Ensino superior - Leandro Rodriguez
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Ensino superior - Leandro Rodriguez
diálogos&debates Revista trimestral ano 4 n. 3 ed. 15 março 2003 R$ 4,50 DA ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA BRASIL 2004: 50 ANOS SEM UM PROJETO Entrevista exclusiva com o novo presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Luiz Elias Tâmbara O que mudou sem a inflação nos dez anos de Plano Real Reforma do Ensino: para onde vai a universidade brasileira ta, o que é muito diferente. O crítico (supondo-o homem honrado e inteligente) só escreve se tem uma idéia, se quer esclarecer uma questão, combater um sistema, se quer censurar ou elogiar. Então, sobram motivos que considera reais para expor sua opinião, para distribuir a censura ou o elogio. O infeliz cronista, obrigado a escrever sobre tudo o que cai em sua seção, só precisa cumprir a tarefa que lhe é imposta; freqüentemente não tem a menor opinião sobre os assuntos que se vê forçado a tratar; esses assuntos não provocam nem sua cólera nem sua admiração. Mas deve comportar-se como se acreditasse em sua existência, como se tivesse um motivo para lhes dar sua atenção, como se devesse tomar partido, pró ou contra”. Recusando-se, portanto, a agir como escriba de aluguel, a serviço deste ou daquele interesse, em geral pouco ou nada confessáveis, Berlioz acumulou uma montanha de inimigos na França – e até fora dela. Não hesitou, por exemplo, em criticar a superficialidade da música de Liszt – logo Liszt, um dos raros defensores de suas obras em toda a Europa. Assim, exilado em seu próprio país, amargurado e ressentido, Berlioz recorreu algumas vezes à ficção para extravasar o que um crítico francês chamou de “ardor napoleônico”. Entre esses escritos está um muito curioso, intitulado “Euphonia ou a cidade musical”. Em pouco mais de 40 páginas, ele faz o que se poderia chamar de “music-science-fiction”, pois projeta no século 24 a cidade ideal, onde os músicos e a música determinariam o dia-a-dia, a estrutura formal – toda a vida de seus habitantes. Euphonia fica na Sicília, no século 24, e é governada pela música. Xilef, personagem que pode ter sido tomado de empréstimo a Félix Mendelssohn (1809-1847), é compositor e “prefeito das vozes e dos instrumentos de cordas”; Shetland, também compositor, é “prefeito dos instrumentos de sopro”. Entre as personagens femininas estão Mina, uma cantora dinamarquesa, e sua criada Fanny. Lá os compositores têm total poder e estão libertos de qualquer preocupação material. As mulheres são todas cantoras ou criadas. Xilef passeia pela cratera do Etna (o vulcão estava extinto, e sua cratera transformara-se num belo lago). “Arte, natureza e liberdade”, escreve Jacques Amblard. “O paraíso. (...) Berlioz sonha fazer de sua vida uma arte total e onisciente, onipotente, do mesmo jeito que uma criança sonha viver num mundo inteiramente povoado de brinquedos.” Na cidade ideal, as festas religiosas deixaram de determinar o calendário. Agora, as festas musicais são as mais importantes. Os compositores são endeusados e entronizados. Gluck e Beethoven, naturalmente, possuem lugar de honra nesse panteão. De volta ao presente real, Berlioz encerra, em 1º de janeiro de 1865, suas memórias com estas palavras: “Qual dos dois poderes pode elevar o homem até as alturas mais sublimes, o amor ou a música? É uma grande questão. Acredito, porém, que se pode dizer o seguinte: o amor não pode dar uma idéia do que é a música, mas a música, sim, pode dar uma idéia do que é o amor... Por que separar uma da outra? São as duas asas que possui a alma. Vendo de que modo alguns entendem o amor, e o que buscam nas criações artísticas, involuntariamente penso sempre nos porcos, que com seu ignóbil focinho chafurdam a lama entre as mais belas flores, para encontrar as trufas que tanto adoram. Mas tratemos de não pensar mais na arte... Estelle! Estelle! Agora poderei morrer sem amargura e sem ódio”. “O amor não pode dar idéia do que é a música, mas a música, sim, pode dar uma idéia do que é o amor”, escreveu Berlioz 26 diálogos&debates março 2004 C L Á S S I C O S uma reforma anunciada A sensível e sôfrega expansão das universidades particulares em anos recentes coloca autoridades, mantenedores e estudantes diante de questão inescapável: para onde e como seguir adiante? POR FLÁVIO VIANNA O número é inédito na educação superior brasileira: mais de meio milhão de diplomas de graduação entregues em 2003. Para muitos dos estudantes, uma tímida comemoração se mescla à consciência de falta de perspectivas no mercado de trabalho. De olho neles, analistas e agentes do setor lembram com preocupação um fato inevitável. No final deste ano, uma leva renovada de graduados, mais numerosa do que a anterior, irá também deixar a faculdade, numa seqüência natural para um sistema movido por sensíveis taxas de crescimento. A expansão das universidades particulares, aumento da inadimplência, novos cursos, mais e mais vestibulandos: são evidentes os sinais de que o ensino superior caminha a passos largos mas carece de ampla revisão a respeito de que rumos tomar. A movimentação de entidades e autoridades do setor para um debate abrangente teve início, com ares de urgência, na troca da administração federal, no início do ano passado, quando surgiu com mais força, por razão da despedida do ex-ministro Paulo Renato Souza da pasta da Educação, a reflexão sobre o que deve vir agora pela frente. Sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, o ensino superior despertou para a demanda por vagas na univer- E N S I N O S U P E R I O R sidade. Há hoje, segundo Censo da Educação Superior de 2002 (o mais recente realizado pelo Inep-Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, autarquia responsável por dados estatísticos referentes à educação nacional), 1.637 escolas espalhadas pelo país, entre públicas e privadas, e elas abrigam 227.884 mil professores e 3,47 milhões de alunos matriculados em cursos de graduação presencial. Entre 1997 e 2002, o número de escolas e matrículas cresceu nada menos que 181,8% e 178,8%, respectivamente – uma marca espantosa. Foi um período de predominância da iniciativa privada, que apresentou uma taxa de 209% de expansão. “O ensino superior como está hoje é muito desigual, tendo como jóias da coroa os bons cursos de mestrado e doutorado, dignos de qualquer país. Mas tais jóias vêm dentro de uma casca podre e regida por regulamentos absurdos e disfuncionais. Além disso, o setor público é homogeneamente muito caro e heterogeneamente bom. As dez melhores universidades superam em valor o que custam. Mas muitas outras têm custos elevados e pouquíssima qualidade. O setor privado é vibrante, dinâmico e igualmente heterogêneo. Vem crescendo e se modernizando muito rapidamente. Oferece um ensino de qualidade média a um terço do custo das universidades públicas, cujo ensino, março 2004 diálogos&debates 27 Aluno que trabalha ou operário que estuda? À falta de recursos para investir na universidade pública, o governo de Fernando Henrique Cardoso chamou para perto a iniciativa privada, de modo a evitar um gargalo no ensino superior. “No Brasil, o crescimento acanhado do ensino público por falta de verbas em razão dos acordos feitos com o Fundo Monetário Internacional [FMI] ensejou um crescimento enorme do ensino privado. Mas não foi o ensino privado apenas que cresceu. O crescimento ocorreu dentro de uma deliberada política do Ministério da Educação de fazer com que a iniciativa privada pudesse atender à demanda que não era atendida pelas universidades públicas”, observa o deputado Gastão Vieira (PMDB-MA), presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados. “Eu acho que o ensino privado tem um papel importante. Acima de tudo, ele é barato e cria faculdades, universidades, centros de ensino, com o dinheiro que vem da iniciativa privada, não do governo. Vamos imaginar se o governo teria condições de bancar as inúmeras universidades particulares como as que foram criadas no país. Portanto, não sou contra o ensino privado e penso que, neste momento, ele cumpre um papel importantíssimo, o de atender à demanda de milhares e milhares de jovens brasileiros”, observa o deputado. Naturalmente, a abertura acelerada de novas escolas e cursos, ainda que sob supervisão do MEC, que implementou sistemas de avaliação e acompanhamento do ensino, gerou conseqüências marcantes, e o que se prega hoje é a necessidade de uma reforma universitária. Nesse sentido, dois pontos são colocados com maior insistência: financiamento e autonomia universitária. “É preciso mais verba para a educação. No governo anterior, foi aprovado que 7% do Produto Interno Bruto seria destinado a esse setor, decisão que foi vetada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. No momento, investe-se apenas 4%”, aponta o presidente da União Nacional dos Estudantes, Gustavo Petta. “Acreditamos também que é preciso ter um controle social do ensino privado, criando regras de qualidade para esses cursos, já que 70% dos estudantes são matriculados nessas escolas e 88% das instituições são particulares. É claro que não é possível todo mundo estudar na escola pública, pois existe uma demanda crescente. Por isso, seria importante também ampliar o crédito para estudantes”, reforça Petta. “Existem mensalidades fora da realidade brasileira, que é essa de desemprego alto. Enfim, são várias barreiras para pagar uma faculdade e a inadimplência pode chegar aos 30% e 40%. O presidente Luiz Inácio ‘Lula’ da Silva prometeu beneficiar 480 mil estudantes durante seu mandato, mas ainda estamos muito longe disso. Apenas 70 mil receberam crédito para estudar este ano”, aponta o presidente da UNE. A própria Comissão de Educação da Câmara dos Deputados se dedica ao estudo de medidas viáveis para o surgimento de novas linhas de crédito ao ensino superior, como destaca o seu presidente. “O alto grau de inadimplência é discutido, a comissão tem uma enorme preocupação com a questão do financiamento, tem tentado formas alternativas de financiar o ensino superior por meio da utilização do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço [FGTS] ou de recursos que a Caixa Econômica Federal recebe para administrar o Fundo de Garantia, a Bolsa-Escola, enfim, outros programas do governo. Mas, infelizmente, nós ainda não sensibilizamos suficientemente o governo no sentido de que ele encare esse problema como um grande desafio”, afirma o deputado Gastão Vieira. Arthur Roquette de Macedo, membro do Conselho Nacional de Educação (CNE), acrescenta ao debate: “Na verdade, existem várias propostas para melhorar o financiamento ao aluno e às instituições, principalmente ao aluno. É evidente que o que está aí é insuficiente. Não atende às necessidades do país, da sociedade, dos alunos e das instituições. Propostas como a do uso do FGTS são importantes, porque a maioria do alunado é composta por trabalhadores. Na verdade, no Brasil, ocorre uma situação interessante. Não temos praticamente a figura do aluno que trabalha, o que temos em maior percentagem é o trabalhador que estuda. Portanto, a oportunidade de utilização do FGTS constitui um avanço. Outra possibilidade é a utilização de parte dos recursos dos depósitos compulsórios, que existem em grande quantidade. Uma outra condição que poderia ser colocada é a da remessa de lucros. Seria muito interessante que corporações internacionais, do setor ou não, destinassem um pequeno percentual de suas remessas de lucros para financiar o ensino, para dar bolsa para o aluno”, conclui Roquette de Macedo. No último Provão, de 26 áreas avaliadas, apenas odontologia e fonoaudiologia tiveram média acima de 50% 28 diálogos&debates março 2004 E N S I N O S U P E R I O R F o t o A n a Na s c i m e n t o /A Brã o em média, não é melhor, embora as de qualidade superior quase sempre sejam públicas”, avalia o economista e especialista em educação Cláudio de Moura Castro. Cristovam Buarque entrega cargo a Tarso Genro Fora da esfera governamental, entidades representativas do setor apresentam ao governo suas próprias avaliações do cenário atual, com críticas e sugestões de medidas. A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), por exemplo, deverá enviar ao Palácio do Planalto um projeto para a reforma universitária, em divergência a documentos divulgados pelo Banco Mundial e pelo Ministério da Fazenda em que são condenados os gastos do governo com as universidades federais. Para a entidade, a reforma universitária deve promover basicamente o crédito estudantil e a autonomia, com a ressalva de que autonomia não deve ser confundida com soberania. Por sua vez, 20 intelectuais ligados ao Fórum de Políticas Públicas, instalado no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), pedem um resgate do “poder acadêmico” de cada universidade, o que, na prática, significa dizer que recairá sobre o MEC e sobre as agências de fomento à pesquisa um pequeno poder de decisão. Na opinião de Antonio Carbonari Netto, reitor do Centro Universitário Anhangüera e vice-presidente do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), “é importante distinguir que existe uma grande diferença entre as relações jurídicas no Direito Público e no Direito Privado: os particulares agem com ampla liberdade, mas não têm E N S I N O S U P E R I O R poderes e prerrogativas, enquanto a administração pública é detentora de poderes e prerrogativas, mas não tem liberdade. Os particulares podem fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, a administração pública somente pode fazer o que a lei determina”. Qualidade de ensino: algo que se esfuma Fator contrário a todas as idéias e propostas, a descontinuidade de políticas públicas dificulta a implementação de um plano duradouro para a área. Essa é a critica de Ana Maria Costa de Souza, chanceler do Centro Universitário do Triângulo (Unit). Segundo ela, “vivemos, lamentavelmente, políticas de governo e não políticas de Estado. Mudou o governo, mudam-se as regras. Ficamos oito anos com uma política que recebeu todas as críticas e agora pensamos numa proposta para os próximos quatro anos. Ela não irá se concretizar rapidamente. Toda essa discussão, essa revisão, requer muito tempo. Quando mudar o governo, vamos começar tudo outra vez? O que está aí precisa ser revisto. Agora, será que nada pode ser aproveitado, vamos descartar e começar do zero?” Para a professora, exemplos como o do Exame Nacional de Cursos, o Provão, ultimamente em destaque na mídia por causa da decisão do MEC de substituí-lo por um novo sistema de avaliação, devem chamar a atenção de autoridades e da opinião pública para o ris- março 2004 diálogos&debates 29 Petta: necessidade de verba para educação e linhas de crédito Cláudio de Moura Castro: ensino superior ainda “muito desigual” audiologia) registraram média geral acima de 50, numa escala de zero a 100. Recentemente, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) traduziu em números as críticas que faz à baixa qualidade do ensino jurídico no país. De 215 cursos avaliados, segundo performance no Provão, a entidade aprovou apenas 28% (60 cursos), distribuídos em 22 Estados e no Distrito Federal. No Estado de São Paulo, 12 escolas receberam selo de qualidade. Na capital foram apenas três. “Nossa intenção é que a OAB tenha poder de veto. Hoje, o que a Ordem faz é emitir um parecer meramente opinativo, o que quer dizer que mesmo que a Ordem seja contra a instalação de uma nova faculdade, ela, por questões políticas, se instala. E isso UNIVERSIDADE PÚBLICA PARA QUEM PRECISA Os prejuízos do sucateamento da universidade pública, salvo os centros de pesquisa e tecnologia que sustentam status de referência no país, recaem justamente sobre quem tem menos opções de escolha: o estudante de baixa renda. Um estudo do Inep-Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira mostra que universidades públicas, ao contrário do que os concorridos vestibulares fazem crer, concentram alunos mais pobres, em todas as 26 áreas da graduação avaliadas pelo Provão de 2003. No caso de pedagogia, 44% dos estudantes dizem 30 diálogos&debates março 2004 Os caminhos da mercantilização Foto Divulgação Foto Divulgação F o t o A n t o n i o L a rg u i co, precisamente na área de Educação, da descontinuidade. Em um de seus primeiros pronunciamentos públicos à frente do MEC, o ministro Tarso Genro deu mostras do que argumenta a professora Ana Maria Costa de Souza. Ele chamou de contraditória a proposta do seu antecessor, Cristovam Buarque (demitido do cargo, por telefone, em viagem ao exterior), de pagamento de mensalidades em universidades públicas. “A universidade é pública, os alunos não têm de pagar mensalidade. Importa discutirmos quais são os novos padrões de financiamento da universidade no contexto de um país absolutamente desigual, de um país que tem excelências universitárias, que tem estruturas universitárias totalmente degradadas, que tem uma enorme diferenciação social que, em última análise, compõe esse quase apartheid social que vive o país”, disse o ministro na abertura da 7ª edição do MEC Debate, ciclo de discussões mensais promovido pelo ministério. Mais adiante, Genro demonstra a vontade de alterar mesmo o que ainda não foi testado na prática, como é o caso do novo sistema de avaliação de cursos, instituído em atropelo por Medida Provisória (MP) – e ainda motivo de muitas dúvidas –, para substituir o Exame Nacional de Cursos, o Provão. Aqui surge um dos fortes aspectos negativos do ensino superior, cujo tratamento deve merecer atenção especial por parte do governo e de mantenedores e gestores de escolas. Como subproduto da impressionante expansão do setor, a qualidade do ensino, em muitos casos, caiu para segundo plano. Apesar da cultura de avaliação, difundida com a adoção do Provão, muitos cursos e escolas não conseguem ratificar em conceitos a qualidade de ensino que tanto pregam em campanhas publicitárias de véspera de vestibular. A última edição do Provão revelou que, das 26 áreas de conhecimento avaliadas, apenas duas (Odontologia e Fono- ter renda familiar mensal de até R$ 720,00. Dos que cursam faculdades particulares, apenas 24% deram essa mesma resposta. Mesmo em cursos considerados caros, como o de odontologia, a predominância se confirma na mesma faixa de renda – 5% de formandos em escolas públicas e 2,9% no ensino privado. Na distribuição por Estado, o Maranhão concentra o maior taxa de graduandos de baixa renda (47,5%). No extremo oposto, o Distrito Federal registra 16,6% de participantes da pesquisa com renda familiar mensal declarada de mais de R$ 7.200. E N S I N O S U P E R I O R Deputado Gastão Vieira: propostas na Câmara para o uso do FGTS e da CEF no crédito educativo Roquete de Macedo: alerta contra a mercantilização do ensino às vezes sem biblioteca, sem corpo docente, sem conteúdo programático”, descortina o presidente da seção de São Paulo, Luiz Flávio Borges D’Urso. “Que a educação de nível superior precisa crescer nós sabemos, porque os números mostram isso. Agora, precisa crescer com qualidade. Por outro lado, sabemos que existe um número grande de vagas ociosas. Ou seja, já temos um número elevado de vagas à espera de alunos, provocado pela chegada das classes C e D, que não têm condições de pagar as mensalidades. Se o crescimento maior é de escolas particulares, nós só podemos melhorar o preenchimento dessas vagas, para alunos que querem estudar e não podem. Estamos falando do direito da população brasileira de ter acesso à universidade. O que não podemos fazer é permitir que isso ocorra de forma desordenada, da mesma maneira que devemos rever os padrões de qualidade para verificar a expansão”, propõe Ana Maria Costa de Souza. De sua parte, Cláudio de Moura Castro, perguntado sobre quais ajustes de curto prazo favoreceriam o sistema como um todo, cita o antigo Provão. “Com ele, o ensino privado estava desnudado e sujeito à concorrência. Com as novas conjugações de força, os piores agentes do setor privado se juntaram à esquerda mais bolorenta para criar uma avaliação inviável, um castelo de cartas, obscuro, difuso e sujeito a todo tipo de vícios e corrupções”, condena. E N S I N O S U P E R I O R Qualquer que seja o plano da reforma universitária, ele deverá descrever o comportamento a ser assumido pelo Brasil diante da tentativa de instituições norte-americanas, canadenses, sul-africanas e australianas de transformar a educação, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), em bem comercial. A pressão é grande para a abertura de mercado, o que, não é difícil prever, deve implicar em novos riscos de perda de qualidade e desordem na regulação. “Eu não tenho dúvidas de que as empresas estrangeiras virão para o Brasil na área da educação superior, comprando instituições ou fazendo associações. Já existem algumas atuando no Brasil. Aliás, tenho chamado a atenção para esse fato há cerca de cinco anos. Nesse contexto, outro aspecto importante pelo risco que representa é a tentativa da Organização Mundial do Comércio de incluir a educação como um dos setores de serviços catalogados no GATT-Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços”, esclarece Arthur Roquette de Macedo. A resistência na OMC, até o momento, tem se dado no campo da ética, de como lidar com a perspectiva da educação voltada abertamente para o lucro. Afinal, educação trata de valores e do futuro do país ou é um negócio como outro qualquer? Macedo faz a distinção: “Na verdade, sempre dissemos que a instituição educativa é uma empresa e ela tem de ser gerida como empresa. Evidentemente, é uma empresa que apresenta características distintas, por exemplo, das de uma Mercedes-Benz, de um McDonald’s. O compromisso social de uma instituição de ensino é distinto, é maior. Envolve peculiaridades que estão acima dos compromissos de qualquer outro setor da economia. Além do compromisso social, é preciso levar em conta que a ética também é distinta. Além disso, a instituição está formando recursos humanos e deve ser avaliada e regulamentada pelo Estado. Logo, precisa ser submetida a uma série de avaliações”. Quanto à educação nos termos propostos na OMC, o membro do CNE deixa um alerta. “Quando se mercantiliza a educação, da forma como propõem alguns países na OMC, ou quando se entra em uma forma desvairada de fusões, aquisições, franquias e mercantilização de instituições, você deixa de atender ao compromisso social, aos princípios éticos e à necessidade de a instituição de ensino ter uma cultura regional. Leva-se à pasteurização da educação com perda da identidade nacional”, encerra. Flávio Vianna é jornalista e escreve sobre problemas do ensino superior brasileiro. março 2004 diálogos&debates 31