La littérature en péril. Paris: Flammarion, 2007. (Café Voltaire) Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 53-61, jan./jun. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 61
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