revista saberes letras

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SABERES LETRAS
ISSN: 2176-89271
SABERES
LINGUÍSTICA - LITERATURA - ENSINO
ORGANIZAÇÃO
Micheline Mattedi Tomazi
Aline Moraes Oliveira
LETRAS
2
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SABERES LETRAS
Diretora Geral: Alacir de Araújo Silva
Coordenador do curso de Letras Português/Inglês: Andrea Santana Silva e Souza
Editor: SABERES Instituto de Ensino Ltda
Organizadores: Aline Moraes Oliveira, Micheline Mattedi Tomazi e Weverson Dadalto
Pareceristas e revisores:
Alacir de Araújo Silva – SABERES
Arlene Batista da Silva Ferreira – SABERES
Deneval Siqueira de Azevedo Filho – UFES
Inês Aguiar dos Santos Neves – SABERES
Janaína de Assis Rufino – UEMG
Lúcia Helena Peyroton da Rocha – UFES
Luciana Moraes Barcelos Marques
Luis Eustáquio Soares – UFES
Maria Amélia Dalvi Salgueiro – UFES
Maria da Penha Pereira Lins - UFES
Micheline Mattedi Tomazi – UFES
Paulo Roberto Sodré – UFES
Vera Márcia Soares de Toledo – SABERES
Weverson Dadalto – SABERES
Wilberth Claython Ferreira Salgueiro – UFES
Wolmyr Aimberê Alcantara Filho – SABERES
Articulistas:
Adriana Recla
Camila de Souza Neris
Carmelita Minelio da Silva
Diego do Nascimento Rodrigues Flores
Dinameire Oliveira Carneiro Rios
Janayna Bertollo Cozer Casotti
Lúcia Helena Peyroton da Rocha
Luciano Novaes Vidon
Maria José Costa
Micheline Mattedi Tomazi
Olivaldo da Silva Marques Ferreira
Pedro Antonio Gomes de Melo
Roseane Cristina da Paixão
Editoração: José Carlos Vieira Júnior
Revista Saberes Letras: Linguística, Literatura, Ensino. Faculdade Saberes. – v. 10,
n.1. – Vitória: Saberes Instituto de Ensino Ltda., 2012
Revista Saberes Letras: Linguística, Literatura, Ensino. Faculdade Saberes. –
v. 10, n.1. – Vitória: Saberes Instituto de Ensino Ltda., 2012. Anual ISSN: 2176-8927
1. Linguística – Periódico. 2. Literatura. 3. Ensino.
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3
Sumário
I–
1.
2.
3.
Estudos sobre LingUística
A NOÇÃO DE SEMÂNTICA GLOBAL E CONSTITUIÇÃO
DO ETHOS DISCURSIVO: UMA ANÁLISE EM PRÁTICAS
DISCURSIVAS INDÍGENAS
Adriana Recla
ESTRATÉGIAS DE APAGAMENTO DO AGENTE NO
GÊNERO MANCHETE: UM OLHAR FUNCIONALISTA
Carmelita Minelio da Silva Amorim
Lúcia Helena Peyroton da Rocha
Maria José Costa
07
27
A POLISSEMIA NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO DOS
TEXTOS
Micheline Mattedi Tomazi
Camila de Souza Neris
48
4.
A TOPONÍMIA MUNICIPAL DA MICROREGIÃO
ALAGOANA DO SERTÃO DO SÃO FRANCISCO
Pedro Antonio Gomes de Melo
64
5.
FORMAS DE ENDEREÇAMENTO DISCURSIVO NA REVISTA
CAPRICHO
Olivaldo da Silva Marques Ferreira
81
Ii –
Estudos sobre LITERATURA
6.
NOS FRAGMENTOS DA MEMÓRIA: CONSIDERAÇÕES
ACERCA DO DIÁRIO COMPLETO DE LUCIO CARDOSO
Roseane Cristina da Paixão
7.
A ESTÉTICA DA ANTROPOFAGIA: DEVORAÇÃO, CRÍTICA
E CINEMA EM OSWALD DE ANDRADE, GLAUBER ROCHA
E OLNEY SÃO PAULO
Dinameire Oliveira Carneiro Rios
99
122
4
8.
Iii–
9.
10.
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REALIDADE E FICÇÃO EM O DOENTE MOLIERE
Diego do Nascimento Rodrigues Flores
134
Estudos sobre ENSINO
PRODUÇÃO DE TEXTOS EM SALA DE AULA: UMA
REFLEXÃO EM TORNO DA ESCRITA E REESCRITA DE
TEXTOS
Janayna Bertollo Cozer Casotti
159
SUBJETIVIDADE E ESTILO EM AQUISIÇÃO E
DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA: REFLEXÕES E
REFRATURAS
Luciano Novaes Vidon
180
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5
APRESENTAÇÃO
A Revista Saberes, desde o seu primeiro volume, publicado em 2003, busca
integrar produções, trabalhos, contribuições de autores que trazem discussões
relevantes sobre questões linguísticas, literárias e de ensino de língua e
literatura. Trata-se de um veículo aberto ao debate e às críticas, por entender a
dinamicidade da ciência.
Esta edição, a quarta online, da Revista Saberes, assim como as demais, está
divida em três grandes blocos, a saber: estudos sobre linguística; estudos sobre
literatura; e estudos sobre ensino.
Na primeira subdivisão, aparecem os estudos sobre linguística com análise em
prática discursiva indígena; reflexões funcionalistas acerca de estratégias de apagamento
do agente no gênero manchete; apontamentos sobre a polissemia na construção do
sentido dos textos; descrições e investigações sobre toponímia municipal na microregião
alagoana do sertão nordestino; e análises sobre formas de endereçamento discursivo na
revista capricho.
Além dessas reflexões, reunimos também estudos sobre literatura, no
segundo bloco, em que aparecem considerações sobre o diário de Lúcio Cardoso;
averiguações sobre a estética da antropofagia em Oswald de Andrade, Glauber Rocha e
Olney São Paulo; contribuições sobre realidade e ficção em o Doente Moliere.
E, num terceiro momento da Revista, ganham espaço os estudos sobre
ensino. Produção de textos em sala de aula e reflexões em torno da escrita e reescrita; e
aquisição e desenvolvimento da escrita fazem o fechamento deste ciclo de estudos,
críticas, reflexões e, sobretudo, de contribuições para a ciência que tange à área
de Letras.
Em 28 de novembro de 2012
Alacir de Araújo Silva
Aline Moraes Oliveira
Micheline Mattedi Tomazi
Weverson Dadalto
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Estudos sobre
Linguística
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A NOÇÃO DE SEMÂNTICA GLOBAL E
CONSTITUIÇÃO DO ETHOS DISCURSIVO:
UMA ANÁLISE EM PRÁTICAS DISCURSIVAS
INDÍGENAS
Adriana Recla*1
Resumo: Este artigo discute o princípio da Semântica Global e a constituição do
Ethos em práticas discursivas indígenas vivenciadas por sujeitos de população
indígena tupiniquim da aldeia Pau-Brasil, localizada em Aracruz-ES. O
objetivo é examinar, no discurso O saci, as dimensões da semântica global e
a constituição do ethos discursivo no funcionamento de práticas culturais do
cotidiano, vivenciadas por estes sujeitos, à luz da Análise do Discurso de linha
francesa, de modo particular, nas perspectivas que vem sendo propostas por
Maingueneau (1993, 2004, 2005b, 2006, 2008). Privilegiamos, na análise, os planos
da semântica global, em especial, a categoria ethos discursivo. Verificamos que
as práticas discursivas depreendidas do cotidiano indígena nos forneceram
uma chave para a compreensão da constituição do ethos discursivo no discurso
analisado, uma vez que é também por meio delas que conhecimentos e ideias
se tornam realidade.
Palavras-Chave: Semântica Global. Ethos Discursivo. Análise do Discurso.
Abstract: This article examines the principle of the Global Semantics and the
presence of the Ethos in discursive practices experienced by individuals in the
indigenous tupiniquim tribe Pau-Brazil, located in Aracruz-ES. The aim is to
study, in the speech The Saci, the dimensions of the Global Semantics and the
presence of discursive ethos in cultural practices of these individuals’ everyday
life, supported by French discourse analysis, especially in perspectives that have
been proposed by Maingueneau (1993, 2004, 2005b, 2006, 2008). We focused
on analyzing the principles of the global semantics, specially the discursive
ethos. We understand that the discursive practices of everyday life enable us to
understand the presence of the discursive ethos in discourse analysis, since it is
1* Doutoranda em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( PUC-SP) / Bolsista CAPES; Professora Adjunta de Língua Portuguesa e Supervisora
de Extensão e Educação Continuada da Faculdade de Aracruz – FAACZ – Aracruz - ES.
E-mail: [email protected].
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also through them that knowledge and ideas become real.
Keywords: Global Semantics. Ethos Discourse. Discourse Analysis.
Introdução
A Análise do Discurso tem se destacado na atualidade como uma disciplina de
grande expansão na área das ciências da linguagem, pois apresenta um quadro
teórico sofisticado, sobretudo pelas possibilidades que as formulações teóricas
abrem para os pesquisadores e estudiosos. Apesar de ser ainda bastante jovem,
a Análise do Discurso tem apresentado intensa produtividade e grande abertura
para o intercâmbio com diversas áreas do conhecimento. Desvela-se, assim,
como um importante campo interdisciplinar do universo acadêmico graças à
produção de pesquisas que investigam cada vez mais temáticas linguísticas em
diferentes manifestações da língua.
Este artigo21 se pauta sobre a questão que incide sobre a noção de semântica
global e a constituição do ethos discursivo em discursos de práticas culturais
cotidianas vivenciados pela população indígena tupiniquim de Pau-Brasil,
localizada em Aracruz-ES. O objetivo é examinar, no discurso O Saci32, algumas
dimensões da semântica global, no intuito de desvelar com mais precisão a
constituição do ethos discursivo no funcionamento desta prática discursiva.
É no interior de práticas culturais do cotidiano e pelo uso de certas estratégias
e mecanismos que os discursos afloram. Isso revela que as manifestações
discursivas da sociedade se concretizam na construção de diferentes imagens
culturais instituídas a partir de um determinado lugar social por meio da
materialização discursiva. Desse modo, as questões linguisticas em circulação
na sociedade contemporânea, à luz da Análise do Discurso, na atualidade,
fazem com que observemos que língua, homem e sociedade se entrelaçam e
ocupam um lugar fundamental de estudos, dado os fatos linguageiros vivos na
nossa sociedade.
1- Neste trabalho ampliamos nosso referencial teórico, considerando a integração dos
planos da Semântica Global.
2- Texto publicado na coletânea Os tupinikim e Guarani contam... organizada por Edivanda Mugrabi, em 2005.
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Para o alcance do objetivo proposto, tomamos como referencial teórico a
Análise do Discurso de linha francesa (AD, doravante), de modo particular,
nas perspectivas que vem sendo propostas por Maingueneau. A perspectiva
com a qual Maingueneau (2005b) trabalha em relação à AD se caracteriza por
considerar a prática discursiva em suas múltiplas dimensões, partindo do
princípio da semântica global.
Privilegiamos, desse modo, a noção de semântica global por compreendermos
que não há mais lugar para a distinção entre superfície e profundeza de natureza
discursiva, entendendo que todas as dimensões estariam imbricadas (o
vocabulário, a intertextualidade, o tema, o estatuto do enunciador e do coenunciador, a dêixis discursiva, o modo de enunciação, o modo de coesão).
Para fundamentar a análise do discurso indígena selecionado, apresentaremos
alguns dados teórico-metodológicos, e buscaremos conhecer, por meio de
recursos linguístico-discursivos, como a população indígena tematiza por
meio de discursos seu cotidiano, seus costumes e suas tradições, bem como
sua maneira de construir sua mundividência, visto que eles facilitam ou
mesmo condicionam o estabelecimento de formas de desvelamento de dados
constitutivos de sua tradição e de sua história que nos induzem a construir uma
imagem (ethos discursivo) desse povo.
Consideraremos, assim, em especial, a categoria ethos discursivo. Neste
trabalho, vamos tomá-lo como construção discursiva do enunciador a partir de
características linguísticas e sociais que se constroem na instância enunciativa,
no momento em que o enunciador toma a palavra e se mostra por meio de seu
discurso.
Neste trabalho, concebemos o discurso indígena como uma prática discursiva
regida por uma semântica global, por meio da qual os vários planos do discurso
se articulam e se estruturam. Para tanto, o discurso indígena não é pensado
apenas como um conjunto de textos, mas como um espaço de regularidades
enunciativas em que os planos da semântica global merecem destaque. Além
disso, o discurso não resulta da junção de um fundo e de uma forma, ele está
inscrito em uma configuração sócio-histórica, não podendo ser dissociado
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da organização de seus conteúdos e do modo de legitimação de sua cena
enunciativa.
Nesse sentido, um estudo que se funda sobre a perspectiva de uma semântica
global e a constituição do ethos em práticas discursivas indígenas deverá
considerar sua globalidade, recorrendo-se a uma análise em que a significância
discursiva é concebida em conjunto.
Por fim, esse estudo se justifica pelo fato de o discurso ser revelador de
componentes significativos do contexto histórico-social, na medida em que por
ele se torna possível reconstruir aspectos da língua, do homem e da sociedade.
Como prática social, o discurso indígena materializa a cultura, a história, as
relações de interação e de intercâmbio, o sistema de valores indígenas, ao
mesmo tempo em que desvela o mundo que os envolvem, explica e compreende
o próprio contexto, registrando o estado atual de aspectos culturais dessa
população. A prática discursiva indígena tupiniquim43
Na tradição indígena de Pau-Brasil, o relato é um importante gênero discursivo
na manutenção da tradição entre as gerações, na contação de histórias, na
preservação mitológica, nas conversas informais, utilizado historicamente por
essa comunidade. Nesse sentido, trata-se de uma prática discursiva ligada à
realidade e representa uma significativa esfera discursiva para essa população.
O relato da comunidade de Pau-Brasil emergiu da necessidade de o indígena
documentar, de modo simples e despretensioso, situações vivenciadas por ele
ou por algum membro de seu grupo. Isso comprova o quanto o relato produzido
pelo indígena de Pau-Brasil revela identidade própria e abre-se a desvelar a
imagem dos sujeitos que vivem naquela comunidade.
3- Os tupiniquins, no Espírito Santo, habitam o município de Aracruz, na região norte
do Estado do Espírito Santo, e estão distribuídos em quatro aldeias: Caeiras Velhas, PauBrasil, Irajá e Comboios, com aproximadamente 2.000 habitantes. Localizada a 31 km da
sede de Aracruz, a aldeia Pau-Brasil possui atualmente cerca de 400 habitantes, os quais
sobrevivem da agricultura, por meio da comercialização de produtos, e do artesanato,
que é uma maneira dereafirmação de sua cultura.
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Cabe-nos destacar que para o índio tupiniquim é de extrema importância o relato
porque, por meio dele, há o compartilhamento, a rememoração dos costumes
passados, permitindo manter vivas as tradições, as crenças e os costumes
daquele povo. Dessa maneira, a sabedoria acumulada ao longo do tempo não
se concentra em alguns índios do grupo, mas renasce na coletividade da tribo,
sendo vivenciada por toda a coletividade por esses discursos.
Nessa perspectiva, o relato indígena em questão narra um conjunto de histórias
sobre os rios, as matas, os animais, a pesca, a caça, que completa o sentido da
vida indígena, uma vez que expressa a cultura do indígena de Pau-Brasil e
representa um grupo étnico bastante significativo para a formação históricocultural do município de Aracruz. O relato indígena é, dessa forma, uma prática
discursiva resultante de experiências transmitidas pelos membros da aldeia e
guardadas na memória coletiva.
Enfim, o discurso indígena não pode ser pensado como um conjunto de
textos, mas como uma prática discursiva. Esta prática discursiva seleciona, de
acordo com sua semântica global, os modos e os espaços de circulação de seus
discursos. Isto significa pensar as condições de exercício da função enunciativa,
encontráveis nas práticas cotidianas indígenas, as quais constituem as condições
históricas para os acontecimentos e os discursos que ali existem.
O primado do interdiscurso
O primado do interdiscurso sobre o discurso é o princípio básico e central
postulado por Maingueneau (2005b). Afirmar que o interdiscurso tem primazia
sobre o discurso corresponde a postular que a unidade de análise passa a ser o
interdiscurso, e não mais o discurso. Um olhar mais atento leva-nos a destacar
o discurso como atravessado pela interdiscursividade, tendo como propriedade
constitutiva o fato de estar em relação multiforme com outros discursos.
Podemos considerar que este conceito é um dos mais expressivos presentes na
reflexão teórica formulada por Maingueneau, uma vez que o objeto de análise
da AD passa a ser apreendido sob um duplo viés: a partir de sua gênese e da
própria relação com o interdiscurso.
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Maingueneau associa a interdiscursividade com a gênese discursiva, dado
que há sempre um já dito que se constitui no outro do discurso. Assim, toda
produção discursiva, de acordo com certas condições conjunturais, faz circular
formulações já enunciadas anteriormente. O fato de co-existirem outros discursos
que instituam o que é dito nos enunciados faz com que os sentidos construídos
e institucionalizados legitimem o dizer. Contudo, isso não quer dizer que
certo discurso se formule do mesmo modo que todos os discursos do mesmo
campo, visto que não nos é possível estabelecer, em razão de uma evidente
heterogeneidade e da existência de uma zona de regularidade semântica, os
inúmeros posicionamentos de um determinado campo.
A proposta do autor é, então, passar a considerar o interdiscurso como unidade
de análise pertinente, definindo-o como “um espaço de trocas entre vários
discursos convenientemente escolhidos” (MAINGUENEAU, 2005b, p. 21).
Um discurso está sempre em relação com outros e esse espaço de regularidade
pertinente, do qual diversos discursos seriam apenas componentes, estruturaria
a sua identidade discursiva. Trata-se de uma concepção interdiscursiva, em que
os discursos já nasceriam imbricados em uma relação dialógica.
Por entender que o conceito de interdiscurso é vago, Maingueneau (2005b)
busca especificá-lo trazendo para o interior da AD a tripartição dessa noção
em: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. Isso porque
Maingueneau pretende analisar o discurso como realidade inseparável de seu
contexto de produção, fazendo parte de tal contexto o próprio interdiscurso.
Para ele, o universo discursivo nada mais é do que o conjunto de formações
discursivas de todos os tipos que interagem em um dado momento; na verdade,
trata-se do horizonte a partir do qual serão construídos os domínios suscetíveis
de serem estudados: os campos discursivos. O campo discursivo, por sua
vez, é o termo designativo das formações discursivas que se encontram em
concorrência em uma região determinada do universo discursivo. É no interior
desse campo discursivo que se constitui um discurso e os subconjuntos de
formações discursivas que o analista entende como sendo relevante para a sua
pesquisa, concebido como espaço discursivo.
Um aspecto que gostaríamos de sublinhar na proposta teórica de Maingueneau
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diz respeito à delimitação desses campos, já que não se trata de algo evidente.
Ademais, exige do analista a elaboração de hipóteses e escolhas, ancoradas
em uma dupla condição: a materialidade dos discursos, e, as condições de
enunciação desses discursos, os quais se inscrevem no viés histórico. Em outras
palavras, estes campos possibilitam olhar com mais propriedade a gênese e o
modo de coesão entre os discursos que estão em relação.
Para Maingueneau (2005b), o estudo do interdiscurso pressupõe a presença
do Outro que ocorre por meio da noção de heterogeneidade, característica
fundamental do discurso, considerada em dois planos: heterogeneidade
constitutiva (implícita) e heterogeneidade mostrada (explícita). A
heterogeneidade constitutiva, por um lado, não deixa marcas visíveis na
materialidade linguística, ainda que deixe entrever outros discursos que lhe
constituíram, visto que os textos estão intimamente ligados amarrando o Mesmo
e o Outro do discurso. A heterogeneidade mostrada, por outro lado, deixa
marcas na superfície linguística que alteram a unicidade da cadeia discursiva,
inscrevendo o Outro.
Embora aceite a presença no discurso da heterogeneidade mostrada e
constitutiva, Maingueneau renomeia-as, quando estabelece a noção de
interdiscurso. Defende, nesta perspectiva que, se um discurso mantém relações
com outro, ele não é visto como um sistema fechado, mas como espaço de trocas
enunciativas, em que a história pode e deve se inscrever. Destaca, portanto, que
o interdiscurso tem precedência sobre o discurso, e, como consequência desse
pressuposto, afirma que o discurso nunca é autônomo porque as condições de
possibilidades semânticas se realizam em um espaço de trocas.
Em um sentido mais amplo, o interdiscurso pode ser entendido como o conjunto
das unidades discursivas que pertencem a discursos anteriores do mesmo
gênero, entre outros, com as quais um discurso particular entra em relação
implícita ou explícita. Daí a afirmação de que a alteridade é uma dimensão
constitutiva do sentido. Não há identidade discursiva sem a presença do Outro.
Buscar entender o funcionamento das relações interdiscursivas, portanto, não
remete àquela tentativa de tudo explicar, de dar conta do amplo sistema de
pensamento de uma época. Longe disso, demanda uma análise integradora das
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múltiplas dimensões textuais que permitem a identificação da alteridade nos
discursos.
Portanto, é preciso reconhecer que o discurso deve ser considerado no bojo de
um interdiscurso, já que o primeiro só adquire sentido no universo de outros
discursos. Daí a necessidade de relacioná-lo a outros, sabendo-se que cada
gênero de discurso tem a sua forma particular de tratar essa multiplicidade de
relações interdiscursivas.
Para nós, evidenciar o primado do interdiscurso como um dos planos
constitutivos da discursividade, significa “rejeitar a concepção do discurso como
‘sistema de ideias’ ” o que nos direciona mais uma vez para o projeto de uma
semântica global (MAINGUENEAU, 2005b, p. 101). Nesse sentido, afirmar que
a interdiscursividade é constitutiva de todo discurso é dizer que todo discurso
nasce de um trabalho sobre outros discursos. Deste modo, fica-nos evidente o
caráter essencialmente dialógico de todo enunciado do discurso.
A Noção de Semântica Global
O princípio da semântica global proposto por Maingueneau traz para a AD a
possibilidade de realizar uma análise mais profunda e integrada, uma vez que
neste princípio não há privilégio de um plano do discurso sobre o outro, mas
todo o conjunto dos planos discursivos está integrado e deriva dos mesmos
fundamentos.
Compreendemos as dimensões da semântica global, à luz da AD, nas perspectivas
de Maingueneau, como um modelo teórico-metodológico capaz de integrar, na
análise, as suas várias dimensões, entre elas o vocabulário, a intertextualidade, o
tema, o estatuto do enunciador e do co-enunciador, a dêixis discursiva, o modo
de enunciação, a coesão e o ethos discursivo. Essas dimensões operam tanto na
ordem do enunciado e da materialidade linguística quanto da enunciação e
das condições sócio-históricas de produção da prática discursiva. Desse modo,
centrar-se apenas no estatuto do enunciador e do co-enunciador, por exemplo,
sem considerar a globalidade dos discursos, poder-se-ia incidir em uma análise
limitada, reducionista.
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Como podemos observar, embora opere com conceitos da Linguística, a AD não
se limita apenas a um estudo linguístico. Ela traz uma significativa contribuição ao
estudo dos enunciados, dado que não os separa de sua materialidade linguística,
nem de suas condições de produção, abrindo-se à interdisciplinaridade. Para a
AD, o que determina a produção de sentidos é o contexto em que os discursos
são produzidos. Para o autor, um discurso só poderá ser apreendido por meio
de uma semântica global que sustente todas as dimensões, concebidas como
centrais no e para o discurso.
A semântica global apreende, ao mesmo tempo, os diferentes planos discursivos
desse discurso, integrando tanto o vocabulário quanto os temas tratados, o
ethos discursivo, a intertextualidade, as instâncias de enunciação. Não há um
plano do discurso que seja central; todos os que o constituem derivam dos
mesmos fundamentos. Ademais, os discursos não partem de um único, mas de
vários lugares enunciativos. Essa rede interdiscursiva instaura, pois, posições
enunciativas, a partir das quais é possível entender, no funcionamento do
discurso proferido por sujeitos da aldeia tupiniquim de Pau-Brasil, aspectos
culturais da história dessa população.
Assim sendo, poderemos verificar, por intermédio da semântica global, que os
discursos materializam algo mais do que uma versão de uma história passada ou
uma mera construção subjetiva do povo indígena. Isso ocorre porque os efeitos
de sentido são construídos no discurso, o qual, por sua vez, se torna produtor
de experiências de vida, viabiliza o acesso a visões de mundo e a histórias de
vida da população indígena graças aos recursos linguístico-discursivos.
Sobre a noção de Ethos Discursivo
Maingueneau (2005b) integra a noção de ethos à semântica global, como uma
das dimensões do discurso. O enunciador deve se conferir e conferir a seu coenunciador, certo status para legitimar seu dizer: ele se outorga, no discurso, a
uma posição institucional, e marca sua relação com um saber. O processo de
adesão de sujeitos a certa posição discursiva promovido pela noção de ethos
é tanto perceptível em áreas inscritas em situação de adesão como é o caso
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da filosofia, da política etc., quanto em gêneros ditos como funcionais e/ou
neutros.
Em nosso estudo, a palavra ethos deve ser entendida como um processo interativo
de influência sobre o outro, não sendo uma imagem do sujeito empírico, mas do
sujeito que se diz na enunciação, depreendido do próprio discurso.
Maingueneau (1993), ao reinterpretar tal noção, acrescenta-lhe um caráter e
uma corporalidade e passa a integrá-la à cena de enunciação54, especificamente,
à cenografia, indo além da concepção retórica de ethos. Para Maingueneau, a
noção discursiva de ethos associa-se a um gênero de discurso, uma vez que o
pertencimento de um texto a um posicionamento ou a um algum gênero de
discurso permite ao co-enunciador elaborar expectativas em termos de ethos. Daí,
a afirmação de que essa categoria está crucialmente ligada ao ato de enunciação,
ou seja, ao próprio dizer do sujeito que fala, e não a um saber extradiscursivo
sobre o enunciador.
O ethos discursivo, como categoria interativa, não está ligado apenas ao
enunciador, à imagem que este reivindica para si próprio. Sendo a imagem
do enunciador criada e recriada pelos co-enunciadores, por intermédio de
processos de estereotipização, os quais podem ou não ser confirmados pelo
processo discursivo, o ethos carregará a dimensão do “outro” discursivo.
A noção de ethos discursivo aqui proposta abarca, portanto, todo tipo de texto,
tanto os orais quanto os escritos. O texto escrito tem uma vocalidade que pode
se manifestar numa multiplicidade de “tons”. É o tom que dá autoridade ao
que é dito, permitindo ao co-enunciador construir uma representação do corpo
do enunciador. Emerge, assim, com a leitura, uma instância subjetiva que
desempenha o papel de fiador do que é dito, concebido como a imagem construída
pelo co-enunciador por meio de indícios de várias ordens, investindo-o também
4- Maingueneau (2005b) elabora a noção de cena enunciativa, distinguindo-a em uma
tripla interpelação: cena englobante, cena genérica e cenografia. A cena englobante é
aquela que define o tipo de discurso; a cena genérica é a que define o gênero de discurso.
Já a cenografia tem por efeito fazer passar a cena englobante e a genérica para um segundo plano. Para Maingueneau (2006a, p. 113), o discurso impõe sua cenografia de algum
modo desde o início; mas, de um outro lado, é por intermédio de sua própria enunciação
que ele poderá legitimar essa cenografia que ele impõe.
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de um caráter, um tom e uma corporalidade.
Além disso, o caráter e a corporalidade do fiador provêm de representações
sociais valorizadas ou desvalorizadas sobre as quais a enunciação se apoia,
podendo modificá-las ou confirmá-las. Assim, é por meio do próprio enunciado
que o fiador legitima sua maneira de dizer, dado que a qualidade do ethos remete
à imagem deste “fiador”.
Nessa perspectiva, os conteúdos dos enunciados não seriam independentes da
cena de enunciação. É nesse sentido que Maingueneau se afasta da concepção de
ethos como procedimento ou como estratégia, pois o fiador legitima sua maneira
de dizer por seu próprio enunciado, e a cena de enunciação é, ao mesmo tempo
e paradoxalmente,
[...] aquela de onde o discurso vem e aquela que ele
engendra; ela legitima um enunciado que, por sua
vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cena
de onde a fala emerge é precisamente a cena requerida
para enunciar (...) São os conteúdos desenvolvidos
pelo discurso que permitem especificar e validar
a própria cena e o próprio ethos, pelos quais esses
conteúdos surgem. (MAINGUENEAU, 2005a, p. 77)
Maingueneau (2005a) denomina a ação do ethos sobre o co-enunciador de
incorporação, isto é, “a maneira pela qual o co-enunciador se relaciona ao ethos
do discurso”. O co-enunciador incorpora uma imagem com base nos indícios
linguísticos fornecidos pelo enunciador, tendo-se, assim, o ethos construído.
Trata-se de uma noção que se modula em função dos gêneros e dos tipos de
discurso.
Entendendo o discurso como o espaço em que o ethos discursivo é constituído
e desenvolvido, podemos dizer que estamos dentro do mundo discursivo, em
que o discurso encena a própria atividade. Segundo Maingueneau, o ethos é
uma dimensão da cena de enunciação, e sua abordagem é uma maneira de levar
em conta uma dimensão psicofísica sobre quem fala no discurso, pois, ao se
falar, constrói-se uma imagem de si. Daí, não podermos tomá-lo como categoria
autônoma de análise, sendo ele, na verdade, um autorretrato discursivo.
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Análise do corpus
Para a análise, recortamos como critérios de análise, os mecanismos linguísticodiscursivos de que o enunciador lança mão para legitimar o discurso,
privilegiando os planos da semântica global (o vocabulário, o interdiscurso,
o tema, o estatuto do enunciador e do co-enunciador, a dêixis discursiva, o
modo de enunciação, o modo de coesão) para desvelar a constituição do ethos
discursivo.
Apresentamos a seguir o relato O Saci:
Na aldeia de Pau-Brasil, moravam pai e filho, os dois
sempre gostavam de tomar banho em uma gamela.
Sempre que acabavam o banho, não jogavam a água
fora. No verão, fazia muito calor, principalmente, à
noite. Os dois, como de costume, tomavam banho na
gamela e dormiam em uma esteira.
Certo dia, o filho olhou em direção à gamela e viu
uma coisa muito estranha, fora do normal, com um
lenço vermelho na cabeça. O filho, assustado, chamou
seu pai dizendo:
- Papai, papai, acorda, olha ali aquela coisa feia.
- Que foi meu filho?
O filho, desesperado, quase sem voz apontou em
direção à gamela. O pai disse:
- Tem certeza, meu filho, que está vendo alguma
coisa? Eu não estou vendo nada.
O filho respondeu:
- Tenho papai, não estou sonhando!
O pai disse:
- Você está delirando meu filho, deite e durma pois
estou muito cansado.
O pai dormiu, mas seu filho continuou acordado,
olhando para a cumeeira. E mais uma vez percebeu
outra coisa estranha, um vulto em torno da casa com
forte cheiro de cigarro.
Assustado abraça forte seu pai, mesmo assim se enche
de força e coragem e diz:
- Desta vez esta coisa não escapa. Levantou-se e foi à
beira do jirau, tirou um galho de tarinha, molhou na
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água começou a balançar o galho em volta da casa.
- Agora, companheiro, vá, siga seu caminho, fique
sossegado e trate seu amigo bem.
Após estas palavras, o vulto desapareceu e a criança
pôde dormir tranquilamente.
Contada por Alzima dos Santos Alexandre (30 anos) e
e scrita por Valdemir e revisada por Andrea e Marília.
(Mugrabi, 2005, p.181-184)
A construção da cena que valida esse relato, traz o relato da aparição do Saci
a um pequeno índio ainda criança, no próprio espaço da aldeia. A princípio, a
atitude do jovem índio é de temor, mas com o desenrolar dos fatos, ele enfrenta
a situação e consegue fazer com que o Saci siga o seu caminho. O próprio título
já remete à crença indígena na figura do Saci, o que auxilia na construção da
cena. Os efeitos de sentido são possíveis na cena enunciativa porque o filho
e o pai alternam o turno conversacional que se desenrola no relato. Nessa
perspectiva, o enunciador lança mão do discurso direto, mostrando a seriedade,
a autenticidade do discurso citado (fala do pai e do filho), materializado em
todo o relato.
Vejamos o primeiro recorte:
Na aldeia de Pau-Brasil, moravam pai e filho, os dois
sempre gostavam de tomar banho em uma gamela.
Sempre que acabavam o banho, não jogavam a água
fora. No verão, fazia muito calor, principalmente, à
noite. Os dois, como de costume, tomavam banho na
gamela e dormiam em uma esteira. (MUGRABI, 2005,
p.181)
Nesse recorte, o enunciador, em terceira pessoa, insere-se no espaço discursivo
e apresenta ao co-enunciador alguns costumes da aldeia Pau-Brasil, além
de elementos do artesanato, tais como gamela e esteira. Já na apresentação,
identifica de imediato o espaço dos acontecimentos “Na aldeia de Pau-Brasil”
e as personagens principais - pai e filho - e suas ações rotineiras/cotidianas,
inscritas discursivamente em “Os dois, como de costume, tomavam banho na
gamela e dormiam em uma esteira”.
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Ainda nesse recorte, percebemos o uso repetitivo do advérbio sempre, por duas
vezes, e uma predominância do tempo verbal pretérito imperfeito do indicativo
nas seguintes marcas: moravam; gostavam; acabavam; jogavam; tomavam;
dormiam. Esse tempo é comum em narrativas, o que enfatiza a noção de
continuidade ou até mesmo de duratividade das ações. A voz que enuncia não
atribui ao pai e ao filho nomes próprios, o que possibilita a identificação do coenunciador com a posição de cada um deles no discurso.
“Certo dia, o filho olhou em direção à gamela e viu
uma coisa muito estranha, fora do normal, com um
lenço vermelho na cabeça. O filho, assustado, chamou
seu pai dizendo:
- Papai, papai, acorda, olha ali aquela coisa feia.”
(MUGRABI, 2005, p.181)
Nesse segundo recorte, o enunciador introduz a complicação e/ou princípio
do conflito no relato, aspecto fundamental para a organização dessa história,
materializada na passagem “o filho olhou em direção à gamela e viu uma coisa
muito estranha, fora do normal”. Destaca-se também, nesse recorte, a marca
de tempo “Certo dia” e uma predominância do pretérito perfeito do indicativo
(olhou; viu; chamou) que indica a ação momentânea, definida no tempo. Além
disso, há também a marca espacial ali constituído pela situação de enunciação,
ancorando a enunciação.
Ocorre, no último excerto, a introdução da voz de outro enunciador, o filho, por
intermédio da instância enunciativa anterior, utilizando o discurso direto para
enunciar que a coisa estranha e “fora do normal” passa a ser feia, adjetivo mais
usual e que explicita uma característica física do antagonista.
O tom que perpassa o texto é de insegurança e medo. A voz enunciativa
confere um enunciador assustado, dando-lhe uma corporalidade identificada
pela comunidade imaginária dos que aderem a esse mesmo discurso. Assim, a
instância subjetiva toma corpo por meio da incorporação desses modos sociais
pertencentes ao espaço discursivo indígena.
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- Que foi meu filho?
O filho, desesperado, quase sem voz apontou em
direção à gamela. O pai disse:
- Tem certeza, meu filho, que está vendo alguma
coisa? Eu não estou vendo nada.
O filho respondeu:
- Tenho, papai, não estou sonhando!
O pai disse:
- Você está delirando meu filho, deite e durma pois
estou muito cansado. (MUGRABI, 2005, p.182)
Aqui, nesse recorte, os enunciados “Tem certeza, meu filho, que está vendo
alguma coisa? Eu não estou vendo nada” e “Você está delirando meu filho, deite
e durma pois estou muito cansado” conferem ao discurso um tom duvidoso
que se confirma no enunciado. Isso mostra, possivelmente, que os índios dão
mais credibilidade aos adultos, aos mais velhos do que às crianças, que, muitas
vezes, misturam real e fantasia, devido aos medos comuns na infância.
O pai dormiu, mas seu filho continuou acordado,
olhando para a cumeeira. E mais uma vez percebeu
outra coisa estranha, um vulto em torno da casa com
forte cheiro de cigarro.
Assustado abraça forte seu pai, mesmo assim se enche
de força e coragem e diz:
- Desta vez esta coisa não escapa. Levantou-se e foi à
beira do jirau, tirou um galho de tarinha, molhou na
água começou a balançar o galho em volta da casa.
- Agora, companheiro, vá, siga seu caminho, fique
sossegado e trate seu amigo bem.
Após estas palavras, o vulto desapareceu e a criança
pôde dormir tranquilamente. (MUGRABI, 2005,
p.183)
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Neste excerto, a imagem construída é a de enunciador corajoso, que enfrenta o
medo da presença do Saci. Tal situação equivale à atitude do sujeito empírico,
uma vez que para eles o Saci existe. Trata-se de um texto que materializa a crença
indígena na figura do Saci e o modo de se proceder diante da sua aparição.
Além disso, a imagem de um fiador com caráter corajoso, disposto a superar a
situação de medo, é revelada no enunciado “Desta vez esta coisa não escapa”.
A marca linguística “Levantou-se” indica a atitude do enunciador, que,
simbolicamente, anuncia a superação do medo. Também o uso dos verbos no
imperativo (vá; siga; fique; trate) indica a posição discursiva desse fiador, agora
não mais com a imagem de enunciador inseguro, mas de firmeza. O enunciador
se autodenomina amigo do Saci, incorporando um enunciador amigo,
companheiro, não agressivo, verificado no enunciado “Agora, companheiro,
vá, siga seu caminho, fique sossegado e trate seu amigo bem”.
Em “Agora, companheiro” encontramos a situação de enunciação ancorada no
dêitico temporal agora, indicando que o enunciado é verdadeiro no momento
em que o enunciador materializa o enunciado. Observando esses enunciados,
com exceção do último fragmento, todos os outros dão voz ao enunciador
filho, colocando-o em dupla situação: a de medo e a de coragem, elementos
contrários/antagônicos. Nesse processo de desenvolvimento do relato, cuja
situação conflituosa é resolvida, o filho aparece em primeiro plano.
Para explicar na instância narrativa e discursiva os elementos da cultura
indígena que indicam os procedimentos usados para o desaparecimento do Saci,
o enunciador explicita um plano de ações (tirou um galho de tarinha; molhou
na água começou a balançar o galho em volta da casa.) que integra a tradição
que permeia a personagem folclórica. Pós-clímax, observa-se uma situação
absolutamente resolvida confirmada pelos indícios textuais “e a criança pôde
dormir tranquilamente”.
Como todo discurso tem relação com outros discursos, encontramos nesse relato
a presença do discurso folclórico, do discurso supersticioso, do discurso místico,
trazendo à tona outras vozes que não aparecem explícitas no texto. Assim, o
enunciador organiza seu discurso em função do outro; na sua voz, outros falam,
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ou seja, o enunciador situa o seu discurso em relação ao discurso do outro,
não apenas o co-enunciador mais imediato, mas também outros discursos
historicamente constituídos que o enunciador já ouviu e que emergem na sua
fala.
Evidencia-se nos recortes a presença de vocabulário indígena: gamela, jirau,
tarinha. Com a seleção de termos como esses, o enunciador apresenta uma
imagem do indígena como aquele que detém um conhecimento sólido da
cultura. Os períodos e os parágrafos não são longos, predominando as orações
coordenadas, dando à enunciação um tom claro e direto. No final, a cenografia
de um índio criança que ao dormir enfrenta o medo do Saci torna-se mais
clara.
Observando todos os recortes acima, percebemos que o enunciador em nenhum
momento do texto explicita o nome do Saci, apenas o título traz a sua real
denominação. O enunciador leva o co-enunciador, a partir de várias marcas
linguísticas, tais como: uma coisa muito estranha, aquela coisa feia, um vulto,
esta coisa, companheiro, o vulto, com um lenço vermelho na cabeça, com forte
cheiro de cigarro, fora do normal, a identificar a personagem. Ademais, isso
pode ser uma forma de insinuar que os índios não mencionam o nome próprio
dessa figura, dado o temor, o medo de evocá-lo e ele aparecer. Ressaltamos,
também, que os indícios linguísticos citados caracterizam negativamente o Saci,
personagem que está ancorada nos estereótipos populares do folclore.
O modo de dizer do enunciador nos permite dizer que o tom discursivo em que
o texto é enunciado desvela uma instância enunciativa que considera a criança
indígena também sábia, construindo um enunciador corajoso, que procura
superar seus medos, aspecto validado na cultura de Pau-Brasil. O discurso
aponta para uma corporalidade do sujeito e essa descrição faz com que tenhamos
uma imagem do enunciador, antes mesmo de ele enunciar.
A constituição do discurso e o modo como ele é dito fazem emergir uma imagem
que revela a personalidade do enunciador que supera seus medos. A imagem
discursiva é uma maneira de o enunciador se mostrar sem ser explícito, e, por
isso, é eficaz. O tom é denunciado pela presença de itens lexicais marcados
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na enunciação. Assim, a fala do enunciador é encenada, criando cenografias e
apresentando uma imagem que institui um espaço em que o discurso indígena
se legitima. A imagem discursiva que transparece nessa enunciação, portanto, é
o do indígena investido de crença e tradições de um povo.
Comentários Finais
Verificamos neste trabalho que as práticas discursivas vivenciadas por
sujeitos indígenas são comuns à esfera discursiva dessa população que, por
um lado, expressam pensamentos, experiências e sentimentos e, por outro,
fazem declarações e pronunciamentos que identificam o grupo; são, por isso,
concebidas como práticas discursivas.
Nesse sentido, o discurso proferido pelos indígenas da aldeia Pau-Brasil
faz sentido se forem levados em conta aspectos externos à língua, tais como
contexto, condições de produção e mecanismos histórico-sociais, os quais fazem
parte de uma abordagem discursiva.
Desse modo, as práticas discursivas depreendidas do cotidiano indígena nos
forneceram uma chave para a compreensão da constituição do ethos discursivo
no discurso analisado, uma vez que é também por meio delas que conhecimentos
e ideias se tornam realidade.
Considerar a globalidade dos discursos, em que o vocabulário, o gênero
discursivo, os recursos coesivos, o ethos, o estatuto do enunciador e coenunciador, os modos de coesão, entre outros, são integrados na análise, torna
a análise mais profunda. Significa, portanto, disseminar a especificidade do
discurso em suas múltiplas dimensões, sem que uma seja preponderante a
outra, sem que se priorize esta ou aquela dimensão, pois estão imbricadas e
articuladas às dimensões da semântica global de sua formação discursiva, ou
seja, há um sistema de restrições semânticas, uma grade que determina o que
vai ser privilegiado, valorizado ou não.
Por fim, destacamos que o discurso de práticas culturais dessa população se
constrói sobre as marcas linguísticas e sociais que desvelam a constituição do
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ethos discursivo, de forma a explicitar, no funcionamento do discurso proferido
por sujeitos indígenas de Pau-Brasil, aspectos culturais da tradição e da
história dessa população. Daí a compreensão e a interpretação dos fenômenos
discursivos do ponto de vista linguístico e extralinguístico, uma vez que as
discussões sobre as práticas sociais da contemporaneidade possibilitam-nos
refletir sobre os valores e as tensões presentes nos discursos.
Referências
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RECLA, Adriana. A construção do ethos discursivo no discurso indígena. In:
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­­­­
______.
Análise do discurso: cenografia e Ethos no discursivo indígena.
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Discurso. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2011.
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discursos indígenas. Verbum – Cadernos de Pós-Graduação, n. 1, p. 93-108,
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set./dez. 2010.
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2009. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) PUC. São Paulo, 2009
Documentos Consultados
EDUCADORES TUPINIKIM. Resgatando a memória e a tradição tupinikim.
Aracruz, Espírito Santo. 1996.
Processo 1.353/97, fls. 901 apud Relatório do GT Portaria nº 0783/94.
PETRÓLEO BRASILEIRO S.A. Estudo etnoecológico das terras indígenas do
Espírito Santo. Relatório Final. 2005.
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ESTRATÉGIAS DE APAGAMENTO DO AGENTE
NO GÊNERO MANCHETE:
UM OLHAR FUNCIONALISTA
Carmelita Minelio da Silva Amorim1*
Lúcia Helena Peyroton da Rocha2**
Maria José Costa3***
Resumo: Este artigo apresenta um recorte no estudo das estruturas de passiva,
considerando sua complexidade sintática, semântica e pragmática e sua
ocorrência no gênero textual manchete, veiculado pela internet em jornais on
line. O objetivo principal é verificar as diferentes estratégias de apagamento do
agente, destacando a pressuposicionalidade e o encobrimento do agente como
duas possibilidades de sua omissão com motivações distintas. Para tanto, o
presente estudo estabelece inicialmente uma reflexão em torno da perspectiva
tradicional com base nas proposições de Bechara (1999), Rocha Lima (2003),
Cunha e Cintra (2001), Said Ali (1964) e de Abreu (2006). Em seguida, travase uma discussão dentro da perspectiva formalista e, por fim, adota-se como
referencial teórico o Funcionalismo Linguístico baseado em Givón (1979, 1984,
1995), Shibatani (1985) e Furtado da Cunha (2000). O corpus deste trabalho
se constitui de manchetes veiculadas em jornais on line, sendo sua análise
desenvolvida apenas qualitativamente. Essa opção por manchetes se deu por se
considerar que as estratégias de que se valem os jornalistas para atrair a atenção
do leitor tornam esse gênero textual interessante, justificando-se também a
escolha de uma ferramenta on line para busca dos dados pela celeridade de
acesso que viabiliza a pesquisadores de informações atuais e sempre renovadas
sobre a realidade cotidiana do uso da linguagem.
Palavras-chave: Estrutura de passiva. Gênero textual. Funcionalismo
Linguístico.
Abstract: This paper presents a focus on the study of passive structures,
considering its syntactic, semantic and pragmatic complexity and its occurrence
in the headlines on the internet news. The main objective is to examine the
different strategies of deletion of the agent, highlighting the presupposition and
* UFES. Vitória-ES-Brasil. [email protected]
** UFES. Vitória-ES-Brasil. [email protected]
*** IACAPP. Jacaraípe-ES-Brasil. [email protected]
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concealment of the agent as two possible suppression of the agent for different
reasons. Firstly, this study provides a reflection on the traditional perspective
based on the proposals of Bechara (1999), Rocha Lima (2003), Cunha and
Cintra (2001), Said Ali (1964) and Abreu (2006). Hence, we propose a discussion
within the formalist perspective, and finally, the theoretical framework is based
on Linguistic Functionalism of Givón (1979, 1984, 1995), Shibatani (1985) and
Furtado da Cunha (2000). The corpus of this work is composed of headlines
broadcasted on on-line newspapers and its qualitative analysis. The option
to analyze the headlines is due to its interesting faculty to attract the reader’s
attention used by journalists. The research was through online tools because of
the readiness with which the researchers access the renewed and current data
on the daily reality of language use.
Keywords: Passive structures. Headline Genre. Linguistic Functionalism.
Introdução
A estrutura de passiva tem sido objeto de estudo de muitos pesquisadores ao
longo dos anos. Para a gramática tradicional, por exemplo, a voz passiva analítica
é derivada da voz ativa e a voz passiva sintética é semelhante à analítica. No
entanto, nessa mesma perspectiva, há pesquisadores que questionam essas
relações. Alguns, por exemplo, argumentam que nem sempre é possível igualar
a construção passiva sintética à passiva analítica, pois a equivalência automática
pode produzir sentenças agramaticais.
Na visão formal, especialmente no Gerativismo de Chomsky, a passiva também
é analisada, mas considerando que nela estaria latente a estrutura ativa, uma
vez que Chomsky a concebe como a transformação da ativa. Essa hipótese está
relacionada à ideia da tradição gramatical latina de que estruturas ativas e
passivas que têm o mesmo verbo são sinônimas. Langacker (1990) contrapõe-se
a essa hipótese, afirmando que tal sinonímia é equivocada.
No entanto, é a partir do funcionalismo, com as pesquisas voltadas para as
funções das estruturas, que o estudo das construções passivas ganha destaque.
Givón (1979), por exemplo, estuda diversos tipos de apassivação em línguas
variadas, propondo que a função principal da construção passiva analítica é
a promoção de um não-agente à função de tópico. Shibatani (1985) preocupaSABERES Letras
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se em determinar o quanto esse tipo de estrutura aproxima-se do protótipo
de passiva ao longo de um contínuo semântico, alegando que as passivas têm
como função primeira o deslocamento do agente da sua posição de tema e,
consequentemente, sua omissão.
Neste artigo, pretendemos fazer um recorte no estudo das estruturas de passiva,
considerando sua complexidade sintática, semântica e pragmática e sua
ocorrência no gênero textual manchete, veiculado pela internet em jornais on
line. Nosso objetivo principal é verificar as diferentes estratégias de apagamento
do agente, considerando a pressuposicionalidade e o encobrimento do agente
como duas possibilidades de omissão do agente com motivações distintas. O
referencial teórico adotado é o Funcionalismo Linguístico baseado em Givón
(1979, 1984, 1995), Furtado da Cunha (2000). Para a análise serão utilizadas
manchetes veiculadas em jornais on line.
Para a discussão teórica, fazemos um percurso, partindo da gramática tradicional,
passando pela abordagem formalista e apresentando os pressupostos da
perspectiva funcionalista que norteia nossa análise dos dados.
Perspectiva tradicional
A estrutura de passiva tem sido tratada, nas gramáticas tradicionais, de modo
superficial, incompleto e descontextualizado. Esse tipo de tratamento deve-se
à concepção de língua adotada pelos compêndios gramaticais, que consideram
a língua um sistema abstrato e fechado, cuja compreensão pode ser obtida
tomando frases descontextualizadas como unidades de análise.
Na perspectiva tradicional, a construção passiva é considerada como um
fenômeno de voz e estrutura-se de duas formas: (1) passiva analítica, em que o
paciente da ação verbal é o sujeito da oração, formada normalmente pelo verbo
auxiliar ser + particípio passado de verbos transitivos diretos + preposição por (ou
de) + agente da passiva. Exemplos: A casa foi construída por este engenheiro / Ela é
estimada de todos; (2) passiva sintética, em que há a ocorrência do pronome clítico
se com verbos transitivos diretos na terceira pessoa seguidos de um sintagma
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nominal (SN) com valor semântico de paciente. Exemplo: Alugam-se casas.
Bechara (1999, p. 222) acrescenta os verbos estar e ficar como possibilidades de
formarem a estrutura de passiva e estabelece uma diferença entre passividade
e voz passiva, apresentando como exemplo de passividade: Os criminosos
receberam o castigo merecido.
Em relação ao agente da passiva, o autor destaca que nem todo termo
introduzido pela preposição por tem a função de agente, principalmente se
apresentar traço não-animado, referente a coisa, devendo ser classificado como
adjunto circunstancial de causa ou meio. Nesses casos, por é comutável com
outra preposição ou com locuções do tipo por causa de. Exemplos: O artista
foi elogiado pela sua técnica / Os ladrões foram encontrados pela denúncia anônima
(BECHARA, 1999, p. 435).
Rocha Lima (2003, p. 253) e Cunha e Cintra (2001, p. 147) conceituam o agente
da passiva como o complemento que, na voz passiva com auxiliar, representa o
ser que pratica a ação verbal sofrida pelo sujeito. Rocha Lima destaca que esse
complemento pode ser omitido e que essa omissão deve-se ao fato de o agente
ser irrelevante.
Said Ali (1964, p. 95) destaca que alguns verbos intransitivos podem construir
orações em voz passiva desde que tenham por complemento um nome regido
pela preposição a. Exemplo: Os meninos obedecem ao mestre / O mestre é obedecido.
A concepção de (in)transitividade defendida por Said Ali (1964) se distancia de
outras proposições tradicionais, que classificam o verbo obedecer em frase como a
exemplificada/citada por Said Ali (1964) como verbo transitivo indireto. Ainda
que a maioria dos gramáticos advogue no sentido de que só verbos transitivos
diretos podem ter uma passiva correspondente, em jornais e revistas há muitos
exemplos de uso de verbos transitivos indiretos em estrutura de passiva, como
se vê em exemplos arrolados por Ignácio (2002, p. 50-51), dos quais tomamos
emprestados os dois a seguir: (1) O filme “Carlota Joaquina”, de Carla Camurati,
ficou sete meses em cartaz e foi assistido por cerca de 100 mil pessoas. (Jornal Folha
de S. Paulo); (2) A atual legislação não é obedecida por nenhum dos concorrentes, que
organizam suas campanhas num ambiente de cumplicidade mútua e impunidade geral.
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(Revista Veja).
Apontando para uma perspectiva menos tradicional, Abreu (2006) divide a voz
passiva em analítica e pronominal. A passiva analítica configura-se com o verbo
auxiliar ser, passando o objeto direto da voz ativa a ocupar a função de sujeito e
o sujeito da ativa sendo transferido para o predicado, precedido, em geral, pela
preposição por, como complemento agente da voz passiva (Ana Paula fechou as
portas > As portas foram fechadas por Ana Paula). A passiva pronominal ocorre
com o pronome se (Pinturas preciosas salvaram-se, durante o ataque da máfia em
Florença, graças às cortinas de vidro blindado) e não há possibilidade de o sujeito
ser agente. Outra característica da voz pronominal é a ausência completa do
agente da passiva.
O autor ainda afirma que nem todas as construções ativas possuem passivas
correspondentes. Em Maria levou um tiro, Maria é paciente, o que impossibilita
a transformação para a passiva (*Um tiro foi levado por Maria). A ativa precisa
de sujeito agente (Maria levou a mala > A mala foi levada por Maria).
Abreu (2006) destaca que análogas à voz passiva pronominal são as construções
com verbos intransitivos (Anda-se muito de bicicleta em cidades planas), em que o
agente experienciador é indeterminado, sendo apenas pressuposto.
Perspectiva formalista
Muitos trabalhos sobre a construção passiva adotam uma perspectiva
derivacional e, comumente, sua formação é atribuída apenas ao componente
sintático ou gramatical.
A análise transformacional para a estrutura de passiva ganhou repercussão
com os desenvolvimentos da Gramatica Gerativa de Chomsky (1957, 1965).
Nessa perspectiva teórica, destacam-se as seguintes características das
expressões passivas: a) o sujeito gramatical de uma passiva é o objeto da ativa
correspondente; b) o sujeito da contraparte ativa é expresso na passiva como um
adjunto agentivo ou não expresso; c) o verbo da construção passiva corresponde
ao verbo da ativa com uma marcação especial de voz passiva.
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Na tentativa de explicar a relação entre o objeto lógico do verbo das sentenças
ativas e o sujeito das passivas, Chomsky (1981) formulou a hipótese de que a
estrutura ativa estaria latente na estrutura de passiva. Nesse ponto, a perspectiva
gerativa compartilha a ideia, herdada da tradição gramatical latina, de que
estruturas ativas e passivas que possuem o mesmo verbo são sinônimas.
Entretanto, Langacker (1990) afirma que essa sinonímia é equivocada, pois
é apenas aparente e decorre da ideia de que as estruturas ativas e passivas
referem-se ao mesmo evento objetivo no mundo. O autor destaca que as
estruturas são objetos linguísticos e não correspondem diretamente aos
acontecimentos do mundo real, mas sim a ‘conceptualizações’ dos falantes sobre
esses acontecimentos. Desse modo, não são iguais em termos semânticos e nem
mesmo em termos pragmáticos, uma vez que o falante, ao utilizar uma ou outra
estrutura, evidencia intenções e também motivações de ordens diversas.
Para a Gramática Gerativa, a estrutura de passiva é entendida como uma
operação essencialmente gramatical, sintática e abstrata. Os exemplos de não
correspondência entre estruturas ativas e passivas (João tem uma casa / *Uma
casa é tida por João) são considerados como exceções ou idiossincrasias da língua
e devem ser identificados lexicalmente como casos não sistemáticos.
Perspectiva funcionalista
Nos estudos linguísticos, a oração ativa é considerada a estrutura sintática
mais básica, o padrão neutro, enquanto a passiva é identificada como uma
estrutura complexa, o padrão marcado. Essa classificação como estruturas
básicas e complexas é decorrente das propriedades formais das estruturas ativa
e passiva. Sintaticamente, a ordem dos constituintes na estrutura de passiva
desvia-se da ordenação prototípica: Sujeito – Verbo – Objeto, em que Sujeito
e Objeto, em geral, correspondem aos papéis semânticos Agente e Paciente,
respectivamente.
Assim, a estrutura de passiva também apresenta uma complexidade semântica,
já que a oração ativa é mais básica porque o papel de agente tende a ser
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considerado como um papel semântico mais básico do que o do paciente.
Estudos funcionalistas confirmam que, na Língua Portuguesa, os elementos que
funcionam como agente tendem a ocorrer na posição inicial da oração, ou seja,
como sujeito e tópico, e os que têm papel de pacientes geralmente ocorrem na
posição final, isto é, como objeto. A estrutura de passiva, entretanto, interfere
nessa correspondência entre papéis semânticos e relações gramaticais, já que
o objeto (paciente) de um verbo semanticamente transitivo é utilizado com
a função de sujeito e tópico da oração, e o agente, por sua vez, é omitido ou
configurado como um sintagma preposicionado.
Shibatani (1985), por exemplo, parte do pressuposto de que as estruturas
linguísticas não são isoladas, mas apresentam semelhanças parciais entre si.
Com isso, centraliza a discussão não em torno da identificação da passiva, mas
na determinação do quanto a estrutura aproxima-se da passiva prototípica,
ao longo de um contínuo semântico. Adotando, assim, uma concepção nãodiscreta da gramática, propõe-se examinar as correlações entre passivas e
outras construções, tais como as reflexivas, recíprocas e “passivas mediais” (que
expressam a ocorrência de eventos espontâneos), em dados de variadas línguas
como o japonês, o espanhol, o francês, entre outras, nas quais, tais construções
partilham propriedades formais e semânticas com a passiva prototípica.
Para Shibatani (1985), a construção passiva serve a uma função semânticopragmática completamente distinta da construção ativa transitiva. Essa função
é a desfocalização do participante prototipicamente associado ao papel de
agente. Para o autor, dizer João comeu a maçã não é o mesmo que dizer a maçã
foi comida por João.
O autor respalda-se em Meillet (1948, p. 196), segundo o qual “o verdadeiro
papel da passiva é exprimir o processo no qual o agente não é considerado”.
Shibatani (1985) afirma que geralmente as passivas não expressam o agente,
demonstrando que línguas como o finlandês e o russo evitam a expressão
do agente na estrutura de passiva. Nas línguas que permitem a expressão do
agente, o autor observa que as passivas sem a expressão do agente são muito
mais numerosas em dados reais do que aquelas com o agente expresso. Isso
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pode indicar que a construção passiva é usada quando a expressão ou a
individualização do agente é impossível ou irrelevante.
Para o autor, a passiva é uma construção centrada no agente e sua função
fundamental é a desfocalização desse agente, observando que a passiva falha
para estruturas com verbos transitivos cujo sujeito não é agente. Exemplo: Maria
é amada por João.
Franchi e Cançado (2003) também destacam que, em certos casos, a estrutura de
passiva, quando possível, leva a uma interpretação agentiva da conceptualização
do evento. Nas sentenças Eu fui obrigada a ficar em casa pelas crianças / Eu fui
deixado doente por esses alunos, a leitura só é aceitável se há uma interpretação
agentiva para os participantes associados a crianças e a alunos.
Shibatani (1985, p. 839) ainda realça que uma oração sem um participante agente,
ou algo próximo disso, como um experienciador, não permite passiva porque
não há agente para desfocalizar. Segundo ele, a construção passiva implica a
existência de um agente para o evento e sua conceptualização é a de um evento
transitivo.
Nesse sentido, na construção passiva prototípica, o agente é parte da valência
semântica, ou seja, ele está presente semanticamente, sendo desfocalizado no
nível da codificação sintática. Assim, segundo o autor, passivas verdadeiras
são semanticamente “transitivas”, pois possuem tanto um agente quanto um
paciente em seu esquema semântico.
Nesse contexto, Givón (1984, p. 139) propõe uma hierarquia de topicidade para
os casos semânticos, ordenando os Sintagmas Nominais (SNs) de acordo com
a sua acessibilidade à função pragmática de tópico. Nessa hierarquia, o caso
agente está posicionado acima do caso paciente, como se pode ver em: Agente
> Dativo/Benefactivo > Paciente > Outros.
Furtado da Cunha (2000, p. 108) destaca que a complexidade da estrutura de
passiva não se limita, entretanto, a questões exclusivamente sintáticas. Na
perspectiva funcionalista, a sintaxe deve ser explicada com referência ao seu
uso na comunicação.
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Givón (1979, p. 48) afirma que é possível propor critérios substantivos para
explicar o status privilegiado da oração ativa na sintaxe. Esses critérios envolvem
o grau de conhecimento pressuposto com base no qual uma oração é utilizada
pelo falante.
Para Furtado da Cunha (2000, p. 109), as propriedades formais das orações
ativas e passivas são originadas, até certo ponto, das propriedades do discurso
e se correlacionam com o grau de pressuposicionalidade dessas estruturas.
Segundo a autora, a voz ativa, considerada o padrão neutro, distingue-se da voz
passiva por ser menos pressuposicional que esta, categorizada como o padrão
complexo. Pragmaticamente, a oração ativa é usada no discurso para transmitir
grande parte da informação nova. Assim, a complexidade pressuposicional
da passiva resulta do fato de que a maioria dessas estruturas envolve um
agente pressuposto, identificável do contexto discursivo ou do conhecimento
pragmático geral informado predominantemente por construções com a voz
ativa. Isso significa que as orações passivas são mais marcadas em termos da
sua pressuposicionalidade.
Essa característica pressuposicional da estrutura de passiva pode ser
identificada no gênero manchete como uma estratégia de organização textual
para determinado interlocutor em uma determinada situação comunicativa.
Além da complexidade sintática e semântica, a estrutura de passiva apresenta
uma complexidade pragmática. A passiva é característica do uso mais formal
da língua e sua frequência varia de acordo com a modalidade – escrita ou falada
– e depende do gênero textual.
Givón (2001[1984], p. 125), assim como Shibatani (1985), afirma que a voz
passiva prototípica é usada principalmente para a supressão do agente ou a
topicalização do paciente. O fato de que um argumento não-agente – mais
comumente o paciente – ser topicalizado é uma consequência, ou seja, constitui
o padrão de supressão do agente.
Para Givón (2001[1984], p. 122), o padrão neutro, a voz transitiva não marcada,
a ativa-direta, é a referência pragmática funcional em relação à passiva. O autor
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acrescenta que, na passiva, o agente é extremamente não-tópico (‘suprimido’,
‘rebaixado’), de modo que o paciente é o único argumento tópico na cláusula.
Nesse sentido, sob o ângulo do argumento agente, a passiva é uma estratégia de
impessoalização, pois na maioria de sentenças passivas a identidade do agente
não é explicitada. Isto é, no domínio funcional da impessoalização, a passiva
omite a identidade do agente. Assim, o ambiente semântico e discursivo, em
conjunção com o tipo de registro, determinam a ocorrência de uma oração
passiva em um dado texto.
O uso da voz passiva, muitas vezes, é uma estratégia de encobrimento dos
responsáveis por uma determinada ação por ser redundante explicitá-los, ou
ser comprometedora a explicitação, ou ainda por desconhecimento do agente.
Furtado da Cunha (2000, p. 109) destaca que, no discurso, a tendência natural
da comunicação é manter um mesmo referente como ponto de partida de
uma série de sentenças. Sendo assim, a continuidade tópica reflete a norma
na comunicação, ou seja, o padrão neutro, enquanto a mudança de tópico
representa um desvio dessa norma, o padrão marcado. A autora acrescenta
que se a troca de informação nova é a base do discurso humano, o padrão
oracional ativo é o mais frequente no discurso. Desse modo, as construções
mais pressuposicionais, as passivas, exibem maiores restrições distribucionais
do que as construções neutras. Considerando essas restrições, podemos afirmar
que o uso das estruturas linguísticas está diretamente vinculado aos gêneros
textuais que circulam na sociedade.
Gêneros textuais: a manchete
Marcuschi (2005, p. 95) afirma que a manifestação verbal ocorre sempre por
meio de textos realizados em algum gênero e que a escolha de um ou outro
gênero não é aleatória, mas subordina-se a interesses específicos. O autor
acrescenta que os gêneros operam, em determinados contextos, como formas
de legitimação discursiva, já que se situam entre desenvolvimentos históricos
e práticas sociodiscursivas que se refletem na língua. Desse modo, é possível
afirmar que cada gênero apresenta uma determinada estabilidade e define o
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que é dizível em determinado contexto situacional.
Assim, gêneros textuais podem ser definidos como quaisquer textos que
cumprem uma finalidade social e que emergem no interior de uma situação
definida, apresentando propriedades específicas. São textos orais e escritos
materializados em situações comunicativas recorrentes. Os gêneros textuais são
encontrados na vida diária com “padrões sociocomunicativos característicos
definidos por sua composição, objetivos e estilo concretamente realizados
por forças históricas, sociais, institucionais e tecnológicas” e constituem uma
listagem aberta (MARCUSCHI, 2003, p. 4).
Marcuschi (2002, p. 20) salienta que “os gêneros textuais caracterizam-se muito
mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por
suas peculiaridades linguísticas e estruturais”. No entanto, isso não quer
dizer que a forma deve ser desconsiderada, mas significa que nem sempre ela
determina um gênero, pois, muitas vezes, este é determinado pelo suporte ou
por sua função.
A Manchete de jornal é um dos diversos gêneros que circulam diariamente
em nossas relações interdiscursivas, sociais e pragmaticamente determinadas.
Esse gênero aparece na primeira página dos jornais com a função de destacar as
notícias mais importantes de maneira resumida.
Segundo Rangel (2010), esse destaque pode ser feito por meio do tipo de fonte,
pelo layout, pelas imagens, pela sua disposição do texto na capa, ou mesmo
pela sua construção textual. A autora acrescenta que, dentre todas as manchetes
que compõem a capa do jornal, sempre existe uma com maior destaque, dada a
relevância da notícia a ela vinculada. Essa relevância varia de jornal para jornal,
no entanto, pode-se dizer que, em todos os jornais, a manchete funciona como
uma espécie de propaganda da publicação.
Considerando as características formais, Rangel (2010) afirma que as manchetes,
em geral, constituem-se de orações curtas, em ordem direta, sem rebuscamento
e/ou inversões sintáticas. A manchete funciona como um título que promove
a notícia ou reportagem no interior do jornal e, por isso, não tem pontuação, a
não ser em casos de pergunta. A pontuação final só ocorre nos pequenos textos
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que compõem algumas manchetes, o lead (resumo da notícia com todos os
elementos essenciais à compreensão da notícia). Como o jornal trata de assuntos
da atualidade, geralmente os verbos das manchetes estão no presente. Como as
manchetes apresentam as notícias, há sempre a numeração da página na qual
o leitor poderá encontrar a notícia na íntegra. A autora ainda conclui, assim,
que o gênero manchete é constituído pela chamada, pelo lead e pelas imagens
associadas.
Análise dos dados
Como afirmamos anteriormente o corpus desta pesquisa se constitui de
manchetes, mas para a nossa discussão sobre o apagamento do agente,
consideramos importante também apresentarmos a notícia da qual a manchete
é parte.
Na análise, inicialmente fazemos uma comparação entre as manchetes sobre a
condenação de militar, a cassação de deputado e o assassinato de suspeito de
tráfico de drogas, sob o ponto de vista temático e funcional, pois se revela uma
peculiaridade linguística e estrutural dos referidos textos. No primeiro caso, o
do militar, embora na chamada do texto 1, Militar é condenado a 8 anos de prisão
por abuso, o agente, ou seja, os responsáveis pela condenação do militar, seja
suprimido e topicalizado o não-agente, Paulo Roberto, ao longo do texto ocorre
ênfase sobre o agente da passiva, o Conselho, que julga e condena e dos agentes
do exército que investigaram o seu crime de abuso. Nota-se, no texto, que foi
explicitado o esforço da própria corporação para condenar o ato criminoso e
excluir o militar infrator de seu quadro de oficiais. Por outro lado há que se
destacar que, do ponto de vista do jornalista/veículo, um dos objetivos é mudar
a perspectiva da cena, em que se realça um militar, ao colocá-lo como tópico na
estrutura sintagmática da manchete para enfatizar a ideia de não impunidade
quanto a abusos cometidos por militares, principalmente quando se tratam de
oficiais.
No texto 2, Deputado é cassado por encomendar assassinato, ao longo da leitura
não se percebe a mesma estratégia de explicitações sobre o agente da passiva
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ocorrida no texto 1. A supressão ocorre naturalmente, uma vez que os agentes
da passiva podem ser resgatados com base no conhecimento geral, favorecendo
a elisão de quem acusa, quem aponta, quem processa (o ministério público, os
informantes, os investigadores da polícia, as vítimas, dentre outros). Entretanto,
não se apaga o agente cassador (ou seja, que executou a cassação), operando-se
o mesmo comportamento ético constatado no texto anterior sobre o militar: é
importante deixar explicitamente ressaltado na estrutura textual que a Câmara
cassou o mandato, ou seja, não foi conivente com o membro infrator. Um fator
determinante das diferenças na abordagem ao longo do texto das reportagens
sobre os delitos cometidos pelos não-agentes citados nas duas manchetes
talvez seja a distinção entre as instituições militares e legislativas, assim como
a natureza dos deveres de militares e deputados. Tendo em vista a função
primordial da Polícia e a visão cultural dos valores institucionais, um abuso de
menores ou mesmo um assassinato são infrações à lei que nos parecem mais
graves quando cometidas por policiais.
Em relação ao texto 3, Suspeito de tráfico de drogas é assassinado no Recreio dos
Bandeirantes, sobre o assassinato do suspeito de tráfico de drogas, o agente não é
explicitado em nenhum momento, omissão essa que resulta do desconhecimento
da identidade do assassino.
Em comum entre os textos selecionados para análise, o que foi constatado é
que as manchetes, em suas chamadas, topicalizam com construções passivas
os não-agentes, mas nas peculiaridades linguísticas e estruturais do texto que
compõem as reportagens, revelam pragmaticamente, no nível semântico, o foco
paradoxal na agentividade “dos não-agentes”: o militar que abusou de menores,
o deputado que cometeu crimes, o suspeito que traficava drogas e o cineasta
que produziu um excelente filme, como veremos ao discutir o texto 4, Walter
Salles é premiado na Itália por “Diários”.
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(1)
Quinta, 5 de agosto de 2004, 23h10 (Redação Terra)
Militar é condenado a 8 anos de prisão por abuso
O 1º tenente Paulo Roberto França de Souza foi julgado e condenado hoje
pelo Conselho Especial de Justiça, da 3ª Auditoria Militar Federal, a pena de
oito anos de reclusão, por atentado violento ao pudor e ameaça.
O tenente Paulo Roberto é acusado de abusar sexualmente de menores no
quartel do Centro Tecnológico do Exército, em Guaratiba (RJ). Agentes
do Serviço Reservado do Exército descobriram que ele havia levado dois
menores, um de 10 e outro de 14 anos, para o Centro, onde ele servia, e forçou
os dois a manter relações sexuais com ele.
Durante as investigações, os agentes do Exército descobriram vasto material
pornográfico em seu computador, com ligações no Brasil e no exterior.
O tenente foi preso em regime fechado, sem direito de apelar em liberdade.
O militar teve agravante na condenação por ser oficial.
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(2)
Quinta, 5 de agosto de 2004, 22h20 (Agência EFE)
Deputado é cassado por encomendar assassinato
O deputado distrital Carlos Xavier (PMDB) teve seu mandato cassado hoje,
quinta-feira, pela Câmara Legislativa de Brasília, acusado de ordenar o
assassinato de um adolescente identificado como o suposto amante de sua
ex-esposa.
A sessão da Câmara Legislativa distrital determinou a cassação com treze
votos a favor e três contra, depois de avaliar nesta quinta-feira as provas
apresentadas contra Xavier, que também é acusado de desviar fundos
públicos.
Segundo investigações da polícia civil de Brasília, Xavier contratou dois
pistoleiros para matar em março deste ano o adolescente Ewerton da Rocha
Ferreira, de 16 anos, por suspeitar que ele era amante de sua antiga esposa,
Maria Lúcia Araújo de Xavier. Com a perda de seu mandato de quatro anos,
a Justiça tem caminho aberto para abrir um julgamento, cuja pena máxima é
30 anos de prisão.
O deputado do PMDB engrossa uma lista de cerca de 50 congressistas que
enfrentam processos por crimes de violência e corrupção. Um desses exmembros do Executivo é o ex-senador Ernandes Santos Amorim (PP), detido
hoje em Ariquemes, interior de Rondônia, por supostamente encabeçar uma
quadrilha que se apropriou de dinheiro dos cofres públicos.
Santos Amorim, contra quem pesa a suspeita de estar ligado ao narcotráfico
na Bolívia, é apontado como o responsável pelo desaparecimento de
aproximadamente R$ 18 milhões (quase seis milhões de dólares), entre outras
acusações. O ex-representante do Partido
Progressista é considerado pela polícia federal como um dos principais
líderes do narcotráfico na região norte do país. Além da suposta participação
no tráfico de drogas, Santos Amorim é também acusado de explorar jazidas
minerais ilegalmente.
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(3)
22/05/2012 (R7)
Suspeito de tráfico de drogas é assassinado no Recreio dos Bandeirantes
Outro homem foi baleado e teve que ser encaminhado para o hospital
Um homem foi morto na noite de segunda-feira (22) na comunidade do
Terreirão, no bairro do Recreio dos Bandeirantes, na região da zona oeste do
Rio de Janeiro.
Segundo os militares do Batalhão do Recreio (31º BPM), outro suspeito
também foi baleado e teve que ser encaminhado para o Hospital Municipal
Lourenço Jorge, na Barra da Tijuca, na zona oeste. Ainda de acordo com a
polícia, os homens teriam ligação com o tráfico de drogas.
Até as 3h não havia informações sobre o estado de saúde da vítima baleada.
Para discutir as peculiaridades linguísticas e estruturais do texto sobre a
premiação de Walter Salles e estabelecer relações com o uso de construções
passivas no gênero manchete, procuramos contextualizar o estudo das frases,
iniciando as considerações a partir de observações sobre o eixo temático (nível
textual), a relação agente-paciente (nível semântico) e o foco da notícia dado
pelo autor (nível pragmático-discursivo).
O texto noticia a premiação de Walter Sales pelo Centro Italiano de Pesquisas
para a Narrativa e o Cinema devido a sua produção do filme Diários de
Motocicleta. Portanto, do ponto de vista temático, há duas ideias de agentividade,
que se bipartem temporalmente: a de Walter Salles que produziu o filme e a do
Centro Italiano que reconhece o mérito da obra dele e o homenageia por sua
produção.
Na chamada da manchete, no entanto, o que se verifica é a ênfase na premiação,
uma vez que em Walter Salles é premiado na Itália por “Diários”, há uma construção
passiva com o verbo premiar, que topicaliza beneficiário, função ocupada por
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Walter Salles, suprime o agente premiador e ressalta a obra premiada, ou seja,
Diários. Do ponto de vista linguístico, o primeiro parágrafo inicia-se com uma
estrutura ativa, mas, ao usar o verbo ganhou, verbo de ação-processo, mantém
a ideia de passividade para o tópico Walter Salles, cujo papel temático é
beneficiário. Apenas na introdução é revelado o agente premiador do cineasta,
o Centro Italiano de Pesquisas para a Narrativa e o Cinema, que, além de ser entidade
que premia, é a que também informa.
Ressalte-se ainda o uso do particípio baseado, O filme foi baseado em textos de Che,
que evita a construção passiva e possibilita referência à agentividade originária
de Walter Salles, que baseou seu filme em textos de Che. Ao mesmo tempo
em que se esclarece o papel do agente premiador e sua relação com pesquisa,
narrativa e cinema, também se desvela o papel de Walter Salles como agente
pesquisador, leitor e produtor.
A supressão de Centro Italiano como agente da passiva nos parágrafos
posteriores ocorre sem prejuízos à interpretação, sendo facilmente identificado
pela referência feita inicialmente. A topicalização de Walter Salles prossegue
no texto com o predomínio da ideia de passividade expressa, como no segundo
parágrafo, pelo uso de construções como escolhido e receberá.
O terceiro parágrafo, apesar de aparentemente mudar o tópico para o filme,
continua semanticamente topicalizando Walter Salles, fornecendo detalhes sobre
sua obra, adotando construções passivas, formando sobre o filme a seguinte
sequência: selecionado, publicado, lido e visto. Os dois parágrafos finais se dedicam
a apresentar um segundo e terceiro premiados, privilegiando da mesma forma,
no texto, as construções passivas e a carga semântica de passividade expressa
em receberá.
Do ponto de vista pragmático-discurso, a estratégia de apagamento do agente
da passiva, o Centro Italiano, revela o foco do autor, que é noticiar a premiação,
ressaltando o mérito de Walter Salles. Nesse sentido, a supressão da entidade
que premia não diminui o brilho ou importância da notícia. Outro seria o
caso se o prêmio fosse um Oscar, pois certamente a chamada traria o agente
premiador em destaque, como supostamente em Walter Salles ganha Oscar. Se
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esse fosse o contexto, muito provavelmente não seria adotada a supressão do
agente da passiva, revelado indiretamente por sua notória vinculação à famosa
estatueta. Uma informação como esta, sobre a entidade premiadora, traria maior
status ao não-agente topicalizado, pois é de conhecimento geral que a indústria
cinematográfica norte-americana nunca premiou o cinema brasileiro.
(4)
Sexta, 6 de agosto de 2004, 16h00 (AFP)
Walter Salles é premiado na Itália por “Diários”
O cineasta brasileiro Walter Salles ganhou neste ano o Efebo de Ouro do
Centro Italiano de Pesquisas para a Narrativa e o Cinema pelo filme
Diários de Motocicleta, baseado em textos de Ernesto Che Guevara e
Alberto Granados, informou a entidade nesta sexta-feira.
Escolhido entre 60 candidatos, Salles receberá pessoalmente o prêmio
durante o tradicional festival de filmes inspirados em obras literárias que se
realizará de 27 de setembro a 2 de outubro próximos em Agrigento, Sicília,
sul da Itália.
O filme de Salles foi selecionado pela eficiente adaptação para o cinema dos
diários de Granados e Guevara. O texto, publicado pela editora Feltrinelli,
está na lista dos livros mais lidos na Itália este ano, enquanto o filme esteve
entre os cinco mais vistos após sua estréia, há três meses.
O Efebo de Prata foi concedido ao italiano Davide Grieco pelo filme
Evilenko, inspirado em seu próprio romance Il comunista che mangiava i
bambini (O comunista que comia crianças).
Outro diretor italiano, Gianni Amelio, receberá um prêmio especial por seus
escritos cinematográficos.
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Conclusões preliminares
A dificuldade de interpretação da passiva está relacionada ao fato de tal
construção reverter a ordem natural dos constituintes sujeito (agente) e objeto
(paciente) da oração ativa transitiva.
Os possíveis distúrbios na comunicação causados pelo uso da forma passiva
num dado texto seriam consequência da interpretação inadequada do sujeito
passivo como agente, e não como paciente, da ação verbal. Assim, a motivação
discursivo-pragmática para o uso de uma forma passiva funciona como uma
garantia de sua adequada interpretação e também como uma estratégia, em
se tratando da manchete, apesar da sua complexidade sintática, semântica e
pragmática.
As construções passivas analisadas trazem em comum a omissão do agente,
embora por motivações distintas. Em nossa pesquisa, observamos que o
apagamento do agente na estrutura de passiva não depende somente de
condições de natureza sintática e semântica do componente a ser suprimido. Há
uma dependência pragmática também envolvida, uma vez que essa supressão
pode ser de natureza pragmática, objetivando focalizar o paciente devido a
sua relevância ou despertar a atenção do leitor para que este se interesse pela
leitura do texto que compõe a notícia; ou estar vinculada ao fato de o agente ser
desconhecido.
O apagamento do agente não prejudica a leitura nos casos envolvendo a
pressuposicionalidade, quando a informação é facilmente identificável pelo
efeito semântico de escolhas lexicais e demais operadores do cotexto, pelo
contexto discursivo e pela situação comunicativa em que interagem os falantes ou
pelo conhecimento pragmático geral das pessoas (conhecimento enciclopédico
e de mundo). Quando o apagamento é de ordem pragmática, pode atuar como
fator estilístico, ao se revelar tardiamente o agente no texto, produzindo maior
suspense e despertando curiosidade e interesse do leitor. Também pode servir
ideologicamente para ocultar ou negar determinada informação e assim marcar
ou não marcar o posicionamento do autor do texto. Em ambas as situações,
o estudo de construções e do uso de passivas em textos de variados gêneros
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desenvolve o prazer e a capacidade de leitura, apurando o senso estético e
crítico do observador.
Embora este artigo tenha focado o gênero manchete, no qual há menor incidência
de apagamento pragmaticamente não planejado, é possível encontrar tais
ocorrências em textos de estudantes que apresentam ainda certa imperícia na
escrita. Nestes casos, o que pode ocorrer é o não domínio, na produção escrita,
da reversibilidade na construção de orações, apontando para deficiências de
percepção das estruturas linguísticas. Na busca por associar pesquisa acadêmica
à intervenção escolar, revela-se importante verificar se tais estudantes também
apresentam dificuldades para compreensão das relações agente-paciente em
construções passivas e atuar preventivamente, desenvolvendo exercícios e
explicitando aos estudantes essas relações para desenvolverem a habilidade de
leitura e escrita de construções ativas e passivas do português.
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A POLISSEMIA NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO
DOS TEXTOS
Micheline Mattedi Tomazi1*
Camila de Souza Neris2**
Resumo: O fenômeno da polissemia na língua contribui para a multiplicidade
de sentidos e gera possibilidades de várias interpretações levando-se em
consideração as diferentes situações de uso de um determinado vocábulo. O
objetivo principal deste artigo é demonstrar a importância da polissemia no
processo de construção do sentido e interpretação de textos, uma vez que ela é
base da enunciação e introduz na língua um elemento de flexibilidade porque
evidencia o relacionamento de um só significante com vários significados
nos contextos nos quais se insere. Pretende-se verificar como esse fenômeno
envolve uma profunda escolha lexical que influencia no modo como os usuários
da língua vêem e entendem o mundo que os rodeia. Com o aporte teórico dos
estudos lexicais e semânticos da Língua Portuguesa, a partir de um diálogo
com diferentes autores como Basílio (2004), Biderman (1978), Ferraz (2005),
Marcuschi (2004), Ilari (2006), entre outros, desenvolveremos um estudo da
polissemia na tentativa de refletir sobre seu uso no texto poético “polissemia”
e demonstrar que, ao lidar com o léxico, fazemos escolhas significativas em
termos de sentido e interpretação.
Palavras-chave: Polissemia. Léxico. Discurso. Sentido.
Abstract: The phenomenon of polysemy in language contributes to an amount
of meanings and creates possibilities for several interpretations while taking into
consideration the different situations of usage of a particular word. Polysemy
plays an important role in the process of construction of meaning and reading
comprehension. It is considered the basis of enunciation and introduces in
language a flexible element, because it highlights the relation between a single
signifier and several signifieds in contexts in which it is inserted. By analyzing
such phenomenon, it is intended here to show how it encompasses a strong
* Professora doutora do Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do
Espírito Santo – UFES – Vitória, Espírito Santo, Brasil. [email protected]
** Mestranda em Linguística pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES –Vitória, Espírito Santo, Brasil. [email protected]
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lexical choice that influences the way speakers see and understand the world
around them. Considering theoretical studies on lexical and semantic items of
the Portuguese language and also based on a dialogue with authors such as
Basílio (2004), Biderman (1978), Ferraz (2005), Marcuschi (2004), Ilari (2006), among
others. It is reported here a study on polysemy aiming at a deep look into its
usage and how important context is; bearing in mind the premise that while
dealing with the lexicon, one makes meaningful choices in terms of meaning
and comprehension.
Keywords: Polysemy. Lexicon. Speech. Meaning.
Considerações iniciais
Estudar o léxico de uma língua é também estudar o processo da língua que
coloca à disposição dos falantes uma série de recursos que precisam os limites
do sentido da fala e de sua utilização. O léxico da língua é definido como o
acervo de palavras de um determinado idioma que fica à disposição de sua
comunidade linguística para o uso. Sendo assim, todo falante da língua tem
acesso a esse acervo e o utiliza para a formação de seu vocabulário, de seu
repertório linguístico. Poderíamos dizer, em outras palavras, que o léxico é
o conjunto de palavras que as pessoas de uma determinada língua têm à sua
disposição para expressar-se, oralmente ou por escrito. Podemos ainda afirmar
que uma característica básica do léxico é sua mutabilidade, já que ele está em
constante movimento.
A língua, nesta concepção, “move-se ao longo do tempo numa corrente que
ela própria constrói. Tem um curso... Nada é perfeitamente estático. Todas
as palavras, todos os elementos gramaticais, todas as locuções, todos os sons
e acentos são configurações que mudam lentamente, moldadas pelo curso
invisível e impessoal que é a vida da língua” (SAPIR, apud ULLMAN, 1977).
Nesse sentido, admitimos com Coseriu (1987, p.19) que a capacidade que o
falante tem de falar é sempre falar uma língua dentro de uma comunidade
determinada historicamente, o que implica um domínio mesmo que mínimo da
tradição idiomática desta ou daquela comunidade A linguagem, então, sempre
se manifesta como língua. Para Coseriu (1987, p.23, grifos do autor), “uma
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língua não é uma ‘coisa feita’, um produto estático, mas um conjunto de ‘modos
de fazer’, um sistema de produção, que, a todo instante, somente em parte surge
como já realizado historicamente em produtos linguísticos”.
Para Basílio (2004, p.7), o léxico é tradicionalmente definido como o conjunto
de palavras de uma língua e serve como uma espécie de banco de dados
previamente classificado, ou seja, um depósito de elementos de designação, o
qual fornece unidades básicas para a construção dos enunciados. Sendo assim,
seu papel está diretamente ligado à dupla função da língua que consiste em ser,
ao mesmo tempo, um sistema de classificação e um sistema de comunicação.
Em Biderman (1978), o léxico de uma língua materna constitui uma forma de
registrar o conhecimento do universo e, ao dar nomes aos seres e objetos, o
homem os classifica simultaneamente. Assim, a nomeação da realidade pode ser
considerada como a etapa primeira no percurso científico do espírito humano
de conhecimento do universo. Além disso, compreende a autora que o léxico de
uma língua natural pode ser identificado com o patrimônio vocabular de uma
dada comunidade linguística ao longo de sua história.
Segundo Ferraz (2005, p.217), o léxico é o elemento da língua de maior efeito
extralinguístico por se reportar, em grande parte de seu conjunto, a um mundo
referencial, físico, cultural, social e psicológico, em que se situa o homem. O
léxico, então, possui, segundo a autora, um estatuto semiótico e as relações
entre léxico e cultura, léxico e sociedade, são indubitavelmente, muito fortes.
De acordo com Marcuschi (2004, p.270), o léxico é o terceiro grande pilar da
língua, ao lado da sintaxe e da fonologia e sem ele não há língua. Para o autor,
o léxico é o nível da realização linguística tido como o mais instável, irregular e
até certo ponto incontrolável.
Porém, a escolha do léxico, ou seja, de um conjunto de palavras a serem usadas
em um determinado discurso não é algo fácil, que se dá da noite para o dia,
tendo em vista, que estamos sempre escolhendo uma palavra em detrimento
da outra.
Por outro lado, a escolha do léxico no cotidiano do falante é de suma importância,
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uma vez que é por meio dele que esse falante se expressa, revela suas atitudes,
pensamentos e emoções. Assim, quando o falante escolhe o que vai dizer e o
que quer dizer, está também escolhendo as palavras que melhor representam o
seu mundo interior e a sua forma de perceber o mundo exterior.
O usuário da língua utiliza o léxico, esse inventário aberto de palavras
disponíveis no seu idioma, para a formação do seu vocabulário, sua própria
expressão no momento da fala e na efetivação do processo comunicativo.
Além disso, o vocabulário de um indivíduo caracteriza-se pela seleção e pelos
empregos pessoais que ele faz do léxico. Quanto maior for o vocabulário do
usuário, maior a possibilidade de escolha da palavra mais adequada ao seu
intento expressivo.
As palavras não foram feitas para ficarem estáticas em uma folha de papel.
Palavras estáticas são sem vida e sem propósitos. Pode-se dizer que o principal
objetivo de um vocábulo é a construção de sentido e, para que tal objetivo seja
concretizado, faz-se necessário que em cada texto exista não só um contexto,
mas também um interlocutor. Decerto que a linguagem é expressão da
intersubjetividade e a linguagem é “apreensão do ser, mas não por meio de um
sujeito absoluto, nem do indivíduo empírico, e sim por meio do homem histórico
que, precisamente por isso, é ao mesmo tempo um ente social” (COSERIU, 1987,
p. 30).
Assim sendo, examinaremos o fenômeno da polissemia que nos ajudará a
compreender o sentido das palavras utilizadas em determinado contexto
e o posicionamento do sujeito enunciador frente ao dito ou ao modo de sua
enunciação, que permite estabelecer gradações diferentes de seu engajamento
ou de seu afastamento em relação ao que afirma.
Se o emprego de vocábulos com múltiplos sentidos é utilizado com frequência
no cotidiano das pessoas foi a partir dessa observação que surgiu a idéia de se
analisar a polissemia em um texto de nossa língua, tendo em vista que ela é um
traço fundamental da fala humana pelo fato de as palavras poderem configurar
aspectos diferentes e em diferentes contextos.
O objetivo desse trabalho é, portanto, sinalizar situações em que as palavras são
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postas em situações discursivas que favorecem uma dúplice interpretação, o
que caracteriza a polissemia e como esse fenômeno contribui para a construção
do sentido do texto.
O fenômeno da polissemia na língua: o problema da
definição
O modo de dizer as coisas é tão importante quanto o conteúdo do que dizemos.
Sempre que dizemos alguma coisa, estamos de alguma forma nos revelando,
revelando nossos pontos de vista, atitudes e sentimentos. As marcas de
subjetividade estão registradas em certos elementos linguísticos que traduzem
um maior ou menor comprometimento do enunciador em relação ao conteúdo
do que enuncia.
A polissemia é uma característica de muitas das nossas palavras, segundo a
qual um mesmo vocábulo pode ter dois ou mais significados diferentes, embora
quase sempre com alguma relação entre si. Observe os exemplos a seguir:
1- a) Falta uma peça a esta máquina para que ela funcione.
b) No próximo período escolar, a minha turma vai encenar uma
peça de teatro.
2- a) Em minha casa, come-se frango uma ou duas vezes por
semana.
b) O gol da vitória foi um frango do goleiro
3- a) Este aparelho precisa de uma pilha nova.
b) Maria tem uma pilha de pratos para lavar.
Em cada um dos exemplos acima, as palavras destacadas adquirem um sentido
diferente de acordo com o contexto. Levamos em consideração o poder de
atração que tais recursos linguísticos podem causar nos leitores, bem como a
intencionalidade do enunciador ao produzi-los.
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Assim, constatamos a riqueza de possibilidades que a língua pode oferecer e
como o uso destes recursos pode estar em prol de uma classe ou ideologia.
Nos diversos discursos produzidos constantemente pelos sujeitos em interação,
as palavras não possuem invariavelmente o mesmo sentido nas diferentes
situações. A polissemia é essa propriedade das palavras de adquirirem sentidos
distintos a depender do contexto de uso.
A necessidade de se nomear elementos e fatos novos que se inserem em
determinado contexto colaboram para a expansão do léxico. Esse processo
de expansão do léxico pode ocorrer de diferentes formas, entre elas o
desenvolvimento de homofonias. A extensão de significado e outras alterações
semânticas são, também, fatos observados na língua. A flexibilidade do léxico da
língua portuguesa do Brasil e as alterações semânticas propiciam a ocorrência
da polissemia ou/e homonímia, fenômeno(s) amplamente discutido(s) por
gramáticos e linguistas.
Contudo, o conceito de polissemia é muitas vezes confundido com o da
homonímia, que se caracteriza quando dois vocábulos diferentes, de origens
e significados diversos, terminam convergindo para a mesma configuração
fonológica e ortográfica.
Um exemplo de homonímia é o antigo caso do vocábulo manga, que pode ser
usado tanto para determinar uma fruta, quanto para se referir a uma parte da
roupa que cobre os braços, ou ainda, a palavra são, que pode expressar o estado
de saúde daquele que não está doente, como no exemplo: João ficou enfermo
por dois meses, mas agora ele está são ou funcionar como verbo, como ocorre
no exemplo: Luiz e Pedro são irmãos gêmeos. No entanto, não existe nenhuma
relação entre essas palavras. Assim sendo, temos dois vocábulos diferentes com
a mesma forma.
O conceito de homonímia traz, ainda, a questão das palavras homônimas
homófonas que podem ser: homófonas heterográficas ou homófonas
homográficas. As primeiras são palavras que apresentam grafia diferente, mas
pronúncia igual como, por exemplo, acender, que é relativo a iluminar, por
fogo e ascender que é relativo a elevar ou subir. As homófonas homográficas
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são aquelas palavras iguais na escrita e na pronúncia. Em: O caminho até
chegar aqui foi longo, temos caminho como um substantivo e no exemplo: Eu
caminho 15 minutos todo dia para chegar ao trabalho, temos caminho como
verbo. Existem ainda, as homônimas homógrafas heterofônicas que são palavras
iguais na escrita, mas diferentes no timbre ou na intensidade das vogais como,
por exemplo, colher. Dessa forma, quando dizemos: Essa colher tem o cabo
grande, estamos nos referindo ao objeto com o qual se come alguma coisa e
quando dizemos: Maria vai colher todas as roupas do varal, estamos diante de
um verbo.
Um bom exemplo de vocábulo polissêmico é letra, que tem no mínimo três
significados bem conhecidos: o primeiro seria o do sinal gráfico do alfabeto (a,
b,c, d, e, f, g..) o outro é aquele em que letra seria o texto de uma canção como no
exemplo: Eu gosto da letra das músicas de Roberto Carlos e, por último, temos
o significado de letra como sendo, um título de crédito que é o que ocorre no
exemplo: A letra de câmbio deve ser nominativa por ordem e conta do sacador.
Para a maioria dos falantes não parece difícil ligar entre si esses três significados,
já que todos eles apresentam um sentido próprio, dependendo do contexto de
uso.
Assim, um bom critério para diferenciar a polissemia da homonímia seria o
da relação existente entre os vocábulos. Quando há uma relação entre os
significados dos vocábulos estamos diante da polissemia. No entanto, quando
não conseguimos estabelecer uma relação satisfatória entre os significados como
no caso do vocábulo manga, há forte probabilidade de que estejamos diante de
um par de vocábulos homônimos. Enfim, os dois conceitos são bem distintos.
Em Rocha Lima (2005, p.485-487), a polissemia é estudada ao lado da
homonímia. A polissemia é feita no âmbito da denotação e é apresentada como
a multiplicidade de sentidos imanente em toda palavra que possui estrita
dependência do contexto e que tem como resultado a sinonímia. Já a homonímia
é descrita pelo autor como “fator de perturbação da boa escolha das palavras”.
Este autor afirma que deveriam ser consideradas homônimas as palavras
“que, tendo origem diversa, apresentam a mesma forma, em virtude de uma
coincidência na sua evolução fonética”. É considerada também a homonímia
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entre palavras que, possuindo forma idêntica, designam coisas distintas:
Ex: cabo (posto militar) - cabo (acidente geográfico)
Real (verdadeiro) - real (de rei).
Para Ilari (2006, p. 97), palavras homônimas são aquelas que se pronunciam da
mesma maneira, mas têm significados distintos e são percebidas como diferentes
pelos falantes da língua. Enquanto isso, a polissemia é uma mesma palavra que
é percebida com significados diferentes.
Outro exemplo de homonímia ocorre na palavra banco, que pertence a mesma
classe gramatical (substantivo) e que serve tanto para se referir ao banco do
jardim, no sentido de assento, como no exemplo: João estava sentado no banco
da praça ontem à noite, como ao banco, no sentido de casa de crédito, como
ocorre no exemplo: hoje à tarde vou ao banco do Brasil sacar dinheiro.
Podemos dizer que a polissemia ocorre quando temos um vocábulo que possui
mais de um significado e a homonímia ocorre quando temos dois vocábulos
diferentes.
O léxico da língua portuguesa expande-se em um processo dinâmico. Os
processos de expansão do léxico, por vezes, geram dificuldades quanto à definição
da existência de um item lexical dotado de múltiplos sentidos (polissemia) ou
de itens lexicais distintos com formas idênticas (homonímia), por isso, um bom
dicionário deveria levar em consideração os casos de homonímia e os casos de
polissemia apresentando para cada item os diferentes sentidos de um verbete.
Neste caso, os lexicógrafos não têm esse cuidado. Eles apenas listam as palavras
da língua sem uma preocupação com relação às diferentes possibilidades de
interpretação para cada item quando inseridos em um contexto de uso.
Diante da divergência que ocorre com relação à determinação da ocorrência
de polissemia e/ou homonímia é imprescindível que se perceba a questão de
forma equilibrada e que se enfatizem as possibilidades e efeitos produzidos
pela utilização da polissemia/homonímia, tornando assim a produção e
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compreensão do texto escrito e oral mais criativo e atraente.
A polissemia exerce papel importante na construção do sentido de um texto,
tendo em vista que são os falantes de uma língua que irão determinar o
significado que um dado vocábulo irá adquirir em um contexto, significado esse
que somente será coerente se estiver inserido no contexto sociocultural, cujo
falante é parte integrante.
Segundo Ilari (2006, p. 151), fala-se “polissemia” a propósito dos diferentes
sentidos de uma mesma palavra que são percebidos como extensões de um
sentido básico. De acordo com o autor, a polissemia se opõe a homonímia,
pois, para haver polissemia, é preciso que haja uma só palavra e para que haja
homonímia é preciso que haja mais de uma palavra.
Ilari (2006) destaca, ainda, que além das palavras, a polissemia afeta a maioria das
construções gramaticais e que um bom exemplo seria o chamado “aumentativo”
dos nomes. Se pensarmos nas razões pelas quais alguém poderia ser chamado
de Paulão, em vez de Paulo, encontraríamos explicações como “porque é alto”,
“porque é grande”, “porque é grosseiro”, “porque é desajeitado” e até mesmo
“porque é uma pessoa com quem todos se sentem à vontade”. Normalmente é
difícil dizer até que ponto vale cada uma dessas explicações. Da ideia de tamanho
passa-se à ideia de certo modo de ser e de se relacionar. Dessa forma, o autor
apresenta uma reflexão sobre a utilização polissêmica do grau aumentativo de
um nome próprio, embora não trate especificamente da ocorrência da polissemia
em nomes próprios.
Na visão de Basílio (2004, p. 15), a polissemia acontece quando os significados
de uma palavra são relacionados e explica que são mais comuns as palavras
que têm mais de um significado. Para a autora teríamos um caso de polissemia
em regra de gramática normativa e regra de etiqueta porque há um significado
geral de prescrição, apenas com diferença do domínio em que se aplica.
Sendo assim, quando os significados não são relacionados, em geral é preferível
considerar que se trata de palavras distintas, ainda que com a mesma forma
fonológica. Nesse caso, denominamos a situação de homonímia.
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Basílio (2004) considera a problemática de estabelecer posições definitivas
quanto às diferenças no comportamento relativo ao gênero das palavras que
apontariam para a classificação das mesmas como homônimas e/ou polissêmicas
e afirma que a questão homonímia/polissemia continua sendo discutida tanto
teoricamente quanto em termos de casos particulares. Temos, portanto, um
problema permanente em relação ao conceito de palavra.
Para Genouvrier e Peytard (1974), há polissemia quando uma só palavra está
carregada de vários sentidos. A polifonia, para esses autores, é uma noção
essencialmente sincrônica e seu uso responde a uma necessidade imprescindível
para o bom funcionamento da língua, uma vez que até poderíamos imaginar uma
língua totalmente monossêmica (um sentido para cada palavra e uma palavra
para cada sentido), mas isso incharia infinitamente o léxico, além de que o falante
não poderia guardar em sua memória discursiva as palavras indispensáveis
à construção das mais variadas mensagens. Sendo assim, a língua obedece ao
que chamamos de lei da economia porque ela sabe reaproveitar o mesmo signo
fazendo variar o seu significado, sendo, pois, um recurso riquíssimo para os
seus usuários.
Genouvrier e Peytard (1974), ao tratarem da querela que envolve a polissemia
e a homonímia assumem que a homonímia aproxima-se da polissemia, mas os
dois fenômenos não constituem a mesma coisa. Embora haja, nos dois casos,
um só significante e vários significados, na polissemia o locutor atribui várias
acepções a uma palavra única, enquanto na homonímia, o locutor distingue
várias palavras pelo sentido.
Assim, como vimos em diferentes autores, a polissemia e a homonímia são
estudadas por ângulos diferentes, mas todos eles contribuem e expõem a
necessidade da investigação de critérios que definam a ocorrência desses
recursos e sugerem uma forma prática de apresentação dos temas na língua
portuguesa.
Levando em conta o problema das divergências e convergências sobre esses
dois fenômenos, a polissemia e a homonímia e, apoiando nossas reflexões nas
contribuições de Ilari (2006) e Basílio (2004), passamos à análise da polissemia
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no texto poético de Maria Paula Alvim.
Análise da polissemia no texto poético
O texto que escolhemos para desenvolver a análise da polifonia e demonstrar
a importância de seu reconhecimento e uso é uma poesia de autoria de Maria
Paula Alvim, cujo título, sugestivamente, é Polissemia. Apresentamos, abaixo,
a letra da poesia dividida em cinco estrofes:
Polissemia
1-
Dei um cravo a Gabriela
Ao som de um cravo de Bach
Beijo de cravo e canela
Cravou-se em meu paladar.
2-
Meu passarinho tem pena
Pena serve pra escrever
Tem pena de mim, morena
Há penas a prescrever.
3-
Pra tudo há tempo certo
Te peço, me dê um tempo
Tempo ruim, encoberto
Não é bom pra passatempo.
4-
Posso dar cabo do cabo
Lá no cabo da esperança
Vingo-me, com ele acabo
Com o cabo desta lança.
5-
Graça achou graça do moço
E riu, pois rir é de graça
No meio do alvoroço
O moço ficou sem graça.
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A análise de qualquer texto pressupõe o reconhecimento de que existem
relações internas e externas responsáveis pela organização do discurso num
poema. As relações de ordem externa se prendem a fatores histórico-culturais e
participam da transtextualidade. Já as relações de ordem interna dizem respeito
a uma estrutura, a um material linguístico que se arranja em frases que, por
sua vez, se distribuem no metro dos versos e nas estrofes, constituindo, assim,
uma espécie de desenho (MICHELETTI, 2006, p. 23). No interior dos versos,
encontramos o material linguístico, as palavras e os fonemas que, de diferentes
maneiras, estabelecem relações com o todo do poema. Segundo Micheletti (2006,
p. 23), essas relações são também coesivas de superfície que se constroem “na
intersecção dos dois eixos: sintagmático e paradigmático. O leitor ao reconhecer
essas relações coesivas é capaz de construir o sentido do texto.
O texto escolhido para análise permite amplas possibilidades de análise, tanto
em termos de camada sonora, quanto de constituição do léxico, mas vamos nos
deter apenas na exploração da polissemia que cria notáveis campos significativos
e organizam o sentido do texto.
Neste texto, mesmo numa primeira leitura, já é possível dizer que a polissemia
está presente o tempo inteiro em cada uma das estrofes e exerce no poema uma
função primordial, um campo fértil de expressividade, que conduz o leitor ao
estabelecimento do sentido. A presença e o valor da polissemia aparecem já
no título, elemento catafórico que, indubitavelmente, conduz ao tema que será
tratado no poema.
Na primeira estrofe, percebemos a presença do locutor (eu-lírico), que se
apresenta em primeira pessoa e institui seu interlocutor (Gabriela) e sintetizando
o conteúdo do poema, podemos notar que o uso da polissemia é um recurso
usado para expressar toda a emoção e os sentimentos de alguém que estava
passando por uma fase de encantamento por outro alguém, ou seja, alguém que
estava enamorado por outra pessoa.
O vocábulo que remete o leitor ao reconhecimento da polissemia é cravo. No
primeiro verso, o uso desse vocábulo faz referência a um tipo de flor que foi dada
à pessoa de Gabriela. No segundo verso, o mesmo item lexical, cravo, passa a
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significar uma coletânea de música produzida por um determinado autor e que,
possivelmente, estava sendo tocada quando Gabriela ganhou a flor. No terceiro
verso, esse vocábulo é designado como um tipo específico de tempero passando
a indicar o sabor do beijo. No quarto e último verso da estrofe, temos um jogo
com o uso do verbo cravar, cuja camada sonora lembra o vocábulo cravo.
Em seguida, na segunda estrofe, o texto apresenta a polissemia em torno do
vocábulo pena que adquire quatro significados e campos semânticos. O primeiro
significado seria referente à pluma que reveste o corpo das aves. O segundo está
ligado à lâmina de metal, adaptada a caneta e usada antigamente para escrever.
O terceiro uso do vocábulo está relacionado ao sentimento de dó ou compaixão
que sentimos de alguém e no quarto verso, o uso remete à punição imposta a
alguém que comete um delito.
Depois disso, na terceira estrofe, a polissemia se constrói em torno do vocábulo
tempo que, no primeiro verso pertence ao campo semântico temporal e é visto
como a sucessão de anos, dias, horas, etc., envolvendo a noção de presente,
passado e futuro. O segundo verso apresenta o sentido do item lexical pena
como momento ou ocasião apropriada para que uma coisa se realize. É possível
fazer essa leitura por meio da expressão marcada por um registro informal
“me dê um tempo”, em que uma pessoa pede a outra para que espere até
que ela possa praticar uma determinada ação. Em seguida, no terceiro verso,
temos o significado de tempo cujo campo semântico aponta para as condições
meteorológicas. No último verso, a palavra tempo, associada ao verbo passar,
dá a ideia de uma ocupação ligeira e agradável, um entretenimento, um
divertimento, ou ainda, um hobby.
Na quarta estrofe, é possível identificar a polissemia do vocábulo cabo que,
primeiramente, aparece no sentido de destruir com o uso da expressão dar cabo.
Depois o vocábulo aparece no sentido de parte por onde se pega um utensílio,
por exemplo, como o cabo da vassoura. Dessa forma, a frase é: posso dar cabo
ao cabo. No terceiro verso, o vocábulo cabo aparece indicando ponta de terra
que entra pelo mar, neste caso o cabo da Boa Esperança. No último verso desta
quarta estrofe, cabo novamente aparece no sentido de parte por onde se pega
um objeto: o cabo desta lança.
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Na quinta e última estrofe, a polissemia acontece com o uso do item lexical
graça. A primeira ocorrência desse vocábulo aponta para um nome próprio,
indicando, pois, o alvo de direcionamento do dizer. Num segundo momento,
ainda no primeiro verso, a palavra graça assume o significado de algo que é
visto com certo tom de humor ou até de zombaria em que “achou graça do
moço” pode significar um certo tom de desprezo, visto que o moço ficou “sem
graça”, ou seja, envergonhado. No segundo verso, o vocábulo graça é usado
para se referir a algo que é gratuitamente, sem pagamento ou retribuição. O
último verso desta quinta estrofe traz o uso de graça se referindo ao sentimento
de timidez, ou ainda, como alguém que ficou atrapalhado de ter feito algo.
Ao fazer a análise de um texto como este, reforçamos o valor da polissemia
na língua e percebemos que a multiplicidade de sentidos para uma mesma
enunciação permite que o leitor interaja com o texto, ou seja, deixe de ser um
leitor “passivo” e passe a ser “interativo” com todo o conjunto de palavras e
imagens que fascinam e convidam o leitor a decifrá-los. É a interação do homem
com a linguagem.
Mediante a análise apresentada, pudemos perceber a vasta possibilidade que
a polifonia oferece para que o leitor possa deleitar-se no desvelar dos sentidos
possíveis de um texto. Com efeito, o contexto é imprescindível para a questão
do significado, uma vez que o significante não se altera quando muda o sentido,
mas o contexto sempre determina o sentido da palavra fixando-lhe o sentido.
Considerações finais
A polissemia representa a possibilidade de uma palavra possuir mais de um
significado. Pode-se observar que as palavras expandem seus sentidos de
maneiras variadas e que os vários sentidos provêm de origens distintas. Através
do estudo da polissemia, constatamos a importância do contexto no emprego
de determinado vocábulo no estabelecimento de seu sentido.
É importante observar que todos os casos de polissemia encontrados estavam
em função de um mesmo objetivo: tornar a linguagem mais acessível, fazer com
que a leitura seja dinâmica e possa fazer sentido no contexto de uso.
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Infere-se, portanto, que mecanismos como a polissemia, tão amplamente
explorados nos mais diversos textos de língua portuguesa, são uma das táticas
discursivas que enfeitam, dão vida e sentido a um texto. Esse recurso é eficaz,
haja vista tornar a leitura mais sedutora e instigante, ao permitir a atribuição de
significados plurais.
Percebe-se que as palavras nunca são completamente homogêneas: mesmo
as mais simples e as mais monolíticas têm certo número de facetas diferentes
que dependem do contexto e da situação em que são usadas, e também da
personalidade da pessoa que, ao falar, faz escolhas em seu acervo lexical ao
usá-las.
Observa-se ainda que, para que haja polissemia, basta que se fale de contextos
socioculturais diferentes ou se tenha alguma intencionalidade específica.
É importante constatar como ao longo da análise do texto poemático foi
possível compreender como age a multiplicidade de sentidos diante do leitor.
Esse, desafiado pela trama linguística, tem diante de si a tarefa de penetrar os
liames do texto para então significá-lo. Fica patente que, além de constituir
um recurso linguístico inegavelmente eficaz para a construção de enunciados
intencionalmente dúbios, a polissemia é um fator incomparável de economia
linguística.
Esse estudo faz-se necessário, portanto, no sentido de perceber o leitor como
co-produtor do discurso, aquele que, utilizando de conhecimentos linguísticos
e extralinguísticos, deverá interpretar os vários significados que uma palavra
pode assumir num determinado contexto, atentando para os jogos ideológicos
do produtor do discurso e convertendo os sentidos a seu favor.
Assim sendo, essa possibilidade de múltiplos sentidos para uma mesma
enunciação fundamenta a atividade do dizer e está relacionada à criatividade
que instaura o diferente na linguagem, na medida em que o uso pode romper
com o processo de produção dominante de sentidos e, na tensão da relação
com o contexto histórico-social, pode criar novas formas, novos sentidos, a
multiplicidade de sentidos.
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Referências
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A TOPONÍMIA MUNICIPAL DA MICROREGIÃO
ALAGOANA DO SERTÃO DO SÃO FRANCISCO
Pedro Antonio Gomes de Melo1*
RESUMO: A Toponímia, compreendida como um recorte do léxico de uma
língua, é um ramo da Onomástica e possui como eixo central de seus estudos
o topônimo, que é o signo linguístico na função de identificador de um espaço
geográfico. Este estudo objetiva investigar o léxico toponímico municipal da
microtoponímia de Alagoas a partir de um estudo onomástico dos topônimos
municipais da Microrregião Alagoana do Sertão do São Francisco, localizada
na Mesorregião do Sertão Alagoano. A partir de uma análise linguística e
uma classificação taxeonômica de natureza física e sócio-cultural-histórica.
As análises revelaram que os topônimos de origem latina, de motivação de
natureza antropocultural e formados por composição são os mais frequentes no
léxico toponímico alagoano.
Palavras-chaves: Léxico, Topônimo, Onomástica
ABSTRACT: Toponymy understood as an approach to the lexicon of a language
is a branch of onomastics and has as the centerpiece of his studies the toponym,
which is the linguistic sign in the function of a geographic identifier. This
study investigates the lexicon toponymic of microtoponímia city of Alagoas,
taking as a starting point a study of proper names of local toponyms Alagoana
Microregion of the hinterlands of San Francisco, located in the Greater Region of
Alagoas Hinterlands. From a linguistic analysis and taxonomical classification
of physical and socio-cultural-historical nature. The analyses revealed that the
toponyms of Latin origin, of motivational and antropocultural nature formed
by composition are the most frequent in the lexicon toponymic of Alagoas.
Keywords: Lexicon, toponym, onomastics
* Mestre em Letras - [email protected]
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Consideração iniciais
Este artigo visa descrever o léxico toponímico da Microrregião Alagoana do
Sertão do São Francisco por meio de uma classificação taxeonômica de natureza
física e antropocultural a partir de uma análise linguístico-onomástica dos 3
(três) nomes dos municípios que constituem a referida região do Estado.
De acordo com Melo (2011. p. 278):
Necessitamos de uma terminologia específica, ao
estudarmos uma língua, caso contrário, corremos o
risco de utilizarmos vocábulos genéricos que favoreçam
a inadequação conceitual, consequentemente, a nãocompreensão do que se quer efetivamente descrever,
estudar ou analisar. (MELO, 2011, p. 278)
Na presente pesquisa, essa necessidade se torna ainda mais evidente, uma vez
que tratará de uma nomenclatura de um dado espaço geográfico e, ainda, em
virtude dos topônimos funcionarem como termos e não como palavras de uso
geral.
A Toponímia, compreendida como um recorte do léxico de uma língua, é um
ramo da Onomástica (do grego antigo ὀνομαστική, ato de nomear, dar nome)
que tem como objeto de estudo o signo toponímico. Para Rostaing (1961, p.7) sua
finalidade consiste em “investigar a significação e a origem dos nomes de lugares
e também de estudar suas transformações”. E acrescentamos, ainda, observar
questões extralinguísticas de natureza sócio-histórico-culturais relacionadas à
motivação no ato de nomear acidentes físicos e humanos, pondo em tela fatos
toponomásticos. Conforme postula Dauzat (1926, p.7), ela “conjugada com a
história, indica ou precisa os movimentos antigos dos povos, as migrações, as
áreas de colonização, as regiões onde tal ou tal grupo linguístico deixou seus
traços.”
Segundo Tavares e Isquerdo (2006, p. 3):
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Na dimensão linguística, o estudo dos topônimos –
nomes de lugares – pode ser realizado sob diferentes
perspectivas: análise de estratos linguísticos
evidenciados pelos designativos, classificação
taxionômica dos nomes e análise de taxes
predominantes, discussão da motivação semântica
dos nomes, estudo diacrônico referente às mudanças
de nomes, análise da estrutura morfológica dos
topônimos. (TAVARES E ISQUERDO, 2006, p. 3)
Estes trabalhos estão interligados a diversas áreas do conhecimento, de
maneira interdisciplinar, inseridos nos contextos tanto linguísticos como
socioculturais, eles geralmente “se ocupam do estudo integral, no espaço e no
tempo, dos aspectos: geo-históricos, socioeconômicos e antropolinguísticos que
permitiram e permitem que um nome de lugar se origine e subsista” (SALAZAR
QUIJADA, 1985, p. 18). Na verdade, essas intervenções consistem num imenso
complexo línguo-cultural, em que dados das demais ciências se interseccionam
necessariamente e, não, exclusivamente com a Toponìmia.
Frente às várias possibilidades de investigação, optamos pelo estudo etimológico,
pela discussão da motivação semântica predominante na denominação e análise
da estrutura morfológica.
O Estado de Alagoas é geograficamente pequeno com uma área total de
27 767,661 km², sendo o 2º menor do país. Faz fronteiras com os Estados de
Pernambuco (Norte e Noroeste), de Sergipe (Sul), da Bahia (Sudoeste), além
do Oceano Atlântico (Leste). Seguindo a divisão proposta pelo IBGE (2008),
é formado por 102 municípios, que estão distribuídos em três mesorregiões
(Agreste Alagoano, Leste Alagoano e Sertão Alagoano) e subdivididos em
13 microrregiões: 1 A microrregião de Palmeira dos Índios, 2 A microrregião
de Arapiraca, 3 A Microrregião de Traipu, 4 A Microrregião do Litoral Norte
Alagoano, 5 A Microrregião de Maceió, 6 A Microrregião da Mata Alagoana, 7
A Microrregião de Penedo, 8 A Microrregião de São Miguel dos Campos, 9 A
Microrregião Serrana dos Quilombos, 10 A Microrregião Alagoana do Sertão do
São Francisco, 11 A Microrregião de Batalha, 12 A Microrregião de Santana do
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Ipanema e 13 A Microrregião do Serrana do Sertão Alagoano.
Constitui, assim, a nomenclatura de suas municipalidades e, consequentemente,
o léxico onomástico-toponímico municipal da microtoponímia do Estado,
evidenciando com suas isoglossas os efeitos da sociedade sobre a língua, como,
também, a maneira pela qual o mundo exterior nela se reflete. É importante não
confundirmos o nome do município com o município propriamente dito, em
outras palavras “o topônimo não é o lugar em si, mas uma de suas representações,
carregando em sua estrutura sêmica elementos da língua, da cultura, da época
de sua formação, enfim, do homem denominador.” (CARVALHINHOS, 2009,
p. 83).
Para este estudo, interessa-nos apenas os nomes que nomeiam os municípios da
Microrregião Alagoana do Sertão do São Francisco, localizada na Mesorregião
do Sertão Alagoano, a saber: Delmiro Gouveia, Olho d’Água do Casado e
Piranhas.
O mapa, a seguir, visualiza a distribuição dos 3 (três) municípios da referida
região.
Mapa da Microrregião Alagoana do Sertão do São Francisco
A macrotoponímia alagoana apresenta características muito peculiares
advindas de múltiplos fatores inerentes às mesorregiões e microrregiões,
nas quais dados padrões sociais podem, em certa medida, condicionar e/ou
influenciar a estrutura e a organização de seu léxico, tanto no que diz respeito
às motivações toponímicas de natureza física e às de natureza social, como
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em relação à dinâmica lexical de renovação toponímica bastante relevante na
constituição desse acervo lexical atual, apresentando-se como um campo fértil
para a pesquisa linguística.
É importante não confundirmos o nome do município com o município
propriamente dito, em outras palavras “o topônimo não é o lugar em si, mas
uma de suas representações, carregando em sua estrutura sêmica elementos da
língua, da cultura, da época de sua formação, enfim, do homem denominador.”
(CARVALHINHOS, 2009, p. 83).
Este recorte linguístico é compreendido, então, como um indicador cultural,
uma vez que o modo como a língua retrata a visão de mundo de um povo
evidencia a inter-relação que se estabelece entre língua, cultura e sociedade.
Levando em consideração essas várias possibilidades geo-históricas,
socioeconômicas e antropolinguísticas de motivação toponímica de natureza
física e antropocultural, procuraremos compreender como se estrutura e se
organiza o léxico toponímico municipal alagoano, buscando descobrir em
aspectos extralinguísticos e linguísticos uma relação dicotômica entre língua
(topônimo) / motivação toponímica (ato denominativo) por meio do método
onomasiológico.
Finalizamos, destacando que o princípio norteador deste trabalho deu-se, em
primeiro lugar, pelo interesse de investigar – do ponto de vista semânticotaxeonômico - como o homem, alocado num dado espaço físico, tendo a seu
vigor várias possibilidades designativas, nomeou os municípios alagoanos;
em segundo lugar, descobrir, do ponto de vista linguístico-lexical, quais são os
processos de formação mais produtivos e as estruturas mórficas mais recorrentes;
em terceiro lugar, pelos resultados que poderão fornecer subsídios a futuras
pesquisas sobre a microtoponímia do Estado de Alagoas e, consequentemente,
contribuir para um melhor conhecimento da Língua Portuguesa, em sua
vertente brasileira.
Referencial teórico-metodológico
O topônimo representa “uma projeção aproximativa do real, tornando clara
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a natureza semântica de seu significado” (DICK, 1980, p. 290) e evidencia a
realidade do ambiente físico e antropocultural de uma dada região, na medida
que revela características de vegetação, hidrografia, fauna, condições de solo e
relevo, como também crenças, ideologias, fatos políticos e históricos. Marcas
que permanecem firmadas mesmo quando a motivação toponímica, ocorrida
no ato denominativo, já se faz extinta. Percebe-se, pois, o valor patrimonial
destes vultos históricos.
Cumpre-nos destacar, ainda, que os locativos adquirem valores que transcendem
o próprio ato de nomear, uma vez que o léxico de um dado grupo reflete o
seu modo de ver o real e a forma como seus membros organizam o mundo
que os rodeia. É eminentemente de caráter social, pois existem em função das
necessidades sociais de designar a realidade.
Sendo assim, propomo-nos a analisar um recorte do léxico de um grupo
sócio-linguístico-cultural: a microtoponímia municipal alagoana. No dizer de
Dick, (1996, p. 337), [...] “o topônimo, assim, vai deixando de ser apenas um
instrumento de marcação ou de identificação de lugares para se transformar em
um fundo de memória, de natureza documental tão valiosa e significativa como
os textos escritos.”
Partindo do princípio de que o exame dos designativos de lugares possibilita
a identificação e a recuperação de fatos linguísticos recorrentes no ato
denominativo como, também, favorece o conhecimento de aspectos históricosócio-culturais de um povo, cabe ao pesquisador “reconstruir a toponímia
das localidades e revelar as motivações e as causas que levaram a formação
destes nomes, relacionando-as às circunstâncias de formação dos aglomerados
humanos e às alterações ocorridas na região ao longo dos anos.” (TIZIO, 2009,
p. 13).
Logo, procuramos investigar as motivações toponímicas sob o ângulo do
ambiente, físico e social, já que a denominação destes lugares remete ao ser
humano, em um determinado contexto antropocultural.
Para análise dos aspectos taxeonômicos, adotamos o modelo de Dick (1990), já
que dentre as propostas de classificação toponímica é o mais recente, completo
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e que, além disso, é voltado para a realidade brasileira. A terminologia adotada
no Modelo Taxeonômico de Classificação Toponímica (MTCT) é composta pelo
elemento topônimo antecedido por um elemento genérico que define a classe
onomástica.
Esse modelo engloba 27 (vinte e sete) taxes, distribuídas em 02 (dois) grupos,
conforme a natureza motivacional (semântica): 11 (onze) taxes relacionadas
ao ambiente físico, Taxeonomias de Natureza Física (TNF); e 16 (dezesseis),
relacionadas ao homem e sua relação com a sociedade e a cultura, Taxeonomias
de Natureza Antropocultural (TNA).
O termo taxe corresponde à identificação e classificação genérica dos fatos
cósmicos sem duas ordens de consequência: a física e a antropocultural, de
forma a permitir a aferição objetiva de causas motivadoras dos designativos
geográficos.
Taxeonomias de natureza física (TNF)
a) Astrotopônimos: topônimos relativos aos corpos celestes em geral;
b) Cardinotopônimos: topônimos relativos às posições geográficas em
geral; c) Cromotopônimos: topônimos relativos à escala cromática; d)
Dimensiotopônimos: topônimos relativos às dimensões dos acidentes
geográficos; e) Fitotopônimos: topônimos relativos aos vegetais; f)
Geomorfotopônimos: topônimos relativos às formas topográficas (formas
de relevo terrestre); g) Hidrotopônimos: topônimos relativos a acidentes
hidrográficos em geral; h) Litotopônimos: topônimos relativos aos minerais e
à constituição do solo; i) Meteorotopônimos: topônimos relativos a fenômenos
atmosféricos; j) Morfotopônimos: topônimos relativos às formas geométricas; l)
Zootopônimo: topônimos referentes aos animais.
Taxonomias de natureza antropocultural (TNA)
a) Animotopônimos: topônimos relativos à vida psíquica, à cultura espiritual;
b) Antropotopônimos: topônimos relativos aos nomes próprios individuais; c)
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Axiotopônimos: topônimos relativos aos títulos e dignidades que acompanham
nomes próprios individuais; d) Corotopônimos: topônimos relativos a nomes de
cidades, países, estados, regiões e continentes; e) Cronotopônimos: topônimos
relativos aos indicadores cronológicos representados pelos adjetivos novo
(a), velho (a); f) Ecotopônimos: topônimos relativos às habitações em geral;
g) Ergotopônimos: topônimos relativos aos elementos da cultura material;
h) Etnotopônimos: topônimos relativos aos elementos étnicos isolados ou
não (povos, tribos, castas); i) Dirrematopônimos: topônimos constituídos
de frases ou enunciados linguísticos; j) Hierotopônimos: topônimos
relativos a nomes sagrados de crenças diversas, a efemérides religiosas,
às associações religiosas e aos locais de culto. Essa categoria subdivide-se
em: i.) Hagiotopônimos: nomes de santos ou santas do hagiológio católico
romano. ii.) Mitotopônimos: entidades mitológicas; l) Historiotopônimos:
topônimos relativos aos movimentos de cunho histórico, a seus membros e
às datas comemorativas; m) Hodotopônimos: topônimos relativos às vias de
comunicação urbana ou rural; n) Numerotopônimos: topônimos relativos aos
adjetivos numerais; o) Poliotopônimos: topônimos relativos aos vocábulos
vila, aldeia, cidade, povoação, arraial; p) Sociotopônimos: topônimos relativos
às atividades profissionais, aos locais de trabalho e aos pontos de encontro da
comunidade, aglomerados humanos; q) Somatopônimos: topônimos relativos
metaforicamente às partes do corpo humano ou animal.
Com base em tais pressupostos, pretendemos investigar os topônimos nos quais
se estabelecem uma conexão entre o acidente geográfico e o nome atribuído a ele,
em que as partes formam um todo representativo, buscando relacioná-los aos
atos onomásticos, especialmente aqueles ligados à microtoponímia municipal
alagoana.
Análise e resultados
Doravante serão apresentadas as análises linguísticas dos dados que constituíram
o corpus deste estudo. Os topônimos serão apresentados em fichas lexicográficotoponímicas. Essas se revelam necessárias para a interpretação dos locativos,
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pois vários campos conceituais da ficha fornecerão informações relevantes sobre
cada um dos nomes de lugares designativos de municípios alagoanos.
Para facilitar a leitura e a compreensão das fichas será apresentado um modelo,
seguido de uma descrição de cada um de seus constituintes.
Exemplo: fichas lexicográfico-toponímicas
Localização – Este item remete à localização geográfica do município no Estado de Alagoas, inserindo-o na mesorregião e microrregião, respectivamente.
Topônimo – Considera o estudo do nome dos municípios do Estado de Alagoas.
Etimologia - Trata da origem etimológica, das categorias gramaticais e da
explicação de seu significado por meio da análise diacrônica dos elementos
que as constituem. É o estudo da composição dos vocábulos e das regras de
sua evolução histórica. Serão consultadas as obras de Cunha (1986) e Tibiriçá
(1984)
Taxeonomia – As taxes toponímicas permitem interpretar os nomes dos lugares com maior segurança do ponto de vista semântico, partindo de sua
natureza física ou antropocultural. Será seguido o modelo apresentado por
Dick (1990).
Formação Lexical – Considera o estudo do processo de formação de palavra
que resultou o topônimo.
Estrutura Morfológica – O topônimo será dividido em três grupos: elemento
específico simples, elemento especifico composto e elemento específico híbrido. Nesse item, apresenta-se uma descrição no plano morfológico do topônimo, caracterizando-o em unidades mínimas de significação: morfemas
lexicais e gramaticais. Será seguido o modelo apresentado por Silva & Koch
(2005).
Informações Enciclopédicas – Levantamento dos registros históricos dos
municípios alagoanos na base do IBGE e/ou por outros meio como: decretos,
livros e via web.
Fonte – Serão creditados às fontes de consultas (autores, obras e sites), nos
quais as pesquisas foram realizadas.
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FICHA TOPONÍMICA-LEXICOGRÁFICA DE PIRANHAS
Localização: Mesorregião do Sertão Alagoano; Microrregião Alagoana do
Sertão do São Francisco
Topônimo: Piranhas
Taxeonomia: Zootopônimo
Etimologia: O termo é de origem tupi, no entanto, há duas explicações etimológicas: junção dos termos tupis pirá ‘peixe’ e anha ‘dente’, significando
‘peixe com dente’ e junção pira ´pele’ e raim ‘o que corta’, significando ‘corta
a pele’.
Formação Lexical: elemento específico simples
Estrutura Morfológica: morfema lexical piranh- + morfema gramatical classificatório vogal temática -a + morfema gramatical flexional aditivo –s
Informações Enciclopédicas: A centenária Piranhas tem sua população estimada em de 23.052 habitantes e sua área é de 409,1km² (53,23 h/km²). Está
47m acima do nível do mar e limita ao norte com o município de Inhapi, ao
sul com o estado de Sergipe, a leste com os municípios de São José da Tapera e Pão de Açúcar, a oeste com o município de Olho d’Água do Casado e a
nordeste com o município de Senador Rui Palmeira. Piranhas, que se divide
em ‘de Baixo’ e ‘de Cima’, vem há algum tempo chamando a atenção, especialmente para a própria geografia, cuidadosamente moldada entre a caatinga
e os rios São Francisco, Boa Vista (ou Piranhas), Urucu e Capiá. Piranhas é
a única cidade do semiárido nordestino tombada como patrimônio histórico
nacional. Foi fundada no século XVIII, quando o local era conhecido por Tapera. Conta-se que, em um riacho, hoje chamado das Piranhas, um caboclo
pescou uma grande piranha, levando-a para casa depois de parti-la e salgá-la.
A história foi transmitida de geração a geração e, segundo consta, denominou
o lugar, que cresceu próximo ao riacho. As principais atividades econômicas
são a pesca e a agricultura de subsistência. (EC)
Fonte: http://www.wikialagoas.al.org.br
Detectamos o zootopônimo de origem indígena tupi Piranhas, motivado pelo
nome de um peixe encontrado na região, lexicalmente é formado pelo processo
de derivação e constituindo um elemento específico simples.
No léxico onomástico-toponímico alagoano é comum a presença de
zootopônimos, sobretudo de origem tupi. Na verdade, percebe-se uma tendência
motivadora do homem em atribuir aos acidentes geográficos nomes relativos a
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espécies da fauna (Jundiá - AL, Maribondo – AL, Satuba - AL, etc). De acordo
com Dick (1990, p.272), “o genérico pira (peixe) é o vocábulo que maior número
de registro acusa, considerando os peixes na toponímia brasileira”.
Essa tendência se confirma na microtoponímia do Estado com o registro do
zootopônimo Piranhas.
FICHA TOPON ÍMICA-LEXICOGRÁFICA DE DEOMIRO GOUVEIA
Localização: Mesorregião do Sertão Alagoano; Microrregião da Alagoana do
Sertão do São Francisco
Topônimo: Deomiro Gouveia
Taxeonomia: Antropotopônimo
Etimologia: composto de origem latina.
Formação Lexical: elemento específico composto
Estrutura Morfológica: morfema lexical deomir- + morfema gramatical classificatório vogal temática –o + morfemal lexical gouveia
Informações Enciclopédicas: O nome do município é uma homenagem ao
empreendedor Delmiro Gouveia que, no início do século XX (1903), desbravou o território inóspito, trazendo o progresso para a região com suas atividades comerciais e industriais e a instalação de uma vila operária. Sua fábrica de
linhas competia com as grandes empresas internacionais. Foi o responsável,
também, pela implantação no local da primeira hidrelétrica da América do
Sul. Antes de Delmiro Gouveia, o lugar chamava-se Pedra, devido à grande
quantidade desse mineral no solo da região. O povoado se constituiu a partir de uma estação da estrada de ferro da então Great-Western. As terras do
atual município de Delmiro Gouveia, somadas às de Mata Grande, Piranhas e
Água Branca, faziam parte das sesmarias que foram levadas a leilão, em Recife, no ano de 1769. O capitão Faustino Vieira Sandes, arrematador das terras,
instalou uma fazenda de gado e, a partir daí, começaram a se desenvolver
os núcleos de povoamento. Os três irmãos da família Vieira Sandes foram os
primeiros habitantes das terras onde hoje está situado o município, segundo
consta nos registros da Prefeitura Municipal.
Fonte: http://www.wikialagoas.al.org.br
Registramos o antropotopônimo Deomiro Gouveia e sua motivação é oriunda
da figura econômico-politicamente ilustre da localidade, formado pelo processo
lexical de composição por justaposição e constituindo um elemento específico
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composto.
O nome próprio Deomiro Gouveia se reveste de função denominadora,
identificadora enquanto antropotopônimo, e passa a nome próprio de acidentes
físicos. Em outras palavras, passa do significado lexical para o significado
onomástico marcado em grande parte pelas relações sócio-políticas e ideológicas
da região.
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FICHA TOPONÍMICA-LEXICOGRÁFICA DE OLHO D’ÁGUA DO
CASADO
Localização: Mesorregião do Sertão Alagoano; Microrregião Alagoana do
Sertão do São Francisco
Topônimo: Olho D’água do Casado
Taxeonomia: Antropotopônimo
Etimologia: composto de origem latina: séc. XIII, sm. oculus, -i ‘visão’, ‘olho’+
prep. de + sf. aqua, -ae ‘água’ + prep. de +casa, -ae ‘morada’, ‘vivenda’.
Formação Lexical: elemento específico composto
Estrutura Morfológica:
morfema lexical olh- + morfema gramatical classificatório vogal temática
–o + forma dependente de + morfema lexical aqu- + morfema gramatical
classificatório vogal temática –a + forma dependente de + o = do + morfema
lexical cas- + morfema derivacional -ado
Informações Enciclopédicas: Por ocasião da construção do ramal ferroviário
da Great Western, os trabalhadores montaram o acampamento próximo ao
lugar onde havia nascentes e onde buscavam água. Como aquelas terras
pertenciam à propriedade do Sr. Francisco Casado, deram-lhe o nome de
Olho d`Água do Casado. Até 1870 só existia na região a fazenda do agricultor
Francisco Casado de Melo, onde hoje está a sede da prefeitura. Em 1877, a
construção da rede ferroviária levou para lá o acampamento dos operários.
O local, para os técnicos, não poderia ser melhor, porque em toda a região
brotavam olhos d’água, facilitando o trabalho e a própria vida dos operários.
Depois que as obras da linha férrea e da estação terminaram, o acampamento
foi transferido. Nessa época já existiam algumas casas e, para garantir o
povoado, foi construída uma capela em homenagem a São José, padroeiro do
lugar. Em 1965, o presidente Castelo Branco suspendeu o tráfego dos trens da
Rede Ferroviária, causando um impacto muito grande à região. Nessa época,
começou a ser construída a AL-225, concluída em 1974. Alguns anos depois a
rodovia AL-220, que passou por Olho D’Água do Casado, mudou a rotina do
povoado. Com o progresso veio o movimento pela emancipação. Eliseu Maia,
Adeval Tenório, Vítor Barbosa, José Pereira Leite e Pedro Gomes Pereira foram
os líderes. Em 1962, Olho D’água do Casado se tornou município, através da
Lei 2.459.
Fonte: http://www.wikialagoas.al.org.
A distribuição21 dos itens lexicais na formação do sintagma toponímico Olho
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D’água do Casado apresenta uma estrutura sintática distinta. Os constituintes que
formam esse antropotopônimo funcionam como uma só palavra, prevalecendo
à unidade semântica do signo toponímico.
Da relação do locativo composto com o acidente geográfico se estabelece uma
interação íntima que compreende dois elementos básicos: termo genérico Olho
D’água + termo específico do Casado. O primeiro é relativo à entidade geográfica
que irá receber a denominação; e o segundo, o antropotopônimo propriamente
dito, particularizará a noção espacial, identificando-o e particularizando-o
dentre outras semelhantes.
Convém assinalarmos que, neste binômio toponímico, os elementos primitivos
perdem a autonomia de significação em benefício de uma unidade semântica,
isto é, um único conceito, novo, global. Essas composições desempenham
função de palavras, tendo-se unidades sintáticas se cristalizando numa função
morfológica ou lexical.
Considerações finais
Os aspectos abordados no presente artigo, envolvendo a microtoponímia
municipal da do Estado de Alagoas, mais precisamente os nomes dos municípios
da Microrregião Alagoana do Sertão do São Francisco, localizada na Mesorregião
do Sertão Alagoano, permitem-nos tecer algumas considerações finais.
Iniciamos destacando que o ato de nomear os municípios alagoanos e,
consequentemente, o surgimento dos topônimos municipais do Estado
de Alagoas são decorrentes não de um único fator determinante, mas da
convergência de vários fatores linguísticos e extralinguísticos condicionantes.
Logo, observamos uma complexidade que envolve a questão da estrutura e
formação das palavras, em especial o estudo etimológico dos topônimos, por
ser difícil, em muitos casos, recuperar, de forma confiável, a verdadeira origem
de alguns designativos, em virtude da dinamicidade léxica nessas formações.
1- “A distribuição é a soma de todos os contextos em que ocorre a forma linguística, em contraste com todos aqueles em que não ocorre” (cf. GLEASON,
1961).
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Para Melo (2010, p. 118), essa dinâmica lexical “está condicionada a fatores
externos e internos à língua. [...] uma língua está sempre recebendo força
centrífuga e força centrípeta em sentidos opostos, não excludentes, mas
complementares.”
Após a análise distintiva dos topônimos, podemos dizer que apresentam 2
(dois) tipos de estrutura: a) Elemento Específico Simples que é formado por um
único morfema lexical e pode está acompanhado de sufixações e terminações:
Piranhas e b) Elemento Específico Composto que apresenta mais de um elemento
formador: Olho D’água do Casado e Deomiro Gouveia.
Em relação aos fatores externos, podemos ressaltar como condicionador à
motivação toponímica de natureza física a fauna local, contribuindo para a
formação de 1 (um) zootopônimo Piranhas e de natureza antropocultural a
questão política local por meio de figuras ilustres da região, contribuindo para
a formação de 2 (dois) antropônimos, isto é, os topônimos relativos aos nomes
próprios individuais ‘antropônimos’ individuais Olho D’água do Casado
(sobrenome de uma família tradicional da região Francisco Casado de Melo)
e Deomiro Gouveia (empreendedor Delmiro Gouveia). Essas palavras se
revestiram de função denominadora e passaram a nomes próprios de acidentes
físicos e humanos.
Em relação aos fatores internos, podemos destacar a produtividade do processo
de formação lexical por composição. E ainda, etimologicamente, podemos
afirmar que o latim, junto com o tupi, foram os estratos linguísticos que
contribuíram para a formação do acervo lexical da localidade estudada.
Semanticamente, podemos apontar que os topônimos nomeiam os acidentes
geográficos de duas maneiras: i) de forma descritiva – a partir de suas
características objetivas mais relevantes, por exemplo: piranhas em relação à
grande quantidade desse tipo de peixe na região (motivação de natureza física)
e ii) de modo subjetivo por associação, por exemplo, aspectos atribuídos ao
lugar pelo nomeador: Deomiro Gouveia e Olho D’água do Casado questões de
cunho sócio-econômico-político.
No que diz respeito às estruturas mórficas dos compostos, observamos que no
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sintagma toponímico Olho D’água do Casado, o segundo elemento linguístico
exerce uma função restritiva. E ainda, os elementos podem ligar-se ao primeiro
de forma mediata Olho D’água do Casado ou imediatamente Deomiro Gouveia,
ou seja, com ou sem o auxílio de conectivo; o processo de adjetivação é um
recurso linguístico importante nesse tipo de topônimo, pois, há um acréscimo
semântico na significação básica do nuclear elemento.
Em suma, as análises revelaram que os topônimos de origem latina, de motivação
de natureza antropocultural (antropotopônimos) e formados por composição
(sintagmas toponímicos) são os mais frequentes no léxico toponímico da
microrregião alagoano estudada.
Finalizamos frisando que esta área de indagação linguística é muito ampla,
tornando este trabalho limitado na forma como aborda o assunto proposto,
longe do ideal, mas que traduz o esforço deste pesquisador com os problemas
atinentes à Microtoponímia alagoana, deixando para outro momento
perspectivas outras de investigação de maior aprofundamento de análises
dos fenômenos toponomásticos. Logo, ficam em aberto possibilidades para
inquirições complementares, tendo em vista que é sempre possível a realização
de análises mais exaustivas dos fenômenos linguísticos.
Referências
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FORMAS DE ENDEREÇAMENTO
DISCURSIVO NA REVISTA CAPRICHO
Olivaldo da Silva Marques Ferreira1*
Resumo: Este artigo trata da segmentação discursiva referente aos textos da
mídia impressa publicados no veículo ‘revista’. Propõe um novo modo de
abordar a relação existente entre mídia e público; argumenta sobre a maneira
pela qual a revista Capricho demonstra a influência do público em seu discurso
e conclui que, a fim de conquistar leitores que consumam periodicamente
a publicação, as revistas de público segmentado utilizam, de forma evidente
e, por vezes, até exagerada, uma linguagem comum a do grupo que objetiva
alcançar.
Palavras-chave: Linguagem. Discurso. Capricho. Influência.
Abstract: This article investigates the discourse segmentation related to printed
media articles published in magazines. It proposes a new way to deal with
the relations between the media and the audience; speculating on the way
Capricho magazine shows the influence of the audience in its discourse. Finally,
it concludes that, in order to win readers who purchase this kind of magazine
periodically these types of magazines make use of explicit colloquial language
that is the same language of the audience it aims to reach.
Keywords: Language. Discourse. Capricho. Influence.
* Ex-aluno dos cursos de Licenciatura em Letras Português, Inglês e respectivas Literaturas e de Especialização em Estudos da Linguagem pela Faculdade SABERES. Professor
efetivo e pesquisador das áreas de Educação e Linguagem do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (Ifes) campus Venda Nova do Imigrante.
Espírito Santo, Brasil. E-mail: [email protected]
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Considerações iniciais
“As notícias são muito mais do que o que acontece.”
Nelson Traquina
Vivemos a chamada “era da comunicação”, na qual os meios de fabricação e
transmissão de informações são dos mais variados tipos e tecnologias. Como
consequência, recebemos diariamente uma verdadeira avalanche de notícias
advindas de todas as partes do planeta (e, mais recentemente, de fora dele
também). O que nos permite a construção e a compreensão do mundo.
Lemos (2002, p. 13), em Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea,
sentencia que a realidade nada mais é do que uma criação compartilhada, uma
dentre as infinitas formas possíveis de se conceber o mundo. Tal afirmação
dialoga com os pensamentos da filósofa Chaui (2001), uma vez que, para a
autora:
Bastaria (...) que uma mesma pessoa, durante uma
semana, lesse de manhã, quatro jornais diferentes e
ouvisse três noticiários de rádios diferentes; à tarde,
frequentasse duas escolas diferentes, onde os mesmos
cursos estariam sendo ministrados; e à noite, visse os
noticiários de quatro canais diferentes de televisão,
para que, comparando todas as informações recebidas,
descobrisse que elas não “batem” umas com as outras,
que há vários mundos e várias sociedades diferentes
dependendo da fonte de informação. Uma experiência
como essa criaria perplexidade, dúvida e incerteza.
(CHAUÍ, 2001, p. 91).
De acordo com Lemos (2002) e Chauí (2001), percebe-se que: 1) a realidade não
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existe por si, trata-se de uma construção coletiva socialmente aceita (de modo
consciente ou não); e 2) serão todos os fatos, manchetes, notícias e acontecimentos
que nos atropelam todos os dias sob o pretexto de informar e entreter que nos
permitirão construir, compreender e compartilhar o considerado real.
Sobre o papel da imprensa nesse processo, Pena (2005) afirma que o
jornalismo:
[...] está longe de ser o espelho do real. É, antes, a
construção social de uma suposta realidade. Dessa
forma, é no trabalho da enunciação que os jornalistas
produzem os discursos, que, submetidos a uma série
de operações e pressões sociais, constituem o que o
senso comum das redações chama de notícia. Assim,
a imprensa não reflete a realidade, mas ajuda a
construí-la. (PENA, 2005, p.128).
Percebe-se, dessa forma, que os fatos noticiados não são, e jamais se propuseram
a ser, meras transcrições do real, mas antes, produto de uma série de operações
e pressões que, por sua vez, ajudam a construir uma suposta realidade. Quando
trata de pressões sociais, o autor se refere àquilo que motiva a elaboração da
notícia, os seus objetivos e propósitos; enquanto as operações representam o
modo como o texto noticioso será construído. Apesar de apresentadas como
pontos diferentes, tratam-se de aspectos indissociáveis, já que as pressões sociais
nortearão, em muitos casos, as operações realizadas. Haja vista que a finalidade
do gênero textual, muitas vezes, determina sua estrutura21.
O processo de construção jornalístico, então, é produto de dois momentos
principais: grosso modo, o primeiro corresponde ao “recorte” feito pelo
jornalista do fato a ser noticiado, ou seja, é o momento em que ele decide o que
é ou não publicável; e o segundo diz respeito à maneira pela qual apresentará
1- Conforme box “O gênero textual e a situação de produção” em CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: linguagens. 5. ed. São Paulo: Atual,
2005. v. 1.
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os (ou a parte dos) fatos selecionados, à escrita propriamente dita: a sequência
de apresentação, as formas de contextualização, as estruturas gramaticais, as
escolhas lexicais etc.
Sobre este segundo tempo da construção da notícia, Lage (2001), afirma que é
possível descobrir, a partir do registro de linguagem e do vocabulário utilizados,
as reais intenções do redator da matéria, bem como seus compromissos
ideológicos. Nesse sentido, Koch (1998) declara que;
[...] o uso de fórmulas de endereçamento, de dada
variante da língua, de gírias ou jargões profissionais,
de determinado tipo de adjetivação, de termos
diminutivos ou pejorativos fornece […] pistas valiosas
para interpretação do texto e a captação dos propósitos
com o que é produzido. (KOCH, 1998, p.44).
Percebe-se, desse modo, que as formas linguísticas estruturantes dos textos
tanto revelam os interesses de quem o escreve (LAGE, 2001) quanto ao público
a que é endereçado (KOCH, 1998).
Para Silva (1998), o público para o qual o texto jornalístico é direcionado
representará a grande pressão social a que se refere Pena (2005), uma vez que:
Ao dizer jornalístico […], para que este possa se
constituir enquanto tal, cabe impor determinados
recortes, instaurando espaços de silêncios. O dizer
da imprensa deve dizer a “verdade”, correspondendo
ao desejo de conhecimento do sujeito leitor: a imprensa se
situa a partir de uma imagem de credibilidade perante
a sociedade, perante seu público (SILVA, 1998, p. 172,
grifo nosso).
O jornalista, seguindo tais princípios, seleciona os fatos e, por fim, opta por
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escrever sobre aqueles que considera mais relevantes para seu destinatário.
Como visto, a maneira como o jornalista expõe a notícia também será fortemente
influenciada por esse “leitor virtual constituído no próprio ato da escrita”
(ORLANDI, 1989, p. 9).
Assim, apesar de possuir relativos poder e autonomia, uma vez que é o
responsável pela redação efetiva da matéria, o jornalista é sempre atravessado
por influências externas. A maior e mais importante delas é a exercida pelo
público leitor; a reação de cada profissional do jornalismo a essa figura imaginária
e individual definirá todo o universo de pessoas reais para o qual o texto será
endereçado. Dessa forma, a configuração de cada publicação remeterá sempre
a um perfil específico de leitor.
A imprensa é vista, socialmente, como o canal entre informação e população.
Entretanto, o leitor é, com base na discussão, percebido como aquele que
determinará, ainda que indiretamente, a maneira como as informações serão
construídas e veiculadas. Dessa forma, a ideia de que o papel de influência é
exercido somente pela mídia, cabendo ao público a função de mero receptáculo
passivo de informações, cai por terra e essa relação passa a ser considerada
como uma “via de mão dupla”, na qual ambos exercem o papel tanto daquele
que provoca quanto do que é alvo de influências.
Com o intuito de concretizar a tese exposta, o presente estudo, perpassado pelas
teorias linguísticas, analisa textos publicados em quatro edições (1.013 a 1.016
- março e abril de 2007) da revista Capricho, periódico quinzenal de circulação
nacional.
Aplica-se, dessa forma, em textos que circulam fora do ambiente acadêmico,
de maneira eficaz e dinâmica, muito da teoria apresentada pela ciência da
linguagem. A proposta é perceber as teorias linguística atuando na construção
de textos do cotidiano, corroborando o valor de verdade (ainda que nunca
absoluta) dessas teorias e contribuindo também para a sua assimilação por
parte dos que se propõem a estudar a linguagem em seu uso concreto.
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Uma revista que capricha
Quando surgiu, no ano de 1952, a revista Capricho prestava-se apenas a publicações
de fotonovelas, na época chamadas “cinenovelas”, dirigidas ao público adulto.
Ainda nesse ano, a revista foi ampliada e passou a tratar de outros temas, tais
como beleza, comportamento, moda e variedades. As fotonovelas ainda eram
o carro-chefe da publicação e foram elas que, no ano de 1956, fizeram com que
a revista rompesse a impressionante marca de quinhentos mil exemplares,
atingindo, na época, a maior tiragem de uma revista na América Latina.
A Capricho, revista mais antiga em circulação pela Editora Abril, existe até hoje,
mas muito diferente do que era no seu surgimento. Atravessando diferentes
gerações, a revista precisou ser reformulada diversas vezes. Alteraram-se o
layout gráfico, o tipo de papel de impressão, o grafismo e o cromatismo; na
realidade, só não foram modificados o nome (Capricho), como também o gênero
do público alvo (feminino). Como produto de todas essas mudanças, tem-se,
atualmente, uma revista composta por entrevistas e muitas seções temáticas
(quase sempre vinte) que se dispõem a tratar desde assuntos relacionados a
adesivos decorativos para unhas até aborto na adolescência, por exemplo, com
semelhante leveza e naturalidade.
Figura 1- ed.169 – março 1966.
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Figura 2 - ed. 1.024 – agosto 2007.
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Essa contínua reinvenção para se adaptar ao gosto do seu público alvo é o que
faz da revista a líder em vendas no segmento. Scalzo (2003), diretora do Curso
Abril de Jornalismo e autora do livro Jornalismo de Revista, afirma que a Capricho
se mantém como favorita em seu segmento justamente porque “acertou o foco
no leitor” (SCALZO, 2003, p. 87).
Em entrevista32 a Allan Novaes para o site Observatório de Imprensa, a então
chefe de redação da publicação, Brenda Fucuta, revela que o seu segredo é não
cair em fórmulas:
A adolescente dos anos 80 era a ‘gatinha’ e sua revista
tinha uma temperatura mais romântica e dócil,
intimista. Nos anos 90, a aspiração era ser modelo:
tivemos uma revista bem preocupada com moda e
marcada pelo tom politicamente correto. Nos anos
2000, os ídolos e a vida real ganharam espaço: época
em que gente comum também vive seu estrelato
(FUCUTA, 2005)
E é categórica ao afirmar que
Uma revista precisa ser lida. E para ser lida ela precisa
ser honesta com o desejo do seu leitor. Temos ídolos
porque as meninas gostam de ídolos. Temos matéria
sobre moda, porque a garota quer ser orientada e não
pagar mico na hora de se vestir. Não costumamos ter
(e me desculpem algumas ONGs): matérias que elas
não lêem (FUCUTA, 2005)
Pela utilização dos substantivos, “adolescente”, “meninas” e “garota” em suas
declarações, Fucuta nos antecipa traços bastante específicos do seu público.
E, por meio de dados divulgados pelo Instituto Marplan (apud SERRA, 2001,
2- Revista Capricho: diversão urgente!, 2005. Disponível em: < http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/diversao-urgente> Acesso em: 18 jul. 2011.
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p.139-141), empresa privada que desenvolve periodicamente pesquisas entre os
leitores de revistas do grupo Abril, foi possível traçar, objetivamente, o perfil
do público da revista Capricho como: feminino, adolescente e pertencente às
classes sociais mais favorecidas financeiramente, conforme as tabelas 1 e 2 que
seguem:
Segundo o instituto Marplan, Do total de entrevistados (31.371), 1.286 leem a
revista Capricho, sendo 226 do sexo masculino e 1.060 do sexo feminino; o total
dos que leem a revista (1.286) é distribuído por classes conforme Tabela 1. Inferese dos dados que leem mais as meninas de maior poder aquisitivo, pelo fato de
que a revista Capricho não apresenta um preço tão acessível.
Encontra-se, também, nessa pesquisa, a informação de que a revista tem um
apelo maior no público adolescente, conforme Tabela 2. O que vai ao encontro
das informações que constam na enciclopédia virtual Wikipédia que declaram
ser a publicação direcionada, atualmente, para o público adolescente de 12 a 19
anos43.
Inventando moda
Mundinho Fashion é o espaço da revista em que são tratados assuntos relativos
à moda, modismos e tendências jovens. A estilista mais pop do Brasil54, Thais
Losso, assina a Coluna da Thais que é publicada na referida seção e que serviu
como corpus para análise.
O leitor virtual a que (ORLANDI 1988/1989, p. 9) se refere demonstra sua
influência nesta coluna desde o seu título, passando pelo tema central,
variedade linguística e nível de formalidade empregados, até as formas de
contextualização. Como mostram os textos publicados nas edições 1013 a 1016
referentes ao período de março e abril de 2007 que embasam e exemplificam as
reflexões a seguir.
3- Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Capricho>. Acesso em: 18 jul. 2011.
4- Conforme se autodefine nas edições nº 1013, 1014 e 1016
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Ao trazer apenas o primeiro nome de sua produtora no título, a Coluna da Thais
assume, logo de início, o tom coloquial e o registro informal da língua com o
objetivo de aproximar leitoras e escritora, dando à coluna característica de texto
escrito por (e endereçado para) pessoas já conhecidas, se não íntimas.
Quanto ao tema, tradicionalmente a moda é considerada ‘coisa de mulher’;
uma coluna, então, que se dispõe a tratar exclusivamente desse assunto vem,
de maneira certeira, ao encontro das expectativas e necessidades deste público,
em especial das adolescentes, já que vestir-se bem e estar na moda nunca foram
tão valorizados por pessoas desta faixa etária quanto nas sociedades atuais, nas
quais o parecer sobrepõe muitas vezes o próprio ser.
A maneira como o tema central (moda) é abordado também se mostra de modo
peculiar e característico por meio das escolhas de Thais Losso, que além das
criações de estilistas ou de últimas tendências, busca dentro do universo de suas
leitoras, elementos que contextualizem e corroborem com suas opiniões e dicas
sobre moda.
Na edição de nº. 1013, de 04/03/07, o pano de fundo para o texto foi reality show
exibido pela Rede Globo de Televisão Big Brother Brasil (BBB). A certa altura da
coluna, Thaís Losso declara que:
(1)
“a maior tendência das meninas (que esteve
nas 7 edições) é a minissaia de lambada (a famosa saia
“Darlene”). Dá para acreditar que ainda tem gente
que usa? Outra coisa que virou mania na casa é flor
no cabelo.”
Sobre os rapazes, analisa:
(2)
“Mas nesta edição os meninos apostaram num
visual bem atual, meio new raper...”
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(3)
“E aquelas camisas exóticas que o Cawboy
usa? A mostarda foi de doer.”
(4)
“Morri de rir o dia que ele [Diego “Alemão”]
tomou umas a mais e baixou o espírito do Supla
nele.”
Ao fim da coluna, Thais revela de maneira sutil e contextualizada as tendências
para o inverno:
(5)
“A calça skinny e os looks futuristas que
bombaram nesta temporada estão longe da nossa
telinha. Seria superdivertido ver um estudante de
moda no BBB. A Mari Moon iria arrasar!!!!!!”
O cinema, uma das principais formas de entretenimento moderno, também
serviu como inspiração para a colunista na edição nº. 1016:
(6)
“O que a maioria das atrizes veste na telona
acaba despertando a nossa vontade de moda enquanto
comemos pipoca no escurinho. E a relação cinema X
moda nunca parou no tempo.”
(7)
“Uma das mais influentes é Lindsay Lohan
(...), basta ela sair numa revista com uma calça jeans
da marca X, para as meninas saírem correndo atrás da
mesma calça.”
Há, portanto, uma espécie de mergulho profundo no universo das leitoras
de onde são retiradas as personagens que permeiam todo o texto. Além dos
citados participantes do BBB, são feitas referências a personagens de novelas
(Darlene, personagem de Débora Secco na novela Celebridade), a cantores como
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o Supla e cita-se também a Mari Moon, apresentadora da MTV (canal que
possui programação direcionada para o público adolescente/jovem) e uma das
figuras mais famosas no mundo virtual por ter recordes diários de acessos em
seu fotolog65 (site onde seus usuários podem mandar todas as suas fotografias e
compartilhar com seus amigos).
Além dessas características que orientam o texto para um grupo etário específico,
há também evidentes marcas de gênero na coluna. Segundo os antropólogos
Maltz e Borkes (apud LINS, 2000, p. 184), “a linguagem feminina é orientada
por normas discursivas diferentes da masculina e isso, então, justificaria as
diferenças entre homens e mulheres no que se refere ao modo de falar”. À luz
dessa afirmação, é possível verificar de que forma Thais Losso endereça sua
coluna para o público feminino.
Em todas as edições analisadas, percebe-se que a autora faz uso de pequenos
questionamentos que são feitos à medida que o texto é construído. Esta é,
segundo Lins (2000, p. 189), uma tendência que demonstra o estilo de linguagem
cooperativo das mulheres que usam as perguntas como uma forma de encorajar
respostas de seus interlocutores e manter a conversa:
(8)
“Tô torcendo pra Siri. E vc?”
(9)
“A frase parece estranha, né?”
(10) “Ele apareceu (...) vestido de astronauta,
acredita?”
Além de aproximar ainda mais as leitoras do texto, haja vista que esse recurso
simula um diálogo entre duas pessoas – confirmando a teoria de que “as meninas
usam o discurso para criar e manter relacionamentos de proximidade” (LINS,
2000, p. 189) –, as perguntas lançadas pela autora conferem maior fluência e
dinamicidade à coluna.
5- http://www.fotolog.com.br/marimoon
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O tom sentimental empregado aos textos é outra característica da coluna. A
maneira coloquial com que a revista se dirige a suas leitoras evidencia esse
tom e, mais do que isso, estabelece uma relação de intimidade, de amizade
(MIGUEL, 2006). Esse sentimentalismo e coloquialismo se manifestam: (A) no
emprego de vocativos afetuosos; (B) no uso de diminutivos; (C) no emprego de
estruturas que simulam a língua falada; (D) no uso de gírias e outras expressões
coloquiais:
(A)
(9) “Oiiiiiiiêeeeeeeee
coração...!!!!”
queridona
do
meu
(10) “Oi queridona, tudo bem?”
(B)
(11) “...que tal falar dos modelitos”
(12) “...não dá para vir com esse papinho de cópia”
(13) “Todas as fofitas aderiram.”
(14) “...a modinha seria tendência;”
(C)
(15) “Como eu amo TV e a-d-o-r-o Big Brother...”
(16) “Genteeeee!!!”
(17) “...as contas da empresa precisam ser pagas e
blablablablabla...”
(18) “Opaaaa! A frase parece estranha, né?”
(19) “...e mostrar que sabe desenhar meeeeeesmo...”
(D)
(20) “Ache a sua estrela favorita e se jogue na
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referência.”
(21) “Tem que viajar e mostrar que sabe desenhar...”
(22) “...mostrar seu olhar para o mundo, soltar a franga
e se jogar.”
(23) “...se você não ousa na passarela, toma gongo por
outros lados.”
(24) “...está boiando nessa área desconhecida.”
Do mesmo modo que as mulheres utilizam muito mais gestualidade e
expressividade corporal que os homens, elas têm tendência a exagerar e se
expressar, na escrita, de modo a intensificar suas mensagens. Nas edições
analisadas, as marcas de exagero, hipérbole e ênfase aparecem, principalmente,
sob a forma do prefixo ‘super’:
(25) “Seria superdivertido ver uma estudante de moda
no BBB”
(26) “Um superbeijo”
(27) “...li um artigo superinteressante”
(28) “Um superbeijãooooo!!”
(29) “...brinco de penas, duas tranças e mil franjas.”
Para Nejaim (2005), os adolescentes, por necessidade de empregar vocábulos
que deem mais clareza a um conceito ou que designem novas significações,
acabaram por criar um caso particular de linguagem que possui características
de gírias, mas, ao mesmo tempo, que inserem-se nas relações comunicativas
com a língua comum. Por essa razão que o discurso do adolescente do século
21 é fortemente marcado por termos e expressões que tiveram como origem a
rede mundial de computadores que, por sua vez, são usados largamente por
Thais em seus textos:
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(30)
“Oiiiiiiiêeeeeeeee queridona do meu
coração...!!! Blz???? A temporada de moda acabou
e confesso que to com uma *@#% preguiça de falar
disso.”
(31) “...se o cara saísse com um berrante pendurado
no pescoço ela nem ligaria... Hahahaha.”
(32)
“Tô torcendo pra Siri. E vc?”
Além disso, expressões pertencentes a outras línguas (em especial ao inglês)
que hoje, graças à globalização e à internet, fazem parte do cotidiano dos
adolescentes pelo menos dos mais ricos, foram agregadas ao léxico jovem no
Brasil:
(33) “A Pink já era new rave antes mesmo de os ingleses
criarem o estilo.”
(34) “E se você acha que este estilo de criação não é
sua praia, don’t worry.”
(35) “Quando estava preparando a coleção Lost in
Space ele apareceu no fim do desfile...”
(36) “Hoje em dia as atrizes da geração young
Hollywood continuam a ditar moda...”
Interessante observar que tais termos só serão de fato compreendidos pelo
público já “iniciado”, que está a par de seus significados simbólicos, deixando
os demais, pelo menos em um primeiro momento, sem captar totalmente o seu
sentido. Além de direcionar, a autora restringe que tipo de leitor entenderá sua
mensagem de maneira completa.
Thais Losso, portanto, busca sempre adequar seu texto às finalidades de seu
ato enunciativo, alcançando uma parcela específica da população; um grupo
com sexo, idade, classe social, áreas de interesse e, por consequência, traços
linguísticos muito bem definidos.
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Considerações Finais
O indivíduo comum, na sua vida em sociedade, acredita receber, graças a enorme
quantidade de veículos e formas de informação que chegam até ele todos os dias,
informações de todos os campos do conhecimento, e toma essas informações
como expressões da realidade já que ultrapassam a experiência vivida por todos
que, por esse motivo, não têm meios para avaliar o que recebem.
Em sociedades capitalistas, movidas pela produção e pelo lucro, essas
informações também se tornam produto a ser vendido. Em O Capital da Notícia,
Marcondes Filho (1989, p. 13), reflete sobre a notícia tomada como bem econômico
ao afirmar que o texto jornalístico é “informação transformada em mercadoria
com todos os seus apelos estéticos, emocionais e sensacionais”. Assim como
qualquer outro bem material produzido em série, a notícia passa, então, a
necessitar de sujeitos que, de alguma forma, se identifiquem com ela para que,
assim, a consumam periodicamente. Inserido na lógica comercial capitalista, o
público leitor assume o papel daquele que compra/consome informação.
Essa necessidade de cativar público comprador é a razão pela qual ocorre o
endereçamento discursivo. Ou seja, a fim de encontrar consumidores, as notícias
passam a ser selecionadas, construídas e expostas de maneira que atinjam e
supram os anseios do público a que se destina.
Há tempos, a Capricho carrega o estigma de revista para pessoas tão fúteis e
superficiais quanto os conteúdos tratados em cada uma de suas publicações. É
bem verdade que ela não tem como tradição a publicação de matérias sobre a
situação política do Brasil ou a respeito dos problemas que envolvam países em
guerra ou outras mazelas que assolam o planeta, como a fome, a má distribuição
da riqueza e o aquecimento global, por exemplo. Entretanto, fato é também que
ela, em momento algum, ao longo de seus quase sessenta anos, se propôs a
tratar de tais assuntos.
Ao invés disso, a revista recorta a realidade, quinzenalmente, a apresenta
para o seu público específico. Essa característica não é exclusiva da Capricho:
geralmente, homens não leem Cláudia, adolescentes não leem Exame, sapateiros
não se interessam pela revista Linux e assim por diante. Confirmando que,
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para cada publicação, há uma seleção dos fatos, das formas de abordagem e da
construção textual, o que particulariza e define seu público leitor.
Se estudo semelhante fosse feito utilizando como corpus qualquer outro
periódico, o resultado seria o mesmo: o público leitor influencia a elaboração
de qualquer texto escrito, sendo as marcas de endereçamento facilmente
identificáveis. Na Capricho, especificamente, Thais Losso cria um leitor ideal
(adolescente, feminino, pertencente às classes mais abastadas, consumidor de
moda, internauta e interessado em cultura pop) e, objetivando a aceitação de
seu texto, utiliza um sistema linguístico comum ao dele. O que nos leva a crer
que estas publicações, de um modo geral, são construídas numa relação de
troca, de alteridade com seus leitores. E “eu sou na medida em que interajo com
o outro. É o outro que dá a medida do que sou” (BAKHTIN, apud KOCH, 2003,
p.15) é a máxima que orienta o fazer jornalístico.
Referências
CHAUI, Marilena. Um convite à filosofia, 13. ed. São Paulo: Ática. 2001.
FUCUTA, Brenda. Diversão urgente! Observatório da Imprensa, v. 16, n. 711, 15
set.2005. Entrevista concedida a Allan Novaes. Disponível em: < http://www.
observatoriodaimprensa. com.br/news/ view/diversao-urgente> Acesso em:
18 jul. 2011
KOCH, Ingedore G. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto,
1998.
______. Desvendando os segredos do texto. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2003.
LAGE, Nilson. Linguagem jornalística. São Paulo: Ática, 2001.
LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea.
Porto Alegre: Sulina, 2002.
LINS, Maria da Penha Pereira. Diferenças de gênero e variação lingüística: uma
análise do discurso gay em tiras de quadrinhos. In: SILVA, A. A. & LINS, M.
P. P. (org.). Recortes linguísticos. Vitória: Saberes Instituto de Ensino, 2000. p.
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183-198.
MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia: jornalismo como produto
social da segunda natureza. São Paulo: Ática, 1989
MIGUEL, Raquel de Barros Pinto. A revista da moça moderna: relações de
gênero e modo de ser femininos estampados nas páginas da revista Capricho
(décadas 1950, 1960). In: Seminário Internacional “Fazendo Gênero 7” –
Gêneros e Preconceitos, Florianópolis, 2006.
NEJAIM, Simone Ribeiro. A língua adolescente: linguagem especial ou gíria?.
Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2005.
ORLANDI, Eni Pulcinelli (org.). Discurso e Leitura. Campinas: Cortez/
Edunicamp, 1988/1989.
PENA, Felipe. Teoria do jornalismo. São Paulo: Contexto, 2005.
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SERRA, Giane Moliari Amaral . Saúde e nutrição na adolescência: o discurso
sobre dietas na Revista Capricho. Tese (Mestrado)- Fundação Oswaldo Cruz,
Escola Nacional de Saúde Pública, 2001.
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TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo, porque as notícias são como são.
Florianópolis: Insular, 2004.
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Estudos sobre
Literatura
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NOS FRAGMENTOS DA MEMÓRIA:
CONSIDERAÇÕES ACERCA DO DIÁRIO
COMPLETO DE LUCIO CARDOSO
Roseane Cristina da Paixão1*
Resumo: Este trabalho tem como objetivo um estudo crítico do texto de cunho
autobiográfico, Diário Completo, de Lucio Cardoso. Num primeiro momento,
entrecruzando vida e obra, e enfatizando as influências que as obras desse
escritor sofreram, traçamos um perfil intelectual do mesmo, com o intuito
de revitalizar a produção artística de Cardoso. A segunda parte da pesquisa
enfoca a obra Diário Completo, considerando seus pontos de aproximação
enquanto gênero diário, porém um diário atípico, produzido e voltado para a
publicação. Consideramos ainda o seu aspecto de arquivamento do vivido e,
com isso, o arquivamento do próprio autor. Aspectos do fazer literário e dos
posicionamentos críticos no que tange às concepções culturais da época são
refletidos na obra do autor. O embasamento teórico sob o qual nos apoiamos
para compor essas considerações fundamenta-se em Michel Foucault, Leonor
Arfuch, Wander Melo de Miranda e Philippe Lejeune. Os conceitos de tais
autores entrecruzam-se possibilitando uma compreensão da obra em questão
como um arquivamento de si que deixa entrever o fazer literário e nuances da
cultura na qual se inseria Cardoso no momento de sua escrita.
Palavras-chave: Diário, Lucio Cardoso, Arquivos, Diário Completo.
Abstract: The present work aims at carrying out a critical study of Lucio
Cardoso’s autobiographical book, Diário Completo. Firstly, we compare the
author’s life and work and we stress the influences that his works had, then
we trace his intellectual profile, intending to focus on his artistic production.
The second part of this research examines the text Diário Completo studying it
as a diary genre, though an atypical diary that was produced and bound for
publication. We also consider its aspect of filing the author’s life. The aspects of
the literary output and of the critical postures concerning the cultural perceptions
of that time are reflected on Cardoso’s works. We based our observations on
the theoretical postulates of Michel Foucault, Leonor Arfuch, Wander Mello
Miranda and Philippe Lejeune. The concepts of these authors are intercrossed
*Promel (Programa de mestrado em letras) UFSJ- São João del Rei, Minas Gerais, Brasil.
[email protected]
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to facilitate the comprehension of Cardoso’s book as a filing of himself which
lets us glimpse the literary works and the nuances of the culture that Cardoso
was inserted in at his time.
Key words: Diary, Lucio Cardoso, Files, Diário Completo.
A produção de cunho autobiográfico: escritas de si
e do outro
Philippe Lejeune, em seu clássico estudo O pacto autobiográfico (2008), publicado
inicialmente em 1971, traça considerações acerca do gênero autobiográfico
propondo conceitos os quais o autor vem reformulando ao longo dos anos. O
autor descreve o conceito de biografia e autobiografia como sendo:
Discursos que se propõem a fornecer informações
a respeito de uma “realidade externa” ao texto e a
se submeter, portanto, a uma prova de verificação.
Seu objetivo não é a simples verossimilhança, mas
a semelhança com o verdadeiro. “Não é o “efeito do
real”, mas a imagem do real” (LEJEUNE, 2008, p.37).
Dentre as ideias proferidas por Lejeune nos anos 70 acerca da temática
autobiográfica, encontra-se a tentativa de conceituação do termo autobiografia
como sendo “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua
própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a
história de sua existência” (LEJEUNE, 2008, p.14).
Ainda segundo Lejeune, seria necessário, para a qualificação de um texto
como sendo autobiográfico, a relação de identidade entre três instâncias: o
narrador, o personagem e o autor. As memórias, diários e demais textos de
cunho autobiográfico podem ser considerados como escritas do “Eu”. Embora
possuam uma estreita relação, possuem também diferenças substanciais entre
si. Dentre as diversas formas de escrita de si, faremos algumas considerações
acerca das memórias, biografias, autobiografias e dos diários íntimos.
Há um limite muito tênue entre as autobiografias e as memórias, enquanto gênero
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literário. A autobiografia é definida como um “ato de discurso literariamente
intencionado (...) a vida do indivíduo escrita por ele mesmo” (MIRANDA, 1992,
p. 25). Miranda considera ainda o fato de que na autobiografia o foco está mais
centrado na subjetividade, no próprio indivíduo, ao passo que nas memórias,
a vida do indivíduo encontra-se mesclada, contaminada por acontecimentos
vivenciados ou vistos. A autobiografia foca-se em quem o indivíduo foi, ele
predomina na escrita. Ainda assim é difícil para o narrador escrever a história
de vida sem incluir as questões sociais do espaço a que pertence, criando,
portanto, uma “ilusão da escrita autobiográfica”, ou seja, a ilusão de que se
escreve sem considerar o coletivo a que se pertence, de modo imparcial e isento
de interferências que tornam o narrado passível de dúvidas quanto a sua
veracidade.
Philippe Lejeune (2008) traça considerações acerca dos aspectos ficcionais e
reais das obras memorialísticas. Segundo o autor, a autobiografia é um ato real
que possibilita a sua verificação e o pacto autobiográfico, firmado entre autor
e leitor, é um fator que colabora para a verossimilhança dos fatos. A obra é
elaborada com a intenção de que o leitor compreenda os acontecimentos como
verdadeiros, desta forma havendo um pacto entre autor e leitor. Lejeune reflete
sobre o conceito de pacto autobiográfico, para que se compreenda o processo
seletivo e a interferência do imaginário criado na escrita de memórias e
autobiografias. Portanto, a diferença entre memórias e autobiografia não é muito
nítida, uma vez que depende da ampliação das lembranças expostas no texto,
mais voltadas para os envolvimentos sociais ou mais voltadas para o âmbito
social e familiar, mas perpassadas por ambos. Dessa forma, não podemos tomar
o Diário completo, de Lucio Cardoso, como verdade absoluta.
As autobiografias são vistas como confissões escritas por quem as vivenciou,
tendo no indivíduo o foco de suas colocações. Independente do contrato ou
formato do texto, os sentimentos do autor “parecem” ser expostos. Autobiografarse equivale a produzir para o outro um discurso sobre si no qual entrevemos
nuances que mostram como o autor chegou a ser quem ele é no presente da
escrita.
As memórias, por sua vez, podem ser compostas de fatos que podem ser
alheios à vida do narrador, ou seja, o exposto pode se referir a outrem. Certos
textos memorialísticos são destituídos de caráter sentimental, focando-se em
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acontecimentos da coletividade. Nas memórias, há certo compromisso em ser
preciso, exato nas colocações, uma vez que elas dizem respeito a um grupo,
ao coletivo, ao passo que nos escritos íntimos o narrador não é, em absoluto,
obrigado a ser fidedigno ao real.
Memórias, biografias, romances pessoais, poemas autobiográficos e os próprios
diários seriam, então, considerados por Lejeune apenas como gêneros vizinhos
da autobiografia. Diante da impossibilidade de formalização de uma definição
para tal termo, o autor viu-se obrigado a rever seus conceitos e aceitar o fato
de que sistematizá-lo implicaria em uma série de equívocos, dentre os quais a
desconsideração dos exemplos que não se adequavam ao padrão proposto.
O diário de Lucio Cardoso e as mil faces
do autor
Nos anos 30 há, no Brasil, dentro da perspectiva da historiografia literária,
a produção de uma literatura “classificada” como regionalista, entretanto,
escritores como Lucio Cardoso, contemporâneo a este grupo, desenvolveram
uma literatura intimista, da qual faz parte seu diário, texto memorialístico
escrito com vistas à publicação.
Lucio Cardoso nasceu em Curvelo, Minas Gerais, em 1912, e faleceu no Rio de
Janeiro, em 1968. Aos vinte e três anos escreveu o seu primeiro livro, Maleita,
obra de cunho regionalista muito bem recebida pela crítica. Cardoso atuou em
várias áreas: escreveu poemas, romances, crítica, peças de teatro, roteiro de
filmes, trabalhou como jornalista, atuou também como artista plástico, sendo
que seus quadros participaram de várias exposições. Seu livro mais conhecido
é Crônica da casa assassinada (1968).
Em 1962, Cardoso sofreu um derrame e tornou-se hemiplégico, tendo o lado
direito do seu corpo paralisado, tornando-se dessa forma impossibilitado de
exercer atividades como a fala e a escrita. A pintura passou a ser sua forma de
manifestação artística, atividade que exerceu até o dia de sua morte, em 24 de
setembro de 1968.
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O trabalho literário de Cardoso encontra eco nas obras de Clarice Lispector,
Cornélio Pena, Otávio de Faria, dentre outros em que há o predomínio da
introspecção. Péguy, Bloy, Fidelino de Figueiredo, Mauritain, Gide são alguns
autores que exerceram influência sobre os escritores espiritualistas, grupo no
qual inserimos o autor. As características de sua produção espiritualista podem
ser notadas, tanto na produção de seu diário quanto na elaboração de seus
romances, novelas, peças de teatro, e nas mais diversas manifestações artísticas
apresentadas por ele.
O Diário Completo: uma produção atípica
Impressões de leitura, opções musicais, eventos sociais e todo um contato com a
efervescência cultural de uma época estão presentes no diário de Cardoso.
A vida do autor possuiu uma estreita ligação com as artes em geral, fato que
muito influenciou a produção de suas obras. Ele também foi leitor de Göethe,
Poe, Byron, Baudelaire, Nietzsche dentre tantos outros escritores cuja melancolia,
introspecção e morte são temáticas recorrentes em suas obras. Herdou desses a
mesma capacidade de adentrar-se em si mesmo a fim de buscar material para
a construção de seus poemas e narrativas. Admirador de obras de arte e da
música clássica, frequentador de círculos literários, Cardoso deixa expresso em
seu diário o quanto a efervescência cultural da época em que viveu e atuou
influenciou suas obras.
O seu diário envolve a questão da memória subjetiva, ainda que inserida
em uma coletividade, e da memória cultural, ou seja, memórias pessoais
aparecem associadas, de maneira peculiar, à realidade cultural de uma época.
Compreender a importância de Lucio Cardoso como homem agente e receptor
do meio cultural é primordial para a compreensão de seu texto memorialístico:
1- Ontem, finalmente, iniciamos a filmagem de ‘A
Mulher de Longe’ (CARDOSO, 1970, p. 13).
Leitura: Leio atualmente a correspondência entre
André Gide e Francis James (CARDOSO, 1970, p. 16).
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Uma característica determinante do diário diz respeito a sua funcionalidade:
escrever sobre um tempo que decorre, daí a importância da datação do narrado.
As datas marcam, por sua vez, o tempo e o lugar daquilo que foi dito: um dia
narrado pode deixar explícito o lugar em que o sujeito estava. A inscrição de
datas, estações do ano, horas, possibilita ao narrador uma ideia de dominação
mais completa daquilo que ele vem produzindo: a vida captada. Louis Hay (2007)
diferencia diários de carnês. Os diários são marcados pela sua funcionalidade:
registram o cotidiano para a posteridade. Por possuírem datação, podem situar
o seu autor em um determinado contexto histórico.
O diário de Lucio Cardoso mantém certa ordem cronológica na narrativa dos
fatos, apesar de possuir algumas anotações cujas datas estão ausentes. No
entanto, o pacto do calendário é, em geral, respeitado pelo autor.
Ainda que sejam uma espécie de reservatório potencial de textos, os diários
tradicionais não podem ser considerados efetivamente como objetos de trabalho
dos escritores como o são os carnês. Os carnês participam sobremaneira da
gênese das obras dos escritores, contendo fragmentos daquilo que virá a ser
publicado posteriormente, de forma mais elaborada. As anotações dos fatos
cotidianos se entrecruzam com divagações e projetos literários, rascunhos de
cartas, anotações de diversas procedências. Os carnês são considerados ainda
cadernetas que se destinam ao apontamento imediato das impressões surgidas
de repente, dos clarões e inspirações que se tornam logo fugidios se não
anotados prontamente, auxiliando sobremaneira no trabalho de construção da
obra literária dos autores.
Alguns diários, como o de Cardoso, são equivalentes dos carnês, considerados
por Hay (2007, p.213) como objetos de trabalho uma vez que mostram tanto o
fazer literário quanto a vivência cotidiana. Consideramos tal ocorrência uma
vez que o diário em questão é atípico e não voltado apenas para a narrativa do
cotidiano. Vejamos uma passagem do Diário completo:
Não esquecer a chuva forte, contínua, em bátegas
cerradas, que vi ontem à noite; diante de mim
ela se desenlaçava em grandes véus ondulando
pesadamente, com a ciência e a graça de uma
cortina aberta no espaço imenso e escuro. Depois o
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aspecto cataclísmico da cidade, das ruas cheias, luzes
apagadas, o trânsito impedido, o mar calado sob a
inesperada violência do céu - e através de tudo isto,
sopro misterioso, incessante, cheio de mais solene
pureza, o vento, o vento que chegava de longe como
de uma ressuscitada época bíblica, trazendo não sei
que inidentificável lembrança de pranto, odor de
velas queimando e morte – alto, majestoso, esmagador
sentimento de morte, que fazia as árvores inchadas
se erguerem mais alto, com seus brancos olhos
fascinados em expectativa na escuridão (CARDOSO,
1970, p.57).
O escritor não teve um face a face, um leitor implícito ou não, um púbico
desconhecido desde o instante em que se iniciou a sua escrita? O diário íntimo
pressupõe a inexistência de um leitor que não o seu próprio criador. No entanto,
esse mesmo criador, ao voltar os olhos para a escrita de acontecimentos passados,
torna-se um outro diferente de quem viveu o exposto. Além desse outro que
surge da nova leitura, alguns escritores, como Cardoso, apresentam seus textos
memorialísticos a outras pessoas próximas, para que essas opinem a respeito do
andamento da escrita:
A opinião de J. a quem confiei este Diário paralisoume durante algum tempo. Volto agora, não com o
objetivo de realizar qualquer espécie de ideal literário,
mas apenas por uma...vamos dizer, uma disciplina
do espírito, já que carecemos de alguma coisa por
mais leve que seja. Não quis, pelo menos até agora,
transformar este caderno numa exposição de ideias.
[...] mas neste caso acho quase inútil esclarecer - é o
que legalmente se incorporou a mim: sigo de novo o
caminho, pensando que talvez um dia estas folhas me
sirvam. E com a certeza de que se a opinião dos amigos
ajuda, muitas vezes atrapalha. [...] também é verdade
que os amigos acertam, indo direto ao objetivo, sem
prestar atenção aos detalhes. Mas em obras como esta,
sem pretensão e sem objetivo, não são precisamente
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os detalhes que mais nos interessam? (CARDOSO,
1970, p. 122-123).
O pacto entre leitor e autor se expressa, portanto, de forma diferenciada nos
diários tradicionais e no diário em questão. Tal pacto é excluído nos diários
tradicionais visto que estes são “uma escrita cuja especificidade é o seu maior
segredo” (MIRANDA, 1992, p.34). Na obra memorialista de Cardoso, uma vez
que foi produzida com vistas à publicação, há sim, este pacto entre autor e
leitor. Lucio Cardoso entrega seus cadernos particulares nos quais registra suas
vivências, sobretudo a amigos íntimos, com os quais trocava opiniões acerca
dessa leitura, as quais nem sempre acatava.
Fatores externos influenciam na produção de ambos os escritores permitindo
que o narrado torne-se ainda mais verossímil. Devemos considerar a escrita
de Cardoso não como um retrato fiel do vivido, mas como uma encenação da
vida por ele mesmo. Por meio de seus apontamentos pessoais, ele torna-se
personagem de sua própria história tornada ficção.
A criação de suas obras é narrada em seu diário como um processo lento e
doloroso, como se as mesmas se encontrassem no autor de uma forma gestacional:
“Sinto dia a dia o romance dilatar-se em mim – dilatar-se ao máximo, a ponto de
transbordar e começar a ser outra história” (Cardoso, 1970, p.144).
O processo de criação da Crônica da casa assassinada e de O viajante percorre toda
a narrativa do Diário completo, como podemos notar nas passagens abaixo:
25-01-1951
Lamento o tempo que desperdiço ou que não
encontro para escrever O Viajante. O livro está de tal
modo maduro, tão presentes sinto seus personagens e
o frêmito que lhes dá vida, que às vezes vou pela rua
e sinto que não sou uma só pessoa, mas um acúmulo,
que alguém me acompanha, sardônico e vil, repetindo
gestos que agora são duplos, embaralhando minhas
frases, com uma ou outra palavra que não pertence à
realidade, mas ao entrecho que me obseda (CARDOSO,
1970, p.144)
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Os diários, enquanto forma de escrita literária, possuem como material
pensamentos, divagações cenas do cotidiano, considerações, dentre outros,
com o propósito de iniciar uma relação de autoconhecimento do autor consigo
mesmo, além de confessar algo “como quem faz confidências no fundo de
um bar” (CARDOSO, 1970, p. 6). O escritor sente a necessidade de expor suas
verdades a si mesmo:
Aquela mesma angústia fria, aquela dor sem doer que
se espalha pelo corpo inteiro. Arrumo, desarrumo,
faço, e refaço. Ah, como é difícil ser calmo. Enchome de remédios, vou à janela: é a noite, a noite dos
homens, a minha noite. Ruídos de carros que passam
na escuridão, Rádios abertos. Vultos que transitam
em apartamentos acesos. E eu, e eu? Onde vou, que
faço?
Ouço a voz de Cornélio Pena - naquele tempo - “o
seu sofrimento é um sofrimento bom, de permanecer
à margem.” Não há, Cornélio, pior sofrimento do que
permanecer à margem. Não tenho temperamento
para isto. Quero amar, viajar, esquecer – quero
terrivelmente a vida, porque não creio que exista nada
de mais belo e nem de mais terrível do que a vida. E
aqui estou: tudo o que amo não me ouve mais, e eu
passo com a minha lenda, forte sem o ser, príncipe,
mas esfarrapado (CARDOSO, 1970, p. 304).
A forma inusitada com que Lucio Cardoso escreveu seu diário pode ser
atribuída ao fato de que a escrita das próprias vivências, além da necessidade
de transmissão de fatos e atos íntimos, desconhecidos, além da vontade de
imortalizar o autor pela escrita, pressupõe “a vontade de manter em boa forma
uma memória mais criadora que repetitiva” (LE GOFF, 1994, p. 430). Cardoso
produz uma narrativa de cunho memorialista que não se pauta no simples
arrolamento de fatos cotidianos, ainda que para isso, em muitas partes, faça de
seus textos memorialísticos uma espécie de diário não íntimo, abrindo mão do
tom confessional explícito, ficando este encoberto por não-ditos. Os diários são
uma forma de escrita autobiográfica cuja maior particularidade se deve ao seu
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caráter fragmentário e sigiloso. Mas no caso de Cardoso, ele não deseja o sigilo,
e sim a publicação de suas obras.
Alguém, que acaba de folhear estas páginas, indagame: por que você nunca cita fatos , nem se refere ao que
realmente lhe acontece? Quem me faz essa pergunta
tem dezessete anos e só a mocidade, evidentemente,
justifica a pergunta (CARDOSO, 1970, p. 271).
O pensamento reflexivo e a confissão, ainda que subentendidos, são intercalados
pelo social, pelo cultural e pelo histórico que se fazem notar por meio de alusões,
como pudemos ver na obra de Cardoso.
Arquivos do “Eu”: transitando pelas vias da memória
Escrever um diário e guardar papéis equivale a escrever uma autobiografia,
práticas que se inserem no âmbito daquelas que revelam uma preocupação com
o sujeito.
Produzir as próprias memórias a fim de se fazer a releitura de um tempo ou
como forma de reafirmar ou constituir uma identidade nacional ou individual
tornou-se um tema constante entre os escritores, sejam eles consagrados ou não
pelo cânone literário. As últimas décadas representaram, portanto, um terreno
fértil no que diz respeito ao desenvolvimento de estudos memorialistas e da
produção de biografias, autobiografias e memórias intelectuais que contribuem
a seu modo para a preservação da memória literária e cultural brasileira.
Segundo Andréas Huyssen:
Um dos fenômenos culturais e políticos mais
surpreendentes dos anos recentes é a emergência
da memória como uma das preocupações culturais
e políticas centrais das sociedades ocidentais. Esse
fenômeno caracteriza uma volta ao passado que
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contrasta totalmente com o privilégio dado ao futuro,
que tanto caracterizou as primeiras décadas da
modernidade do século XX (HUYSSEN, 2000, p. 9).
Há, segundo o Huyssen, nessa tendência de aprisionar o passado,
nessa obsessão pela memória, uma musealização do mundo, ou seja, um apego
desmedido pelo resguardo de bens, documentos, lugares históricos, tradições,
dentre outros para a posteridade, lembrando-se que “nunca antes o presente
esteve tão obcecado com o passado como agora” (LÜBBE, apud HUYSSEN,
2000, p. 27).
Leonor Arfuch (2010) considera que a sociedade, bem como a noção de
subjetividade vem sendo reconfigurada nos últimos anos devido a uma série de
fatores que tem levado a um declive da vida e da cultura públicas e ao aumento
dos pequenos relatos.
Ainda segundo a autora, a abertura da intimidade, o individualismo e a “crença
na realização pessoal como objetivo máximo, se não único – da vida” podem
ser apontados como aspectos negativos desse processo de ruptura social. No
entanto, tal processo, denominado pela autora como giro subjetivo possui ainda
nuances positivas tais como as “estratégias de autoafirmação, recuperação de
memórias individuais e coletivas” (ARFUCH, 2010, p. 3), sobretudo em relação a
experiências traumáticas, a busca de reconhecimento de identidades e minorias,
a afirmação das diferenças, sejam elas no âmbito sexual, étnico, cultural ou de
gênero. Dessa forma, o que ocorre é, então, a tendência da literatura em tornarse o que Arfuch chama de autoficção.
O que notamos na contemporaneidade é a necessidade do homem em destacarse da massa homogênea que se tornou a sociedade, a necessidade de mostrarse singular frente à coletividade. Uma das funções da crítica da cultura é
possibilitar que novas vozes possam ser ouvidas, daí a importância do estudo
de objetos antes silenciados, marginalizados pelo cânone literário ou por outras
forças opressoras. Tais vozes encontram nos Estudos Culturais terreno fértil
para a exposição de suas propostas.
É incontestável o sucesso que as biografias, autobiografias, diários e memórias
têm alcançado na atualidade. Um dos motivos que retiraram tal tema do limbo
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da crítica literária, trazendo-o à discussão de forma tão renovada e valorizada,
deve-se ao fato de que o estudo do gênero autobiográfico impulsiona os Estudos
Culturais rumo a uma mirada privilegiada para o estudo das individualidades
que compõem o tecido social. Seria pelo individualismo contemporâneo, pelo
interesse em se conhecer uma outra versão do passado que não a da historiografia
oficial, ou puro voyeurismo? Tais questões encontram-se no topo das discussões
críticas atuais em várias áreas do conhecimento. Focamos, portanto, os nossos
estudos na chave teórica culturalista, considerando, sobretudo, para tal, além
do supracitado, que Cardoso foi um agente construtor e crítico da cultura.
Os estudos memorialísticos, no âmbito acadêmico, também estão em voga, sendo
que o interesse pelas histórias individuais tem sido comuns nas mais diversas
áreas: História, Psicologia, Antropologia, Sociologia, Ciências Políticas, dentre
outras. Dizemos histórias individuais no sentido de que um único homem conta
os fatos acontecidos consigo, no entanto, tais fatos estão inseridos no contexto de
uma coletividade que não pode ser desconsiderada, uma vez que deixa marcas
aparentes de sua presença no narrado.
As diferentes disciplinas que lançam seus olhares diversos rumo às escritas de si
possibilitam que esse tipo de produção, que enfoca o “Eu” sem menosprezar o
“Nós” seja pensada, não como um gênero discursivo dentre tantos outros, cuja
semelhança o situe em uma grande família de gêneros afins, mas, sobretudo,
como um “vetor analítico e crítico da sociedade contemporânea”, como aponta
Leonor Arfuch (2010).
Gêneros literários considerados canônicos, no que diz respeito a sua produção
e não à crítica literária acerca de si, como as confissões, as autobiografias, as
memórias, os diários íntimos e as correspondências têm, na atualidade, somado
forças com as novas formas de inscrição do “Eu”. O avanço tecnológico no
campo das comunicações tem possibilitado uma série de novos meios de
difusão do arquivamento e da exposição da vida íntima. Wander Melo Miranda
(1992) considera necessário, para a compreensão da origem e do progressivo
desenvolvimento das chamadas escritas do eu, recuar no tempo e observar a
questão do indivíduo desde a Antiguidade.
Miranda (1992) nos mostra como Michel Foucault analisa a Vita Sancti Antonii,
em que Atanásio, bispo de Alexandria, narra a vida de Santo Antão, considerando
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para tal mais que uma simples cópia dos acontecimentos exteriores. Atanásio
faz uma reflexão sobre os conflitos íntimos de seu biografado. Essa pode ser
considerada a primeira biografia psicológica da literatura mundial. Foucault,
ao analisar essa escrita, mostra como a anotação pessoal e dos pensamentos
funciona como instrumento para o autoconhecimento. Segundo o autor, a
escrita de si está intrinsecamente ligada com a anacorese, em uma relação de
complementaridade. O homem escreve suas vivências para confessar seus
pecados e como um exercício de autoconhecimento, a um só tempo. Foucault
traça ainda considerações sobre os hypomnemata:
Os hypomnemata podiam ser livros de contabilidade,
registros notoriais, cadernos pessoais que serviam
de agenda. O seu uso como livro de vida, guia de
conduta, parece ter-se tornado coisa corrente entre um
público cultivado. Neles eram consignadas citações,
fragmentos de obras, exemplos e ações de que se tinha
sido testemunha ou cujo relato se tinha lido, reflexões
ou debates que se tinha ouvido ou que tivesse vindo à
memória (FOUCAULT, [s.d.], p.135).
Adriana Helena de Oliveira Albano também traz, em sua dissertação de
Mestrado, considerações acerca desse processo de autoconhecimento:
Dentro desse universo da literatura, pensamos no
gênero de memória como algo através do qual o
homem procura, por meio do ato de rememoração,
algo que dê razão a própria existência, composta
de passado, presente e futuro. O ser busca algo que
promova uma reflexão de si e da sociedade, fato que
poderá lhe garantir um sentimento de “domínio” da
própria vida, de sua existência (ALBANO, 2005, p.8).
O indivíduo faz uma tentativa, através da escrita, de se conhecer e de se
aperfeiçoar.
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Desde que nascemos somos inseridos em um universo que exige nosso
arquivamento seja na vida diária, no espaço social, na esfera familiar ou em
quadros de práticas científicas ou comunitárias. Inúmeros são os motivos que
levam o homem a arquivar-se e a ser arquivado pelos outros, e constantes são
os questionamentos acerca dessa necessidade de se arquivar, sobre quais os
motivos que nos levam a essa prática e quais as implicações desse arquivamento
em nossas vidas.
Quase tudo em nossas vidas passa por um pedaço de papel, no entanto,
guardamos apenas uma porção mínima desses, uma vez que certas práticas
induzem à perda. Nós somos impossibilitados de reter todos os elementos da
vida e, esporadicamente, uma triagem é feita em nossos papéis, por nós mesmos
ou por outras pessoas.
Em nossa sociedade impera a ordem de mantermos nossos arquivos em dia para
que possamos existir, para que possamos nos inscrever em um meio, no qual
direitos sociais nos são fornecidos mediante a apresentação de nossos arquivos
pessoais devidamente atualizados. Os arquivos são responsáveis, dentre outras
coisas, pela integração ou pela exclusão social.
O homem arquiva-se ainda com a finalidade de manter a sua identidade
reconhecida, como uma forma de autoconhecimento e de controle de sua vida,
bem como para resguardar-se de alguma forma contra a passagem do tempo.
Escrever as memórias individuais, ainda que estas não representem o passado
fidedignamente, significa para o homem o domínio lento e gradativo de seu
passado, ao passo que a história significa uma forma de controlar o passado
individual e da coletividade.
Lucio Cardoso traça um panorama da realidade social, histórica e cultural pela
qual passa o país no período que compreende a sua obra, fazendo desta um
misto de relatos pessoais e de narrativas da nação. História, memória e cultura
conjugam-se, como vimos, no Diário completo:
29-Domingo - Chega Regina, minha irmã mais velha,
que ao deparar com minha mãe, diz: Ela está muito
mal!”- Não, digo eu, não está mal, está morrendo.*
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Quase às dez horas da noite achava-me em casa de
Walmir Ayala, quando fui chamado: minha mãe
estava à morte. A notícia não me surpreende, e saio
de lá correndo, esquecendo o paletó. A casa já cheia
de gente, todos os meus irmãos estão presentes.
Há um rumor de festa pelas ruas, fogos estalam de
todos os lados, o Brasil acaba de ganhar a Copa do
Mundo. Um frade franciscano (Frei Romano) acaba
de fazer a encomendação especial, já que é válida a
extrema-unção que recebeu a tempos. Saio por alguns
minutos, a fim de atender pessoas que chegam - e
afinal, quando regresso, ajoelhando-me ao chão, em
companhia dos outros irmãos, vejo-a pender a cabeça
e exalar o último suspiro (CARDOSO, 1970, p.257).
Ao lançarmos um olhar para os diários, devemos atentar para um fator
importante que diz respeito à questão da intencionalidade no ato de confeccionar
a obra memorialística. O diário íntimo não registra todas as experiências vividas
por quem o produz, mas apenas certas passagens as quais são consideradas
mais significativas, além do fato de certas circunstâncias serem omitidas por
inúmeros fatores. No ato de arquivar-se pela escrita há ainda um constante
voltar de olhos para o passado.
28- Recopio o primeiro volume do meu Diário com
grande morosidade, sentindo que envelheci, que
minhas idéias mudaram. É difícil resistir à tentação
de intervir , de reformar tudo – mas então já não seria
um Diário e sim uma obra composta, um livro de
ensaios. (CARDOSO, 1970, p.196)
Albano (2005, p. 8) considera que “no processo de redescoberta, o passado é
repensado e armazenado de uma nova maneira”.
Arquivar-se representa, portanto, uma prática plural e incessante, uma vez que
o homem está em constante contato com o outro que surge do olhar diferencial
lançado ao passado, bem como em contato com elementos externos que
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interferem na produção dessas memórias.
Ao sentir que o corpo físico começa a manifestar certo esmorecimento, quando
a sensação de jovialidade entra em declínio, o homem sente a necessidade de
buscar, no passado, subsídios que o revitalizem e tragam à tona resquícios de
fatos transcorridos, aos quais se agarra numa última tentativa de reviver tais
lembranças como se fossem atos presentes.
A passagem do tempo é encarada, então, como algo corrosivo e de força
terrivelmente destruidora, que deve de algum modo ser enfrentado.
O ato de arquivar-se por meio da escrita representa uma luta contra a
inexorabilidade temporal. A memória escrita representa, para o memorialista,
uma arma contra a ação do tempo, uma vez que essa lhe permite revisitar tempos
idos e perpetuar suas vivências para além-túmulo. Quando seu corpo físico não
mais existir, restarão suas memórias, seu arquivo de si, para perpetuar o seu ser.
Marta Cavalcante de Barros considera que:
A memória surge como uma busca da reversibilidade
do tempo, sendo uma construção da percepção.
Essa percepção está associada ao passar do tempo:
a memória supõe o tempo como seqüência, mas o
suprime enquanto o sujeito vive a simultaneidade.
Surge como a possibilidade de amenizar um presente
que indica como único caminho a extinção. (BARROS,
2002, p.107)
Vãos, no entanto, são os esforços do homem nessa tentativa de reconstituir o
tempo perdido, uma vez que as imagens passadas não podem ser plenamente
recompostas.
O rememorar encontra-se intrinsecamente atrelado ao esquecimento. Do ato de
se tentar recuperar o passado emerge uma forte carga imaginativa capaz de
manipular, ainda que inconscientemente, elementos que podem modificá-lo.
Huyssen busca nas considerações de Freud subsídios que tornem mais clara a
relação memória/esquecimento:
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“Mas Freud já nos ensinou que a memória e o esquecimento estão indissolúvel e
mutuamente ligados; que a memória é apenas uma outra forma de esquecimento
e que o esquecimento é uma forma de memória escondida” (HUYSSEN, 2000,
p.18).
Cardoso, como sujeito consciente da existência da morte e da inexorabilidade
do tempo, decide travar uma luta contra o esquecimento, ao escrever suas
memórias, mesmo que estas sejam indizíveis, proibidas ou vergonhosas.
Escrever as memórias é, então, uma forma de tornar-se imortal.
Nesse processo de relembrar o passado há uma nova forma de ver os fatos, uma
vez que o homem de hoje não é o mesmo de ontem, bem como as circunstâncias
nas quais ele está inserido. Há uma redescoberta de si por meio da recriação das
memórias através da escrita. Neste caso, o esquecimento atua como uma válvula
propulsora dessa reação de apreensão das novas dimensões da realidade, do
afloramento da imaginação e da formação de lembranças, nem sempre fiéis à
realidade. O ato de recordar, por meio do Eu arquivado, faz com que o homem
tire lições do passado.
06-05-1950
Não sei quem inventou o diário íntimo, que alma
tocada pela danação e pelo desespêro do efêmero
– sei apenas que relendo páginas de meses atrás,
senti-me de repente com o coração tão pesado que
não pude continuar. Ah, como mudamos e como
mudamos depressa! Como perdemos tudo, como os
sentimentos mais fortes se dissolvessem, como a vida
é um contínuo e tremendo aniquilamento! Ah, como
compreendo, sinto e vejo os meus desastres, os meus
erros, os meus enganos! (CARDOSO, 1970, p.59)
Philippe Artières considera ainda que “Devemos controlar nossas vidas. Nada
pode ser deixado ao acaso; devemos manter arquivos para recordar e tirar lições
do passado, para preparar o futuro, mas sobretudo para existir no cotidiano”
(ARTIÈRES, 1998, p.14).
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Podemos considerar, assim como o fez Artières, que a autobiografia é a prática
mais acabada do arquivamento de si, possibilitando ao autor escolher alguns
acontecimentos e ordená-los numa narrativa. A escolha e classificação desses
acontecimentos é que vai definir o sentido que a escrita vai dar à vida do
escritor.
Considerações Finais
Para a confecção das considerações supracitadas, o foco dos estudos direcionouse para o escritor Lucio Cardoso e para a sua obra Diário completo. Um breve
perfil biográfico/literário/cultural do autor foi composto, numa tentativa de se
justificar a relação entre a sua vida e a sua obra: ambas obsedantes. Procuramos
trabalhar esse autor, considerando os pontos mais marcantes de sua vida,
da infância em Curvelo à morte no Rio de Janeiro. No que diz respeito à sua
produção crítica e literária, consideramos as muitas frentes nas quais Cardoso
agiu, as influências que atuaram sobre a sua produção.
Categorizamos, com o intuito de diferenciar os gêneros memória, diário, carnê,
autobiografia, biografia levando-se em conta sua composição. Por memória
consideramos os textos que tratam de assuntos relativos a uma coletividade e
contrapõem-se às autobiografias no sentido de que há o predomínio de um nós
em detrimento de um “Eu” individual, ainda que em ambas haja a amálgama
composta por elementos individuais e coletivos.
As biografias correspondem à vida do indivíduo, inserido no contexto social,
produzida por terceiros, ao passo que nos diários, considerados como um
gênero autobiográfico, o próprio indivíduo toma nota de suas vivências com
uma interrupção temporal mínima entre o narrado e o vivido.
Um outro fato importante, e que pode ser observado com o estudo do diário
aqui citado, diz respeito à veracidade do escrito. Concordamos com as palavras
de Louis Hay, ao dizer que “A verdade sobre o vivido nem sempre é a verdade
sobre o escrito” (2003, p.73). Com isso fica marcada a instabilidade da escrita
e a necessidade de se manter um distanciamento do corpus em estudo. A
sedução da linguagem utilizada pelo autor de textos autobiográficos, bem
como o voyeurismo do leitor diante dos diários, as memórias, as biografias
e as autobiografias tão presentes na cultura atual corrobora a necessidade de
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distanciamento que deve ser tomado por parte de quem visita os arquivos ou
as escritas íntimas.
Posteriormente, tratamos do diário, considerando-o como uma forma de
arquivamento de si. Levamos em conta, ainda, o caráter ficcional da construção
desses arquivos. Discutimos ainda acerca dos diversos meios de escrita de si,
seus pontos de confluência e divergência, bem como a composição desse tipo
de escrita.
Fomos levados a considerar o diário cardosiano como uma forma de
arquivamento do escritor, no qual o mesmo faz uma releitura de quem ele é,
aprende e reinventa-se por meio da representação pela escrita, em um duplo
trabalho de recriação, uma vez que escrever pressupõe uma reinvenção, e
escrever voltado para um público reafirma essa reestruturação de si. Foucault,
Miranda, Artières e Hay embasaram as nossas colocações acerca da necessidade
e do papel do arquivamento de si.
O modo como Cardoso decidiu arquivar suas memórias, transpondo o vivido
para a escrita faz com que nos deparemos com um homem que atua, de uma só
vez, como narrador e personagem de sua própria história. História que mescla
elementos da vida individual com os fatos da coletividade.
O estudo das escritas de si permite entrevê-las como práticas culturais de
determinado tempo e espaço, de uma sociedade, enfim. Escritas que se
diferenciam em determinados aspectos, no entanto, tangenciam-se em outros
tantos, relacionando-se, sobrepondo-se ou contradizendo-se.
Arquivando-se por meio de seus apontamentos íntimos, em seu diário, Cardoso
manteve-se, de certa forma, vivo para as gerações que o sucederam. Além de
imortalizar-se pelo arquivamento, trouxe consigo aspectos de uma sociedade:
a cultura, a política, o comportamento, além de uma infinidade de outros
aspectos os quais servem como subsídios de pesquisas nas mais diversas áreas
do conhecimento. O que propomos com tal trabalho está longe de considerar o
diário como representações fiéis da realidade, pois a escrita, por si só, já é uma
representação e o fato de representar-se pressupõe a criação de outro eu que se
desvela. Representar é recriar, inventar, portanto, ficcionalizar.
Esse enfoque se deu uma vez que o diário de Cardoso é atípico, produzido com
vistas à publicação, além de não se restringir apenas ao simples arrolamento
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de episódios cotidianos, ficando o diário a cargo de apontamentos de cunho
intimista, carregado de considerações acerca da cultura, do fazer literário, de
trechos de cartas a serem enviadas, fragmentos de obras de outros autores,
citações lidas ou ouvidas, dentre outros. Os diários chegavam mesmo a ser
oferecidos a terceiros de modo que estes tivessem a possibilidade de deixarem
ali, inscritas, as suas considerações, as suas marcas, os seus rastros. Tal fato
denota a possibilidade de entrever no diário de Cardoso aspectos os quais
não se encontram nos diários convencionais. Isso porque a característica mais
marcante de tais obras remete ao seu caráter confidencial: nem tudo pode ou
deve ser dito.
Essa produção premeditada, ponderada, nos levou a acreditar que Cardoso, ao
ocultar-se em suas anotações, ficcionaliza um gênero que se pretende verdadeiro.
Ao ficcionalizar-se, cria para si um personagem que destoa do “Eu” sugerido nas
escritas de diário, que coloca no mesmo patamar autor, personagem e narrador.
Embora o nome da capa do livro coincida com o nome do personagem e o
narrador esteja em primeira pessoa, características primordiais para que ocorra
o pacto autobiográfico, proposto por Philippe Lejeune, a ficcionalidade da
escrita que se volta a um público, bem como as lacunas causadas por diversos
fatores, dentre os quais o esquecimento, o pudor, não permitem que possamos
associar vida e obra como duas instâncias idênticas entre si.
O memorialista não revive sua história por meio da recordação escrita. O homem
que hoje evoca o passado não é o mesmo que vivenciou os acontecimentos, nem
mesmo as circunstâncias nas quais o mesmo encontra-se inserido são favoráveis,
propícias ao resgate integral de um passado, seja ele recente ou remoto. Assim
como Ecléa Bosi, consideramos a memória um trabalho de reconstrução de
um passado confrontado pelo “Eu” atual que reflete, pondera, olhando a
situação por um ângulo que propicia novas miradas, diferentes do primeiro
olhar lançado. O passado, no entanto, não se conserva de maneira homogênea:
“lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a partir
do outrora, é sentimento, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição”
(BOSI, 1995, p. 21).
Percebemos que, no gênero diário, o arquivamento da vida proporciona ao autor
a possibilidade de se inventar de uma forma original, construindo para si mesmo
uma identidade a partir de suas próprias representações. Independentemente
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das maneiras como se costuma arquivar a vida, é fato que produzir lembranças
é uma necessidade. Segundo Artières (1998, p. 14), “não fazê-lo é reconhecer um
fracasso, é confessar a existência de segredos”. Isto mostra o valor cultural dos
arquivos de vida em nossa sociedade.
Debruçar-se sobre a obra memorialística representa uma forma de se tentar
compreender algumas marcas de nossa identidade e alteridade. É uma forma
de resgatar a memória cultural, trazida à tona na tentativa de se compreender o
momento atual pelos fragmentos do passado. Segundo Meneses:
Todos têm procurado destilar sua auto-imagem mais
raramente e com dificuldade a da sociedade como
todo. Palavras-chave são “resgate”, “recuperação”
e “preservação”. – todas pressupondo uma essência
frágil que necessita de cuidados especiais para não
se deteriorar ou perder uma substância preexistente
(MENESES, 1999, p.12).
Utilizamos ainda o diário cardosiano na tentativa de mostrar como o autor lança
um olhar em direção à cultura de seu tempo. Esse olhar pode ser notado através
de comentários acerca de suas leituras, daquilo que vinha sendo produzido até
então, seja por meio de críticas propriamente ditas, feitas a trabalhos de terceiros
ou da recepção crítica de suas próprias obras.
Por meio dos apontamentos feitos em seu diário, Cardoso mostrava-se como
um indivíduo preocupado em lançar um olhar em direção ao futuro, à cultura
que vinha sendo produzida no momento em que estavam inseridos, bem como
em fazer uso desse recurso de escrita para divagar acerca da constituição de
si. Dar ao texto memorialístico de Lucio Cardoso um tratamento que aborde
as questões relativas à memória cultural e literária do país significa valorizá-lo
enquanto participante ativo no panorama cultural do país.
Uma investigação literária e cultural em seu Diário completo representa, ainda,
uma tentativa de se inserir uma discussão nas pesquisas dos Estudos Culturais,
procurando abrir perspectivas de atualização crítica do estudo da memória,
dos arquivos de si e da cultura. Desse modo, a literatura passa a ser vista
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como uma prática discursiva em que o discurso funciona como uma forma de
representação.
Referências
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contemporâneos seus. 2005. 129f. Dissertação
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Companhia das Letras, 1995.
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MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A crise da memória, história e documento:
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MIRANDA, Wander Melo de. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano
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A ESTÉTICA DA ANTROPOFAGIA: DEVORAÇÃO,
CRÍTICA E CINEMA EM OSWALD DE ANDRADE,
GLAUBER ROCHA E OLNEY SÃO PAULO
Dinameire Oliveira Carneiro Rios 1*
Resumo: As escolhas de elementos do campo ético e estético aproximam o
Modernismo brasileiro e o Cinema Novo, movimentos artísticos que agenciaram
um reconhecimento dos valores da cultura popular, reelaborando as práticas
estéticas e manifestações das culturas que estão no cerne de nossa formação,
além de subsidiar as bases estruturais da nova obra de arte produzida,
buscando constantemente dentro das produções artísticas desses períodos
uma intertextualidade que pretendesse dialogar com o passado e o presente do
país em cada um desses momentos históricos e artísticos. Nesse sentido, este
trabalho analisa a posição crítica e intelectual de três importantes pensadores
desses momentos estéticos brasileiros: inicialmente Oswald de Andrade e
Glauber Rocha, intelectuais revolucionários, vanguardistas que propuseram em
suas obras a descolonização da arte brasileira, o primeiro através da metáfora
ritualística da antropofagia transformada numa elaboração teórica da cultura
nacional que aliava barbárie e técnica, e o segundo, por meio da violência
provocada pela fome teorizada na “Estética da Fome”, discutindo, por fim,
como essas duas propostas que nortearam o Modernismo e o Cinema Novo
no Brasil encontram-se presentes na produção fílmica e intelectual do cineasta
baiano Olney São Paulo.
Palavras-chave: Modernismo brasileiro. Antropofagia. Cinema Novo. Estética
da fome.
Abstract: The choices of elements in ethical and aesthetic fields unite Brazilian
Modernism and Cinema Novo, artistic movements that promoted a recognition
of the values ​​of popular culture, reworking aesthetic practices and manifestations
of culture at the heart of our evolution, besides supporting the new produced
work of art structural bases, constantly seeking in the artistic production of those
times a link between the past and the present in every historical and cultural
* Mestranda em Literatura e Diversidade Cultural- Universidade Estadual de Feira de
Santana/Bolsista FAPESB. E-mail: [email protected]
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moments. Thus, this study examines the critical and intellectual position of
three major Brazilian thinkers of aesthetic phases: at first, Oswald de Andrade
and Glauber Rocha, revolutionary intellectuals who proposed through their
works the decolonization of Brazilian art, the first through the metaphor of
ritual cannibalism transformed into a theoretical elaboration of national culture
that combined technique and barbarism; the second through the violence
caused by the theorized “hunger” in the Estética da fome. Finally, we consider
how these two proposals that guided Modernism and Cinema Novo in Brazil
are presented in Olney São Paulo’s film production.
Key words: Brazilian Modernism. Anthropophagy. Cinema Novo. Estética da
fome.
Breve introdução
O Modernismo brasileiro e o Cinema Novo são movimentos culturais que têm
muitos pontos de contato, tanto no campo ético quanto no estético. Embora
o cinema não estivesse presente na Semana de Arte Moderna realizada em
192221, é visível nas obras de artistas modernistas como Oswald e Mário de
Andrade a influência da sétima arte, impulsionando mudanças de ordem
sintática e de expressão. Essa relação justifica, em parte, o tênue diálogo estético
e ideológico entre alguns artistas e intelectuais modernistas e os cinemanovistas
e, consequentemente, o grande número de adaptações de obras desse período
pelos cineastas do Cinema Novo.
Algumas escolhas de elementos do campo criativo aproximam os dois
movimentos, pois, assim como fizeram os modernistas, há no Cinema Novo
um reconhecimento dos valores da cultura popular, ressignificando as práticas
estéticas e manifestações das culturas que estão no cerne de nossa formação,
além de subsidiar as bases estruturais da nova obra de arte produzida, há uma
1- Embora Humberto Mauro tenha produzido considerável parte de sua obra em meados da primeira metade do século XX, sua importância para a arte nacional e seu caráter modernista só seriam reconhecidos entre os cinemanovistas. Sua produção passou
despercebida entre os críticos modernistas. Outro cineasta de grande relevância para a
época, Mário Peixoto, teve uma maior aproximação com o movimento de 1922 a partir
de sua poesia, e não através dos filmes que produziu; esses só seriam aclamados pelos
intelectuais do Cinema Novo.
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busca constante dentro dessas produções artísticas por uma intertextualidade
que pretende dialogar com o passado e o presente do país em cada um desses
momentos históricos e artísticos. Outro ponto de contato interessante entre os
dois movimentos artísticos diz respeito às posturas intelectuais de dois dos
seus principais líderes: Oswald de Andrade e Glauber Rocha. Intelectuais
revolucionários, vanguardistas que propuseram em suas obras a descolonização
da arte brasileira, o primeiro através da metáfora ritualística da antropofagia
transformada numa elaboração teórica da cultura nacional que aliava barbárie
e técnica, e o segundo, por meio da violência provocada pela fome. Essas duas
posturas estão sistematicamente presentes em dois textos antológicos da arte
brasileira, o “Manifesto Antropófago”, publicado por Oswald em 1928 na
Revista de Antropofagia, e na “Estética da fome”, apresentado por Glauber Rocha,
pela primeira vez, em 1965, no congresso Terceiro Mundo e Comunidade Mundial
dentro da Quinta Resenha do Cinema Latino-Americano, em Gênova, na Itália.
Um Oswald antropófago
No “Manifesto Antropófago” Oswald propõe, numa postura radical estética
e política, uma renovação da arte brasileira através do ritual etnográfico da
antropofagia elaborando uma filosofia cultural. Segundo Oswald e os demais
que seguiam a ideologia do “primitivismo antropofágico”, era necessária
a devoração seletiva da arte e dos demais produtos culturais lançados nos
grandes centros europeus e mundiais, de forma que pudessem ser assimilados
os aspectos interessantes para a arte do Brasil e desprezados os elementos sem
valia. Nesse movimento antropofágico seria cogente não somente devorar e
deglutir os valores da arte europeia, mas trazer como retorno artístico e cultural,
uma originalidade que pudesse oferecer para a cultura brasileira um lugar
muito próximo, senão ao lado, da produzida na Europa.
A antropofagia de Oswald positivou o hibridismo que caracteriza o povo
brasileiro, singularizou a cultura do Brasil devido às suas tradições multiétnicas
e multifacetadas, além de possibilitar uma renovação linguística, como
pretendia o próprio movimento modernista. Para Veloso e Madeira (1999, p.
107), a antropofagia de Oswald de Andrade deixou para o país “a utopia de uma
cultura dinâmica e criativa, com capacidade de apropriar-se, deglutir e promover
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novas sínteses, banindo arcaísmos culturais e linguísticos, substituindo-os por
uma língua ágil, natural e neológica.” No campo dessa construção proposta
pela antropofagia oswaldiana, se instauraram tensões políticas e culturais que
permeavam questões como o interesse pela cultura popular interna e um olhar
crítico para a cultura estrangeira, originalidade, postura reflexiva e um sólido
projeto político-ideológico que possibilitaram a perpetuação do imaginário
antropofágico e seus desdobramentos na história intelectual do Brasil em todo
o restante do século XX e ainda no século XXI.
A metáfora da devoração de Oswald conseguiu, dessa forma, abarcar
discussões importantes que estavam em voga no Brasil do início do século XX
como o relacionamento com a cultura e a influência estrangeira, notadamente
a europeia, e a construção de uma tradição original para o país através de uma
revisão radical e crítica do que já havia sido produzido aqui, mas conseguindo
dinamizar a criação estética por meio da ampliação do imaginário e da invenção
de novos parâmetros e valores culturais. Assim, como afirma Seidel (2011,
p.10-13), “A proposição da antropofagia, por Oswald de Andrade, [...] pode
ser considerada como uma ruptura em relação ao pensamento da inteligência
nacional, com respeito ao tipo de proposição utópica da nação ‒ portanto,
olhando para o futuro.”
Nesse sentido, Osmar Moreira (2011), em consonância com os estudos do crítico
Benedito Nunes, constata que a antropofagia pode ser não somente uma metáfora
à cerimônia guerreira da imolação tupi do inimigo valente, mas também é um
diagnóstico da sociedade brasileira, por ter sido esta colonizada, e também uma
terapêutica contra os organismos sociais e políticos, as manifestações literárias,
os hábitos intelectuais que de alguma maneira enxergaram o trauma civilizatório
como uma instância censora.
Um Glauber com fome
O legado do Manifesto de Oswald consta em praticamente todas as manifestações
artísticas da segunda metade do século XX. Nas propostas do Cinema Novo, a
“Teoria da Antropofagia” ocupa o cerne, além de estar diretamente presente
em muitas das produções fílmicas do período. Filmes como Macunaíma (1969),
de Joaquim Pedro de Andrade, Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha,
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Como era gostoso o meu francês (1970), de Nelson Pereira dos Santos dialogam
diretamente com os postulados antropofágicos do pensador modernista
Oswald de Andrade, porém, a transubstanciação teórica deste texto modernista
ressoa ética e esteticamente no texto-manifesto produzido pelo expoente
maior desse movimento cinematográfico: em “Estética da fome”, de Glauber
Rocha. Se nos textos de Oswald e Mário de Andrade é possível localizar uma
proximidade entre a linguagem proposta por eles e a cinematográfica, bem
como uma sobreposição e montagem de imagens, um ritmo e uma polifonia
que possibilitam caracterizar algumas de suas produções como quase-cinema,
pôde-se constatar que as aproximações entre modernistas e cinemanovistas não
estavam somente no plano estético, mas também no ético, no filosófico e no
político.
Se Oswald propõe no Modernismo uma descolonização ideológica e estética por
meio da metáfora da devoração, ancorando-se, também, nas propostas deste,
Glauber Rocha escreve seu manifesto “Estética da fome”, em 1965, propondo uma
descolonização da América Latina e do Brasil através das imagens da violência
sugeridas na tela do cinema nacional. Para Glauber era preciso desconstruir
a ideia do europeu de que a América Latina e consequentemente o Brasil era
o locus do primitivismo e da não-civilização, enquanto a Europa representava
para o mundo o padrão de civilidade que deveria ser seguido, perpetuando,
desta forma, uma mentalidade estritamente colonial. De acordo com o pensador
e cineasta baiano, isso se devia não somente à concepção de superioridade dos
europeus em relação aos latinos, africanos, etc., mas também pelo complexo
de inferioridade presente na mentalidade colonizada dos intelectuais e artistas
destas partes do mundo, no foco, em especial, os do Brasil.
No artigo “Uma situação colonial?” Paulo Emílio Salles Gomes já havia
denunciado que o Brasil não tinha uma tradição cinematográfica pelo fato de ser
um país pobre e subdesenvolvido; segundo ele, consequências da colonização
cultural ainda presentes no século XX, neste sentido Glauber afirmava que essa
questão já tinha sido explicada pelo modernismo, mas cabia ao Cinema Novo
ressignificar essa discussão possibilitando novas interpretações e soluções para
esse embate cultural que, por sua vez, estaria na base da construção do seu
manifesto “Estética da fome”. (GERBER, 1982).
A descolonização cultural proposta por Glauber Rocha em seu manifesto caminha
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para se realizar através de uma virulência semântica e sintática, utilizando-se
da fome não somente em seu sentido primeiro, mas como consequência de uma
bifurcação da ideia antropofágica de Oswald de Andrade32, empregando a fome
como mola propulsora de uma força violenta, resistente, criadora, que auxiliasse
no processo de desalienação artística e cultural da América Latina. Para Kiffer
(2011), estão presentes três temas principais na tese que Glauber formula em
“Estética da fome”: o primeiro é a fome enquanto força, o segundo, o amor
enquanto violência, e o terceiro tema é de uma estética que não seja sistemática,
ou seja, “um equilíbrio que não resulte de um sistema orgânico”. Essa fome que
reatualiza a metáfora da devoração de Oswald surge em Glauber de forma a
atingir os dois mundos, tanto o do colonizador quanto o do colonizado:
Nós compreendemos essa fome que o europeu e o brasileiro na maioria não
entendem. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro
é uma vergonha nacional. Ele não come, mas tem vergonha de dizer isto; e,
sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. [...] Assim, somente uma cultura
da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente:
e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência (GLAUBER, 2004,
p.66).
Dessa maneira, Glauber Rocha indica uma saída estrutural para a miséria no
país, esta que, por sua vez, “sendo sentida, não é compreendida”. As imagens dos
filmes produzidos pelo Cinema Novo colocam ao espectador o comportamento
da fome e a violência que, se para o europeu é vista como primitivismo, para
o público brasileiro deveria funcionar como agressão à percepção, aos sentidos
e ao pensamento, seria “o público não suportando as imagens da própria
miséria”. Com uma estética da fome e da violência, esta última sendo gerada
pela primeira, Glauber propõe ao Brasil e à América Latina as bases para um
pensamento anticolonialista, sob forte influência das propostas e discussões
elencadas por Frantz Fanon (1979) acerca da descolonização, “das formas da
consciência do oprimido e do sentido histórico maior da revolta” (XAVIER,
2001, p.121-122) que possibilitassem ao povo brasileiro posicionamentos não-
2- Essa proposta é aprofundada por Ana Kiffer em “Meu corpo vossa fome”. Ver Revista Periferia, V.III, número 1. Disponível em: http://www.febf.uerj.br/periferia/V3N1/
ana_kiffer.pdf.
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paternalistas, não-humanistas e descolonizados. 43
Baseado em um olhar tradicional sobre o processo de colonização, em que este
é visto a partir da divisão entre ocupantes versus ocupados/dominados versus
dominadores, o discurso de Glauber foi construído com intuito de marcar
a divisão clara que existia no período entre o chamado primeiro mundo e o
terceiro mundo. Porém, se havia uma dificuldade em o europeu compreender a
realidade da América Latina, interessando a ele apenas “os processos de criação
artística do mundo subdesenvolvido”, somente “na medida que satisfazem sua
nostalgia do primitivismo”, os próprios latino-americanos perpetuavam em seus
discursos um pensamento que coadunava com o sistema colonial, produzindo
uma arte de “mentiras elaboradas da verdade” , “onde o autor se castra em
exercícios formais que, todavia, não atingem a plena possessão de suas formas”,
em que não consegue “despertar do ideal estético adolescente”, frustrando o
sonho da universalização.
Oswald, Glauber e Olney: Correlações
A ideia-síntese do Cinema Novo, “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”,
significava a liberdade de experimentação e criação que esse novo movimento
cinematográfico propunha e trazia para o cenário do cinema nacional, oferecendo
a possibilidade de execução das propostas apresentadas por Glauber em seu
manifesto, escrito quando o Brasil já tinha mantido contato com algumas das
principais obras do Cinema Novo: Aruanda (1958), Deus e o Diabo na terra do Sol
(1963), Vidas Secas (1963), entre outras produções.
3- De acordo com Ismail Xavier (2001, p.122), “No Brasil, nos anos 60, adota-se o modelo
colonial para pensar os problemas da cultura nacional. A teoria da revolução brasileira
privilegia uma dialética histórica que, como em Sartre, é afirmação da liberdade humana, terreno da práxis. No eixo Sartre- Fanon, Glauber pensa a libertação como um processo no qual a Nação-sujeito coletivo se afirma ao negar o Outro (o colonizador)”. As ideias
de Glauber sobre a descolonização do Terceiro Mundo alinham-se, até certo ponto, com
a teoria da descolonização pensada por Fanon, pois como afirma (1979, p. 25-26) “a descolonização é sempre um fenômeno violento. [...] [Ela] jamais passa despercebida porque
atinge o ser, modifica fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de inessencialidade em atores privilegiados, colhidos de modo quase grandioso pela
roda-viva da história. [...] A descolonização é, em verdade, criação de homens novos.”
São esses novos homens que Glauber procura construir por meio do processo psíquico
de descolonização contido nas produções do Cinema Novo e explicitado no Manifesto
“Eztetyka da Fome”.
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Mas para além da liberdade de criação, a proposta de “uma câmera na mão e
uma ideia na cabeça” manteve, até certo momento, um diálogo com a cultura no
que diz respeito à precariedade material do povo, representado nas produções
desse movimento cinematográfico. A pobreza e a miséria necessitavam de uma
técnica que se tornasse linguagem, em que referente e meio se identificassem
ao espectador, ato político e estético que esteve refletido na obra de um outro
importante expoente do cinema baiano nos idos do Cinema Novo, a do cineasta
Olney Alberto São Paulo.
É durante a década de 1960 que Olney São Paulo surge no cenário nacional
como cineasta a partir de seu primeiro filme de maior repercussão e de bases
profissionais, o longa-metragem Grito da terra (1964). Embora boa parte de sua
obra cinematográfica tenha sido produzida em meio à efervescência das ideias
cinemanovistas, Olney se insere de maneira especular nas propostas desse
movimento. De formação teórica e documental, esse cineasta baiano inicia
sua carreira como crítico de cinema em alguns periódicos da cidade de Feira
de Santana, na Bahia, mas apesar de ter sido contemporâneo do surgimento
das ideias-base e do próprio movimento do Cinema Novo, as influências do
cinema que produziu perpassaram boa parte do cinema mundial da época e sua
coadunação (ou não!) com as ideias éticas e estéticas em relação a esse movimento
cinematográfico merece ser problematizada. Segundo Novaes (2011, p. 224),
“Outras fontes cinematográficas de Olney, como ele mesmo afirma, foram o
cinema clássico americano, principalmente western, e o neo-realismo italiano,
passando pela teoria russa da montagem e pelos filmes da Atlântida e da Vera
Cruz, no Brasil. Ele também passa pelas leituras de outras tradições, como a da
União Soviética, da Alemanha e da França”.
Interessa, nesse caso, observar como Olney São Paulo, cineasta baiano
contemporâneo de Glauber e do surgimento do Cinema Novo, agenciou em
sua produção cinematográfica e intelectual as propostas norteadoras do cinema
nas décadas de 1950-60, que, por sua vez, estão repercutidas na “Estética da
fome” glauberiana e, consequentemente, dialogaram com as ideias modernistas
antropofágicas de Oswald de Andrade.
Segundo o próprio Olney São Paulo, o neorrealismo italiano estivera desde
muito cedo em suas leituras fílmicas que foram intensificadas, por sua vez,
quando passou a ser crítico de cinema em jornais locais em Feira de Santana.
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Seu contato mais significativo com o cinema baiano se deu quando passou a
participar, ao lado inclusive de Glauber Rocha, das reuniões em torno do Clube
de Cinema da Bahia. Nessa correlação de contatos e influências que tivera
Olney no início da carreira, é possível perceber na primeira realização de maior
êxito do autor, Grito da terra (1964), as influências temáticas do Cinema Novo,
embora a técnica e a estética do filme ainda mantivessem um contato muito
mais visível com o cinema clássico, distante das inovações agenciadas no campo
da produção cinemanovista.
O neorrealismo italiano que serviu de base estética para os filmes de Nelson
Pereira dos Santos, Rio 40 graus e Rio Zona Norte, vistos pela crítica e pelos
próprios cineastas do movimento como os precursores das propostas do
Cinema Novo, já estava, em parte, superado pelo cinema produzido na década
de 1960, no entanto, será esse o principal cinema que dialogará com o primeiro
filme de Olney São Paulo, não somente pelo uso de atores não-profissionais,
mas pela própria técnica utilizada, confirmando o distanciamento do autor
da efervescência estética dos primeiros anos do movimento cinemanovista,
principalmente a refletida nas obras do conterrâneo Glauber Rocha.
Na esteira da produção de Olney, seu diálogo com o moderno cinema só iria
acontecer efetivamente a partir de 1969, com a produção do subversivo, como
considerado pelos militares, Manhã Cinzenta. Porém, embora esse filme tenha
inserido Olney numa proposta estética visivelmente alinhada com o Cinema
Novo, bem como as propostas revolucionárias e nacionalistas de Oswald
de Andrade e Glauber Rocha, é importante notar que Manhã Cinzenta e suas
consequências éticas e políticas contribuíram decisivamente para a exclusão do
seu idealizador das páginas do próprio movimento, passando a ser lembrado
somente pela peregrinação de “mártir do Cinema Novo”, como lembra Glauber
em Revolução do Cinema Novo.
Dessa forma, o vanguardismo e o cunho moderno radical que dominam Manhã
Cinzenta (1969), muitas vezes próximos do “cinema verdade”, inversamente
distanciou Olney do Cinema Novo, consequência do abalo causado pelo
processo que sofreu pela censura militar. Alinhando o filme com as propostas
do escritor Oswald e o pensador Glauber, podemos situar Manhã Cinzenta como
sendo “uma obra de ambivalência crítica entre as estéticas das vanguardas
modernistas, os modelos clássicos de representação realista e as novas gerações
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da narrativa nacionalista” (NOVAES, 2011, p.52).
Se as propostas de descolonização cultural estavam na base das ideias
nacionalistas de Oswald de Andrade e Glauber Rocha, em Olney essa discussão
toma proporções menores e volta-se para o interno dentro do projeto político
inscrito em seus filmes, de forma que sua obra pode facilmente servir de
argumento para a antiga discussão sertão versus litoral, tão cara à cultura
brasileira. Ainda assim, é visível na trajetória política e intelectual de Olney
São Paulo sua luta contra o imperialismo cultural no Brasil, representada, por
exemplo, nas inúmeras denúncias que fizera em relação à dominação do cinema
estrangeiro no Brasil. A falta de rede de exibição para a produção nacional esteve
presente na fala desse cineasta quase sempre que lhe foi dada a oportunidade
de manifestar-se. Em artigos como Olney, um cineasta fora da festa e Diretor de
“O forte” denuncia sabotagem, publicados respectivamente no jornal Folha de São
Paulo e no Folha de Londrina, fica claro o envolvimento e a energia intelectual
do produtor baiano no sentido de destruir as engrenagens colonizadoras que
estavam presentes no cinema brasileiro, desde a sua produção até o momento
da exibição para o público.
Foi possível visualizar a contribuição desses três intelectuais brasileiros para
a arte brasileira e, embora inscritos em dois importantes momentos da cultura
nacional, talvez os mais representativos do nosso pensamento, colaboraram,
cada um a seu modo, mas ainda assim dialogando diretamente em suas
propostas para a valoração e formação de um sistema nacionalista autônomo,
livre das redes cosmopolitas do imperialismo, pois ainda que seja visível algum
tipo de influência estrangeira em suas produções, essa, por sua vez, se deu de
maneira antropofágica, como propôs o próprio Oswald de Andrade. Oswald,
Glauber e Olney São Paulo se inserem na estirpe da arte nacional que através de
suas produções artístico/intelectuais reivindicaram para o Brasil a posição não
mais de colônia no âmbito cultural, questionando e reclamando um lugar de
destaque nas engrenagens da criação estética, filosófica e artística.
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REALIDADE E FICÇÃO EM O DOENTE MOLIERE
Diego do Nascimento Rodrigues Flores1*
Resumo: O presente artigo trata da análise da novela O doente Moliere de Rubem
Fonseca. Nele, se buscará tecer relações entre a forma como realidade e ficção
se misturam nos personagens de forma que, como propõe Wolfgang Iser, o
fictício seja nada mais do que uma encenação constituída de elementos do real
reconfigurado que, desta forma, aponta para algo além da encenação em si.
Palavras-chave: fictício, encenação, romance policial, Rubem Fonseca.
Abstract: The present article is an analysis of the novella O doente Moliere by
Rubem Fonseca. In this article we will aim at establishing connections between
the way reality and fiction intertwine in the characters so that, as proposed
by Wolfgang Iser, the fictive be nothing more than an enactment made up of
elements of a reconfigured reality which, thus, points to something beyond
enactment itself.
Keywords: fictive, enactment, detective novel, Rubem Fonseca.
Introdução
França, 17 de fevereiro de 1673. Em cena, Molière faz sua última apresentação:
na encenação de “O doente imaginário”, última peça escrita pelo comediógrafo,
o próprio Molière faz o papel principal. Ele é Argan, o hipocondríaco, que passa
mal em cena. Ironicamente, o próprio Molière também não está se sentindo
bem, e seu péssimo estado serviu para realçar brilhantemente a qualidade
da encenação. Desfazem-se as fronteiras entre o real e o fictício. Somente um
dos espectadores percebe que algo está errado. Molière vem a falecer naquela
mesma noite, sem a presença de nenhum amigo ou parente. Contudo, seria
*Mestre em Letras pela Ufes e professor na PMV
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enterrado somente quatro dias depois, e graças à intervenção real, porque os
clérigos de então se recusavam a lhe ofertar a extrema unção por ter sido ator e
comediógrafo, profissões tão escusas quanto a prostituição ou a feitiçaria.
Assim Rubem Fonseca inicia sua narrativa. O Marquês Anônimo, apresetado
pelo autor como o único personagem fictício de seu livro, toma a dianteira para
narrar uma investigação levada adiante a partir de uma confissão do próprio
Molière: “Fui mortalmente envenenado” (FONSECA, 2000, p. 23). Nesse
estudo, buscaremos entender como o personagem-narrador criado por Fonseca
molda, dentro do universo fictício do livro, a sua narrativa do real de modo que
esta sirva para expor as mazelas não só do tempo em que Molière viveu, mas
provavelmente de toda história humana, destacando a hipocrisia em que aquela
sociedade estava mergulhada. Mas antes de adentrarmos os meandros desta
narrativa, vejamos brevemente quem foi o homem Molière e, especialmente, o
legado que este nos deixou.
O homem Molière
Segundo Erich Auerbach, Molière seria aquele comediógrafo que “tipifica
muito menos, apanha a realidade muito mais individualmente do que a maioria
dos moralistas do século” (AUERBACH, 2002, p. 323). Ainda na esteira do
teórico alemão, este afirma que Molière estava preocupado em encontrar “o
individualmente real só por causa do seu ridículo, e o ridículo significa para ele
o desvio do médio e do habitual” (AUERBACH, 2002, p. 323).
Molière tomava seus personagens de todas as classes sociais, mas eram aqueles
que pertenciam às classes mais abastadas que mais o interessavam. Nas suas
comédias, queria apresentar o ridículo de todos os homens, modelando-os
de forma grotesca (AUERBACH, 2002, p. 325), o que nos leva a perceber seus
personagens antes como caricaturas de determinadas figuras de importante
colocação social à sua época: os médicos, as preciosas, o clero, etc. Por isso,
por essa sua audácia em caricaturar elementos importantes de sua sociedade,
Molière foi freqüentemente atacado.
Tomemos, por exemplo, uma de suas comédias mais polêmicas: Tartuffe
(Tartufo). Essa peça foi censurada pelo rei que, mesmo sendo bastante indulgente
para com Molière e um apreciador de suas comédias, a manteve longe dos palcos
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por cinco anos. Por causa desta peça Molière foi acusado de atacar a religião e
de ser ateu: o seu Tartufo era, segundo John Gassner, “a encarnação da devoção
egoísta e desonesta”, apresentada num “drama que o mostrava insinuando-se
em um honrado lar e virando-o de cabeça para baixo” (GASSNER, 2002, p. 341).
No entanto, a peça não atacava diretamente a religião, mas a forma como esta
poderia ser usada egoisticamente em benefício próprio.
Molière, de acordo com Auerbach, empregava livremente elementos farsescos
em suas comédias; evitava, contudo, “a concretização realista da situação
política ou econômica do meio em que suas personagens atuam, e muito
mais, o aprofundamento crítico” (AUERBACH, 2002, p. 330). Essa estratégia
adotada pelo comediógrafo lhe garantia teatros sempre cheios, pois não ofendia
diretamente sua platéia ou, o que é mais importante, o rei, uma vez que suas
peças não denunciavam as contradições daquela sociedade desigual, mas
estavam voltadas para o indivíduo e sua irremediável corrupção.
Enfim, Molière parecia estar preocupado, em suas comédias, em fazer uma crítica
moralista da sociedade em que vivia, com o intuito de denunciar a hipocrisia
presente em todos os estratos sociais, desde as camadas mais baixas até as mais
altas: a tartufice do clero, a incompetência e o charlatanismo dos médicos, bem
como todo tipo de mentira e impostura que pairava sobre todos.
Ficção e realidade: considerações teóricas
Adiemos ainda um pouco mais a nossa análise da novela de Rubem Fonseca
para tecermos, antes, algumas considerações que irão orientar a nossa leitura.
Entenderemos, em nossa análise, o texto ficcional da forma como este é
proposto por Wolfgang Iser que, em seu livro The fictive and the imaginary:
charting literary anthropology afirma ser o texto literário “a mixture of reality
and fictions, and as such it brings about an interaction between what is given
and the imagined” (ISER, 1993, p. 1). Essa mistura de que Iser fala, que se
apresenta no texto fictício como uma re-configuração de elementos do mundo
empírico, serve para fazer com que o leitor passe a perceber a realidade de
maneira diferente, já que, como escreve o próprio Iser, “whenever realities are
transposed into the text, they turn into signs for something else” (ISER, 1993, p.
3). Essa mesma afirmação é corrobora por Luiz Costa Lima, em Vida e Mímesis,
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segundo o qual a ficção, para Iser, seria o caminho através do qual “o homem
explora possibilidades outras que as oferecidas pelo mundo instituído” (LIMA,
1995, p. 236).
Para Iser, o texto ficcional é composto por atos de seleção de elementos de
diversos sistemas que existem como campos de referência que são exteriores
ao texto ficcional e que abrangem tanto as esferas sociais, históricas e culturais
quanto sistemas literários. Assim, a realidade ficcionalizada é criada para
apontar para algo além de si mesma na medida em que se configura o imaginário
no texto ficcional.
O mundo empírico, como somos capazes de o perceber, é caótico; nunca somos
capazes de apreendê-lo em sua totalidade, e por isso precisamos de ficções. A
mesma opinião é compartilhada por Jacques Rancière, para quem “o real precisa
ser ficcionado para ser pensado” (RANCIÈRE, 2005, p. 58). Assim, continua
Iser, “The reality represented in the text is not meant to represent reality; it is a
pointer to something that is not, although its function is to make that something
conceivable” (ISER, 1993, p. 13).
Desta forma, precisamos notar que a referencialidade característica dos signos
que compõem o texto ficcional torna-se esmaecida uma vez que o “como se” do
texto ficcional, ou seja, o real ficcionalizado, é empregado com o intuito não de
representar o mundo empírico, como Iser já afirmou acima, mas de fazer uso
do mundo representado para estimular reações no leitor (ISER, 1993, p. 16).
Há, portanto, uma intenção do texto, a qual pode ser descoberta não através
do estudo da biografia e crenças do autor, “but in those manifestations of
intentionality expressed in the fictional text itself, through its selection of and
from extratextual systems” (ISER, 1993, p. 6). Contudo, essa intenção do texto
não pressupõe a existência de um critério único de leitura e interpretação de
um texto literário já que devemos levar em consideração que é da interação
do leitor com o texto que se concretiza, em última instância, o significado de
um determinado texto, e que esta interação está de certo modo inserida em
um dado contexto histórico-social que de alguma maneira determinará como
aquele texto será recebido e, conseqüentemente, interpretado.
Logo, os significantes que constituem o texto ficcional interagem de forma que
o mundo artificial percebido através do mundo sócio-histórico ou da realidade
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empírica e, em troca, essa passa a ser percebida através da ótica do mundo
ficcionalizado (ISER, 1993, p. 226). Assim, escreve Iser:
Selection opens up one area between the fields of
reference and their distortion in the text; combination
opens up another between interacting textual
segments; and the ‘as-if’ opens up another between an
empirical world and its transposition into a metaphor
for what remains unsaid (ISER, 1993, p. 229).
Esse não-dito citado por Iser é o que garante a emergência de um significado
para a metáfora que a realidade ficcionalizada representa. Isso nos é relevante
porque, de acordo com Rancière, “fingir não é propor engodos, porém elaborar
estruturas inteligíveis” (RANCIÈRE, 2005, p. 53) e que, ainda por cima, nos
permitam conceber o mundo empírico de forma antes impensável.
O Marquês Anônimo: construtor de realidades
Enfim é chegado o momento de nos debruçarmos sobre aquele que é o objeto
principal deste nosso estudo: o Marquês Anônimo, apresentado, por Rubem
Fonseca, como “amigo e colega de colégio de Molière” (FONSECA, 2000, p. 9)
e o único personagem fictício de sua novela em uma lista na qual contatamos
haver, de fato, diversos personagens históricos, alguns de grande expressão
como o próprio Molière, e outros dramaturgos como Racine e Corneille, além
dos também escritores La Fontaine, Boileau e La Rochefoucauld.
Não há dúvida de que se trata de uma ironia do autor apresentar o Marquês
Anônimo como o único personagem fictício de seu livro. No momento em
que essas figuras históricas, dentre as quais aparecem, como já dissemos,
personalidades importantes, são transportadas para um mundo ficcional criado
por Rubem Fonseca através de seu Marquês Anônimo, que é na verdade quem
narra e conseqüentemente cria esse mundo, tornam-se também elas personagens
fictícios.
O Marquês Anônimo, entretanto, nos é de particular interesse porque, como
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narrador, é ele, único personagem fictício, quem nos apresenta os fatos narrados
em seu livro, e segundo uma ótica bastante particular, como ele próprio o
comenta na seguinte passagem: “Posso ser às vezes um pouco prolixo, impreciso,
e talvez fale excessivamente da minha vida, mas isso me parece normal, em
escritos dessa natura” (FONSECA, 2000, p. 16).
Conforme afirma Antônio Cândido, “a personagem é mais lógica, embora não
mais simples, que o ser vivo” (CANDIDO, 1998, p. 59). Essa lógica interna do
Marquês Anônimo aparecerá mais claramente no momento em que estivermos
analisando mais de perto os fatos narrados por ele. Por diversas vezes, o
Marquês Anônimo mostrar-se-á mais preocupado consigo mesmo do que com
o objeto de sua investigação, que é descobrir o assassino de Molière, o que nos
leva a concordar mais uma vez com Antônio Cândido quando este afirma que:
[...] enquanto na existência quotidiana nós quase
nunca sabemos as causas, os motivos profundos da
ação dos seres, no romance estes nos são desvendados
pelo romancista, cuja função básica é, justamente,
estabelecer e ilustrar o jogo das causas, descendo a
profundidades reveladoras do espírito (CANDIDO,
1998, p. 66)
Da mesma forma, as atitudes dos outros personagens são expostas de forma
a trazerem à tona aquilo em que o Marquês Anônimo acredita, ou seja, que o
mundo narrado por ele está contaminado por todo tipo de impostura, a começar
por ele próprio.
Assim, precisamos nos indagar também a respeito do anonimato do Marquês
e de sua escolha por narrar sua investigação em forma de novela, pois que isso
também nos ajudará a entender a configuração do real efetuada pelo Marquês.
Jean Starobinski, quando comenta a pseudonímia de Stendhal, afirma que
Lorsqu’un homme se masque ou se revêt d’un
pseudonyme, nous nous sentons défiés. Cet homme se
refuse à nous. En revanche nous voulons savoir, nous
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entreprenons de le démasquer. Devant qui cherche-til à se dissimuler ? Devant quel Pouvoir a-t-il peur ?
Quel Regard lui fait donc honte ? Nous demandons
derechef : comment était fait son visage, pour qu’il ait
eu besoin de le dissimuler ? et une nouvelle question
s’enchaîne aux précédents : que veut dire ce nouveau
visage dont il s’affuble, quelle signification donne-til à ses conduites masquées, quel personnage vientil maintenant simuler, après avoir dissimulé ce qui
voulait disparaître ? (STAROBINSKI , 1999, p. 233,
grifos do autor)
Ainda que o nosso Marquês Anônimo não seja um personagem histórico como
foi Stendhal, veremos que no decorrer de sua narrativa o próprio Marquês nos
dará dicas sobre as razões que possivelmente o levaram à adoção do anonimato.
As perguntas levantadas por Starobinski, portanto, orientarão a nossa leitura da
novela no sentido de encontrarmos possíveis repostas para elas.
Quanto à estruturação de sua narrativa em forma de novela, também isso nos
pode revelar algo da natureza do que é narrado. Carlos Nelson Coutinho, em
Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX, ao comentar as
novelas de Kafka, diz o seguinte:
Diferentemente do romance, que figura a
universalidade de um período histórico na totalidade
explicitada de suas mediações, na rica e polimórfica
articulação de suas várias determinações objetivas, a
novela ilumina a totalidade a partir da representação
de um evento singular sintomático (COUTINHO,
2005, p. 152)
Coutinho cita ainda Georg Lukács, para quem “A novela deveria assim
compendiar a vida da sociedade através de um evento singular extraordinário,
tomado como ponto focal” (LUKÁCS, apud COUTINHO, 2005, p. 153). Na
narrativa do Marquês, podemos relacionar esse “evento singular sintomático”
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ou “extraordinário” com a busca por um assassino, típico das narrativas policiais,
mas que na novela do Marquês o interessante é perceber que a identidade do
assassino não é o que importa em última instância, mas sim a configuração de
um retrato de uma época que nos revela o cinismo da sociedade.
O real e o fictício em O doente Molière
A novela do Marquês Anônimo estrutura-se em quinze capítulos, além de um
capítulo introdutório, intitulado Registros, no qual o Marquês se apresenta
como “um marquês de ilustre estirpe, da melhor nobreza, mas não sou escritor,
apenas um leitor constante de bons autores” (FONSECA, 2000, p. 15). É assim
que o Marquês se nos apresenta: um dramaturgo frustrado, que queria ser como
seu amigo Molière, e que chega até mesmo a escrever uma peça, uma tragédia,
a qual leva a Racine para que este lhe dê seu parecer sobre ela. Após ler a peça
do Marquês, Racine o desengana afirmando: “[...] escreva cartas ou diários, não
existem regras nem é preciso talento para isso. Mas escrever para teatro, além
de um dom especial, que você não tem, exige o conhecimento de inúmeros
preceitos, que você ignora” (FONSECA, 2000, p. 15). Também Molière lê a peça
do Marquês e, embora não seja tão incisivo quanto Racine, da mesma forma não
lhe alimenta as esperanças. Logo, o Marquês se vê levado a desistir de ser artista
e adota, por isso a frase de Montaigne “Minha arte e minha profissão é viver”
(FONSECA, 2000, p. 16).
Ao comentar a composição de sua novela, o Marquês diz o seguinte: “Selecionei
alguns trechos das minhas anotações, para serem publicados anonimamente,
como parte das minhas memórias” (FONSECA, 2000, p. 16); para o Marquês,
esses trechos que selecionou estariam mais diretamente ligados ao objetivo de
sua narrativa, que é mostrar como descobriu o assassino de Molière. Vemos
destarte uma certa configuração subjetiva da trama a ser narrada: o Marquês
seleciona os trechos aos quais teremos acesso e que, como veremos, revelarão
mais da vida do Marquês do que da investigação por ele perpetrada.
Vera Lúcia Follain de Figueiredo, em seu livro Os crimes do texto: Rubem
Fonseca e a ficção contemporânea, propõe que “os personagens-narradores,
ao perceberem a impossibilidade de chegar à palavra original, elegem a
interpretação, conferindo ao ato de narrar a tarefa de construção de uma versão
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verossímil que substitui a verdade inatingível” (FIGUEIREDO, 2003, p. 45). É
essa construção de uma verdade que encontraremos na narrativa do Marquês.
Ele está cônscio de que todos do seu meio são como ele, apenas representam
papéis, como Molière em suas peças e que por isso têm um outro lado de si a
ser descoberto, o que conseqüentemente o levaria ao assassino. Na narrativa
do Marquês, ficção e realidade imbricam-se de tal forma que o Marquês vai
buscar nos textos de Molière, assim como na forma como estes foram recebidos
pela sociedade da época, pistas que possivelmente irão levá-lo a descobrir o
assassino.
Deste modo, logo na abertura do primeiro capítulo, Uma profissão infame,
temos um trecho de O doente imaginário, última peça escrita e encenada por
Molière. Aqui também vemos as fronteiras entre realidade e ficção tornarem-se
tênues: Molière faz o papel de Argan, o hipocondríaco que finge passar mal em
cena; no entanto o próprio Molière não está se sentindo bem, o que somente o
Marquês percebe. Molière morre naquela mesma noite, mas não antes de revelar
ao Marquês que tinha sido envenenado. Tanto a esposa de Molière, Armande,
quanto o Marquês saem em busca de um padre, mas todos os padres se recusam
a acompanhá-lo. Como explica o próprio Marquês: “Meu título de marquês e
meu nome ilustre de nada serviram” (FONSECA, 2000, p. 24); Molière era um
comediante e, por isso, um excomungado, por exercer profissão tão infame,
como já dissemos, quanto a prostituição, a usura ou a feitiçaria.
O que nos intriga como leitores, e o próprio Marquês comentará isso mais tarde,
são as razões que levaram tanto ele quanto Armande a procurarem um padre,
e não um médico, uma vez que Molière não estava bem de saúde, mas não
morto. Mais intrigante ainda é o Marquês ter guardado segredo daquilo que lhe
fora revelado por Molière. Entretanto, no segundo capítulo, Segredos, segredos,
o Marquês afirma que guardou segredo para se proteger, pois era amante de
Armande (FONSECA, 2000, p. 31), e continua explicando:
[...] todos sabem que os amantes matam discretamente
os maridos a quem enganam, com veneno, ao contrário
dos maridos, que, quando se contrariam ao serem
enganados, o que é raro, matam com estardalhaço,
pois a honra, para esses fanfarrões, tem que ser
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lavada com sangue diante dos olhos do público, como
a expiação do criminoso na praça. (FONSECA, 2000,
p. 31)
Evidentemente, o Marquês não estava disposto a fazer o papel de suspeito de
assassinato, e como a morte de Molière fora atribuída ao rompimento de uma
veia, causado, segundo os médicos, por violentos ataques de tosse (FONSECA,
2000, p. 31), seria melhor que essa continuasse exercendo o estatuto de verdade.
Sentimos, no entanto, durante a leitura, que o Marquês sente culpa por algo que
fez ou deixou de fazer, já que ele insiste em se nos apresentar como um amigo
íntimo de Molière, e que exerceu um papel importante na ascensão deste com
dramaturgo:
Fui o primeiro leitor das petições que fez ao rei
solicitando proteção, depois da proibição do Tartufo.
Sempre o defendi dos ataques que sofreu, e intercedi
para liberar suas peças. Obtive-lhe a proteção
do príncipe de Conti, trabalhei para que depois
conseguisse o amparo de Monsieur e finalmente o de
Sua Majestade. Minha vida estava ligada à de Molière.
Eu era seu amigo. (FONSECA, 2000, p. 35)
Mas ao mesmo tempo o Marquês também se revela como uma pessoa pouco
íntegra, segundo os valores da época, pois afirma não ter sentido remorso por
ter sido amante da mulher de seu amigo, e se defende citando mais uma vez
Michel de Montaigne, para quem o arrependimento seria “uma negação do
nosso desejo e uma oposição às nossas fantasias” (FONSECA, 2000, p. 35). Além
do mais, continua afirmando que todos cometiam adultério, “começando pelo
nosso próprio bem-amado rei, que levava as amantes para residir no palácio e
não podia ver mulher bonita sem cortejá-la” (FONSECA, 2000, p. 35) o que, para
ele, certamente, diminuiria sua culpa. Para se retratar decide, então, encontrar
o assassino de seu amigo Molière. Contudo, diz não ser possível fazer uso dos
meios usuais de investigação porque não poderia se envolver diretamente
no caso já que havia outros motivos para se esconder, os quais prefere não
comentar e que, além disso, guardava um segredo atormentador cuja revelação
poderia custar-lhe a vida (FONSECA, 2000, p.36). Assim, o Marquês narrador
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manipula seus leitores: apresenta-se freqüentemente como uma pessoa vaidosa,
sem escrúpulos, preocupada, sobretudo, com seus próprios interesses e,
evidentemente, com a proteção de sua reputação e posição social.
Já o capitulo seguinte, Um assunto do qual eu ainda não queria falar, aparenta
não ter nenhuma ligação com o objetivo principal da narrativa do Marquês,
que é encontrar o assassino de Molière. O próprio título que o Marquês dá ao
capítulo já nos põe em alerta porque, se é de um assunto do qual ele não queria
falar, então porque escrever?
O capítulo narra a execução de Jean Hamelin, conhecido como La Chaussée,
executado por ter envenenado, a mando da marquesa de Brinvilliers, os irmãos
de sua senhora. A tal execução é descrita em detalhes pelo marquês: “O carrasco
então, com uma barra de ferro, quebrou-lhe os ossos dos braços, dos antebraços,
das coxas, das pernas e do peito. A cada golpe a multidão gritava exultante”
(FONSECA, 2000, p. 39). Isso era feito por um carrasco experiente, “que tinha
ordem de fazer render o suplício, de retardar a morte” (FONSECA, 2000, p. 39).
Evidentemente esse capítulo não está aí por acaso: já sabemos que o Marquês
narrador é uma pessoa da qual devemos desconfiar já que guarda segredos que
colocam em risco sua vida. O risco de vida do qual o Marquês acabara de falar
no capítulo anterior poderia se concretizar da forma como ele narra a execução
de La Chaussée nesse capítulo.
No quarto capítulo, Minha outra amante, misteriosa, capítulo o Marquês fala do
seu receio quando à La Forest, cozinheira de Molière, pois tinha a impressão de
que esta desconfiava de que ele era amante de Armande. O relacionamento dos
dois começa a esfriar, provavelmente porque o Marquês tenha passado a sentir
remorso, como ele próprio o admite: “Ir para cama com ela, agora que Molière
estava morto, passara a ser uma traição à honra e à memória do meu amigo”
(FONSECA, 2000, p. 47). Antes da morte de Molière, diz o Marquês, “sempre
fora para a cama com Armande com a consciência tranqüila” (FONSECA, 2000,
p. 43); a morte de Molière, contudo, fez com que este se interpusesse entre ele
e Armande.
Aqui também é introduzido um novo elemento na narrativa: o Marquês tem uma
outra amante, por quem se diz “alucinadamente apaixonado” (FONSECA, 2000,
p. 44), embora mantenha a identidade desta amante em segredo. Encontramos,
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ainda, mais dados sobre o nosso narrador: em mais uma de suas digressões,
freqüentes na sua narrativa, o Marquês escreve que “à medida que envelhecia,
[se] tornava mais libidinoso” (FONSECA, 2000, p. 44), para em seguida narrar
em detalhes a relação sexual que mantivera com Armande, ainda que estivesse
apaixonado por outra. Mais uma vez o Marquês narrador revela-se uma pessoa
hipócrita e dissimulada, preocupado, acima de tudo, consigo mesmo.
Quando indagado por Armande a respeito do sigilo quanto à relação deles,
ele afirma ter “razões para ser prudente” (FONSECA, 2000, p. 46) embora não
as nomeie, e acaba por lhe revelar a confissão de Molière, ocultando-lhe, no
entanto, a existência de uma outra amante. Para o Marquês, Molière era um
“falso doente, como eram falsos todos os seus personagens doentes”, e conclui:
“Argan era ele, Alceste era ele, Arnolphe era ele, Harpagon, Tartufo, Ariste,
Mascarille, Monsieur Jordan, George Dandin, todos os seus personagens, por
mais paradoxal que possa parecer, de certa forma eram ele” (FONSECA, 2000,
p. 47). Assim, Molière traria em a semente de cada uma das mazelas a que seus
personagens davam vida e deveria ser punido por isso. Evidentemente essa não
é a opinião do Marquês narrador, que vê Molière como um grande homem e
excelente dramaturgo.
A identificação do autor com seus personagens, dentro do mundo da novela,
faz com que a vilania de Molière, apontada por várias das classes criticadas
por ele, aumente consideravelmente. Em vez de receberem as peças de Molière
como obras que faziam saltar aos olhos os males de uma sociedade hipócrita
através de caricaturas de indivíduos e não de uma classe, conforme demonstrou
Auerbach, parte do público sentia-se diretamente tocada exatamente por verem
a si mesmos retratados naqueles personagens.
Neste momento, o Marquês começa a enxergar os possíveis assassinos de
Molière, e vemos que ele encontra suas pistas nas próprias peças do comediante
bem como nos indivíduos que eram mais diretamente tocados por aquelas
peças:
Pela minha cabeça passava a imagem sem rosto de
uma preciosa ridícula, um burguês gentil-homem,
um padre, um fanático religioso, um nobre ofendido,
um autor consumido pela inveja e mesmo um ator
rancoroso, todos segurando um frasco de veneno.
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(FONSECA, 2000, p. 51).
Essa é a razão pela qual no capítulo quinto, Os salões das preciosas ridículas – e
das não ridículas, e nos três capítulos seguintes, o Marquês narrador utilizará
cenas das peças de Molière para introduzir na sua narrativa aquele que parece
ser, de fato, o maior achado da novela: o retrato de uma sociedade que vive de
aparências. O capítulo quinto é aberto com uma cena de As preciosas ridículas, comédia
que, segundo Gassner, “desfechou o golpe de morte no culto mais em voga na
corte” e cujas “defensoras ainda eram suficientemente poderosas para fazerem
sentir a sua ira” (GASSNER, 2002, p. 338). Molière, então, se defende, segundo
a narrativa do Marquês, afirmando atacar não todas as preciosas, mas somente
as ridículas, ou seja, as imitadoras burguesas. Todavia, o marquês admite que
Molière atacava diretamente as duas famosas: Madame Rambouillet e Madame
Scudéry (FONSECA, 2000, p. 57).
Neste capítulo o Marquês faz visitas a alguns dos famosos salões para ver se
Molière ainda era suficientemente odiado para que suas suspeitas recaíssem com
maior vigor sobre uma das preciosas. Mas, como afirma o próprio Marquês,
pouco tempo após a primeira apresentação da pela
ninguém mais se escandalizava com a sátira de
Molière. Relembrando a pouca indignação das pessoas
supostamente ofendidas que entrevistara nos salões,
concluí que ninguém daquele mundo envenenaria
ou mandaria envenenar o meu amigo. Podia, sem
susto, suprimir do meu rol de suspeitos uma preciosa
ridícula (FONSECA, 2000, p. 66)
O sexto capítulo traz um dos personagens mais marcantes de Molière: Tartufo. A
cena escolhida pelo Marquês é aquela em que Orgon descreve como encontrou
Tartufo e como se compadeceu dele, já que este parecia um exemplo de pessoa
devota. Entretanto, assevera o Marquês,
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[...] ele é um charlatão, um libidinoso, um hipócrita
que com suas tiradas santimônias retrata a beatice, o
fanatismo e a intolerância que preponderam no meio
religioso. Em minha opinião, beatos e padres da Igreja,
em sua maioria, são verdadeiros tartufos”(FONSECA,
2000, p. 70).
Dentre as peças de Molière, esta foi, certamente, a mais atacada e critica,
principalmente pelo clero, que via ali uma ridicularização da vida piedosa. Por
isso, conclui o Marquês, “Não seria nenhuma surpresa se o assassino de Molière
fosse um religioso fanático” (FONSECA, 2000, p. 73), pois “eles se viram no
Tartufo, são os maiores hipócritas, posso afirmar por conhecimento próprio,
usam como ninguém o nome de Deus para encobrir suas patifarias” (FONSECA,
2000, p. 74)
Na busca por um suspeito, vai até a casa de seu pai, que fora um membro do
Santíssimo Sacramento. Aqui, em um parêntese aberto pelo Marquês, este
comenta sua vida ímpia com amantes e amigos heréticos e principalmente
seu agnosticismo, que tanto incomodava a seu pai, mais até do que o fato do
Marquês não estar casado, e conclui, “sim, eu também era uma espécie de
tartufo” (FONSECA, 2000, p. 74). A ironia deste capítulo parece residir no fato
de que o Marquês acaba percebendo que também não fora nenhum clérigo que
mandara envenenar Molière, já que o sr. Couthon, seu suspeito, pois era clérigo
e vizinho de Molière, além do que viu os últimos momentos daquele, se não
estava sendo sincero nas suas palavras, não deixava isso transparecer: “confesso
que não consegui julgar se Couthon estava sendo ardiloso de alguma forma”
(FONSECA, 2000, p. 76).
Logo, ficamos sabendo não só que o próprio Marquês se considera um tartufo,
mais até do que o clérigo por ele entrevistado, como passamos a ter indícios
mais fortes da incompetência dele como investigador.
Também o capítulo seguinte, Dom Juan, o pecador irresistível, está às voltas
com o tema da hipocrisia. É notável, aqui, a sinceridade do Marquês para
consigo mesmo, ao comentar suas conclusões sobre a hipocrisia após assistir
Dom Juan:
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Na verdade somos todos hipócritas, e a falsa devoção
é uma das suas formas mais comuns. Levamos uma
vida corrupta e egoísta, membros da nobreza, da
burguesia, da magistratura, do clero, das profissões,
do comércio, até mesmo os camponeses, mas não
deixamos de praticar a religião, de confessar, com
falsa contrição, as nossas perversidades, as nossas
ignomínias, os nossos pecados, para depois poder
praticá-los, em segredo, novamente (FONSECA, 2000,
p. 84).
Todavia, e diferentemente dos outros, neste capítulo o Marquês não está atrás de
nenhum suspeito, parecendo servir, ao contrário, para reforçar a dissimulação
presente em todos os momentos da novela.
Já no oitavo capítulo, Sangria, clister e vomitório, uma longa cena de O amor
médico é descrita com o intuito de demonstrar a inaptidão e a charlatanice dos
médicos, tema recorrente na produção de Molière. Nesta peça, afirma o Marquês,
“cinco médicos charlatães são chamados. Eles representariam, como todo mundo
acabou percebendo, os doutores mais conhecidos da França” (FONSECA,
2000, p. 89). De acordo com Gassner, O amor médico “desferia alguns dardos
afiados aos pretensiosos médicos profissionais da época”, além de ser a obra
na qual Molière “denunciava seu jargão pseudocientífico e sua incompetência
cuidadosamente oculta” (GASSNER, 2002, p. 343). Evidentemente, por causa
desta peça, e de muitas outras como O doente imaginário, o Marquês foi capaz
de encontrar razões para suspeitar da classe médica: “Por que não um médico?
Eles são responsáveis por tantas mortes que mais uma não pesaria em suas
consciências” (FONSECA, 2000, p. 90); e continua afirmando que “Molière
tinha saúde fraca, mas não sofria de nenhuma doença grave – isso é uma
mentira que virou verdade, de tanto ser repetida” (FONSECA, 2000, p. 90). Por
isso, o Marquês decide conversar o outrora médico de Molière, dr. Mauvillan.
Este, contudo, impacienta-se com as argüições insinuadoras do Marquês e
retira-se. Este então conclui que “apesar de sabidamente contrário aos médicos
antiquados retratados por Molière e de sempre ter demonstrado cuidados
com o meu amigo, o dr. Mauvillan era um dos suspeitos de ter envenenado o
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comediante” (FONSECA, 2000, p. 91).
O nono capítulo, O labirinto, traz mais um dado interessante a respeito da
narrativa do Marquês, pois este admite ter que “confessar que nada fizera
de realmente útil para a descoberta do assassino” (FONSECA, 2000, p. 95). É
bem verdade que tem uma lista de suspeitos, na qual constam dr. Mauvillan,
Armande, La Forest, Baron o ator, abade Roullé e o sr. Couthon. No entanto,
descarta La Forest porque a cozinheira era a única pessoa da casa a quem Molière
tratava quase sempre bem. (FONSECA, 2000, p. 96). Quanto a Armande, esta
“era muito interesseira, e as pessoas interesseiras não cometem desatinos que
as prejudiquem” (FONSECA, 2000, p. 96), mas nos alerta dizendo que guarda
dúvidas quanto à inocência de Armande. Mostra-se também incerto quanto ao
que pensar de Baron, o ator, já que este “tratava Molière com o carinho que
um filho devota ao próprio pai. Mas, para um ator, fingir afeto e dissimular
ódio é fácil. Baron era rancoroso e vivia brigando, ou fingindo que brigava,
com Armande” (FONSECA, 2000, p. 97). O sr. Couthon já havia sido descartado
pelo Marquês quando este admite sua inépcia em perceber se o clérigo estava
fingindo ou não. O único que figura estranhamente na lista é o abade Roullé,
pois Marquês não explica o porquê de sua inclusão; contudo, trata-se de um
membro do clero, logo, um suspeito.
Em seguida, embora dissimuladamente, o Marquês reafirma o seu caráter
inescrupuloso e, em vez de dedicar-se com mais afinco no intuito de descobrir
o assassino de Molière, diz pra si mesmo “que a vida é mais importante que a
morte, que precisava esquecer as [suas] angústias. E que lugar melhor para isso
do que a agitação fútil dos salões?” (FONSECA, 2000, p. 98). Esta é a deixa que
o Marquês precisava para narrar mais um de seus casos libertinos, agora com a
Madame de Sévigné, a qual lhe revela que outra de suas amantes, a Marquesa
de Brinvilliers, estava presa, acusada de ter matado o pai e os dois irmãos. Só
então ficamos sabendo o porquê do medo do Marquês em se ver envolvido com
casos de envenenamento e de ter guardado segredo sobre a morte de Molière.
Esse porquê nos é revelado no capítulo seguinte, Algumas palavras sobre
um amor desvairado, que é aberto por uma reflexão do Marquês sobre o
pensamento de Montaigne, em que aquele reconhece, mais abertamente, a sua
já comentada libertinagem: “Meu mestre Michel de Montaigne aconselha a fugir
da volúpia, ainda que nos custe a vida, mas eu sempre me entreguei cegamente
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aos prazeres lascivos” (FONSECA, 2000, p. 105). Segue-se então uma descrição
de Marie-Madeleine d’Aubray, marquesa de Brinvilliers, e do relacionamento
que o Marquês mantivera com ela. Segundo o Marquês, essa seria a mulher que
amara loucamente, e por quem seria capaz de qualquer desatino (FONSECA,
2000, p. 106). Só depois de nos informar sobre quem era Marie-Madeleine e sobre
seu relacionamento com ela que o Marquês assegura ser possível comentar o
porquê de ter deixado Molière morrer sem socorro médico:
Posso agora revelar que o medo em que vivia, de ser
de alguma maneira envolvido no caso Brinvilliers,
foi o principal motivo pelo qual deixei o meu amigo
Molière morrer sem socorro médico. Eu não podia
levantar suspeitas que ligassem o meu nome a
mortes por envenenamento. Se eu fosse considerado
cúmplice de Marie-Madeleine não teria como escapar
da condenação à morte. (FONSECA, 2000, p. 106).
O capítulo seguite, La Reynie, reforça a tese de que o Marquês mantém, durante
toda a narrativa, uma preocupação maior consigo mesmo e com sua reputação
do que com a identidade do assassino de seu amigo Molière. Aqui vemos
uma conversa do Marquês com o magistrado La Reynie a respeito da prisão
de Marie-Madeleine, prisão essa que poderia ter resultados funestos para o
Marquês, caso ele fosse de alguma forma considerado cúmplice de assassinato.
(FONSECA, 2000, p. 109). No entanto, o marquês é inocentado pela marquesa,
que o considerava um ingênuo que a tratava como uma deusa.
Isso traz uma sensação de alívio para ele, e o que veremos nos capítulos seguintes
é a investigação ser relegada a um segundo plano para que o Marquês comente,
em Breve nota sobre a execução de Marie-Madeleine, a execução desta, narrada
em detalhes, à qual ele fora assistir. Em seguida, percebemos como a execução
da marquesa de Brinvilliers serviu pelo menos para fazer com que o Marquês
assuma seu remorso quanto a ter abandonado Molière:
Vê-la ser purificada de seus pecados por meio do
arrependimento e da morte? Que força desumana me
emprestava aquela coragem? Até hoje não sei explicar
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e sofro por isso, como sofro ao pensar quão covarde
fui ao abandonar Molière enquanto ele agonizava”
(FONSECA, 2000, p. 119).
O abandono temporário da investigação também servirá, veremos, para que nos
aprofundemos melhor na figura do Marquês, o que é mais evidente no capítulo
seguinte, Anos de melancolia. Surpreende-nos logo o título: foram anos de
melancolia, não dias ou meses. Se até o momento não havíamos tido nenhuma
informação a respeito da duração da investigação, logo ficaremos sabendo por
quanto tempo esta se arrastou.
Neste capítulo, o marquês relata ter-se entregado ao sofrimento após a morte de
Marie-Madeleine, e percebe que esse tipo de rendição não é uma “particularidade
feminina” e que “nenhum homem está livre de um dia ter, não importa o motivo,
a sua alma assolada por uma angústia que torna a sua existência insuportável”
(FONSECA, 2000, p. 123). E finalmente vemos um Marquês arrependido e
culpando-se do que se sucedera às suas amantes, Armande e Marie-Madeleine,
assim como da morte de seu amigo, além de outras vilanias:
Era culpado por Armande ter se corrompido, por ter
se casado com um ator medíocre; culpado por não
ter ajudado Marie-Madeleine a se livrar da maldade
que a pervertia; culpado por ter tratado com hipócrita
condescendência mulheres que de fato desprezava;
culpado por ter deixado Molière morrer abandonado.
Pensei em morrer. Lembrei-me de um pensamento de
Montaigne que diz ser a morte voluntária a mais bela;
a vida depende da vontade de outrem, a morte, da
nossa (FONSECA, 2000, p. 124).
O Marquês vai então buscar auxílio naquele que considera seu mestre, Michel
de Montaigne, mas só então, depois de ter aprendido com sua experiência, é
capaz de perceber que também Montaigne nada mais era do que um homem,
não melhor do que qualquer outro:
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Percebi, enquanto relia o seu livro, que o grande
pensador era contraditório, tinha dúvidas, não era
imune ao sofrimento, e mais: tinha preconceitos, era
injusto nos seus julgamentos, tinha suas fraquezas e
imperfeições, mas sabia que isso não o tornava menos
humano e digno (FONSECA, 2000, p. 124).
Só então o Marquês sente suas forças serem renovadas, quando fora capaz de
perceber que mesmo um grande homem como Montaigne também cometia lá
suas injustiças e tinha suas fraquezas e imperfeições. Entendemos, com isso, que
o Marquês tenha encontrado aí alento para superar suas angústias, pois aquela
leitura de Montaigne o fizera perceber que não havia motivos para recriminarse por causa de suas desvirtudes.
Por fim, no décimo quarto capítulo, Quem matou Molière, ficamos sabendo não
só a identidade daquele que envenenou o dramaturgo, como também vemos
o Marquês admitir sua inépcia como investigador, quando este afirma que
“jamais poderia desempenhar uma função como a de La Reynie, pois falta-me a
capacidade de estabelecer os nexos mais simples entre dados disponíveis para
a decifração de um enigma” (FONSECA, 2000, p.129). É exatamente isso que
vimos durante a sua narrativa: um investigador incapaz de fazer as perguntas
corretas e de relacionar os fatos e evidências que colhe para levá-lo até o assassino.
Entretanto, escusado é lembrar que foi justamente essa inépcia do Marquês que
nos permitiu, leitores, acesso àquilo que, deveras, acaba se tornado o cerne da
narrativa: a descrição da hipocrisia e falsidades da sociedade do século XVIII
que não diferem muito daquelas de nossa época.
Com o pretexto de tentar resolver sua situação amorosa com Armande, o
Marquês faz uma visita à madame Voisin, a quem pergunta se ela havia
vendido veneno a alguém interessado na morte de Molière, informação pela
qual o Marquês estava disposto a pagar. Como era de se esperar, a resposta
foi negativa. Evidentemente, ninguém em sã consciência se incriminaria de tal
forma. Quando o Marquês resolve fazer uma nova visita à madame Voisin, fica
sabendo que esta fora encarcerada por La Reynie após este ter descoberto o
envolvimento dela com diversas mortes por envenenamento.
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O Marquês vai novamente então à procura de La Reynie, a quem revela o que se
passara no dia da morte de Molière com o intuito de obter do magistrado alguma
informação que o levasse ao assassino. Todavia, quando do interrogatório de
mandame Voisin efetuado por La Reynie, nada referente à morte de Molière é
mencionado, e só então ficamos sabendo que já transcorreram quase seis anos
desde que Molière fora morto (FONSECA, 2000, p. 132).
Após muita insistência, o Marquês consegue uma entrevista com a madame
Voisin e esta lhe conta que quem envenenara Molière fora La Forest, a cozinheira,
o que desaponta o Marquês: “A assassina ser uma cozinheira tirava a paixão, a
grandeza, até mesmo o horror que aquele crime devia conter. Um homem como
Molière merecia ter como assassino o próprio rei” (FONSECA, 2000, p. 134)
Contudo, nos é revelado no último capítulo, Os verdadeiros culpados, que se
La Forest envenenou Molière, isso se deu graças ao mando da classe médica.
Ao ser presa, La Forest revela que fora o dr. d’Aquin, o médico do rei, junto
com os mais célebres doutores de Paris, que mandara envenenar Molière. Como
não poderiam encarcerar os médicos mais ilustres da capital francesa, “uma
lettre de cachet recolheu La Forest a uma masmorra e nunca mais se ouviu falar
dela” (FONSECA, 2000, p. 139). Ainda, como as investigações de La Reynie
estavam indo fundo demais, atingindo pessoas da alta sociedade, os processos
foram arquivados e foram emitidas lettres de cachet, documentos que serviam
para encarcerar, a mando do rei, e por tempo indeterminado, as pessoas cujas
culpas já haviam sido comprovadas. O que se depreende dessa situação é a
incapacidade de uma sociedade de lidar com suas imperfeições, e que por isso
precisa de subterfúgios para manter as aparências.
Enfim, e bastante irônico, o Marquês revela não freqüentar mais os salões,
embora não os tenha trocado por igrejas, pois não quer tornar-se “um desses
velhos que, com medo da morte, arrependidos com o que fizeram de sua vida,
por covardia ou esperteza indigna, passam a freqüentar as igrejas com um
terço na mão” (FONSECA, 2000, p. 139). Forçoso é reconhecer, no entanto, que
mesmo que o Marquês tenha admitido ser também um tartufo, não o é tanto
quanto outros descritos por ele, já que não faz questão de disfarçar sua tartufice
para seus leitores.
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Algumas palavras finais
Nesse breve percurso, pudemos perceber que se a narrativa do Marquês tem
vernizes de uma novela policial, não se atém lealmente ao gênero. É bem
verdade que encontramos ali as duas histórias que tipificam a narrativa policial
que, segundo Tzvetan Todorov, são a história do crime e a história do inquérito,
que não mantém nenhum ponto em comum (TODOROV, 2003, p. 96). Além do
mais, na investigação efetuada pelo Marquês, não pudemos recolher indícios
que nos levassem ao culpado. Este, na verdade, é descoberto como que por
acaso, e somente graças à confissão de alguém que estava envolvido no crime.
Lembremos também que na novela de Rubem Fonseca, a história do inquérito
é que nos chama mais atenção, pois é a partir dela que somos levados a tomar
consciência da hipocrisia da sociedade preocupada em manter as aparências,
o que é contrário à classificação de Todorov, segundo a qual a história do
inquérito “não tem nenhuma importância em si mesma, que serve somente de
mediadora entre o leitor e a história do crime” (TODOROV, 2003, p. 97). Assim,
fica evidente que a narrativa policial de Fonseca desrespeita as regras de S. S.
Van Dine, citadas e condensadas por Todorov (2003, p. 101): La Forest não é a
única culpada pela morte de Molière, uma vez que matou a mando de outros,
e que todos os ridicularizados por ele, de certa forma, desejavam sua morte;
La Forest não mata por razões pessoais, embora não seja uma profissional; La
Forest não goza de nenhuma importância, é uma empregada doméstica, e não
é uma das personagens principais; a investigação do Marquês não nos conduz
racionalmente ao culpado, ainda que no final sejamos obrigados a aceitar o
desfecho como verossímil; divagações e análises psicológicas são abundantes
na novela; por fim, o acaso da solução acaba por banalizá-la.
Todavia, entendemos que é justamente essa não-conformação às regras do gênero
que fazem da novela de Rubem Fonseca uma obra de grande interesse, pois está
perfeitamente de acordo com o que escreve Vera Lúcia Follain de Figueiredo,
em seu livro Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea, a
respeito da narrativa policial contemporânea:
A melhor ficção policial contemporânea recorre, então,
à convenção do gênero com uma dupla finalidade. De
um lado aproveita o que, já na narrativa de enigma
do século 19, apontava para a verdade como uma
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construção realizada a partir de uma combinatória
de dados. De outro, corrói a confiança nas estruturas
seqüenciais que, identificadas com a própria linha de
raciocínio, com a forma própria da razão, acabavam
por ordenar a busca da verdade num discurso
fechado, que eliminava as probabilidades e abolia o
acaso (FIGUEIREDO, 2003, p. 15).
A novela de Rubem Fonseca aponta justamente para esse estatuto relativizado
da verdade histórica, assim como para a impossibilidade de apreensão objetiva
do real. Ficamos constantemente inseguros quanto à veracidade, dentro do
universo da narrativa, do que está sendo narrado, uma vez que o próprio
narrador freqüentemente nos adverte e nos dá prova da subjetividade e da
parcialidade daquilo que narra. Pudemos confirmar, ainda, no que foi descrito
mais acima, aquilo que Vera Lúcia escreve no trecho a seguir:
O crime cometido pelos personagens é, ao mesmo
tempo, o pretexto (no sentido de que mascara, encobre
o verdadeiro motivo) e o ‘pré-texto’ sobre o qual se
dobra o texto que o interpreta – por isso, quando
bem arquitetado, aproxima-se da obra de arte, como
já antevira Thomas Quincey (FIGUEIREDO, 2003, p.
15).
Eis a razão pela qual não consideramos que a propósito maior da investigação,
no universo da novela, não seja encontrar o culpado, mas utilizar isso como
um pretexto para que o leitor tenha acesso a uma visão configurada de uma
realidade que se faz perceber mais fortemente.
Por fim, quanto ao anonimato do Marquês, acreditamos agora estar em
condições de avaliar melhor as razões para que ele se esconda de nós, leitores,
ao organizar suas reminiscências. Vera Lúcia explica que “o Marquês também
assume várias máscaras e daí explica-se o fato de ele não ter nome próprio”
(FIGUEIREDO, 2003, p. 66), ou seja, ele, como Molière, estaria simplesmente
representando vários papéis, tornando-se, por isso, nada mais que um hipócrita,
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termo que pode ser lido tanto na sua acepção grega quanto na moderna. Embora
não discorde desta opinião, acredito que ainda outras razões tenham levado o
Marquês ao anonimato: lembremos que, a todo o momento, ele se mostra um
homem medroso, que teme pela própria reputação mais do que está interessado
em descobrir a identidade do assassino; lembremos, ainda, que ele fora amante
de uma marquesa condenada à morte e que, por isso, temia ser ligado, ainda
que indiretamente, aos crimes cometidos por ela. Além do mais, o Marquês
foi amante de Armande, esposa de Molière, a qual, sendo uma atriz, não era
bem vista pela sociedade de então. Desta forma, conclui-se que o Marquês
certamente tinha uma reputação pela qual prezar e que não queria deixar que
sua vida sórdida e hipócrita, a qual ele assume abertamente porque está sob a
máscara do anonimato, a manchasse.
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Estudos sobre
Ensino
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PRODUÇÃO DE TEXTOS em sala de aula:
uma reflexão em torno da escrita e
reescrita de textos
Janayna Bertollo Cozer Casotti1*
Resumo: Neste artigo, propõe-se uma reflexão sobre o percurso que compreende
a proposta de produção, a escrita e a reescrita de textos em sala de aula. Nesse
sentido, parte-se da concepção de produção textual como atividade transitiva,
que envolve um dado interlocutor, objetivos determinados e também um
gênero. Conforme Rangel (2011, p. 60), “escrevemos em situações de comunicação
bastante precisas, capazes de balizar o quê e o como dizer, assim como o para
quem o diremos”. Dessa maneira, sob a ótica da Linguística Aplicada, em
interface com a Análise do Discurso e a Linguística Textual, serão analisadas
produções textuais de alunos, em contexto específico de manifestação da
opinião. Entendendo a opinião como um ato de linguagem que se vincula a
uma situação concreta e também como uma forma de ação “interindividual
finalisticamente orientada” (Koch, 2000, p. 9), considera-se importante verificar
o que este percurso que vai da proposta à reescrita de textos pode significar
tanto para o professor quanto para o aluno.
Palavras-chave: Produção de textos. Situação de comunicação. Reescrita.
Abstract: This article aims at reflecting on a route that includes the proposal of
production, writing and the rewriting of texts in the classroom. In this sense,
writing is assumed as a transitive activity involving a particular party, with
determined objectives and also a certain genre. According to Rangel (2011,
p 60), “we write in quite accurate communication situations which are able to
delimit what and how to say something, as well as to whom we will address it.”
Thus, from the point of view of Applied Linguistics, interfaced with Discourse
Analysis and Textual Linguistics, students’ textual productions in a specific
context where they express their opinion will be analyzed. Understanding the
* CASOTTI, Janayna Bertollo Cozer. Departamento de Línguas e Letras, Universidade
Federal do Espírito Santo, UFES, Vitória, Espírito Santo, Brasil, [email protected].
br
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opinion as an act of language that binds to a specific situation and also as a form
of an “interindividual finalistically oriented” action (Koch, 2000, p. 9), not to
mention that it is important to verify what the proposed route, which includes
the presentation of the activity itself and its rewriting, may mean both to teacher
and student.
Keywords: Production of texts. Communication situation. Rewriting.
Considerações iniciais
Este artigo tem como objetivo dar continuidade a uma pesquisa que vem sendo
realizada sobre produção de textos em sala de aula, numa proposta de reflexão
em torno da escrita e da reescrita de textos. Dessa forma, retomaremos aspectos
teóricos necessários à compreensão da situação do ensino de produção textual
para, em seguida, procedermos à análise de textos escritos por alunos, em
contexto específico de manifestação da opinião.
Bem sabemos que as demandas sociais têm exigido do cidadão uma postura
que vá além da simples observação dos fatos. Hoje, é realmente necessário que
o sujeito se mostre capaz de analisar criticamente a sua realidade social e que,
por meio da linguagem, possa intervir nela, exercendo, assim, plenamente a sua
cidadania.
Dessa forma, é fato que a escola tem um importante papel, uma vez que colabora
para a construção dessa postura crítica e atuante. Nesse sentido, os PCN’s (1997,
p. 25) defendem que uma “educação verdadeiramente comprometida com o
exercício da cidadania precisa criar condições para o desenvolvimento da
capacidade de uso eficaz da linguagem que satisfaça necessidades pessoais”.
Portanto, entendendo a leitura e a produção de textos como atividades de
linguagem que possibilitam essa participação social plena, pretendemos, neste
artigo, refletir sobre o percurso que compreende a proposta de produção, a
escrita e a reescrita de textos de opinião em sala de aula.
Assim, sob a ótica da Linguística Aplicada, em interface com a Análise do
Discurso e a Linguística Textual, analisaremos dois textos produzidos por
alunos, procurando reconhecer neles o trabalho que se realiza por meio da
linguagem.
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Ensino de produção de textos na escola
Hoje acreditamos que a produção de textos pode funcionar como princípio
organizador da prática de leitura e também da atividade de reflexão sobre língua
e linguagem. Por essa razão, concordamos com Possenti (2001), quando diz que
o ensino de língua materna consiste na produção textual. Para o domínio da
norma culta padrão, o caminho é a produção linguística do aluno e não a análise
gramatical pura e simples:
Na escola, as práticas mais relevantes serão, portanto,
escrever e ler. Claro que se falará às pampas na escola,
e, portanto, se ouvirá na mesma proporção (um pouco
menos, um pouco mais...). Mas, dado o projeto da
escola, ler e escrever são as atividades importantes.
Como aprendemos a falar? Falando e ouvindo. Como
aprenderemos a escrever? Escrevendo e lendo, e sendo
corrigidos, e reescrevendo, e tendo nossos textos lidos
e comentados muitas vezes, com uma frequência
semelhante à frequência da fala e das correções da
fala. (POSSENTI, 2001, p. 48)
No entanto, no ensino de língua, durante muito tempo, não era isso que
acontecia. Do final do século XVIII a meados do século XIX, o enfoque estava no
trabalho com regras da gramática normativa e na leitura como decodificação ou
memorização de textos literários. Somente indiretamente associava-se o ensino
de gramática e literatura à aprendizagem de produção textual. Meserani (2001,
p. 15) afirma que não se observavam “vínculos imediatos, relações causais
determinadas. Se o aluno não escrevesse bem, mas mostrasse ter decorado os
pontos do programa de literatura, seria avaliado por este conhecimento e não
por sua redação”. Assim, a produção de texto poderia (ou não) ser resultado de
um trabalho com a gramática e com a literatura.
O ensino sistemático da produção de textos se iniciará no contexto das disciplinas
de retórica, poética e literatura nacional, com a famosa composição, texto escrito
por alunos das séries finais do ensino secundário, como imitação dos modelos
provenientes das obras-primas nacionais. Como podemos ver, a produção
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escrita, naquele momento, era entendida como texto-produto, resultado de muita
leitura, do bom desempenho na fala e do pensar logicamente, pressupostos para
a boa redação.
Essa abordagem, de acordo com Bunzen (2006, p. 143), “voltada essencialmente
para a formação literária e propedêutica, nos acompanha até hoje, mesmo
depois da eliminação das disciplinas retórica e poética do currículo em 1890!”.
Por causa disso precisamos repensar a concepção de ensino de língua e,
consequentemente, de ensino de leitura e produção textual.
Na década de 60/70, mesmo com a inovação trazida pelo incentivo à criatividade
do aluno na escrita e também pelas primeiras modificações relacionadas aos
objetivos e à metodologia de ensino, propostas pela Lei de Diretrizes e Bases,
em 1971, a concepção de língua como código acaba se mantendo. Assim, o texto
é entendido como
[...] uma mensagem que contém um significado e que
precisa ser decodificada pelo receptor. A língua é vista
como um ‘arco-íris imóvel’ (Bakhtin/Volochinov,
1929), isto é, um conjunto de sinais com normas fixas
que precisam ser decodificados para que ocorra a
compreensão, ou a decodificação. Nessa direção,
produzir um texto é submeter uma mensagem a uma
codificação, o que é, em certo sentido, uma visão
bastante reducionista da própria interação verbal,
seja escrita ou oral, pois observa a língua de forma
monológica e a-histórica. (BUNZEN, 2006, p. 145)
Além disso, na década de 70, a estratégia da política educacional brasileira, para
tentar resolver o problema do desempenho dos alunos em produção de textos,
foi tornar obrigatória a prova de redação nos exames de ingresso ao ensino
superior. No entanto, os resultados obtidos só acentuaram as preocupações em
relação à prática de produção textual.
De acordo com o último relatório pedagógico do Enem, por exemplo, em 2007,
a média geral obtida na produção escrita foi de 55,99. Além disso, metade dos
alunos obteve nota igual ou inferior a 57,50 e somente 5% atingiram nota igual
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ou superior a 77,50. Como podemos ver, os números acabam confirmando que
a obrigatoriedade de uma avaliação não garante proficiência em produção
textual.
Avaliações em larga escala não resolvem - é bem verdade - os problemas de
leitura e escrita dos alunos. Todavia, elas sinalizam a premência de se refletir
sobre isso. É nesse sentido que a Linguística Aplicada, tal como aponta Moita
Lopes (1996, p. 22), contribui sobremaneira, uma vez que se volta a questões
relacionadas ao uso da linguagem em sala de aula.
O objetivo deste trabalho é, portanto, investigar o percurso envolvido na prática
de escrita de textos de opinião em sala de aula, considerando a produção textual
na perspectiva do gênero. Por isso, trataremos, na próxima seção, da importância
da noção gênero textual.
A importância dos gêneros textuais
Entendendo a linguagem como interação social, que se realiza, muitas vezes, sob
a forma de enunciados orais ou escritos, enfatizaremos, aqui, as contribuições
de Bakhtin (1999) no que diz respeito à noção de gênero. Segundo o teórico,
cada enunciado produzido reflete as condições e as finalidades das esferas de
comunicação
[...] não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo
verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da
língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais
-, mas também, e sobretudo, por sua construção
composicional. Estes três elementos (conteúdo
temático, estilo e construção composicional) fundemse indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos
eles são marcados pela especificidade de uma esfera
de comunicação. Qualquer enunciado considerado
isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de
utilização da língua elabora seus tipos relativamente
estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos
gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2000, p. 279).
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Ao tratar do enunciado como unidade real da comunicação verbal, Bakhtin aponta
três elementos responsáveis pela constituição dos gêneros: o conteúdo temático,
o estilo e a construção composicional.
O primeiro elemento, o conteúdo temático, designa aquilo de que se fala no
enunciado, sendo necessariamente veiculado por certa construção composicional
e realizando-se linguisticamente de acordo com o estilo do locutor. Conforme
Bakhtin, o tratamento exaustivo desse conteúdo temático varia de acordo com
a esfera de comunicação verbal: pode ser quase total em uma esfera e relativo
em outra, devendo haver sempre um mínimo de acabamento como forma
de provocar, no dizer de Bakhtin, uma atitude responsiva do interlocutor. (Cf.
Bakhtin, 2000, p. 299-300).
Já o segundo elemento, o estilo, remete a questões de seleção: recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais, os quais auxiliam na identificação do escopo
intencional do locutor. Uma ampliação do conceito de escopo intencional é o
que Bakhtin chama de intuito discursivo ou o querer-dizer do locutor. É preciso
estar, portanto, diretamente implicado numa comunicação, conhecer a situação
e os enunciados anteriores para captar tal intuito.
Não é difícil entender que o enunciado, em qualquer esfera de comunicação,
por ser individual, reflete a individualidade do locutor e, assim, apresenta um
estilo individual. Há gêneros – como os literários – de cujo empreendimento
enunciativo esse estilo individual faz parte. Mas também há os que são menos
propensos a refletir tal individualidade, por possuírem estrutura mais rígida,
como, por exemplo, os documentos oficiais. E embora existam gêneros assim, é
fato que o estilo linguístico ou funcional, que Bakhtin (2000, p. 283) determina
como “o estilo de um gênero peculiar a uma dada esfera da atividade e da
comunicação humana”, apresenta um vínculo indissolúvel com o enunciado.
Para Bakhtin, esse estilo vincula-se
[...] a unidades temáticas determinadas e, o
que é particularmente importante, a unidades
composicionais: tipo de estruturação e de conclusão
de um todo, tipo de relação entre o locutor e os outros
parceiros da comunicação verbal (relação com o
ouvinte, ou com o leitor, com o interlocutor, com o
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discurso do outro, etc.). O estilo entra como elemento
na unidade de gênero de um enunciado. (BAKHTIN,
2000, p. 284).
Por fim, a construção composicional, terceiro elemento responsável pela
constituição de um gênero, designa a maneira como conteúdo e estilo são
organizados para dar forma ao texto. As formas típicas de estruturação do
gênero são determinadas de acordo com a especificidade de uma dada esfera
de comunicação verbal, com a necessidade de uma temática e com o intuito
discursivo do locutor que, sem renunciar à sua subjetividade, vai adaptar-se e
ajustar-se ao gênero.
Partindo, pois, da concepção de produção textual na perspectiva do gênero,
compreendida como atividade transitiva, pretendemos analisar, neste trabalho,
o percurso envolvido na prática de escrita de textos de opinião, desde a proposta
de produção até a de reescrita. Por isso, faz-se necessária a próxima seção.
O contexto de produção dos textos
Considerando, tal como Rangel (2011, p. 60), que a produção de um texto
envolve um dado interlocutor, objetivos determinados e também um gênero,
uma vez que “escrevemos em situações de comunicação bastante precisas,
capazes de balizar o quê e o como dizer, assim como o para quem o diremos”,
faz-se necessário que, num primeiro momento, levemos em conta o contexto de
produção dos textos que serão analisados.
Portanto, o corpus deste trabalho é constituído por produções de alunos
universitários, de 1º período, no contexto da disciplina de Língua Portuguesa.
Esses alunos foram convidados, em algumas aulas de Língua Portuguesa, a
manifestar a opinião acerca da seguinte questão polêmica: O Brasil é referência
em preservação de água?
Essa questão surgiu a partir da leitura e discussão de um texto jornalístico,
escrito por Débora Spitzcovsky e publicado em Planeta Sustentável, no dia 07
de maio de 2009. O título desse texto coincidia com a questão a que os alunos
deveriam responder: Brasil é referência mundial para preservação da água?
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Em linhas gerais, o texto aborda a criação do Instituto Hidroex, situado na região
do Triângulo Mineiro. Conforme Spitzcovsky (2009), fica fácil compreender por
que a sede do Instituto é Minas Gerais:
Entender sobre a utilização e preservação do recurso
hídrico, portanto, é praticamente obrigatório no
país, principalmente, na região que é conhecida por
ser a “Caixa d’água do Brasil”, como é o caso de
Minas Gerais. O estado é o maior fornecedor de água
potável no país e, ainda, é divisor de várias bacias
hidrográficas, inclusive internacionais.
Nesse cenário, foi praticamente irresistível a criação
do Instituto Hidroex, na região do Triângulo Mineiro,
em 2001, para atuar como centro produtor e difusor
de conhecimento das questões relacionadas à água na
América Latina e na África. (Spitzcovsky, 2009)
No momento em que o texto foi publicado, havia indícios de que tal Instituto
fosse incluído na rede internacional de referência em recursos hídricos da
Unesco, o que, de fato, veio a acontecer meses depois.
Após a leitura e discussão do texto de Débora Spitzcovsky, foram lidos dois
outros textos jornalísticos: Poluição e desperdício reduzem a água disponível no Brasil,
escrito por Sérgio Adeodato, em 2009, para o Guia do Estudante; e também A
água é um recurso natural esgotável, escrito por Luís Souza para a Revista Nova
Escola e publicado em 2010. O objetivo desses dois outros textos era provocar
um confronto de pontos de vista, que, assim, pudesse servir para o debate dos
alunos sobre o tema: uns, defendendo o fato de o Brasil poder ser referência
mundial em preservação da água; outros, mostrando-se contrários a isso.
Depois do debate, os alunos passaram à escrita do texto. Eles precisavam se
colocar na posição de um articulista decidido a dialogar com os textos lidos e
fariam isso por meio de um artigo jornalístico opinativo.
Considerando que todo texto se realiza a partir de um determinado gênero, é
importante, aqui, tratar do gênero proposto: o artigo de opinião. Nesse sentido,
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vale mencionar o que disse Uber (2008):
Os artigos de opinião abordam questões polêmicas
que envolvem a coletividade, dessa forma, é
imprescindível que a participação no mundo seja
menos alienada, mais completa, mais participativa.
Através do conhecimento da opinião alheia sobre
a nossa, torna-se possível rever valores e aceitá-los,
transformá-los ou refutá-los, e escrever artigos de
opinião nos possibilita explicitar nossas opiniões
a respeito de diferentes temas. Por ser um gênero
que tem sua circulação em jornais, revistas e sites na
internet, possibilita o acesso a um grande número
de indivíduos que podem ter sua participação tanto
como leitores, quanto como escritores de seu próprio
artigo. (UBER, 2008, p. 7)
Assim, é necessário observar o artigo de opinião no escopo de um contrato
comunicativo diferente daquele definido para a notícia, a reportagem, o resumo
de novela. Daí a importância de reconhecer no gênero artigo de opinião sua função
comunicativa, distinta da função de outros gêneros textuais.
As produções textuais dos alunos
Já dissemos anteriormente que os textos ora analisados integram
uma série de produções individuais de alunos universitários, no contexto da
disciplina de Língua Portuguesa. Tal disciplina tinha como objetivo precípuo
o trabalho com leitura e produção textual. Assim, de, aproximadamente,
cinquenta produções de uma turma, selecionamos duas para análise. Optamos
pela transcrição integral dos textos escritos pelos alunos, a fim de melhor
acompanhar a análise:
O nosso território brasileiro possui cerca de 12%
da água doce existente na superfície do mundo e é
exatamente por esse motivo que até hoje não aceito e
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não me conformo na situação de milhares de famílias
presentes neste país que ainda sofrem com a falta
deste líquido tão precioso no cotidiano de suas vidas.
Existem diversos fatores que façam com que haja a
escasses de água para inúmeros brasileiros, como
por exemplo a falta de investimentos de nossos
líderes governamentais em relação a este assunto tão
importante. Estão mais preocupados com assuntos
fúteis, do que na situação de muitos que choram e
sofrem por não ter um copo de água para beber, e
na situação agravante em se encontram nossos rios,
lagos, mares e entre outros.
Outro fator importante é o uso inadequado desta fonte
de sustentabilidade ao qual ninguém sobrevive sem.
Enquanto milhares de pessoas sofrem com a escasses
da água, outras milhares esbanjam sem pensar nas
consequências futuras que pode trazer.
Por esses motivos e por outros diversos fazem com que
o Brasil não seja referência mundial na preservação
da água.
Muitas vezes esperamos pelos nossos governantes
para tomar uma atitude sobre esta situação e nos
esquecemos que a atitude tem que ser iniciada em nós
mesmos. Se cada um fizesse a sua parte o nosso país
poderia sim ser um exemplo mas se continuar-mos
assim a situação só irá se agravar e piorar ainda mais
a vida das futuras gerações que ainda virão.
O aluno-autor inicia seu artigo dialogando com, pelo menos, dois dos textos
lidos e discutidos em sala de aula, quando diz: “O nosso território brasileiro
possui cerca de 12% da água doce existente na superfície do mundo”. No texto,
Poluição e desperdício reduzem a água disponível no Brasil, Sérgio Adeotado (2009)
caracteriza o Brasil como país privilegiado: “Sozinho, detém 12% da água doce
de superfície do mundo, o rio de maior volume e um dos principais aquíferos
subterrâneos, além de invejáveis índices de chuva”. Também no texto A água é
um recurso natural esgotável, Luís Souza (2010) diz que, embora o Brasil possua
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“entre 12 e 16% da água doce da superfície do planeta, o país sofre com a
distribuição irregular, a poluição e o desperdício”.
Nesse sentido, já observamos a importância de um primeiro movimento de
interação em sala de aula, a fim de promover a alimentação temática, por meio
de textos que explorem a questão. Bem sabemos que, ao fazer isso, o professor
estará proporcionando a ampliação do repertório do aluno, o que é necessário,
sobretudo, quando se trata do gênero artigo de opinião, em que o autor não vai
apenas informar, mas também manifestar seu ponto de vista sobre uma questão
polêmica.
O aluno-autor se utiliza desta primeira informação - a de que o Brasil possui
cerca de 12% da água doce de superfície do mundo - para atribuir a ela o motivo
de sua manifestação: “e é exatamente por esse motivo que até hoje não aceito
e não me conformo na situação de milhares de famílias presentes neste país
que ainda sofrem com a falta deste líquido tão precioso no cotidiano de suas
vidas”. Percebemos aí uma reflexão um tanto quanto ingênua de que, se há
muita água, não deveria haver escassez. Além disso, há também um discurso
muito próximo do sensacionalismo, que extrai do fato – famílias que vivem o
drama da falta de água - a sua carga emotiva e a enaltece. Assim, atribui-se à
quantidade de água que o Brasil possui a garantia de recurso abundante para
todos, o que não é verdade.
No segundo parágrafo do texto, de onde poderíamos esperar as razões para a
manifestação feita no parágrafo anterior, o aluno-autor sugere a existência de
fatores que causam a escassez, no entanto, quando trata disso, o faz de maneira
incompleta: ao se referir, por exemplo, à falta de investimentos por parte dos
governantes, não diz exatamente de que natureza seria esse investimento. De
acordo com o aluno-autor, nossos líderes se preocupam mais com “assuntos
fúteis, do que na situação de muitos que choram e sofrem por não ter um copo
de água para beber, e na situação agravante em se encontram nossos rios, lagos,
mares e entre outros”. Assim, retoma a situação das famílias brasileiras que
vivem o drama da falta de água e acrescenta a situação dos nossos rios, lagos e
mares, presumindo que o leitor de seu texto já saiba do que está falando.
No parágrafo seguinte, percebemos que o aluno procura relacionar o uso
inadequado desse recurso como fator responsável pela escassez: “Enquanto
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milhares de pessoas sofrem com a escasses da água outras milhares esbanjam
sem pensar nas consequências futuras que pode trazer”. Mas faz isso por meio
de um discurso redundante, que vai se repetir no último parágrafo. No penúltimo
parágrafo, há a informação explícita de que o Brasil não pode ser referência em
preservação de água, maneira encontrada para responder à questão polêmica.
Já no último parágrafo, o aluno-autor que atribuíra a escassez de água, em
primeiro lugar, à falta de investimentos por parte dos nossos governantes,
agora, tira deles a responsabilidade, passando-a à população. Parece haver,
aqui, contradição. Segundo o aluno-autor, nós “nos esquecemos que a atitude
tem que ser iniciada em nós mesmos. Se cada um fizesse a sua parte o nosso
país poderia sim ser um exemplo mas se continuar-mos assim a situação só irá
se agravar e piorar ainda mais a vida das futuras gerações que ainda virão”. E
surgem os clichês e, mais uma vez, ressoa o discurso redundante, sinalizando a
baixa informatividade do texto.
Após a escrita do texto, propomos aos alunos um momento de discussão em
torno dos textos produzidos. Nesse momento de interação, além de terem a
oportunidade de contemplar textos de colegas da turma, a partir dos quais
conversamos sobre aspectos mais gerais que precisariam ser considerados na
reescrita, os alunos também tiveram oportunidade de observar as orientações
no próprio texto e conversar sobre elas, dirimindo suas dúvidas. O texto abaixo
constitui, portanto, a segunda versão apresentada pelo aluno:
O Brasil possui cerca de 12% da água doce existente
na superfície do mundo, porém, essa abundância faz
a massa da população brasileira se esquecer de que,
algum dia, este líquido precioso poderá chegar ao
fim, pois é cada vez mais crescente o uso inadequado
dessa fonte de sustentabilidade. Devido a esse fator
e a outros que relataremos no decorrer deste texto, o
Brasil não pode ser referência mundial na preservação
desse líquido precioso.
Inúmeras pessoas pensam que estão usando a água
de acordo com suas necessidades, mas na realidade
está havendo um grande desperdício. Por exemplo,
quando lavamos louças, não notamos que, na maioria
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das vezes, a torneira fica aberta o tempo todo. O mesmo
acontece quando vamos tomar banho, lavar o carro e
realizar outras atividades. Isso não é necessidade. É
falta de consciência, pois o nosso dever é economizar
essa fonte natural, e além disso devemos pensar nas
inúmeras pessoas que já sofrem com sua escassez.
A falta de investimentos, projetos e ações do governo
em relação a este assunto, é outro fator que faz o Brasil
não ser referência mundial na preservação da água.
Nossos líderes públicos deveriam se preocupar mais
com essa questão e realizar obras favoráveis para a
preservação desse líquido precioso.
Mas, muitas vezes, esperamos, primeiramente,
nossos governantes tomarem alguma atitude sobre
esta situação e nos esquecemos de que a atitude deve
se iniciar em nós mesmos. Devemos nos preocupar
mais com a situação da água em nosso Brasil, pois ela
é uma fonte natural, sem a qual ninguém sobrevive.
Notamos, já no primeiro parágrafo, que o aluno-autor apresenta claramente o
ponto de vista que pretende defender: o fato de o Brasil não poder ser referência
em preservação de água. Também estão mais claras as relações entre as orações.
O Brasil é apontado como país que possui cerca de 12% da água de superfície do
mundo, o que deveria ser considerado como algo positivo. Mas, no contexto, não
é o que acontece: o emprego da conjunção adversativa porém sinaliza oposição
em relação à ideia anterior; e, em seguida, a consequência, também negativa,
gerada pela abundância desse recurso natural: as pessoas se esquecem de que a
água é um bem finito. A seguir, o aluno-autor explica as afirmações anteriores
e indica uma primeira causa de o Brasil não poder ser considerado modelo no
que tange à preservação de água: o uso inadequado desse recurso natural.
A aproximação anteriormente gerada pelo emprego do pronome nosso, na
primeira versão do texto (“O nosso território brasileiro possui cerca de 12%
da água doce existente na superfície do mundo”), não acontece mais neste
mesmo ponto do texto, mas volta a acontecer no segundo parágrafo, quando
são citados os exemplos de desperdício. Desse modo, percebemos que o alunoSABERES Letras
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autor se inclui nesse grupo, uma vez que utiliza os verbos - lavamos, notamos,
vamos tomar, devemos pensar - na primeira pessoa do plural e também o pronome
nosso quando diz: “nosso dever é economizar”.
No segundo parágrafo, destaca-se, pois, o desperdício como uso inadequado
da água. A responsabilidade, neste caso, seria da população, que não tem
consciência do prejuízo causado com a utilização da água em demasia. O alunoautor dá, então, alguns exemplos cotidianos de desperdício de água. Após isso,
volta-se aos governantes, passando a eles também a responsabilidade por obras
que sejam “favoráveis para a preservação desse líquido precioso”. Apesar de,
em relação à primeira versão, ampliar um pouco o que seria responsabilidade
do governo, ainda não sabemos que obras seriam essas. Assim, de acordo com
o texto, são duas as causas de o Brasil não poder ser considerado modelo em
preservação de água: a população que desperdiça água, e o governo que não
procura investir em ações de preservação.
Então, chega-se a uma conclusão que a segunda versão não sugere contradição,
uma vez que o aluno-autor se referia, no parágrafo anterior, ao governo e,
para concluir, emprega a conjunção adversativa mas, sugerindo que as ações
do governo são importantes sim; no entanto, não podemos ficar esperando
apenas isso: é preciso que toda a população se preocupe mais com a água. Como
podemos ver, em termos de progressão textual e informatividade, esta versão se
distingue da primeira, apresentada pelo aluno.
Como o corpus deste trabalho é composto por duas produções textuais,
passaremos, agora, à análise do segundo texto, apresentado por outro aluno da
turma:
No Brasil, de alguns anos atrás até o momento atual,
está havendo uma grande mobilização para que as
pessoas vivam de maneira sustentável, são ações que
tentam fazer com que as pessoas tenham uma relação
menos predatória com o meio ambiente.
Penso que para se tornar referência em algo precisa
primeiramente dar o exemplo, e o Brasil está muito
longe de ser um ícone na preservação de água. Num
país que a população de um modo geral não consegue
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economizar, que o governo não consegue fazer de
forma coerente uma política pública de preservação
das matas siliares, ou de conscientização do uso de
água potável, creio que será bastante trabalhoso para
a pessoa que irá nos representar, se isso acontecer
algum dia.
Num país em que grande parte dos mananciais de suas
grandes cidades são poluídos, com pequenas cidades
que “almejam” chegar a 100% do esgoto tratado, com
dificuldade para levar água potável, um direito básico
de todo cidadão, para lugares mais carentes.
E voltando ao primeiro parágrafo, a ideia de
sustentável em nosso país ainda é embrionária, há
um longo caminho para que sejamos referência na
preservação de água, num país com tanta abundância
desse recurso, que em algumas regiões é de tão fácil
acesso, diminuir o volume de consumo é difícil, mas
não impossível.
No primeiro parágrafo, percebemos que o aluno-autor apresenta duas ideias
que poderiam sugerir seu ponto de vista, quais sejam: a mobilização em favor
da sustentabilidade e a existência de ações menos predatórias em relação ao
meio ambiente. No entanto, observamos, no segundo parágrafo, que não é
bem isso que ele pretende defender. Por isso, se estabelece, entre o primeiro e o
segundo parágrafo, uma ruptura.
Analisando o texto como um todo, notamos que o aluno-autor quer defender
o fato de a sustentabilidade constituir uma ideia ainda embrionária em nosso
país, porém, não faz isso no primeiro parágrafo e, sim, no último, onde chega a
explicitar, mesmo que equivocadamente, um elemento de continuidade textual:
“E voltando ao primeiro parágrafo, a ideia de sustentável em nosso país ainda é
embrionária, há um longo caminho para que sejamos referência na preservação
de água”. Desse modo, revela-se uma ideia que contradiz a primeira, expressa
no parágrafo de introdução: como seria possível haver uma grande mobilização
em torno da sustentabilidade e, ao mesmo tempo, a ideia de sustentabilidade
no Brasil ser embrionária?
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Assim, percebemos ser esta a tese que ele pretende defender (a da sustentabilidade
como ideia embrionária em nosso país) e as outras duas (como já mencionamos,
a da mobilização em favor da sustentabilidade e a da existência de ações menos
predatórias em relação ao meio ambiente), as que pretende refutar. Ora, se o
objetivo do aluno-autor era estabelecer essa relação tese x antítese, isso deveria
ter sido explicitado no primeiro parágrafo, a partir de um raciocínio adversativo
ou concessivo, para garantir, assim, o efeito argumentativo desejado.
No segundo parágrafo, notamos que o aluno não dá a informação necessária ao
leitor do jornal, onde, provavelmente, seu texto poderia ser publicado: “Penso
que para se tornar referência em algo precisa primeiramente dar o exemplo”.
O leitor não saberia, por exemplo, por que o autor está tratando do tema “ser
referência”, se, anteriormente, ele não fala disso. Essa informação é presumível
para quem elaborou a proposta de produção, mas não para o leitor do jornal.
Isso evidencia que o aluno-autor tinha em vista o professor que elaborou a
proposta e os convidou a escrever o texto. Obviamente, adiante, o leitor acaba
encontrando a informação. Todavia, tal lacuna denota a ausência de retomada
de referente, o que é inadequado, uma vez que o texto perde em continuidade.
Não obstante a lacuna, reconhecemos, no início do segundo parágrafo, um
argumento: a importância do exemplo para que se cumpra o desejo de ser
referência. Embora o aluno tenha se baseado em um lugar-comum, em seguida,
explica muito bem por que o Brasil não é exemplo: a população não economiza,
e o governo não consegue realizar política pública para preservação das matas
ciliares ou para conscientização em relação ao uso da água potável. E, então,
ele conclui que tornar o Brasil referência constitui um empreendimento árduo
para quem nos representa, retirando, assim, a responsabilidade da sociedade
em geral e, ainda, manifestando dúvida em relação ao fato de o Brasil poder ser
referência um dia.
Ainda que o aluno, no terceiro parágrafo, não termine a ideia que vem
desenvolvendo, ele apresenta aí outras razões pelas quais o Brasil não pode ser
referência. Vale mencionar, neste caso, o fato de o aluno-autor estabelecer um
diálogo com os textos lidos e discutidos em sala de aula. O texto A água é um
recurso natural esgotável, de Luís Souza, por exemplo, traz a seguinte informação:
“Há ainda questões como garantir à população das periferias das grandes
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cidades o acesso à água potável e de boa qualidade. Nos grandes centros
urbanos, os rios e as represas estão poluídos” (SOUZA, 2010), o que se revela
no texto do aluno.
No último parágrafo, o aluno-autor confirma a tese que vem defendendo: “há um
longo caminho para que sejamos referência na preservação de água”. Todavia,
acaba repetindo ideias (“num país com tanta abundância desse recurso, que
em algumas regiões é de tão fácil acesso”), para, então, apontar uma solução:
“diminuir o volume de consumo é difícil, mas não impossível”.
Tal como o primeiro texto aqui apresentado e analisado, também este passou
pela reescrita. Assim, após a discussão empreendida em sala de aula sobre os
textos produzidos, o aluno apresentou sua segunda versão:
No Brasil, de alguns anos atrás até o momento atual,
está havendo uma grande mobilização para que as
pessoas vivam de maneira sustentável. São ações que
tentam fazer com que elas tenham uma relação menos
predatória com o meio ambiente. Contudo, essa é
ainda uma ideia embrionária que requer mais atenção
por parte de nossas autoridades.
Para o Brasil se tornar referência mundial em
preservação de água, precisa primeiramente dar
o exemplo, e o nosso país está longe disso, com a
situação que se encontram nossos rios, matas ciliares,
saneamento básico e com a pouca instrução da
população no que diz respeito ao tratamento que se
deve dar a esse recurso.
Para um país em que grande parte dos mananciais
de suas grandes cidades são poluídos; com poucas
cidades que “almejam” chegar a 100% do esgoto
tratado; com dificuldade para levar água potável,
um direito básico de todo cidadão, para lugares
mais carentes, fica realmente complicado falar na
possibilidade de ser referência em preservação.
No Brasil, precisamente na região do Triângulo
Mineiro, existe um centro que atua como reprodutor
e difusor das ideias referentes à preservação da água
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na África e na América Latina. Tal centro é o Instituo
Hidroex, que almeja se tornar referência mundial,
assim elevando o status do Brasil como um dos países
que realmente preserva sua água.
Entretanto, não adianta apenas ter um projeto de
grande amplitude como esse para o Brasil se tornar
referência nesse assunto. É ineficaz ter a solução
somente no papel. Tem que existir a ação na prática
para mudar a situação de descaso em que vive o meio
ambiente.
Nesta segunda versão, observamos, já no primeiro parágrafo, que a relação
de adversidade, explicitada pelo conectivo contudo, permite-nos entender a
posição que o aluno-autor defende: a sustentabilidade ainda como uma ideia
embrionária em nosso país, apesar das várias ações investidas para que as
pessoas tenham uma relação menos predatória em relação ao meio ambiente.
Ainda assim, notamos algumas lacunas que o aluno-autor, em uma terceira
versão de seu texto, poderia preencher como, por exemplo, o fato de se referir
apenas às autoridades - e não à população em geral - como responsáveis
pela modificação da situação atual; e também o fato de ter aberto novamente
o segundo parágrafo apresentando o que é necessário para que o Brasil seja
referência em preservação de água. Essa noção de referência ainda não havia
sido contemplada no parágrafo anterior.
Não obstante isso, o segundo parágrafo traz os problemas que fazem o alunoautor defender a tese de que o Brasil não pode ser referência: “o nosso país
está longe disso, com a situação que se encontram nossos rios, matas ciliares,
saneamento básico e com a pouca instrução da população no que diz respeito
ao tratamento que se deve dar a esse recurso.”
Consideramos importante ressaltar também que, após a discussão sobre os
textos produzidos, principalmente no que diz respeito ao gênero textual, o
aluno-autor, nesta segunda versão, também apresenta as vozes contrárias ao
ponto de vista que ele defende, para com elas dialogar e, então, refutá-las.
Como já dissemos, no primeiro parágrafo, percebemos essa voz, quando são
apontadas as ações existentes em prol da sustentabilidade. E, para refutá-la, o
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aluno afirma que a ideia de sustentabilidade é ainda embrionária.
Além disso, no penúltimo parágrafo, o aluno-autor apresenta outra voz contrária
a seu ponto de vista, quando fala da existência do Instituto Hidroex como
“centro que atua como reprodutor e difusor das ideias referentes à preservação
da água na África e na América Latina”. Isso nos permite considerar que esta
versão está mais próxima do que se entende por artigo de opinião.
De fato, no último parágrafo, o aluno-autor vai refutar essa voz e, para isso,
já o inicia com uma conjunção adversativa, marcando oposição em relação à
ideia apresentada no parágrafo anterior: “Entretanto, não adianta apenas ter
um projeto de grande amplitude como esse para o Brasil se tornar referência
nesse assunto. É ineficaz ter a solução somente no papel”. Então, encerra seu
texto com o que, para ele, seria uma solução: “Tem que existir a ação na prática
para mudar a situação de descaso em que vive o meio ambiente”.
Embora tenhamos percebido que ambos os textos, mesmo após a reescrita,
ainda carecem de argumentos manifestando uma reflexão em torno da questão
polêmica, há uma diferença considerável entre a primeira e a segunda versão:
os textos ganham, sobretudo, em progressão temática. Isso nos mostra como o
trabalho de reescrita pode constituir importante estratégia didática no sentido
de promover a autonomia do aluno na escrita de seu texto.
Considerações Finais
A análise aqui realizada comprova, pois, que o trabalho de interação realizado em
sala de aula, por meio da leitura de textos sobre o tema em questão (preservação
ambiental) e também pela discussão acerca desses textos, antes da produção
escrita e, até mesmo, no momento da reescrita, pode ajudar o aluno a ampliar
significativamente seu universo de conhecimento.
De fato, a interação tem papel preponderante na história de amadurecimento
do sujeito-leitor e do sujeito-produtor. Por isso, entendemos ser necessário um
trabalho que proponha a construção conjunta de conhecimentos e habilidades e
que torne possível não só a revelação do universo de experiências, mas também
a ampliação de seus conhecimentos prévios, pois, para compreender/escrever
um texto, é necessário ter conhecimento sobre o assunto tratado, a fim de poder
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estabelecer relações sobre o tema e seu desenvolvimento.
Assim, como fica claro nas produções escritas e reescritas pelos alunos, aqui
apresentadas e analisadas, o texto não só remete a vozes anteriores, resultado de
leituras prévias e de muita discussão, mas também projeta a voz daquele que
se mostra sujeito de sua história, pela manifestação de seu ponto de vista em
relação à realidade que o cerca.
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Brasil. Guia do estudante, 2009. Disponível em: <http://planetasustentavel.
abril.com.br/noticia/ambiente /conteudo_345578.shtml>. Acesso em: 05 abr.
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POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas:
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Disponível em: <http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.
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UBER, Terezinha de Jesus Bauer. Artigo de Opinião: estudos sobre um gênero
discursivo. 2008. Disponível em: <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/
portals/pde/arquivos/255-4.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2012.
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SUBJETIVIDADE E ESTILO EM AQUISIÇÃO E
DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA: REFLEXÕES E
REFRATURAS
Luciano Novaes Vidon
Resumo: Neste artigo, retorno a dados analisados em minhas pesquisas
desenvolvidas junto ao Projeto de Aquisição da Linguagem Escrita (PALE),
do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), com o intuito de pensar sobre o papel do sujeito no
desenvolvimento de sua escrita. A hipótese trabalhada é a de que o sujeito, ao
longo de seu processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem escrita,
desempenha um papel fundamental na constituição dos gêneros discursivos
que a escola e a sociedade privilegiam, e pode desenvolver, ao longo desse
processo, um estilo individual, com base nos estilos dos gêneros que têm
contato, e, ainda, um processo de autoria. Isso implica, para a escola, apostar na
heterogeneidade dos sujeitos e dos gêneros, ao mesmo tempo em que valorize
as suas singularidades.
Palavras-chave: Subjetividade; estilo; aquisição e desenvolvimento da escrita.
Abstract: This paper returns to the data analyzed in a previous research project
developed by the Acquisition of Written Language Project (PALE), at the Institute
of Language Studies (IEL), at the State University of Campinas (UNICAMP), in
order to ponder over the role of the individual while developing his writing
process. The hypothesis proposed is that the individual plays an important role
during the process of acquisition and development of the written language,
shaping the discursive genres that encompass school and society. And the
individual can also develop a unique style along this process, based on styles of
the genres previously confronted and at the same time an authorship process.
This implies, for the school, to focus on the heterogeneity of individuals and
genres, in attempt to value ​​their uniqueness.
Keywords: Subjectivity; style; acquisition and development of writing.
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Retomando Subjetividade e Estilo
O sujeito, na perspectiva bakhtiniana de análise enunciativa, que venho adotando
em minhas pesquisas em aquisição da escrita, desde 1997, tendo uma intenção
discursiva, escolhe, dentre os recursos expressivos disponíveis, aqueles que
ele, dialogicamente, considera relevantes para o seu projeto de texto (i. e. para
construir efeitos de sentido almejados). Logicamente, ele precisa levar em conta
uma série de fatores que condicionam seu discurso. O gênero discursivo, por
exemplo, é um dos aspectos mais relevantes (se não for o principal) do processo
de enunciação.
Nesse sentido, ainda em conformidade com Bakhtin (2011), há gêneros mais e
menos propícios às escolhas individuais dos recursos da língua. Não há, porém,
nem fechamento, nem abertura total ao trabalho lingüístico-individual. Ou seja,
de um lado, o sujeito da linguagem, o enunciador sempre tem a possibilidade de
escolha, ainda que em espaços extremamente fechados (ver também Granger,
1968 e Possenti, 1988). Por outro lado, o sujeito não tem liberdade total, nunca.
Se houvesse essa liberdade, o sujeito seria completo, acabado e não precisaria
do outro para se constituir. Não há essa possibilidade. O outro está sempre
presente na constituição do eu, completando-lhe, dando-lhe acabamento,
tornando-o incompleto, inacabado.
No âmbito desse processo de escolhas é que pode surgir (e comumente é assim)
um conjunto de recursos que se repetem ao longo dos enunciados de um sujeito
e os individualiza (tanto os enunciados quanto o sujeito), configurando um
estilo pessoal próprio, singular. Para isso, então, é imprescindível:

a intencionalidade discursiva do sujeito (locutor/enunciador/
falante/emissário);

um projeto de discurso;

um processo de escolhas lingüísticas em função do projeto de
discurso e do “querer-dizer do locutor” (BAKHTIN, 2011); e

a identificação de um conjunto de escolhas recorrentes,
repetíveis, que vão configurando um estilo individual.
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Conforme Bakhtin (2011), portanto, o enunciado é não-reiterável, mas há nele
uma certa estabilidade (ver definição de gênero discursivo). O sentido não se
repete, mas o significado sim. É nesse processo de significação e ressignificação
que se aloja o trabalho estilístico individual. Para Bakhtin, o sentido está
relacionado ao tema, à enunciação, enquanto o significado tem a ver com os
recursos da língua. Ora, se os recursos são reiteráveis, repetíveis, eles carregam
um significado que pode ser retomado, o que não significa que terá o mesmo
sentido.
O estilo parece se relacionar com esse trabalho de ressignificação de determinados
recursos da língua. Nos textos de LM, por mim analisados em Vidon (1999; 2003),
sempre foi muito recorrente a exploração do tema salário-mínimo. Ainda que
esse objeto-de-discurso, a cada enunciação, mantivesse praticamente o mesmo
significado, o sentido não poderia ser o mesmo. Do ponto de vista estilístico,
a cada ressignificação de “salário-mínimo”, LM, enquanto sujeito do discurso,
trabalhava o significado da expressão, a sua forma lingüística e o seu conteúdo,
provocando um efeito de sentido diferente.
O sentido do enunciado é não-reiterável completamente, mas algo se recupera,
caso contrário não haveria compreensão. O estilo é, assim, para um sujeito
específico, como algo que se recupera a cada enunciação.
Tudo isso indica que o sujeito do discurso pode querer (e normalmente
quer) se diferenciar de outros sujeitos discursivos. Nesse sentido, o sujeito
não está sendo assujeitado às condições de produção discursiva. De alguma
forma, ainda que muito sutilmente, ele tenta se impor às “forças discursivas”
(lingüísticas, textuais, comunicativas, institucionais) marcando o seu discurso
com um traço de singularidade. É o que Possenti (2003, p. 45) denomina de
“sacada”. Discutindo a noção de efeito de sentido, ele considera que o sujeito
eventualmente tem uma ‘sacada’, criando algo ‘novo’, que se relaciona com
algo ‘velho’, já dito, presente discursivamente em nossa memória social. Essas
‘sacadas’ parecem revelar muito sobre o sujeito do discurso.
Isso não significa, no entanto, que os recursos agenciados, constituintes de
um estilo individual, são de propriedade do indivíduo ou desse sujeito de
discurso. Esses recursos pertencem a todos os sujeitos falantes. Os recursos são
compartilhados; porém, de alguma forma, naquele momento, o trabalho realizado
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ou a recorrência de certos recursos de expressão constrói discursivamente um
estilo individual. Trata-se, portanto, de uma construção discursiva de estilo,
muito distinta e distante do que, tradicionalmente, a estilística sempre o
concebeu, isto é, como fruto da psicologia do autor.
O que o sujeito discursivo parece fazer é se apropriar, ou seja, tornar próprio,
discursivamente, o que, em princípio, não é de sua propriedade.
O que significa, então, se apropriar discursivamente de recursos da língua para
construir um efeito de sentido estilístico? E como o sujeito tenta construir esses efeitos
de sentido?
Subjetividade e apropriação discursiva
O sujeito marca o discurso/enunciado como dele, isto é, ele tem a intenção de
que o discurso/enunciado seja percebido como singular, como particular e, para
isso, ele lança mão de marcas, até certo ponto, idiossincráticas, individualizadas;
o sujeito as toma como próprias do seu trabalho com a língua, ainda que isso
lingüística e discursivamente seja impossível, já que a língua, enquanto um
conjunto variado de possibilidades (um repertório), e o discurso, enquanto um
fio na cadeia infinita/descontínua de enunciados, não pertença a ninguém, não
tenha dono.
Comumente, a subjetividade é associada a individualismo e, por conseqüência,
a psicologismo. Por outro lado, a radical socialização do sujeito o torna
“assujeitado” a tudo o que está a seu redor. Definitivamente é preciso encontrar
um lugar para a subjetividade na sociologia da língua, isto é, nos estudos, de
alguma forma, sociológicos, sobre a linguagem.
O desenvolvimento humano representa uma
unidade dialética entre desenvolvimento individual
e social. (...) Embora haja no desenvolvimento uma
apropriação do já dado, o realmente novo a que se
deve estar atento é a construção crítica do que não
preexistia. (...). (GERALDI, 2008, p. 38)
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Subjetivar-se na linguagem é exercer um trabalho de escolha dentre os recursos
disponíveis na língua de modo a constituir um efeito de sentido sobre o outro
(ouvinte, destinatário, interlocutor). O outro sente como própria de um eu aquele
enunciado, aquela forma de se expressar, aquele modo de usar determinados
recursos da língua. Para que isso aconteça, é imprescindível que esse outro
tenha tido um contato mais ou menos regular com os enunciados desse eu.
É o que pode ser verificado nas pesquisas que desenvolvi com o corpus
de LM, junto ao PALE (Projeto Aquisição da Linguagem Escrita) do IEL/
UNICAMP. Ao tomar as produções textuais escritas desse sujeito como corpus
de investigação, transformando LM em sujeito de minhas pesquisas, procedi a
uma análise longitudinal, o que me permitiu acompanhar o desenvolvimento
de seus enunciados, de sua escrita e de seu estilo. Certamente isso só me foi
possível devido ao conjunto dos textos, ao todo enunciativo que os mesmos
configuravam ver a esse respeito. (DISCINI, 2002).
Um bom exemplo desse processo de desenvolvimento estilístico são os
enunciados por mim (VIDON, 1999) denominados “comentários sobre livros”
(textos opinativos sobre livros de literatura infanto-juvenil, lidos no âmbito
das atividades didático-pedagógicas da disciplina de língua portuguesa, e,
também, visando o ensino de aspectos da literatura, especialmente os chamados
“elementos da narrativa”). Esses enunciados, desde as suas primeiras realizações
na segunda série do ensino fundamental, constituíam um todo discursivo no
interior do qual era possível vislumbrar um certo sujeito-de-discurso e uma certa
forma de enunciação. Esse sujeito (esse autor) e essa forma de enunciar (esse
estilo) ficaram singularmente marcados numa série de enunciados realizados
ao longo da quarta série, como os exemplificados a seguir:
[1] “Eu gostei dese livro ele ceria otimo para cer/
de poezia mais não e O unico problema e/ que ele
e muito curto eu acho que ele não e/ para 4a serie
e muito imfamtil mas tambem/ e muito bom Os
dezenhos destes livros/ tambem tem uma tecnica
muito boua e conbina/ com o livro. Outra coiza que
não goste e que/ não tem o nome do rei e da rainha
e da princeza,/ so fala o nome de umas pesouas que
esquesio o/ nome que eles sentem saldade.” (Por uma
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questão de saudade, de Marina Martines.)
[2] “Este livro é bem gostozo de ler,/ sóque ele pudia
ser maior e o/ final pudia ser mais caprichado,/ em
fim eu gostei do livro a/ Cecilia Mereles escreve as
estorias e/ poezias muito bem, ela escreve de um/
geito que todo mundo gosta, soque tambem/ tem
gente que prefere aventura mais/ eu não eu gosto
de poezia e contos de/ fada.” (Ou isto Ou aquilo, de
Cecília Meireles)
[3] “Este livro e interessante por que/ agente ce involve
nele e agente vai lendo/ e se não cansar e bem capaiz
de/ terminarem num dia só e ainda sobra/ tempo
para ler dinovo. Eu achei que na/ bliblioteca deveria
ter mais livros como esse./ Aparte que mais gostei
dese livro foi/ a hora que eles matam duas onças
marido e/ mulher e na ora do casamento da prima/ do
cerelepe que chama miquirinha e tem/ uma briga com
os tatus porque eles não/ forão convidados e tambem
querrem participar da/ festa.” (O cachorrinho samba
na floresta, de Maria José Dupré)
Nesses enunciados é possível pensar em um estilo emergindo e sendo
desenvolvido, um estilo crítico, direto, potencialmente persuasivo. Dados como
você, todo mundo, a gente, podem ser considerados índices de intersubjetividade
(sg. Benveniste, é condição do discurso), constituindo e instaurando uma
subjetividade – o sujeito diz de um lugar específico; assume uma posição; se
coloca em um lugar e fala dele. Para alguns analistas do discurso, ter-se-ia aí
mais um dado sobre assujeitamento. Não é, por essa hipótese, o sujeito que fala,
mas uma instituição social que fala através/a partir dele.
Que instituição falaria através de uma criança com aproximadamente dez anos
de idade naquele momento?
Refletindo sobre a hipótese acima, e, ao mesmo tempo, a refratando,
consideremos, no caso, que essa instituição seja a do conjunto de leitores que
tem preferência por uma melhor hora para leitura, por determinados gêneros,
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etc. Esse é um ponto de vista, obviamente, defensável. Desse ponto de vista, essa
instituição é constituída de sujeitos sociais e históricos, que não estão estáticos,
perdidos no tempo e no espaço, mas que se movimentam nesse mesmo tempo
e espaço, adquirem novos valores, atualizam outros, se re-subjetivam, isto é, se
subjetivam novamente (de uma forma nova, num tempo e espaço outros). Não
se trata, a meu ver, de assujeitamento, mas de subjetivação, de ação subjetiva
não de um sujeito (egocêntrico, consciente, endógeno), mas de vários sujeitos
que mantêm um diálogo social e histórico. Ao dialogar com um outro leitor
(imaginário) através do enunciado e indiciado pelos termos você, todo mundo,
a gente, LM dialoga também com todos os leitores que compõem essa rede de
memórias de leitura. A meu ver, é muito redutora a hipótese do assujeitamento,
é muito destrutiva, na medida em que fala de uma posição do sujeito, de
uma função do sujeito, de um efeito-sujeito, mas, ao mesmo tempo, nega a
possibilidade de uma ação subjetiva. Parece mesmo contraditório.
A meu ver, o sujeito-leitor que é instaurado ali no enunciado de LM não é o
sujeito-leitor histórico que se materializa discursivamente no texto como em um
“passe de mágica”. Esse sujeito-leitor histórico é atualizado, articulado, ganha
forma e conteúdo a partir de um sujeito-leitor que é ao mesmo tempo único,
singular, particular e universal, plural, previsível, talvez.
Desse meu ponto de vista, há uma construção dos lugares discursivos que
é feita pelos sujeitos no momento da enunciação. Essa construção, de forma
alguma, é dada a priori. Um discurso pronto não pode prever completamente
a sua recepção, o olhar do outro (recriminando, admirando, se surpreendendo,
positiva ou negativamente...). Na verdade, não há discurso pronto (acabado).
O discurso é um acontecimento, como chega à conclusão o próprio Pêcheux
em seus últimos trabalhos. Nesse sentido, por que o sujeito do discurso seria
algo já dado, já construído, já pronto (em algum lugar histórico, ideológico,
institucionalizado)?
Por outro lado, há muitos exemplos, nos dados do mesmo corpus, de casos de
dessubjetivação, termo emprestado a Amorim (2001), que, a meu ver, é mais
apropriado do que “assujeitamento”. Explico. LM vinha ao longo da 4a série
produzindo textos, comentando os livrinhos infanto-juvenis que lia, de uma
forma, pode-se dizer, bastante subjetiva. Ela faz comentários bastante pessoais
sobre os livros, as leituras, os autores, etc. como nos exemplos já analisados.
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No entanto, essa subjetividade discursiva desenvolvida por LM nesses
enunciados é desviada de rumo, “desencaminhada” em função dos interesses
pedagógicos da escola. Tomando emprestado o termo de Amorim (2001), diria
se tratar de um processo de “dessubjetivação”, entendido como o processo
discursivo no qual forças exteriores agem no sentido de frustrar um processo
de subjetivação discursiva. As marcas desse processo de subjetivação já foram
aqui consideradas. A “dessubjetivação” se dá a partir do momento em que os
enunciados se tornam homogeneizados, escolarizados, padronizados, como os
exemplos a seguir:
[4] “Eu gostei muito deste/ livro. Ele tem historias
bem interessan/tes uma das que mais gostei/ foi a
da Sopa de pedra e a/ historia de um homem que/
engana uma velha muito/ pão dura e ganha uma
aposta/ que fes com os amigos.” (Contos populares
para crianças da américa latina, de Maria C. Posada).
[5] “Eu gosstei muito desste/ livro, a isstoria que/
gosstei mais foi a do/ corevoando e a isstoria/ de
um ladrão que tem pés de/ vento e foge de qualquer
enrass/ cada. No texto o corevoan/ do foge da
cadeia, ele/ foi preso porque ele rou/ bou uma casa.”
(Contos de piratas, corsários e bandidos, de autor
desconhecido, segundo LM).
[6] “Eu achei este livro/ bem legal. Ele fala de um/
grupo de crianças e/ uma dessas crianças/ vira
prefeito mirim da/ cidade, e faz muitas/ obras.” (A
prefeitura é nossa, de Giselda L. Nicolen).
Esses dados mostram que a escola precisa lidar melhor com esses processos
de subjetivação (incluída aí a dessubjetivação). É menos urgente se preocupar
com o sujeito a se formar (sujeito ideal) e mais com o sujeito que está ali, se
formando, se constituindo (sujeito real).
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Voltando à questão do todo, somente ele pode dar um acabamento (no sentido
bakhtiniano do termo) ao sujeito-de-discurso, criando, inclusive, um efeito de
sentido individualizante (o que faz com que o outro-interlocutor sinta como de
propriedade de um eu certos recursos expressivos).
No caso de LM, todas aquelas marcas encontradas nos “comentários sobre
livros” puderam ser reencontradas em outros momentos de sua produção
escrita escolar. É o caso, por exemplo, de “respostas” em avaliações de história,
como as que se seguem:
“...A inconfidência mineira fora interonpida por
portugal porque portugal não queria que o Brasil
deixace de ser sua colonia, mas o inconfidentes
queriam a inconfidencia. Quando eles foram
descobertos logo foram incriminamdo tiradentes por
ser mulato pobre e um dos lideres. Quem condenou
tiradentes foi a mãe de D. João IV, dona Maria que já
tinha um parafuzo a menos.”
“Em uma das eleições, a primeira que Getulio Vargas
participou ele não ganhou por que tiveram muitas
fraudes e o povo comesava a se iritar. Quando João
pessoa (o vice de Getulio) fora assacinado o povo
terminou de se irritar e partiu pra briga. Eles ião
invadir uma cidadezinha do interior, mas quando eles
chegaram na tal cidade veio a noticia que o prezidente
(atual da epococa) havia cido deposto e o Getulio
Vargas assumiu o poder. Essa guerrinha que não
houve foi chamada de ‘A guerra que não houve’.”
“O governo de D. pedro I era daqueles bem moderados
mesmo, e o povo não gostava disso e comessou a
fazer uma bagunsa total que D. pedro não conseguia
segurar o povo, até seu pai morrer. Com a morte de
seu pai uzou como desculpa o trono vazio em portugal
e renunsiou a sua pessoa, deixando seu filho...”
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“Os moderados eram os conservadores e os exaltados
os liberais, mas no governo eram farinha do mesmo
saco por que faziam as mesmas coizas porque vinha
do mesmo lugar.”
Curiosamente, os enunciados dessas avaliações de história da 7a série revelam
um sujeito discursivo que busca no humor (ou num certo tipo de humor) o seu
diálogo com o outro. Esse modo de enunciar não aparece nos textos de LM pela
primeira vez. Como observou Mayrink-Sabinson (1997), analisando também o
mesmo corpus, a veia humorística de LM sempre foi muito comum, marcante,
principalmente, dos textos narrativos.
Porém, conforme procuramos mostrar em Vidon (2003), essa configuração
enunciativa, essa constituição discursiva de um eu sarcástico, irônico, mordaz, foi
de fato significativa, constituindo mesmo um trabalho estilístico, nos enunciados
dissertativo-argumentativos realizados no ensino médio, principalmente como
preparação para provas de redação de vestibular.
Assim, um estilo comumente utilizado em enunciados narrativos revelou-se
apropriado a um uso argumentativo. Em dissertações, como a que exemplifico
a seguir, uma subjetividade é construída discursivamente. LM parece retomar
(reencontrar) aquela subjetividade delineada lá atrás, ao longo da 4a série,
naqueles comentários sobre livros. Nesses enunciados, temos um sujeito
crítico, observador, leitor atento, que se dirige a um outro-interlocutor a fim
de persuadí-lo. Há, assim, uma intenção, um querer-dizer, e uma subjetividade
sendo construída discursiva e dialogicamente.
Ensina-se para todas as crianças em idade escolar que o Brasil foi descoberto
em 1500 por Pedro Alvares de Cabral, ao acaso, em seu caminho para as Índias. Novas pesquisas, no entanto, divulgam uma nova data de descoberta.
Historiadores afirmam que um navegador português da maior confiança do
rei de Portugal, chamado Duarte Pacheco Pereira, gênio da astronomia, navegação e geografia, teria chegado aqui em 1498. O Brasil estaria, portanto,
comemorando 502 anos.
Descoberta por descoberta, consideremos a de Pedro Alvares de Cabral. A
festa está sendo aprontada, uma grande comemoração de cinco séculos de
vida, ou melhor, de vida após a “descoberta” portuguesa. Afinal os nativos
já viviam nessas terras há muito mais tempo. Claro que poucos deles restam
para a comemoração.
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Ensina-se, também, que o Brasil foi colonizado por Portugal, tornou-se independente pelo grito de um legítimo português. Entretanto muitas pessoas
hoje em dia não sabem mais o que nosso país é. Talvez o problema que impede o país de seguir em frente seja esse. Comemorar o quê?
Arruinado por uma economia dependente de países de primeiro mundo, desde 1826 a terra das palmeiras cultiva uma dívida externa por hábito ou necessidade. Porém essa dívida não é mais paga com produtos naturais e sim
com dinheiro, preferivelmente com o dólar, moeda norte americana que é o
terror do real. O real, a moeda da salvação, implantada por um governo que
prometia a melhoria da qualidade de vida do proletariado, a grande massa
de população, durante os últimos meses vem dando mais prejuízos do que
lucros, principalmente para as classes média e baixa, que além de sofrer com
a alta dos preços têm que levantar dinheiro para pagar impostos que teoricamente são usados para cobrir a velha dívida interminável.
Brasil, país de muitas riquezas, berço esplêndido de sonhos de imigrantes logo
destruídos pela escravidão e salários mais que mínimos. O gigante deitado
eternamente, explorado pelo imperialismo, tornou-se uma nação de duas faces. Poucos com muito e muitos sem nada. Em Miami, os ricos e poderosos...
do Oiapoque ao Chuí, o Brasil dos muitos sem teto, sem terra, sem emprego,
sem escola, sem chuva, sem comida, sem lugar, sem país.
Muitos dizem que, apesar dos diversos problemas apresentados, é inegável
o fato de que o Brasil tem se desenvolvido e crescido já que existem no país
o Código de Defesa do Consumidor, leis que cuidam do racismo, trabalho
e exploração infantil, o Código Penal, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos e outros diversos direitos e leis que todo ser humano merece. Mas
devemos lembrar que nem sempre esses órgãos de defesa do ser humano funcionam, deixando processos estacionados por culpa da burocracia. Que Direitos Humanos são esses que funcionam apenas para os que têm muito? Estes
Direitos são aqueles que só o dinheiro pode comprar, o dinheiro do governo
e das classes elevadas que acaba saindo, direta ou indiretamente, do bolso do
contribuinte trabalhador.
Razões para comemorar eu não vejo, talvez os bolsos cheios vejam. Não tendo
o pão, as emissoras de televisão preparam o circo para o povo.
À guisa de conclusão
A partir de um certo momento, os enunciados de LM, em que ela comenta
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livros lidos para a escola, se tornam mais padronizados [como já discutidos
em VIDON (2003)], impessoais, repetitivos, gerais, desaparecendo mesmo
marcas de intersubjetividades (analisadas em VIDON (id.) como marcas de
argumentatividade): se, todo mundo, a gente, você, etc. LM não fala mais de suas
preferências enquanto leitora (com a sua história de leitura), mas passa a falar
do lugar de aluna que é cobrada pela professora e pela escola a dizer certas
coisas e não outras. Desse lugar, portanto, a fala é extremamente controlada,
disciplinada, marcada. LM passa a dizer, então, não o que quer, mas o que deve
dizer, segundo as orientações didático-pedagógicas de então. Ocorre, assim, um
processo de dessubjetivação, de esvaziamento de uma subjetividade anterior.
Há dados, ainda, que mostram dois fenômenos discursivos acontecendo
praticamente ao mesmo tempo, no mesmo enunciado. Subjetividade e
dessubjetivação interagem em enunciados de provas de história sob as formas
de paráfrase e paródia. Em termos parafrásticos, tem-se um outro sujeito que
enuncia. Já, enquanto paródia, a singularidade de um sujeito é mostrada,
revelando as suas preferências pelo humor, pelo sarcasmo, pela ironia, etc.
De uma forma (subjetivada) ou de outra (dessubjetivada), LM trabalha a
linguagem para tentar obter efeitos de sentido subversivos, trazendo à tona,
nesses textos, discursos sobre a história do Brasil que, de modo algum, se
encontram ‘em paz’, ‘sem conflitos’. Nesses enunciados de LM, é possível
perceber a presença de um espaço interdiscursivo no qual o discurso histórico
oficial dialoga com um discurso popular (não-oficial) mas também com um
discurso científico (nem oficial nem não-oficial). LM recorre a variados recursos
morfossintáticos para articular um querer-dizer que subverte uma ordem
discursiva dada: a história foi assim, os fatos históricos são esses, esses são
nossos heróis, etc. Trabalhando a linguagem singularmente, LM reconstrói,
discursivamente, essa história, esses fatos, esses heróis. Do discurso oficial
sobre D. Maria, a Louca, LM produz ‘D. Maria, que já tinha um parafuso a
menos’, substituindo um sintagma nominal, com um item lexical mais objetivo
(a Louca), por uma oração subordinada contendo uma expressão popular, uma
figura de linguagem cujo significado é semelhante ao de Louco, mas que, não há
dúvida, o efeito de sentido é completamente diferente.
Outras figuras de linguagem também são utilizadas contribuindo para criar o
efeito de sentido de subversão de um discurso objetivo, formal, heróico. É o
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caso, por exemplo, de ‘farinha do mesmo saco’ se referindo aos dois principais
partidos políticos daquele período histórico. A expressão rebaixa esses objetos
do discurso (Partido Liberal e Partido Conservador) ao reduzí-los à farinha,
produto considerado não-nobre, que pertencem ao mesmo saco; saco também
cria um efeito de sentido jocoso, principalmente se pensado em referência à
esfera política. Do discurso oficial tem-se também ‘A guerra que não houve’,
referindo-se ao levante histórico ocorrido no século XVIII, que, no enunciado
de LM, é transformado em ‘essa guerrinha que não houve’. O diminutivo,
nesse caso, também contribui para criar um efeito de rebaixamento do objeto
do discurso.
Semelhantemente aos dados relativos à 4ª série do ensino fundamental, os
dados referentes à 7ª série e ao ensino médio revelam uma leitora crítica, atenta
que não quer reproduzir um discurso pronto, engavetado em algum lugar do
passado. Trata-se de um sujeito-leitor que não se assujeita a uma leitura histórica,
definitiva, imutável. Trata-se, ainda, de um sujeito que recria singularmente a
crítica sarcástica, irônica, bem-humorada, descolando e deslocando elementos
discursivos de um lugar e transportando-os para outro (s) – a Louca/que já tinha
um parafuso a menos; Partido Liberal X Partido Conservador/tudo farinha do
mesmo saco; A Guerra que não houve/essa guerrinha que não houve. Em todo
esse trabalho, a marca subjetiva de um sujeito social e histórico cujas preferências
são reveladas, sintomaticamente, em seus enunciados.
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Paulo: Musa Editora, 2001.
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