desta edição - Escola Paulista de Magistratura

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desta edição - Escola Paulista de Magistratura
E S C O L A PA U L I S TA D A M A G I S T R AT U R A
Órgão d o Tr i b u n a l d e J u s t i ç a d o E s t a d o d e
São Pau l o
convites para alguma
sumário
Diretor Desembargador Carlos A. Guimarães e Souza Júnior
Vice-diretor Desembargador Octávio Roberto Cruz Stucchi
leitura e boa reflexão
diálogos&debates
Diretores Des. Demóstenes M. Braga e Juiz Régis Rodrigues Bonvicino
Conselho editorial
Ministro Antonio Cezar Peluso, Ministro Helio Quaglia Barbosa, Prof.
Antonio Angarita, Dalmo do Vale Nogueira Filho, Prof. José Eduardo
Faria, Luiz Antonio G. Marrey (Proc. de Justiça), Hubert Alquéres
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo), Juiz Antonio Carlos Villen,
Dep. Sidney Beraldo e Arnaldo Madeira, Jaime de Castro Júnior
(Banco Nossa Caixa S/A), Luis Francisco da Silva Carvalho Filho
(advogado), Rolf Kuntz (jornalista)
Editor Carlos Costa
Editor de arte Ricardo Assis
Editor assistente Sérgio Praça
Colaboraram nesse número Henrique Kipper (ilustrações), José Batista de Carvalho
(revisão), Alexandre Pavan, Brígida Rodrigues, Carlos Eduardo Monteiro, Clóvis de
Barros Filho, Fábio Fujita, Felipe Lopes, Fernanda Mattos Cunha, Fernão Ketelhuth,
Gustavo Scatena, Humberto Dantas, João de Freitas, Marcello Simão Branco, Michele
Perusso, Patricia Moterani, Simone Diniz
Editoração eletrônica Negrito Design Editorial
Coordenação editorial César Lacerda
Projeto gráfico Ricardo Assis • Negrito Design Editorial
Arte Tomás Martins • Ana Paula Fujita
Jornalista responsável Carlos Roberto da Costa (reg. MTPS 11.862)
A economia em tempos de democracia
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Entrevista Dra. Lourdes Sola
Democracia participativa: um objetivo distante
12
por Humberto Dantas
Um lugar especial para o Brasil na ONU
16
por Marcello Simão Branco
A alegoria crítica de João Câmara
20
por Fernanda Mattos Cunha
O rosto que oferecemos – Ética e solidão
26
por Clóvis de Barros Filho e Felipe Lopes
Falta adrenalina no jornalismo de hoje
28
Entrevista Pedro Martinelli
Que justiça é essa?
38
por Fernão Ketelhuth
IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO
D E S Ã O PA U L O
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Núcleo de Projetos Institucionais: Vera Lucia Wey
A revista diálogos&debates é uma publicação trimestral da Escola Paulista da Magistratura, órgão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Números atrasados podem ser solicitados (de acordo com disponibilidade de estoque) à Assessoria de Imprensa, a/c de César Lacerda, Escola Paulista da Magistratura, Rua da Consolação, 1483,
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na Imprensa Oficial do Estado, Rua da Mooca 1921, São Paulo, SP.
Redação e Administração: Escola Paulista da Magistratura, Rua da Consolação 1483, 2o an-
Música: em boas mãos
43
por Alexandre Pavan
Banco Central: autonomia ou independência?
47
por Sérgio Praça
A blindagem do presidente do BC e as MPs
53
por Simone Diniz
Terra estrangeira: o fenômeno da imigração no
cinema
55
por Fábio Fujita
A relevância da Legislação Urbanística
61
Entrevista Dr. Vicente Amadei
dar, CEP 01310-100, São Paulo, SP, tel. 3256 6781, fax. 3258 5912. Envie seus comentários,
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diálogos&debates
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O BC e sua moldura jurídica
por Carlos Eduardo Monteiro
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N
o próximo 8 de maio completarão 60 anos do
final de Segunda Guerra Mundial, e é possível
imaginar o quanto os jornais, revistas e noticiários de televisão focalizarão as comemorações
da data. Seremos bombardeados por artigos e
reportagens de revisão e balanço histórico. Quanto mudou
no mundo deste então! Aniversários redondos são excelente ocasião para reflexões. Mas as revisões são necessárias mesmo sem datas redondas. E este número da revista
que você começa a ler agora é um forte convite a reflexões
sobre muitos temas do cenário atual.
Uma dessas reflexões é sobre o controle do Banco Central: responsável pela taxa de juros vigente no país, sua composição e estrutura têm recebido constantes críticas. Justamente por decidir por taxas altíssimas, tornou-se um ator
que rouba a cena. Para entender um pouco tudo isso, o jornalista Sérgio Praça escreveu um artigo de fundo sobre o
Banco Central: autonomia ou independência?
A condução da economia em tempos de democracia tem
de levar em conta outros fatores além do econômico, defende a cientista política Lourdes Sola, ex-exilada durante a ditadura, com doutorado em Oxford, professora da Universidade de São Paulo. Afinal, diz ela, “Não existe apenas um
modelo, e é preciso discutir isto. É estranho um país que arrecada 24% do PIB investir apenas 0,5% deste valor. O resto
vai tudo para pagar a dívida. Há algo errado aí”, alerta.
Para o controle e discussão desses temas, é preciso o
exercício de uma democracia participativa – e esse é ainda
um objetivo distante entre nós, como mostra outro cientista político, Humberto Dantas, coordenador do Curso de
Formação Política da Assembléia Legislativa de São Paulo. Ele aponta: a sociedade não acredita nos seus representantes, não enxerga os partidos e os políticos como portavozes do interesse comum e pouco se interessa pela administração dos negócios públicos. Como mudar esse pano-
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rama? A resposta é: mais educação, mais aprendizagem. E
mais engajamento.
Engajamento é o que nunca faltou ao fotógrafo Pedro
Martinelli. Repórter que acompanhou e registrou o contato
dos irmãos Villas-Bôas com os índios gigantes, os panarás,
em 1973, desde então Pedro escreveu um largo currículo de
realizações: um Prêmio Esso de Jornalismo, duas Olimpíadas, cinco Copas do Mundo, a cobertura da guerra entre Irã
e Iraque, a guerrilha na Nicarágua. Mas nada disso impediu
que hoje ele viva parte do ano num barco, vasculhando recantos do Amazonas para deixar um registro do que vê. E
ele retrata gente simples, cozinhando, buscando seu sustento, sobrevivendo. Na entrevista que começa na página 28,
Pedro fala de seu ofício, conta como foi ficar três anos na
mata, numa tarefa incerta, e lastima o empobrecimento do
jornalismo, hoje acomodado e sem buscar desafios.
Enfrentar desafios em terra estrangeira, essa é a saga de
muita gente nos tempos globalizados em que vivemos. Fazer a América é o sonho de muito latino-americano, como
tentar chances de vida nova no Primeiro Mundo europeu
é sonho de muito cidadão dos antigos países da Cortina de
Ferro ou de africanos, turcos, asiáticos. Em “Terra Estrangeira”, o repórter Fábio Fujita reúne uma dezena de filmes
que abordam as aventuras e desventuras dos imigrantes que
deixam suas raízes em busca de dias melhores.
Mas há outros textos de leitura e reflexão. A arte e as invenções do artista plástico João Câmara são destrinchados
pela repórter Fernanda Cunha. O juiz Dr. Vicente Amadei,
um expert no Estatuto das Cidades, defende a relevância da
legislação urbanística. O repórter Alexandre Pavan fala sobre uma geração de músicos de talento que livram a viola
do estigma marginal, conferindo-lhe status de instrumento
de salas de concerto. E o jornalista Marcello Simão Branco
aposta: haverá para o Brasil um assento especial no Conselho de Segurança da ONU? Boas leituras e até junho.
Carlos Costa
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a condução da
economia em tempos
de democracia
Não existe apenas um
modelo, e é preciso
discutir isso, diz a
cientista política: “É
estranho um país que
arrecada 24% do PIB,
investir apenas 0,5%
desse valor. O resto é
para pagar a dívida”
ENTREVISTA LOURDES SOLA
POR SÉRGIO PRAÇA E PATRÍCIA MOTERANI
P
rofessora do Departamento de Ciência Política da FFLCH da Universidade de São Paulo,
Lourdes Sola doutorou-se em Oxford com a
tese Idéias econômicas, decisões políticas (Edusp,
1998). Estudante que foi para o exílio em 1969,
por força da ditadura então em curso no país, fez mestrado
em economia no Chile, onde se refugiou por quatro anos e
meio. Passou a mesma quantidade de tempo na Inglaterra,
regressando em 1978. “Vivi o Chile de Salvador Allende e lá
aprendi como funciona uma democracia de verdade. Talvez
se eu tivesse vivido essa época no Brasil, não saberia descrever como funciona uma democracia de verdade, embora hoje vivamos em uma”, afirma. Além de lecionar, atuou
como consultora política para diversas instituições que estudam a condução da política econômica no Brasil. Nesta
conversa, a professora Sola aborda temas como a política
macroeconômica atualmente em curso, que erros o governo Lula está repetindo, os efeitos das privatizações – e de
quem acabou com a “era” Getúlio Vargas. A seguir alguns
trechos da conversa:
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E N T R E V I S TA
E N T R E V I S TA
FOTOS BRÍGIDA ROGRIDUES/BR IMAGENS
diálogos&debates Uma das afirmações mais repetidas nos
últimos tempos é que a política econômica vigente é inevitável. A senhora concorda?
lourdes sola Considerando a política econômica em geral, há certos aspectos que são inevitáveis mesmo. O Brasil,
como todas as democracias de mercado com economia em
vias de desenvolvimento, está mais exposto a ataques especulativos. A política econômica tem que ficar com um olho
no mercado internacional para ganhar credibilidade e com
o outro olho nas preferências do eleitorado. O que os eleitores querem? Eles apostam na democracia. Há muitos aspectos ligados a este regime: mais justiça social, mais desenvolvimento, mais bem-estar para a população. Também há
mais responsabilidades, porque a população tem o direito
de exigir um governo eficiente na saúde, na educação etc.
Isso implica gasto elevado. Sob este ponto de vista, atrair
apoio, credibilidade e investimentos internacionais é muito importante. Sem isso não há maneiras de atender essas
reivindicações da sociedade. São esses investimentos capitalistas que permitem a criação de um ciclo virtuoso.
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diálogos&debates
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diálogos&debates Entre as preferências do mercado e as do
eleitorado, quem tem mais poder de fogo quando o governo age?
lourdes sola Em 2002, vimos que é o mercado internacional.
Se o mercado aposta contra, independentemente dos argumentos e fundamentos que existem na economia, o que
acontece? O dólar sobe, a inflação se acelera. Eu não culpo
o mercado internacional exclusivamente. Todo o programa
anterior do PT havia sido tão radical... O José Dirceu assinou um manifesto contra o pagamento da dívida externa
dois anos antes da campanha. Quando falamos em investidores internacionais estamos considerando aqueles que investem em títulos da dívida pública brasileira no exterior.
A dívida pública não é apenas do milionário, é a poupança de todos do país. É o dinheiro da minha avó, da sua avó
e também das grandes empresas. Os administradores não
são santos. Eles podem fazer um ataque especulativo para
ganhar dinheiro em cima de dois pólos, do velhinho que investiu seu dinheiro e de nós que estamos aqui.
diálogos&debates A mudança do PT em relação ao mercado foi bem-vinda, então?
lourdes sola Em qualquer economia de mercado em desenvolvimento, é preciso governar com um olho aqui e outro
lá. O governo Lula teve que fazer o inevitável: mudar inteiramente em relação ao governo PT. A carta do PT assinada
em Recife, em dezembro de 2001, era completamente contrária a tudo que estamos vendo hoje. Quando já era óbvio
que o candidato Lula iria ganhar, o mercado não acreditava que fosse possível uma mudança como a que observamos hoje. O ataque especulativo de 2002 estava relacionado
a uma certa demagogia e com uma irresponsabilidade, sobretudo sabendo quem ia ganhar. Houve muita lucidez por
parte da cúpula do PT. Mesmo assim, a economia brasileira
pagou um preço por isso. Passamos um ano nos adaptando
a esse jogo de retomar a confiança do mercado.
diálogos&debates Quais aspectos específicos da política econômica estão abertos para o debate atualmente?
lourdes sola É importante que se criem cada vez mais instituições econômicas fortes. A principal é o Banco Central.
Não sei se eu sou favorável à independência ou autonomia.
A independência do Banco é um ato de delegação da classe política que amarra as próprias mãos e entrega a política monetária ao Banco Central. É possível que isso ocorra
em uma democracia, mas é fundamental que a classe pública discuta, delibere, e que a população esteja persuadida
da importância desse ato.
diálogos&debates Sobre o que a população já foi persuadida
em relação à condução econômica do país?
lourdes sola A grande conquista histórica do Brasil e da
América Latina foi a aposta que a população fez na estabilidade. Como conseqüência, os políticos deixaram de
ser populistas. O populismo, nos termos de gastança e de
transferir dívidas para os outros, deixou de garantir os votos de quem viveu os períodos de hiperinflação. Isso foi um
aprendizado lindo dos anos 80. Fernando Henrique Cardoso se elegeu com base em um plano de estabilização contado antes à população. Todos os candidatos da oposição,
especialmente o PT, achavam que o Plano Real era meramente eleitoreiro. E esse foi um grande erro do PT, porque
nunca antes um partido popular tinha sido contra um programa assim. Na campanha de 2002, todos os partidos disseram que a estabilidade seria mantida.
diálogos&debates A adoção do regime de metas de inflação em junho de 1999 foi uma maneira de garantir a estabilidade?
lourdes sola Sim. É fundamental que as metas existam, mas
há uma certa rigidez na elaboração delas. Um pouco mais
de flexibilidade talvez melhorasse a política econômica.
Para o mercado é ótimo que as taxas de juros estejam altas.
“O PT foi contra o Plano Real, tachando-o de eleitoreiro. Isso foi um grande
erro: nunca um partido popular tinha sido contra um programa assim”
Mas para os pequenos empresários, para você e para mim,
não. Isso reduz as chances de financiar um investimento,
que é o que gera maior crescimento. A estabilidade hoje virou um valor público. O BC tem que fazer com que essa estabilidade continue. Mas não existe apenas um modelo, e
é preciso discutir isso. É muito estranho um país que arrecada 24% do PIB, investir somente 0,5% desse valor. O restante é para pagar a dívida externa.
diálogos&debates A altíssima carga tributaria do país não é
outro assunto a ser discutido?
lourdes sola Quem se torna pessoa jurídica tem que pagar um imposto ainda maior do que já pagava antes porque, pela definição da Receita Federal, era alguém que estava evadindo. Mas isso não é verdade. Em vez de a Receita
criar mecanismos melhores para controlar a evasão, o que
se vê é um avanço que está deixando a classe media enforcada, sem mencionar as classes mais baixas. A Receita Federal não tem uma visão de conjunto e alguém tem que controlá-la. É o que em ciência política chamamos de accountability horizontal: instituições que controlam outras instituições. O que falta é discutir o desenho desse controle. A
qualidade da democracia tem muito a ver com os controles democráticos.
diálogos&debates Em 1994, a porcentagem da carga tributária em relação ao PIB era quase 24% e chegou a cerca de
35%. Quais foram as medidas tomadas por FHC para chegar a esse ponto?
lourdes sola Medidas erradas, iguais às que o governo federal está tomando agora. Um dos maiores problemas do
sistema político-econômico brasileiro é a reforma tributária. Uma reforma tributária ideal é aquela que desonera a
produção, facilita o investimento, garante o uso adequado
dos recursos para educação e saúde e eqüidade de contribuição – quem ganha mais paga mais. Mas para isso é necessário ajeitar um conjunto de interesses que dependem
da aprovação da agenda no Congresso. Até agora, uma boa
reforma tributária não saiu porque depende da aprovação
de vários pontos que afetam múltiplos interesses, até mesmo do próprio Legislativo.
diálogos&debates Como é possível escapar dessa situação?
lourdes sola A única maneira que o Plano Real conseguiu
foi negociar com o Congresso o Fundo Social de Emergência. Com ele, o Legislativo permitiu que o governo federal
deixasse de transferir 3% da arrecadação para as unidades
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diálogos&debates
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“Em vez de criar mecanismos
melhores para controlar a evasão,
a Receita Federal avança e deixa a
classe média enforcada”
subnacionais, o que era uma certa folga fiscal para iniciar o
plano. À medida que vinham choques externos e o governo
precisava resolver ajustes fiscais, o Executivo fez uma gambiarra. Aumentou contribuições relativas, como a CPMF
(Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira),
para evitar as transferências destinadas a Estados e Municípios, pois quando se aumentam impostos uma proporção
vai para as unidades subnacionais. E o governo atual faz o
mesmo, apenas em uma escala mais voraz.
diálogos&debates Seria correto afirmar que na época de Pedro Malan e de Luiz Carlos Mendonça de Barros o debate se travava entre monetaristas e desenvolvimentistas, e os
monetaristas ganharam?
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diálogos&debates
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lourdes sola Não. No governo FHC havia diferenças entre
esses dois grupos, mas eles tinham algo em comum: a concordância em abrir o país. Eles correram os riscos de abrir
o mercado para uma integração internacional. Os empresários se reestruturaram e isso foi uma grande mudança estrutural para o país. Impossível teria sido implementar essas mudanças com orientações distintas em relação à política econômica. Os “monetaristas” e “desenvolvimentistas”
concordavam ainda sobre a lei de responsabilidade fiscal,
privatizações, regime de metas de inflação e a tendência geral pró-estabilidade.
nas de um Estado intervencionista, mas também do governo como grande investidor. Quando FHC assumiu, já havia
ficado claro ao longo dos anos 80 que o Estado não tinha
mais recursos para satisfazer o ímpeto de investimento na
escala inicial e, ao mesmo tempo, atender as demandas que
estavam nascendo com a democracia. Era necessário mesmo liberalizar. Mas não podemos esquecer que o governo Vargas usou o nacionalismo como um argumento a seu
favor. Naquele período também nasceram novos partidos
brasileiros, como o PTB e o PSB, de cima para baixo. Se isso
é bom ou não, depende das suas convicções.
diálogos&debates Em um trecho da sua tese a senhora afirma que houve um contraste entre as intenções e os resultados da política econômica entre 1961 e 1963. Esse contraste não ocorre sempre?
lourdes sola O contraste é sempre um risco das políticas
públicas, como é também na vida privada. Quando escrevi isso, eu estava criticando os economistas, ou querendo
colocar os outros riscos sociais em debate. O economista é
uma espécie de engenheiro. Diz se um pacote de medidas
está equivocado. Isso pressupõe que ele tem algumas alternativas a sugerir. Quando um analista social olha as políticas públicas, tem a obrigação de analisar as razões de todo
o processo para poder fazer uma análise mais completa. Eu
estava criticando a idéia de dizer “sou capaz de apresentar
um resultado melhor se você seguir minhas idéias”. Todo
projeto de política pública contém um alto risco de o resultado final ser diferente. Um bom estrategista é aquele que
monta vários cenários. No governo Castello Branco, os resultados foram bem diferentes daqueles que se imaginava.
Ele era muito mais “liberalizante” do que aquilo que produziu. O golpe dele era circunscrito, mas ninguém sabe direito
como foi a negociação durante seu governo.
diálogos&debates A condução da política econômica na
época de Vargas diferia muito da condução atual?
lourdes sola Na época de democracias de massas não é possível o tipo de política econômica que foi feita durante as
ditaduras brasileiras. Durante o governo ditatorial de Vargas, a política econômica privilegiava os investidores com
juros negativos e outras medidas. Então o Estado estimulava os investimentos. Na época em que a massa vota, a população quer saber para onde vão os recursos. Dificilmente é possível dirigir de maneira privilegiada o dinheiro do
Estado para determinados setores. E a política de Vargas,
como também a de Ernesto Geisel, foi escolher os grupos
vencedores. Já FHC disse aos empresários que eles tinham
que se reestruturar para continuarem a ter privilégios do
governo. Pessoalmente, acho isso algo muito mais democrático como programa. Mas não é verdade que reduziu o
tamanho do Estado.
diálogos&debates Em um de seus primeiros discursos como
presidente, FHC afirmou que seu governo acabaria com a
“era Vargas”. Isso de fato aconteceu?
lourdes sola Sim, pois a era Vargas foi uma era de corporativismo. As principais organizações da sociedade, como os
sindicatos e as empresas, eram mantidas sob controle estatal. Foi criada uma estrutura que conferia ao Estado uma
grande margem de intervenção. A concepção era não ape-
diálogos&debates Sua opinião a respeito do processo de privatizações é positiva?
lourdes sola Sim. Para mim, o melhor exemplo é a privatização das telecomunicações. Nunca vou esquecer de uma
cena que a Rede Globo transmitiu de uma manifestação
contra as privatizações. Os participantes da passeata, em sua
maioria, tinham celulares. Por que eles foram capazes de adquirir um aparelho? Graças à privatização. Quando cheguei
do exílio, eu tive que juntar dinheiro, com a ajuda do meu
pai, para depois esperar por seis meses uma linha telefônica
da Telesp. Paguei uma parte, financiei o restante e então esperei. Enquanto isso, minha mãe morava na casa em frente
com telefone. Quando havia alguma ligação para mim ela
“Todo projeto de política pública contém um alto risco de o final ser
diferente. Um bom estrategista é aquele que monta vários cenários”
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diálogos&debates
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“Universidade não é local para fazer assistência, distribuir cotas.
Universidade é o lugar onde se deve cobrar o aluno, exigir, ensinar”
colocava um lenço vermelho na janela. Hoje, minha empregada tem telefone no quarto e celular. Isso tudo é um ótimo
efeito das privatizações e do fim da era de Getúlio.
diálogos&debates A senhora enxerga no governo federal
uma volta ao controle de estilo getulista?
lourdes sola Vargas foi importante, mas também muito autoritário. O Estado controlava toda a sociedade. Em uma
democracia de massas, a sociedade não é facilmente controlada. Tanto não é regulável que, quando o governo tentou
criar o Conselho Federal de Jornalismo e a Ancinav, a maioria da população vociferou contra. Com exceção da turma
sindicalizada, que propôs o conselho, a idéia foi rejeitada da
mais alta cúpula jornalística até os repórteres.
diálogos&debates Qual sua opinião em relação à reforma
universitária proposta pelo ministro Tarso Genro?
lourdes sola A reforma proposta limita a autônima universitária que deveria ser conquistada pelas universidades federais. A USP criou autonomia na época do reitor José Goldemberg. Isso significou que tínhamos uma percentagem
do ICMS (Imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços) que era repassada à universidade. Frearam-se os gastos. Uma série de privilégios, como o uso de
telefones públicos, teve fim. Nas universidades federais há
pessoas de nível excepcional e outras que eu não aceitaria
como meu aluno de mestrado. Só se introduz responsabilidade se der autonomia, porque quem vai decidir sobre os
rumos da universidade, com alguma participação de alunos,
funcionários e professores, são aqueles que de fato querem
produzir conhecimento e empregos nas áreas técnicas.
diálogos&debates A reforma não procura equalizar as oportunidades de ensino para as diferentes classes sociais?
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lourdes sola Em nome da igualdade está sendo cerceada a
capacidade da universidade federal de se estruturar para
criar seus próprios critérios de formação. Há um grau de
intervencionismo e preconceito contra a universidade privada que é péssimo. Existem algumas que são verdadeiros
caça-níqueis, mas outras são excelentes. Obviamente sou
a favor da não-discriminação política de negros, índios e
outras classes que reivindicam seus direitos, mas é preciso
que esse pessoal seja formado desde o secundário para entrar na universidade ou então o nível de ensino universitário cai. Aí os bons alunos abandonarão as instituições públicas. Sob a aparência igualitária, cria-se um abismo. Em
vez de aproximar as classes, isso as distancia. Essa proposta de reforma cria uma verdadeira subversão em relação às
conquistas recentes do ensino superior no Brasil. Universidade não é local para se fazer assistência. Universidade é
onde se deve cobrar do aluno, exigir, ensinar.
diálogos&debates A senhora se refere especificamente às cotas para alunos negros?
lourdes sola Eu acho um escândalo a idéia de facilitar sua
vida porque sua cor é diferente da minha. Fico muito chateada quando sinto algum preconceito pelo fato de ser mulher. Batalhei para estar onde estou e esse tipo de preconceito rebaixa meus esforços. Nasci no Brás e sou filha de imigrantes pobres. Na minha época a universidade era muito
mais elitista do que é hoje. Nem imigrante rico entrava fácil
na universidade. Sou favorável à afirmação positiva, mas ela
tem que ser acompanhada por uma construção de andaimes institucionais para facilitar o progresso daqueles que
são incorporados. Um dos recentes discursos do presidente Lula me preocupou muito. Ele disse que o rico não quer
ver o pobre na universidade. Isso é um absurdo e acirra uma
luta de classes que já está bem diminuída hoje. 
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democracia participativa:
um objetivo distante
A sociedade não acredita nos seus
representantes, não enxerga os partidos
e políticos como porta-vozes do interesse
comum e pouco se interessa pela
administração dos negócios públicos.
Como mudar esse panorama?
A
Ilustração Kipper
participação da sociedade nas escolhas relacionadas à administração pública, após as experiências históricas de gregos e romanos, se fortaleceu outra vez ao longo do século XVIII. A Filosofia Política reserva especial capítulo em suas
páginas à discussão em torno da escolha de representantes
em eleições indiretas, e mais adiante em pleitos diretos. O
que estava em pauta naquele momento era a construção de
um modelo de democracia representativa capaz de refletir
os desejos da sociedade em relação aos indivíduos que mais
bem reproduzissem os anseios coletivos.
A despeito da importância de os homens conquistarem
o direito de escolher, a teoria não deixou de contemplar a
necessidade fundamental de os cidadãos necessitarem de
educação, informação e clareza para promover tal opção.
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C I D A D A N I A
C I D A D A N I A
POR HUMBERTO DANTAS
Num primeiro momento defendeu-se a distinção entre os
eleitores. Ao voto daqueles dotados de mais conhecimento
– medido, por exemplo, pelo acesso aos diferentes graus de
formação escolar – deveria ser conferido um peso maior
que o destinado aos indivíduos ignorantes, mais suscetíveis
às paixões políticas e menos entregues à razão.
Com a concretização do princípio de que todos têm o
mesmo valor na sociedade, a educação perdeu sua capacidade de determinar ponderações. Dessa forma, para que
uma nação garantisse resultados eleitorais consistentes, e
não ficasse à mercê das vontades apaixonadas de eleitores ludibriados por candidatos descompromissados com
o dever público, o Estado deveria investir na informação
e conscientização de todos. De acordo com omas Jefferson, educar é a maior garantia de liberdade e afastamento
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diálogos&debates
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das possibilidades de corrupção – é o diferencial capaz de
manter o poder nas mãos do povo. A discussão acerca da
democracia sustenta-se então sobre dois pilares básicos: a
ampla participação dos indivíduos nas escolhas de representantes e a necessidade de educar para que tais escolhas
sejam as melhores possíveis.
segundo grupo é o que menos interessa aos governantes
– responsáveis pela determinação das políticas de educação. Nesse sentido, a situação lembra muito a velha fábula
da raposa que é colocada como guardiã do galinheiro. E o
resultado é bastante conhecido: ausência de educação política nas escolas.
Os dois tipos de cidadão
A participação da sociedade
Quando olhamos para o século XX, notamos um granCom o intuito de combater o desinteresse dos cidadãos
de esforço no sentido de garantir a construção do primeiro pelos assuntos públicos e a inércia educacional dos goverpilar. A inclusão das mulheres nos processos eleitorais, a ex- nantes, algumas organizações da sociedade civil têm amtensão do sufrágio às mais diferentes parcelas da sociedade, pliado seus esforços para despertar o desejo dos indivíduos
a ampliação das mais diversas liberdades – de imprensa, de pela política. Uma primeira tentativa é buscar medir o grau
expressão, de associação, de oposição, de busca por apoio de envolvimento da sociedade em assuntos coletivos. Não
etc. Mas onde está a educação? Um esquema eficaz de dis- são poucas as pesquisas que caminham nesse sentido.
seminação de informação às massas
Na América Latina, a Organizae de compreensão da importância da
ção das Nações Unidas realizou espolítica em nossa vida não foi constudo onde mostrou que varia signifiA sociedade ainda está
truído como previa a teoria. A democativamente a sensação dos cidadãos
descrente dos mecanismos em relação à democracia – e o Bracracia, ou o que se convencionou chamar dessa forma, desenvolveu-se desil ficou em último lugar. Outra pesdisponíveis para a
sequilibradamente.
quisa conhecida é o Latinobarômeparticipação. Os canais
Dessa forma, adentramos o século
tro, e nela também ocupamos posiXXI sob o reflexo de uma luz indigessão abertos, mas a parcela ções pouco honrosas. Alguns outros
ta: a sociedade não acredita nos seus
exemplos que demonstram o disdos
que
se
apropriam
dos
representantes, não enxerga os partitanciamento do brasileiro em relados e políticos como os verdadeiros
benefícios ainda é pequena. ção à política ainda podem ser citaporta-vozes do interesse comum e
dos: o Índice de Participação, criado
A resposta ao problema é
pouco se interessa pela administrapor Dantas e Martins Jr., apresentação dos negócios públicos. Inúmedo na última edição da revista Opisimples: falta educação
ras pesquisas comprovam esse afasnião Pública, da Unicamp; as pesquitamento.
sas da Ordem dos Advogados do BraComo alternativa, amplamente discutida na Ciência Po- sil sobre confiança nos representantes; os levantamentos da
lítica por autores relevantes como Norberto Bobbio e Ro- Fundação Perseu Abramo a respeito do interesse dos jobert Dahl, emerge a necessidade de participação em mo- vens pela política; a enquete do Instituto Ágora que mede
mentos que transcendam o voto. A democracia represen- o conhecimento dos professores do ensino médio sobre as
tativa é contornada pelo fio dourado do envolvimento, nas- funções do Poder Legislativo; os índices de corrupção da
cendo o que se convencionou chamar de democracia parti- Transparência Internacional; os resultados do Estudo Eleicipativa. A despeito da importância dessa aproximação, ou toral Brasileiro de 2002; e as pesquisas do Departamento
horizontalização do poder, a sociedade ainda está descren- de Ciência Política da USP sob coordenação da professora
te dos mecanismos disponíveis. Os canais são abertos, mas Maria D´Alva Kinzo.
a parcela de indivíduos que se apropria de seus benefícios
ainda é muito pequena. A resposta ao problema é simples: A mais nova pesquisa
falta educação, o que parece não ocorrer por total desinteO mais recente esforço nesse sentido foi alcançado no firesse dos governantes.
nal de 2004. A pesquisa tinha por intuito calcular um índice
John Stuart Mill defendia a existência de dois tipos de ci- de participação cidadã que medisse o envolvimento de podadão: os passivos e os ativos. De acordo com o autor, esse vos de sete países latino-americanos em ações de interesse
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social. A idealizadora da pesquisa foi a organização Parti- verso ocorre em relação às ações esportivas, ou seja, quancipa, sediada no Chile. A metodologia foi desenvolvida em to mais jovem o indivíduo entrevistado, maior a chance de
parceria com a empresa Admimak e a Rede Interamericana participação nesse quesito. Por último, no que diz respeito à
pela Democracia – organismo composto por inúmeras or- classe econômica, o envolvimento aumenta de acordo com
ganizações não governamentais. Em cada uma das nações o poder aquisitivo. Isso indica que quanto mais recursos o
estudadas – Brasil, Argentina, Chile, México, Peru, Costa indivíduo tem, maior a sua chance de atuar em questões de
Rica e República Dominicana – foram escolhidas uma or- interesse comum. Cabe ressaltar, nessa situação, que existe
ganização do terceiro setor e uma empresa de pesquisa de uma relação direta entre renda e escolaridade, e o indivímercado para a aplicação dos questionários. No Brasil, o duo com mais recursos no Brasil é, normalmente, o sujeito
Movimento Voto Consciente, em parceria com a Frances- que estudou uma quantidade maior de anos.
chini e Associados, foram as instituições selecionadas.
Apesar de os brasileiros participarem pouco, os entrevisEntre julho e agosto de 2004 foram ouvidas, por telefo- tados acreditam que esse tipo de atuação tem relação direta
ne, 1.006 pessoas em seis capitais – São Paulo, Rio de Janei- com questões altruístas. Cerca de metade dos respondenro, Recife, Porto Alegre, Goiânia e Belém. Os entrevistados tes entende que o principal motivo que leva alguém a parforam indagados acerca de seus envolvimentos em ques- ticipar é o “desejo de ajudar”. Em contrapartida, menos de
tões como atividades de âmbito poum quinto dos cidadãos ouvidos crelítico; organizações de bairro; assodita à participação o poder de “alteciações profissionais; atividades de
rar a realidade”, o que significaria um
Pesquisa do IBGE sobre
apoio à educação; atividades artíscomportamento mais ativo. Quando
o terceiro setor mostrou
ticas ou culturais não remuneradas;
a pesquisa aborda a “não participamanifestações em locais públicos; asum crescimento significativo ção”, cerca de 40% dos entrevistados
sociação a organizações da sociedaapontam falta de tempo, ou ainda auno número de organizações, sência de desejo – nesse caso a resde civil (ONG); atividades de âmbito
religioso; atividades esportivas; e enposta é extremamente preocupante e
na quantidade de
volvimento com questões caritativas
demonstra a falta de interesse do braprofissionais
envolvidos,
no
em forma de voluntariado. Lamentasileiro em organizar-se em torno de
velmente, em comparação aos demais
contingente de voluntários questões de interesse público.
países analisados, o Brasil ocupou a
Apesar do quadro negativo revelae na complexidade das
última colocação em um indicador
do pela pesquisa do Movimento Voto
especialmente criado pela organizaConsciente, o IBGE divulgou nos úlcausas defendidas
ção do projeto.
timos dias de 2004 um levantamento
Apesar dessa posição, preocupante
a respeito do terceiro setor no Brasil.
sob todos os aspectos, a situação é alarmante no continente A pesquisa mostrou um crescimento significativo: no núcomo um todo. Isso porque a pontuação que poderia variar
mero de organizações, na quantidade de profissionais rede 0 a 20 pontos registrou uma média de 2,5 para a América
munerados envolvidos nas ações, no contingente de volunLatina. A primeira colocada, República Dominicana, atin- tários e na complexidade das causas defendidas. Tais resulgiu ínfimos 3,4 pontos e o Brasil ficou com a metade: 1,7.
tados servem como contraponto aos dados mais pessimistas, mas certamente ainda estamos distantes de uma particiO índice no Brasil
pação consistente. Em 2005, o Movimento Voto Consciente
Em termos regionais, a cidade que apresentou os melho- repetirá a pesquisa, mas mudanças significativas só ocorreres resultados foi Goiânia, e a pior foi o Rio de Janeiro. No rão a partir do momento em que o Estado se responsabilique diz respeito ao gênero, os homens participam mais que zar pela conscientização da sociedade por meio de polítias mulheres em todos os âmbitos analisados, menos em or- cas eficazes de educação. 
ganizações religiosas e reuniões escolares – nesse caso, se
destaca o papel das mães. Em relação às faixas etárias, exis- Humberto Dantas é cientista político, conselheiro do Movimento Voto Conste uma relação direta entre idade e participação em ativida- ciente, professor do Centro Universitário São Camilo e coordenador do Curso
des caritativas que envolvem voluntariado. O fenômeno in- de Formação Política da Assembléia Legislativa de São Paulo.
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nas reformas da onu,
haverá lugar especial
para o brasil?
A mais importante
instituição internacional
chega aos 60 anos em meio
a profunda crise e acenos
de reformas. Nesse contexto,
o governo Lula pleiteia um
assento permanente no
Conselho de Segurança
POR MARCELLO SIMÃO BRANCO
M
aior e mais ambiciosa entidade internacional já criada, a Organização das Nações Unidas (ONU) chega aos 60 anos em 2005 sem
grandes motivos para festejar. A organização
vive hoje profunda crise de identidade, especialmente após as decisões unilaterais dos Estados Unidos
em 2003, ao invadir o Iraque à revelia de suas decisões. De
quebra, também enfrenta dificuldades administrativas e burocráticas, além de um escândalo de corrupção sem precedentes em sua história.
A esse conjunto de fatores que tiram o sono do secretário-geral Kofi Annan se junta um profundo conjunto de reformas, tanto para redefinir o papel do organismo, quanto
para viabilizá-lo do ponto de vista orçamentário e gerencial. E entre essas reformas pensadas, prometidas, mas de
difícil execução, o Brasil aparece como um dos novos candidatos a membro permanente do Conselho de Segurança
da organização.
Uma contextualização histórica e geopolítica
Criada, como se disse, ao fim da Segunda Guerra Mundial para ser um fórum de deliberação política e de deci-
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sões diplomáticas com foro legal, o principal objetivo da
ONU era evitar que o mundo voltasse à possibilidade de
um novo conflito bélico de alcance mundial, além de tentar impedir que novos eventos genocidas ocorressem, como
os do holocausto promovido pelos nazistas. Um pacto de
segurança e limites à barbárie mais do que aspirações idealistas de alguns políticos e intelectuais – à feição dos versos de Tennysson, “O Parlamento do Homem, a Federação
do Mundo” –, de transformar gradativamente a entidade
numa espécie de governo mundial – uma acusação, aliás,
sempre repetida por um discurso ideológico mais à direita,
mas sem fundamento concreto.
A começar pela inclusão no órgão de países com ideologias e regimes políticos diferentes, como democracias e
ditaduras de esquerda e de direita. Espelho cristalino desse mosaico de realismo político é a própria conformação
da entidade decisória máxima, o Conselho de Segurança,
composto não só pelas democracias liberais que venceram
o III Reich, mas também por regimes totalitários de esquerda que combateram o mesmo mal.
É de se questionar até que ponto essa configuração de
forças foi bem-sucedida nos tempos sombrios da Guerra
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Fria (1945-1991), em que a eclosão de uma nova guerra organização política com esse perfil, ou seja, a corrupção.
mundial foi evitada mais pelo equilíbrio do terror nuclear
Investigam-se no momento as supostas fraudes do prodo que devido aos esforços da ONU. Por esse período his- grama Petróleo por Alimentos, que a ONU administrava no
tórico, sobretudo a partir de meados dos anos 50, a insti- Iraque ainda sob o regime de Saddan Hussein. Kofi Annan
tuição deixou o protagonismo da manutenção da paz in- e seu filho, Kojo, são acusados de lucros ilícitos por meio
ternacional para se concentrar na inclusão generalizada de de negociações com empresas internacionais contratadas
qualquer país que dela quisesse participar, especialmente os para operar o programa no Iraque. A licitação suspeita tedescolonizados da África e Ásia.
ria permitido até que Kojo arrumasse um emprego numa
Assim é que a pauta de prioridades passou a ser o de- dessas firmas e o rombo chegaria a algo como US$ 10 bisenvolvimento socioeconômico e foram criadas dezenas lhões. Os processos acontecem em cinco investigações parde agências complementares para eslamentares e três da justiça federal dos
truturar esses programas, inchando a
Estados Unidos. Enquanto isso, Annan
organização. Mas é possível dizer que
se defende com evasivas que pouco ajuKofi Annan e seu filho
ao menos parte das políticas públicas
dam a melhorar sua situação junto aos
são acusados de
criadas por essas agências trouxe beneinvestigadores, bem como sua imagem
fícios efetivos, pelo menos a uma certa
para os críticos da organização.
lucros ilícitos por meio
normatização de ações para seus paíE se isso não fosse o bastante, há o
de
negociações
com
ses-membros, como na área de combaproblema sério e recorrente das chate a doenças, miséria e a defesa dos diempresas internacionais madas “intervenções humanitárias”. E
reitos humanos.
talvez seja o problema maior, pois
contratadas para operar o esse
Isso sem deixar de mencionar o cadesde 1945 mais pessoas morreram víprograma no Iraque
ráter de engenharia institucional que a
timas da opressão, guerra civil e massaentidade edificou, especialmente depois
cres dentro dos seus próprios Estados
do fim da Guerra Fria. Políticas de indo que em guerras entre países. Sempre
tervenções militares com caráter humanitário – que já exis- fica a pergunta de resposta difícil: “Quando a ONU tem o
tiam e foram ampliadas –, e também do mandato para ad- direito de intervir?”
ministrar países em formação, reconstruir nações arrasadas,
Nem é preciso voltar muito no tempo. O mundo assistiu
supervisionar eleições e criar tribunais para julgar crimes nos anos 90 aos massacres de Ruanda e Kossovo e o quanto
de guerra. Talvez se a ONU se reestruturasse dentro desses custou em vidas humanas (800 mil só na África), além da
parâmetros sociais e de insumo institucional, digamos as- hesitação e falta de liderança da organização. A mesma que
sim, poderia redescobrir uma vocação mais condizente com se vê atualmente nos massacres que acontecem na região
os tempos atuais da política internacional, em que os Esta- de Darfur, no Sudão. Ironicamente, são os Estados Unidos
dos Unidos, com sua visão unilateralista, deixa pouco espa- quem mais tem alertado a ONU para a urgência de uma
ço para um papel mais importante à entidade.
ação militar no país do norte da África. Nesse panorama, a
Mas os problemas não são apenas geopolíticos. Eleito ONU tem sido incapaz de dar respostas às mazelas da deem 1996 como o primeiro funcionário de carreira da en- sordem mundial – e isso se tornou mais explícito depois de
tidade, o ganense Kofi Annan propôs já em 1997 um am- 11 de setembro de 2001. “O funcionamento está viciado peplo pacote de reformas. Suas propostas principais giram las marcantes práticas dos Estados ao longo de seis décadas,
em torno da redução do número de departamentos, fun- e sustentado, ainda, por uma estrutura de poder que não
cionários e funções da organização. O objetivo é concen- mais representa a realidade atual”, diz Pedro Américo Furtrar suas atividades nos processos de paz e no desenvolvi- tado de Oliveira, especialista em relações internacionais e
mento geral das nações. Mas, desde então, a tal reforma foi coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Inmodificada, adaptada, remendada e nunca votada. A última
fantil da Organização Internacional do Trabalho.
previsão era para o fim do ano passado. Mas um problema
adicional tem prejudicado a entidade: sua burocracia que Um desejo brasileiro
não cessa de crescer, com os custos desse inchaço para os
Uma das principais mudanças na ONU é a que mais tem
países-membros e o efeito da falta de transparência de uma
sido tergiversada pelas grandes potências: a modificação do
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Conselho de Segurança (CS). Seus cinco integrantes perma- membros permanentes, se estenderia o processo de delibenentes (China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rús- ração, ouvir-se-iam vozes de novos atores internacionais,
sia) têm cada qual o seu motivo para que nada mude. Ou, se
repondo para a ONU e o CS o seu caráter multilateral.
mudar, que eles não percam a exclusividade do veto, o que
Mas, admitindo-se a ampliação, quem deve entrar e
é na prática o poder. “Será difícil, pois nenhum membro do quem não? Todos os integrantes de um CS reformulado
Conselho de Segurança quer, de fato, diluir seu poder”, re- – antigos e novos – devem ter o mesmo peso nas decisões,
sume o analista de relações internacionais Doug Bandow, ou seja, poder de veto?
do Cato Institute, de Washington.
A questão de quem deve e quem não deve entrar no “cluA diplomacia brasileira sob o governo Luiz Inácio Lula be dos poderosos” é polêmica e se dá em termos regionais.
da Silva tem se movimentado bastante em encontros in- Se a China se opõe ao Japão devido a rivalidades geopolítiternacionais para divulgar sua pretensão de integrar defi- cas e históricas, que dizer de nossa América Latina? A prenitivamente o CS e buscar aliados. Dos países-membros, tensão brasileira tem despertado não só o descontentamenFrança, Reino Unido e Rússia se mostraram “simpáticos” à to de outros países, como até alianças inusitadas. É o caso
pretensão brasileira. O mesmo acontece com alguns países da Argentina, que se aliou ao Paquistão para, primeiro, dique compartilham o desejo com o Brasil, como Alemanha, ficultar os brasileiros e, segundo, para fazer o mesmo com
Japão, Índia e África do Sul. Além de blocos inteiros, como a Índia – que, aliás, também não tem a simpatia da China.
os do Pacto Andino e os que integram a Comunidade dos Ainda no âmbito latino, o México já se opôs publicamente
Países de Língua Portuguesa.
à ambição brasileira. Na Europa, por outro lado, a Itália não
Os Estados Unidos até demonstram que poderiam acei- aceita a preferência pela Alemanha. E na África, os sul-afritar uma ampliação do quadro de membros permanentes, canos têm a oposição pública da Nigéria e do Egito, ambos
uma vaga para cada um dos continentes africano, lati- também no direito de aspirar a inclusão no conselho.
no-americano e asiático, mas sem poder de veto. E a ChiA aspiração brasileira a membro permanente do CS não
na não se mostra animada com a idéia, pois teme o risco é nova e vem desde a fundação da ONU. Oswaldo Aranha,
de uma abertura de poder para seu maior rival geopolíti- embaixador brasileiro na época, defendia a inclusão do país
co, o Japão.
por ter sido o único da América Latina a enviar tropas aos
De qualquer forma, a mudança dos membros e da estru- campos de batalha na Europa. Atualmente, as justificativas
tura de decisões do CS é importante, pois, depois da guer- se dão por suas características: uma população expressiva
ra no Iraque, poderia ajudar a inverter uma lógica de pa- de quase 200 milhões no quinto maior território e entre as
ralisia do status quo. Consagrou os americanos como uma quinze maiores economias do planeta. Isso sem esquecer
superpotência que pode passar por cima do CS para per- da tradição continuada da política externa brasileira em
seguir seus interesses. “Diante de tal crise de autoridade do favor do multilateralismo e da paz no cenário internaciosistema multilateral, o medo da perda de poder já não faz nal, além da boa convivência com seus vizinhos, uma desentido, pois de nada adianta ter direito de veto se ele não mocracia com duas décadas de existência que defende os
é respeitado”, constata Barthélémy Courmont, especialista direitos humanos e não desperta hostilidades e desconfianem assuntos de segurança e política exça no mundo.
terior no Instituto de Relações InternaEm torno desses atributos, a candidacionais e Estratégicas de Paris. Esse argutura ganha relevo, mas há ponderações.
A mudança da
mento é reforçado por outro francês, o
A primeira delas é que, se conseguir um
estrutura do Conselho assento permanente, o Brasil entraria no
sociólogo Alain Touraine, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sode Segurança da ONU é rol de debatedores das grandes questões
ciais, também de Paris: “O Conselho de
globais. Participaria das discussões e, ao
importante,
pois
poderia
Segurança precisa de multilateralismo, e
tomar posições, poderia se indispor com
tudo que possa reforçar sua representaajudar a inverter uma outros países, perdendo essa imagem betividade deve ser considerado como fanigna que hoje projeta. Também sofrelógica de paralisia do ria pressões diretas das outras potêntor positivo para a paz”.
Para superar esse quadro seria bemcias mundiais, pois sua posição se torvinda a ampliação do CS. Com mais
naria importante para aprovar projetos
status quo
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de países como, por exemplo, os Estacomplementares do CS, eleitos a cada
dos Unidos.
“A candidatura do Brasil dois anos e sem chance de reeleição.
Essa questão pode ser ainda coloEssa fórmula deixaria fora de disé desejável, mas não
cada sob outro prisma, pois “a candicussão a chamada “vaga permanendatura do Brasil é desejável, mas não
te por região”, em que um determinarealista, pois o poder
é realista, pois o poder militar ainda
do continente teria a sua vaga, fazendo
militar é importante, e
é importante, e isso o país não tem”,
rodízio entre os países. “Essa proposta
analisa o embaixador americano Linera perigosa, pois provocaria a regioisso o país não tem”,
coln Gordon. O historiador brasilianalização das Nações Unidas, potenafirma
o
embaixador
nista omas Skidmore, professor na
cializando os interesses individuais de
americano Lincoln Gordon cada país que fizesse parte do CS por
Denison University, expressa uma visão mais crítica, quando diz que “essa
um certo tempo”, considera Barthélémy
aspiração brasileira é preocupação de
Courmont, do Instituto de Relações Indiplomatas, pois as reais prioridades do país são outras e ternacionais e Estratégicas de Paris.
internas, como o fortalecimento das instituições políticas
O cientista político americano Joseph Nye, ex-membro
democráticas e a diminuição das desigualdades sociais e da do Conselho de Segurança dos Estados Unidos no govermiséria do país”. Duas ponderações que deveriam atenuar no Clinton, defende outra alternativa: aquela em que a amum pouco o barulho que, de fato, a diplomacia brasileira
pliação de novos membros se desse não com permanentes,
vem fazendo desde a posse do atual governo.
mas “semipermanentes” – que também não dariam direito
“Trabalhávamos o assunto, mas não se fazia disso um
a veto –, mas permitiriam um mandato renovável de quatema de prioridade máxima na política externa brasileira”, tro anos a seus detentores.
comenta Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores
Em suas palavras, “essa proposta que prevê a existência
no governo Fernando Henrique Cardoso. “O governo Lula de membros ‘semipermanentes’ do CS é mais realista, pois,
fez dessa prioridade um instrumento de política hard po- potencialmente, os países teriam de conquistar seu espawer. Isso converte o Brasil em um país mais adepto da ex- ço no conselho. Sua reeleição dependeria de suas contripressão da política do jogo de poderes e prestígio do que de
buições para a ONU em missões de paz, tanto do ponto de
uma política de identidade e qualidade nas relações exter- vista militar quanto financeiro. Os candidatos teriam, com
nas”, critica. E, ainda de acordo com o diplomata, a presença isso, de provar que merecem um assento e a própria ONU
atual de 1200 soldados brasileiros na missão de reconstru- sairia fortalecida”.
ção do Haiti é discutível e perigosa, ainda que ele reconheEssa posição, certamente, não é a que conta com a simça que é uma maneira efetiva de o país “mostrar serviço”, na patia da diplomacia brasileira, mas é uma espécie de meioeventualidade de figurar no Conselho de Segurança.
termo para que, de algum modo, o país possa viabilizar sua
candidatura. Se, por um lado, o Brasil já mostrou disposiOs donos do poder
ção ao liderar a missão de reconstrução política do Haiti
Resumidamente esses são os motivos de cada um para atualmente em curso, resta saber como se arranjaria para
entrar ou evitar que outro entre. Outra questão igualmente financiar sua posição, pois está com uma dívida aproximaespinhosa é o poder de veto no CS. Dentro da possibilida- da de US$ 107 milhões, a quarta maior entre os 191 paísesde de reforma mais pragmática imaginada por estudiosos e membros. Como lembrou Skidmore, em um país com dediplomatas, o que se vislumbra a médio prazo é a ampliação
mandas internas tão urgentes, como se justificaria na prádo órgão, mas com poderes diferenciados. A simples am- tica cotidiana os vultosos gastos externos com que estaria
pliação dos cinco membros atuais para, digamos, mais cin- obrigado a arcar?
co, perfazendo dez no colégio permanente, e todos com poMesmo assim, é possível argumentar que, para um país
der de veto, é inviável, pois retiraria poder dos países cria- que quer projetar-se internacionalmente como importandores do órgão. Uma segunda possibilidade é que os novos te, o custo econômico e o eventual desgaste político ainda
membros permanentes não tenham poder de veto. A vanta- trariam um saldo positivo: influir nos grandes temas intergem é que estariam lá defendendo seus interesses e não de nacionais, assumir mais responsabilidades e expor os seus
forma eventual, como ocorre hoje com os dez integrantes valores e seus interesses. 
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a alegoria crítica de
joão câmara
Fuga do óbvio ou pintura alegórica, não importa a palavra, para observar o
trabalho desse artista é importante descobrir a alusão de algumas imagens
S
ão nove horas da manhã. João Câmara Filho sobe
a ladeira da rua São Francisco, na cidade de Olinda. Deixa sua casa a caminho do ateliê. Não anda
muito. Os dois lugares ficam a poucos metros de
distância. De camiseta de malha, calças jeans largas e chuteiras Topper, ele vai lentamente. É uma quartafeira, mas poderia ser qualquer outro dia. A rotina de Câmara é quase sempre a mesma. De domingo a domingo, o
artista plástico de 60 anos trabalha. “Depois que o camarada fica mais velho não tem muita coisa pra fazer. Só resta
pintar”, justifica.
No ateliê, à espera de Câmara, está Pompéia, sua assistente há 25 anos. É ela quem cuida dos compromissos do
artista, organiza a agenda, toma providências e soluciona
os problemas que forem surgindo. Os dois passam o dia ali,
num enorme casarão, entre tintas, pincéis e obras de arte.
São quadros enormes que chegam a ocupar uma parede
inteira. As grandes proporções são comuns no trabalho do
pintor, que encara a arte como um ofício, mas “um dos mais
chatos que existem”. “Além de exigir a elaboração intelectual, elaboração existencial humana, o processo de pintura é
também um processo físico bastante desgastante.”
O descanso não demora a chegar. É meio-dia e ele já se
prepara para descer a ladeira. O almoço, em casa, com a família, também faz parte da rotina. Câmara é casado desde
1970, com Maria Adelaide Câmara. Os três filhos do casal
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diálogos&debates
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C U LT U R A
POR FERNANDA CUNHA
ainda moram com os pais. São duas mulheres – uma administradora de empresas e uma advogada – e um homem, estudante de Engenharia. “Esses adolescentes de hoje só ficam
velhos aos 36 anos.” Almoço terminado, o artista já retoma
o caminho de volta ao ateliê. E lá ele fica até a hora “que a
vista cansa”, umas sete da noite.
O dia-a-dia de João Câmara é uma opção. Paraibano de
nascimento e pernambucano por escolha, ele mora no estado há cinqüenta anos. Foi em Recife, ainda garoto, que
descobriu sua habilidade. No colégio, já se destacava como
o melhor desenhista. Com seu talento, criou um comércio pouco freqüente à época. Como não era fácil ter acesso
à pornografia, ele desenhava mulheres nuas e vendia para
os colegas.
Da brincadeira surgiu o desejo de especializar-se e, em
1960, ingressou no curso livre de pintura da Escola de Belas Artes, na Universidade Federal de Pernambuco. Depois
de três anos, o prazer e a habilidade como pintor superaram o desejo de fazer Medicina. Ele conta que até chegou
a fazer vestibular, mas já estava envolvido demais com artes para largar.
Prêmio da crítica
João Câmara tem voz mansa, sotaque carregado de um
chiado pernambucano. Seu jeito calmo deve ter sido útil
ao garoto que rapidamente começava a conquistar a crítica
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diálogos&debates
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de arte nacional e internacional. Ele tinha apenas 22 anos
quando foi indicado a participar da III Bienal de Córdoba
(1966), ao lado de Rubens Gerchman e Antônio Dias. Um
ano depois, recebia o Grande Prêmio do Salão de Brasília,
um episódio marcante. Foi ali que Câmara ganhou de Hélio
Oiticica, referência artística da crítica da época, cujos objetos, ambientes e performances criados eram fruto das experiências construtivas da década de 50. Durante a entrega
da premiação, o júri destacou que o nordestino contribuía
para a pintura brasileira com o vigor descritivo do protesto
social, “o elemento que faltava”.
Para o crítico de arte Tadeu Chiarelli, naquela época a
obra de Câmara já se caracterizava por “expressar uma outra possibilidade artística, totalmente desconectada do caráter experimental perceptível na produção do Sudeste do
país”. Chiarelli explica que o pintor estava à margem das experiências construtivas. Exprimia a mesma consciência dos
limites e possibilidades da linguagem pictória, mas sem entender a prática da pintura como a exploração única dessas potencialidades. Em sintonia com João Câmara, Antônio Henrique Amaral e Glauco Rodrigues também se empenhavam em divulgar um conceito de pintura como espaço metafórico da realidade política e social do período.
Na década de 60, a produção de João aproximava-se do expressionismo e do fauvismo. Foi nessa época que o pintor
passou a interessar-se pelo cubismo de Pablo Picasso. No
entanto, hoje, ao ser perguntado sobre as marcas que o espanhol deixou em seu trabalho, Câmara desconversa: “De
Picasso eu queria ter herdado apenas a poligamia”.
João Câmara Filho é um erudito. Diz que não tem muito
tempo para a leitura, mas sempre que possível faz referência a grandes escritores. A “literatura moderna” que aprecia
passa por James Joyce – o mais recorrente –, Marcel Proust
e William Shakespeare. De escritores nacionais, já leu tudo
de Guimarães Rosa. O que o pintor guarda dessas histórias
ajuda a movimentar sua mente. Seu processo imaginativo
pode acontecer a qualquer momento e raramente depende de algum fator de inspiração. “As coisas me vêm de diferentes formas. É uma imagem que insiste, uma coisa que
se revela. São ocorrências de estímulos negociadas intelectualmente”, conta.
É pela imaginação de Câmara que se fortalece uma das
características mais fortes de seu trabalho. Ele mesmo se
descreve como um pintor muito figurativo, mas ressalta que
não é exatamente fiel ao que enxerga. Na obra Tríptico para
a Cidade do Recife (1968) a alegoria é recurso evidente. Uma
possível interpretação, dentre tantas outras que podem ser
feitas: a mulher, na parte central da tela, pode ser vista como
a própria cidade de Recife. Ela segura uma chave, provavelmente a da cidade. A figura do boi, à direita, é talvez uma
alusão à bovinocultura que, por muito tempo, determinava a cultura de Pernambuco. Do outro lado da tela estão os
meios de comunicação de massa, com influências hoje superiores à economia pecuária ou agrícola.
Fuga do óbvio ou pintura alegórica. Não importa a palavra, para observar o trabalho de João Câmara é sempre
importante tentar descobrir a que determinada imagem faz
alusão. Em 1974, quando começou a desenvolver sua primeira série artística, tal recurso foi utilizado para escapar da
descrição histórica. Cenas da Vida Brasileira, primeira das
três séries temáticas do pintor e terminada em 1980, foge
quase sempre à veracidade dos acontecimentos do período retratado: 1930 a 1954. Getúlio Vargas aparece vinculado a personagens fictícios, como o próprio pintor. Câmara surge como uma “intervenção paralela”, nas palavras de
Tadeu Chiarelli, com caráter rigorosamente plástico. As di-
“De Picasso eu queria ter herdado apenas a poligamia”
Da série temática “Duas Cidades”, a tela Zeppelin II , óleo sobre tela, de 1986
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diálogos&debates
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C U LT U R A
“Nós já estamos cansados de fantasmas nos métodos de análise”
No Tríptico para a cidade do Recife , óleo sobre madeira (275 x 366 cm) de 1968, exemplo de força alegórica
versas aparições do pintor em seus trabalhos são julgadas,
muitas vezes, como pretensiosas. Mas ele se explica: “Toda
vez que o auto-retrato aparece, tem o sentido de uma avaliação da realidade.”
O período retratado nas Cenas é uma espécie de infância política do artista. “A morte de Vargas está no ponto central do meu rito de passagem para a adolescência, eu tinha
10 anos de idade.” O uso desse período como tema procura ser sua reminiscência corrigida pela linguagem da imaginação. O próprio Vargas aparece simultaneamente como
pai e padrasto, populista e autoritário, como ressalta o crítico Frederico Morais e confirma João.
O uso da pintura figurativa, presente nessa e nas outras
duas séries criadas por Câmara, é, segundo ele próprio, um
excelente instrumento de recomposição de cenários histó-
C U LT U R A
ricos, servindo a intérpretes para montar um retrato do que
aconteceu séculos atrás. Característica marcante da figuração, a retificação da figura humana, continua o artista, incorpora uma quantidade enorme de elementos sociais.
Por isso, o realismo percebido nos trabalhos de Câmara
não diz respeito à história. O que vemos em suas obras está
baseado no concreto das formas, no modelado. Em 1983,
numa entrevista concedida ao jornalista Mino Carta, o pintor justificou a opção por tal estilo: “Tudo deve ser palpável; nós já estamos cansados de fantasmas nos métodos de
análise, de estruturas de conceito”.
E são justamente formas realistas que são vistas na segunda série temática do artista, Dez Casos de Amor e Uma
Pintura de Câmara, desenvolvida entre 1977 e 1980. Nela, a
mulher é o ícone dominante, a carne é algo atraente e sau-
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diálogos&debates
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mércio, Diário de Pernambuco e Última Hora. No primeiro, escrevia, enquanto que para os outros dois desenvolvia
desenhos exclusivos. No jornal de Samuel Wainer, o pintor
fazia parceria com os textos de Aguinaldo Silva e no Diário
de Pernambuco tinha uma coluna na qual apresentava seus
trabalhos de arte digital e em seguida os comentava.
Hoje, Câmara não escreve mais para jornais. Diz que não
dá tempo de fazer tudo que quer. Mesmo assim, a redação é
um outro talento deste artista. Ele mesmo conta que, se não
fosse pintor, escreveria. “Mas o pessoal lá de casa diz que eu
tenho jeito para um bocado de coisas”, ressalta.
Com tempo para se dedicar somente à pintura, João Câmara empenha-se inteiramente na produção artística. O resultado da intensa atividade é um quadro (de tamanho médio, 1,40 x 1,30m) finalizado a cada dez dias.
Amor por Pernambuco
Tela 1932 , parte da série “Cenas da Vida Brasileira”
dável. Entretanto, o próprio pintor diz recusar a glamourização erótica do conjunto, assim como recusa uma perspectiva feminina que olhe apenas uma violência do autor
contra a figura feminina. “Eu acho que a sensualidade nada
tem a ver com um aviltamento da mulher”, disse Câmara a
Mino Carta na entrevista de 1983.
A produção de séries temáticas é mais uma característica
que remete a João Câmara Filho. Desde o princípio de sua
atividade artística, em 1960, sempre trabalhou com conjuntos seriados, variando a temática e o conceito. “As séries são
desenvolvidas como tarefas impostas que devem ser cumpridas. Acho que por ser filho de funcionário público acabei herdando a vocação pelo sistema”, explica. E embora as
obras de um conjunto apresentem uma certa linearidade, a
criação não passa por uma cronologia. O quadro que abre
uma mostra pode ter sido o último a ser produzido.
O trabalho de Câmara é notadamente a construção de
imagens – na maioria das vezes pintando em óleo sobre
tela ou madeira, ou fazendo desenhos, gravuras, obras digitalizadas e objetos, em três dimensões ou “totens” de dupla face. Mas não é só em museus e galerias que suas obras
podem ser vistas. Ele já manteve colunas no Jornal do Co-
“Acho que a sensualidade
nada tem a ver com um
aviltamento da mulher”
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C U LT U R A
C U LT U R A
Nos últimos meses Câmara tem se concentrado na realização de um enorme painel. A obra, de 20 x 4m, será exposta em um espaço público na cidade de Recife.
A última das três séries do pintor trata justamente da capital pernambucana, mostrando-a ao lado de sua outra paixão: Olinda. As pinturas e os objetos de Duas Cidades, realizados entre 1987 e 2001, mostram espaços e momentos
que remetem ao que foi visto e vivido. Na série, as duas cidades se olham. Recife é estuário; Olinda, colina. Nas palavras de Frederico Morais, “Olinda é mirante, é cesto de gávea. Olha-se dali, sobranceiramente, o Recife, porto e águas
onde se dilui o açúcar. Olha-se também a cidade que cresce
negocial, calcária como o coral e áspera como ele”.
O apego de Câmara por Pernambuco talvez explique
seu pouco interesse por outros lugares. “Sou renitente para
viajar, acho muito incômodo”, explica. Ele conta que vai, de
vez em quando, aos Estados Unidos, mas somente quando
é mesmo necessário. E lembra um amigo que já se foi. “Rubem Braga é que ia para Paris, pegava o Le Figaro e dizia:
‘não quero ir passear, tá tão bonzinho aqui’.”
A explicação para a falta de vontade de viajar confunde-se com a razão pela qual Câmara não tem ídolos. Ele
fala que existem “muitos mortos interessantes”, mas que,
quando conhecemos as pessoas de perto, destituímos delas
essa aura. E lembra-se de Celso Furtado, outro amigo que
já morreu. “Ele dizia: ‘é preciso sair do carrossel para poder
ver ele rodando’. Para mim é isso mesmo. Quando a gente se
aproxima, vê os defeitos, as similitudes com as nossas próprias desgraças e inseguranças. Agora, quando o camarada
vê de longe, tudo fica limpinho, fica lindo.” 
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Uma reflexão a respeito do compartilhamento
da solidão. Uma análise sobre
o rosto
que oferecemos
CLÓVIS DE BARROS FILHO E FELIPE LOPES
O
que é o Eu? Existe afinal algum? Há muito, fi- informado? Algo que rigorosamente se identifica com nossa
losofia e eruditos tratam do assunto. Brilhan- essência? Uma investigação científica com objeto nós? Ou
tes cérebros se dedicaram exaustivamente a ele. mera narrativa fantástica? O discurso identitário é, na verRicas discussões. Pouco consenso. A linguagem dade, apresentado aqui como um pré-requisito para a vida
coloquial, por sua vez, nos revela que os profa- em sociedade. Obedece a padrões interiorizados e negocianos do jogo filosófico tampouco abdicaram de meter sua dos ao longo da vida social. A apresentação de si nada tem
colher na discussão. Fato que remete essa reflexão para mui- de original. Segue regras e leis estritas. Com punições claras
to além dos muros da academia. Longe dos feudos univer- para o caso de sua transgressão. “Olá, acredito na transmusitários, a discórdia insiste em imperar. Pode-se supor ao
tação das almas, posso sentar aqui?” Uma abordagem desse
mesmo tempo, sem apego à coerência, um eu definido em tipo condenaria o emissor ao isolamento social.
definitivo e outro fugaz, que apenas vai deixando de ser. AsMas não são apenas os conteúdos da apresentação de si
sim os chavões “Gosto de você como você é” e “você não é que seguem rígidos padrões. Sua forma também tem orimais o mesmo” são anunciados onde houver confidências. gem no social. Como a voz. Não a voz interior. IntrapessoAnte tamanha inconclusão, cabe a pergunta: por que raios al. Longe do outro e de seus constrangimentos. Essa não
escrever mais um artigo sobre o tema?
nos interessa. O que está em estudo é
Prazer de piromaníaco? Satisfação em
a comunicação do Eu com algum ouÉ porque o eu vive só
pôr mais lenha na fogueira? Ou arrotro. A voz interpessoal. Essa sim consgância ingênua em querer buscar sotitui nosso objeto. Essa tem sua consque acreditamos na
luções para o clássico problema? Nem
ciência, assim como a de seus conteimportância
da
sua
um nem outro.
údos, adquirida e desenvolvida por
Em primeiro lugar, o discurso que
meio dos encontros que temos com o
comunicação. Nenhuma
anunciamos de nós mesmos. O Eu que
mundo. Mundo social que não paraincoerência. Comunicar
se apresenta. Estamos sempre informos de percorrer.
mando quem somos. Exigências do
É pertinente também considerar o
é o que lhe resta
mundo social. Mas o que é exatamente
discurso dos outros sobre nós. O Eu
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F I L O S O F I A
apresentado. O Eu, muitas vezes, classificado. Estereotipado.
Simplificado. Reduzido. O Eu que participa de uma polifonia discursiva. O Eu do qual se fala, até mesmo após a morte
do seu sujeito. O Eu silenciado, pelos outros. Autorizado ou
desautorizado a falar. O Eu que escapa ao próprio Eu.
O Eu se apresenta e é apresentado a todo instante. Num
comércio identitário sem fim. Que desvela todo seu fluir. Incomunicável. Porque é fluir. Em ato, só afetos. Estados corporais. Mapas de nosso corpo. A tristeza. Esse peito que sufoca. Esse ar que não vem. Essas lágrimas que pesam por detrás dos olhos... Que, quando comunicados, já não são mais.
Afetos supervenientes. Quase sempre ainda tristeza. Ainda
angústia. Ainda melancolia. Mas não mais as mesmas. O ato
de comunicá-las já as teria modificado.
Eis o Eu: a imagem de um pedaço de natureza, onde sua
fronteira – a pele – guarda sua verdade – a solidão. Ninguém vive o desejo alheio. Ninguém vive o sorriso do outro. Tampouco suas lágrimas. Essa tristeza que toma todo
meu corpo é minha, somente minha. Ninguém mais pode
senti-la. Como a dor de minhas cáries. Um outro solidário?
Talvez se entristeça com minha tristeza. Mas aí, será a dele.
Uma outra. Tristeza solidária. Compaixão.
É porque o eu vive só que acreditamos na importância
da sua comunicação. Nenhuma incoerência. Comunicar é o
que lhe resta. Mesmo que de forma imperfeita. Para dividir
a solidão. Uma forma de resistência. O isolamento nos condena à alienação. De nós mesmos. Não há referenciais para
nos indicar quem somos. Para designar a posição que nos
cabe. Para nos informar nossos rostos. Sua topologia específica. Para nos identificar, em suma. Pior: o isolamento nos
condena ao sofrimento. À angústia. À amargura. À morte.
O real agride demais para dispensarmos ajuda alheia. Para
não ajudarmos o outro. Ágape. Caridade e compaixão com
o desejo que não é nosso. Com a miséria que não é a nossa.
Por isso a moral, para quando nos falta esse amor pelo outro. Sua ausência a justifica. Tolerância. Só assim podemos
conviver sem tornar a existência mais insuportável.
Mas todos sabemos que também a moral pode faltar.
Nenhuma garantia. Por isso viver é resistir. O mundo nos é
quase sempre hostil. O eu, só um discurso. Que permite nos
apresentar ao outro e a nós mesmos. A expressão, a história
de uma existência real ou imaginada. Mas desejada em ato.
A manifestação mais bem acabada para si de si no momento. Às vezes cínica, muitas vezes sincera. O eu, caro leitor, é
o rosto que damos, sempre relativo a uma situação, à expectativa dos outros e de nós, à nossa insistência particular. Por
isso a memória é sua condição. A gramática: sua estrutura.
A solidão: sua verdade. E a glória o nosso fim. 
C O M U N I C A Ç Ã O D O E U : U M PA C OT E D E B O A S R E F L E X Õ E S Por Sérgio Praça
C
omunicação do eu: ética e solidão (Ed. Vozes, 2005)
não parece, à primeira vista, um livro ambicioso. Mas
suas 141 páginas enganam. Uma colaboração de três
autores – Clóvis de Barros Filho, Bernardo Issler e Felipe Lopes
–, o texto finca um pé no campo da comunicação e outro no da
filosofia. Como eles explicam, o “eu” não existe incomunicado.
Portanto, toda reflexão sobre o sujeito será uma reflexão sobre
sua comunicação. A obra se divide em quatro partes: “o eu em
definição”. “o eu em locução”, “o eu apresentado”
e “o eu silenciado”. Nenhum pensador monopoliza
a atenção dos autores – erudição rara em nossos
dias, tantos são os livros que fingem avançar mas
apenas fazem a exegese de um ou dois ilustres conhecidos. No entanto, é Pierre Bourdieu o mais recorrente entre os muitos citados, tendo seus conceitos de campo e habitus amplamente utilizados
por Barros Filho et. al. nesta análise sobre o sujeito e a comunicação de sua solidão.
F I L O S O F I A
A heterodoxia e originalidade da obra se tornam claras em
principalmente dois momentos. Em primeiro lugar, quando realiza uma análise sobre a voz como produto da socialização, a
voz como elo entre a consciência do sujeito e sua inserção na
sociedade. Trata-se de uma inusitada incursão pela fonoaudiologia – algo que, mesmo que os homens de jaleco não apreciem, certamente é uma boa contribuição científica. A boa mistura entre “teoria” e empiria é o outro ponto a destacar no livro,
especialmente no tópico “o eu silenciado”. Ali os
autores discutem, com base em anúncios fúnebres
publicados em jornais do mundo todo, a “representação social legítima do falecido”. Se em vida
recorremos ao discurso para nos definir, na morte
seremos reféns da memória dos outros sobre nós,
que nos definirão em um lamurioso box de duas
colunas no Estadão ou um seco parágrafo no jornal do bairro. Comunicação do eu: ética e solidão
vale por essas e outras reflexões. 
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diálogos&debates
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falta adrenalina no
jornalismo de hoje
O fotógrafo que registrou o contato com os
índios gigantes, em 1973, fala de seu ofício
e lastima o empobrecimento do jornalismo,
hoje acomodado e sem buscar desafios
ENTREVISTA PEDRO MARTINELLI
F OTO S EX T RA Í DA S D O L IV RO MULHERES DA AMAZÔNIA
U
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diálogos&debates
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E N T R E V I S TA
m Prêmio Esso de Jornalismo, duas Olimpíadas,
cinco Copas do Mundo, a cobertura da guerra entre Irã e Iraque, a guerrilha na Nicarágua.
A vida do fotógrafo Pedro José Martinelli tem
sido movimentada. Deixou a marca de seu talento nas páginas do jornal O Globo (1970 a 1975), na revista Veja (1977 a 1983), onde foi editor de fotografia, e
depois na direção do estúdio fotográfico da Editora Abril
(1983-1994). Com diversas exposições e livros no currículo, ficou conhecido, no entanto, por documentar o contato realizado em 1973 pelos irmãos Villas-Bôas com os “índios gigantes”, os panarás, último grupo humano a entrar
em contato com a civilização – algo notável em um mundo
onde tudo havia sido esquadrinhado, fotografado, catalogado. Amante da culinária e da boa mesa, Pedro é conhecido
também por sua paixão pela pesca e pela Patagônia – vai
praticamente todo ano pescar no sul da Argentina. Nesta
entrevista a Diálogos&Debates ele fala sobre tudo isso e de
quanto sofre por ver o jornalismo perder, hoje, a qualidade que já teve um dia.
diálogos&debates Como é esse trabalho que você faz agora
na Amazônia? É algum documentário para o governo local?
E N T R E V I S TA
POR CARLOS COSTA
FOTOS GUSTAVO SCATENA
pedro martinelli É o projeto de um próximo livro. Veja, a
vida de um fotógrafo hoje segue outros parâmetros, não
tem mais jornal, revista, onde publicar, pois o jornalismo ficou muito burocrático. Acabou aquela coisa de apurar, de ir
atrás da notícia. Vivo essa realidade no meu trabalho. Para
um fotógrafo que teve uma carreira coerente, hoje a saída é
publicar livros, documentar aspectos da realidade. Preciso
de foto impressa, pois sou um fotojornalista, não estou em
exposição de arte, em galeria.
diálogos&debates Como documentarista, não há um trabalho a ser feito junto com o governo do Estado ou com o Ministério da Cultura?
pedro martinelli De certa forma esses livros têm o aval do
Ministério da Cultura, através da Lei Rouanet. Mas a pesquisa e preparação é um investimento pessoal meu, só capto recursos da lei de incentivo na hora imprimir o livro. Por
isso são projetos longos, de quatro, cinco anos, para se adequarem às minhas condições, quer dizer, preciso fazer fotografia comercial para pagar minhas contas; o que sobra
vai para o projeto pessoal, para esses livros. Quando o livro está pronto, editado, paginado, tenho de sair em busca
de patrocinador pois a impressão é muito cara. Mas com
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diálogos&debates
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resolveu o problema. Depois veio a missão para outro jogo,
fui melhorando, passei a cobrir a segunda divisão.
“Quando entrava com meu pai para caçar, não sabia que a Mata
Atlântica estava acabando, com apenas 7% da área original”
isso consigo autonomia e liberdade, faço as abordagens em
que acredito.
diálogos&debates Sobre a Amazônia, são quantos livros publicados?
pedro martinelli Até agora três. Panará, a volta dos índios gigantes – que é um livro sobre a história do contato, escrito
pelo Ricardo Arnt e pelo Lúcio Flávio Pinto. Depois fiz o
Amazônia, o povo das águas – um projeto de seis anos. Foi
quando saí da Editora Abril. Pedi demissão em 1994, comprei um barco e fui produzir esse livro. Em 2004 publiquei
Mulheres da Amazônia. Agora preparo um sobre a alimentação na Amazônia. Sempre com uma abordagem em que
acredito, que é trabalhar com a qualidade da informação
sobre as pessoas que fotografo. A proposta é contar a história do chamado “inferno verde”, que é algo que de algum
modo remete à minha infância, pois eu andava no mato
com o meu pai antes de ser fotógrafo. Primeiro eu fui “mateiro”, depois virei fotógrafo.
diálogos&debates E foi “mateiro” onde?
pedro martinelli Aqui ao lado, na Mata Atlântica. Meu pai
caçava, eu ia junto. Naquela época se podia caçar. Nasci em
São Paulo, mas fui criado em Santo André. E desde os 8
anos de idade meu pai me levava para andar no mato. Ele
era açougueiro, uma tradição de família: meus tios e primos
têm açougue até hoje na Itália, em Luca. Meu avô veio para
o Brasil e teve açougue, eu trabalhei no açougue com o meu
pai. Daí esse traço forte do cotidiano da casa, da família, da
comida, de rancho, de mato. Faço hoje um pouco uma crô-
30
diálogos&debates
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nica de tudo o que vivi, das coisas que aprendi a valorizar.
Meu pai fechava o açougue às 3 da tarde, naquela época não
tinha geladeira: a carne chegava e tinha que acabar no dia.
Então, fechava o açougue, pegávamos os cachorros e íamos
para a Mata Atlântica. A divisão da caça, do veado, era feita na minha casa, tirava o couro, fazia a repartição, minha
mãe cozinhava, me ensinava. Era outro mundo. Minha casa
tinha fogão a lenha, 20 cachorros, uma casa imensa!
diálogos&debates Você começou como fotógrafo no jornal
O Globo, não?
pedro martinelli Comecei antes, na Gazeta Esportiva, por
acaso. Estava com 16 anos, era o mais velho de oito irmãos,
tinha de ajudar em casa. Fiz de tudo um pouco em pequenas empresas, comércio, escritório de despachante. A Gazeta tinha uma sucursal em Santo André, fazia um suplemento, Gazeta Esportiva do ABC. Isso era aí por 1967, eu pus
paletó e gravata, fui ser contato de publicidade, conseguir
anúncios. Durou pouco. Foi quando vi um fotógrafo revelando no laboratório, fiquei encantado com a imagem aparecendo, assim, naquela espécie de banheira, meio como por
acaso. Pedi transferência para São Paulo, mas aqui só havia
vaga para mensageiro da gráfica, então eu fiz de tudo, desde
trocar barril de chumbo no linotipo até buscar sanduíche na
cantina. Depois consegui passar a boy do laboratório fotográfico. E teve o domingo em que um fotógrafo ficou doente, não apareceu, me mandaram fotografar um jogo da terceira divisão. Nunca esqueço. Tinha uma árvore dentro do
campo, ao lado do pau de escanteio. Sentei lá, fiz uma foto
boa. Boa?! Bem, digamos que estava focada, correta. Saiu,
E N T R E V I S TA
diálogos&debates Mais ou menos a carreira de muitos fotógrafos. Depois, passou para a primeira divisão...
pedro martinelli E voltei a Santo André, trabalhar no New
Seven, um semanário do Diário do Grande ABC. Já sabia o
processo de laboratório, fotografava, conhecia um pouco
de gráfica, ali aprendi o processo inteiro de produzir o jornal: era motorista, fotógrafo, repórter, trabalhava na gráfica
e distribuía o jornal no domingo! Em 1970, vim para São
Paulo, trabalhar na sucursal de O Globo. Nesse momento,
havia começado a expedição de contato com os índios gigantes. O Globo mandara dois fotógrafos: um pegou malária, o segundo teve outro problema de saúde, isso criou um
pânico entre os fotógrafos do jornal: ninguém mais queria
ir. Sobrou para mim. Saí daqui e fui para a Amazônia, com o
Cláudio e o Orlando Villas-Bôas. E isso mudou minha vida.
No Globo aprendi a fazer jornalismo de verdade, a ser mesmo um fotojornalista. Naquela época, a equipe era nacional, não tinha sucursal. O sujeito ficava em São Paulo, mas
podia trabalhar no Rio, na Bahia. Por exemplo, no Campeonato Brasileiro, o Flamengo fazia temporada de quatro
jogos no Nordeste, depois ia o Botafogo, eu ficava todo o
tempo lá, fazendo cobertura. Esse foi um grande momento, de rodar, de fazer reportagem. Eu não tinha nem casa.
Cinco anos sem casa, e isso não é modo de dizer não, eu
morava em qualquer lugar, viajava sem parar. Fiz cobertura de Itaipu, antes de começarem a construir a barragem.
Cobri o incêndio do Edifício Andrauss, do Joelma, a entrada da soja no Paraná, cobri a transição de três presidentes
em um mês na Bolívia. Vivia rodando esse país, com fotos
para os cadernos de economia, de esporte, foi um momento muito dinâmico.
diálogos&debates Você guardou esse material?
pedro martinelli Bem, há umas amostras no meu site [www.
pedromartinelli.com.br], na seção Trajetória. As primeiras
páginas que fiz no Diário do Grande ABC, no New Seven.
Do tempo da Gazeta, tem uma foto de 1967.
diálogos&debates Mas voltemos aos irmãos Villas-Bôas e o
contato com os índios gigantes.
pedro martinelli Mas essa história é imensa! Tem mil abordagens... Foi o momento que mudou minha vida. Mudou pela
convivência com o Cláudio e o Orlando. Tive o privilégio de
encontrar essas figuras, fiquei três anos com o Cláudio no
E N T R E V I S TA
“Cláudio Villas-Bôas usava essa
imagem: ‘O dia que eu pegar
na barriga desse índio, é o fim
dele!’ Ele vivia esse drama:
sabia disso perfeitamente”
mato, ouvindo suas considerações, na verdade ele foi a minha “universidade”. O Cláudio era um filósofo, um intelectual. Era calado, nunca falava com a imprensa. Mas caí nas
graças dele, me fez ver muita coisa. Eu vinha com essa carga de mato, mas era uma visão romântica, lúdica, essa coisa
da beleza, da caça. Não tinha noção dos problemas. Quando entrava com meu pai para caçar, não sabia que a Mata
Atlântica estava acabando, com apenas 7% da área original. Eu achava que o mundo era daquele jeito: podia caçar,
minha mãe fazia as caças, uma maravilha. Mas aí cheguei à
Amazônia, comecei a entender o tamanho da encrenca, o
tamanho da confusão.
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diálogos&debates
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diálogos&debates E com você o reservado Cláudio falava o quê?
pedro martinelli Eu era um ouvidor do Cláudio, ele falava
sem parar! Eu sentava num banquinho ao pé da rede dele,
e ele dizia o que achava dos militares, da maneira como se
estava ocupando a Amazônia.
diálogos&debates Ele discutia o problema da aculturação
do índio?
pedro martinelli Esse foi nosso grande drama, né? Porque
ele tinha consciência absoluta de que, a partir do momento que “pegasse na barriga do índio”, era o fim. Deixa explicar: no caso do contato com o índio, sinais de longe, gestos,
não valem nada. O contato e a aproximação se dão apenas
quando o índio deixa tocar sua barriga. E me lembro de diversas vezes o Cláudio usar essa imagem e dizer: “O dia que
eu pegar na barriga desse índio, é o fim dele!” Ele vivia esse
drama: sabia disso perfeitamente.
diálogos&debates O Héctor Babenco aborda a crueza dessa
realidade num filme, Brincando nos campos do Senhor. Então, por que contatar o índio?
pedro martinelli Os irmãos Villas-Bôas eram mateiros mais
que sertanistas. Gostavam de andar no mato, da floresta, há
um prazer específico nisso. Não é a contemplação da fauna
e da flora, isso é conseqüência da mata autêntica, virgem.
Sem mata virgem não há a fauna e a flora exuberante. Então é essa coisa básica: o gosto do mato. Eles eram assim.
Participaram da expedição Roncador-Xingu, que levava a
linha do telégrafo para o Brasil central. E foram tropeçando com problemas! Tinham duas alternativas: ou seguiam
dentro de uma lógica que consideravam honesta, de acordo com seus princípios, ou pulavam fora. Eles resolveram
continuar e fizeram o serviço sujo, como o de estabelecer
contato com os índios para que os militares construíssem
a estrada. Que é a história da rodovia Cuiabá–Santarém: e
ela está aí até hoje, um emblema dos delírios da ditadura. A
“As estradas do projeto de Brasil Grande deram em nada: a Transamazônica,
a Perimetral Norte e a Cuiabá-Santarém desapareceram”
“O reencontro com os panarás foi complicado, pensei que ia morrer. Para
os velhos que sobreviveram, eu era a figura da desgraça em pessoa”
Transamazônica, a Perimetral Norte, aquele projeto de Brasil Grande. Nenhuma dessas estradas leva a lugar nenhum.
A Transamazônica desapareceu, há só um pedaço. A Perimetral Norte desapareceu totalmente. E a BR-163 Cuiabá–
Santarém, bem, nem chega a Santarém!
diálogos&debates Hoje até parece delicadeza os militares terem usado os Villas-Bôas para a aproximação.
pedro martinelli Eles eram funcionários da Funai, a Fundação Nacional do Índio, e o Cláudio disse: “Se eu fizer o contato, vou fazer de um modo digno, sem truculência”. Por isso
que demorou três anos, de 1970 a 1973! Claro, isso atrapalhou o plano dos militares, atrasou a estrada. E o Cláudio
era pressionado pelos militares – porque a estrada só podia passar depois que o contato estivesse feito. Mas aí os índios fugiram, meteram fogo numa aldeia, ficamos seis meses sem saber onde estavam. Parou tudo. Parou a estrada.
Se fosse o sertanista Apoena Meireles o designado para os
contatos, em seis meses a aproximação estaria feita, pois ele
era agressivo, usava arma de fogo, intimidava.
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diálogos&debates E o que aconteceu com aqueles índios gigantes, os Kranhacãrore, que você foi o primeiro a fotografar, quando se deu o contato?
pedro martinelli Hoje eles são chamados pelo nome que se
dão, Panará. Kranhacãrore era o nome dado pelos seus inimigos, que eram os Caiapós. Kranhacãrore quer dizer homem grande da cabeça redonda. Mas hoje eles são os Panarás. Morreram 70% dos Panarás, dos índios gigantes. Quando fizemos o contato, eram uns 300. Chegaram a 78 quando foram transferidos para o Xingu. E hoje voltaram a ser
mais ou menos 300.
diálogos&debates Como foi estabelecer contato com eles
anos depois?
pedro martinelli Esses índios me fizeram mudar de vida de
novo, pela segunda vez. Depois da epopéia no começo dos
anos 70, eu segui minha carreira, no Globo, depois na revista Veja, na direção do estúdio fotográfico da Editora Abril.
Fiquei sem saber desses índios por quase vinte anos. A única coisa que sabia é que foram transferidos para o Xin-
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diálogos&debates
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gu. Como morreram muitos membros do grupo, a Funai
os transferiu para o parque. Ali, foram colocados do lado
de seus maiores inimigos, os Caiapós. Mas ali se cruzaram
com índios de outras comunidades, foram se reerguendo.
O caso é que ninguém sabia dos panarás, não se fez nunca
o que em jornalismo se chama de “suíte”, que é voltar e ver
o que aconteceu com uma pessoa, um grupo, cinco ou dez
anos depois. Era como se os índios gigantes nunca tivessem
existido. E havia ainda o problema de língua: até hoje o único indivíduo que fala a língua panará é o antropólogo Stephan Schwartzman, da Universidade de Chicago. Descobri
isso no Instituto Socioambiental, que fez um trabalho com
os panarás para devolvê-los a uma terra próxima à original,
que é onde eles estão hoje.
tos. [Faz uma pausa] Para eles, claro, eu não era um fotógrafo, documentando algo, eu tinha sido apenas um branco
a mais que levara destruição para suas vidas... [Outra pausa] A foto que eu levava, da primeira página de O Globo,
mostrava o Sokrit, um índio panará que vive até hoje. Encontrei o Sokrit e uma porção deles que fotografara no primeiro contato. E nessa visita fotografei como estavam agora. Voltei para São Paulo, liguei para o Evandro Carlos de
Andrade, na época diretor de O Globo, falei que tinha uma
história e ele aceitou a reportagem. O jornal publicou uma
série de três reportagens, A Saga dos Índios Gigantes, quatro páginas em cada dia, uma na primeira página, três no
miolo. Ganhamos o Prêmio Esso de Informação Científica,
Tecnológica e Ecológica de 1996.
diálogos&debates Quanto tempo havia passado?
pedro martinelli Soube que podia reencontrá-los no Xingu,
vinte anos depois daquela reportagem do contato. Fui o único que voltou para ver os panarás tantos anos depois. Nem
o Cláudio nem o Orlando voltaram. Na primeira vez que
voltei, fui ao Xingu com o Steven, levei as fotos, em xerox.
O reencontro foi complicado, quase aconteceu uma desgraça, pensei que ia morrer. Para os velhos que sobreviveram,
pois muitos já morreram, eu era a figura da desgraça em
pessoa, quer dizer, nesse reencontro passava um filme na
cabeça deles. Os velhos me reconheciam porque fôramos
muito observados. Um dos pajés, mais raivoso, quase põe
tudo a perder. Mas o Steven contornou a situação, segurou a
onda. Eles estavam muitos nervosos, porque na medida em
que eu ficava lá, eles iam se lembrando dos parentes mor-
diálogos&debates Você pára e reflete sobre a ira daquele pajé?
pedro martinelli Sim, agora volto lá e acontece uma coisa
interessante. Estive com eles várias vezes, eles já estiveram
aqui. Vieram seis índios, inclusive o Sokrit, para o lançamento do livro Panará, a volta dos índios gigantes.
diálogos&debates Eles eram realmente gigantes?
pedro martinelli São bem acima da média brasileira, alguns
bem altos, passam dos 2 metros, como o Nengrile, que foi
seqüestrado ainda criança pelos caiapós. Tem uma foto no
livro, com o Orlando aplicando-lhe uma vacina.
diálogos&debates Você já refletiu sobre a importância de seu
trabalho, como registro da história? Susan Sontag escreveu
“Além da miséria, há toda a enxurrada da mídia: a TV que altera costumes,
a indiazinha imitando a Carla Perez, usando o shortinho da Xuxa”
que a Guerra do Chaco, entre Paraguai e Bolívia, apesar do
massacre ocorrido, é um conflito de que não se fala, pois foi
uma guerra sem fotógrafo. É o fotógrafo, ou o cinegrafista,
que dá a dimensão do estrago de uma guerra.
pedro martinelli Essa consciência vem depois. Na época do
contato com os índios gigantes, devo ter sentido o impulso
do jornalista, do fotógrafo. O coração é quem manda, pouca razão e muita emoção. Mas cada vez mais eu sinto um
travo, uma marca que não acaba, que é essa sensação de ter
sido o veículo de uma grande desgraça, do branco que naquele momento histórico acaba dizimando uma nação, uma
cultura indígena. Mas não havia outra saída, com a ditadura impondo seu projeto do Avança Brasil.
diálogos&debates Há uma crítica, recorrente, sobre o trabalho dos fotógrafos, por maquiar a realidade. Susan Sontag critica o registro feito por Margareth Burke-White da
abertura dos campos de concentração, no final da Segunda
Guerra Mundial. Ela diz que as fotos amadoras, feitas por
parentes das vítimas que ali estiveram, eram mais verdadeiras, por não ter o enquadramento, o cuidado com a luz.
Nesse sentido, ela escreve que Sebastião Salgado glamouriza a pobreza. O que você diz disso?
pedro martinelli Olha, nossa profissão é assim mesmo. Não
é à toa que em inglês se diz news photographer. O papel do
jornalista da notícia é esse: mostrar a crueza do que aconteceu. E o que o mundo quer hoje é isso: ser chocado. Por
isso tem tanta gente fotografando essa coisa explícita. Fui
há pouco até Curitiba e vi uma exposição do World Press
Photo, verdadeira amostra de horrores: dor, sangue, tragédia, para chocar as pessoas. E o público olha ávido, quer
ver detalhes de uma mão decepada, um pescoço decepado.
[Pausa] Eu não concordo com essa crítica em relação ao Sebastião Salgado, dessa coisa da estética da miséria! Porque
para fazer essa estética da miséria precisa fotografar muito bem. Precisa enxergar bem essa luz. Ele é um grande fotógrafo, tem um olho incrível, uma relação especial com a
luz. Isso seria inevitável.
diálogos&debates É inevitável o quê? Que ele seja criticado?
pedro martinelli Sim. Na verdade ele faz uma outra abordagem da miséria. Ele deixa espaço para as pessoas interpretarem. Eu hoje me questiono: precisa ser tão óbvio e explicito
para mostrar a desgraça das pessoas, como nas fotos que vi
em Curitiba? Claro que não. No meu caso, com o Amazônia,
fui para lá determinado a não fazer certas imagens, como a
da menor prostituída, esses “estereótipos de denúncia”. Para
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diálogos&debates
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isso nem precisaria ir até lá. Tenho admiração e respeito
pelo povo, não quero afundá-los mais ainda. A sociedade
já descarta esses indivíduos, não os reconhece, e não sou
eu com uma fotografia que vou deixá-los mais afundados
em troco de retratar uma certa realidade. Eu não fotografo bêbado, prostituta. Isso faz bem para o ego do fotógrafo e suas “fotos maravilhosas”. Mas e a pessoa que aparece
nas fotos, como é que ela fica? Hoje tenho essa preocupação. Pois esses registros não passam daí, ninguém toca nas
causas. Por que a menina se prostitui nas ruas de Manaus?
Além da miséria, há toda a enxurrada da mídia eletrônica:
a televisão que altera os costumes, a indiazinha imitando a
Carla Perez, usando o shortinho da Xuxa. Veja, essa índia já
nasceu com uma sensualidade exacerbada, uma marca da
espécie brasileira, a sensualidade que vem do índio. Aí a televisão começa a erotizar tudo, a impor o shortinho micro,
o excesso de maquiagem... Isso gera um índice elevadíssimo de algo que ninguém divulga, que é o do incesto. Pois
a primeira agressão quem faz é o pai dessa garota. Porque
quando o pai ataca, bêbado, a garota pula no primeiro barco que passa na frente, foge para a cidade e vai se prostituir.
Por isso em Manaus tem esse monte de jovens prostitutas.
Isso não é diferente no Nordeste.
diálogos&debates Que tipo de equipamento você usa?
pedro martinelli No trabalho pessoal, só a Laica M, um câmera discreta, pequena, mecânica. Cada vez mais tenho feito só com essas câmeras, mesmo o trabalho de encomenda. No fundo, o equipamento é relativo, o que conta é a segurança, só quando consegue controlar a insegurança você
começa a fotografar bem. O news photographer trabalha
com muita ansiedade, pois, se perde a foto, perde o emprego. Você só vai a uma segunda Copa do Mundo se foi bem
na primeira, por isso o fotógrafo sai tão preocupado com o
equipamento. Se você está no campo, o time fez três gols e
você não fotografou nenhum, dificilmente terá outra chance. Então tem desafios permanentes. Cobrir uma prova de
medalha de ouro dos cem metros com barreira significa ter
controle emocional. Ou consegue ou não, porque os seus
inimigos estão a seu lado, e o resultado aparece no dia seguinte, no jornal do concorrente.
diálogos&debates Quem são os grandes fotógrafos que você
admira, hoje?
pedro martinelli Olha, não vim de uma família culta, não
tive essa formação de berço, então admiro os profissionais
que contribuíram para minha formação na prática, meus
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diálogos&debates
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“Em Mulheres da Amazônia , seu mais recente livro, Pedro Martinelli encontra o belo na simplicidade, dando a seus personagens a dimensão humana
que merecem” (Dorrit Harazim)
“Eu ando no mato, testemunho a devastação que acontece. E depois falam
em desenvolvimento sustentável! Estamos sendo enganados diariamente”
companheiros de trabalho – e não apenas fotógrafos. Sempre trabalhei em equipe e tive o privilégio de conviver com
pessoas maravilhosas. E todos eles, de certa forma, me ensinaram algo. Fotógrafos como o Evandro Teixeira, Reginaldo Valente, Armando Barreto, Aloísio Pinheiro, com eles
aprendi muito e nenhum deles é badalado. Dos famosos internacionais, tive grande admiração pela trajetória do americano Richard Avedon. Faleceu há pouco, era dos grandes.
O Robert Capa é outro nome inspirador. E entre os contemporâneos, o Sebastião Salgado, apenas brilhante. Há pouco
estive em Paris, e como somos amigos, ele me põe as caixas
do começo de algum trabalho para eu ver os contatos. É diferente de ver um livro: examinando o contato, se está vendo a alma do fotógrafo. Agora ele está preparando o projeto Gênesis, sobre a essência do homem, de onde vem o homem. Não tem gente, só paisagem, natureza e bicho. E realmente é um trabalho fantástico.
diálogos&debates Como está o fotojornalismo hoje?
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diálogos&debates
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pedro martinelli Existe isso? Isso acabou faz tempo – e é
muito triste. Não existe mais o fotojornalista. O fotógrafo
hoje fica fazendo “matéria de sorvete”: o melhor sorvete da
cidade, o melhor estacionamento, a melhor empadinha. É
um jornalismo de gabinete. Não tem mais investimento na
reportagem. Ninguém vai a lugar nenhum, porque o único critério é o do custo! Afinal, o editor baixa uma foto na
internet por R$ 40,00, como é que vai contratar um fotógrafo? Como ainda não se pode comprar na internet a foto
da empadinha eleita a melhor da cidade, então é necessário mandar o fotógrafo até lá. Mas o dia em que essa foto
estiver na internet, nem isso vai precisar mais.Veja, a Copa
do Mundo, e eu fui a quatro, era o sonho de todo fotógrafo.
Os jornais mandavam equipes imensas: oito, dez fotógrafos, repórteres. Alugavam andares inteiros dos hotéis para
transferir uma redação para lá. Se hoje mandar um fotógrafo vai perder de longe, porque quem faz fotojornalismo hoje são as agências de fotógrafos. Mesmo os grandes
jornais do mundo não têm mais equipes, mantêm um staff
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mínimo para reportagens especiais, de fôlego, tocadas em
médio prazo. O resto é comprado de agência. Dei uma consultoria para a revista Época, em 2001, pois queriam mudar
a linguagem da fotografia. Tinha bem uns sete anos que eu
não voltava a uma redação: estava tudo mudado. Lembro
da semana do ataque às Torres Gêmeas, no 11 de setembro. A revista tinha seis computadores, cada um mostrando uma foto diferente da outra, e a cada momento chegava uma imagem melhor, todas dentro do pacote feito com
a agência, quase grátis. Já mandar um fotógrafo tem custo
de encargo social, tem salário, tem que comprar filme, além
das despesas de viagem.
diálogos&debates E pensar que a revista O Cruzeiro chegou
a ter 25 fotógrafos em sua folha de pagamento...
pedro martinelli E o jornal O Globo tinha 38 no Rio de Janeiro. Na Veja eram 17 quando fui editor. Hoje são três! E
não fazem nada, só a foto do sorvete, ou retratos, shows, não
tem apuração, nem investigação, nem cobertura. Ninguém
faz matéria especial sobre nada, seja soja no Mato Grosso
ou devastação na Amazônia. E jornalismo é viajar, é andar,
é rodar o país. O que se vê agora são entrevistas feitas por
telefone, coberturas realizadas navegando a internet. Isso é
uma constatação, não é choradeira.
diálogos&debates Então o jornalismo se acomodou, é isso?
pedro martinelli Na época da Veja, eu estava num cinema,
na Bela Vista, então não havia celular, e o meu bip tocou às
3 da tarde. Liguei para a redação e naquela mesma noite estava num avião, a caminho de Roma, porque havia morrido
o papa Paulo VI. Fiz a cobertura do enterro de Paulo VI, a
eleição do João Paulo I, três meses de Roma. Jornalismo era
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isso: “Vai lá e faz as fotos do contato com os panarás! Não
quero saber quanto tempo dura, quanto custa. Você fica lá
até sair esse contato, tá bom?!” Quando fui para o Xingu,
falaram que eu ficaria dois meses, fiquei três anos! Quando o jornal achava que algo era importante, investia. Mas
nossa principal função era formar opinião, e isso não se faz
mais. Fizemos sempre mal, continuamos não fazendo. O
jornal fala a linguagem de 1% da população, que é 1% do
PIB. Ainda outro dia fui a Curitiba num vôo às 7:30 da manhã, passei na banca para comprar a Folha e o Estado, não
tinha nenhum dos dois. Atrasou a entrega e como chegam
juntos, no mesmo caminhão... Agora nem essa concorrência existe, aquela disputa para ver quem chegava primeiro.
Falta adrenalina, está todo mundo acomodado, ninguém
vai à luta, buscar a notícia.
diálogos&debates E não dá para ficar indiferente frente a isso?
pedro martinelli Esse é meu drama hoje, é existencial, somatizo tudo isso, por vivenciar uma realidade que não é mostrada. Eu ando no mato, testemunho a devastação que acontece. E então falam em desenvolvimento sustentável, é um
absurdo! Estamos sendo enganados diariamente. O madeireiro faz uma entrevista coletiva aqui, pega um avião, coloca
uma dúzia de repórteres dos principais jornais, leva o grupo para uma gleba de mentira – que é um jardim –, derruba um pau para eles filmarem. Mas o que a televisão ou o
jornal não filmam, pois os repórteres não verão, é esse pau
sendo retirado de dentro do mato, que é a grande devastação. A catástrofe é o trator que entrará para retirar a madeira. Então isso aí me mata. Quando nós vamos contar isso?
Se a imprensa tivesse independência, autonomia, as coisas
estariam sendo contadas de outra maneira. 
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que justiça
Polêmicas decisões do
último Campeonato
Brasileiro fomentam
discussão sobre o papel
da Justiça Desportiva, que
desde 1º de janeiro conta
com um novo Código
é essa?
POR FERNÃO KETELHUTH
N
Ilustração Kipper
o dia 21 de dezembro de 2004, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva ratificou em segunda
instância a retirada de 24 pontos do São Caetano, como conseqüência pela morte do jogador
Serginho. O clube foi inserido no artigo 214 do
Código Brasileiro de Justiça Desportiva, que prevê penalização à equipe que incluir em seu plantel um atleta sem
condições de higidez. A agremiação, que terminara o Campeonato Brasileiro em quinto lugar, desceu a 18º, deixando
de avançar à Copa Sul-americana – e, conseqüentemente,
lucrar com sua bem-sucedida campanha no Nacional.
O julgamento, divulgado amplamente pela imprensa,
serviu para fomentar o debate sobre o papel exercido atualmente pelos tribunais esportivos. Caberia ao STJD punir uma equipe com perda de pontos? O rigor seria mantido caso o São Caetano fosse um clube de grande porte?
Por que tal procedimento não foi adotado em episódios
anteriores?
Ao mesmo tempo que dúvidas surgiam a respeito da
credibilidade da Justiça Desportiva, um fato não menos
importante se consumava no Rio Grande do Sul: o rebaixamento para a segunda divisão do Grêmio, um dos oito
maiores clubes brasileiros. Se durante a década de 90 a so-
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ciedade se acostumou com manobras que evitavam o descenso de equipes tradicionais (apelidadas pejorativamente
por “viradas de mesa”), hoje a idéia de preservar um time
exclusivamente por sua importância parece um tanto fora
de moda.
O maior torneio do mundo
A Justiça Desportiva foi acolhida pela Constituição Federal de 1988 para preencher o lugar que até então pertencia à Justiça Comum. No entender de seus criadores, só
um órgão municiado de conhecimentos especializados seria competente para solucionar conflitos ligados à atividade. No entanto, devido a suas polêmicas decisões, os tribunais esportivos jamais gozaram de aceitação unânime. No
decorrer dos anos, caíram em descrédito junto à opinião
pública e passaram a ser chamados corriqueiramente por
“tapetão”, termo derivado da expressão “varrer para debaixo do tapete”.
A primeira “virada de mesa” ocorrida com a conivência
da Justiça Desportiva se deu em 1993. Naquela ocasião, dirigentes do Clube dos 13, associação que reúne as principais
agremiações do país, apresentaram à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) proposta para realização de um cam-
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peonato com 32 equipes, divididas em quatro grupos. De- do com a decisão da CBF de ceder a organização do tortalhe: 16 seriam garantidas automaticamente no Brasileiro neio ao Clube dos 13. O resultado foi a Copa João Havedo ano seguinte, salvando-se do rebaixamento independen- lange, maior torneio já realizado no Brasil, com a particitemente da colocação final. O Grêmio fazia parte do gru- pação de 116 times.
po dos protegidos, embora encerrasse a Série B da tempoTamanha confusão teve seu estopim em 30 de dezembro
rada anterior em 11º lugar. Foram promovidos à elite, além de 2000, quando um alambrado do estádio de São Januádo time gaúcho, Criciúma, Fortaleza, Ceará, América-MG, rio caiu, ferindo cerca de 210 torcedores que acompanhaRemo, Paysandu, Náutico, Santa Cruz, Portuguesa, Coriti- vam a final entre Vasco e São Caetano. Embora o artigo 299
ba e Atlético-PR. E Bahia, Botafogo e Atlético-MG, mesmo do Código Brasileiro Disciplinar de Futebol estabelecesse
fechando o torneio nas últimas posições, mantiveram-se que “impedir o prosseguimento ou dar causa à suspensão
na primeira divisão.
de partida de campeonato” implicaria ao clube responsável
A proteção aos “grandes” via regulamento deixou de multa e perda de pontos, o Superior Tribunal permitiu a reexistir em 1994, embora os imbróglios extracampo con- alização de nova final, em vez de decretar a equipe do ABC
tinuassem. Em 1996, o Fluminense terminou o Nacional como campeã nacional.
em penúltimo lugar, mas teve a permanência na elite avaEm 2001, com a volta do Campeonato Brasileiro ao
lizada pelo Superior Tribunal. O Tricontrole da CBF, retornaram à elicolor Carioca foi novamente rebaixate Fluminense, Bahia e Juventude. O
do no ano seguinte e só retornou ao
A sociedade se acostumou torneio contou com 28 times – os 25
torneio nacional três anos mais tarde,
do Módulo Azul da Copa João Havecom manobras que
beneficiado por manobra que culmilange, além do Botafogo-SP, rebaixanou com a criação da Copa João Hado em 99. São Caetano e Paraná, finaevitavam o descenso de
velange.
listas do Módulo Amarelo, foram inequipes tradicionais (as
Nenhum campeonato foi tão debacluídos após obterem liminar na Justido quanto aquele que homenageou
tiça Comum.
“viradas de mesa”), mas
o ex-presidente da Federação Internahoje a idéia de preservar Um novo comportamento
cional de Futebol (Fifa). A Copa João
Havelange teve seu embrião em nova
Embora tenha se iniciado com uma
um time só por sua
tentativa da CBF de preservar os clubriga judicial envolvendo Figueirense
importância parece um
bes mais importantes no Brasileiro de
e Caxias, o Campeonato Brasileiro de
1999. A entidade instituiu o descenso
2002 é considerado divisor de águas
tanto fora de moda
por média: as quatro equipes rebaixano processo de moralização do futedas seriam determinadas por meio de
bol. Naquele ano, Palmeiras e Botafoum complicado cálculo envolvendo os pontos obtidos nos go terminaram a competição respectivamente em 23º e 24º
campeonatos de 1998 e 1999. O Gama, que terminara a
lugar e foram rebaixados à Série B. No entanto, em vez de
competição em 15ª lugar, desceu à Série B, enquanto o Bo- tentarem seguir na primeira divisão via Justiça Desportiva,
tafogo permaneceu na primeira divisão ajudado por uma ambos aceitaram o descenso e criaram aquilo que se conpunição de última hora aplicada ao São Paulo – que supos- vencionou chamar por “jurisprudência do bem”. Em 2003,
tamente escalara o atacante Sandro Hiroshi em situação ir- o Bahia, também sócio do Clube dos 13, desceu à “Segunregular. Os três pontos adquiridos pelo clube paulista foram dona”, acompanhado na temporada seguinte pelo Grêmio.
repassados à agremiação carioca, embora uma disposição A idéia de usar artifícios escusos para evitar o descenso pade lei compelisse decisão diferente.
rece, enfim, sepultada.
Prejudicada, a diretoria do Gama solicitou ajuda ao sin“Creio que tal mudança se deve a um processo de consdicato dos treinadores de Brasília e conseguiu liminar na cientização. Chegamos a um ponto em que a sociedade já
Justiça Comum para voltar à primeira divisão. Como os não aceita que as regras valham apenas para determinadas
clubes de futebol só podem remeter-se à Justiça Desporti- agremiações. Não se pode conceber que haja uma regra e
va, a agremiação foi suspensa de todas as competições. O que ela se aplique com exclusividade a clubes menores”, avacaso, que chegou a ser avaliado pela Fifa, só foi soluciona- lia o advogado Paulo Rogério Amoretty Souza, presidente
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do Instituto Gaúcho de Direito DesComo exemplo da referida inefiportivo. “Penso que há hoje uma viciência, Gandra menciona a punição
“A Justiça Desportiva
gilância pública da sociedade. Nesimposta ao São Caetano pela morte
é um feudo, pois não
te aspecto a imprensa tem uma fundo zagueiro Serginho. O jogador soção importantíssima, que é a de inforfreu uma parada cardíaca em 27 de
goza da imparcialidade
mar bem.” De acordo com Amoretty,
outubro, durante partida de seu time
e respeitabilidade da
a quantidade de protestos movidos
contra o São Paulo, no estádio do MoJustiça Comum. Nem a
por clubes tende a diminuir com “o
rumbi. De acordo com prontuário asaperfeiçoamento do sistema”. “Nunca
indicação dos magistrados sinado pelo cardiologista Edimar Bocestaremos livres de alguma ocorrênchi, que chefiou os exames do atleta no
é realizada por concursos”, Instituto do Coração, Serginho sofria
cia. Mas, na medida em que o tribunal
vem penalizando, os clubes tendem a
problemas cardíacos e não poderia joafirma o jurista Ives
se aperfeiçoar”, diz. “Vivemos um perígar futebol. O clube foi incluído no arGandra Martins
odo de transição. Por que surgiam tantigo 214 do Código Brasileiro de Justitas ações de clube contra clube? Porça Desportiva, por escalar “atleta que
que havia falhas internas nessas equinão tenha condição legal de participes. Hoje as condições legais dos jogadores, por exemplo, par de partida, prova ou equivalente”. Além da perda de 24
são observadas mais severamente”, explica.
pontos na tabela, a agremiação recebeu multa de R$ 50 mil.
O professor de direito constitucional Ives Gandra Mar- O presidente Nairo Ferreira foi suspenso por dois anos e o
tins, que assina com Celso Ribeiro Bastos os 15 volumes de médico Paulo Forte, por quatro. “Considero um equívoco
“Comentários à Constituição do Brasil”, não é tão otimista a punição esportiva ao São Caetano e entendo que o clube,
quanto Amoretty. No entender do advogado, a “Justiça Des- se recorresse à Justiça Comum, seria bem-sucedido. Creio
portiva é, de rigor, um feudo, pois não goza da imparciali- que a maior parte das decisões desportivas não resistiriam
dade e respeitabilidade da Justiça Comum. Nem a indica- ao crivo de uma Justiça imparcial”, critica Gandra.
ção dos magistrados é realizada por concursos. A expressão
Pode, entretanto, o clube dispor de seu atleta, sujeitando‘tapetão’ bem esclarece qual é a sensação que o povo tem da o a risco? A vida não é um bem indisponível? Para o advoJustiça Desportiva. Jamais uma expressão como esta seria gado Heraldo Panhoca, da Comissão Permanente de Estuaplicada à Justiça Comum”, diz.
dos do Ministério do Esporte, a interpretação dada ao arti-
MARCAÇÃO CERRADA
E
ntrou em vigor no dia 1º de janeiro o novo Código Brasileiro de Justiça Desportiva. O documento, que unifica
a legislação aplicada ao esporte profissional e amador,
prevê multas de R$ 15 mil a R$ 500 mil por doping, corrupção,
agressão física e demais infrações graves praticadas durante
partidas. O texto, preparado em conjunto por 11 especialistas
em direito esportivo, chama atenção pelo rigor. No artigo 253,
por exemplo, determina suspensão de 120 a 540 dias para o
atleta que agredir “qualquer outro participante do evento desportivo”. O parágrafo 1º prevê aumento da pena para 240 a
720 dias “se da agressão resultar lesão corporal grave”. O parágrafo 2º é ainda mais severo: diz que, “se ultrapassado o prazo
de suspensão fixado pelo Órgão Judicante e o atleta agredido
permanecer impossibilitado da atividade por força da agressão
sofrida, continuará o agressor suspenso até a total recupera-
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ção do agredido”. “O objetivo da nova legislação é fazer que o
infrator sinta a conseqüência de tentar prejudicar um espetáculo esportivo”, justificou o ministro do Esporte Agnelo Queiroz,
durante apresentação do documento à imprensa. “Trata-se de
grande avanço para o esporte brasileiro. O Código é moderno
e ajustado à nova realidade, pois acelera o julgamento das infrações cometidas.”
Segundo o texto, invasões de campo e até mesmo simulações de lesão feitas por jogadores estão sujeitas a multa. O
texto promete ainda “inspeções surpresas” em treinamentos,
para realização de exames antidoping. A assimilação de novas
tecnologias também faz parte do pacote de novidades. Vídeos
e fotografias de partidas serão aceitos como provas em julgamentos. Não vão alterar o resultado de um duelo, mas podem
servir na apreciação de alguns casos. 
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go 214 foi equivocada. No seu entender, a condição ilegal a dirigentes das equipes afetadas, como Santos e Grêmio. O
que o texto se refere significa problema na documentação time paulista, penalizado cinco vezes devido aos objetos
do atleta, não fragilidade de saúde. Caberia, portanto, à Jus- atirados por seus torcedores no gramado da Vila Belmitiça Comum analisar o caso e punir os culpados. “A condi- ro, sagrou-se campeão jogando as rodadas finais no inteção médica ou clínica em nada tem ligação com a desporti- rior do estado. A equipe gaúcha, punida por causa semeva. Perante a CBF, no que diz respeito ao registro documen- lhante, mandou jogos em estádios menores, como o Bento
tal, o jogador tinha condições de atuar”, nota.
Freitas, em Pelotas. Segundo Amoretty, é preciso diferenCom 53 anos daquilo que classifica como “militância na ciar que tipo de objeto é lançado ao campo e qual risco ele
área esportiva”, o jurista Valed Perry engrossa o coro dos acarreta a atleta e árbitro antes de avaliar as recentes dedescontentes. Sugere que o presidente do Superior Tribu- cisões. “Deve haver punição se o objeto causar danos. No
nal, Luiz Zveiter, agiu com excessivo rigor e lamenta a puni- meu entendimento, contudo, se um copo vazio de água ou
ção aplicada ao clube. Como argumento, diz que o jogador uma garrafa de plástico é lançada e nem chega próxima
tinha o livre-arbítrio para decidir seu futuro, mesmo ciente à lateral, a infração não se configura”, opina. O advogado
dos riscos de saúde que corria. “Atirou-se um ‘acórdão’ so- não concorda com a forma de punição aplicada pelo Subre seu túmulo”, diz, em texto publicado no site do Instituto perior Tribunal no último Brasileiro, que em casos ponBrasileiro de Direito Desportivo. “Foi
tuais “beneficia o infrator”. “Vejam o
como se lhe dissessem que os pontos
exemplo do Palmeiras no ano passaobtidos junto com os companheiros
“A partir de 2005, com o do. Devido a uma punição ao Grêmio,
passariam a ser malditos e lhe seriam
o time teve de jogar em Pelotas. Em
novo Código de Justiça
arrancados, mais que isso, em dobro,
vez de descer do avião em Porto Alecomo castigo pelo seu denodo, como
gre e ir para o hotel, a delegação teve
Desportiva em vigor, o
punição por todo seu sacrifício”, conde viajar horas de ônibus. Além disso,
tinua. O auditor Antonio Maria Zorzi, clube punido jogará em seu
o jogo foi disputado num campo meque participou da comissão, tem opiestádio sem a presença de nor, com gramado ruim”, exemplifinião oposta à dos colegas. Considera
ca. “Mas a partir de 2005, com o novo
torcida,
o
que
parece
mais
o julgamento “um marco” para a JusCódigo de Justiça Desportiva em vitiça Desportiva Brasileira, por consjusto. Perde renda e apoio gor, o clube punido vai jogar em seu
cientizar os dirigentes da responsasem a presença de torcida, o
do público”, diz o advogado estádio
bilidade que têm em mãos. “Os times
que considero uma pena mais justa. O
agora não poderão colocar os atletas
clube perde renda e apoio do públiAmoretty Souza
em campo e torcer para que nada dê
co”, conta, citando mudança presente
errado”, afirma.
no documento homologado pelo MiJusta ou não, o fato é que a punição aparentemente mu- nistério do Esporte.
dou a visão de determinados dirigentes e médicos de cluTambém esteve em pauta durante o Nacional a discusbe sobre a importância dos testes cardiológicos. Durante a são sobre as férias dos jogadores. Segundo o vice-presidente
pré-temporada, em janeiro, todas as equipes de grande por- do Sindicato dos Jogadores no Brasil, Rinaldo Martorelli, os
te agendaram exames para seus jogadores. Em São Paulo, 30 dias de descanso concedidos aos atletas não podem ser
lei sancionada no dia 7 de janeiro pelo prefeito José Serra parcelados, por se tratar de uma profissão que exige exces(PSDB) obriga a instalação de desfibriladores em todos os sivamente do físico e contém especificidades. Amoretty diz
locais onde exista aglomeração superior a 1,5 mil pesso- desconhecer “trabalho médico ou de preparação física que
as. Torna-se assim obrigatória a presença do aparelho nos apóie tal tese” e alfineta: “O jogador de futebol tem acomprincipais estádios e ginásios da cidade.
panhamento médico e preparação física que poucos profissionais de diversas atividades têm. Portanto, parece-me
Mando de campo e férias
óbvia a possibilidade de repartição”, diz. O professor GanA morte de Serginho não foi o único acontecimento a dra concorda com o parcelamento, mas faz uma ressalva.
suscitar conflitos jurídicos no Campeonato Brasileiro. A “Sou favorável às férias. Todavia, creio que se deve regulapunição a clubes com perda de mando de campo revoltou mentá-las”. 
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em boas mãos
Geração de músicos talentosos
livra viola caipira de estigma
marginal, dando a ela status de
instrumento de concerto
P
ara alguns deve ter sido algo tão exótico quanto
os filmes iranianos e indianos. No segundo semestre de 2004, durante a 28ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, foi exibido o documentário Helena Meirelles – A Dama da Viola
(direção de Francisco de Paula), contando a vida e a carreira da octogenária artista sul-mato-grossense. Embora não
tenha obtido a mesma visibilidade de películas similares recentes – como Nelson Freire, dirigido por João Moreira Salles, e Meu Tempo É Hoje, sobre o compositor Paulinho da
Viola, assinado por Izabel Jaguaribe –, o filme foi mais um
item revelador do crescente interesse que a viola caipira e
seu universo vêm despertando nos últimos anos.
Mesmo sendo um dos mais significativos elementos
da cultura interiorana brasileira, a viola caipira ainda hoje
guarda um certo caráter marginal. Lembra um pouco o que
acontecia com o violão nas décadas de 1920 e 1930: quem
fosse pego pela polícia carregando o instrumento pela rua
era levado em cana previamente, sob suspeita de ser contraventor ou baderneiro – ou ambos. Entre outros motivos, por conta da obra de Heitor Villa-Lobos dedicada ao
“pinho” e pela valorização que ele ganhou na bossa nova, o
violão conseguiu desvencilhar-se da antiga sina e até mesmo ganhou status de “o” instrumento nacional.
Embora não se tenham registros de casos de pessoas que
tenham ido parar na cadeia por empunhar uma viola, difi-
M Ú S I C A
POR ALEXANDRE PAVAN
cilmente seus tocadores são vistos como concertistas, principalmente porque ela ainda é encarada como um instrumento exótico, fruto de uma subcultura.
Dessa forma, o reconhecimento dos artistas que compõem esse universo geralmente demora a acontecer – isso
quando acontece. O caso mais emblemático é o do músico
mineiro José Barbosa do Santos, nascido em Brasília de Minas (norte do Estado), em 1912, e apelidado de Zé Coco do
Riachão. Compositor, multiinstrumentista e luthier, gravou
o primeiro disco apenas em 1980, intitulado Brasil Puro, e,
apesar da técnica impressionante, da criatividade incomum
e do extenso repertório, teve uma carreira tão acidentada
quanto viagem em lombo de burro. Antes de morrer, pobre e praticamente esquecido, em 1998, lançaria mais dois
álbuns, Zé Coco do Riachão e Vôo das Garças, um legado
que permanece pouco lembrado, pois os títulos estão fora
de catálogo.
O aparecimento de Helena Meirelles também foi tardio.
Só em 1993, aos 69 anos, seu toque rústico ganhou destaque,
quando a edição norte-americana da revista Guitar Player
a indicou como artista revelação das cordas. Filha de boiadeiros e autodidata, Helena aprendeu a dedilhar a viola observando os músicos amadores pantaneiros e tendo como
inspiração a natureza do Mato Grosso do Sul. Sofreu preconceito e enfrentou punições de todos os tipos – primeiro
dos pais, depois dos maridos – por escolher a música como
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Paulo Freire e Ivan Vilela: tirando a viola da marginalidade e trazendo-a para os teatros e salas de concerto
profissão. Após muitos anos vivendo de mochila nas costas,
apresentando-se em bares e prostíbulos do Pantanal, foi levada por um de seus 11 filhos para São Paulo, onde seria
“descoberta” pela imprensa.
A citação de seu nome na revista estrangeira impulsionaria sua carreira discográfica – a obra da violeira está
contemplada em quatro CDs: Helena Meirelles (1994), Flor
de Guavira (1996), Raiz Pantaneira (1997) e Helena Meirelles ao Vivo (2002). Contraditoriamente, o primeiro álbum
de Helena foi lançado justamente numa época em que a
música sertaneja ganhava uma feição cada vez mais pop
e expulsava as violas dos palcos e discos. Da música caipira tradicional, as duplas que tiveram o auge de seu sucesso nos anos 1990 conservaram apenas o estilo de cantar em dueto.
A artista mais representativa na defesa da cultura interiorana é a cantora, pesquisadora e professora de folclore
Inezita Barroso, que há 25 anos comanda o programa Viola
Minha Viola, na TV Cultura de São Paulo. Embora Helena
Meirelles tenha ganhado projeção após aparecer na Guitar
Player, em 1993, a bem da verdade, sua primeira aparição
pública aconteceu no programa de Inezita, anos antes, ainda na década de 1980.
Discípula de Mário de Andrade e a mais importante in-
térprete da música caipira, Inezita Barroso transpôs para
a televisão, de maneira quase didática, seu empenho pela
defesa e valorização da viola, em particular, e do universo
caipira, como um todo. Nascida na Barra Funda paulistana
mas com uma bagagem musical e sentimental formulada
nas rodas de viola do interior de São Paulo, Inezita foi uma
das primeiras mulheres a se dedicar à pesquisa folclórica.
Embrenhou-se pelo Brasil e envolveu-se afetivamente com
danças como a catira (ou cateretê, em que a moda de viola
é acompanhada por palmeado e coreografia de sapateado) e
festas como a Folia de Reis (que se estende da noite de Natal ao Dia de Reis, conduzida por violeiros).
Como defensores e promotores do instrumento também
poderiam ser citados os músicos Renato Andrade, Adelmo Arcoverde, Passoca, Braz da Viola (que comanda desde
1990 uma orquestra de viola caipira, em São José dos Campos), Tavinho Moura, Chico Lobo, Pereira da Viola, entre
tantos outros.
Alguns violeiros, no entanto, que hoje estão na faixa etária entre 40 e 50 anos, se destacam como “modernizadores”
do instrumento, e aos poucos vêm tirando a viola da marginalidade, elevando-a aos teatros e salas de concertos. Apresentando-se com freqüência nos grandes centros urbanos,
artistas como Roberto Corrêa, Ivan Vilela e Paulo Freire
PARA OUVIR: Extremosa-rosa (Viola Corrêa, R$ 20), Roberto Corrêa; Esbrangente (Viola Corrêa, R$ 20), Roberto Corrêa,
Paulo Freire e Badia Medeiros; A Viola e Minha Gente (Lapa, R$ 20), Renato Andrade; Rio Abaixo (Independente, R$
20), Paulo Freire; Violeiros do Brasil (Núcleo Contemporâneo, R$ 21), Vários. PARA LER: Música Caipira – Da roça ao
rodeio (Editora 34, 438 págs., R$ 33), de Rosa Nepomuceno. SITES: Roberto Corrêa – www.robertocorrea.com.br; Paulo Freire – www.paulofreire.com.br; Viola Caipira – www.violacaipira.com.br; Brasil Festeiro – www.brasilfesteiro.com.br
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partem da tradição e formam platéias ao reiterar e valori- turas – inicialmente da indígena e, mais tarde, da africana.
zar trabalhos como os de Inezita Barroso, Zé Coco do RiaApresentando-se com dez cordas, arranjadas na maneira
chão e Helena Meirelles.
de 5 duplas, a viola cabocla em nada se parece com a viola
Corrêa é figura de proa dessa geração. Mineiro de Cam- que é utilizada nas orquestras – esta, mais semelhante a um
pina Verde e vivendo em Brasília desde os anos 1970, onde violino, recebe na roça o nome de rabeca. A riqueza harmôse graduou em música, ele é o mais importante estudioso nica do instrumento caipira é contemplada por uma grande
da viola e formulador do primeiro grande método sobre o variedade de afinações, a maior parte identificada por noinstrumento (Viola Caipira, 1983). Lançou 11 discos, solan- mes curiosos: cebolão, cebolinha, rio abaixo etc.
do ou sendo acompanhado por parceiros, como é o caso de
Uma variante rústica do instrumento, e de sonoridade
Esbrangente (2003), no qual o músico tem companhia de muito peculiar, é encontrada no pantanal do Mato Grosso.
Badia Medeiros e Paulo Freire.
Esculpida num tronco de madeira, a viola de cocho possui
Tendo estudado violão erudito, o paulistano Freire en- cinco cordas simples, quatro delas feitas de tripa animal –
veredou pela viola depois de morar
às vezes substituídas por linha de pesno sertão do Urucuia (norte de Mica – e uma revestida de metal. Não
nas), aperfeiçoando seu toque com o
se sabe ao certo sua origem, mas esAo citar a palavra
mestre local Manoel de Oliveira. Já
pecula-se que seja uma derivação do
‘esbrangente’, neologismo alaúde árabe.
Medeiros, 64 anos, nascido em Unaí
(MG), é artista de formação popular,
O Brasil também herdou de Porroseano para se referir
músico e compositor que também
tugal a devoção por São Gonçalo de
a algo que traz o mundo
exerce as funções de guia de Folia de
Amarante, considerado o santo proteReis e festas do Divino, além de ser
dentro de si, Badia Medeiros tor dos violeiros. Cultuado a partir de
exímio dançador de catira e lundu.
1551, conta-se que São Gonçalo cosajudou a definir a própria
A reunião desses três personagens
tumava passar as noites dançando
num mesmo álbum é reveladora da
com as prostitutas, para evitar que peviola caipira
vitalidade da expressão genuína da
cassem. Por isso, o santo comumente
cultura interiorana e de seu instrué reverenciado com danças, que por
mento-símbolo. E ao citar a palavra esbrangente, neologis- aqui acontecem por volta do dia 10 de janeiro, sob os nomo roseano para se referir a algo que traz o mundo den- mes de Terço, Roda ou Baile de São Gonçalo. O santo tamtro de si, Badia Medeiros ajudou a definir a própria vio- bém faz muito sucesso entre as mulheres, pois acredita-se
la caipira.
que ele tenha “propriedades” casamenteiras.
O folclore da viola caipira, no entanto, é mais tinhoso
O som das modas
ao falar no demônio do que nos santos. Os tocadores tra“A viola é o coração da música brasileira”, arremata a dicionais acreditam que a arte de pontear o instrumento é
jornalista Rosa Nepomuceno, autora do livro Música Cai- um dom de Deus, e quem não nasce com essa bênção não
pira – Da Roça ao Rodeio. “Nem pandeiro, nem cuíca, nem obtém sucesso na carreira. A não ser que faça o pacto com
sanfona, nem violão. Esculpida num toco de pau, com dez o diabo. Qualquer violeiro sabe pelo menos uma dúzia de
cordas de tripa e toscos cravelhais, deu forma às melodias e simpatias ou receitas para se estabelecer esse pacto, mas racadência às poesias que aos poucos definiram o perfil mu- ramente são encontrados aqueles que confessam ter feito
sical do povo da terra.”
um acordo com “o outro lado”. Mesmo porque lendas conA viola é um instrumento que, mesmo não aparecendo tadas são desencorajadoras – nelas o violeiro que faz o pacmuito no rádio ou na televisão, nunca sai de moda – pelo to quase sempre acaba louco ou sem vida.
menos das modas de viola. Também conhecida por nomes
Na verdade, os grandes tocadores já provaram que um
poéticos, como viola de arame, cantadeira, chorosa, serena ponteado admirável não vem de Deus nem do diabo, mas das
ou viola brasileira, ela foi trazida para estas bandas por co- mãos de alguém que conhece e entende a roça, o sertão. 
lonos portugueses, se embrenhando principalmente pelas
regiões sudeste e centro-oeste. Com os anos, o instrumento Alexandre Pavan, jornalista, é co-autor, com Irineu Franco Perpetuo, do livro
e seu universo foram ganhando contribuições de outras cul- Populares & Eruditos (Invenção, 2001).
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banco central: autonomia
ou independência?
Pela política de juros altíssimos, o BC se tornou um
ator que rouba a cena. Aqui, uma discussão sobre sua
composição, o controle do Congresso, sua possível
autonomia e a transparência de suas decisões
POR SÉRGIO PRAÇA
A
Ilustração Kipper
ntônio Palocci e Henrique Meirelles são, discu- rem o Congresso, os partidos políticos e o sistema eleitoral
tivelmente, os dois homens mais importantes do pelas trapalhadas do país, certos acadêmicos-jornalistaspaís atualmente. Não se trata de incorrer em um intelectuais enxergam o Banco Central (Bacen) como bola
certo reducionismo econômico, que confere a
da vez. O Brasil tem as maiores taxas de juros do mundo?
essa área do governo maior importância do que Falta autonomia ao Bacen. O mercado pode se abalar com
a social, educacional etc. Mas sim de reconhecer o óbvio: denúncias que afetam o presidente do Bacen? Demos a ele
tudo depende da economia. Para citar a frase colocada pelo status jurídico de ministro.
marqueteiro James Carville na porta do QG da campanha
É necessário, dizem, aperfeiçoar as instituições econôde Bill Clinton em 1992: it’s the economy, stupid. E quem micas para reduzir a fragilidade do país frente ao mercado
cuida da economia do governo Lula são Antônio Palocci e financeiro internacional. Discutiremos, então, quatro ponHenrique Meirelles.
tos referentes ao desenho institucional do Banco Central:
Sobre Palocci não há muita controvérsia. Ocupa um
sua composição, o controle do Congresso sobre sua atuacargo estável no governo, tendo o presidente deixado re- ção, sua independência ou autonomia, e a transparência de
lativamente claro que seu mandato será conduzido com suas decisões.
um olho e meio nos temas econôApós quase uma década de presimicos. Ex-trotskista, petista de longa
dência de um ex-sociólogo que dedata, carregando nas costas um cresSerá necessário aperfeiçoar nunciou a existência de anéis burocimento de -0,2% do PIB em 2003 e
cráticos e criou um ministério com o
as
instituições
econômicas
cerca de 5% em 2004, Palocci comanintuito de reformar o setor publico, é
da uma instituição estável: é ministro
inusitado encontrar clamor pela bupara reduzir a fragilidade
da Fazenda.
rocratização de uma instituição ecodo país frente ao mercado nômica na imprensa (“Que tal buroO mesmo não pode ser dito do
Banco Central, presidido pelo ex-tucratizar o Banco Central?”, Vinicius
financeiro internacional?
cano Henrique Meirelles. Após culpaMota, Folha de S.Paulo, 29/12/2004).
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Para prevenir que os diretores do Bacen sejam oriundos
do mercado financeiro (e, portanto, atendam a esses interesses), é necessário que funcionários de carreira do setor
público sejam nomeados para a diretoria do Banco Central, argumenta Mota.
Se considerarmos a origem dos dois presidentes mais recentes do Bacen, é uma proposta razoável. Armínio Fraga,
último a dirigir o Banco sob FHC, trabalhou para o megaespeculador George Soros. Meirelles presidiu mundialmente o BankBoston. Principalmente no caso do último, que
continua recebendo algo que ainda não se sabe se é salário
ou aposentadoria do banco em que atuava antes de assumir cargo público.
Quem indica o presidente do Bacen é o presidente da
República. Mas o candidato à função é sabatinado no Senado Federal antes de assumir. Será que nossos congressistas não conseguiriam detectar com suas perguntas sinais de
subserviência extrema ao mercado? Cecília Olivieri defendeu dissertação de mestrado no Departamento de Ciência
Política da USP sobre a composição do Banco Central. Ela
opina: “Faz alguma diferença o simples fato de o presidente
do BC saber que será sabatinado publicamente pelos representantes do povo. Eles se importam com isso. Entrevistei
os presidentes e ex-presidentes do Bacen e eles afirmaram
que se preparam para as perguntas dos senadores. É sempre bom um ocupante de cargo público saber que pelo menos em algum momento ele será questionado”.
Mas a sabatina funciona? Olivieri é categórica: “Não. Os
senadores não têm condições de formular questões relacionadas às atividades do Bacen. Muitos por falta de conhecimento, muitos por falta de interesse. A sabatina se tornou
um espaço para barganhas políticas”.
Barganhas políticas também explicam o comportamento do Legislativo em relação ao Banco Central pós-sabatina,
segundo Fabiano Santos e Inez Patrício (“A moeda e o poder Legislativo no Brasil: um estudo de prestação de contas
de bancos centrais no presidencialismo de coalizão”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 49, junho de 2002).
A teoria econômica postula que os políticos são, por motivos eleitorais, animais inflacionários: desejam distribuir recursos para seus redutos sem considerar as conseqüências
macroeconômicas. Mas sabem que, quanto mais sucesso
tiverem nessas irresponsáveis políticisco Lopes (responsabilizado civil e
cas distributivistas, mais cedo o país
criminalmente pelo socorro aos banApenas com as CPIs os
todo quebrará. Portanto, delegam ao
a CPI promoveu, de acordo com
deputados federais atuam, cos),
Executivo as tarefas referentes à políos autores, mais procedimentos fortica econômica. Assim, as decisões do
mais para a prestação de contas do
de alguma maneira, na
Bacen encontram respaldo na coaliBanco Central.
fiscalização do Banco
zão governista estruturada pelo parCentral. O principal exemplo A transparência do Bacen
tido do presidente.
A conseqüência disso para o conNo entanto, é possível afirmar que
foi a CPI dos Bancos
trole do Banco Central pelos legislao Bacen é suficientemente transpacriada em 1999, pósdores, argumentam Santos e Patrício,
rente? Para Eduardo Kugelmas, proé que apenas quando são constituífessor do Departamento de Ciência
desvalorização do real
das CPIs os deputados atuam, de alPolítica da FFLCH da Universidaguma maneira, na fiscalização do Bade de São Paulo e organizador (com
cen. O exemplo utilizado pelos autores é a CPI dos Bancos Lourdes Sola e Laurence Whitehead) do livro Banco Cende 1999, montada para, entre outros assuntos, apurar a res- tral, autoridade política e democratização: um equilíbrio deponsabilidade do Bacen na operação de socorro aos ban- licado (Ed. FGV, 2002), “o Bacen é hoje certamente mais
cos Fontecindam e Marka após a desvalorização cambial transparente do que em outras épocas. Há um sistema de
de janeiro de 1999. Além de cenas histriônicas como o “teje publicação das minutas das reuniões, um conjunto de esclapreso” berrado pela senadora Heloisa Helena (ex-PT, atu- recimentos que são facilmente acessíveis, um website que é
al PSOL) em direção ao então presidente do Bacen, Fran- muito consultado por pessoas que trabalham no mercado
A S TA R E FA S D O B ANCO CENTRAL Por Patricia Moterani
S
ocióloga formada pela USP, professora da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e da Faculdade de Economia
da USP, Maria Rita Loureiro desenvolve atualmente pesquisas na área de sociologia política. Um de seus trabalhos que
deu origem ao livro Os Economistas no Governo: gestão econômica e democracia (Ed. FGV, 1997). Loureiro conversou com
a reportagem de Diálogos&Debates sobre a atuação do Banco
Central. Leia os principais trechos:
diálogos&debates Qual, entre tantas, é a principal tarefa do Banco Central atualmente, e o BC é devidamente responsabilizado
ou não pelo cumprimento dessa tarefa?
maria rita loureiro O Banco Central tem duas funções fundamentais. Uma é a de ser guardião da moeda. A moeda é um bem público e não pode ser deteriorada, pois é parâmetro para toda a
sociedade. Além disso, tem a função de fiscalização do sistema
bancário. Acredito que o Bacen não é devidamente responsabilizado politicamente pelo não cumprimento e pelas decisões,
basta lembrar a desvalorização do câmbio no início de 1999.
diálogos&debates O BC é suficientemente transparente, principalmente em relação às reuniões do Copom?
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maria rita loureiro Desde a crise de 1999, estabeleceu-se o regime de metas de inflação, ponto importante na gestão da política monetária. A exigência de publicação das atas do Copom
dá transparência das decisões à sociedade, em particular ao
mercado financeiro. Os avanços – a publicação das atas e a
regra que diz que o presidente do Banco Central tem que enviar uma carta aberta ao Ministro da Fazenda quando as metas não são atingidas – não são suficientes quando comparados com as de outros países. Diversos outros bancos centrais
publicam os votos de todos os membros do comitê que gere a
política monetária com sua justificação. Aqui a transparência
não chega a esse ponto.
diálogos&debates O Banco Central brasileiro é, na prática, independente? Deveria sê-lo?
maria rita loureiro Tem funcionado como, mas não deveria ser
formalmente independente. A orientação da política monetária,
como todas as políticas macroeconômicas, deve estar nas mãos
dos políticos eleitos, que respondem diretamente ao povo, por
mais complicados, deficitários ou precários que estejam nossos
mecanismos de responsabilidade política. Podemos desenvolver
outros mecanismos durante o mandato para responsabilizar o
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presidente. Um exemplo é o Senado ser mais eficiente. A autonomia operacional do Bacen seria o seguinte: os políticos eleitos estabelecem metas e orientações que exprimem posições e
preferências políticas que eles captam do eleitorado e das demandas da sociedade. A partir disso, definem metas de inflação. Os gestores do Banco Central seriam autônomos para mais
bem atingir essas metas. Eles serão avaliados apenas administrativamente ou tecnicamente para saber se foram capazes ou
não de escolher as maneiras de atingir a meta estipulada.
diálogos&debates Se o BC fosse formalmente independente,
quem estabeleceria essas metas seria ele?
maria rita loureiro A idéia de autonomia política é muito remetida a certa concepção que supõe que os políticos eleitos serão sempre irresponsáveis do ponto de vista fiscal e monetário.
Essa é uma suposição que está na base da discussão de autonomia política do BC. Discordo dessa visão, pois não necessariamente todo político é irresponsável. Hoje no Brasil já se
avançou muito na idéia de responsabilidade fiscal e no compromisso com a estabilidade monetária. Já se fala que a estabilidade monetária e o controle da inflação são bens públicos,
desejados por toda a população. Nenhum gestor de aparatos
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de Estado pode ser politicamente autônomo no sentido de não
ter responsabilização. O que o dirigente do BC pode ter é a autonomia operacional. Quem estabelece as metas de inflação
no Brasil, na prática, são duas pessoas: o ministro da fazenda
e o presidente do Bacen. Ambos respondem ao presidente. As
decisões deveriam ser tomadas por um colegiado que tivesse
responsabilidade política.
diálogos&debates Tanto o vice-presidente quanto o ministro da
Casa Civil têm sido críticos ácidos da taxa de juros definida
pelo BC, sem que isso abale a credibilidade do banco perante
o mercado. É sinal de maturidade democrática ou de irrelevância da opinião dos atores envolvidos?
maria rita loureiro Essas declarações indicam que uma parte do
governo está preocupada com as demandas do setor produtivo, que tem consciência de que a gestão da política econômica não pode ser exclusivamente voltada para o mercado financeiro. Tem o efeito de mostrar os dois lados da situação. Eles
estão sinalizando que a equipe do governo tem diferentes pontos de vista, embora o que predomine é a orientação do Ministério da Fazenda, que continua a política econômica do segundo mandato de FHC. 
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financeiro e jornalistas econômicos”. Essa transparência, no
te: nenhuma dessas medidas é prevista, explicitamente, em
entanto, é formal. Kugelmas continua: “Poderiam se tornar lei. Isso acontecerá, talvez, quando for regulamentado o armais claro, por exemplo, os modelos econométricos que or- tigo 192 da Constituição Federal, que dispõe sobre a atuadenam a atuação do Bacen”.
ção do Banco Central.
As minutas das reuniões mencionadas pelo professor
Eduardo Kugelmas ainda aponta que “na Inglaterra, as
são as atas do Copom (Comitê de Política Monetária), pro- atas das reuniões revelam como foi o voto individual de
vavelmente o órgão colegiado mais importante do país. Afi- cada um dos membros, o que no caso brasileiro não é pranal, define, entre outros assuntos, a taxa de juros vigente. Foi xe”. Outro achado do estudo de Andrade é que os bancos
criado ao mesmo tempo que o Brasil adotou um regime de centrais que adotam metas de inflação são mais transparenmetas de inflação. Sob esse regime, a função do Copom é tes do que os demais.
manipular a taxa de juros de maneira a não deixar o país
ultrapassar a meta inflacionária estabelecida pelo Conselho Independência ou autonomia operacional?
Monetário Nacional, composto pelos ministros do PlanejaNão é Henrique Meirelles, como já se disse, quem define
mento e da Fazenda e pelo presidente do Bacen.
a meta de inflação para o ano, mas sim o Conselho MoneA meta anunciada pelo governo para 2005 é de 4,5% do tário Nacional (CMN). Isso significa que o Bacen não é inIPCA (Índice de Preços ao Consumidor Ampliado), com dependente nem tem autonomia operacional. Banco Centolerância de 2,5% para mais ou menos. Caso ela não seja tral independente é aquele cujo chefe máximo define qual
atingida, o presidente do Banco Central deve escrever uma política monetária será aplicada, qual o nível de inflação
carta para o ministro da Fazenda, explicando os motivos e a almejar, se a economia está se aquecendo demais etc. O
as medidas que serão tomadas para colocar a inflação den- exemplo clássico é o Federal Reserve Bank americano, pretro do parâmetro estabelecido. As atas das reuniões men- sidido por Alan Greenspan há 18 anos. Talvez a mais famosais do Copom são divulgadas oito dias após cada encon- sa amostra de independência política de Greenspan tenha
tro. É transparência suficiente? De
ocorrido quando Bush, o pai, necesacordo com Cecília Olivieri, “o simsitava de uma baixa na taxa de juros
Um documento do Ministério para a economia voltar a crescer em
ples fato de existir a divulgação das
atas aumenta muito o grau de trans1992 e assim alavancar sua reeleição.
da Fazenda divulgado em
parência. Seria necessário fazer uma
Greenspan, que afirma simpatizar
dezembro de 2004 defende, com os republicanos, não ajudou o
análise dos BCs do mundo e verificar
se o único indicador de transparência
explicitamente, a autonomia presidente e Clinton foi eleito.
desses BCs é a divulgação das atas ou
Autonomia operacional, por sua
operacional do Banco
será que existem outras maneiras?”
vez, ocorre quando o governo federal
O economista Eduardo de CarvaCentral. Caberia ao governo define uma meta de inflação e cabe
lho Andrade, do IBMEC-SP, encarreao Banco Central atingi-la, quaisquer
definir
uma
meta
de
inflação
gou-se de tal estudo (“Bacen e BCs
que sejam os meios, sem interferência
selecionados: uma análise comparatinenhuma do Executivo. Um exemplo
para o BC atingir sem
va do nível de transparência”, Revista
o Bank of England. Recente docuinterferência do Executivo émento
de Economia Política, v. 24, n. 3, julhodo Ministério da Fazenda, insetembro de 2004). Comparou nosso
titulado “Reformas microeconômicas
Banco Central com os do Chile, México, Inglaterra e Nova e crescimento de longo prazo”, divulgado em dezembro de
Zelândia (que também possuem regime de metas) e com 2004, defende a autonomia operacional do Bacen. Afirma
os bancos centrais da Alemanha, Japão, União Européia e que “a inexistência de uma autonomia legal à autoridade
Estados Unidos. Andrade concluiu que, após a adoção do monetária reduz a segurança institucional quanto às forregime de metas de inflação em junho de 1999, o Bacen se mas de conduta a serem adotadas com vistas à preservação
tornou mais transparente. Afinal, publica relatórios quadri- da estabilidade”. Relaciona a existência das maiores taxas de
mestrais de inflação, publica as atas de suas reuniões e ex- juros do mundo à falta de autonomia: “As políticas adotaplica publicamente se foi capaz de alcançar seus objetivos. das em caso de pressão inflacionária têm que ser mais inNo entanto, o economista alerta para um fato importan- tensas e mais duradouras do que as que se fariam necessá-
rias em um ambiente em que houvesse segurança institucional quanto ao papel a ser desempenhado pela autoridade monetária no combate à inflação”.
Cecília Olivieri lembra que a independência do Banco
Central significaria uma limitação considerável dos poderes da Presidência da República, pois o chefe do Bacen seria
indicado apenas no meio do mandato do presidente eleito.
Ela acredita que “a norma da independência não deve ser
estabelecida apenas com base em pressões internacionais
ou mesmo que se chegue à conclusão de que do ponto de
vista internacional isso é bom. Ou seja, a questão da independência do BC não pode ser tratada em termos econômicos, mas sim políticos”.
No entanto, o debate no Brasil está mais centrado na
autonomia operacional do que na independência do banco, apesar de Meirelles haver defendido no fórum de Davos que um Banco Central independente é tão importante
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para a democracia quanto um Congresso e imprensa livre.
Assim, Eduardo Kugelmas afirma que, “no caso de autonomia operacional, seria necessário ter uma idéia muito clara
de quem vai fixar as metas de inflação e quais os critérios
para essa fixação”. Segundo o professor, existem duas orientações possíveis para a fixação. A primeira levaria em conta
exclusivamente o processo inflacionário. “De acordo com a
segunda, que ocorre no Federal Reserve Bank, o Bacen seria estatutariamente obrigado a levar em conta na sua atuação também as questões relativas ao crescimento econômico, à renda e ao emprego”.
Apenas uma certeza pode ser tirada desse debate: mudar
as instituições e as regras não estimula a abertura de lanchonetes na zona leste de São Paulo, não tira camelôs da rua,
não dá mais chances de emprego para quem não concluiu
a faculdade. A economia real está muito além das garras do
Banco Central, para melhor ou pior. 
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a “blindagem”
do presidente do bc
Se a Medida Provisória transformou o presidente
do Bacen em ministro foi porque 253 deputados
e 40 senadores endossaram a medida
A
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Ilustração Kipper
tendendo à solicitação do ministro da Fazenda, Antônio Palocci, o presidente da República
apresentou, no dia 16/08/2004, a Medida Provisória (MP) 207/2004. Em seu enunciado, o instrumento indica alterações na lei 10683/2003,
que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios. Em termos mais objetivos, a MP confere ao presidente do Banco Central (Bacen) a condição de
ministro de Estado.
Algumas perguntas se fazem necessárias para uma melhor compreensão do fato: 1) o que teria motivado o governo a adotar tal medida, 2) quais as conseqüências em
alçar o presidente do Bacen ao status de Ministro, e 3)
por que o instrumento jurídico utilizado foi uma Medida Provisória.
A justificativa de Palocci é de que “o cargo de presidente do Bacen assume, cada vez mais, relevância estratégica,
tanto no cenário político quanto no plano institucional, em
razão da complexidade e da relevância dos fatos da vida
econômica”. A complexidade de suas atribuições, formulação da política monetária do país e a intervenção no siste-
L E G I S L A Ç Ã O
POR SIMONE DINIZ
ma financeiro nacional justificariam a mudança. Em termos
práticos, a MP confere foro privilegiado para fins processuais, isto é, somente o procurador-geral da República poderá abrir uma ação contra o presidente do Bacen, e altera a
competência para julgamento do mesmo, que passará a ser
feito pelo Supremo Tribunal Federal.
Coincidência ou não, a MP foi editada poucos dias após
a veiculação, em revistas semanais, de denúncias relacionadas à sonegação fiscal e gestão irregular do patrimônio do
atual presidente do Banco Central, Henrique Meirelles.
Foram apresentadas oito emendas, das quais duas se destacam: as emendas n°s 4 e 6, do deputado José Carlos Aleluia. A primeira acrescenta um parágrafo único ao artigo 2o
da MP, estabelecendo que o cargo de natureza especial do
presidente do Bacen não se aplica para fins processuais; a
emenda n° 6 pedia a revogação da MP.
A aprovação da emenda no 4 seria uma boa indicação
de que não se trata de casuísmo a apresentação da MP por
parte do governo. Na emenda no 6, o deputado expressa seu
entendimento de que a MP é uma violação do princípio da
constitucionalidade da norma. Primeiro, porque a matéria
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não atenderia aos pressupostos de relevância e urgência (re- circunstâncias, torna praticamente impossível rejeitá-las,
quisito constitucional para a apresentação de matérias por porque o Congresso teria que legislar não sobre a situação
meio de uma MP). Segundo, porque, de forma oblíqua, a anterior à MP, mas sim sobre a situação gerada pela sua
MP trata de matéria processual, questão que é vedada pela rejeição. As MPs dos planos econômicos são os exemplos
Constituição de ser tratada por esse instrumento.
que mais bem mostram essa situação. No caso em análise
A referida MP sofreu um pedido de “ação de inconstitu- (transformação de um cargo ao status de Ministro), talvez
cionalidade” (Adin), cujo parecer do procurador da Repú- a rejeição não gerasse custos que inviabilizassem a atuablica apontava para a inexistência dos
ção do Legislativo.
pressupostos de relevância e urgência e
De acordo com a Constituição Fepara violação de preceito constitucioderal, as MPs devem ser apreciadas por
A emissão de medidas
nal, ao tratar de matéria processual.
uma comissão mista de deputados e seprovisórias altera
Interpretação diversa teve o relator
nadores que emitirá parecer, antes de
unilateralmente
o
da matéria, o deputado federal Ricardo
serem apreciadas, em sessão separada,
Fiuza (PP-PE). Endossando a justificapelo plenário de cada uma das Casas
, colocando os
tiva de relevância apresentada por Pado Congresso.
parlamentares diante de
locci, e com base na jurisprudência do
Cabe aos líderes partidários indiSupremo Tribunal Federal que, seguncar os parlamentares para a comissão
um fato consumado às
do seu relatório “firmou o entendimenque irá apreciar a MP. Líderes partidávezes impossível
to de que é discricionária a apreciação,
rios da base de sustentação do governo
feita pelo chefe do Poder Executivo,
não indicarão para compor a comissão
de rejeitar
quanto à ocorrência dos requisitos de
mista parlamentares pouco dispostos a
edição das medidas provisórias, sendo
colaborar com o Executivo. Com isso,
de ressalvar, unicamente, a hipótese em que a ausência de para além da vantagem de entrar em vigor imediatamente,
relevância e urgência se entremostrasse de forma objetiva”, agrega-se mais uma vantagem quando se opta por alterar o
entende estarem plenamente atendidos os requisitos de re- status quo via medida provisória: a primeira instância inslevância e urgência para a emissão da MP. De acordo ainda titucional a se debruçar sobre o texto poderá não apresencom seu parecer, “inexiste na redação da debatida MP 207/ tar resistências a ele.
04 a propalada alteração de preceitos de cunho processual”,
Sabe-se ainda que o processo legislativo no Brasil adota
pois o texto da medida provisória trata de questão de natu- um formato centralizado em torno das Mesas Diretoras das
reza administrativa, ao transformar o cargo do presidente Casas Congressuais e dos líderes partidários. Isso significa
do Banco Central em cargo de Ministro de Estado, não se que essas duas instâncias têm como controlar o processo
configurando alteração da regra processual.
decisório. Não é demais dizer que praticamente até agora o
Em razão de tais justificativas, propôs a rejeição das
governo contou sempre com apoio dos presidentes das Meemendas apresentadas e a aprovação da medida provisória sas e tem maioria na Câmara de Deputados.
que se consubstanciou na lei 11.036 de 22/12/2004.
No que resulta toda essa digressão? Que, embora o ato
de emitir MP esteja nas mãos do Executivo, seu sucesso
Por que tantas medidas provisórias?
depende da concordância do Legislativo. Só se aprova uma
A possibilidade de o Poder Executivo emitir medidas MP com a concordância da maioria dos membros desse
provisórias é um aspecto que tem gerado intenso debate no
poder. Pode-se questionar se a MP é constitucional ou não,
meio político, jornalístico e no âmbito da ciência política. se atende às exigências de necessidade e urgência, mas não
Alguns afirmam que a emissão de MP é um ato de usurpa- se pode afirmar que sua emissão é um ato discricionário
ção, que relega o Legislativo a um segundo plano no proces- do Executivo. Se houve “blindagem” do presidente do Banso decisório. Outros dirão que se trata de uma delegação.
co Central foi porque 253 deputados e 40 senadores a enÉ consensual que a medida provisória é um instrumen- dossaram, como indica o resultado da votação nominal na
to poderoso à disposição do Executivo. A emissão de MPs apreciação da referida MP. 
altera unilateralmente o status quo, colocando os parlamentares diante de um fato consumado que, em certas Simone Diniz é doutora em Ciência Política na USP
status
quo
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diálogos&debates
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L E G I S L A Ç Ã O
Em Coisas Belas e Sujas , um médico nigeriano abandona seu país para tentar a sorte em Londres, e descobre o tráfico de orgãos
terra estrangeira
A globalização e seus efeitos migratórios mostrados na tela do cinema
O
POR FÁBIO FUJITA
Che Guevara encarnado pelo mexicano Gael
García Bernal diz, numa das passagens seminais de Diários de Motocicleta, que “constituímos uma única raça mestiça, desde o México
até o Estreito de Magalhães” [extremo sul do
Chile], referindo-se à miséria comum das populações sertanejas de países diversos da América Latina. Se a constatação feita pelo futuro líder da Revolução Cubana à época
parecia um tanto óbvia e evidente, poderia, por sua vez, ter
servido como um alerta visionário para os problemas que
o Terceiro Mundo enfrentaria ao longo das décadas seguin-
C I N E M A
tes – podendo, assim, trabalhar para evitá-los. Não evitando,
fez com que tenhamos, hoje, o agravamento crescente das
levas migratórias que buscam, bem longe de onde os colonizadores espanhóis outrora se estabeleceram, o eldorado
que irá redimi-las: invariavelmente o solo americano ou a
endinheirada Europa.
Vencer na América – longe, portanto, das origens mestiças – é o que tentam, justamente, os mexicanos de Pão e
Rosas, filme do britânico Ken Loach, talvez o cineasta mais
engajado politicamente nos dias atuais. O filme mostra a
jornada de Maya (Pillar Padilla), que, um tanto sem esco-
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diálogos&debates
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lhas, decide abandonar o México para ir
morar num cortiço infame. Numa cerse juntar à irmã Rosa (Elpidia Carrillo),
ta ocasião, conhece Paco (Débora FalaSão personagens
em Los Angeles. É doloroso ver como
bella), com quem, também pela euforia
desencantados,
Loach disseca o problema da imigração
de ter o Brasil como elemento comum,
ilegal, quase que didaticamente: a dificria, em princípio, algo que se possa chaperdidos, habitando
culdade primeira na fronteira, na entramar de amizade. Paco, apesar de mulher,
um solo que não é
da em solo americano, de “mestiços” resabusa de sua androginia para ampliar o
paldados por outros mestiços, possivelseu universo de atuação (é michê), podeles e com opções
mente também ilegais, mas que, estando
por exemplo, fazer sexo oral se
de vida que não fazem dendo,
radicados na América, ali estão para sopassando por homem. Toda a atitude e a
qualquer sentido
breviver e o farão ainda que explorando
falta de integridade que sobram em Paco
os próprios compatriotas; a vista grossa
inexistem em Tonho, e cria-se, nesse emà ilegalidade dos imigrantes por parte do
bate violento de diferenças, um singular
patronato, por aqueles servirem como mão-de-obra bara- equilíbrio, como se um completasse o outro. São personata; o terrorismo instituído sobre os trabalhadores estrangei- gens desencantados, perdidos, cujos únicos elementos coros que, sem defesa, se submetem às mais variadas formas muns são a negação: o solo que não é deles, opções de vida
de humilhação e subserviência, temerosos de sua condição que não fazem nenhum sentido. É nessa percepção comum
clandestina; o desencanto próprio, embebido em homesick, e tardia que nasce uma espécie de amor – ainda que torto,
dos que precisam sobreviver numa terra estranha. No caso sangrado, doído – entre eles.
de Pão e Rosas, o único alento é a veia sindicalista do ativisÉ essa a essência do que se tem também na produção
ta Sam (Adrien Brody), cuja maior dificuldade é conseguir turco-alemã Contra a Parede, de Faith Akin, que arrebatou
fazer os imigrantes clandestinos chegarem a uma solução em 2004 o Urso de Ouro no Festival de Berlim, e exibido
unânime: lutar ou não por seus direitos?
em sessões lotadas na Mostra BR de Cinema de São PauSe no filme de Loach os personagens contam, ao me- lo. Cahit e Sibel são dois turcos que tentam sobreviver na
nos, com uma ajuda de fora, a dupla brasileira de Dois Per- Alemanha. “Sobreviver” talvez nem seja o termo mais adedidos numa Noite Suja – releitura original feita por José Jo- quado, já que, há muito, ambos apenas tocam a vida com a
ffily para o clássico de Plínio Marcos – são cada um por si, barriga, de um jeito que, se a morte os pegassem de surprena Nova York contemporânea. Tonho (Roberto Bomtem- sa, surpresos eles não ficariam. Cahit tem 40 anos, é alcoópo) partiu para a América para fazer seu pé-de-meia. Para latra, mora num cubículo horrendo, um morto em vida. Siisso, virou faxineiro, limpando latrinas imundas, tendo de bel tem 20 anos, vive no limite, tentou o suicídio para não
Apenas um Beijo , de Ken Loach: um paquistanês vive na Escócia a história de Romeu e Julieta. Em Nova York, à direita, Roberto Bomtempo e Débora
Falabela recriam Dois Perdidos numa Noite Suja
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diálogos&debates
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Maria Cheia de Graça , de Joshua Marston: cansada das humilhações no trabalho na Colômbia, Maria (Catalina Sandino) vai ganhar a vida como “mula”,
transportando drogas no estômago para os EUA
ter que entrar num casamento imposto pela família. As duas ao Vento, do italiano Silvio Soldini, vemos Tobias Horvath
almas penadas se conhecem num hospital psiquiátrico e, (Ivan Franek), que, curiosamente, se diz de “um país sem
visualizando um no outro uma espécie de salvação ainda importância”, para descobrirmos ao longo da narrativa que
que temporária, decidem se casar por conveniência. E as vi- ele é do Leste Europeu, mas que vive na Suíça, trabalhando
das mortas engavetadas nas entranhas de ambos ressurgem
numa fábrica de relógios. Essa perda de referências geográem amor violento, ainda que o cenário de fundo – o mundo ficas faria sentido para alguém como Horvath, sem famíimundo e falido dos homens – não seja cartão-postal.
lia, sem ninguém, se ele não descobrisse que, na mesma fáSe a chamada globalização, de mercados comuns, moe- brica em que trabalha, trabalha também uma pessoa (Bardas universais e quedas de barreiras geográficas, pintou, em bara Lukesova) das mesmas origens desimportantes que a
princípio, as cores da democratização social, conclui-se, en- dele – e talvez a única pessoa em sua vida que tenha amatão, que ela falhou em sua aplicação prática. Agravaram-se do efetivamente.
como nunca os problemas de xenofobia, como decorrênJá o diretor sueco Lukas Moodysson mostra o drama de
cia do maior trânsito entre etnias; e num mundo pontuado Oksana Akinshina, a atriz que encarna a eternidade-títupor guerras civis ancestrais e intermináveis, cresce o fenô- lo de Para Sempre Lilya. Vivendo num subúrbio paupérrimeno das teorias da conspiração, tema tão bem trabalha- mo dos cafundós da Estônia, a jovem Lilya vê a mãe partir
do por Michael Moore em seu Tiros em Columbine (e tam- para os EUA com o namorado, com a promessa de que, em
bém satirizado pelo personagem de Woody Allen em Igual breve, ela (Lilya) também irá. Mas o tempo passa e não só
a Tudo na Vida). Numa perspectiva antropológica, pode- a mãe não a busca, como envia um comunicado para o juise dizer que o homem parece voltar às suas mais arcaicas zado do país, abrindo mão da maternidade de Lilya. É nesorigens, no sentido da sobrevivência: a
sa orfandade súbita que Lilya precisa
disposição para tudo, atropelando étisobreviver, sabe-se lá de que, ou com
cas e dignidades, por um punhado de
que. Ela só se deixa prostituir no limiNum
mundo
pontuado
por
comida ou dinheiro.
te de seu desespero, e como forma de
guerras civis ancestrais,
A queda do Muro de Berlim em
redenção junto à Volodya (Artiom Bo1989, emblema dos novos tempos,
gucharskij), seu amigo mais novo, em
cresce o fenômeno das
ao contrário de minimizar as diferenquem exorciza o resto de dignidade e
teorias
conspiratórias,
ças sociais entre alemães do Ocidenamor que lhe resta, comprando para o
te em relação aos do Oriente, as atemenino, com o dinheiro do programa,
tema bem trabalhado
nuou, como a corrida pelo consumo
uma bola de basquete como presenpelo cineasta americano
desenfreado bem retratada na cométe de aniversário. Até surgir no camidia dramática Adeus, Lênin!, de Wolfnho dela Andrei (Pavel Ponomaryov),
Michael Moore
gang Becker. Também em Queimando
aquele que pode ser para ela o que ela
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diálogos&debates
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Para Sempre Lilya : a história de uma jovem da Estônia que vê a mãe partir para os EUA com o namorado, com a promessa de que irá buscá-la um dia...
cápsula estoura no estômago; a outra
com quem estabelecem uma inusitada
acompanha Maria, andando sem des, de Jim amizade pontuada por simbolismos. É
tino pelas desconhecidas ruas novana solidariedade humana que todas as
Sheridan, trata da história dificuldades naturais para essa sobreiorquinas. Uma das personagens do
filme, Carla (Patricia Rae), irmã da
de imigrantes irlandeses vivência numa terra de sonhos se remula que morreu, encarna o altruísduzem, como se Sheridan dissesse que
nos EUA com um olhar
mo mestiço, acolhendo Maria e a amisão insignificantes até, já que o filme é
ga nos EUA. Carla “venceu” na Aménarrado do ponto de vista de uma das
infantil, despido dos
rica e se torna, assim, uma espécie de
crianças. Ou seja, um olhar infantil –
tormentos que nos
metáfora do próprio filme: é como se
e, portanto, pueril – da vida, despido
fazem adultos
o diretor Marston (que é norte-amedos valores e tormentos que fazem dos
ricano) postulasse mesmo a América
adultos, adultos.
como terra redentora, ainda que podre
Também o cinema tem discutido
em seus tantos elementos, ao impedir o retorno de Maria com propriedade a questão da manutenção das tradições
às suas raízes bárbaras.
familiares, pondo em xeque os eternos conflitos dos casaMas o país que não é o nosso não pode ser, sempre, a mentos por conveniência e a intolerância em relação à misprópria manifestação do inferno. Que o diga o diretor Jim tura de sangue, à mestiçagem. Do ponto de vista da coméSheridan, que realizou uma das melhores obras do cine- dia, houve Casamento Grego, produção independente mais
ma em 2004: Terra de Sonhos. Exorcizando suas próprias lucrativa da história, em que uma jovem grega de família
experiências, já que Sheridan é um irlandês radicado nos conservadora, para desespero dos parentes, pretende se caEUA, o filme tem nos créditos de roteiro, além do pró- sar com um homem que mal sabe localizar a Grécia num
prio diretor, as filhas Naomi e Kirsten Sheridan que, jun- mapa-múndi. Mas não deixa de ser curioso mesmo concluir
tos, transpuseram para a tela experiências inteiras e lite- a atemporalidade de Shakespeare num filme como Apenas
rais de acontecimentos compartilhados. Na trama, uma um Beijo, do britânico Ken Loach, exibido na 28a Mostra BR
família irlandesa composta pelo pai (Paddy Considine), de Cinema de São Paulo. Casim (Atta Yaqub) é um paquispela mãe (Samantha Morton) e pelas duas filhas pequenas tanês cuja família é radicada em Glasgow. Ele se apaixona
(as irmãs na vida real Sarah e Emma Bolger) parte para por Roisin (Eva Brithstle), uma professora irlandesa católios EUA, não para tentar meramente uma vida melhor do ca. O pai de Casim quer ver o filho casado com uma prima
ponto de vista do conforto, mas como forma de assimilar paquistanesa; os patrões de Roisin condenam o comportaa perda de um filho. Pobres, se vêem forçados a se instalar mento bem longe dos padrões católicos que ela leva. Assim,
num cortiço na periferia nova-iorquina, num prédio ha- tudo conspira para separá-los.
bitado por traficantes, drogados, prostitutas. Nesse desfile
Quem são Casim & Roisin, tendo a ancestralidade da inde deslocados, as meninas se aproximam de Mateo (Dji- tolerância injustificada a se impor entre eles, senão a revisimon Hounsou), um artista soropositivo em fase terminal, tação contemporânea de Romeu & Julieta? 
Terra de Sonhos
Em Queimando ao Vento , de Silvio Soldini, um imigrante do Leste Europeu batalha pela vida trabalhando numa fábrica de relógios na Suiça e encontra
uma mulher com história igual
é para o menino: a salvação. Lilya se apaixona por Andrei,
que promete a ela um emprego e uma vida melhor na Suécia. Ele a embarca para lá, com a promessa de que vai em
seguida, e nesse jogo de promessas vãs é que Moodysson expõe sua visão apocalíptica da sociedade, na medida em que
Lilya torna-se uma escrava branca em terra de ninguém,
depois de fazer com o menino Volodya o mesmo que sua
mãe fizera com ela.
Por dinheiro, abre mão de muitos sonhos e anseios,
como faz Okwe (Chiwetel Ejiofor) em Coisas Belas e Sujas,
filme de Stephen Frears. Okwe é um nigeriano que abandonou seu país, e a medicina como ofício, para tentar melhor sorte na Londres cosmopolita. Frears denuncia o tráfico de órgãos humanos, a partir de quando Okwe, trabalhando num hotel, encontra um coração humano afundado numa latrina. Essa prática sinistra surge como a evolução do prostituir-se: tudo está à venda, incluindo-se o corpo, não no sentido meramente promíscuo, mas literal. E,
frente à possibilidade de antecipar o antigo sonho de partir
para Nova York, a turca encarnada por Audrey Tautou irá
titubear com a proposta de vender um pedaço de si própria
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diálogos&debates
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para a vilania inescrupulosa que escoa dos poros de Sneaky (Sergi López).
Vender o corpo sob o risco de perder a própria vida
também é o que faz a personagem da colombiana Catalina Sandino Moreno em Maria Cheia de Graça, filme de
Joshua Marston, que faturou o Grande Prêmio do Público
no Festival de Sundance, a meca mundial do cinema independente. No caso, Catalina interpreta a Maria do título,
que, cansada das humilhações que sofre no trabalho, manda tudo às favas e se vê, então, desempregada na Colômbia
terceiro-mundista. É quando aparece para ela uma oportunidade interessante financeiramente, a despeito dos riscos: viajar aos EUA como “mula”, ou seja, levando no estômago dezenas de cápsulas de drogas. Logo ao desembarcar
em solo americano, Maria é detida pela polícia federal, que
não entende como uma colombiana sem renda comprovada realiza uma viagem internacional como aquela. Maria
se safa porque está grávida – fato que a livra de se submeter aos exames que revelariam a presença dos entorpecentes em seu corpo. Na jornada, Maria é acompanhada por
outras duas mulas: uma morre no caminho porque uma
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diálogos&debates
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O Estatuto da Cidade permite um melhor planejamento para os Municípios e ataca
indiretamente a corrupção, afirma o juiz Vicente Amadei em entrevista sobre
a relevância da
legislação urbanística
ENTREVISTA DR. VICENTE AMADEI
F
ormado em Direito em 1986 pela Universidade de
São Paulo, Vicente Amadei também estudou filosofia na mesma instituição. Professor universitário que se insere em uma tradição antiga, a de ter
feito “apenas o mestrado da vida”, Amadei é especialista em direito urbanístico e trabalha como Juiz Titular
da 36ª vara cível central, no Fórum João Mendes. A entrevista concedida por ele à reportagem de Diálogos&Debates
se concentrou especialmente no Estatuto da Cidade (Lei
10.257/01), uma peça de legislação inovadora que vinha
sendo discutida desde a Constituição de 1988. Leia a seguir
os principais trechos:
diálogos&debates Quando começou a ser elaborado o Estatuto da Cidade?
vicente amadei O Estatuto da Cidade é bem antigo enquanto
concepção de lei. Ele foi uma imposição que veio da Constituição para que houvesse uma lei federal que estabelecesse as diretrizes gerais de política urbana. Sem essa legislação, não seria possível viabilizar os instrumentos urbanísticos que a Constituição prevê, especialmente o parcelamento
compulsório do solo, a reivindicação compulsória e o IPTU
progressivo. Não podemos esquecer que em torno de um
projeto tão amplo e complexo como o Estatuto da Cidade
há uma bagagem política também muito grande. Essa pres-
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diálogos&debates
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E N T R E V I S TA
POR SÉRGIO PRAÇA
FOTOS MICHELE PERUSSO
são política entravou o vir a público, o transformar-se em
lei do Estatuto da Cidade.
diálogos&debates Quais são os principais pontos que deixam essa lei à mercê dos interesses políticos?
vicente amadei Um dos fatores que causaram a demora do
Estatuto foi que na raiz dele havia uma concepção muito
voltada para a participação do Estado, não apenas de forma
social, mas de forma socializante. O anteprojeto do Estatuto
conferia ao Estado um papel de Estado protetor, como se a
propriedade privada fosse uma inimiga. As evoluções históricas, como a queda do muro de Berlim, a visão de mundo socialista que entrou em declínio, contribuíram para
que houvesse uma minimização das políticas em torno das
questões que estavam latentes no Estatuto.
diálogos&debates O senhor pode dar exemplos de elementos “socializantes” que foram retirados do Estatuto da Cidade?
Vicente Amadei Alguns elementos de estatização da propriedade não foram trabalhados da mesma forma que estavam na concepção original. Além de mecanismos de compulsoriedade de parcelamento e de edificação, havia certos
mecanismos de obrigatoriedade de uso da propriedade mobiliária. Por exemplo: uma locação compulsória, uma situ-
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diálogos&debates
61
ação que obrigasse alguém a fazer uso compulsório de sua
propriedade. O direito de preempção na concepção originária do Estatuto era um direito de preempção em que o
Estado teria preferência larga sobre a aquisição das propriedades conforme o preço que ele fixasse. Na versão final do
Estatuto isso foi diminuído. Isso mostra que as tensões políticas acabaram sendo um pouco diluídas para poder viabilizar esta lei em uma sociedade tão plural como a nossa.
diálogos&debates Quais são as principais inovações do Estatuto da Cidade?
vicente amadei A primeira inovação do Estatuto é a viabi-
nal Federal, por falta dessa lei de que trata o artigo 182 da
Constituição.
diálogos&debates Qual o segundo ponto que lhe parece mais
relevante no Estatuto?
vicente amadei É o principio da adequação às necessidades
de cada cidade. O princípio de respeito às diferenças regionais e às peculiaridades locais. Enquanto a União estabelece as diretrizes, os Estados também têm uma legislação
concorrente nessa matéria de urbanismo e atuam no campo regional, no campo da fixação das interligações municipais, das conexões das políticas de infra-estrutura que es-
“O anteprojeto do Estatuto da Cidade conferia ao Estado um papel
protetor, como se a propriedade privada fosse uma inimiga”
lização da implementação das demais leis. Sem o Estatuto da Cidade não haveria como implementar uma série de
outras legislações urbanísticas ou instrumentos de política urbana que são importantes. É preciso considerar que a
União tem um papel de uniformidade nessa matéria de urbanismo e não pode descer à particularidade dos Municípios. Claro que o interesse primeiro é a peculiaridade do
Município, mas a União tem essa força de unificar a política urbana sem considerar os problemas locais, sobretudo para direcionar os princípios básicos que todo Município deve seguir.
diálogos&debates Essa foi uma necessidade do fato de todos
os Municípios tornarem-se entes federados?
vicente amadei Não. A Constituição determinou que haveria
uma lei federal para estabelecer as políticas urbanas. Sem a
necessidade dessa lei ordinária, não seria possível a implementação de instrumentos que esse próprio artigo tratava.
Tanto é que no Rio Grande do Sul houve algumas iniciativas de introdução do IPTU progressivo que foram sucessivamente julgadas inconstitucionais pelo Supremo Tribu-
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diálogos&debates
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tão além do interesse municipal. O governo estadual ainda
se faz presente nas regiões metropolitanas com um grande
destaque. Os Municípios, por sua vez, são as unidades primeiras de política urbana. Pensando na dimensão do Brasil, é óbvio que a União não pode descer às peculiaridades
porque um Município no interior do Piauí é muito diferente da capital de São Paulo.
diálogos&debates No Município, o principal instrumento de
política urbana é o Plano Diretor?
vicente amadei Sim. É o Plano Diretor que deve ser concebido e transformado em lei a partir de uma consulta à sociedade. Será um instrumento básico a partir do qual a urbanização deve ser feita. Isso significa respeitar a peculiaridade local de cada Município. É muito interessante conhecer
um pouco do urbanismo do Brasil viajando de avião. Do
céu nós vemos os grandes problemas dos aglomerados urbanos. Em alguns é raro encontrarmos ruas asfaltadas. Imagine, por exemplo, uma lei federal que determine que todos
os Municípios tenham que ter toda infra-estrutura necessária. Isso jogaria quase todos eles na clandestinidade.
E N T R E V I S TA
diálogos&debates Alguma vez na história do país uma lei
urbanística exigiu mais do que deveria?
vicente amadei Em 1972, com o prefeito Figueiredo Ferraz.
Ele foi um grande idealizador dos planos municipais em
lei. No conjunto de leis feito nessa ocasião, houve a lei de
parcelamento de solo, que exigia para qualquer um dos loteamentos em São Paulo toda a infra-estrutura necessária.
Só poderia ser aprovado um loteamento que contasse com
toda a infra-estrutura implantada. Isso seria muito bom do
ponto de vista urbano, mas é utópico. O resultado é que, de
1972 a 1981, quando foi reformulada a lei de parcelamento paulistana, foram aprovados pouquíssimos loteamentos.
diálogos&debates Como o senhor avalia o Município e o Estado de São Paulo em relação a esse aspecto?
vicente amadei No Município, nós ainda sofremos com o
crescimento desordenado que a cidade teve. A melhor política de moradia dos últimos anos foi o projeto Cingapura.
Há um tempo, a idéia de resgatar a urbe nas regiões faveladas era levar a infra-estrutura para lá, mas o barraco continuava sendo barraco. A idéia do Cingapura foi realmente
nova na medida em que procurou extrair o barraco do local e fazer com que o edifício passasse a ser a nova unidade
habitacional. Isso é um grande avanço na política de tratamento da moradia. Infelizmente, a cada troca de governo
“Uma das causas de tantos loteamentos clandestinos em São Paulo e das
favelas foi uma legislação que não esteve atenta à realidade da cidade”
Uma das causas de uma enormidade de loteamentos clandestinos em São Paulo e de um grande favelamento nesse
período foi uma legislação que não esteve atenta à realidade da cidade.
há a troca de idéias. Ninguém quer continuar os feitos do
prefeito anterior. Sempre que for possível, o melhor é a verticalização das submoradias, com a implementação de um
saneamento básico.
diálogos&debates Uma das diretrizes do Estatuto da Cidade é a garantia de moradia e de saneamento ambiental. Isso
é cumprido?
vicente amadei É uma diretriz. Mas veja que o Estatuto não
impõe para todos os projetos de urbanização que se concretizem todas as infra-estruturas necessárias. Não seria possível. Por exemplo, o loteamento exige diversos tipos de infraestrutura, como a terraplenagem, exige que as ruas públicas
sejam feitas com captação de águas pluviais para que não
haja erosão, exige saneamento básico, energia, todas as ruas
asfaltadas. Imagine que todas essas infra-estruturas fossem
exigidas para todos os Municípios e loteamentos. Será que
temos uma rede de esgoto para todas as cidades do Brasil?
As redes de água e esgoto vão sendo levadas paulatinamente. São Paulo é uma realidade e o interior do Maranhão é
outra. É essa diferença regional que deve ser respeitada.
diálogos&debates E em relação ao Estado?
vicente amadei Hoje o Estado está à frente do Município,
pois tem projetos na área de regularização fundiária que
não são muito bem divulgados, mas que funcionam. Ainda
assim, existem casos em nosso Estado em que o Município
todo é irregular, casos em que seria necessária uma regularização fundiária.
E N T R E V I S TA
diálogos&debates O senhor destaca mais algum ponto do
Estatuto da Cidade?
vicente amadei O terceiro ponto que considero importante é a lei como instrumento de amarração jurídica de prazos, para evitar a corrupção. Toda vez que traçamos na lei
os requisitos para a outorga de um ato administrativo, nós
limitamos a administração pública de uma ação tendenciosa. Se a lei fixa os padrões para obter uma licença para cons-
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diálogos&debates
63
vicente amadei Não. Isso é algo vagaroso. Não surgiu de uma
hora pra outra e exige uma discussão política dentro da cidade, uma organização da cidade. Isso se faz aos poucos. O
que se espera é que os diversos Municípios, com o passar
do tempo, adotem o Plano Diretor para que não haja um
urbanismo de improviso nas cidades.
“Toda vez que traçamos os requisitos legais de um ato administrativo,
limitamos a possibilidade de o governo agir de maneira tendenciosa”
trução, basta preencher os requisitos do instrumento legal
que o administrador público não pode negar a licença para
construir a minha casa. Mas se houver uma legislação aberta, na qual cabe ao Município decidir os requisitos para dar
ou não uma licença, isso delegaria o poder legislativo para
o Executivo. O prefeito poderia, em um juízo de conveniência, negar a autorização para uns e facilitar para outros.
Para evitar que isso aconteça, uma lei municipal, prevista
pelo Estatuto, indica a área que deverá ser incluída no Plano Diretor em que haverá parcelamento, edificação ou utilização compulsória.
diálogos&debates Para evitar a corrupção, basta a lei estabelecer esses requisitos ou delimitar as áreas?
vicente amadei Não. É preciso estabelecer alguns prazos para
que o executivo se manifeste sobre eles, e o Estatuto teve
esse cuidado ao indicar algumas situações de prazos. No artigo 49, afirma que os Estados e Municípios terão um prazo
de 90 dias, a partir da entrada em vigor dessa lei, para fixar
os prazos para a expedição das diretrizes. Não sendo cum-
64
diálogos&debates
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prida essa determinação de prazo, se não houver uma delimitação, fica estabelecido um prazo de 60 dias. Se eu peço
a aprovação de uma edificação e o Município não tem prazos previamente definidos, obviamente fica uma situação
sujeita à corrupção.
diálogos&debates O número de 20 mil habitantes não é um
limite baixo para estabelecer a necessidade do Plano Diretor em um Município?
vicente amadei A falta de Plano Diretor não significa que
uma cidade não tenha planificação. Ela pode muito bem
ter uma lei de parcelamento do solo, de uso e de ocupação
do solo, e essas legislações são suficientes para atender a essas cidades, sem que haja necessidade de um Plano Diretor.
O que me parece importante é que haja dentro do Estado
de São Paulo um órgão que dê esse suporte para as prefeituras pequenas.
diálogos&debates Desde a aprovação do Estatuto da Cidade
as principais cidades já implementaram o Plano Diretor?
E N T R E V I S TA
diálogos&debates Pensando no caso de São Paulo, é possível afirmar que um plano como esse muda a configuração
comercial da cidade? Ou isso é da jurisdição da lei de zoneamento?
vicente amadei A lei de zoneamento tem que seguir o Plano
Diretor. O Plano Diretor é o instrumento básico da política urbana. A partir dele temos as diversas leis urbanísticas
dos diversos segmentos urbanos, entre eles o zoneamento.
Então a lei de zoneamento tem que estar atrelada ao Plano
Diretor. É a partir do Plano Diretor que é possível saber se
a cidade vai crescer para a zona sul ou para a zona norte. É
a lei que dá as linhas-chaves para a compreensão da cidade
em seu todo. E como o Plano Diretor dá essas linhas mestras para as tendências de cada setor da cidade, é possível
ter uma idéia, embora não concreta, de que em determinada região haverá um adensamento maior da população, em
outra do comércio e assim por diante. Todas as outras legislações, como a de zoneamento e do solo, têm que seguir
as diretrizes sugeridas pelo Plano Diretor.
diálogos&debates O senhor observa alguma tendência com
o Plano Diretor do Município de São Paulo, que foi aprovado em setembro de 2002?
vicente amadei A zona leste em São Paulo é um exemplo.
Foi realizado um estudo para o desenvolvimento da zona
leste e depois colocado na legislação. Com esse estudo, é
possível saber que a zona leste, hoje marcada como uma
zona de habitação, será um espaço que terá necessidade de
conjugar alguns elementos de comércio com essa realidade habitacional.
diálogos&debates O inciso 1 do art. 52 do Estatuto da Cidade previa como improbidade administrativa a conduta de
o prefeito “impedir ou deixar de garantir” a participação da
sociedade civil nos assuntos urbanísticos. Esse inciso foi vetado. O senhor concorda com o veto?
vicente amadei O problema desse veto é de legislação equiparada à de direito penal. As leis que definem crimes têm de
ser muito precisas, sem dar margens a interpretações duvidosas. Impedir ou deixar de garantir a participação de co-
E N T R E V I S TA
munidades e entidades sócias é algo muito vago. Isso não
significa que o governante deixe de ser atento à participação popular. Um princípio que deve ser levado em conta é
o da necessidade. Se a sociedade é sã, ela própria percebe
quais são as necessidades urbanísticas de sua cidade. Assim há uma conjugação pública entre o administrador da
cidade e a população nos chamados fóruns sociais. Mas do
ponto de visto técnico, não acho que o veto tenha sido abusivo, pois estaríamos diante de uma lei equiparada à lei penal que permite diversas interpretações.
diálogos&debates No direito urbanístico, existem competências legislativas da União, do Estado e dos Municípios.
Qual é o nível de governo mais forte e em que medida essas competências concorrentes atrapalham na aprovação
de normas?
vicente amadei Não há dúvida de que vivemos um momento de centralização de poder político na União. Todavia,
em matéria urbanística, a União fica com as reivindicações
gerais, com os princípios básicos e o Município, através do
Plano Diretor, é a chave de toda a compreensão dos espaços urbanos. O problema é que, quando se fala em urbanismo, deve ser considerada também a política econômica
que está toda nas mãos do governo central. Em matéria de
direito urbanístico me parece que a legislação está adequada na medida em que temos a seguinte estrutura: a União
estabelece as diretrizes gerais, enquanto cada estado da federação dita as normas regionais e os Municípios se atentam às peculiaridades.
diálogos&debates Quais são as principais falhas do Estatuto da Cidade?
vicente amadei O principal ponto negativo é a implementação prática dessa lei. Em primeiro lugar, o usucapião coletivo apresenta diversas dificuldades, a começar pela legitimidade. Em uma área favelada, todo mundo terá que se
apresentar para viabilizar esse projeto de usucapião coletivo. E se um morador não se apresentar?
diálogos&debates Qual seria o benefício do usucapião coletivo?
vicente amadei É a idéia de que a propriedade não pertence aos moradores. Quando você faz um usucapião coletivo, o domínio daquele imóvel passa a ser de todos em condomínio. É um instrumento interessante de regularização
fundiária, mas na prática é uma idéia muito difícil de ser
concretizada. 
março 2005
diálogos&debates
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o bc e sua moldura jurídica
Não são os juros, mas a meta para a inflação, a causa das discussões. E quem decide a
meta não é o BC, mas o presidente e o ministro da Economia
POR CARLOS EDUARDO MONTEIRO
A
ssunto presente há muito tempo nas pautas dos principais veículos de comunicação e dos chamados formadores de opinião é a autonomia do Banco Central.
A cada decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) e
a cada publicação da ata da respectiva reunião, diversas vozes se levantam. Umas em apoio, outras contra, seja em relação à decisão, seja quanto aos seus fundamentos.
Nesses instantes, recrudesce a discussão sobre a autonomia. Os que a defendem alegam que com ela a autoridade
monetária pode ser mais suave na fixação dos juros, porque
não necessitaria demonstrar sua “independência”. Os que a
criticam afirmam que a decisão sobre os juros não pode ficar na mão de técnicos, descompromissados com o crescimento do país e com a geração de emprego.
Não me interessa, neste momento, discorrer sobre os argumentos econômicos de uma ou outra posição, mas sim
trazer a moldura jurídica existente, de modo a que se tenha, com mais precisão, o estabelecimento das competências atuais do Banco Central e dos demais atores envolvidos no processo e, assim, situar as responsabilidades ou
“culpas” de cada um.
A crítica mais comum é a de que fazer política monetária centrada exclusivamente na obtenção das metas de inflação impede o crescimento da economia. E culpam o Banco
Central por isso. Entretanto, a opção por este método foi do
presidente da República, por intermédio do Decreto 3.088,
de 1999 (com base na Lei 4.595, de 1964), que dispõe: “Art.
1º Fica estabelecida, como diretriz para fixação do regime
de política monetária, a sistemática de ‘metas para a inflação’. § 1o As metas são representadas por variações anuais
de índice de preços de ampla divulgação. § 2o As metas e os
respectivos intervalos de tolerância serão fixados pelo Conselho Monetário Nacional, mediante proposta do ministro
de Estado da Fazenda”.
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diálogos&debates
março 2005
O Conselho Monetário Nacional (CMN), no exercício
da competência que lhe foi atribuída, fixa as metas de inflação, o intervalo de tolerância admitido e o índice de preços a
ser adotado, com antecedência. Cabe ao Banco Central, ainda de acordo com o mesmo normativo, executar as políticas
necessárias para cumprimento das metas fixadas.
Política monetária pode ou não levar em consideração
outros fatores além da inflação, tais como emprego, renda
ou crescimento. Mas, escolhido o sistema de metas de inflação pelo presidente da República, não pode o Banco Central, executor dessa política, incluir outras variáveis na sua
atuação. Ele tem que, obrigatoriamente, adotar as medidas
que julgar convenientes para atingir a meta.
Por isso, alguns já centram seu ataque não aos juros fixados pelo Banco Central, mas sim à meta, que julgam excessivamente ambiciosa estabelecida, para esse ano (5,5%)
e para os vindouros (4,5%) pelo CMN.
A autonomia que se tem propugnado, nas propostas
que se conhece, visa dispor, mediante lei complementar,
com apoio no art. 192 da Constituição, sobre a competência para execução da política monetária pelo BACEN, nos
termos constantes do decreto vigente. Ou seja, permanece
com o Poder Executivo a capacidade de escolher qual regime de política monetária será observado.
Quanto aos que defendem a autonomia por lei, veja-se
que, na prática, o Banco Central, desde a expedição do decreto, tem gozado de autonomia efetiva na execução da política a ele determinada. E não conheço evidência, alhures,
que a introdução tão-somente de autonomia legal tenha
contribuído para a redução das taxas de juros. 
Carlos Eduardo Monteiro, advogado formado pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro, com mestrado em Comparative Jurisprudence pela New York University School of Law, é presidente do Banco Nossa Caixa.
E C O N O M I A

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