revista saberes letras
Transcrição
revista saberes letras
REVISTA REVISTA SABERES LETRAS ISSN: 2176-89271 SABERES LINGUÍSTICA - LITERATURA - ENSINO ORGANIZAÇÃO Micheline Mattedi Tomazi Aline Moraes Oliveira LETRAS 2 REVISTA SABERES LETRAS Diretora Geral: Alacir de Araújo Silva Coordenador do curso de Letras Português/Inglês: Andrea Santana Silva e Souza Editor: SABERES Instituto de Ensino Ltda Organizadores: Aline Moraes Oliveira, Micheline Mattedi Tomazi e Weverson Dadalto Pareceristas e revisores: Alacir de Araújo Silva – SABERES Arlene Batista da Silva Ferreira – SABERES Deneval Siqueira de Azevedo Filho – UFES Inês Aguiar dos Santos Neves – SABERES Janaína de Assis Rufino – UEMG Lúcia Helena Peyroton da Rocha – UFES Luciana Moraes Barcelos Marques Luis Eustáquio Soares – UFES Maria Amélia Dalvi Salgueiro – UFES Maria da Penha Pereira Lins - UFES Micheline Mattedi Tomazi – UFES Paulo Roberto Sodré – UFES Vera Márcia Soares de Toledo – SABERES Weverson Dadalto – SABERES Wilberth Claython Ferreira Salgueiro – UFES Wolmyr Aimberê Alcantara Filho – SABERES Articulistas: Adriana Recla Camila de Souza Neris Carmelita Minelio da Silva Diego do Nascimento Rodrigues Flores Dinameire Oliveira Carneiro Rios Janayna Bertollo Cozer Casotti Lúcia Helena Peyroton da Rocha Luciano Novaes Vidon Maria José Costa Micheline Mattedi Tomazi Olivaldo da Silva Marques Ferreira Pedro Antonio Gomes de Melo Roseane Cristina da Paixão Editoração: José Carlos Vieira Júnior Revista Saberes Letras: Linguística, Literatura, Ensino. Faculdade Saberes. – v. 10, n.1. – Vitória: Saberes Instituto de Ensino Ltda., 2012 Revista Saberes Letras: Linguística, Literatura, Ensino. Faculdade Saberes. – v. 10, n.1. – Vitória: Saberes Instituto de Ensino Ltda., 2012. Anual ISSN: 2176-8927 1. Linguística – Periódico. 2. Literatura. 3. Ensino. REVISTA SABERES LETRAS 3 Sumário I– 1. 2. 3. Estudos sobre LingUística A NOÇÃO DE SEMÂNTICA GLOBAL E CONSTITUIÇÃO DO ETHOS DISCURSIVO: UMA ANÁLISE EM PRÁTICAS DISCURSIVAS INDÍGENAS Adriana Recla ESTRATÉGIAS DE APAGAMENTO DO AGENTE NO GÊNERO MANCHETE: UM OLHAR FUNCIONALISTA Carmelita Minelio da Silva Amorim Lúcia Helena Peyroton da Rocha Maria José Costa 07 27 A POLISSEMIA NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO DOS TEXTOS Micheline Mattedi Tomazi Camila de Souza Neris 48 4. A TOPONÍMIA MUNICIPAL DA MICROREGIÃO ALAGOANA DO SERTÃO DO SÃO FRANCISCO Pedro Antonio Gomes de Melo 64 5. FORMAS DE ENDEREÇAMENTO DISCURSIVO NA REVISTA CAPRICHO Olivaldo da Silva Marques Ferreira 81 Ii – Estudos sobre LITERATURA 6. NOS FRAGMENTOS DA MEMÓRIA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO DIÁRIO COMPLETO DE LUCIO CARDOSO Roseane Cristina da Paixão 7. A ESTÉTICA DA ANTROPOFAGIA: DEVORAÇÃO, CRÍTICA E CINEMA EM OSWALD DE ANDRADE, GLAUBER ROCHA E OLNEY SÃO PAULO Dinameire Oliveira Carneiro Rios 99 122 4 8. Iii– 9. 10. REVISTA SABERES LETRAS REALIDADE E FICÇÃO EM O DOENTE MOLIERE Diego do Nascimento Rodrigues Flores 134 Estudos sobre ENSINO PRODUÇÃO DE TEXTOS EM SALA DE AULA: UMA REFLEXÃO EM TORNO DA ESCRITA E REESCRITA DE TEXTOS Janayna Bertollo Cozer Casotti 159 SUBJETIVIDADE E ESTILO EM AQUISIÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA: REFLEXÕES E REFRATURAS Luciano Novaes Vidon 180 REVISTA SABERES LETRAS 5 APRESENTAÇÃO A Revista Saberes, desde o seu primeiro volume, publicado em 2003, busca integrar produções, trabalhos, contribuições de autores que trazem discussões relevantes sobre questões linguísticas, literárias e de ensino de língua e literatura. Trata-se de um veículo aberto ao debate e às críticas, por entender a dinamicidade da ciência. Esta edição, a quarta online, da Revista Saberes, assim como as demais, está divida em três grandes blocos, a saber: estudos sobre linguística; estudos sobre literatura; e estudos sobre ensino. Na primeira subdivisão, aparecem os estudos sobre linguística com análise em prática discursiva indígena; reflexões funcionalistas acerca de estratégias de apagamento do agente no gênero manchete; apontamentos sobre a polissemia na construção do sentido dos textos; descrições e investigações sobre toponímia municipal na microregião alagoana do sertão nordestino; e análises sobre formas de endereçamento discursivo na revista capricho. Além dessas reflexões, reunimos também estudos sobre literatura, no segundo bloco, em que aparecem considerações sobre o diário de Lúcio Cardoso; averiguações sobre a estética da antropofagia em Oswald de Andrade, Glauber Rocha e Olney São Paulo; contribuições sobre realidade e ficção em o Doente Moliere. E, num terceiro momento da Revista, ganham espaço os estudos sobre ensino. Produção de textos em sala de aula e reflexões em torno da escrita e reescrita; e aquisição e desenvolvimento da escrita fazem o fechamento deste ciclo de estudos, críticas, reflexões e, sobretudo, de contribuições para a ciência que tange à área de Letras. Em 28 de novembro de 2012 Alacir de Araújo Silva Aline Moraes Oliveira Micheline Mattedi Tomazi Weverson Dadalto 6 REVISTA SABERES LETRAS Estudos sobre Linguística REVISTA SABERES LETRAS 7 A NOÇÃO DE SEMÂNTICA GLOBAL E CONSTITUIÇÃO DO ETHOS DISCURSIVO: UMA ANÁLISE EM PRÁTICAS DISCURSIVAS INDÍGENAS Adriana Recla*1 Resumo: Este artigo discute o princípio da Semântica Global e a constituição do Ethos em práticas discursivas indígenas vivenciadas por sujeitos de população indígena tupiniquim da aldeia Pau-Brasil, localizada em Aracruz-ES. O objetivo é examinar, no discurso O saci, as dimensões da semântica global e a constituição do ethos discursivo no funcionamento de práticas culturais do cotidiano, vivenciadas por estes sujeitos, à luz da Análise do Discurso de linha francesa, de modo particular, nas perspectivas que vem sendo propostas por Maingueneau (1993, 2004, 2005b, 2006, 2008). Privilegiamos, na análise, os planos da semântica global, em especial, a categoria ethos discursivo. Verificamos que as práticas discursivas depreendidas do cotidiano indígena nos forneceram uma chave para a compreensão da constituição do ethos discursivo no discurso analisado, uma vez que é também por meio delas que conhecimentos e ideias se tornam realidade. Palavras-Chave: Semântica Global. Ethos Discursivo. Análise do Discurso. Abstract: This article examines the principle of the Global Semantics and the presence of the Ethos in discursive practices experienced by individuals in the indigenous tupiniquim tribe Pau-Brazil, located in Aracruz-ES. The aim is to study, in the speech The Saci, the dimensions of the Global Semantics and the presence of discursive ethos in cultural practices of these individuals’ everyday life, supported by French discourse analysis, especially in perspectives that have been proposed by Maingueneau (1993, 2004, 2005b, 2006, 2008). We focused on analyzing the principles of the global semantics, specially the discursive ethos. We understand that the discursive practices of everyday life enable us to understand the presence of the discursive ethos in discourse analysis, since it is 1* Doutoranda em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( PUC-SP) / Bolsista CAPES; Professora Adjunta de Língua Portuguesa e Supervisora de Extensão e Educação Continuada da Faculdade de Aracruz – FAACZ – Aracruz - ES. E-mail: [email protected]. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 8 REVISTA SABERES LETRAS also through them that knowledge and ideas become real. Keywords: Global Semantics. Ethos Discourse. Discourse Analysis. Introdução A Análise do Discurso tem se destacado na atualidade como uma disciplina de grande expansão na área das ciências da linguagem, pois apresenta um quadro teórico sofisticado, sobretudo pelas possibilidades que as formulações teóricas abrem para os pesquisadores e estudiosos. Apesar de ser ainda bastante jovem, a Análise do Discurso tem apresentado intensa produtividade e grande abertura para o intercâmbio com diversas áreas do conhecimento. Desvela-se, assim, como um importante campo interdisciplinar do universo acadêmico graças à produção de pesquisas que investigam cada vez mais temáticas linguísticas em diferentes manifestações da língua. Este artigo21 se pauta sobre a questão que incide sobre a noção de semântica global e a constituição do ethos discursivo em discursos de práticas culturais cotidianas vivenciados pela população indígena tupiniquim de Pau-Brasil, localizada em Aracruz-ES. O objetivo é examinar, no discurso O Saci32, algumas dimensões da semântica global, no intuito de desvelar com mais precisão a constituição do ethos discursivo no funcionamento desta prática discursiva. É no interior de práticas culturais do cotidiano e pelo uso de certas estratégias e mecanismos que os discursos afloram. Isso revela que as manifestações discursivas da sociedade se concretizam na construção de diferentes imagens culturais instituídas a partir de um determinado lugar social por meio da materialização discursiva. Desse modo, as questões linguisticas em circulação na sociedade contemporânea, à luz da Análise do Discurso, na atualidade, fazem com que observemos que língua, homem e sociedade se entrelaçam e ocupam um lugar fundamental de estudos, dado os fatos linguageiros vivos na nossa sociedade. 1- Neste trabalho ampliamos nosso referencial teórico, considerando a integração dos planos da Semântica Global. 2- Texto publicado na coletânea Os tupinikim e Guarani contam... organizada por Edivanda Mugrabi, em 2005. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 9 Para o alcance do objetivo proposto, tomamos como referencial teórico a Análise do Discurso de linha francesa (AD, doravante), de modo particular, nas perspectivas que vem sendo propostas por Maingueneau. A perspectiva com a qual Maingueneau (2005b) trabalha em relação à AD se caracteriza por considerar a prática discursiva em suas múltiplas dimensões, partindo do princípio da semântica global. Privilegiamos, desse modo, a noção de semântica global por compreendermos que não há mais lugar para a distinção entre superfície e profundeza de natureza discursiva, entendendo que todas as dimensões estariam imbricadas (o vocabulário, a intertextualidade, o tema, o estatuto do enunciador e do coenunciador, a dêixis discursiva, o modo de enunciação, o modo de coesão). Para fundamentar a análise do discurso indígena selecionado, apresentaremos alguns dados teórico-metodológicos, e buscaremos conhecer, por meio de recursos linguístico-discursivos, como a população indígena tematiza por meio de discursos seu cotidiano, seus costumes e suas tradições, bem como sua maneira de construir sua mundividência, visto que eles facilitam ou mesmo condicionam o estabelecimento de formas de desvelamento de dados constitutivos de sua tradição e de sua história que nos induzem a construir uma imagem (ethos discursivo) desse povo. Consideraremos, assim, em especial, a categoria ethos discursivo. Neste trabalho, vamos tomá-lo como construção discursiva do enunciador a partir de características linguísticas e sociais que se constroem na instância enunciativa, no momento em que o enunciador toma a palavra e se mostra por meio de seu discurso. Neste trabalho, concebemos o discurso indígena como uma prática discursiva regida por uma semântica global, por meio da qual os vários planos do discurso se articulam e se estruturam. Para tanto, o discurso indígena não é pensado apenas como um conjunto de textos, mas como um espaço de regularidades enunciativas em que os planos da semântica global merecem destaque. Além disso, o discurso não resulta da junção de um fundo e de uma forma, ele está inscrito em uma configuração sócio-histórica, não podendo ser dissociado SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 10 REVISTA SABERES LETRAS da organização de seus conteúdos e do modo de legitimação de sua cena enunciativa. Nesse sentido, um estudo que se funda sobre a perspectiva de uma semântica global e a constituição do ethos em práticas discursivas indígenas deverá considerar sua globalidade, recorrendo-se a uma análise em que a significância discursiva é concebida em conjunto. Por fim, esse estudo se justifica pelo fato de o discurso ser revelador de componentes significativos do contexto histórico-social, na medida em que por ele se torna possível reconstruir aspectos da língua, do homem e da sociedade. Como prática social, o discurso indígena materializa a cultura, a história, as relações de interação e de intercâmbio, o sistema de valores indígenas, ao mesmo tempo em que desvela o mundo que os envolvem, explica e compreende o próprio contexto, registrando o estado atual de aspectos culturais dessa população. A prática discursiva indígena tupiniquim43 Na tradição indígena de Pau-Brasil, o relato é um importante gênero discursivo na manutenção da tradição entre as gerações, na contação de histórias, na preservação mitológica, nas conversas informais, utilizado historicamente por essa comunidade. Nesse sentido, trata-se de uma prática discursiva ligada à realidade e representa uma significativa esfera discursiva para essa população. O relato da comunidade de Pau-Brasil emergiu da necessidade de o indígena documentar, de modo simples e despretensioso, situações vivenciadas por ele ou por algum membro de seu grupo. Isso comprova o quanto o relato produzido pelo indígena de Pau-Brasil revela identidade própria e abre-se a desvelar a imagem dos sujeitos que vivem naquela comunidade. 3- Os tupiniquins, no Espírito Santo, habitam o município de Aracruz, na região norte do Estado do Espírito Santo, e estão distribuídos em quatro aldeias: Caeiras Velhas, PauBrasil, Irajá e Comboios, com aproximadamente 2.000 habitantes. Localizada a 31 km da sede de Aracruz, a aldeia Pau-Brasil possui atualmente cerca de 400 habitantes, os quais sobrevivem da agricultura, por meio da comercialização de produtos, e do artesanato, que é uma maneira dereafirmação de sua cultura. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 11 Cabe-nos destacar que para o índio tupiniquim é de extrema importância o relato porque, por meio dele, há o compartilhamento, a rememoração dos costumes passados, permitindo manter vivas as tradições, as crenças e os costumes daquele povo. Dessa maneira, a sabedoria acumulada ao longo do tempo não se concentra em alguns índios do grupo, mas renasce na coletividade da tribo, sendo vivenciada por toda a coletividade por esses discursos. Nessa perspectiva, o relato indígena em questão narra um conjunto de histórias sobre os rios, as matas, os animais, a pesca, a caça, que completa o sentido da vida indígena, uma vez que expressa a cultura do indígena de Pau-Brasil e representa um grupo étnico bastante significativo para a formação históricocultural do município de Aracruz. O relato indígena é, dessa forma, uma prática discursiva resultante de experiências transmitidas pelos membros da aldeia e guardadas na memória coletiva. Enfim, o discurso indígena não pode ser pensado como um conjunto de textos, mas como uma prática discursiva. Esta prática discursiva seleciona, de acordo com sua semântica global, os modos e os espaços de circulação de seus discursos. Isto significa pensar as condições de exercício da função enunciativa, encontráveis nas práticas cotidianas indígenas, as quais constituem as condições históricas para os acontecimentos e os discursos que ali existem. O primado do interdiscurso O primado do interdiscurso sobre o discurso é o princípio básico e central postulado por Maingueneau (2005b). Afirmar que o interdiscurso tem primazia sobre o discurso corresponde a postular que a unidade de análise passa a ser o interdiscurso, e não mais o discurso. Um olhar mais atento leva-nos a destacar o discurso como atravessado pela interdiscursividade, tendo como propriedade constitutiva o fato de estar em relação multiforme com outros discursos. Podemos considerar que este conceito é um dos mais expressivos presentes na reflexão teórica formulada por Maingueneau, uma vez que o objeto de análise da AD passa a ser apreendido sob um duplo viés: a partir de sua gênese e da própria relação com o interdiscurso. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 12 REVISTA SABERES LETRAS Maingueneau associa a interdiscursividade com a gênese discursiva, dado que há sempre um já dito que se constitui no outro do discurso. Assim, toda produção discursiva, de acordo com certas condições conjunturais, faz circular formulações já enunciadas anteriormente. O fato de co-existirem outros discursos que instituam o que é dito nos enunciados faz com que os sentidos construídos e institucionalizados legitimem o dizer. Contudo, isso não quer dizer que certo discurso se formule do mesmo modo que todos os discursos do mesmo campo, visto que não nos é possível estabelecer, em razão de uma evidente heterogeneidade e da existência de uma zona de regularidade semântica, os inúmeros posicionamentos de um determinado campo. A proposta do autor é, então, passar a considerar o interdiscurso como unidade de análise pertinente, definindo-o como “um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos” (MAINGUENEAU, 2005b, p. 21). Um discurso está sempre em relação com outros e esse espaço de regularidade pertinente, do qual diversos discursos seriam apenas componentes, estruturaria a sua identidade discursiva. Trata-se de uma concepção interdiscursiva, em que os discursos já nasceriam imbricados em uma relação dialógica. Por entender que o conceito de interdiscurso é vago, Maingueneau (2005b) busca especificá-lo trazendo para o interior da AD a tripartição dessa noção em: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. Isso porque Maingueneau pretende analisar o discurso como realidade inseparável de seu contexto de produção, fazendo parte de tal contexto o próprio interdiscurso. Para ele, o universo discursivo nada mais é do que o conjunto de formações discursivas de todos os tipos que interagem em um dado momento; na verdade, trata-se do horizonte a partir do qual serão construídos os domínios suscetíveis de serem estudados: os campos discursivos. O campo discursivo, por sua vez, é o termo designativo das formações discursivas que se encontram em concorrência em uma região determinada do universo discursivo. É no interior desse campo discursivo que se constitui um discurso e os subconjuntos de formações discursivas que o analista entende como sendo relevante para a sua pesquisa, concebido como espaço discursivo. Um aspecto que gostaríamos de sublinhar na proposta teórica de Maingueneau SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 13 diz respeito à delimitação desses campos, já que não se trata de algo evidente. Ademais, exige do analista a elaboração de hipóteses e escolhas, ancoradas em uma dupla condição: a materialidade dos discursos, e, as condições de enunciação desses discursos, os quais se inscrevem no viés histórico. Em outras palavras, estes campos possibilitam olhar com mais propriedade a gênese e o modo de coesão entre os discursos que estão em relação. Para Maingueneau (2005b), o estudo do interdiscurso pressupõe a presença do Outro que ocorre por meio da noção de heterogeneidade, característica fundamental do discurso, considerada em dois planos: heterogeneidade constitutiva (implícita) e heterogeneidade mostrada (explícita). A heterogeneidade constitutiva, por um lado, não deixa marcas visíveis na materialidade linguística, ainda que deixe entrever outros discursos que lhe constituíram, visto que os textos estão intimamente ligados amarrando o Mesmo e o Outro do discurso. A heterogeneidade mostrada, por outro lado, deixa marcas na superfície linguística que alteram a unicidade da cadeia discursiva, inscrevendo o Outro. Embora aceite a presença no discurso da heterogeneidade mostrada e constitutiva, Maingueneau renomeia-as, quando estabelece a noção de interdiscurso. Defende, nesta perspectiva que, se um discurso mantém relações com outro, ele não é visto como um sistema fechado, mas como espaço de trocas enunciativas, em que a história pode e deve se inscrever. Destaca, portanto, que o interdiscurso tem precedência sobre o discurso, e, como consequência desse pressuposto, afirma que o discurso nunca é autônomo porque as condições de possibilidades semânticas se realizam em um espaço de trocas. Em um sentido mais amplo, o interdiscurso pode ser entendido como o conjunto das unidades discursivas que pertencem a discursos anteriores do mesmo gênero, entre outros, com as quais um discurso particular entra em relação implícita ou explícita. Daí a afirmação de que a alteridade é uma dimensão constitutiva do sentido. Não há identidade discursiva sem a presença do Outro. Buscar entender o funcionamento das relações interdiscursivas, portanto, não remete àquela tentativa de tudo explicar, de dar conta do amplo sistema de pensamento de uma época. Longe disso, demanda uma análise integradora das SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 14 REVISTA SABERES LETRAS múltiplas dimensões textuais que permitem a identificação da alteridade nos discursos. Portanto, é preciso reconhecer que o discurso deve ser considerado no bojo de um interdiscurso, já que o primeiro só adquire sentido no universo de outros discursos. Daí a necessidade de relacioná-lo a outros, sabendo-se que cada gênero de discurso tem a sua forma particular de tratar essa multiplicidade de relações interdiscursivas. Para nós, evidenciar o primado do interdiscurso como um dos planos constitutivos da discursividade, significa “rejeitar a concepção do discurso como ‘sistema de ideias’ ” o que nos direciona mais uma vez para o projeto de uma semântica global (MAINGUENEAU, 2005b, p. 101). Nesse sentido, afirmar que a interdiscursividade é constitutiva de todo discurso é dizer que todo discurso nasce de um trabalho sobre outros discursos. Deste modo, fica-nos evidente o caráter essencialmente dialógico de todo enunciado do discurso. A Noção de Semântica Global O princípio da semântica global proposto por Maingueneau traz para a AD a possibilidade de realizar uma análise mais profunda e integrada, uma vez que neste princípio não há privilégio de um plano do discurso sobre o outro, mas todo o conjunto dos planos discursivos está integrado e deriva dos mesmos fundamentos. Compreendemos as dimensões da semântica global, à luz da AD, nas perspectivas de Maingueneau, como um modelo teórico-metodológico capaz de integrar, na análise, as suas várias dimensões, entre elas o vocabulário, a intertextualidade, o tema, o estatuto do enunciador e do co-enunciador, a dêixis discursiva, o modo de enunciação, a coesão e o ethos discursivo. Essas dimensões operam tanto na ordem do enunciado e da materialidade linguística quanto da enunciação e das condições sócio-históricas de produção da prática discursiva. Desse modo, centrar-se apenas no estatuto do enunciador e do co-enunciador, por exemplo, sem considerar a globalidade dos discursos, poder-se-ia incidir em uma análise limitada, reducionista. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 15 Como podemos observar, embora opere com conceitos da Linguística, a AD não se limita apenas a um estudo linguístico. Ela traz uma significativa contribuição ao estudo dos enunciados, dado que não os separa de sua materialidade linguística, nem de suas condições de produção, abrindo-se à interdisciplinaridade. Para a AD, o que determina a produção de sentidos é o contexto em que os discursos são produzidos. Para o autor, um discurso só poderá ser apreendido por meio de uma semântica global que sustente todas as dimensões, concebidas como centrais no e para o discurso. A semântica global apreende, ao mesmo tempo, os diferentes planos discursivos desse discurso, integrando tanto o vocabulário quanto os temas tratados, o ethos discursivo, a intertextualidade, as instâncias de enunciação. Não há um plano do discurso que seja central; todos os que o constituem derivam dos mesmos fundamentos. Ademais, os discursos não partem de um único, mas de vários lugares enunciativos. Essa rede interdiscursiva instaura, pois, posições enunciativas, a partir das quais é possível entender, no funcionamento do discurso proferido por sujeitos da aldeia tupiniquim de Pau-Brasil, aspectos culturais da história dessa população. Assim sendo, poderemos verificar, por intermédio da semântica global, que os discursos materializam algo mais do que uma versão de uma história passada ou uma mera construção subjetiva do povo indígena. Isso ocorre porque os efeitos de sentido são construídos no discurso, o qual, por sua vez, se torna produtor de experiências de vida, viabiliza o acesso a visões de mundo e a histórias de vida da população indígena graças aos recursos linguístico-discursivos. Sobre a noção de Ethos Discursivo Maingueneau (2005b) integra a noção de ethos à semântica global, como uma das dimensões do discurso. O enunciador deve se conferir e conferir a seu coenunciador, certo status para legitimar seu dizer: ele se outorga, no discurso, a uma posição institucional, e marca sua relação com um saber. O processo de adesão de sujeitos a certa posição discursiva promovido pela noção de ethos é tanto perceptível em áreas inscritas em situação de adesão como é o caso SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 16 REVISTA SABERES LETRAS da filosofia, da política etc., quanto em gêneros ditos como funcionais e/ou neutros. Em nosso estudo, a palavra ethos deve ser entendida como um processo interativo de influência sobre o outro, não sendo uma imagem do sujeito empírico, mas do sujeito que se diz na enunciação, depreendido do próprio discurso. Maingueneau (1993), ao reinterpretar tal noção, acrescenta-lhe um caráter e uma corporalidade e passa a integrá-la à cena de enunciação54, especificamente, à cenografia, indo além da concepção retórica de ethos. Para Maingueneau, a noção discursiva de ethos associa-se a um gênero de discurso, uma vez que o pertencimento de um texto a um posicionamento ou a um algum gênero de discurso permite ao co-enunciador elaborar expectativas em termos de ethos. Daí, a afirmação de que essa categoria está crucialmente ligada ao ato de enunciação, ou seja, ao próprio dizer do sujeito que fala, e não a um saber extradiscursivo sobre o enunciador. O ethos discursivo, como categoria interativa, não está ligado apenas ao enunciador, à imagem que este reivindica para si próprio. Sendo a imagem do enunciador criada e recriada pelos co-enunciadores, por intermédio de processos de estereotipização, os quais podem ou não ser confirmados pelo processo discursivo, o ethos carregará a dimensão do “outro” discursivo. A noção de ethos discursivo aqui proposta abarca, portanto, todo tipo de texto, tanto os orais quanto os escritos. O texto escrito tem uma vocalidade que pode se manifestar numa multiplicidade de “tons”. É o tom que dá autoridade ao que é dito, permitindo ao co-enunciador construir uma representação do corpo do enunciador. Emerge, assim, com a leitura, uma instância subjetiva que desempenha o papel de fiador do que é dito, concebido como a imagem construída pelo co-enunciador por meio de indícios de várias ordens, investindo-o também 4- Maingueneau (2005b) elabora a noção de cena enunciativa, distinguindo-a em uma tripla interpelação: cena englobante, cena genérica e cenografia. A cena englobante é aquela que define o tipo de discurso; a cena genérica é a que define o gênero de discurso. Já a cenografia tem por efeito fazer passar a cena englobante e a genérica para um segundo plano. Para Maingueneau (2006a, p. 113), o discurso impõe sua cenografia de algum modo desde o início; mas, de um outro lado, é por intermédio de sua própria enunciação que ele poderá legitimar essa cenografia que ele impõe. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 17 de um caráter, um tom e uma corporalidade. Além disso, o caráter e a corporalidade do fiador provêm de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas sobre as quais a enunciação se apoia, podendo modificá-las ou confirmá-las. Assim, é por meio do próprio enunciado que o fiador legitima sua maneira de dizer, dado que a qualidade do ethos remete à imagem deste “fiador”. Nessa perspectiva, os conteúdos dos enunciados não seriam independentes da cena de enunciação. É nesse sentido que Maingueneau se afasta da concepção de ethos como procedimento ou como estratégia, pois o fiador legitima sua maneira de dizer por seu próprio enunciado, e a cena de enunciação é, ao mesmo tempo e paradoxalmente, [...] aquela de onde o discurso vem e aquela que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cena de onde a fala emerge é precisamente a cena requerida para enunciar (...) São os conteúdos desenvolvidos pelo discurso que permitem especificar e validar a própria cena e o próprio ethos, pelos quais esses conteúdos surgem. (MAINGUENEAU, 2005a, p. 77) Maingueneau (2005a) denomina a ação do ethos sobre o co-enunciador de incorporação, isto é, “a maneira pela qual o co-enunciador se relaciona ao ethos do discurso”. O co-enunciador incorpora uma imagem com base nos indícios linguísticos fornecidos pelo enunciador, tendo-se, assim, o ethos construído. Trata-se de uma noção que se modula em função dos gêneros e dos tipos de discurso. Entendendo o discurso como o espaço em que o ethos discursivo é constituído e desenvolvido, podemos dizer que estamos dentro do mundo discursivo, em que o discurso encena a própria atividade. Segundo Maingueneau, o ethos é uma dimensão da cena de enunciação, e sua abordagem é uma maneira de levar em conta uma dimensão psicofísica sobre quem fala no discurso, pois, ao se falar, constrói-se uma imagem de si. Daí, não podermos tomá-lo como categoria autônoma de análise, sendo ele, na verdade, um autorretrato discursivo. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 18 REVISTA SABERES LETRAS Análise do corpus Para a análise, recortamos como critérios de análise, os mecanismos linguísticodiscursivos de que o enunciador lança mão para legitimar o discurso, privilegiando os planos da semântica global (o vocabulário, o interdiscurso, o tema, o estatuto do enunciador e do co-enunciador, a dêixis discursiva, o modo de enunciação, o modo de coesão) para desvelar a constituição do ethos discursivo. Apresentamos a seguir o relato O Saci: Na aldeia de Pau-Brasil, moravam pai e filho, os dois sempre gostavam de tomar banho em uma gamela. Sempre que acabavam o banho, não jogavam a água fora. No verão, fazia muito calor, principalmente, à noite. Os dois, como de costume, tomavam banho na gamela e dormiam em uma esteira. Certo dia, o filho olhou em direção à gamela e viu uma coisa muito estranha, fora do normal, com um lenço vermelho na cabeça. O filho, assustado, chamou seu pai dizendo: - Papai, papai, acorda, olha ali aquela coisa feia. - Que foi meu filho? O filho, desesperado, quase sem voz apontou em direção à gamela. O pai disse: - Tem certeza, meu filho, que está vendo alguma coisa? Eu não estou vendo nada. O filho respondeu: - Tenho papai, não estou sonhando! O pai disse: - Você está delirando meu filho, deite e durma pois estou muito cansado. O pai dormiu, mas seu filho continuou acordado, olhando para a cumeeira. E mais uma vez percebeu outra coisa estranha, um vulto em torno da casa com forte cheiro de cigarro. Assustado abraça forte seu pai, mesmo assim se enche de força e coragem e diz: - Desta vez esta coisa não escapa. Levantou-se e foi à beira do jirau, tirou um galho de tarinha, molhou na SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 19 água começou a balançar o galho em volta da casa. - Agora, companheiro, vá, siga seu caminho, fique sossegado e trate seu amigo bem. Após estas palavras, o vulto desapareceu e a criança pôde dormir tranquilamente. Contada por Alzima dos Santos Alexandre (30 anos) e e scrita por Valdemir e revisada por Andrea e Marília. (Mugrabi, 2005, p.181-184) A construção da cena que valida esse relato, traz o relato da aparição do Saci a um pequeno índio ainda criança, no próprio espaço da aldeia. A princípio, a atitude do jovem índio é de temor, mas com o desenrolar dos fatos, ele enfrenta a situação e consegue fazer com que o Saci siga o seu caminho. O próprio título já remete à crença indígena na figura do Saci, o que auxilia na construção da cena. Os efeitos de sentido são possíveis na cena enunciativa porque o filho e o pai alternam o turno conversacional que se desenrola no relato. Nessa perspectiva, o enunciador lança mão do discurso direto, mostrando a seriedade, a autenticidade do discurso citado (fala do pai e do filho), materializado em todo o relato. Vejamos o primeiro recorte: Na aldeia de Pau-Brasil, moravam pai e filho, os dois sempre gostavam de tomar banho em uma gamela. Sempre que acabavam o banho, não jogavam a água fora. No verão, fazia muito calor, principalmente, à noite. Os dois, como de costume, tomavam banho na gamela e dormiam em uma esteira. (MUGRABI, 2005, p.181) Nesse recorte, o enunciador, em terceira pessoa, insere-se no espaço discursivo e apresenta ao co-enunciador alguns costumes da aldeia Pau-Brasil, além de elementos do artesanato, tais como gamela e esteira. Já na apresentação, identifica de imediato o espaço dos acontecimentos “Na aldeia de Pau-Brasil” e as personagens principais - pai e filho - e suas ações rotineiras/cotidianas, inscritas discursivamente em “Os dois, como de costume, tomavam banho na gamela e dormiam em uma esteira”. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 20 REVISTA SABERES LETRAS Ainda nesse recorte, percebemos o uso repetitivo do advérbio sempre, por duas vezes, e uma predominância do tempo verbal pretérito imperfeito do indicativo nas seguintes marcas: moravam; gostavam; acabavam; jogavam; tomavam; dormiam. Esse tempo é comum em narrativas, o que enfatiza a noção de continuidade ou até mesmo de duratividade das ações. A voz que enuncia não atribui ao pai e ao filho nomes próprios, o que possibilita a identificação do coenunciador com a posição de cada um deles no discurso. “Certo dia, o filho olhou em direção à gamela e viu uma coisa muito estranha, fora do normal, com um lenço vermelho na cabeça. O filho, assustado, chamou seu pai dizendo: - Papai, papai, acorda, olha ali aquela coisa feia.” (MUGRABI, 2005, p.181) Nesse segundo recorte, o enunciador introduz a complicação e/ou princípio do conflito no relato, aspecto fundamental para a organização dessa história, materializada na passagem “o filho olhou em direção à gamela e viu uma coisa muito estranha, fora do normal”. Destaca-se também, nesse recorte, a marca de tempo “Certo dia” e uma predominância do pretérito perfeito do indicativo (olhou; viu; chamou) que indica a ação momentânea, definida no tempo. Além disso, há também a marca espacial ali constituído pela situação de enunciação, ancorando a enunciação. Ocorre, no último excerto, a introdução da voz de outro enunciador, o filho, por intermédio da instância enunciativa anterior, utilizando o discurso direto para enunciar que a coisa estranha e “fora do normal” passa a ser feia, adjetivo mais usual e que explicita uma característica física do antagonista. O tom que perpassa o texto é de insegurança e medo. A voz enunciativa confere um enunciador assustado, dando-lhe uma corporalidade identificada pela comunidade imaginária dos que aderem a esse mesmo discurso. Assim, a instância subjetiva toma corpo por meio da incorporação desses modos sociais pertencentes ao espaço discursivo indígena. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 21 - Que foi meu filho? O filho, desesperado, quase sem voz apontou em direção à gamela. O pai disse: - Tem certeza, meu filho, que está vendo alguma coisa? Eu não estou vendo nada. O filho respondeu: - Tenho, papai, não estou sonhando! O pai disse: - Você está delirando meu filho, deite e durma pois estou muito cansado. (MUGRABI, 2005, p.182) Aqui, nesse recorte, os enunciados “Tem certeza, meu filho, que está vendo alguma coisa? Eu não estou vendo nada” e “Você está delirando meu filho, deite e durma pois estou muito cansado” conferem ao discurso um tom duvidoso que se confirma no enunciado. Isso mostra, possivelmente, que os índios dão mais credibilidade aos adultos, aos mais velhos do que às crianças, que, muitas vezes, misturam real e fantasia, devido aos medos comuns na infância. O pai dormiu, mas seu filho continuou acordado, olhando para a cumeeira. E mais uma vez percebeu outra coisa estranha, um vulto em torno da casa com forte cheiro de cigarro. Assustado abraça forte seu pai, mesmo assim se enche de força e coragem e diz: - Desta vez esta coisa não escapa. Levantou-se e foi à beira do jirau, tirou um galho de tarinha, molhou na água começou a balançar o galho em volta da casa. - Agora, companheiro, vá, siga seu caminho, fique sossegado e trate seu amigo bem. Após estas palavras, o vulto desapareceu e a criança pôde dormir tranquilamente. (MUGRABI, 2005, p.183) SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 22 REVISTA SABERES LETRAS Neste excerto, a imagem construída é a de enunciador corajoso, que enfrenta o medo da presença do Saci. Tal situação equivale à atitude do sujeito empírico, uma vez que para eles o Saci existe. Trata-se de um texto que materializa a crença indígena na figura do Saci e o modo de se proceder diante da sua aparição. Além disso, a imagem de um fiador com caráter corajoso, disposto a superar a situação de medo, é revelada no enunciado “Desta vez esta coisa não escapa”. A marca linguística “Levantou-se” indica a atitude do enunciador, que, simbolicamente, anuncia a superação do medo. Também o uso dos verbos no imperativo (vá; siga; fique; trate) indica a posição discursiva desse fiador, agora não mais com a imagem de enunciador inseguro, mas de firmeza. O enunciador se autodenomina amigo do Saci, incorporando um enunciador amigo, companheiro, não agressivo, verificado no enunciado “Agora, companheiro, vá, siga seu caminho, fique sossegado e trate seu amigo bem”. Em “Agora, companheiro” encontramos a situação de enunciação ancorada no dêitico temporal agora, indicando que o enunciado é verdadeiro no momento em que o enunciador materializa o enunciado. Observando esses enunciados, com exceção do último fragmento, todos os outros dão voz ao enunciador filho, colocando-o em dupla situação: a de medo e a de coragem, elementos contrários/antagônicos. Nesse processo de desenvolvimento do relato, cuja situação conflituosa é resolvida, o filho aparece em primeiro plano. Para explicar na instância narrativa e discursiva os elementos da cultura indígena que indicam os procedimentos usados para o desaparecimento do Saci, o enunciador explicita um plano de ações (tirou um galho de tarinha; molhou na água começou a balançar o galho em volta da casa.) que integra a tradição que permeia a personagem folclórica. Pós-clímax, observa-se uma situação absolutamente resolvida confirmada pelos indícios textuais “e a criança pôde dormir tranquilamente”. Como todo discurso tem relação com outros discursos, encontramos nesse relato a presença do discurso folclórico, do discurso supersticioso, do discurso místico, trazendo à tona outras vozes que não aparecem explícitas no texto. Assim, o enunciador organiza seu discurso em função do outro; na sua voz, outros falam, SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 23 ou seja, o enunciador situa o seu discurso em relação ao discurso do outro, não apenas o co-enunciador mais imediato, mas também outros discursos historicamente constituídos que o enunciador já ouviu e que emergem na sua fala. Evidencia-se nos recortes a presença de vocabulário indígena: gamela, jirau, tarinha. Com a seleção de termos como esses, o enunciador apresenta uma imagem do indígena como aquele que detém um conhecimento sólido da cultura. Os períodos e os parágrafos não são longos, predominando as orações coordenadas, dando à enunciação um tom claro e direto. No final, a cenografia de um índio criança que ao dormir enfrenta o medo do Saci torna-se mais clara. Observando todos os recortes acima, percebemos que o enunciador em nenhum momento do texto explicita o nome do Saci, apenas o título traz a sua real denominação. O enunciador leva o co-enunciador, a partir de várias marcas linguísticas, tais como: uma coisa muito estranha, aquela coisa feia, um vulto, esta coisa, companheiro, o vulto, com um lenço vermelho na cabeça, com forte cheiro de cigarro, fora do normal, a identificar a personagem. Ademais, isso pode ser uma forma de insinuar que os índios não mencionam o nome próprio dessa figura, dado o temor, o medo de evocá-lo e ele aparecer. Ressaltamos, também, que os indícios linguísticos citados caracterizam negativamente o Saci, personagem que está ancorada nos estereótipos populares do folclore. O modo de dizer do enunciador nos permite dizer que o tom discursivo em que o texto é enunciado desvela uma instância enunciativa que considera a criança indígena também sábia, construindo um enunciador corajoso, que procura superar seus medos, aspecto validado na cultura de Pau-Brasil. O discurso aponta para uma corporalidade do sujeito e essa descrição faz com que tenhamos uma imagem do enunciador, antes mesmo de ele enunciar. A constituição do discurso e o modo como ele é dito fazem emergir uma imagem que revela a personalidade do enunciador que supera seus medos. A imagem discursiva é uma maneira de o enunciador se mostrar sem ser explícito, e, por isso, é eficaz. O tom é denunciado pela presença de itens lexicais marcados SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 24 REVISTA SABERES LETRAS na enunciação. Assim, a fala do enunciador é encenada, criando cenografias e apresentando uma imagem que institui um espaço em que o discurso indígena se legitima. A imagem discursiva que transparece nessa enunciação, portanto, é o do indígena investido de crença e tradições de um povo. Comentários Finais Verificamos neste trabalho que as práticas discursivas vivenciadas por sujeitos indígenas são comuns à esfera discursiva dessa população que, por um lado, expressam pensamentos, experiências e sentimentos e, por outro, fazem declarações e pronunciamentos que identificam o grupo; são, por isso, concebidas como práticas discursivas. Nesse sentido, o discurso proferido pelos indígenas da aldeia Pau-Brasil faz sentido se forem levados em conta aspectos externos à língua, tais como contexto, condições de produção e mecanismos histórico-sociais, os quais fazem parte de uma abordagem discursiva. Desse modo, as práticas discursivas depreendidas do cotidiano indígena nos forneceram uma chave para a compreensão da constituição do ethos discursivo no discurso analisado, uma vez que é também por meio delas que conhecimentos e ideias se tornam realidade. Considerar a globalidade dos discursos, em que o vocabulário, o gênero discursivo, os recursos coesivos, o ethos, o estatuto do enunciador e coenunciador, os modos de coesão, entre outros, são integrados na análise, torna a análise mais profunda. Significa, portanto, disseminar a especificidade do discurso em suas múltiplas dimensões, sem que uma seja preponderante a outra, sem que se priorize esta ou aquela dimensão, pois estão imbricadas e articuladas às dimensões da semântica global de sua formação discursiva, ou seja, há um sistema de restrições semânticas, uma grade que determina o que vai ser privilegiado, valorizado ou não. Por fim, destacamos que o discurso de práticas culturais dessa população se constrói sobre as marcas linguísticas e sociais que desvelam a constituição do SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 25 ethos discursivo, de forma a explicitar, no funcionamento do discurso proferido por sujeitos indígenas de Pau-Brasil, aspectos culturais da tradição e da história dessa população. Daí a compreensão e a interpretação dos fenômenos discursivos do ponto de vista linguístico e extralinguístico, uma vez que as discussões sobre as práticas sociais da contemporaneidade possibilitam-nos refletir sobre os valores e as tensões presentes nos discursos. Referências AMOSSY, Ruth. (Org.). A imagem de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes & Editora da Unicamp, 1993. ______. Análise de textos de comunicação. Tradução de Cecília P. de Souza-eSilva; Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2004. ______. Ethos, cenografia, incorporação. Tradução de Sírio Possenti. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005a, p. 69-92. ______. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar, 2005b. ______ Cenas da enunciação. Tradução de Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva; Nélson P. da Costa; Sírio Possenti. Curitiba: Criar Edições, 2006a. ______. Termos-chave da análise do discurso. Belo Horizonte: UFMG, 2006b. MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (Org). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008. MUGRABI, Edivanda (Org.). Os tupinikim e guarani contam... 2. ed. Vitória: Departamento de Impressa Oficial do Espírito Santo, 2005. NASCIMENTO, Jarbas Vargas; RECLA, Adriana. A Constituição do Ethos discursivo do indígena da aldeia Pau-Brasil. In: DA HORA, Dermeval da (Org.). Anais – Abralin em Cena Espírito Santo. João Pessoa: IDEA, 2009. p. 573-581. RECLA, Adriana. A construção do ethos discursivo no discurso indígena. In: SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 26 REVISTA SABERES LETRAS SALEM, Khalil (Org.). Estudos em linguagem e educação. São Paulo: Fiuza, 2011. p. 65-76. (Coletânea Acadêmica de Estudos em Letras e Educação – CAELE). ______. Cenografia e Ethos discursivo: a constituição da imagem do indígena da aldeia Pau-Brasil. In: SALEM, Khalil (Org.). Pedagogia da linguagem. São Paulo: Fiuza, 2012. p. 65-76 (Coletânea Acadêmica de Estudos em Letras e Educação – CAELE) No prelo. ______. Análise do discurso: cenografia e Ethos no discursivo indígena. Congresso Internacional da Associação Latino-americana de Estudos do Discurso. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2011. ______. Análise do discurso em questão: a construção do ethos discursivo em discursos indígenas. Verbum – Cadernos de Pós-Graduação, n. 1, p. 93-108, 2012. No prelo. ______. A construção da cenografia e a constituição do Ethos discursivo em relatos indígenas da aldeia Pau-Brasil. Saberes Letras. Vitória. v. 8, n. 1, p. 7-19, set./dez. 2010. ______. A constituição do Ethos no discurso indígena da aldeia Pau-Brasil. 2009. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) PUC. São Paulo, 2009 Documentos Consultados EDUCADORES TUPINIKIM. Resgatando a memória e a tradição tupinikim. Aracruz, Espírito Santo. 1996. Processo 1.353/97, fls. 901 apud Relatório do GT Portaria nº 0783/94. PETRÓLEO BRASILEIRO S.A. Estudo etnoecológico das terras indígenas do Espírito Santo. Relatório Final. 2005. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 07 a 26 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 27 ESTRATÉGIAS DE APAGAMENTO DO AGENTE NO GÊNERO MANCHETE: UM OLHAR FUNCIONALISTA Carmelita Minelio da Silva Amorim1* Lúcia Helena Peyroton da Rocha2** Maria José Costa3*** Resumo: Este artigo apresenta um recorte no estudo das estruturas de passiva, considerando sua complexidade sintática, semântica e pragmática e sua ocorrência no gênero textual manchete, veiculado pela internet em jornais on line. O objetivo principal é verificar as diferentes estratégias de apagamento do agente, destacando a pressuposicionalidade e o encobrimento do agente como duas possibilidades de sua omissão com motivações distintas. Para tanto, o presente estudo estabelece inicialmente uma reflexão em torno da perspectiva tradicional com base nas proposições de Bechara (1999), Rocha Lima (2003), Cunha e Cintra (2001), Said Ali (1964) e de Abreu (2006). Em seguida, travase uma discussão dentro da perspectiva formalista e, por fim, adota-se como referencial teórico o Funcionalismo Linguístico baseado em Givón (1979, 1984, 1995), Shibatani (1985) e Furtado da Cunha (2000). O corpus deste trabalho se constitui de manchetes veiculadas em jornais on line, sendo sua análise desenvolvida apenas qualitativamente. Essa opção por manchetes se deu por se considerar que as estratégias de que se valem os jornalistas para atrair a atenção do leitor tornam esse gênero textual interessante, justificando-se também a escolha de uma ferramenta on line para busca dos dados pela celeridade de acesso que viabiliza a pesquisadores de informações atuais e sempre renovadas sobre a realidade cotidiana do uso da linguagem. Palavras-chave: Estrutura de passiva. Gênero textual. Funcionalismo Linguístico. Abstract: This paper presents a focus on the study of passive structures, considering its syntactic, semantic and pragmatic complexity and its occurrence in the headlines on the internet news. The main objective is to examine the different strategies of deletion of the agent, highlighting the presupposition and * UFES. Vitória-ES-Brasil. [email protected] ** UFES. Vitória-ES-Brasil. [email protected] *** IACAPP. Jacaraípe-ES-Brasil. [email protected] SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 28 REVISTA SABERES LETRAS concealment of the agent as two possible suppression of the agent for different reasons. Firstly, this study provides a reflection on the traditional perspective based on the proposals of Bechara (1999), Rocha Lima (2003), Cunha and Cintra (2001), Said Ali (1964) and Abreu (2006). Hence, we propose a discussion within the formalist perspective, and finally, the theoretical framework is based on Linguistic Functionalism of Givón (1979, 1984, 1995), Shibatani (1985) and Furtado da Cunha (2000). The corpus of this work is composed of headlines broadcasted on on-line newspapers and its qualitative analysis. The option to analyze the headlines is due to its interesting faculty to attract the reader’s attention used by journalists. The research was through online tools because of the readiness with which the researchers access the renewed and current data on the daily reality of language use. Keywords: Passive structures. Headline Genre. Linguistic Functionalism. Introdução A estrutura de passiva tem sido objeto de estudo de muitos pesquisadores ao longo dos anos. Para a gramática tradicional, por exemplo, a voz passiva analítica é derivada da voz ativa e a voz passiva sintética é semelhante à analítica. No entanto, nessa mesma perspectiva, há pesquisadores que questionam essas relações. Alguns, por exemplo, argumentam que nem sempre é possível igualar a construção passiva sintética à passiva analítica, pois a equivalência automática pode produzir sentenças agramaticais. Na visão formal, especialmente no Gerativismo de Chomsky, a passiva também é analisada, mas considerando que nela estaria latente a estrutura ativa, uma vez que Chomsky a concebe como a transformação da ativa. Essa hipótese está relacionada à ideia da tradição gramatical latina de que estruturas ativas e passivas que têm o mesmo verbo são sinônimas. Langacker (1990) contrapõe-se a essa hipótese, afirmando que tal sinonímia é equivocada. No entanto, é a partir do funcionalismo, com as pesquisas voltadas para as funções das estruturas, que o estudo das construções passivas ganha destaque. Givón (1979), por exemplo, estuda diversos tipos de apassivação em línguas variadas, propondo que a função principal da construção passiva analítica é a promoção de um não-agente à função de tópico. Shibatani (1985) preocupaSABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 29 se em determinar o quanto esse tipo de estrutura aproxima-se do protótipo de passiva ao longo de um contínuo semântico, alegando que as passivas têm como função primeira o deslocamento do agente da sua posição de tema e, consequentemente, sua omissão. Neste artigo, pretendemos fazer um recorte no estudo das estruturas de passiva, considerando sua complexidade sintática, semântica e pragmática e sua ocorrência no gênero textual manchete, veiculado pela internet em jornais on line. Nosso objetivo principal é verificar as diferentes estratégias de apagamento do agente, considerando a pressuposicionalidade e o encobrimento do agente como duas possibilidades de omissão do agente com motivações distintas. O referencial teórico adotado é o Funcionalismo Linguístico baseado em Givón (1979, 1984, 1995), Furtado da Cunha (2000). Para a análise serão utilizadas manchetes veiculadas em jornais on line. Para a discussão teórica, fazemos um percurso, partindo da gramática tradicional, passando pela abordagem formalista e apresentando os pressupostos da perspectiva funcionalista que norteia nossa análise dos dados. Perspectiva tradicional A estrutura de passiva tem sido tratada, nas gramáticas tradicionais, de modo superficial, incompleto e descontextualizado. Esse tipo de tratamento deve-se à concepção de língua adotada pelos compêndios gramaticais, que consideram a língua um sistema abstrato e fechado, cuja compreensão pode ser obtida tomando frases descontextualizadas como unidades de análise. Na perspectiva tradicional, a construção passiva é considerada como um fenômeno de voz e estrutura-se de duas formas: (1) passiva analítica, em que o paciente da ação verbal é o sujeito da oração, formada normalmente pelo verbo auxiliar ser + particípio passado de verbos transitivos diretos + preposição por (ou de) + agente da passiva. Exemplos: A casa foi construída por este engenheiro / Ela é estimada de todos; (2) passiva sintética, em que há a ocorrência do pronome clítico se com verbos transitivos diretos na terceira pessoa seguidos de um sintagma SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 30 REVISTA SABERES LETRAS nominal (SN) com valor semântico de paciente. Exemplo: Alugam-se casas. Bechara (1999, p. 222) acrescenta os verbos estar e ficar como possibilidades de formarem a estrutura de passiva e estabelece uma diferença entre passividade e voz passiva, apresentando como exemplo de passividade: Os criminosos receberam o castigo merecido. Em relação ao agente da passiva, o autor destaca que nem todo termo introduzido pela preposição por tem a função de agente, principalmente se apresentar traço não-animado, referente a coisa, devendo ser classificado como adjunto circunstancial de causa ou meio. Nesses casos, por é comutável com outra preposição ou com locuções do tipo por causa de. Exemplos: O artista foi elogiado pela sua técnica / Os ladrões foram encontrados pela denúncia anônima (BECHARA, 1999, p. 435). Rocha Lima (2003, p. 253) e Cunha e Cintra (2001, p. 147) conceituam o agente da passiva como o complemento que, na voz passiva com auxiliar, representa o ser que pratica a ação verbal sofrida pelo sujeito. Rocha Lima destaca que esse complemento pode ser omitido e que essa omissão deve-se ao fato de o agente ser irrelevante. Said Ali (1964, p. 95) destaca que alguns verbos intransitivos podem construir orações em voz passiva desde que tenham por complemento um nome regido pela preposição a. Exemplo: Os meninos obedecem ao mestre / O mestre é obedecido. A concepção de (in)transitividade defendida por Said Ali (1964) se distancia de outras proposições tradicionais, que classificam o verbo obedecer em frase como a exemplificada/citada por Said Ali (1964) como verbo transitivo indireto. Ainda que a maioria dos gramáticos advogue no sentido de que só verbos transitivos diretos podem ter uma passiva correspondente, em jornais e revistas há muitos exemplos de uso de verbos transitivos indiretos em estrutura de passiva, como se vê em exemplos arrolados por Ignácio (2002, p. 50-51), dos quais tomamos emprestados os dois a seguir: (1) O filme “Carlota Joaquina”, de Carla Camurati, ficou sete meses em cartaz e foi assistido por cerca de 100 mil pessoas. (Jornal Folha de S. Paulo); (2) A atual legislação não é obedecida por nenhum dos concorrentes, que organizam suas campanhas num ambiente de cumplicidade mútua e impunidade geral. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 31 (Revista Veja). Apontando para uma perspectiva menos tradicional, Abreu (2006) divide a voz passiva em analítica e pronominal. A passiva analítica configura-se com o verbo auxiliar ser, passando o objeto direto da voz ativa a ocupar a função de sujeito e o sujeito da ativa sendo transferido para o predicado, precedido, em geral, pela preposição por, como complemento agente da voz passiva (Ana Paula fechou as portas > As portas foram fechadas por Ana Paula). A passiva pronominal ocorre com o pronome se (Pinturas preciosas salvaram-se, durante o ataque da máfia em Florença, graças às cortinas de vidro blindado) e não há possibilidade de o sujeito ser agente. Outra característica da voz pronominal é a ausência completa do agente da passiva. O autor ainda afirma que nem todas as construções ativas possuem passivas correspondentes. Em Maria levou um tiro, Maria é paciente, o que impossibilita a transformação para a passiva (*Um tiro foi levado por Maria). A ativa precisa de sujeito agente (Maria levou a mala > A mala foi levada por Maria). Abreu (2006) destaca que análogas à voz passiva pronominal são as construções com verbos intransitivos (Anda-se muito de bicicleta em cidades planas), em que o agente experienciador é indeterminado, sendo apenas pressuposto. Perspectiva formalista Muitos trabalhos sobre a construção passiva adotam uma perspectiva derivacional e, comumente, sua formação é atribuída apenas ao componente sintático ou gramatical. A análise transformacional para a estrutura de passiva ganhou repercussão com os desenvolvimentos da Gramatica Gerativa de Chomsky (1957, 1965). Nessa perspectiva teórica, destacam-se as seguintes características das expressões passivas: a) o sujeito gramatical de uma passiva é o objeto da ativa correspondente; b) o sujeito da contraparte ativa é expresso na passiva como um adjunto agentivo ou não expresso; c) o verbo da construção passiva corresponde ao verbo da ativa com uma marcação especial de voz passiva. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 32 REVISTA SABERES LETRAS Na tentativa de explicar a relação entre o objeto lógico do verbo das sentenças ativas e o sujeito das passivas, Chomsky (1981) formulou a hipótese de que a estrutura ativa estaria latente na estrutura de passiva. Nesse ponto, a perspectiva gerativa compartilha a ideia, herdada da tradição gramatical latina, de que estruturas ativas e passivas que possuem o mesmo verbo são sinônimas. Entretanto, Langacker (1990) afirma que essa sinonímia é equivocada, pois é apenas aparente e decorre da ideia de que as estruturas ativas e passivas referem-se ao mesmo evento objetivo no mundo. O autor destaca que as estruturas são objetos linguísticos e não correspondem diretamente aos acontecimentos do mundo real, mas sim a ‘conceptualizações’ dos falantes sobre esses acontecimentos. Desse modo, não são iguais em termos semânticos e nem mesmo em termos pragmáticos, uma vez que o falante, ao utilizar uma ou outra estrutura, evidencia intenções e também motivações de ordens diversas. Para a Gramática Gerativa, a estrutura de passiva é entendida como uma operação essencialmente gramatical, sintática e abstrata. Os exemplos de não correspondência entre estruturas ativas e passivas (João tem uma casa / *Uma casa é tida por João) são considerados como exceções ou idiossincrasias da língua e devem ser identificados lexicalmente como casos não sistemáticos. Perspectiva funcionalista Nos estudos linguísticos, a oração ativa é considerada a estrutura sintática mais básica, o padrão neutro, enquanto a passiva é identificada como uma estrutura complexa, o padrão marcado. Essa classificação como estruturas básicas e complexas é decorrente das propriedades formais das estruturas ativa e passiva. Sintaticamente, a ordem dos constituintes na estrutura de passiva desvia-se da ordenação prototípica: Sujeito – Verbo – Objeto, em que Sujeito e Objeto, em geral, correspondem aos papéis semânticos Agente e Paciente, respectivamente. Assim, a estrutura de passiva também apresenta uma complexidade semântica, já que a oração ativa é mais básica porque o papel de agente tende a ser SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 33 considerado como um papel semântico mais básico do que o do paciente. Estudos funcionalistas confirmam que, na Língua Portuguesa, os elementos que funcionam como agente tendem a ocorrer na posição inicial da oração, ou seja, como sujeito e tópico, e os que têm papel de pacientes geralmente ocorrem na posição final, isto é, como objeto. A estrutura de passiva, entretanto, interfere nessa correspondência entre papéis semânticos e relações gramaticais, já que o objeto (paciente) de um verbo semanticamente transitivo é utilizado com a função de sujeito e tópico da oração, e o agente, por sua vez, é omitido ou configurado como um sintagma preposicionado. Shibatani (1985), por exemplo, parte do pressuposto de que as estruturas linguísticas não são isoladas, mas apresentam semelhanças parciais entre si. Com isso, centraliza a discussão não em torno da identificação da passiva, mas na determinação do quanto a estrutura aproxima-se da passiva prototípica, ao longo de um contínuo semântico. Adotando, assim, uma concepção nãodiscreta da gramática, propõe-se examinar as correlações entre passivas e outras construções, tais como as reflexivas, recíprocas e “passivas mediais” (que expressam a ocorrência de eventos espontâneos), em dados de variadas línguas como o japonês, o espanhol, o francês, entre outras, nas quais, tais construções partilham propriedades formais e semânticas com a passiva prototípica. Para Shibatani (1985), a construção passiva serve a uma função semânticopragmática completamente distinta da construção ativa transitiva. Essa função é a desfocalização do participante prototipicamente associado ao papel de agente. Para o autor, dizer João comeu a maçã não é o mesmo que dizer a maçã foi comida por João. O autor respalda-se em Meillet (1948, p. 196), segundo o qual “o verdadeiro papel da passiva é exprimir o processo no qual o agente não é considerado”. Shibatani (1985) afirma que geralmente as passivas não expressam o agente, demonstrando que línguas como o finlandês e o russo evitam a expressão do agente na estrutura de passiva. Nas línguas que permitem a expressão do agente, o autor observa que as passivas sem a expressão do agente são muito mais numerosas em dados reais do que aquelas com o agente expresso. Isso SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 34 REVISTA SABERES LETRAS pode indicar que a construção passiva é usada quando a expressão ou a individualização do agente é impossível ou irrelevante. Para o autor, a passiva é uma construção centrada no agente e sua função fundamental é a desfocalização desse agente, observando que a passiva falha para estruturas com verbos transitivos cujo sujeito não é agente. Exemplo: Maria é amada por João. Franchi e Cançado (2003) também destacam que, em certos casos, a estrutura de passiva, quando possível, leva a uma interpretação agentiva da conceptualização do evento. Nas sentenças Eu fui obrigada a ficar em casa pelas crianças / Eu fui deixado doente por esses alunos, a leitura só é aceitável se há uma interpretação agentiva para os participantes associados a crianças e a alunos. Shibatani (1985, p. 839) ainda realça que uma oração sem um participante agente, ou algo próximo disso, como um experienciador, não permite passiva porque não há agente para desfocalizar. Segundo ele, a construção passiva implica a existência de um agente para o evento e sua conceptualização é a de um evento transitivo. Nesse sentido, na construção passiva prototípica, o agente é parte da valência semântica, ou seja, ele está presente semanticamente, sendo desfocalizado no nível da codificação sintática. Assim, segundo o autor, passivas verdadeiras são semanticamente “transitivas”, pois possuem tanto um agente quanto um paciente em seu esquema semântico. Nesse contexto, Givón (1984, p. 139) propõe uma hierarquia de topicidade para os casos semânticos, ordenando os Sintagmas Nominais (SNs) de acordo com a sua acessibilidade à função pragmática de tópico. Nessa hierarquia, o caso agente está posicionado acima do caso paciente, como se pode ver em: Agente > Dativo/Benefactivo > Paciente > Outros. Furtado da Cunha (2000, p. 108) destaca que a complexidade da estrutura de passiva não se limita, entretanto, a questões exclusivamente sintáticas. Na perspectiva funcionalista, a sintaxe deve ser explicada com referência ao seu uso na comunicação. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 35 Givón (1979, p. 48) afirma que é possível propor critérios substantivos para explicar o status privilegiado da oração ativa na sintaxe. Esses critérios envolvem o grau de conhecimento pressuposto com base no qual uma oração é utilizada pelo falante. Para Furtado da Cunha (2000, p. 109), as propriedades formais das orações ativas e passivas são originadas, até certo ponto, das propriedades do discurso e se correlacionam com o grau de pressuposicionalidade dessas estruturas. Segundo a autora, a voz ativa, considerada o padrão neutro, distingue-se da voz passiva por ser menos pressuposicional que esta, categorizada como o padrão complexo. Pragmaticamente, a oração ativa é usada no discurso para transmitir grande parte da informação nova. Assim, a complexidade pressuposicional da passiva resulta do fato de que a maioria dessas estruturas envolve um agente pressuposto, identificável do contexto discursivo ou do conhecimento pragmático geral informado predominantemente por construções com a voz ativa. Isso significa que as orações passivas são mais marcadas em termos da sua pressuposicionalidade. Essa característica pressuposicional da estrutura de passiva pode ser identificada no gênero manchete como uma estratégia de organização textual para determinado interlocutor em uma determinada situação comunicativa. Além da complexidade sintática e semântica, a estrutura de passiva apresenta uma complexidade pragmática. A passiva é característica do uso mais formal da língua e sua frequência varia de acordo com a modalidade – escrita ou falada – e depende do gênero textual. Givón (2001[1984], p. 125), assim como Shibatani (1985), afirma que a voz passiva prototípica é usada principalmente para a supressão do agente ou a topicalização do paciente. O fato de que um argumento não-agente – mais comumente o paciente – ser topicalizado é uma consequência, ou seja, constitui o padrão de supressão do agente. Para Givón (2001[1984], p. 122), o padrão neutro, a voz transitiva não marcada, a ativa-direta, é a referência pragmática funcional em relação à passiva. O autor SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 36 REVISTA SABERES LETRAS acrescenta que, na passiva, o agente é extremamente não-tópico (‘suprimido’, ‘rebaixado’), de modo que o paciente é o único argumento tópico na cláusula. Nesse sentido, sob o ângulo do argumento agente, a passiva é uma estratégia de impessoalização, pois na maioria de sentenças passivas a identidade do agente não é explicitada. Isto é, no domínio funcional da impessoalização, a passiva omite a identidade do agente. Assim, o ambiente semântico e discursivo, em conjunção com o tipo de registro, determinam a ocorrência de uma oração passiva em um dado texto. O uso da voz passiva, muitas vezes, é uma estratégia de encobrimento dos responsáveis por uma determinada ação por ser redundante explicitá-los, ou ser comprometedora a explicitação, ou ainda por desconhecimento do agente. Furtado da Cunha (2000, p. 109) destaca que, no discurso, a tendência natural da comunicação é manter um mesmo referente como ponto de partida de uma série de sentenças. Sendo assim, a continuidade tópica reflete a norma na comunicação, ou seja, o padrão neutro, enquanto a mudança de tópico representa um desvio dessa norma, o padrão marcado. A autora acrescenta que se a troca de informação nova é a base do discurso humano, o padrão oracional ativo é o mais frequente no discurso. Desse modo, as construções mais pressuposicionais, as passivas, exibem maiores restrições distribucionais do que as construções neutras. Considerando essas restrições, podemos afirmar que o uso das estruturas linguísticas está diretamente vinculado aos gêneros textuais que circulam na sociedade. Gêneros textuais: a manchete Marcuschi (2005, p. 95) afirma que a manifestação verbal ocorre sempre por meio de textos realizados em algum gênero e que a escolha de um ou outro gênero não é aleatória, mas subordina-se a interesses específicos. O autor acrescenta que os gêneros operam, em determinados contextos, como formas de legitimação discursiva, já que se situam entre desenvolvimentos históricos e práticas sociodiscursivas que se refletem na língua. Desse modo, é possível afirmar que cada gênero apresenta uma determinada estabilidade e define o SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 37 que é dizível em determinado contexto situacional. Assim, gêneros textuais podem ser definidos como quaisquer textos que cumprem uma finalidade social e que emergem no interior de uma situação definida, apresentando propriedades específicas. São textos orais e escritos materializados em situações comunicativas recorrentes. Os gêneros textuais são encontrados na vida diária com “padrões sociocomunicativos característicos definidos por sua composição, objetivos e estilo concretamente realizados por forças históricas, sociais, institucionais e tecnológicas” e constituem uma listagem aberta (MARCUSCHI, 2003, p. 4). Marcuschi (2002, p. 20) salienta que “os gêneros textuais caracterizam-se muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por suas peculiaridades linguísticas e estruturais”. No entanto, isso não quer dizer que a forma deve ser desconsiderada, mas significa que nem sempre ela determina um gênero, pois, muitas vezes, este é determinado pelo suporte ou por sua função. A Manchete de jornal é um dos diversos gêneros que circulam diariamente em nossas relações interdiscursivas, sociais e pragmaticamente determinadas. Esse gênero aparece na primeira página dos jornais com a função de destacar as notícias mais importantes de maneira resumida. Segundo Rangel (2010), esse destaque pode ser feito por meio do tipo de fonte, pelo layout, pelas imagens, pela sua disposição do texto na capa, ou mesmo pela sua construção textual. A autora acrescenta que, dentre todas as manchetes que compõem a capa do jornal, sempre existe uma com maior destaque, dada a relevância da notícia a ela vinculada. Essa relevância varia de jornal para jornal, no entanto, pode-se dizer que, em todos os jornais, a manchete funciona como uma espécie de propaganda da publicação. Considerando as características formais, Rangel (2010) afirma que as manchetes, em geral, constituem-se de orações curtas, em ordem direta, sem rebuscamento e/ou inversões sintáticas. A manchete funciona como um título que promove a notícia ou reportagem no interior do jornal e, por isso, não tem pontuação, a não ser em casos de pergunta. A pontuação final só ocorre nos pequenos textos SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 38 REVISTA SABERES LETRAS que compõem algumas manchetes, o lead (resumo da notícia com todos os elementos essenciais à compreensão da notícia). Como o jornal trata de assuntos da atualidade, geralmente os verbos das manchetes estão no presente. Como as manchetes apresentam as notícias, há sempre a numeração da página na qual o leitor poderá encontrar a notícia na íntegra. A autora ainda conclui, assim, que o gênero manchete é constituído pela chamada, pelo lead e pelas imagens associadas. Análise dos dados Como afirmamos anteriormente o corpus desta pesquisa se constitui de manchetes, mas para a nossa discussão sobre o apagamento do agente, consideramos importante também apresentarmos a notícia da qual a manchete é parte. Na análise, inicialmente fazemos uma comparação entre as manchetes sobre a condenação de militar, a cassação de deputado e o assassinato de suspeito de tráfico de drogas, sob o ponto de vista temático e funcional, pois se revela uma peculiaridade linguística e estrutural dos referidos textos. No primeiro caso, o do militar, embora na chamada do texto 1, Militar é condenado a 8 anos de prisão por abuso, o agente, ou seja, os responsáveis pela condenação do militar, seja suprimido e topicalizado o não-agente, Paulo Roberto, ao longo do texto ocorre ênfase sobre o agente da passiva, o Conselho, que julga e condena e dos agentes do exército que investigaram o seu crime de abuso. Nota-se, no texto, que foi explicitado o esforço da própria corporação para condenar o ato criminoso e excluir o militar infrator de seu quadro de oficiais. Por outro lado há que se destacar que, do ponto de vista do jornalista/veículo, um dos objetivos é mudar a perspectiva da cena, em que se realça um militar, ao colocá-lo como tópico na estrutura sintagmática da manchete para enfatizar a ideia de não impunidade quanto a abusos cometidos por militares, principalmente quando se tratam de oficiais. No texto 2, Deputado é cassado por encomendar assassinato, ao longo da leitura não se percebe a mesma estratégia de explicitações sobre o agente da passiva SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 39 ocorrida no texto 1. A supressão ocorre naturalmente, uma vez que os agentes da passiva podem ser resgatados com base no conhecimento geral, favorecendo a elisão de quem acusa, quem aponta, quem processa (o ministério público, os informantes, os investigadores da polícia, as vítimas, dentre outros). Entretanto, não se apaga o agente cassador (ou seja, que executou a cassação), operando-se o mesmo comportamento ético constatado no texto anterior sobre o militar: é importante deixar explicitamente ressaltado na estrutura textual que a Câmara cassou o mandato, ou seja, não foi conivente com o membro infrator. Um fator determinante das diferenças na abordagem ao longo do texto das reportagens sobre os delitos cometidos pelos não-agentes citados nas duas manchetes talvez seja a distinção entre as instituições militares e legislativas, assim como a natureza dos deveres de militares e deputados. Tendo em vista a função primordial da Polícia e a visão cultural dos valores institucionais, um abuso de menores ou mesmo um assassinato são infrações à lei que nos parecem mais graves quando cometidas por policiais. Em relação ao texto 3, Suspeito de tráfico de drogas é assassinado no Recreio dos Bandeirantes, sobre o assassinato do suspeito de tráfico de drogas, o agente não é explicitado em nenhum momento, omissão essa que resulta do desconhecimento da identidade do assassino. Em comum entre os textos selecionados para análise, o que foi constatado é que as manchetes, em suas chamadas, topicalizam com construções passivas os não-agentes, mas nas peculiaridades linguísticas e estruturais do texto que compõem as reportagens, revelam pragmaticamente, no nível semântico, o foco paradoxal na agentividade “dos não-agentes”: o militar que abusou de menores, o deputado que cometeu crimes, o suspeito que traficava drogas e o cineasta que produziu um excelente filme, como veremos ao discutir o texto 4, Walter Salles é premiado na Itália por “Diários”. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 40 REVISTA SABERES LETRAS (1) Quinta, 5 de agosto de 2004, 23h10 (Redação Terra) Militar é condenado a 8 anos de prisão por abuso O 1º tenente Paulo Roberto França de Souza foi julgado e condenado hoje pelo Conselho Especial de Justiça, da 3ª Auditoria Militar Federal, a pena de oito anos de reclusão, por atentado violento ao pudor e ameaça. O tenente Paulo Roberto é acusado de abusar sexualmente de menores no quartel do Centro Tecnológico do Exército, em Guaratiba (RJ). Agentes do Serviço Reservado do Exército descobriram que ele havia levado dois menores, um de 10 e outro de 14 anos, para o Centro, onde ele servia, e forçou os dois a manter relações sexuais com ele. Durante as investigações, os agentes do Exército descobriram vasto material pornográfico em seu computador, com ligações no Brasil e no exterior. O tenente foi preso em regime fechado, sem direito de apelar em liberdade. O militar teve agravante na condenação por ser oficial. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 41 (2) Quinta, 5 de agosto de 2004, 22h20 (Agência EFE) Deputado é cassado por encomendar assassinato O deputado distrital Carlos Xavier (PMDB) teve seu mandato cassado hoje, quinta-feira, pela Câmara Legislativa de Brasília, acusado de ordenar o assassinato de um adolescente identificado como o suposto amante de sua ex-esposa. A sessão da Câmara Legislativa distrital determinou a cassação com treze votos a favor e três contra, depois de avaliar nesta quinta-feira as provas apresentadas contra Xavier, que também é acusado de desviar fundos públicos. Segundo investigações da polícia civil de Brasília, Xavier contratou dois pistoleiros para matar em março deste ano o adolescente Ewerton da Rocha Ferreira, de 16 anos, por suspeitar que ele era amante de sua antiga esposa, Maria Lúcia Araújo de Xavier. Com a perda de seu mandato de quatro anos, a Justiça tem caminho aberto para abrir um julgamento, cuja pena máxima é 30 anos de prisão. O deputado do PMDB engrossa uma lista de cerca de 50 congressistas que enfrentam processos por crimes de violência e corrupção. Um desses exmembros do Executivo é o ex-senador Ernandes Santos Amorim (PP), detido hoje em Ariquemes, interior de Rondônia, por supostamente encabeçar uma quadrilha que se apropriou de dinheiro dos cofres públicos. Santos Amorim, contra quem pesa a suspeita de estar ligado ao narcotráfico na Bolívia, é apontado como o responsável pelo desaparecimento de aproximadamente R$ 18 milhões (quase seis milhões de dólares), entre outras acusações. O ex-representante do Partido Progressista é considerado pela polícia federal como um dos principais líderes do narcotráfico na região norte do país. Além da suposta participação no tráfico de drogas, Santos Amorim é também acusado de explorar jazidas minerais ilegalmente. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 42 REVISTA SABERES LETRAS (3) 22/05/2012 (R7) Suspeito de tráfico de drogas é assassinado no Recreio dos Bandeirantes Outro homem foi baleado e teve que ser encaminhado para o hospital Um homem foi morto na noite de segunda-feira (22) na comunidade do Terreirão, no bairro do Recreio dos Bandeirantes, na região da zona oeste do Rio de Janeiro. Segundo os militares do Batalhão do Recreio (31º BPM), outro suspeito também foi baleado e teve que ser encaminhado para o Hospital Municipal Lourenço Jorge, na Barra da Tijuca, na zona oeste. Ainda de acordo com a polícia, os homens teriam ligação com o tráfico de drogas. Até as 3h não havia informações sobre o estado de saúde da vítima baleada. Para discutir as peculiaridades linguísticas e estruturais do texto sobre a premiação de Walter Salles e estabelecer relações com o uso de construções passivas no gênero manchete, procuramos contextualizar o estudo das frases, iniciando as considerações a partir de observações sobre o eixo temático (nível textual), a relação agente-paciente (nível semântico) e o foco da notícia dado pelo autor (nível pragmático-discursivo). O texto noticia a premiação de Walter Sales pelo Centro Italiano de Pesquisas para a Narrativa e o Cinema devido a sua produção do filme Diários de Motocicleta. Portanto, do ponto de vista temático, há duas ideias de agentividade, que se bipartem temporalmente: a de Walter Salles que produziu o filme e a do Centro Italiano que reconhece o mérito da obra dele e o homenageia por sua produção. Na chamada da manchete, no entanto, o que se verifica é a ênfase na premiação, uma vez que em Walter Salles é premiado na Itália por “Diários”, há uma construção passiva com o verbo premiar, que topicaliza beneficiário, função ocupada por SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 43 Walter Salles, suprime o agente premiador e ressalta a obra premiada, ou seja, Diários. Do ponto de vista linguístico, o primeiro parágrafo inicia-se com uma estrutura ativa, mas, ao usar o verbo ganhou, verbo de ação-processo, mantém a ideia de passividade para o tópico Walter Salles, cujo papel temático é beneficiário. Apenas na introdução é revelado o agente premiador do cineasta, o Centro Italiano de Pesquisas para a Narrativa e o Cinema, que, além de ser entidade que premia, é a que também informa. Ressalte-se ainda o uso do particípio baseado, O filme foi baseado em textos de Che, que evita a construção passiva e possibilita referência à agentividade originária de Walter Salles, que baseou seu filme em textos de Che. Ao mesmo tempo em que se esclarece o papel do agente premiador e sua relação com pesquisa, narrativa e cinema, também se desvela o papel de Walter Salles como agente pesquisador, leitor e produtor. A supressão de Centro Italiano como agente da passiva nos parágrafos posteriores ocorre sem prejuízos à interpretação, sendo facilmente identificado pela referência feita inicialmente. A topicalização de Walter Salles prossegue no texto com o predomínio da ideia de passividade expressa, como no segundo parágrafo, pelo uso de construções como escolhido e receberá. O terceiro parágrafo, apesar de aparentemente mudar o tópico para o filme, continua semanticamente topicalizando Walter Salles, fornecendo detalhes sobre sua obra, adotando construções passivas, formando sobre o filme a seguinte sequência: selecionado, publicado, lido e visto. Os dois parágrafos finais se dedicam a apresentar um segundo e terceiro premiados, privilegiando da mesma forma, no texto, as construções passivas e a carga semântica de passividade expressa em receberá. Do ponto de vista pragmático-discurso, a estratégia de apagamento do agente da passiva, o Centro Italiano, revela o foco do autor, que é noticiar a premiação, ressaltando o mérito de Walter Salles. Nesse sentido, a supressão da entidade que premia não diminui o brilho ou importância da notícia. Outro seria o caso se o prêmio fosse um Oscar, pois certamente a chamada traria o agente premiador em destaque, como supostamente em Walter Salles ganha Oscar. Se SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 44 REVISTA SABERES LETRAS esse fosse o contexto, muito provavelmente não seria adotada a supressão do agente da passiva, revelado indiretamente por sua notória vinculação à famosa estatueta. Uma informação como esta, sobre a entidade premiadora, traria maior status ao não-agente topicalizado, pois é de conhecimento geral que a indústria cinematográfica norte-americana nunca premiou o cinema brasileiro. (4) Sexta, 6 de agosto de 2004, 16h00 (AFP) Walter Salles é premiado na Itália por “Diários” O cineasta brasileiro Walter Salles ganhou neste ano o Efebo de Ouro do Centro Italiano de Pesquisas para a Narrativa e o Cinema pelo filme Diários de Motocicleta, baseado em textos de Ernesto Che Guevara e Alberto Granados, informou a entidade nesta sexta-feira. Escolhido entre 60 candidatos, Salles receberá pessoalmente o prêmio durante o tradicional festival de filmes inspirados em obras literárias que se realizará de 27 de setembro a 2 de outubro próximos em Agrigento, Sicília, sul da Itália. O filme de Salles foi selecionado pela eficiente adaptação para o cinema dos diários de Granados e Guevara. O texto, publicado pela editora Feltrinelli, está na lista dos livros mais lidos na Itália este ano, enquanto o filme esteve entre os cinco mais vistos após sua estréia, há três meses. O Efebo de Prata foi concedido ao italiano Davide Grieco pelo filme Evilenko, inspirado em seu próprio romance Il comunista che mangiava i bambini (O comunista que comia crianças). Outro diretor italiano, Gianni Amelio, receberá um prêmio especial por seus escritos cinematográficos. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 45 Conclusões preliminares A dificuldade de interpretação da passiva está relacionada ao fato de tal construção reverter a ordem natural dos constituintes sujeito (agente) e objeto (paciente) da oração ativa transitiva. Os possíveis distúrbios na comunicação causados pelo uso da forma passiva num dado texto seriam consequência da interpretação inadequada do sujeito passivo como agente, e não como paciente, da ação verbal. Assim, a motivação discursivo-pragmática para o uso de uma forma passiva funciona como uma garantia de sua adequada interpretação e também como uma estratégia, em se tratando da manchete, apesar da sua complexidade sintática, semântica e pragmática. As construções passivas analisadas trazem em comum a omissão do agente, embora por motivações distintas. Em nossa pesquisa, observamos que o apagamento do agente na estrutura de passiva não depende somente de condições de natureza sintática e semântica do componente a ser suprimido. Há uma dependência pragmática também envolvida, uma vez que essa supressão pode ser de natureza pragmática, objetivando focalizar o paciente devido a sua relevância ou despertar a atenção do leitor para que este se interesse pela leitura do texto que compõe a notícia; ou estar vinculada ao fato de o agente ser desconhecido. O apagamento do agente não prejudica a leitura nos casos envolvendo a pressuposicionalidade, quando a informação é facilmente identificável pelo efeito semântico de escolhas lexicais e demais operadores do cotexto, pelo contexto discursivo e pela situação comunicativa em que interagem os falantes ou pelo conhecimento pragmático geral das pessoas (conhecimento enciclopédico e de mundo). Quando o apagamento é de ordem pragmática, pode atuar como fator estilístico, ao se revelar tardiamente o agente no texto, produzindo maior suspense e despertando curiosidade e interesse do leitor. Também pode servir ideologicamente para ocultar ou negar determinada informação e assim marcar ou não marcar o posicionamento do autor do texto. Em ambas as situações, o estudo de construções e do uso de passivas em textos de variados gêneros SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 46 REVISTA SABERES LETRAS desenvolve o prazer e a capacidade de leitura, apurando o senso estético e crítico do observador. Embora este artigo tenha focado o gênero manchete, no qual há menor incidência de apagamento pragmaticamente não planejado, é possível encontrar tais ocorrências em textos de estudantes que apresentam ainda certa imperícia na escrita. Nestes casos, o que pode ocorrer é o não domínio, na produção escrita, da reversibilidade na construção de orações, apontando para deficiências de percepção das estruturas linguísticas. Na busca por associar pesquisa acadêmica à intervenção escolar, revela-se importante verificar se tais estudantes também apresentam dificuldades para compreensão das relações agente-paciente em construções passivas e atuar preventivamente, desenvolvendo exercícios e explicitando aos estudantes essas relações para desenvolverem a habilidade de leitura e escrita de construções ativas e passivas do português. Referências ABREU, Antônio Suárez de. Gramática mínima: para o domínio da língua padrão. 2. ed. São Paulo: Ateliê, 2003. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. CHOMSKY, Noam. Syntactic structures. The Hague: Mouton. 1957. ______. Aspects of the theory of syntax. Cambridge, Mass: MIT Press, 1965. ______. Lectures on Government and Binding. Dordrecht: Foris Publications, 1981. CUNHA, Carlos; CINTRA, Lindley. Nova gramática contemporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. do português FURTADO DA CUNHA, Maria Angélica. A complexidade da passiva e as implicações pedagógicas do seu uso. Linguagem & Ensino, v. 3, n. 1, p. 107116, 2000. FRANCHI, Carlos; CANÇADO, Márcia. Teoria Generalizada dos papéis temáticos. Revista de Estudos da Linguagem, v. 11, n. 2, 2003. GIVÓN, Talmy. On understanding grammar. New York: Academic Press, 1979. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 47 ______. Syntax: a functional typological introduction. v. 1. Amsterdam: John Benjamins, 2001[1984]. IGNÁCIO, Sebastião Expedito. Análise sintática em três dimensões: uma proposta pedagógica. Franca: Ribeirão Gráfica e Editora, 2002. LANGACKER, Ronald. The english passive. Concept, image and symbol: The Cognitive Basis of Grammar. Mouton de Gruyter, 1990. Cap. 4. MARCUSCHI, Luiz Antonio. A questão do suporte dos gêneros textuais. 2003 (mimeo). _________. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. _________. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 2005 (mimeo). MEILLET, Antoine. Linguistique historique et linguistique générale. Paris. 1948. RANGEL, Michelle Martins de Mattos. Multimodalidade e construção de identidade social em manchetes jornalísticas. Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 2. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/xiv_cnlf/tomo_2/11661173.pdf>. Acesso em 22 mai. 2012. ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da língua portuguesa. 43. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. SAID ALI, Manuel. Gramática histórica da língua portuguesa. 3. ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1964. SHIBATANI, Masayoshi. Passives and related constructions: a prototype analysis. Language, v. 61, n. 4, p. 821-848, 1985. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 27 a 47 set. / dez. 2012 48 REVISTA SABERES LETRAS A POLISSEMIA NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO DOS TEXTOS Micheline Mattedi Tomazi1* Camila de Souza Neris2** Resumo: O fenômeno da polissemia na língua contribui para a multiplicidade de sentidos e gera possibilidades de várias interpretações levando-se em consideração as diferentes situações de uso de um determinado vocábulo. O objetivo principal deste artigo é demonstrar a importância da polissemia no processo de construção do sentido e interpretação de textos, uma vez que ela é base da enunciação e introduz na língua um elemento de flexibilidade porque evidencia o relacionamento de um só significante com vários significados nos contextos nos quais se insere. Pretende-se verificar como esse fenômeno envolve uma profunda escolha lexical que influencia no modo como os usuários da língua vêem e entendem o mundo que os rodeia. Com o aporte teórico dos estudos lexicais e semânticos da Língua Portuguesa, a partir de um diálogo com diferentes autores como Basílio (2004), Biderman (1978), Ferraz (2005), Marcuschi (2004), Ilari (2006), entre outros, desenvolveremos um estudo da polissemia na tentativa de refletir sobre seu uso no texto poético “polissemia” e demonstrar que, ao lidar com o léxico, fazemos escolhas significativas em termos de sentido e interpretação. Palavras-chave: Polissemia. Léxico. Discurso. Sentido. Abstract: The phenomenon of polysemy in language contributes to an amount of meanings and creates possibilities for several interpretations while taking into consideration the different situations of usage of a particular word. Polysemy plays an important role in the process of construction of meaning and reading comprehension. It is considered the basis of enunciation and introduces in language a flexible element, because it highlights the relation between a single signifier and several signifieds in contexts in which it is inserted. By analyzing such phenomenon, it is intended here to show how it encompasses a strong * Professora doutora do Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES – Vitória, Espírito Santo, Brasil. [email protected] ** Mestranda em Linguística pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES –Vitória, Espírito Santo, Brasil. [email protected] SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 49 lexical choice that influences the way speakers see and understand the world around them. Considering theoretical studies on lexical and semantic items of the Portuguese language and also based on a dialogue with authors such as Basílio (2004), Biderman (1978), Ferraz (2005), Marcuschi (2004), Ilari (2006), among others. It is reported here a study on polysemy aiming at a deep look into its usage and how important context is; bearing in mind the premise that while dealing with the lexicon, one makes meaningful choices in terms of meaning and comprehension. Keywords: Polysemy. Lexicon. Speech. Meaning. Considerações iniciais Estudar o léxico de uma língua é também estudar o processo da língua que coloca à disposição dos falantes uma série de recursos que precisam os limites do sentido da fala e de sua utilização. O léxico da língua é definido como o acervo de palavras de um determinado idioma que fica à disposição de sua comunidade linguística para o uso. Sendo assim, todo falante da língua tem acesso a esse acervo e o utiliza para a formação de seu vocabulário, de seu repertório linguístico. Poderíamos dizer, em outras palavras, que o léxico é o conjunto de palavras que as pessoas de uma determinada língua têm à sua disposição para expressar-se, oralmente ou por escrito. Podemos ainda afirmar que uma característica básica do léxico é sua mutabilidade, já que ele está em constante movimento. A língua, nesta concepção, “move-se ao longo do tempo numa corrente que ela própria constrói. Tem um curso... Nada é perfeitamente estático. Todas as palavras, todos os elementos gramaticais, todas as locuções, todos os sons e acentos são configurações que mudam lentamente, moldadas pelo curso invisível e impessoal que é a vida da língua” (SAPIR, apud ULLMAN, 1977). Nesse sentido, admitimos com Coseriu (1987, p.19) que a capacidade que o falante tem de falar é sempre falar uma língua dentro de uma comunidade determinada historicamente, o que implica um domínio mesmo que mínimo da tradição idiomática desta ou daquela comunidade A linguagem, então, sempre se manifesta como língua. Para Coseriu (1987, p.23, grifos do autor), “uma SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 50 REVISTA SABERES LETRAS língua não é uma ‘coisa feita’, um produto estático, mas um conjunto de ‘modos de fazer’, um sistema de produção, que, a todo instante, somente em parte surge como já realizado historicamente em produtos linguísticos”. Para Basílio (2004, p.7), o léxico é tradicionalmente definido como o conjunto de palavras de uma língua e serve como uma espécie de banco de dados previamente classificado, ou seja, um depósito de elementos de designação, o qual fornece unidades básicas para a construção dos enunciados. Sendo assim, seu papel está diretamente ligado à dupla função da língua que consiste em ser, ao mesmo tempo, um sistema de classificação e um sistema de comunicação. Em Biderman (1978), o léxico de uma língua materna constitui uma forma de registrar o conhecimento do universo e, ao dar nomes aos seres e objetos, o homem os classifica simultaneamente. Assim, a nomeação da realidade pode ser considerada como a etapa primeira no percurso científico do espírito humano de conhecimento do universo. Além disso, compreende a autora que o léxico de uma língua natural pode ser identificado com o patrimônio vocabular de uma dada comunidade linguística ao longo de sua história. Segundo Ferraz (2005, p.217), o léxico é o elemento da língua de maior efeito extralinguístico por se reportar, em grande parte de seu conjunto, a um mundo referencial, físico, cultural, social e psicológico, em que se situa o homem. O léxico, então, possui, segundo a autora, um estatuto semiótico e as relações entre léxico e cultura, léxico e sociedade, são indubitavelmente, muito fortes. De acordo com Marcuschi (2004, p.270), o léxico é o terceiro grande pilar da língua, ao lado da sintaxe e da fonologia e sem ele não há língua. Para o autor, o léxico é o nível da realização linguística tido como o mais instável, irregular e até certo ponto incontrolável. Porém, a escolha do léxico, ou seja, de um conjunto de palavras a serem usadas em um determinado discurso não é algo fácil, que se dá da noite para o dia, tendo em vista, que estamos sempre escolhendo uma palavra em detrimento da outra. Por outro lado, a escolha do léxico no cotidiano do falante é de suma importância, SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 51 uma vez que é por meio dele que esse falante se expressa, revela suas atitudes, pensamentos e emoções. Assim, quando o falante escolhe o que vai dizer e o que quer dizer, está também escolhendo as palavras que melhor representam o seu mundo interior e a sua forma de perceber o mundo exterior. O usuário da língua utiliza o léxico, esse inventário aberto de palavras disponíveis no seu idioma, para a formação do seu vocabulário, sua própria expressão no momento da fala e na efetivação do processo comunicativo. Além disso, o vocabulário de um indivíduo caracteriza-se pela seleção e pelos empregos pessoais que ele faz do léxico. Quanto maior for o vocabulário do usuário, maior a possibilidade de escolha da palavra mais adequada ao seu intento expressivo. As palavras não foram feitas para ficarem estáticas em uma folha de papel. Palavras estáticas são sem vida e sem propósitos. Pode-se dizer que o principal objetivo de um vocábulo é a construção de sentido e, para que tal objetivo seja concretizado, faz-se necessário que em cada texto exista não só um contexto, mas também um interlocutor. Decerto que a linguagem é expressão da intersubjetividade e a linguagem é “apreensão do ser, mas não por meio de um sujeito absoluto, nem do indivíduo empírico, e sim por meio do homem histórico que, precisamente por isso, é ao mesmo tempo um ente social” (COSERIU, 1987, p. 30). Assim sendo, examinaremos o fenômeno da polissemia que nos ajudará a compreender o sentido das palavras utilizadas em determinado contexto e o posicionamento do sujeito enunciador frente ao dito ou ao modo de sua enunciação, que permite estabelecer gradações diferentes de seu engajamento ou de seu afastamento em relação ao que afirma. Se o emprego de vocábulos com múltiplos sentidos é utilizado com frequência no cotidiano das pessoas foi a partir dessa observação que surgiu a idéia de se analisar a polissemia em um texto de nossa língua, tendo em vista que ela é um traço fundamental da fala humana pelo fato de as palavras poderem configurar aspectos diferentes e em diferentes contextos. O objetivo desse trabalho é, portanto, sinalizar situações em que as palavras são SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 52 REVISTA SABERES LETRAS postas em situações discursivas que favorecem uma dúplice interpretação, o que caracteriza a polissemia e como esse fenômeno contribui para a construção do sentido do texto. O fenômeno da polissemia na língua: o problema da definição O modo de dizer as coisas é tão importante quanto o conteúdo do que dizemos. Sempre que dizemos alguma coisa, estamos de alguma forma nos revelando, revelando nossos pontos de vista, atitudes e sentimentos. As marcas de subjetividade estão registradas em certos elementos linguísticos que traduzem um maior ou menor comprometimento do enunciador em relação ao conteúdo do que enuncia. A polissemia é uma característica de muitas das nossas palavras, segundo a qual um mesmo vocábulo pode ter dois ou mais significados diferentes, embora quase sempre com alguma relação entre si. Observe os exemplos a seguir: 1- a) Falta uma peça a esta máquina para que ela funcione. b) No próximo período escolar, a minha turma vai encenar uma peça de teatro. 2- a) Em minha casa, come-se frango uma ou duas vezes por semana. b) O gol da vitória foi um frango do goleiro 3- a) Este aparelho precisa de uma pilha nova. b) Maria tem uma pilha de pratos para lavar. Em cada um dos exemplos acima, as palavras destacadas adquirem um sentido diferente de acordo com o contexto. Levamos em consideração o poder de atração que tais recursos linguísticos podem causar nos leitores, bem como a intencionalidade do enunciador ao produzi-los. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 53 Assim, constatamos a riqueza de possibilidades que a língua pode oferecer e como o uso destes recursos pode estar em prol de uma classe ou ideologia. Nos diversos discursos produzidos constantemente pelos sujeitos em interação, as palavras não possuem invariavelmente o mesmo sentido nas diferentes situações. A polissemia é essa propriedade das palavras de adquirirem sentidos distintos a depender do contexto de uso. A necessidade de se nomear elementos e fatos novos que se inserem em determinado contexto colaboram para a expansão do léxico. Esse processo de expansão do léxico pode ocorrer de diferentes formas, entre elas o desenvolvimento de homofonias. A extensão de significado e outras alterações semânticas são, também, fatos observados na língua. A flexibilidade do léxico da língua portuguesa do Brasil e as alterações semânticas propiciam a ocorrência da polissemia ou/e homonímia, fenômeno(s) amplamente discutido(s) por gramáticos e linguistas. Contudo, o conceito de polissemia é muitas vezes confundido com o da homonímia, que se caracteriza quando dois vocábulos diferentes, de origens e significados diversos, terminam convergindo para a mesma configuração fonológica e ortográfica. Um exemplo de homonímia é o antigo caso do vocábulo manga, que pode ser usado tanto para determinar uma fruta, quanto para se referir a uma parte da roupa que cobre os braços, ou ainda, a palavra são, que pode expressar o estado de saúde daquele que não está doente, como no exemplo: João ficou enfermo por dois meses, mas agora ele está são ou funcionar como verbo, como ocorre no exemplo: Luiz e Pedro são irmãos gêmeos. No entanto, não existe nenhuma relação entre essas palavras. Assim sendo, temos dois vocábulos diferentes com a mesma forma. O conceito de homonímia traz, ainda, a questão das palavras homônimas homófonas que podem ser: homófonas heterográficas ou homófonas homográficas. As primeiras são palavras que apresentam grafia diferente, mas pronúncia igual como, por exemplo, acender, que é relativo a iluminar, por fogo e ascender que é relativo a elevar ou subir. As homófonas homográficas SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 54 REVISTA SABERES LETRAS são aquelas palavras iguais na escrita e na pronúncia. Em: O caminho até chegar aqui foi longo, temos caminho como um substantivo e no exemplo: Eu caminho 15 minutos todo dia para chegar ao trabalho, temos caminho como verbo. Existem ainda, as homônimas homógrafas heterofônicas que são palavras iguais na escrita, mas diferentes no timbre ou na intensidade das vogais como, por exemplo, colher. Dessa forma, quando dizemos: Essa colher tem o cabo grande, estamos nos referindo ao objeto com o qual se come alguma coisa e quando dizemos: Maria vai colher todas as roupas do varal, estamos diante de um verbo. Um bom exemplo de vocábulo polissêmico é letra, que tem no mínimo três significados bem conhecidos: o primeiro seria o do sinal gráfico do alfabeto (a, b,c, d, e, f, g..) o outro é aquele em que letra seria o texto de uma canção como no exemplo: Eu gosto da letra das músicas de Roberto Carlos e, por último, temos o significado de letra como sendo, um título de crédito que é o que ocorre no exemplo: A letra de câmbio deve ser nominativa por ordem e conta do sacador. Para a maioria dos falantes não parece difícil ligar entre si esses três significados, já que todos eles apresentam um sentido próprio, dependendo do contexto de uso. Assim, um bom critério para diferenciar a polissemia da homonímia seria o da relação existente entre os vocábulos. Quando há uma relação entre os significados dos vocábulos estamos diante da polissemia. No entanto, quando não conseguimos estabelecer uma relação satisfatória entre os significados como no caso do vocábulo manga, há forte probabilidade de que estejamos diante de um par de vocábulos homônimos. Enfim, os dois conceitos são bem distintos. Em Rocha Lima (2005, p.485-487), a polissemia é estudada ao lado da homonímia. A polissemia é feita no âmbito da denotação e é apresentada como a multiplicidade de sentidos imanente em toda palavra que possui estrita dependência do contexto e que tem como resultado a sinonímia. Já a homonímia é descrita pelo autor como “fator de perturbação da boa escolha das palavras”. Este autor afirma que deveriam ser consideradas homônimas as palavras “que, tendo origem diversa, apresentam a mesma forma, em virtude de uma coincidência na sua evolução fonética”. É considerada também a homonímia SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 55 entre palavras que, possuindo forma idêntica, designam coisas distintas: Ex: cabo (posto militar) - cabo (acidente geográfico) Real (verdadeiro) - real (de rei). Para Ilari (2006, p. 97), palavras homônimas são aquelas que se pronunciam da mesma maneira, mas têm significados distintos e são percebidas como diferentes pelos falantes da língua. Enquanto isso, a polissemia é uma mesma palavra que é percebida com significados diferentes. Outro exemplo de homonímia ocorre na palavra banco, que pertence a mesma classe gramatical (substantivo) e que serve tanto para se referir ao banco do jardim, no sentido de assento, como no exemplo: João estava sentado no banco da praça ontem à noite, como ao banco, no sentido de casa de crédito, como ocorre no exemplo: hoje à tarde vou ao banco do Brasil sacar dinheiro. Podemos dizer que a polissemia ocorre quando temos um vocábulo que possui mais de um significado e a homonímia ocorre quando temos dois vocábulos diferentes. O léxico da língua portuguesa expande-se em um processo dinâmico. Os processos de expansão do léxico, por vezes, geram dificuldades quanto à definição da existência de um item lexical dotado de múltiplos sentidos (polissemia) ou de itens lexicais distintos com formas idênticas (homonímia), por isso, um bom dicionário deveria levar em consideração os casos de homonímia e os casos de polissemia apresentando para cada item os diferentes sentidos de um verbete. Neste caso, os lexicógrafos não têm esse cuidado. Eles apenas listam as palavras da língua sem uma preocupação com relação às diferentes possibilidades de interpretação para cada item quando inseridos em um contexto de uso. Diante da divergência que ocorre com relação à determinação da ocorrência de polissemia e/ou homonímia é imprescindível que se perceba a questão de forma equilibrada e que se enfatizem as possibilidades e efeitos produzidos pela utilização da polissemia/homonímia, tornando assim a produção e SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 56 REVISTA SABERES LETRAS compreensão do texto escrito e oral mais criativo e atraente. A polissemia exerce papel importante na construção do sentido de um texto, tendo em vista que são os falantes de uma língua que irão determinar o significado que um dado vocábulo irá adquirir em um contexto, significado esse que somente será coerente se estiver inserido no contexto sociocultural, cujo falante é parte integrante. Segundo Ilari (2006, p. 151), fala-se “polissemia” a propósito dos diferentes sentidos de uma mesma palavra que são percebidos como extensões de um sentido básico. De acordo com o autor, a polissemia se opõe a homonímia, pois, para haver polissemia, é preciso que haja uma só palavra e para que haja homonímia é preciso que haja mais de uma palavra. Ilari (2006) destaca, ainda, que além das palavras, a polissemia afeta a maioria das construções gramaticais e que um bom exemplo seria o chamado “aumentativo” dos nomes. Se pensarmos nas razões pelas quais alguém poderia ser chamado de Paulão, em vez de Paulo, encontraríamos explicações como “porque é alto”, “porque é grande”, “porque é grosseiro”, “porque é desajeitado” e até mesmo “porque é uma pessoa com quem todos se sentem à vontade”. Normalmente é difícil dizer até que ponto vale cada uma dessas explicações. Da ideia de tamanho passa-se à ideia de certo modo de ser e de se relacionar. Dessa forma, o autor apresenta uma reflexão sobre a utilização polissêmica do grau aumentativo de um nome próprio, embora não trate especificamente da ocorrência da polissemia em nomes próprios. Na visão de Basílio (2004, p. 15), a polissemia acontece quando os significados de uma palavra são relacionados e explica que são mais comuns as palavras que têm mais de um significado. Para a autora teríamos um caso de polissemia em regra de gramática normativa e regra de etiqueta porque há um significado geral de prescrição, apenas com diferença do domínio em que se aplica. Sendo assim, quando os significados não são relacionados, em geral é preferível considerar que se trata de palavras distintas, ainda que com a mesma forma fonológica. Nesse caso, denominamos a situação de homonímia. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 57 Basílio (2004) considera a problemática de estabelecer posições definitivas quanto às diferenças no comportamento relativo ao gênero das palavras que apontariam para a classificação das mesmas como homônimas e/ou polissêmicas e afirma que a questão homonímia/polissemia continua sendo discutida tanto teoricamente quanto em termos de casos particulares. Temos, portanto, um problema permanente em relação ao conceito de palavra. Para Genouvrier e Peytard (1974), há polissemia quando uma só palavra está carregada de vários sentidos. A polifonia, para esses autores, é uma noção essencialmente sincrônica e seu uso responde a uma necessidade imprescindível para o bom funcionamento da língua, uma vez que até poderíamos imaginar uma língua totalmente monossêmica (um sentido para cada palavra e uma palavra para cada sentido), mas isso incharia infinitamente o léxico, além de que o falante não poderia guardar em sua memória discursiva as palavras indispensáveis à construção das mais variadas mensagens. Sendo assim, a língua obedece ao que chamamos de lei da economia porque ela sabe reaproveitar o mesmo signo fazendo variar o seu significado, sendo, pois, um recurso riquíssimo para os seus usuários. Genouvrier e Peytard (1974), ao tratarem da querela que envolve a polissemia e a homonímia assumem que a homonímia aproxima-se da polissemia, mas os dois fenômenos não constituem a mesma coisa. Embora haja, nos dois casos, um só significante e vários significados, na polissemia o locutor atribui várias acepções a uma palavra única, enquanto na homonímia, o locutor distingue várias palavras pelo sentido. Assim, como vimos em diferentes autores, a polissemia e a homonímia são estudadas por ângulos diferentes, mas todos eles contribuem e expõem a necessidade da investigação de critérios que definam a ocorrência desses recursos e sugerem uma forma prática de apresentação dos temas na língua portuguesa. Levando em conta o problema das divergências e convergências sobre esses dois fenômenos, a polissemia e a homonímia e, apoiando nossas reflexões nas contribuições de Ilari (2006) e Basílio (2004), passamos à análise da polissemia SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 58 REVISTA SABERES LETRAS no texto poético de Maria Paula Alvim. Análise da polissemia no texto poético O texto que escolhemos para desenvolver a análise da polifonia e demonstrar a importância de seu reconhecimento e uso é uma poesia de autoria de Maria Paula Alvim, cujo título, sugestivamente, é Polissemia. Apresentamos, abaixo, a letra da poesia dividida em cinco estrofes: Polissemia 1- Dei um cravo a Gabriela Ao som de um cravo de Bach Beijo de cravo e canela Cravou-se em meu paladar. 2- Meu passarinho tem pena Pena serve pra escrever Tem pena de mim, morena Há penas a prescrever. 3- Pra tudo há tempo certo Te peço, me dê um tempo Tempo ruim, encoberto Não é bom pra passatempo. 4- Posso dar cabo do cabo Lá no cabo da esperança Vingo-me, com ele acabo Com o cabo desta lança. 5- Graça achou graça do moço E riu, pois rir é de graça No meio do alvoroço O moço ficou sem graça. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 59 A análise de qualquer texto pressupõe o reconhecimento de que existem relações internas e externas responsáveis pela organização do discurso num poema. As relações de ordem externa se prendem a fatores histórico-culturais e participam da transtextualidade. Já as relações de ordem interna dizem respeito a uma estrutura, a um material linguístico que se arranja em frases que, por sua vez, se distribuem no metro dos versos e nas estrofes, constituindo, assim, uma espécie de desenho (MICHELETTI, 2006, p. 23). No interior dos versos, encontramos o material linguístico, as palavras e os fonemas que, de diferentes maneiras, estabelecem relações com o todo do poema. Segundo Micheletti (2006, p. 23), essas relações são também coesivas de superfície que se constroem “na intersecção dos dois eixos: sintagmático e paradigmático. O leitor ao reconhecer essas relações coesivas é capaz de construir o sentido do texto. O texto escolhido para análise permite amplas possibilidades de análise, tanto em termos de camada sonora, quanto de constituição do léxico, mas vamos nos deter apenas na exploração da polissemia que cria notáveis campos significativos e organizam o sentido do texto. Neste texto, mesmo numa primeira leitura, já é possível dizer que a polissemia está presente o tempo inteiro em cada uma das estrofes e exerce no poema uma função primordial, um campo fértil de expressividade, que conduz o leitor ao estabelecimento do sentido. A presença e o valor da polissemia aparecem já no título, elemento catafórico que, indubitavelmente, conduz ao tema que será tratado no poema. Na primeira estrofe, percebemos a presença do locutor (eu-lírico), que se apresenta em primeira pessoa e institui seu interlocutor (Gabriela) e sintetizando o conteúdo do poema, podemos notar que o uso da polissemia é um recurso usado para expressar toda a emoção e os sentimentos de alguém que estava passando por uma fase de encantamento por outro alguém, ou seja, alguém que estava enamorado por outra pessoa. O vocábulo que remete o leitor ao reconhecimento da polissemia é cravo. No primeiro verso, o uso desse vocábulo faz referência a um tipo de flor que foi dada à pessoa de Gabriela. No segundo verso, o mesmo item lexical, cravo, passa a SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 60 REVISTA SABERES LETRAS significar uma coletânea de música produzida por um determinado autor e que, possivelmente, estava sendo tocada quando Gabriela ganhou a flor. No terceiro verso, esse vocábulo é designado como um tipo específico de tempero passando a indicar o sabor do beijo. No quarto e último verso da estrofe, temos um jogo com o uso do verbo cravar, cuja camada sonora lembra o vocábulo cravo. Em seguida, na segunda estrofe, o texto apresenta a polissemia em torno do vocábulo pena que adquire quatro significados e campos semânticos. O primeiro significado seria referente à pluma que reveste o corpo das aves. O segundo está ligado à lâmina de metal, adaptada a caneta e usada antigamente para escrever. O terceiro uso do vocábulo está relacionado ao sentimento de dó ou compaixão que sentimos de alguém e no quarto verso, o uso remete à punição imposta a alguém que comete um delito. Depois disso, na terceira estrofe, a polissemia se constrói em torno do vocábulo tempo que, no primeiro verso pertence ao campo semântico temporal e é visto como a sucessão de anos, dias, horas, etc., envolvendo a noção de presente, passado e futuro. O segundo verso apresenta o sentido do item lexical pena como momento ou ocasião apropriada para que uma coisa se realize. É possível fazer essa leitura por meio da expressão marcada por um registro informal “me dê um tempo”, em que uma pessoa pede a outra para que espere até que ela possa praticar uma determinada ação. Em seguida, no terceiro verso, temos o significado de tempo cujo campo semântico aponta para as condições meteorológicas. No último verso, a palavra tempo, associada ao verbo passar, dá a ideia de uma ocupação ligeira e agradável, um entretenimento, um divertimento, ou ainda, um hobby. Na quarta estrofe, é possível identificar a polissemia do vocábulo cabo que, primeiramente, aparece no sentido de destruir com o uso da expressão dar cabo. Depois o vocábulo aparece no sentido de parte por onde se pega um utensílio, por exemplo, como o cabo da vassoura. Dessa forma, a frase é: posso dar cabo ao cabo. No terceiro verso, o vocábulo cabo aparece indicando ponta de terra que entra pelo mar, neste caso o cabo da Boa Esperança. No último verso desta quarta estrofe, cabo novamente aparece no sentido de parte por onde se pega um objeto: o cabo desta lança. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 61 Na quinta e última estrofe, a polissemia acontece com o uso do item lexical graça. A primeira ocorrência desse vocábulo aponta para um nome próprio, indicando, pois, o alvo de direcionamento do dizer. Num segundo momento, ainda no primeiro verso, a palavra graça assume o significado de algo que é visto com certo tom de humor ou até de zombaria em que “achou graça do moço” pode significar um certo tom de desprezo, visto que o moço ficou “sem graça”, ou seja, envergonhado. No segundo verso, o vocábulo graça é usado para se referir a algo que é gratuitamente, sem pagamento ou retribuição. O último verso desta quinta estrofe traz o uso de graça se referindo ao sentimento de timidez, ou ainda, como alguém que ficou atrapalhado de ter feito algo. Ao fazer a análise de um texto como este, reforçamos o valor da polissemia na língua e percebemos que a multiplicidade de sentidos para uma mesma enunciação permite que o leitor interaja com o texto, ou seja, deixe de ser um leitor “passivo” e passe a ser “interativo” com todo o conjunto de palavras e imagens que fascinam e convidam o leitor a decifrá-los. É a interação do homem com a linguagem. Mediante a análise apresentada, pudemos perceber a vasta possibilidade que a polifonia oferece para que o leitor possa deleitar-se no desvelar dos sentidos possíveis de um texto. Com efeito, o contexto é imprescindível para a questão do significado, uma vez que o significante não se altera quando muda o sentido, mas o contexto sempre determina o sentido da palavra fixando-lhe o sentido. Considerações finais A polissemia representa a possibilidade de uma palavra possuir mais de um significado. Pode-se observar que as palavras expandem seus sentidos de maneiras variadas e que os vários sentidos provêm de origens distintas. Através do estudo da polissemia, constatamos a importância do contexto no emprego de determinado vocábulo no estabelecimento de seu sentido. É importante observar que todos os casos de polissemia encontrados estavam em função de um mesmo objetivo: tornar a linguagem mais acessível, fazer com que a leitura seja dinâmica e possa fazer sentido no contexto de uso. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 62 REVISTA SABERES LETRAS Infere-se, portanto, que mecanismos como a polissemia, tão amplamente explorados nos mais diversos textos de língua portuguesa, são uma das táticas discursivas que enfeitam, dão vida e sentido a um texto. Esse recurso é eficaz, haja vista tornar a leitura mais sedutora e instigante, ao permitir a atribuição de significados plurais. Percebe-se que as palavras nunca são completamente homogêneas: mesmo as mais simples e as mais monolíticas têm certo número de facetas diferentes que dependem do contexto e da situação em que são usadas, e também da personalidade da pessoa que, ao falar, faz escolhas em seu acervo lexical ao usá-las. Observa-se ainda que, para que haja polissemia, basta que se fale de contextos socioculturais diferentes ou se tenha alguma intencionalidade específica. É importante constatar como ao longo da análise do texto poemático foi possível compreender como age a multiplicidade de sentidos diante do leitor. Esse, desafiado pela trama linguística, tem diante de si a tarefa de penetrar os liames do texto para então significá-lo. Fica patente que, além de constituir um recurso linguístico inegavelmente eficaz para a construção de enunciados intencionalmente dúbios, a polissemia é um fator incomparável de economia linguística. Esse estudo faz-se necessário, portanto, no sentido de perceber o leitor como co-produtor do discurso, aquele que, utilizando de conhecimentos linguísticos e extralinguísticos, deverá interpretar os vários significados que uma palavra pode assumir num determinado contexto, atentando para os jogos ideológicos do produtor do discurso e convertendo os sentidos a seu favor. Assim sendo, essa possibilidade de múltiplos sentidos para uma mesma enunciação fundamenta a atividade do dizer e está relacionada à criatividade que instaura o diferente na linguagem, na medida em que o uso pode romper com o processo de produção dominante de sentidos e, na tensão da relação com o contexto histórico-social, pode criar novas formas, novos sentidos, a multiplicidade de sentidos. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 63 Referências ALVIM, M. P. Polissemia. Disponível em< http://www.recantodasletras.com. br/trovas/1123640, > Acesso em: 16 maio 2012. BASÍLIO, M. Formação e classe de palavras no português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. BIDERMAN, M. T. C. Teoria linguísitica: linguística quantitativa e computacional. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978. COSERIU, E. O homem e a sua linguagem. Rio de Janeiro: Presença, 1987. FERRAZ, A. P. A perspectiva diatópica na variação do português do Brasil. Maestria, 2005. GENOUVRIER, É; PEYTARD, J. Linguística e ensino do português. Coimbra: Almedina, 1974. ILARI, R. Introdução ao estudo do léxico: brincando com as palavras. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2006. MARCUSCHI, L. A. Sentido e significação. São Paulo: Contexto, 2004. MICHELETTI, G. et al. Estilística: um modo de ler poesia. São Paulo: Andross, 2006. ROCHA LIMA, C. H. da. Gramática da língua portuguesa. 44. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. ULLMANN, S. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1977. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 48 a 63 set. / dez. 2012 64 REVISTA SABERES LETRAS A TOPONÍMIA MUNICIPAL DA MICROREGIÃO ALAGOANA DO SERTÃO DO SÃO FRANCISCO Pedro Antonio Gomes de Melo1* RESUMO: A Toponímia, compreendida como um recorte do léxico de uma língua, é um ramo da Onomástica e possui como eixo central de seus estudos o topônimo, que é o signo linguístico na função de identificador de um espaço geográfico. Este estudo objetiva investigar o léxico toponímico municipal da microtoponímia de Alagoas a partir de um estudo onomástico dos topônimos municipais da Microrregião Alagoana do Sertão do São Francisco, localizada na Mesorregião do Sertão Alagoano. A partir de uma análise linguística e uma classificação taxeonômica de natureza física e sócio-cultural-histórica. As análises revelaram que os topônimos de origem latina, de motivação de natureza antropocultural e formados por composição são os mais frequentes no léxico toponímico alagoano. Palavras-chaves: Léxico, Topônimo, Onomástica ABSTRACT: Toponymy understood as an approach to the lexicon of a language is a branch of onomastics and has as the centerpiece of his studies the toponym, which is the linguistic sign in the function of a geographic identifier. This study investigates the lexicon toponymic of microtoponímia city of Alagoas, taking as a starting point a study of proper names of local toponyms Alagoana Microregion of the hinterlands of San Francisco, located in the Greater Region of Alagoas Hinterlands. From a linguistic analysis and taxonomical classification of physical and socio-cultural-historical nature. The analyses revealed that the toponyms of Latin origin, of motivational and antropocultural nature formed by composition are the most frequent in the lexicon toponymic of Alagoas. Keywords: Lexicon, toponym, onomastics * Mestre em Letras - [email protected] SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 65 Consideração iniciais Este artigo visa descrever o léxico toponímico da Microrregião Alagoana do Sertão do São Francisco por meio de uma classificação taxeonômica de natureza física e antropocultural a partir de uma análise linguístico-onomástica dos 3 (três) nomes dos municípios que constituem a referida região do Estado. De acordo com Melo (2011. p. 278): Necessitamos de uma terminologia específica, ao estudarmos uma língua, caso contrário, corremos o risco de utilizarmos vocábulos genéricos que favoreçam a inadequação conceitual, consequentemente, a nãocompreensão do que se quer efetivamente descrever, estudar ou analisar. (MELO, 2011, p. 278) Na presente pesquisa, essa necessidade se torna ainda mais evidente, uma vez que tratará de uma nomenclatura de um dado espaço geográfico e, ainda, em virtude dos topônimos funcionarem como termos e não como palavras de uso geral. A Toponímia, compreendida como um recorte do léxico de uma língua, é um ramo da Onomástica (do grego antigo ὀνομαστική, ato de nomear, dar nome) que tem como objeto de estudo o signo toponímico. Para Rostaing (1961, p.7) sua finalidade consiste em “investigar a significação e a origem dos nomes de lugares e também de estudar suas transformações”. E acrescentamos, ainda, observar questões extralinguísticas de natureza sócio-histórico-culturais relacionadas à motivação no ato de nomear acidentes físicos e humanos, pondo em tela fatos toponomásticos. Conforme postula Dauzat (1926, p.7), ela “conjugada com a história, indica ou precisa os movimentos antigos dos povos, as migrações, as áreas de colonização, as regiões onde tal ou tal grupo linguístico deixou seus traços.” Segundo Tavares e Isquerdo (2006, p. 3): SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 66 REVISTA SABERES LETRAS Na dimensão linguística, o estudo dos topônimos – nomes de lugares – pode ser realizado sob diferentes perspectivas: análise de estratos linguísticos evidenciados pelos designativos, classificação taxionômica dos nomes e análise de taxes predominantes, discussão da motivação semântica dos nomes, estudo diacrônico referente às mudanças de nomes, análise da estrutura morfológica dos topônimos. (TAVARES E ISQUERDO, 2006, p. 3) Estes trabalhos estão interligados a diversas áreas do conhecimento, de maneira interdisciplinar, inseridos nos contextos tanto linguísticos como socioculturais, eles geralmente “se ocupam do estudo integral, no espaço e no tempo, dos aspectos: geo-históricos, socioeconômicos e antropolinguísticos que permitiram e permitem que um nome de lugar se origine e subsista” (SALAZAR QUIJADA, 1985, p. 18). Na verdade, essas intervenções consistem num imenso complexo línguo-cultural, em que dados das demais ciências se interseccionam necessariamente e, não, exclusivamente com a Toponìmia. Frente às várias possibilidades de investigação, optamos pelo estudo etimológico, pela discussão da motivação semântica predominante na denominação e análise da estrutura morfológica. O Estado de Alagoas é geograficamente pequeno com uma área total de 27 767,661 km², sendo o 2º menor do país. Faz fronteiras com os Estados de Pernambuco (Norte e Noroeste), de Sergipe (Sul), da Bahia (Sudoeste), além do Oceano Atlântico (Leste). Seguindo a divisão proposta pelo IBGE (2008), é formado por 102 municípios, que estão distribuídos em três mesorregiões (Agreste Alagoano, Leste Alagoano e Sertão Alagoano) e subdivididos em 13 microrregiões: 1 A microrregião de Palmeira dos Índios, 2 A microrregião de Arapiraca, 3 A Microrregião de Traipu, 4 A Microrregião do Litoral Norte Alagoano, 5 A Microrregião de Maceió, 6 A Microrregião da Mata Alagoana, 7 A Microrregião de Penedo, 8 A Microrregião de São Miguel dos Campos, 9 A Microrregião Serrana dos Quilombos, 10 A Microrregião Alagoana do Sertão do São Francisco, 11 A Microrregião de Batalha, 12 A Microrregião de Santana do SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 67 Ipanema e 13 A Microrregião do Serrana do Sertão Alagoano. Constitui, assim, a nomenclatura de suas municipalidades e, consequentemente, o léxico onomástico-toponímico municipal da microtoponímia do Estado, evidenciando com suas isoglossas os efeitos da sociedade sobre a língua, como, também, a maneira pela qual o mundo exterior nela se reflete. É importante não confundirmos o nome do município com o município propriamente dito, em outras palavras “o topônimo não é o lugar em si, mas uma de suas representações, carregando em sua estrutura sêmica elementos da língua, da cultura, da época de sua formação, enfim, do homem denominador.” (CARVALHINHOS, 2009, p. 83). Para este estudo, interessa-nos apenas os nomes que nomeiam os municípios da Microrregião Alagoana do Sertão do São Francisco, localizada na Mesorregião do Sertão Alagoano, a saber: Delmiro Gouveia, Olho d’Água do Casado e Piranhas. O mapa, a seguir, visualiza a distribuição dos 3 (três) municípios da referida região. Mapa da Microrregião Alagoana do Sertão do São Francisco A macrotoponímia alagoana apresenta características muito peculiares advindas de múltiplos fatores inerentes às mesorregiões e microrregiões, nas quais dados padrões sociais podem, em certa medida, condicionar e/ou influenciar a estrutura e a organização de seu léxico, tanto no que diz respeito às motivações toponímicas de natureza física e às de natureza social, como SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 68 REVISTA SABERES LETRAS em relação à dinâmica lexical de renovação toponímica bastante relevante na constituição desse acervo lexical atual, apresentando-se como um campo fértil para a pesquisa linguística. É importante não confundirmos o nome do município com o município propriamente dito, em outras palavras “o topônimo não é o lugar em si, mas uma de suas representações, carregando em sua estrutura sêmica elementos da língua, da cultura, da época de sua formação, enfim, do homem denominador.” (CARVALHINHOS, 2009, p. 83). Este recorte linguístico é compreendido, então, como um indicador cultural, uma vez que o modo como a língua retrata a visão de mundo de um povo evidencia a inter-relação que se estabelece entre língua, cultura e sociedade. Levando em consideração essas várias possibilidades geo-históricas, socioeconômicas e antropolinguísticas de motivação toponímica de natureza física e antropocultural, procuraremos compreender como se estrutura e se organiza o léxico toponímico municipal alagoano, buscando descobrir em aspectos extralinguísticos e linguísticos uma relação dicotômica entre língua (topônimo) / motivação toponímica (ato denominativo) por meio do método onomasiológico. Finalizamos, destacando que o princípio norteador deste trabalho deu-se, em primeiro lugar, pelo interesse de investigar – do ponto de vista semânticotaxeonômico - como o homem, alocado num dado espaço físico, tendo a seu vigor várias possibilidades designativas, nomeou os municípios alagoanos; em segundo lugar, descobrir, do ponto de vista linguístico-lexical, quais são os processos de formação mais produtivos e as estruturas mórficas mais recorrentes; em terceiro lugar, pelos resultados que poderão fornecer subsídios a futuras pesquisas sobre a microtoponímia do Estado de Alagoas e, consequentemente, contribuir para um melhor conhecimento da Língua Portuguesa, em sua vertente brasileira. Referencial teórico-metodológico O topônimo representa “uma projeção aproximativa do real, tornando clara SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 69 a natureza semântica de seu significado” (DICK, 1980, p. 290) e evidencia a realidade do ambiente físico e antropocultural de uma dada região, na medida que revela características de vegetação, hidrografia, fauna, condições de solo e relevo, como também crenças, ideologias, fatos políticos e históricos. Marcas que permanecem firmadas mesmo quando a motivação toponímica, ocorrida no ato denominativo, já se faz extinta. Percebe-se, pois, o valor patrimonial destes vultos históricos. Cumpre-nos destacar, ainda, que os locativos adquirem valores que transcendem o próprio ato de nomear, uma vez que o léxico de um dado grupo reflete o seu modo de ver o real e a forma como seus membros organizam o mundo que os rodeia. É eminentemente de caráter social, pois existem em função das necessidades sociais de designar a realidade. Sendo assim, propomo-nos a analisar um recorte do léxico de um grupo sócio-linguístico-cultural: a microtoponímia municipal alagoana. No dizer de Dick, (1996, p. 337), [...] “o topônimo, assim, vai deixando de ser apenas um instrumento de marcação ou de identificação de lugares para se transformar em um fundo de memória, de natureza documental tão valiosa e significativa como os textos escritos.” Partindo do princípio de que o exame dos designativos de lugares possibilita a identificação e a recuperação de fatos linguísticos recorrentes no ato denominativo como, também, favorece o conhecimento de aspectos históricosócio-culturais de um povo, cabe ao pesquisador “reconstruir a toponímia das localidades e revelar as motivações e as causas que levaram a formação destes nomes, relacionando-as às circunstâncias de formação dos aglomerados humanos e às alterações ocorridas na região ao longo dos anos.” (TIZIO, 2009, p. 13). Logo, procuramos investigar as motivações toponímicas sob o ângulo do ambiente, físico e social, já que a denominação destes lugares remete ao ser humano, em um determinado contexto antropocultural. Para análise dos aspectos taxeonômicos, adotamos o modelo de Dick (1990), já que dentre as propostas de classificação toponímica é o mais recente, completo SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 70 REVISTA SABERES LETRAS e que, além disso, é voltado para a realidade brasileira. A terminologia adotada no Modelo Taxeonômico de Classificação Toponímica (MTCT) é composta pelo elemento topônimo antecedido por um elemento genérico que define a classe onomástica. Esse modelo engloba 27 (vinte e sete) taxes, distribuídas em 02 (dois) grupos, conforme a natureza motivacional (semântica): 11 (onze) taxes relacionadas ao ambiente físico, Taxeonomias de Natureza Física (TNF); e 16 (dezesseis), relacionadas ao homem e sua relação com a sociedade e a cultura, Taxeonomias de Natureza Antropocultural (TNA). O termo taxe corresponde à identificação e classificação genérica dos fatos cósmicos sem duas ordens de consequência: a física e a antropocultural, de forma a permitir a aferição objetiva de causas motivadoras dos designativos geográficos. Taxeonomias de natureza física (TNF) a) Astrotopônimos: topônimos relativos aos corpos celestes em geral; b) Cardinotopônimos: topônimos relativos às posições geográficas em geral; c) Cromotopônimos: topônimos relativos à escala cromática; d) Dimensiotopônimos: topônimos relativos às dimensões dos acidentes geográficos; e) Fitotopônimos: topônimos relativos aos vegetais; f) Geomorfotopônimos: topônimos relativos às formas topográficas (formas de relevo terrestre); g) Hidrotopônimos: topônimos relativos a acidentes hidrográficos em geral; h) Litotopônimos: topônimos relativos aos minerais e à constituição do solo; i) Meteorotopônimos: topônimos relativos a fenômenos atmosféricos; j) Morfotopônimos: topônimos relativos às formas geométricas; l) Zootopônimo: topônimos referentes aos animais. Taxonomias de natureza antropocultural (TNA) a) Animotopônimos: topônimos relativos à vida psíquica, à cultura espiritual; b) Antropotopônimos: topônimos relativos aos nomes próprios individuais; c) SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 71 Axiotopônimos: topônimos relativos aos títulos e dignidades que acompanham nomes próprios individuais; d) Corotopônimos: topônimos relativos a nomes de cidades, países, estados, regiões e continentes; e) Cronotopônimos: topônimos relativos aos indicadores cronológicos representados pelos adjetivos novo (a), velho (a); f) Ecotopônimos: topônimos relativos às habitações em geral; g) Ergotopônimos: topônimos relativos aos elementos da cultura material; h) Etnotopônimos: topônimos relativos aos elementos étnicos isolados ou não (povos, tribos, castas); i) Dirrematopônimos: topônimos constituídos de frases ou enunciados linguísticos; j) Hierotopônimos: topônimos relativos a nomes sagrados de crenças diversas, a efemérides religiosas, às associações religiosas e aos locais de culto. Essa categoria subdivide-se em: i.) Hagiotopônimos: nomes de santos ou santas do hagiológio católico romano. ii.) Mitotopônimos: entidades mitológicas; l) Historiotopônimos: topônimos relativos aos movimentos de cunho histórico, a seus membros e às datas comemorativas; m) Hodotopônimos: topônimos relativos às vias de comunicação urbana ou rural; n) Numerotopônimos: topônimos relativos aos adjetivos numerais; o) Poliotopônimos: topônimos relativos aos vocábulos vila, aldeia, cidade, povoação, arraial; p) Sociotopônimos: topônimos relativos às atividades profissionais, aos locais de trabalho e aos pontos de encontro da comunidade, aglomerados humanos; q) Somatopônimos: topônimos relativos metaforicamente às partes do corpo humano ou animal. Com base em tais pressupostos, pretendemos investigar os topônimos nos quais se estabelecem uma conexão entre o acidente geográfico e o nome atribuído a ele, em que as partes formam um todo representativo, buscando relacioná-los aos atos onomásticos, especialmente aqueles ligados à microtoponímia municipal alagoana. Análise e resultados Doravante serão apresentadas as análises linguísticas dos dados que constituíram o corpus deste estudo. Os topônimos serão apresentados em fichas lexicográficotoponímicas. Essas se revelam necessárias para a interpretação dos locativos, SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 72 REVISTA SABERES LETRAS pois vários campos conceituais da ficha fornecerão informações relevantes sobre cada um dos nomes de lugares designativos de municípios alagoanos. Para facilitar a leitura e a compreensão das fichas será apresentado um modelo, seguido de uma descrição de cada um de seus constituintes. Exemplo: fichas lexicográfico-toponímicas Localização – Este item remete à localização geográfica do município no Estado de Alagoas, inserindo-o na mesorregião e microrregião, respectivamente. Topônimo – Considera o estudo do nome dos municípios do Estado de Alagoas. Etimologia - Trata da origem etimológica, das categorias gramaticais e da explicação de seu significado por meio da análise diacrônica dos elementos que as constituem. É o estudo da composição dos vocábulos e das regras de sua evolução histórica. Serão consultadas as obras de Cunha (1986) e Tibiriçá (1984) Taxeonomia – As taxes toponímicas permitem interpretar os nomes dos lugares com maior segurança do ponto de vista semântico, partindo de sua natureza física ou antropocultural. Será seguido o modelo apresentado por Dick (1990). Formação Lexical – Considera o estudo do processo de formação de palavra que resultou o topônimo. Estrutura Morfológica – O topônimo será dividido em três grupos: elemento específico simples, elemento especifico composto e elemento específico híbrido. Nesse item, apresenta-se uma descrição no plano morfológico do topônimo, caracterizando-o em unidades mínimas de significação: morfemas lexicais e gramaticais. Será seguido o modelo apresentado por Silva & Koch (2005). Informações Enciclopédicas – Levantamento dos registros históricos dos municípios alagoanos na base do IBGE e/ou por outros meio como: decretos, livros e via web. Fonte – Serão creditados às fontes de consultas (autores, obras e sites), nos quais as pesquisas foram realizadas. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 73 FICHA TOPONÍMICA-LEXICOGRÁFICA DE PIRANHAS Localização: Mesorregião do Sertão Alagoano; Microrregião Alagoana do Sertão do São Francisco Topônimo: Piranhas Taxeonomia: Zootopônimo Etimologia: O termo é de origem tupi, no entanto, há duas explicações etimológicas: junção dos termos tupis pirá ‘peixe’ e anha ‘dente’, significando ‘peixe com dente’ e junção pira ´pele’ e raim ‘o que corta’, significando ‘corta a pele’. Formação Lexical: elemento específico simples Estrutura Morfológica: morfema lexical piranh- + morfema gramatical classificatório vogal temática -a + morfema gramatical flexional aditivo –s Informações Enciclopédicas: A centenária Piranhas tem sua população estimada em de 23.052 habitantes e sua área é de 409,1km² (53,23 h/km²). Está 47m acima do nível do mar e limita ao norte com o município de Inhapi, ao sul com o estado de Sergipe, a leste com os municípios de São José da Tapera e Pão de Açúcar, a oeste com o município de Olho d’Água do Casado e a nordeste com o município de Senador Rui Palmeira. Piranhas, que se divide em ‘de Baixo’ e ‘de Cima’, vem há algum tempo chamando a atenção, especialmente para a própria geografia, cuidadosamente moldada entre a caatinga e os rios São Francisco, Boa Vista (ou Piranhas), Urucu e Capiá. Piranhas é a única cidade do semiárido nordestino tombada como patrimônio histórico nacional. Foi fundada no século XVIII, quando o local era conhecido por Tapera. Conta-se que, em um riacho, hoje chamado das Piranhas, um caboclo pescou uma grande piranha, levando-a para casa depois de parti-la e salgá-la. A história foi transmitida de geração a geração e, segundo consta, denominou o lugar, que cresceu próximo ao riacho. As principais atividades econômicas são a pesca e a agricultura de subsistência. (EC) Fonte: http://www.wikialagoas.al.org.br Detectamos o zootopônimo de origem indígena tupi Piranhas, motivado pelo nome de um peixe encontrado na região, lexicalmente é formado pelo processo de derivação e constituindo um elemento específico simples. No léxico onomástico-toponímico alagoano é comum a presença de zootopônimos, sobretudo de origem tupi. Na verdade, percebe-se uma tendência motivadora do homem em atribuir aos acidentes geográficos nomes relativos a SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 74 REVISTA SABERES LETRAS espécies da fauna (Jundiá - AL, Maribondo – AL, Satuba - AL, etc). De acordo com Dick (1990, p.272), “o genérico pira (peixe) é o vocábulo que maior número de registro acusa, considerando os peixes na toponímia brasileira”. Essa tendência se confirma na microtoponímia do Estado com o registro do zootopônimo Piranhas. FICHA TOPON ÍMICA-LEXICOGRÁFICA DE DEOMIRO GOUVEIA Localização: Mesorregião do Sertão Alagoano; Microrregião da Alagoana do Sertão do São Francisco Topônimo: Deomiro Gouveia Taxeonomia: Antropotopônimo Etimologia: composto de origem latina. Formação Lexical: elemento específico composto Estrutura Morfológica: morfema lexical deomir- + morfema gramatical classificatório vogal temática –o + morfemal lexical gouveia Informações Enciclopédicas: O nome do município é uma homenagem ao empreendedor Delmiro Gouveia que, no início do século XX (1903), desbravou o território inóspito, trazendo o progresso para a região com suas atividades comerciais e industriais e a instalação de uma vila operária. Sua fábrica de linhas competia com as grandes empresas internacionais. Foi o responsável, também, pela implantação no local da primeira hidrelétrica da América do Sul. Antes de Delmiro Gouveia, o lugar chamava-se Pedra, devido à grande quantidade desse mineral no solo da região. O povoado se constituiu a partir de uma estação da estrada de ferro da então Great-Western. As terras do atual município de Delmiro Gouveia, somadas às de Mata Grande, Piranhas e Água Branca, faziam parte das sesmarias que foram levadas a leilão, em Recife, no ano de 1769. O capitão Faustino Vieira Sandes, arrematador das terras, instalou uma fazenda de gado e, a partir daí, começaram a se desenvolver os núcleos de povoamento. Os três irmãos da família Vieira Sandes foram os primeiros habitantes das terras onde hoje está situado o município, segundo consta nos registros da Prefeitura Municipal. Fonte: http://www.wikialagoas.al.org.br Registramos o antropotopônimo Deomiro Gouveia e sua motivação é oriunda da figura econômico-politicamente ilustre da localidade, formado pelo processo lexical de composição por justaposição e constituindo um elemento específico SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 75 composto. O nome próprio Deomiro Gouveia se reveste de função denominadora, identificadora enquanto antropotopônimo, e passa a nome próprio de acidentes físicos. Em outras palavras, passa do significado lexical para o significado onomástico marcado em grande parte pelas relações sócio-políticas e ideológicas da região. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 76 REVISTA SABERES LETRAS FICHA TOPONÍMICA-LEXICOGRÁFICA DE OLHO D’ÁGUA DO CASADO Localização: Mesorregião do Sertão Alagoano; Microrregião Alagoana do Sertão do São Francisco Topônimo: Olho D’água do Casado Taxeonomia: Antropotopônimo Etimologia: composto de origem latina: séc. XIII, sm. oculus, -i ‘visão’, ‘olho’+ prep. de + sf. aqua, -ae ‘água’ + prep. de +casa, -ae ‘morada’, ‘vivenda’. Formação Lexical: elemento específico composto Estrutura Morfológica: morfema lexical olh- + morfema gramatical classificatório vogal temática –o + forma dependente de + morfema lexical aqu- + morfema gramatical classificatório vogal temática –a + forma dependente de + o = do + morfema lexical cas- + morfema derivacional -ado Informações Enciclopédicas: Por ocasião da construção do ramal ferroviário da Great Western, os trabalhadores montaram o acampamento próximo ao lugar onde havia nascentes e onde buscavam água. Como aquelas terras pertenciam à propriedade do Sr. Francisco Casado, deram-lhe o nome de Olho d`Água do Casado. Até 1870 só existia na região a fazenda do agricultor Francisco Casado de Melo, onde hoje está a sede da prefeitura. Em 1877, a construção da rede ferroviária levou para lá o acampamento dos operários. O local, para os técnicos, não poderia ser melhor, porque em toda a região brotavam olhos d’água, facilitando o trabalho e a própria vida dos operários. Depois que as obras da linha férrea e da estação terminaram, o acampamento foi transferido. Nessa época já existiam algumas casas e, para garantir o povoado, foi construída uma capela em homenagem a São José, padroeiro do lugar. Em 1965, o presidente Castelo Branco suspendeu o tráfego dos trens da Rede Ferroviária, causando um impacto muito grande à região. Nessa época, começou a ser construída a AL-225, concluída em 1974. Alguns anos depois a rodovia AL-220, que passou por Olho D’Água do Casado, mudou a rotina do povoado. Com o progresso veio o movimento pela emancipação. Eliseu Maia, Adeval Tenório, Vítor Barbosa, José Pereira Leite e Pedro Gomes Pereira foram os líderes. Em 1962, Olho D’água do Casado se tornou município, através da Lei 2.459. Fonte: http://www.wikialagoas.al.org. A distribuição21 dos itens lexicais na formação do sintagma toponímico Olho SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 77 D’água do Casado apresenta uma estrutura sintática distinta. Os constituintes que formam esse antropotopônimo funcionam como uma só palavra, prevalecendo à unidade semântica do signo toponímico. Da relação do locativo composto com o acidente geográfico se estabelece uma interação íntima que compreende dois elementos básicos: termo genérico Olho D’água + termo específico do Casado. O primeiro é relativo à entidade geográfica que irá receber a denominação; e o segundo, o antropotopônimo propriamente dito, particularizará a noção espacial, identificando-o e particularizando-o dentre outras semelhantes. Convém assinalarmos que, neste binômio toponímico, os elementos primitivos perdem a autonomia de significação em benefício de uma unidade semântica, isto é, um único conceito, novo, global. Essas composições desempenham função de palavras, tendo-se unidades sintáticas se cristalizando numa função morfológica ou lexical. Considerações finais Os aspectos abordados no presente artigo, envolvendo a microtoponímia municipal da do Estado de Alagoas, mais precisamente os nomes dos municípios da Microrregião Alagoana do Sertão do São Francisco, localizada na Mesorregião do Sertão Alagoano, permitem-nos tecer algumas considerações finais. Iniciamos destacando que o ato de nomear os municípios alagoanos e, consequentemente, o surgimento dos topônimos municipais do Estado de Alagoas são decorrentes não de um único fator determinante, mas da convergência de vários fatores linguísticos e extralinguísticos condicionantes. Logo, observamos uma complexidade que envolve a questão da estrutura e formação das palavras, em especial o estudo etimológico dos topônimos, por ser difícil, em muitos casos, recuperar, de forma confiável, a verdadeira origem de alguns designativos, em virtude da dinamicidade léxica nessas formações. 1- “A distribuição é a soma de todos os contextos em que ocorre a forma linguística, em contraste com todos aqueles em que não ocorre” (cf. GLEASON, 1961). SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 78 REVISTA SABERES LETRAS Para Melo (2010, p. 118), essa dinâmica lexical “está condicionada a fatores externos e internos à língua. [...] uma língua está sempre recebendo força centrífuga e força centrípeta em sentidos opostos, não excludentes, mas complementares.” Após a análise distintiva dos topônimos, podemos dizer que apresentam 2 (dois) tipos de estrutura: a) Elemento Específico Simples que é formado por um único morfema lexical e pode está acompanhado de sufixações e terminações: Piranhas e b) Elemento Específico Composto que apresenta mais de um elemento formador: Olho D’água do Casado e Deomiro Gouveia. Em relação aos fatores externos, podemos ressaltar como condicionador à motivação toponímica de natureza física a fauna local, contribuindo para a formação de 1 (um) zootopônimo Piranhas e de natureza antropocultural a questão política local por meio de figuras ilustres da região, contribuindo para a formação de 2 (dois) antropônimos, isto é, os topônimos relativos aos nomes próprios individuais ‘antropônimos’ individuais Olho D’água do Casado (sobrenome de uma família tradicional da região Francisco Casado de Melo) e Deomiro Gouveia (empreendedor Delmiro Gouveia). Essas palavras se revestiram de função denominadora e passaram a nomes próprios de acidentes físicos e humanos. Em relação aos fatores internos, podemos destacar a produtividade do processo de formação lexical por composição. E ainda, etimologicamente, podemos afirmar que o latim, junto com o tupi, foram os estratos linguísticos que contribuíram para a formação do acervo lexical da localidade estudada. Semanticamente, podemos apontar que os topônimos nomeiam os acidentes geográficos de duas maneiras: i) de forma descritiva – a partir de suas características objetivas mais relevantes, por exemplo: piranhas em relação à grande quantidade desse tipo de peixe na região (motivação de natureza física) e ii) de modo subjetivo por associação, por exemplo, aspectos atribuídos ao lugar pelo nomeador: Deomiro Gouveia e Olho D’água do Casado questões de cunho sócio-econômico-político. No que diz respeito às estruturas mórficas dos compostos, observamos que no SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 79 sintagma toponímico Olho D’água do Casado, o segundo elemento linguístico exerce uma função restritiva. E ainda, os elementos podem ligar-se ao primeiro de forma mediata Olho D’água do Casado ou imediatamente Deomiro Gouveia, ou seja, com ou sem o auxílio de conectivo; o processo de adjetivação é um recurso linguístico importante nesse tipo de topônimo, pois, há um acréscimo semântico na significação básica do nuclear elemento. Em suma, as análises revelaram que os topônimos de origem latina, de motivação de natureza antropocultural (antropotopônimos) e formados por composição (sintagmas toponímicos) são os mais frequentes no léxico toponímico da microrregião alagoano estudada. Finalizamos frisando que esta área de indagação linguística é muito ampla, tornando este trabalho limitado na forma como aborda o assunto proposto, longe do ideal, mas que traduz o esforço deste pesquisador com os problemas atinentes à Microtoponímia alagoana, deixando para outro momento perspectivas outras de investigação de maior aprofundamento de análises dos fenômenos toponomásticos. Logo, ficam em aberto possibilidades para inquirições complementares, tendo em vista que é sempre possível a realização de análises mais exaustivas dos fenômenos linguísticos. Referências BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em:< http://www.ibge.gov. br/>. Acesso em: 31 jul. 2012. CARVALHINHOS, Patricia de Jesus. Interface onomástica / literatura: a toponímia, o espaço e o resgate de memória na obra de memórias da rua do ouvidor de Joaquim Manuel de Macedo. In.: Cadernos do CNLF. Rio de Janeiro : CIFEFIL, v. 12, n. 10, p. 83-99. 2009. CUNHA, A. G. da. Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. DAUZAT, A. Les noms de Lieux: Origene et évolution. Paris: Librairie SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 80 REVISTA SABERES LETRAS Delagrave, 1926. DICK, M. V. de P. do A. A motivação toponímica: princípios teóricos e modelos taxeonômicos. 1980. 198 p. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980. ______. A motivação toponímica e a realidade brasileira. São Paulo : Edições Arquivo do Estado, 1990. ______. A dinâmica dos nomes na toponímia da cidade de São Paulo:15541897. São Paulo: Annablume, 1996. GLEASON, H. A. An introduction to descriptive linguistics. Nova York : Holt, 1961 MELO, P. A. G. de. A formação neológica em textos jornalístico escritos em língua portuguesa contemporânea no estado de alagoas na última década do século XX. In.: LITTERA ONLINE. Maranhão, v.1, n. 2, p. 101-122, 2010. ______. A acrossemia em língua portuguesa contemporânea e o ensino de morfologia lexical. In.: ECOS, Cáceres, n. 11, p. 277-286, 2011. ROSTAING, C. Les noms de Lieux. Paris: Presses Universitaires de France, 1961. SALAZAR-QUIJADA, A. La toponímia em Venezuela. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1985. SILVA, M.C. P. de S.; KOCH, I.G.V. Linguística aplicada ao português: morfologia. São Paulo: Cortez, 2005. TAVARES, Marineide Cassuci.; ISQUERDO, Aparecida Negri. A Questão da Estrutura Morfológica dos Topônimos: Um Estudo na Toponímia Sul-MatoGrossense. In.: SIGNUM: Estud. Ling., Londrina, n. 9/2, p. 273-288, dez. 2006. TIBIRIÇÁ, L. C. Dicionário tupi-português. São Paulo: Traço, 1984. TIZIO, Iberê Luiz di. Santo André: a causa toponímica na denominação de seus bairros. 2009, 184 p. Tese (Doutorado) . Universidade Estadual de São Paulo, 2009. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 64 a 80 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 81 FORMAS DE ENDEREÇAMENTO DISCURSIVO NA REVISTA CAPRICHO Olivaldo da Silva Marques Ferreira1* Resumo: Este artigo trata da segmentação discursiva referente aos textos da mídia impressa publicados no veículo ‘revista’. Propõe um novo modo de abordar a relação existente entre mídia e público; argumenta sobre a maneira pela qual a revista Capricho demonstra a influência do público em seu discurso e conclui que, a fim de conquistar leitores que consumam periodicamente a publicação, as revistas de público segmentado utilizam, de forma evidente e, por vezes, até exagerada, uma linguagem comum a do grupo que objetiva alcançar. Palavras-chave: Linguagem. Discurso. Capricho. Influência. Abstract: This article investigates the discourse segmentation related to printed media articles published in magazines. It proposes a new way to deal with the relations between the media and the audience; speculating on the way Capricho magazine shows the influence of the audience in its discourse. Finally, it concludes that, in order to win readers who purchase this kind of magazine periodically these types of magazines make use of explicit colloquial language that is the same language of the audience it aims to reach. Keywords: Language. Discourse. Capricho. Influence. * Ex-aluno dos cursos de Licenciatura em Letras Português, Inglês e respectivas Literaturas e de Especialização em Estudos da Linguagem pela Faculdade SABERES. Professor efetivo e pesquisador das áreas de Educação e Linguagem do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (Ifes) campus Venda Nova do Imigrante. Espírito Santo, Brasil. E-mail: [email protected] SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 82 REVISTA SABERES LETRAS Considerações iniciais “As notícias são muito mais do que o que acontece.” Nelson Traquina Vivemos a chamada “era da comunicação”, na qual os meios de fabricação e transmissão de informações são dos mais variados tipos e tecnologias. Como consequência, recebemos diariamente uma verdadeira avalanche de notícias advindas de todas as partes do planeta (e, mais recentemente, de fora dele também). O que nos permite a construção e a compreensão do mundo. Lemos (2002, p. 13), em Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea, sentencia que a realidade nada mais é do que uma criação compartilhada, uma dentre as infinitas formas possíveis de se conceber o mundo. Tal afirmação dialoga com os pensamentos da filósofa Chaui (2001), uma vez que, para a autora: Bastaria (...) que uma mesma pessoa, durante uma semana, lesse de manhã, quatro jornais diferentes e ouvisse três noticiários de rádios diferentes; à tarde, frequentasse duas escolas diferentes, onde os mesmos cursos estariam sendo ministrados; e à noite, visse os noticiários de quatro canais diferentes de televisão, para que, comparando todas as informações recebidas, descobrisse que elas não “batem” umas com as outras, que há vários mundos e várias sociedades diferentes dependendo da fonte de informação. Uma experiência como essa criaria perplexidade, dúvida e incerteza. (CHAUÍ, 2001, p. 91). De acordo com Lemos (2002) e Chauí (2001), percebe-se que: 1) a realidade não SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 83 existe por si, trata-se de uma construção coletiva socialmente aceita (de modo consciente ou não); e 2) serão todos os fatos, manchetes, notícias e acontecimentos que nos atropelam todos os dias sob o pretexto de informar e entreter que nos permitirão construir, compreender e compartilhar o considerado real. Sobre o papel da imprensa nesse processo, Pena (2005) afirma que o jornalismo: [...] está longe de ser o espelho do real. É, antes, a construção social de uma suposta realidade. Dessa forma, é no trabalho da enunciação que os jornalistas produzem os discursos, que, submetidos a uma série de operações e pressões sociais, constituem o que o senso comum das redações chama de notícia. Assim, a imprensa não reflete a realidade, mas ajuda a construí-la. (PENA, 2005, p.128). Percebe-se, dessa forma, que os fatos noticiados não são, e jamais se propuseram a ser, meras transcrições do real, mas antes, produto de uma série de operações e pressões que, por sua vez, ajudam a construir uma suposta realidade. Quando trata de pressões sociais, o autor se refere àquilo que motiva a elaboração da notícia, os seus objetivos e propósitos; enquanto as operações representam o modo como o texto noticioso será construído. Apesar de apresentadas como pontos diferentes, tratam-se de aspectos indissociáveis, já que as pressões sociais nortearão, em muitos casos, as operações realizadas. Haja vista que a finalidade do gênero textual, muitas vezes, determina sua estrutura21. O processo de construção jornalístico, então, é produto de dois momentos principais: grosso modo, o primeiro corresponde ao “recorte” feito pelo jornalista do fato a ser noticiado, ou seja, é o momento em que ele decide o que é ou não publicável; e o segundo diz respeito à maneira pela qual apresentará 1- Conforme box “O gênero textual e a situação de produção” em CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: linguagens. 5. ed. São Paulo: Atual, 2005. v. 1. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 84 REVISTA SABERES LETRAS os (ou a parte dos) fatos selecionados, à escrita propriamente dita: a sequência de apresentação, as formas de contextualização, as estruturas gramaticais, as escolhas lexicais etc. Sobre este segundo tempo da construção da notícia, Lage (2001), afirma que é possível descobrir, a partir do registro de linguagem e do vocabulário utilizados, as reais intenções do redator da matéria, bem como seus compromissos ideológicos. Nesse sentido, Koch (1998) declara que; [...] o uso de fórmulas de endereçamento, de dada variante da língua, de gírias ou jargões profissionais, de determinado tipo de adjetivação, de termos diminutivos ou pejorativos fornece […] pistas valiosas para interpretação do texto e a captação dos propósitos com o que é produzido. (KOCH, 1998, p.44). Percebe-se, desse modo, que as formas linguísticas estruturantes dos textos tanto revelam os interesses de quem o escreve (LAGE, 2001) quanto ao público a que é endereçado (KOCH, 1998). Para Silva (1998), o público para o qual o texto jornalístico é direcionado representará a grande pressão social a que se refere Pena (2005), uma vez que: Ao dizer jornalístico […], para que este possa se constituir enquanto tal, cabe impor determinados recortes, instaurando espaços de silêncios. O dizer da imprensa deve dizer a “verdade”, correspondendo ao desejo de conhecimento do sujeito leitor: a imprensa se situa a partir de uma imagem de credibilidade perante a sociedade, perante seu público (SILVA, 1998, p. 172, grifo nosso). O jornalista, seguindo tais princípios, seleciona os fatos e, por fim, opta por SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 85 escrever sobre aqueles que considera mais relevantes para seu destinatário. Como visto, a maneira como o jornalista expõe a notícia também será fortemente influenciada por esse “leitor virtual constituído no próprio ato da escrita” (ORLANDI, 1989, p. 9). Assim, apesar de possuir relativos poder e autonomia, uma vez que é o responsável pela redação efetiva da matéria, o jornalista é sempre atravessado por influências externas. A maior e mais importante delas é a exercida pelo público leitor; a reação de cada profissional do jornalismo a essa figura imaginária e individual definirá todo o universo de pessoas reais para o qual o texto será endereçado. Dessa forma, a configuração de cada publicação remeterá sempre a um perfil específico de leitor. A imprensa é vista, socialmente, como o canal entre informação e população. Entretanto, o leitor é, com base na discussão, percebido como aquele que determinará, ainda que indiretamente, a maneira como as informações serão construídas e veiculadas. Dessa forma, a ideia de que o papel de influência é exercido somente pela mídia, cabendo ao público a função de mero receptáculo passivo de informações, cai por terra e essa relação passa a ser considerada como uma “via de mão dupla”, na qual ambos exercem o papel tanto daquele que provoca quanto do que é alvo de influências. Com o intuito de concretizar a tese exposta, o presente estudo, perpassado pelas teorias linguísticas, analisa textos publicados em quatro edições (1.013 a 1.016 - março e abril de 2007) da revista Capricho, periódico quinzenal de circulação nacional. Aplica-se, dessa forma, em textos que circulam fora do ambiente acadêmico, de maneira eficaz e dinâmica, muito da teoria apresentada pela ciência da linguagem. A proposta é perceber as teorias linguística atuando na construção de textos do cotidiano, corroborando o valor de verdade (ainda que nunca absoluta) dessas teorias e contribuindo também para a sua assimilação por parte dos que se propõem a estudar a linguagem em seu uso concreto. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 86 REVISTA SABERES LETRAS Uma revista que capricha Quando surgiu, no ano de 1952, a revista Capricho prestava-se apenas a publicações de fotonovelas, na época chamadas “cinenovelas”, dirigidas ao público adulto. Ainda nesse ano, a revista foi ampliada e passou a tratar de outros temas, tais como beleza, comportamento, moda e variedades. As fotonovelas ainda eram o carro-chefe da publicação e foram elas que, no ano de 1956, fizeram com que a revista rompesse a impressionante marca de quinhentos mil exemplares, atingindo, na época, a maior tiragem de uma revista na América Latina. A Capricho, revista mais antiga em circulação pela Editora Abril, existe até hoje, mas muito diferente do que era no seu surgimento. Atravessando diferentes gerações, a revista precisou ser reformulada diversas vezes. Alteraram-se o layout gráfico, o tipo de papel de impressão, o grafismo e o cromatismo; na realidade, só não foram modificados o nome (Capricho), como também o gênero do público alvo (feminino). Como produto de todas essas mudanças, tem-se, atualmente, uma revista composta por entrevistas e muitas seções temáticas (quase sempre vinte) que se dispõem a tratar desde assuntos relacionados a adesivos decorativos para unhas até aborto na adolescência, por exemplo, com semelhante leveza e naturalidade. Figura 1- ed.169 – março 1966. SABERES Letras Vitória v. 10 Figura 2 - ed. 1.024 – agosto 2007. n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 87 Essa contínua reinvenção para se adaptar ao gosto do seu público alvo é o que faz da revista a líder em vendas no segmento. Scalzo (2003), diretora do Curso Abril de Jornalismo e autora do livro Jornalismo de Revista, afirma que a Capricho se mantém como favorita em seu segmento justamente porque “acertou o foco no leitor” (SCALZO, 2003, p. 87). Em entrevista32 a Allan Novaes para o site Observatório de Imprensa, a então chefe de redação da publicação, Brenda Fucuta, revela que o seu segredo é não cair em fórmulas: A adolescente dos anos 80 era a ‘gatinha’ e sua revista tinha uma temperatura mais romântica e dócil, intimista. Nos anos 90, a aspiração era ser modelo: tivemos uma revista bem preocupada com moda e marcada pelo tom politicamente correto. Nos anos 2000, os ídolos e a vida real ganharam espaço: época em que gente comum também vive seu estrelato (FUCUTA, 2005) E é categórica ao afirmar que Uma revista precisa ser lida. E para ser lida ela precisa ser honesta com o desejo do seu leitor. Temos ídolos porque as meninas gostam de ídolos. Temos matéria sobre moda, porque a garota quer ser orientada e não pagar mico na hora de se vestir. Não costumamos ter (e me desculpem algumas ONGs): matérias que elas não lêem (FUCUTA, 2005) Pela utilização dos substantivos, “adolescente”, “meninas” e “garota” em suas declarações, Fucuta nos antecipa traços bastante específicos do seu público. E, por meio de dados divulgados pelo Instituto Marplan (apud SERRA, 2001, 2- Revista Capricho: diversão urgente!, 2005. Disponível em: < http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/diversao-urgente> Acesso em: 18 jul. 2011. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 88 REVISTA SABERES LETRAS p.139-141), empresa privada que desenvolve periodicamente pesquisas entre os leitores de revistas do grupo Abril, foi possível traçar, objetivamente, o perfil do público da revista Capricho como: feminino, adolescente e pertencente às classes sociais mais favorecidas financeiramente, conforme as tabelas 1 e 2 que seguem: Segundo o instituto Marplan, Do total de entrevistados (31.371), 1.286 leem a revista Capricho, sendo 226 do sexo masculino e 1.060 do sexo feminino; o total dos que leem a revista (1.286) é distribuído por classes conforme Tabela 1. Inferese dos dados que leem mais as meninas de maior poder aquisitivo, pelo fato de que a revista Capricho não apresenta um preço tão acessível. Encontra-se, também, nessa pesquisa, a informação de que a revista tem um apelo maior no público adolescente, conforme Tabela 2. O que vai ao encontro das informações que constam na enciclopédia virtual Wikipédia que declaram ser a publicação direcionada, atualmente, para o público adolescente de 12 a 19 anos43. Inventando moda Mundinho Fashion é o espaço da revista em que são tratados assuntos relativos à moda, modismos e tendências jovens. A estilista mais pop do Brasil54, Thais Losso, assina a Coluna da Thais que é publicada na referida seção e que serviu como corpus para análise. O leitor virtual a que (ORLANDI 1988/1989, p. 9) se refere demonstra sua influência nesta coluna desde o seu título, passando pelo tema central, variedade linguística e nível de formalidade empregados, até as formas de contextualização. Como mostram os textos publicados nas edições 1013 a 1016 referentes ao período de março e abril de 2007 que embasam e exemplificam as reflexões a seguir. 3- Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Capricho>. Acesso em: 18 jul. 2011. 4- Conforme se autodefine nas edições nº 1013, 1014 e 1016 SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 89 Ao trazer apenas o primeiro nome de sua produtora no título, a Coluna da Thais assume, logo de início, o tom coloquial e o registro informal da língua com o objetivo de aproximar leitoras e escritora, dando à coluna característica de texto escrito por (e endereçado para) pessoas já conhecidas, se não íntimas. Quanto ao tema, tradicionalmente a moda é considerada ‘coisa de mulher’; uma coluna, então, que se dispõe a tratar exclusivamente desse assunto vem, de maneira certeira, ao encontro das expectativas e necessidades deste público, em especial das adolescentes, já que vestir-se bem e estar na moda nunca foram tão valorizados por pessoas desta faixa etária quanto nas sociedades atuais, nas quais o parecer sobrepõe muitas vezes o próprio ser. A maneira como o tema central (moda) é abordado também se mostra de modo peculiar e característico por meio das escolhas de Thais Losso, que além das criações de estilistas ou de últimas tendências, busca dentro do universo de suas leitoras, elementos que contextualizem e corroborem com suas opiniões e dicas sobre moda. Na edição de nº. 1013, de 04/03/07, o pano de fundo para o texto foi reality show exibido pela Rede Globo de Televisão Big Brother Brasil (BBB). A certa altura da coluna, Thaís Losso declara que: (1) “a maior tendência das meninas (que esteve nas 7 edições) é a minissaia de lambada (a famosa saia “Darlene”). Dá para acreditar que ainda tem gente que usa? Outra coisa que virou mania na casa é flor no cabelo.” Sobre os rapazes, analisa: (2) “Mas nesta edição os meninos apostaram num visual bem atual, meio new raper...” SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 90 REVISTA SABERES LETRAS (3) “E aquelas camisas exóticas que o Cawboy usa? A mostarda foi de doer.” (4) “Morri de rir o dia que ele [Diego “Alemão”] tomou umas a mais e baixou o espírito do Supla nele.” Ao fim da coluna, Thais revela de maneira sutil e contextualizada as tendências para o inverno: (5) “A calça skinny e os looks futuristas que bombaram nesta temporada estão longe da nossa telinha. Seria superdivertido ver um estudante de moda no BBB. A Mari Moon iria arrasar!!!!!!” O cinema, uma das principais formas de entretenimento moderno, também serviu como inspiração para a colunista na edição nº. 1016: (6) “O que a maioria das atrizes veste na telona acaba despertando a nossa vontade de moda enquanto comemos pipoca no escurinho. E a relação cinema X moda nunca parou no tempo.” (7) “Uma das mais influentes é Lindsay Lohan (...), basta ela sair numa revista com uma calça jeans da marca X, para as meninas saírem correndo atrás da mesma calça.” Há, portanto, uma espécie de mergulho profundo no universo das leitoras de onde são retiradas as personagens que permeiam todo o texto. Além dos citados participantes do BBB, são feitas referências a personagens de novelas (Darlene, personagem de Débora Secco na novela Celebridade), a cantores como SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 91 o Supla e cita-se também a Mari Moon, apresentadora da MTV (canal que possui programação direcionada para o público adolescente/jovem) e uma das figuras mais famosas no mundo virtual por ter recordes diários de acessos em seu fotolog65 (site onde seus usuários podem mandar todas as suas fotografias e compartilhar com seus amigos). Além dessas características que orientam o texto para um grupo etário específico, há também evidentes marcas de gênero na coluna. Segundo os antropólogos Maltz e Borkes (apud LINS, 2000, p. 184), “a linguagem feminina é orientada por normas discursivas diferentes da masculina e isso, então, justificaria as diferenças entre homens e mulheres no que se refere ao modo de falar”. À luz dessa afirmação, é possível verificar de que forma Thais Losso endereça sua coluna para o público feminino. Em todas as edições analisadas, percebe-se que a autora faz uso de pequenos questionamentos que são feitos à medida que o texto é construído. Esta é, segundo Lins (2000, p. 189), uma tendência que demonstra o estilo de linguagem cooperativo das mulheres que usam as perguntas como uma forma de encorajar respostas de seus interlocutores e manter a conversa: (8) “Tô torcendo pra Siri. E vc?” (9) “A frase parece estranha, né?” (10) “Ele apareceu (...) vestido de astronauta, acredita?” Além de aproximar ainda mais as leitoras do texto, haja vista que esse recurso simula um diálogo entre duas pessoas – confirmando a teoria de que “as meninas usam o discurso para criar e manter relacionamentos de proximidade” (LINS, 2000, p. 189) –, as perguntas lançadas pela autora conferem maior fluência e dinamicidade à coluna. 5- http://www.fotolog.com.br/marimoon SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 92 REVISTA SABERES LETRAS O tom sentimental empregado aos textos é outra característica da coluna. A maneira coloquial com que a revista se dirige a suas leitoras evidencia esse tom e, mais do que isso, estabelece uma relação de intimidade, de amizade (MIGUEL, 2006). Esse sentimentalismo e coloquialismo se manifestam: (A) no emprego de vocativos afetuosos; (B) no uso de diminutivos; (C) no emprego de estruturas que simulam a língua falada; (D) no uso de gírias e outras expressões coloquiais: (A) (9) “Oiiiiiiiêeeeeeeee coração...!!!!” queridona do meu (10) “Oi queridona, tudo bem?” (B) (11) “...que tal falar dos modelitos” (12) “...não dá para vir com esse papinho de cópia” (13) “Todas as fofitas aderiram.” (14) “...a modinha seria tendência;” (C) (15) “Como eu amo TV e a-d-o-r-o Big Brother...” (16) “Genteeeee!!!” (17) “...as contas da empresa precisam ser pagas e blablablablabla...” (18) “Opaaaa! A frase parece estranha, né?” (19) “...e mostrar que sabe desenhar meeeeeesmo...” (D) (20) “Ache a sua estrela favorita e se jogue na SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 93 referência.” (21) “Tem que viajar e mostrar que sabe desenhar...” (22) “...mostrar seu olhar para o mundo, soltar a franga e se jogar.” (23) “...se você não ousa na passarela, toma gongo por outros lados.” (24) “...está boiando nessa área desconhecida.” Do mesmo modo que as mulheres utilizam muito mais gestualidade e expressividade corporal que os homens, elas têm tendência a exagerar e se expressar, na escrita, de modo a intensificar suas mensagens. Nas edições analisadas, as marcas de exagero, hipérbole e ênfase aparecem, principalmente, sob a forma do prefixo ‘super’: (25) “Seria superdivertido ver uma estudante de moda no BBB” (26) “Um superbeijo” (27) “...li um artigo superinteressante” (28) “Um superbeijãooooo!!” (29) “...brinco de penas, duas tranças e mil franjas.” Para Nejaim (2005), os adolescentes, por necessidade de empregar vocábulos que deem mais clareza a um conceito ou que designem novas significações, acabaram por criar um caso particular de linguagem que possui características de gírias, mas, ao mesmo tempo, que inserem-se nas relações comunicativas com a língua comum. Por essa razão que o discurso do adolescente do século 21 é fortemente marcado por termos e expressões que tiveram como origem a rede mundial de computadores que, por sua vez, são usados largamente por Thais em seus textos: SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 94 REVISTA SABERES LETRAS (30) “Oiiiiiiiêeeeeeeee queridona do meu coração...!!! Blz???? A temporada de moda acabou e confesso que to com uma *@#% preguiça de falar disso.” (31) “...se o cara saísse com um berrante pendurado no pescoço ela nem ligaria... Hahahaha.” (32) “Tô torcendo pra Siri. E vc?” Além disso, expressões pertencentes a outras línguas (em especial ao inglês) que hoje, graças à globalização e à internet, fazem parte do cotidiano dos adolescentes pelo menos dos mais ricos, foram agregadas ao léxico jovem no Brasil: (33) “A Pink já era new rave antes mesmo de os ingleses criarem o estilo.” (34) “E se você acha que este estilo de criação não é sua praia, don’t worry.” (35) “Quando estava preparando a coleção Lost in Space ele apareceu no fim do desfile...” (36) “Hoje em dia as atrizes da geração young Hollywood continuam a ditar moda...” Interessante observar que tais termos só serão de fato compreendidos pelo público já “iniciado”, que está a par de seus significados simbólicos, deixando os demais, pelo menos em um primeiro momento, sem captar totalmente o seu sentido. Além de direcionar, a autora restringe que tipo de leitor entenderá sua mensagem de maneira completa. Thais Losso, portanto, busca sempre adequar seu texto às finalidades de seu ato enunciativo, alcançando uma parcela específica da população; um grupo com sexo, idade, classe social, áreas de interesse e, por consequência, traços linguísticos muito bem definidos. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 95 Considerações Finais O indivíduo comum, na sua vida em sociedade, acredita receber, graças a enorme quantidade de veículos e formas de informação que chegam até ele todos os dias, informações de todos os campos do conhecimento, e toma essas informações como expressões da realidade já que ultrapassam a experiência vivida por todos que, por esse motivo, não têm meios para avaliar o que recebem. Em sociedades capitalistas, movidas pela produção e pelo lucro, essas informações também se tornam produto a ser vendido. Em O Capital da Notícia, Marcondes Filho (1989, p. 13), reflete sobre a notícia tomada como bem econômico ao afirmar que o texto jornalístico é “informação transformada em mercadoria com todos os seus apelos estéticos, emocionais e sensacionais”. Assim como qualquer outro bem material produzido em série, a notícia passa, então, a necessitar de sujeitos que, de alguma forma, se identifiquem com ela para que, assim, a consumam periodicamente. Inserido na lógica comercial capitalista, o público leitor assume o papel daquele que compra/consome informação. Essa necessidade de cativar público comprador é a razão pela qual ocorre o endereçamento discursivo. Ou seja, a fim de encontrar consumidores, as notícias passam a ser selecionadas, construídas e expostas de maneira que atinjam e supram os anseios do público a que se destina. Há tempos, a Capricho carrega o estigma de revista para pessoas tão fúteis e superficiais quanto os conteúdos tratados em cada uma de suas publicações. É bem verdade que ela não tem como tradição a publicação de matérias sobre a situação política do Brasil ou a respeito dos problemas que envolvam países em guerra ou outras mazelas que assolam o planeta, como a fome, a má distribuição da riqueza e o aquecimento global, por exemplo. Entretanto, fato é também que ela, em momento algum, ao longo de seus quase sessenta anos, se propôs a tratar de tais assuntos. Ao invés disso, a revista recorta a realidade, quinzenalmente, a apresenta para o seu público específico. Essa característica não é exclusiva da Capricho: geralmente, homens não leem Cláudia, adolescentes não leem Exame, sapateiros não se interessam pela revista Linux e assim por diante. Confirmando que, SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 96 REVISTA SABERES LETRAS para cada publicação, há uma seleção dos fatos, das formas de abordagem e da construção textual, o que particulariza e define seu público leitor. Se estudo semelhante fosse feito utilizando como corpus qualquer outro periódico, o resultado seria o mesmo: o público leitor influencia a elaboração de qualquer texto escrito, sendo as marcas de endereçamento facilmente identificáveis. Na Capricho, especificamente, Thais Losso cria um leitor ideal (adolescente, feminino, pertencente às classes mais abastadas, consumidor de moda, internauta e interessado em cultura pop) e, objetivando a aceitação de seu texto, utiliza um sistema linguístico comum ao dele. O que nos leva a crer que estas publicações, de um modo geral, são construídas numa relação de troca, de alteridade com seus leitores. E “eu sou na medida em que interajo com o outro. É o outro que dá a medida do que sou” (BAKHTIN, apud KOCH, 2003, p.15) é a máxima que orienta o fazer jornalístico. Referências CHAUI, Marilena. Um convite à filosofia, 13. ed. São Paulo: Ática. 2001. FUCUTA, Brenda. Diversão urgente! Observatório da Imprensa, v. 16, n. 711, 15 set.2005. Entrevista concedida a Allan Novaes. Disponível em: < http://www. observatoriodaimprensa. com.br/news/ view/diversao-urgente> Acesso em: 18 jul. 2011 KOCH, Ingedore G. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1998. ______. Desvendando os segredos do texto. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2003. LAGE, Nilson. Linguagem jornalística. São Paulo: Ática, 2001. LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2002. LINS, Maria da Penha Pereira. Diferenças de gênero e variação lingüística: uma análise do discurso gay em tiras de quadrinhos. In: SILVA, A. A. & LINS, M. P. P. (org.). Recortes linguísticos. Vitória: Saberes Instituto de Ensino, 2000. p. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 97 183-198. MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia: jornalismo como produto social da segunda natureza. São Paulo: Ática, 1989 MIGUEL, Raquel de Barros Pinto. A revista da moça moderna: relações de gênero e modo de ser femininos estampados nas páginas da revista Capricho (décadas 1950, 1960). In: Seminário Internacional “Fazendo Gênero 7” – Gêneros e Preconceitos, Florianópolis, 2006. NEJAIM, Simone Ribeiro. A língua adolescente: linguagem especial ou gíria?. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2005. ORLANDI, Eni Pulcinelli (org.). Discurso e Leitura. Campinas: Cortez/ Edunicamp, 1988/1989. PENA, Felipe. Teoria do jornalismo. São Paulo: Contexto, 2005. SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. São Paulo: Contexto, 2003. SERRA, Giane Moliari Amaral . Saúde e nutrição na adolescência: o discurso sobre dietas na Revista Capricho. Tese (Mestrado)- Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública, 2001. SILVA, Telma Domingues da. Referências de leitura para o leitor brasileiro na imprensa escrita. In: ORLANDI, Eni P. (org.). A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998. p. 172. TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo, porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2004. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 81 a 97 set. / dez. 2012 98 REVISTA SABERES LETRAS Estudos sobre Literatura REVISTA SABERES LETRAS 99 NOS FRAGMENTOS DA MEMÓRIA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO DIÁRIO COMPLETO DE LUCIO CARDOSO Roseane Cristina da Paixão1* Resumo: Este trabalho tem como objetivo um estudo crítico do texto de cunho autobiográfico, Diário Completo, de Lucio Cardoso. Num primeiro momento, entrecruzando vida e obra, e enfatizando as influências que as obras desse escritor sofreram, traçamos um perfil intelectual do mesmo, com o intuito de revitalizar a produção artística de Cardoso. A segunda parte da pesquisa enfoca a obra Diário Completo, considerando seus pontos de aproximação enquanto gênero diário, porém um diário atípico, produzido e voltado para a publicação. Consideramos ainda o seu aspecto de arquivamento do vivido e, com isso, o arquivamento do próprio autor. Aspectos do fazer literário e dos posicionamentos críticos no que tange às concepções culturais da época são refletidos na obra do autor. O embasamento teórico sob o qual nos apoiamos para compor essas considerações fundamenta-se em Michel Foucault, Leonor Arfuch, Wander Melo de Miranda e Philippe Lejeune. Os conceitos de tais autores entrecruzam-se possibilitando uma compreensão da obra em questão como um arquivamento de si que deixa entrever o fazer literário e nuances da cultura na qual se inseria Cardoso no momento de sua escrita. Palavras-chave: Diário, Lucio Cardoso, Arquivos, Diário Completo. Abstract: The present work aims at carrying out a critical study of Lucio Cardoso’s autobiographical book, Diário Completo. Firstly, we compare the author’s life and work and we stress the influences that his works had, then we trace his intellectual profile, intending to focus on his artistic production. The second part of this research examines the text Diário Completo studying it as a diary genre, though an atypical diary that was produced and bound for publication. We also consider its aspect of filing the author’s life. The aspects of the literary output and of the critical postures concerning the cultural perceptions of that time are reflected on Cardoso’s works. We based our observations on the theoretical postulates of Michel Foucault, Leonor Arfuch, Wander Mello Miranda and Philippe Lejeune. The concepts of these authors are intercrossed *Promel (Programa de mestrado em letras) UFSJ- São João del Rei, Minas Gerais, Brasil. [email protected] SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 100 REVISTA SABERES LETRAS to facilitate the comprehension of Cardoso’s book as a filing of himself which lets us glimpse the literary works and the nuances of the culture that Cardoso was inserted in at his time. Key words: Diary, Lucio Cardoso, Files, Diário Completo. A produção de cunho autobiográfico: escritas de si e do outro Philippe Lejeune, em seu clássico estudo O pacto autobiográfico (2008), publicado inicialmente em 1971, traça considerações acerca do gênero autobiográfico propondo conceitos os quais o autor vem reformulando ao longo dos anos. O autor descreve o conceito de biografia e autobiografia como sendo: Discursos que se propõem a fornecer informações a respeito de uma “realidade externa” ao texto e a se submeter, portanto, a uma prova de verificação. Seu objetivo não é a simples verossimilhança, mas a semelhança com o verdadeiro. “Não é o “efeito do real”, mas a imagem do real” (LEJEUNE, 2008, p.37). Dentre as ideias proferidas por Lejeune nos anos 70 acerca da temática autobiográfica, encontra-se a tentativa de conceituação do termo autobiografia como sendo “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua existência” (LEJEUNE, 2008, p.14). Ainda segundo Lejeune, seria necessário, para a qualificação de um texto como sendo autobiográfico, a relação de identidade entre três instâncias: o narrador, o personagem e o autor. As memórias, diários e demais textos de cunho autobiográfico podem ser considerados como escritas do “Eu”. Embora possuam uma estreita relação, possuem também diferenças substanciais entre si. Dentre as diversas formas de escrita de si, faremos algumas considerações acerca das memórias, biografias, autobiografias e dos diários íntimos. Há um limite muito tênue entre as autobiografias e as memórias, enquanto gênero SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 101 literário. A autobiografia é definida como um “ato de discurso literariamente intencionado (...) a vida do indivíduo escrita por ele mesmo” (MIRANDA, 1992, p. 25). Miranda considera ainda o fato de que na autobiografia o foco está mais centrado na subjetividade, no próprio indivíduo, ao passo que nas memórias, a vida do indivíduo encontra-se mesclada, contaminada por acontecimentos vivenciados ou vistos. A autobiografia foca-se em quem o indivíduo foi, ele predomina na escrita. Ainda assim é difícil para o narrador escrever a história de vida sem incluir as questões sociais do espaço a que pertence, criando, portanto, uma “ilusão da escrita autobiográfica”, ou seja, a ilusão de que se escreve sem considerar o coletivo a que se pertence, de modo imparcial e isento de interferências que tornam o narrado passível de dúvidas quanto a sua veracidade. Philippe Lejeune (2008) traça considerações acerca dos aspectos ficcionais e reais das obras memorialísticas. Segundo o autor, a autobiografia é um ato real que possibilita a sua verificação e o pacto autobiográfico, firmado entre autor e leitor, é um fator que colabora para a verossimilhança dos fatos. A obra é elaborada com a intenção de que o leitor compreenda os acontecimentos como verdadeiros, desta forma havendo um pacto entre autor e leitor. Lejeune reflete sobre o conceito de pacto autobiográfico, para que se compreenda o processo seletivo e a interferência do imaginário criado na escrita de memórias e autobiografias. Portanto, a diferença entre memórias e autobiografia não é muito nítida, uma vez que depende da ampliação das lembranças expostas no texto, mais voltadas para os envolvimentos sociais ou mais voltadas para o âmbito social e familiar, mas perpassadas por ambos. Dessa forma, não podemos tomar o Diário completo, de Lucio Cardoso, como verdade absoluta. As autobiografias são vistas como confissões escritas por quem as vivenciou, tendo no indivíduo o foco de suas colocações. Independente do contrato ou formato do texto, os sentimentos do autor “parecem” ser expostos. Autobiografarse equivale a produzir para o outro um discurso sobre si no qual entrevemos nuances que mostram como o autor chegou a ser quem ele é no presente da escrita. As memórias, por sua vez, podem ser compostas de fatos que podem ser alheios à vida do narrador, ou seja, o exposto pode se referir a outrem. Certos textos memorialísticos são destituídos de caráter sentimental, focando-se em SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 102 REVISTA SABERES LETRAS acontecimentos da coletividade. Nas memórias, há certo compromisso em ser preciso, exato nas colocações, uma vez que elas dizem respeito a um grupo, ao coletivo, ao passo que nos escritos íntimos o narrador não é, em absoluto, obrigado a ser fidedigno ao real. Memórias, biografias, romances pessoais, poemas autobiográficos e os próprios diários seriam, então, considerados por Lejeune apenas como gêneros vizinhos da autobiografia. Diante da impossibilidade de formalização de uma definição para tal termo, o autor viu-se obrigado a rever seus conceitos e aceitar o fato de que sistematizá-lo implicaria em uma série de equívocos, dentre os quais a desconsideração dos exemplos que não se adequavam ao padrão proposto. O diário de Lucio Cardoso e as mil faces do autor Nos anos 30 há, no Brasil, dentro da perspectiva da historiografia literária, a produção de uma literatura “classificada” como regionalista, entretanto, escritores como Lucio Cardoso, contemporâneo a este grupo, desenvolveram uma literatura intimista, da qual faz parte seu diário, texto memorialístico escrito com vistas à publicação. Lucio Cardoso nasceu em Curvelo, Minas Gerais, em 1912, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1968. Aos vinte e três anos escreveu o seu primeiro livro, Maleita, obra de cunho regionalista muito bem recebida pela crítica. Cardoso atuou em várias áreas: escreveu poemas, romances, crítica, peças de teatro, roteiro de filmes, trabalhou como jornalista, atuou também como artista plástico, sendo que seus quadros participaram de várias exposições. Seu livro mais conhecido é Crônica da casa assassinada (1968). Em 1962, Cardoso sofreu um derrame e tornou-se hemiplégico, tendo o lado direito do seu corpo paralisado, tornando-se dessa forma impossibilitado de exercer atividades como a fala e a escrita. A pintura passou a ser sua forma de manifestação artística, atividade que exerceu até o dia de sua morte, em 24 de setembro de 1968. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 103 O trabalho literário de Cardoso encontra eco nas obras de Clarice Lispector, Cornélio Pena, Otávio de Faria, dentre outros em que há o predomínio da introspecção. Péguy, Bloy, Fidelino de Figueiredo, Mauritain, Gide são alguns autores que exerceram influência sobre os escritores espiritualistas, grupo no qual inserimos o autor. As características de sua produção espiritualista podem ser notadas, tanto na produção de seu diário quanto na elaboração de seus romances, novelas, peças de teatro, e nas mais diversas manifestações artísticas apresentadas por ele. O Diário Completo: uma produção atípica Impressões de leitura, opções musicais, eventos sociais e todo um contato com a efervescência cultural de uma época estão presentes no diário de Cardoso. A vida do autor possuiu uma estreita ligação com as artes em geral, fato que muito influenciou a produção de suas obras. Ele também foi leitor de Göethe, Poe, Byron, Baudelaire, Nietzsche dentre tantos outros escritores cuja melancolia, introspecção e morte são temáticas recorrentes em suas obras. Herdou desses a mesma capacidade de adentrar-se em si mesmo a fim de buscar material para a construção de seus poemas e narrativas. Admirador de obras de arte e da música clássica, frequentador de círculos literários, Cardoso deixa expresso em seu diário o quanto a efervescência cultural da época em que viveu e atuou influenciou suas obras. O seu diário envolve a questão da memória subjetiva, ainda que inserida em uma coletividade, e da memória cultural, ou seja, memórias pessoais aparecem associadas, de maneira peculiar, à realidade cultural de uma época. Compreender a importância de Lucio Cardoso como homem agente e receptor do meio cultural é primordial para a compreensão de seu texto memorialístico: 1- Ontem, finalmente, iniciamos a filmagem de ‘A Mulher de Longe’ (CARDOSO, 1970, p. 13). Leitura: Leio atualmente a correspondência entre André Gide e Francis James (CARDOSO, 1970, p. 16). SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 104 REVISTA SABERES LETRAS Uma característica determinante do diário diz respeito a sua funcionalidade: escrever sobre um tempo que decorre, daí a importância da datação do narrado. As datas marcam, por sua vez, o tempo e o lugar daquilo que foi dito: um dia narrado pode deixar explícito o lugar em que o sujeito estava. A inscrição de datas, estações do ano, horas, possibilita ao narrador uma ideia de dominação mais completa daquilo que ele vem produzindo: a vida captada. Louis Hay (2007) diferencia diários de carnês. Os diários são marcados pela sua funcionalidade: registram o cotidiano para a posteridade. Por possuírem datação, podem situar o seu autor em um determinado contexto histórico. O diário de Lucio Cardoso mantém certa ordem cronológica na narrativa dos fatos, apesar de possuir algumas anotações cujas datas estão ausentes. No entanto, o pacto do calendário é, em geral, respeitado pelo autor. Ainda que sejam uma espécie de reservatório potencial de textos, os diários tradicionais não podem ser considerados efetivamente como objetos de trabalho dos escritores como o são os carnês. Os carnês participam sobremaneira da gênese das obras dos escritores, contendo fragmentos daquilo que virá a ser publicado posteriormente, de forma mais elaborada. As anotações dos fatos cotidianos se entrecruzam com divagações e projetos literários, rascunhos de cartas, anotações de diversas procedências. Os carnês são considerados ainda cadernetas que se destinam ao apontamento imediato das impressões surgidas de repente, dos clarões e inspirações que se tornam logo fugidios se não anotados prontamente, auxiliando sobremaneira no trabalho de construção da obra literária dos autores. Alguns diários, como o de Cardoso, são equivalentes dos carnês, considerados por Hay (2007, p.213) como objetos de trabalho uma vez que mostram tanto o fazer literário quanto a vivência cotidiana. Consideramos tal ocorrência uma vez que o diário em questão é atípico e não voltado apenas para a narrativa do cotidiano. Vejamos uma passagem do Diário completo: Não esquecer a chuva forte, contínua, em bátegas cerradas, que vi ontem à noite; diante de mim ela se desenlaçava em grandes véus ondulando pesadamente, com a ciência e a graça de uma cortina aberta no espaço imenso e escuro. Depois o SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 105 aspecto cataclísmico da cidade, das ruas cheias, luzes apagadas, o trânsito impedido, o mar calado sob a inesperada violência do céu - e através de tudo isto, sopro misterioso, incessante, cheio de mais solene pureza, o vento, o vento que chegava de longe como de uma ressuscitada época bíblica, trazendo não sei que inidentificável lembrança de pranto, odor de velas queimando e morte – alto, majestoso, esmagador sentimento de morte, que fazia as árvores inchadas se erguerem mais alto, com seus brancos olhos fascinados em expectativa na escuridão (CARDOSO, 1970, p.57). O escritor não teve um face a face, um leitor implícito ou não, um púbico desconhecido desde o instante em que se iniciou a sua escrita? O diário íntimo pressupõe a inexistência de um leitor que não o seu próprio criador. No entanto, esse mesmo criador, ao voltar os olhos para a escrita de acontecimentos passados, torna-se um outro diferente de quem viveu o exposto. Além desse outro que surge da nova leitura, alguns escritores, como Cardoso, apresentam seus textos memorialísticos a outras pessoas próximas, para que essas opinem a respeito do andamento da escrita: A opinião de J. a quem confiei este Diário paralisoume durante algum tempo. Volto agora, não com o objetivo de realizar qualquer espécie de ideal literário, mas apenas por uma...vamos dizer, uma disciplina do espírito, já que carecemos de alguma coisa por mais leve que seja. Não quis, pelo menos até agora, transformar este caderno numa exposição de ideias. [...] mas neste caso acho quase inútil esclarecer - é o que legalmente se incorporou a mim: sigo de novo o caminho, pensando que talvez um dia estas folhas me sirvam. E com a certeza de que se a opinião dos amigos ajuda, muitas vezes atrapalha. [...] também é verdade que os amigos acertam, indo direto ao objetivo, sem prestar atenção aos detalhes. Mas em obras como esta, sem pretensão e sem objetivo, não são precisamente SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 106 REVISTA SABERES LETRAS os detalhes que mais nos interessam? (CARDOSO, 1970, p. 122-123). O pacto entre leitor e autor se expressa, portanto, de forma diferenciada nos diários tradicionais e no diário em questão. Tal pacto é excluído nos diários tradicionais visto que estes são “uma escrita cuja especificidade é o seu maior segredo” (MIRANDA, 1992, p.34). Na obra memorialista de Cardoso, uma vez que foi produzida com vistas à publicação, há sim, este pacto entre autor e leitor. Lucio Cardoso entrega seus cadernos particulares nos quais registra suas vivências, sobretudo a amigos íntimos, com os quais trocava opiniões acerca dessa leitura, as quais nem sempre acatava. Fatores externos influenciam na produção de ambos os escritores permitindo que o narrado torne-se ainda mais verossímil. Devemos considerar a escrita de Cardoso não como um retrato fiel do vivido, mas como uma encenação da vida por ele mesmo. Por meio de seus apontamentos pessoais, ele torna-se personagem de sua própria história tornada ficção. A criação de suas obras é narrada em seu diário como um processo lento e doloroso, como se as mesmas se encontrassem no autor de uma forma gestacional: “Sinto dia a dia o romance dilatar-se em mim – dilatar-se ao máximo, a ponto de transbordar e começar a ser outra história” (Cardoso, 1970, p.144). O processo de criação da Crônica da casa assassinada e de O viajante percorre toda a narrativa do Diário completo, como podemos notar nas passagens abaixo: 25-01-1951 Lamento o tempo que desperdiço ou que não encontro para escrever O Viajante. O livro está de tal modo maduro, tão presentes sinto seus personagens e o frêmito que lhes dá vida, que às vezes vou pela rua e sinto que não sou uma só pessoa, mas um acúmulo, que alguém me acompanha, sardônico e vil, repetindo gestos que agora são duplos, embaralhando minhas frases, com uma ou outra palavra que não pertence à realidade, mas ao entrecho que me obseda (CARDOSO, 1970, p.144) SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 107 Os diários, enquanto forma de escrita literária, possuem como material pensamentos, divagações cenas do cotidiano, considerações, dentre outros, com o propósito de iniciar uma relação de autoconhecimento do autor consigo mesmo, além de confessar algo “como quem faz confidências no fundo de um bar” (CARDOSO, 1970, p. 6). O escritor sente a necessidade de expor suas verdades a si mesmo: Aquela mesma angústia fria, aquela dor sem doer que se espalha pelo corpo inteiro. Arrumo, desarrumo, faço, e refaço. Ah, como é difícil ser calmo. Enchome de remédios, vou à janela: é a noite, a noite dos homens, a minha noite. Ruídos de carros que passam na escuridão, Rádios abertos. Vultos que transitam em apartamentos acesos. E eu, e eu? Onde vou, que faço? Ouço a voz de Cornélio Pena - naquele tempo - “o seu sofrimento é um sofrimento bom, de permanecer à margem.” Não há, Cornélio, pior sofrimento do que permanecer à margem. Não tenho temperamento para isto. Quero amar, viajar, esquecer – quero terrivelmente a vida, porque não creio que exista nada de mais belo e nem de mais terrível do que a vida. E aqui estou: tudo o que amo não me ouve mais, e eu passo com a minha lenda, forte sem o ser, príncipe, mas esfarrapado (CARDOSO, 1970, p. 304). A forma inusitada com que Lucio Cardoso escreveu seu diário pode ser atribuída ao fato de que a escrita das próprias vivências, além da necessidade de transmissão de fatos e atos íntimos, desconhecidos, além da vontade de imortalizar o autor pela escrita, pressupõe “a vontade de manter em boa forma uma memória mais criadora que repetitiva” (LE GOFF, 1994, p. 430). Cardoso produz uma narrativa de cunho memorialista que não se pauta no simples arrolamento de fatos cotidianos, ainda que para isso, em muitas partes, faça de seus textos memorialísticos uma espécie de diário não íntimo, abrindo mão do tom confessional explícito, ficando este encoberto por não-ditos. Os diários são uma forma de escrita autobiográfica cuja maior particularidade se deve ao seu SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 108 REVISTA SABERES LETRAS caráter fragmentário e sigiloso. Mas no caso de Cardoso, ele não deseja o sigilo, e sim a publicação de suas obras. Alguém, que acaba de folhear estas páginas, indagame: por que você nunca cita fatos , nem se refere ao que realmente lhe acontece? Quem me faz essa pergunta tem dezessete anos e só a mocidade, evidentemente, justifica a pergunta (CARDOSO, 1970, p. 271). O pensamento reflexivo e a confissão, ainda que subentendidos, são intercalados pelo social, pelo cultural e pelo histórico que se fazem notar por meio de alusões, como pudemos ver na obra de Cardoso. Arquivos do “Eu”: transitando pelas vias da memória Escrever um diário e guardar papéis equivale a escrever uma autobiografia, práticas que se inserem no âmbito daquelas que revelam uma preocupação com o sujeito. Produzir as próprias memórias a fim de se fazer a releitura de um tempo ou como forma de reafirmar ou constituir uma identidade nacional ou individual tornou-se um tema constante entre os escritores, sejam eles consagrados ou não pelo cânone literário. As últimas décadas representaram, portanto, um terreno fértil no que diz respeito ao desenvolvimento de estudos memorialistas e da produção de biografias, autobiografias e memórias intelectuais que contribuem a seu modo para a preservação da memória literária e cultural brasileira. Segundo Andréas Huyssen: Um dos fenômenos culturais e políticos mais surpreendentes dos anos recentes é a emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais. Esse fenômeno caracteriza uma volta ao passado que SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 109 contrasta totalmente com o privilégio dado ao futuro, que tanto caracterizou as primeiras décadas da modernidade do século XX (HUYSSEN, 2000, p. 9). Há, segundo o Huyssen, nessa tendência de aprisionar o passado, nessa obsessão pela memória, uma musealização do mundo, ou seja, um apego desmedido pelo resguardo de bens, documentos, lugares históricos, tradições, dentre outros para a posteridade, lembrando-se que “nunca antes o presente esteve tão obcecado com o passado como agora” (LÜBBE, apud HUYSSEN, 2000, p. 27). Leonor Arfuch (2010) considera que a sociedade, bem como a noção de subjetividade vem sendo reconfigurada nos últimos anos devido a uma série de fatores que tem levado a um declive da vida e da cultura públicas e ao aumento dos pequenos relatos. Ainda segundo a autora, a abertura da intimidade, o individualismo e a “crença na realização pessoal como objetivo máximo, se não único – da vida” podem ser apontados como aspectos negativos desse processo de ruptura social. No entanto, tal processo, denominado pela autora como giro subjetivo possui ainda nuances positivas tais como as “estratégias de autoafirmação, recuperação de memórias individuais e coletivas” (ARFUCH, 2010, p. 3), sobretudo em relação a experiências traumáticas, a busca de reconhecimento de identidades e minorias, a afirmação das diferenças, sejam elas no âmbito sexual, étnico, cultural ou de gênero. Dessa forma, o que ocorre é, então, a tendência da literatura em tornarse o que Arfuch chama de autoficção. O que notamos na contemporaneidade é a necessidade do homem em destacarse da massa homogênea que se tornou a sociedade, a necessidade de mostrarse singular frente à coletividade. Uma das funções da crítica da cultura é possibilitar que novas vozes possam ser ouvidas, daí a importância do estudo de objetos antes silenciados, marginalizados pelo cânone literário ou por outras forças opressoras. Tais vozes encontram nos Estudos Culturais terreno fértil para a exposição de suas propostas. É incontestável o sucesso que as biografias, autobiografias, diários e memórias têm alcançado na atualidade. Um dos motivos que retiraram tal tema do limbo SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 110 REVISTA SABERES LETRAS da crítica literária, trazendo-o à discussão de forma tão renovada e valorizada, deve-se ao fato de que o estudo do gênero autobiográfico impulsiona os Estudos Culturais rumo a uma mirada privilegiada para o estudo das individualidades que compõem o tecido social. Seria pelo individualismo contemporâneo, pelo interesse em se conhecer uma outra versão do passado que não a da historiografia oficial, ou puro voyeurismo? Tais questões encontram-se no topo das discussões críticas atuais em várias áreas do conhecimento. Focamos, portanto, os nossos estudos na chave teórica culturalista, considerando, sobretudo, para tal, além do supracitado, que Cardoso foi um agente construtor e crítico da cultura. Os estudos memorialísticos, no âmbito acadêmico, também estão em voga, sendo que o interesse pelas histórias individuais tem sido comuns nas mais diversas áreas: História, Psicologia, Antropologia, Sociologia, Ciências Políticas, dentre outras. Dizemos histórias individuais no sentido de que um único homem conta os fatos acontecidos consigo, no entanto, tais fatos estão inseridos no contexto de uma coletividade que não pode ser desconsiderada, uma vez que deixa marcas aparentes de sua presença no narrado. As diferentes disciplinas que lançam seus olhares diversos rumo às escritas de si possibilitam que esse tipo de produção, que enfoca o “Eu” sem menosprezar o “Nós” seja pensada, não como um gênero discursivo dentre tantos outros, cuja semelhança o situe em uma grande família de gêneros afins, mas, sobretudo, como um “vetor analítico e crítico da sociedade contemporânea”, como aponta Leonor Arfuch (2010). Gêneros literários considerados canônicos, no que diz respeito a sua produção e não à crítica literária acerca de si, como as confissões, as autobiografias, as memórias, os diários íntimos e as correspondências têm, na atualidade, somado forças com as novas formas de inscrição do “Eu”. O avanço tecnológico no campo das comunicações tem possibilitado uma série de novos meios de difusão do arquivamento e da exposição da vida íntima. Wander Melo Miranda (1992) considera necessário, para a compreensão da origem e do progressivo desenvolvimento das chamadas escritas do eu, recuar no tempo e observar a questão do indivíduo desde a Antiguidade. Miranda (1992) nos mostra como Michel Foucault analisa a Vita Sancti Antonii, em que Atanásio, bispo de Alexandria, narra a vida de Santo Antão, considerando SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 111 para tal mais que uma simples cópia dos acontecimentos exteriores. Atanásio faz uma reflexão sobre os conflitos íntimos de seu biografado. Essa pode ser considerada a primeira biografia psicológica da literatura mundial. Foucault, ao analisar essa escrita, mostra como a anotação pessoal e dos pensamentos funciona como instrumento para o autoconhecimento. Segundo o autor, a escrita de si está intrinsecamente ligada com a anacorese, em uma relação de complementaridade. O homem escreve suas vivências para confessar seus pecados e como um exercício de autoconhecimento, a um só tempo. Foucault traça ainda considerações sobre os hypomnemata: Os hypomnemata podiam ser livros de contabilidade, registros notoriais, cadernos pessoais que serviam de agenda. O seu uso como livro de vida, guia de conduta, parece ter-se tornado coisa corrente entre um público cultivado. Neles eram consignadas citações, fragmentos de obras, exemplos e ações de que se tinha sido testemunha ou cujo relato se tinha lido, reflexões ou debates que se tinha ouvido ou que tivesse vindo à memória (FOUCAULT, [s.d.], p.135). Adriana Helena de Oliveira Albano também traz, em sua dissertação de Mestrado, considerações acerca desse processo de autoconhecimento: Dentro desse universo da literatura, pensamos no gênero de memória como algo através do qual o homem procura, por meio do ato de rememoração, algo que dê razão a própria existência, composta de passado, presente e futuro. O ser busca algo que promova uma reflexão de si e da sociedade, fato que poderá lhe garantir um sentimento de “domínio” da própria vida, de sua existência (ALBANO, 2005, p.8). O indivíduo faz uma tentativa, através da escrita, de se conhecer e de se aperfeiçoar. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 112 REVISTA SABERES LETRAS Desde que nascemos somos inseridos em um universo que exige nosso arquivamento seja na vida diária, no espaço social, na esfera familiar ou em quadros de práticas científicas ou comunitárias. Inúmeros são os motivos que levam o homem a arquivar-se e a ser arquivado pelos outros, e constantes são os questionamentos acerca dessa necessidade de se arquivar, sobre quais os motivos que nos levam a essa prática e quais as implicações desse arquivamento em nossas vidas. Quase tudo em nossas vidas passa por um pedaço de papel, no entanto, guardamos apenas uma porção mínima desses, uma vez que certas práticas induzem à perda. Nós somos impossibilitados de reter todos os elementos da vida e, esporadicamente, uma triagem é feita em nossos papéis, por nós mesmos ou por outras pessoas. Em nossa sociedade impera a ordem de mantermos nossos arquivos em dia para que possamos existir, para que possamos nos inscrever em um meio, no qual direitos sociais nos são fornecidos mediante a apresentação de nossos arquivos pessoais devidamente atualizados. Os arquivos são responsáveis, dentre outras coisas, pela integração ou pela exclusão social. O homem arquiva-se ainda com a finalidade de manter a sua identidade reconhecida, como uma forma de autoconhecimento e de controle de sua vida, bem como para resguardar-se de alguma forma contra a passagem do tempo. Escrever as memórias individuais, ainda que estas não representem o passado fidedignamente, significa para o homem o domínio lento e gradativo de seu passado, ao passo que a história significa uma forma de controlar o passado individual e da coletividade. Lucio Cardoso traça um panorama da realidade social, histórica e cultural pela qual passa o país no período que compreende a sua obra, fazendo desta um misto de relatos pessoais e de narrativas da nação. História, memória e cultura conjugam-se, como vimos, no Diário completo: 29-Domingo - Chega Regina, minha irmã mais velha, que ao deparar com minha mãe, diz: Ela está muito mal!”- Não, digo eu, não está mal, está morrendo.* SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 113 Quase às dez horas da noite achava-me em casa de Walmir Ayala, quando fui chamado: minha mãe estava à morte. A notícia não me surpreende, e saio de lá correndo, esquecendo o paletó. A casa já cheia de gente, todos os meus irmãos estão presentes. Há um rumor de festa pelas ruas, fogos estalam de todos os lados, o Brasil acaba de ganhar a Copa do Mundo. Um frade franciscano (Frei Romano) acaba de fazer a encomendação especial, já que é válida a extrema-unção que recebeu a tempos. Saio por alguns minutos, a fim de atender pessoas que chegam - e afinal, quando regresso, ajoelhando-me ao chão, em companhia dos outros irmãos, vejo-a pender a cabeça e exalar o último suspiro (CARDOSO, 1970, p.257). Ao lançarmos um olhar para os diários, devemos atentar para um fator importante que diz respeito à questão da intencionalidade no ato de confeccionar a obra memorialística. O diário íntimo não registra todas as experiências vividas por quem o produz, mas apenas certas passagens as quais são consideradas mais significativas, além do fato de certas circunstâncias serem omitidas por inúmeros fatores. No ato de arquivar-se pela escrita há ainda um constante voltar de olhos para o passado. 28- Recopio o primeiro volume do meu Diário com grande morosidade, sentindo que envelheci, que minhas idéias mudaram. É difícil resistir à tentação de intervir , de reformar tudo – mas então já não seria um Diário e sim uma obra composta, um livro de ensaios. (CARDOSO, 1970, p.196) Albano (2005, p. 8) considera que “no processo de redescoberta, o passado é repensado e armazenado de uma nova maneira”. Arquivar-se representa, portanto, uma prática plural e incessante, uma vez que o homem está em constante contato com o outro que surge do olhar diferencial lançado ao passado, bem como em contato com elementos externos que SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 114 REVISTA SABERES LETRAS interferem na produção dessas memórias. Ao sentir que o corpo físico começa a manifestar certo esmorecimento, quando a sensação de jovialidade entra em declínio, o homem sente a necessidade de buscar, no passado, subsídios que o revitalizem e tragam à tona resquícios de fatos transcorridos, aos quais se agarra numa última tentativa de reviver tais lembranças como se fossem atos presentes. A passagem do tempo é encarada, então, como algo corrosivo e de força terrivelmente destruidora, que deve de algum modo ser enfrentado. O ato de arquivar-se por meio da escrita representa uma luta contra a inexorabilidade temporal. A memória escrita representa, para o memorialista, uma arma contra a ação do tempo, uma vez que essa lhe permite revisitar tempos idos e perpetuar suas vivências para além-túmulo. Quando seu corpo físico não mais existir, restarão suas memórias, seu arquivo de si, para perpetuar o seu ser. Marta Cavalcante de Barros considera que: A memória surge como uma busca da reversibilidade do tempo, sendo uma construção da percepção. Essa percepção está associada ao passar do tempo: a memória supõe o tempo como seqüência, mas o suprime enquanto o sujeito vive a simultaneidade. Surge como a possibilidade de amenizar um presente que indica como único caminho a extinção. (BARROS, 2002, p.107) Vãos, no entanto, são os esforços do homem nessa tentativa de reconstituir o tempo perdido, uma vez que as imagens passadas não podem ser plenamente recompostas. O rememorar encontra-se intrinsecamente atrelado ao esquecimento. Do ato de se tentar recuperar o passado emerge uma forte carga imaginativa capaz de manipular, ainda que inconscientemente, elementos que podem modificá-lo. Huyssen busca nas considerações de Freud subsídios que tornem mais clara a relação memória/esquecimento: SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 115 “Mas Freud já nos ensinou que a memória e o esquecimento estão indissolúvel e mutuamente ligados; que a memória é apenas uma outra forma de esquecimento e que o esquecimento é uma forma de memória escondida” (HUYSSEN, 2000, p.18). Cardoso, como sujeito consciente da existência da morte e da inexorabilidade do tempo, decide travar uma luta contra o esquecimento, ao escrever suas memórias, mesmo que estas sejam indizíveis, proibidas ou vergonhosas. Escrever as memórias é, então, uma forma de tornar-se imortal. Nesse processo de relembrar o passado há uma nova forma de ver os fatos, uma vez que o homem de hoje não é o mesmo de ontem, bem como as circunstâncias nas quais ele está inserido. Há uma redescoberta de si por meio da recriação das memórias através da escrita. Neste caso, o esquecimento atua como uma válvula propulsora dessa reação de apreensão das novas dimensões da realidade, do afloramento da imaginação e da formação de lembranças, nem sempre fiéis à realidade. O ato de recordar, por meio do Eu arquivado, faz com que o homem tire lições do passado. 06-05-1950 Não sei quem inventou o diário íntimo, que alma tocada pela danação e pelo desespêro do efêmero – sei apenas que relendo páginas de meses atrás, senti-me de repente com o coração tão pesado que não pude continuar. Ah, como mudamos e como mudamos depressa! Como perdemos tudo, como os sentimentos mais fortes se dissolvessem, como a vida é um contínuo e tremendo aniquilamento! Ah, como compreendo, sinto e vejo os meus desastres, os meus erros, os meus enganos! (CARDOSO, 1970, p.59) Philippe Artières considera ainda que “Devemos controlar nossas vidas. Nada pode ser deixado ao acaso; devemos manter arquivos para recordar e tirar lições do passado, para preparar o futuro, mas sobretudo para existir no cotidiano” (ARTIÈRES, 1998, p.14). SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 116 REVISTA SABERES LETRAS Podemos considerar, assim como o fez Artières, que a autobiografia é a prática mais acabada do arquivamento de si, possibilitando ao autor escolher alguns acontecimentos e ordená-los numa narrativa. A escolha e classificação desses acontecimentos é que vai definir o sentido que a escrita vai dar à vida do escritor. Considerações Finais Para a confecção das considerações supracitadas, o foco dos estudos direcionouse para o escritor Lucio Cardoso e para a sua obra Diário completo. Um breve perfil biográfico/literário/cultural do autor foi composto, numa tentativa de se justificar a relação entre a sua vida e a sua obra: ambas obsedantes. Procuramos trabalhar esse autor, considerando os pontos mais marcantes de sua vida, da infância em Curvelo à morte no Rio de Janeiro. No que diz respeito à sua produção crítica e literária, consideramos as muitas frentes nas quais Cardoso agiu, as influências que atuaram sobre a sua produção. Categorizamos, com o intuito de diferenciar os gêneros memória, diário, carnê, autobiografia, biografia levando-se em conta sua composição. Por memória consideramos os textos que tratam de assuntos relativos a uma coletividade e contrapõem-se às autobiografias no sentido de que há o predomínio de um nós em detrimento de um “Eu” individual, ainda que em ambas haja a amálgama composta por elementos individuais e coletivos. As biografias correspondem à vida do indivíduo, inserido no contexto social, produzida por terceiros, ao passo que nos diários, considerados como um gênero autobiográfico, o próprio indivíduo toma nota de suas vivências com uma interrupção temporal mínima entre o narrado e o vivido. Um outro fato importante, e que pode ser observado com o estudo do diário aqui citado, diz respeito à veracidade do escrito. Concordamos com as palavras de Louis Hay, ao dizer que “A verdade sobre o vivido nem sempre é a verdade sobre o escrito” (2003, p.73). Com isso fica marcada a instabilidade da escrita e a necessidade de se manter um distanciamento do corpus em estudo. A sedução da linguagem utilizada pelo autor de textos autobiográficos, bem como o voyeurismo do leitor diante dos diários, as memórias, as biografias e as autobiografias tão presentes na cultura atual corrobora a necessidade de SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 117 distanciamento que deve ser tomado por parte de quem visita os arquivos ou as escritas íntimas. Posteriormente, tratamos do diário, considerando-o como uma forma de arquivamento de si. Levamos em conta, ainda, o caráter ficcional da construção desses arquivos. Discutimos ainda acerca dos diversos meios de escrita de si, seus pontos de confluência e divergência, bem como a composição desse tipo de escrita. Fomos levados a considerar o diário cardosiano como uma forma de arquivamento do escritor, no qual o mesmo faz uma releitura de quem ele é, aprende e reinventa-se por meio da representação pela escrita, em um duplo trabalho de recriação, uma vez que escrever pressupõe uma reinvenção, e escrever voltado para um público reafirma essa reestruturação de si. Foucault, Miranda, Artières e Hay embasaram as nossas colocações acerca da necessidade e do papel do arquivamento de si. O modo como Cardoso decidiu arquivar suas memórias, transpondo o vivido para a escrita faz com que nos deparemos com um homem que atua, de uma só vez, como narrador e personagem de sua própria história. História que mescla elementos da vida individual com os fatos da coletividade. O estudo das escritas de si permite entrevê-las como práticas culturais de determinado tempo e espaço, de uma sociedade, enfim. Escritas que se diferenciam em determinados aspectos, no entanto, tangenciam-se em outros tantos, relacionando-se, sobrepondo-se ou contradizendo-se. Arquivando-se por meio de seus apontamentos íntimos, em seu diário, Cardoso manteve-se, de certa forma, vivo para as gerações que o sucederam. Além de imortalizar-se pelo arquivamento, trouxe consigo aspectos de uma sociedade: a cultura, a política, o comportamento, além de uma infinidade de outros aspectos os quais servem como subsídios de pesquisas nas mais diversas áreas do conhecimento. O que propomos com tal trabalho está longe de considerar o diário como representações fiéis da realidade, pois a escrita, por si só, já é uma representação e o fato de representar-se pressupõe a criação de outro eu que se desvela. Representar é recriar, inventar, portanto, ficcionalizar. Esse enfoque se deu uma vez que o diário de Cardoso é atípico, produzido com vistas à publicação, além de não se restringir apenas ao simples arrolamento SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 118 REVISTA SABERES LETRAS de episódios cotidianos, ficando o diário a cargo de apontamentos de cunho intimista, carregado de considerações acerca da cultura, do fazer literário, de trechos de cartas a serem enviadas, fragmentos de obras de outros autores, citações lidas ou ouvidas, dentre outros. Os diários chegavam mesmo a ser oferecidos a terceiros de modo que estes tivessem a possibilidade de deixarem ali, inscritas, as suas considerações, as suas marcas, os seus rastros. Tal fato denota a possibilidade de entrever no diário de Cardoso aspectos os quais não se encontram nos diários convencionais. Isso porque a característica mais marcante de tais obras remete ao seu caráter confidencial: nem tudo pode ou deve ser dito. Essa produção premeditada, ponderada, nos levou a acreditar que Cardoso, ao ocultar-se em suas anotações, ficcionaliza um gênero que se pretende verdadeiro. Ao ficcionalizar-se, cria para si um personagem que destoa do “Eu” sugerido nas escritas de diário, que coloca no mesmo patamar autor, personagem e narrador. Embora o nome da capa do livro coincida com o nome do personagem e o narrador esteja em primeira pessoa, características primordiais para que ocorra o pacto autobiográfico, proposto por Philippe Lejeune, a ficcionalidade da escrita que se volta a um público, bem como as lacunas causadas por diversos fatores, dentre os quais o esquecimento, o pudor, não permitem que possamos associar vida e obra como duas instâncias idênticas entre si. O memorialista não revive sua história por meio da recordação escrita. O homem que hoje evoca o passado não é o mesmo que vivenciou os acontecimentos, nem mesmo as circunstâncias nas quais o mesmo encontra-se inserido são favoráveis, propícias ao resgate integral de um passado, seja ele recente ou remoto. Assim como Ecléa Bosi, consideramos a memória um trabalho de reconstrução de um passado confrontado pelo “Eu” atual que reflete, pondera, olhando a situação por um ângulo que propicia novas miradas, diferentes do primeiro olhar lançado. O passado, no entanto, não se conserva de maneira homogênea: “lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a partir do outrora, é sentimento, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição” (BOSI, 1995, p. 21). Percebemos que, no gênero diário, o arquivamento da vida proporciona ao autor a possibilidade de se inventar de uma forma original, construindo para si mesmo uma identidade a partir de suas próprias representações. Independentemente SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 119 das maneiras como se costuma arquivar a vida, é fato que produzir lembranças é uma necessidade. Segundo Artières (1998, p. 14), “não fazê-lo é reconhecer um fracasso, é confessar a existência de segredos”. Isto mostra o valor cultural dos arquivos de vida em nossa sociedade. Debruçar-se sobre a obra memorialística representa uma forma de se tentar compreender algumas marcas de nossa identidade e alteridade. É uma forma de resgatar a memória cultural, trazida à tona na tentativa de se compreender o momento atual pelos fragmentos do passado. Segundo Meneses: Todos têm procurado destilar sua auto-imagem mais raramente e com dificuldade a da sociedade como todo. Palavras-chave são “resgate”, “recuperação” e “preservação”. – todas pressupondo uma essência frágil que necessita de cuidados especiais para não se deteriorar ou perder uma substância preexistente (MENESES, 1999, p.12). Utilizamos ainda o diário cardosiano na tentativa de mostrar como o autor lança um olhar em direção à cultura de seu tempo. Esse olhar pode ser notado através de comentários acerca de suas leituras, daquilo que vinha sendo produzido até então, seja por meio de críticas propriamente ditas, feitas a trabalhos de terceiros ou da recepção crítica de suas próprias obras. Por meio dos apontamentos feitos em seu diário, Cardoso mostrava-se como um indivíduo preocupado em lançar um olhar em direção ao futuro, à cultura que vinha sendo produzida no momento em que estavam inseridos, bem como em fazer uso desse recurso de escrita para divagar acerca da constituição de si. Dar ao texto memorialístico de Lucio Cardoso um tratamento que aborde as questões relativas à memória cultural e literária do país significa valorizá-lo enquanto participante ativo no panorama cultural do país. Uma investigação literária e cultural em seu Diário completo representa, ainda, uma tentativa de se inserir uma discussão nas pesquisas dos Estudos Culturais, procurando abrir perspectivas de atualização crítica do estudo da memória, dos arquivos de si e da cultura. Desse modo, a literatura passa a ser vista SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 120 REVISTA SABERES LETRAS como uma prática discursiva em que o discurso funciona como uma forma de representação. Referências ALBANO, Adriana Helena de Oliveira. No rastro dos boitempos: considerações sobre poética memorialista em Drummond e dois contemporâneos seus. 2005. 129f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de São João del Rei, Minas Gerais, 2005. ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro,s.n., v.11, n.21 , p.9-34, 1998. BARROS, Marta Cavalcante de. Espaços de memória: uma Leitura de Crônica da Casa Assassinada de Lúcio Cardoso. São Paulo, Nova Alexandria: 2002. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. CARDOSO, Lúcio. Diário completo. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, INL, 1970. FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Edições 70, s/d., p.128-160. HAY, Louis. A literatura dos escritores: questões de crítica genética. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Jovita Maria Gerheim Noronha (Org.). Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMGe, 2008. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A crise da memória, história e documento: SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 121 reflexões para um tempo de transformações. In: SILVA, Zélia Lopes da (Org.) In: Arquivos, patrimônio e memória: trajetórias e perspectivas. São Paulo: Editora UNESP/ FAPESP, 1999. MIRANDA, Wander Melo de. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo: EDUSP, 1992. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 99 a 121 set. / dez. 2012 122 REVISTA SABERES LETRAS A ESTÉTICA DA ANTROPOFAGIA: DEVORAÇÃO, CRÍTICA E CINEMA EM OSWALD DE ANDRADE, GLAUBER ROCHA E OLNEY SÃO PAULO Dinameire Oliveira Carneiro Rios 1* Resumo: As escolhas de elementos do campo ético e estético aproximam o Modernismo brasileiro e o Cinema Novo, movimentos artísticos que agenciaram um reconhecimento dos valores da cultura popular, reelaborando as práticas estéticas e manifestações das culturas que estão no cerne de nossa formação, além de subsidiar as bases estruturais da nova obra de arte produzida, buscando constantemente dentro das produções artísticas desses períodos uma intertextualidade que pretendesse dialogar com o passado e o presente do país em cada um desses momentos históricos e artísticos. Nesse sentido, este trabalho analisa a posição crítica e intelectual de três importantes pensadores desses momentos estéticos brasileiros: inicialmente Oswald de Andrade e Glauber Rocha, intelectuais revolucionários, vanguardistas que propuseram em suas obras a descolonização da arte brasileira, o primeiro através da metáfora ritualística da antropofagia transformada numa elaboração teórica da cultura nacional que aliava barbárie e técnica, e o segundo, por meio da violência provocada pela fome teorizada na “Estética da Fome”, discutindo, por fim, como essas duas propostas que nortearam o Modernismo e o Cinema Novo no Brasil encontram-se presentes na produção fílmica e intelectual do cineasta baiano Olney São Paulo. Palavras-chave: Modernismo brasileiro. Antropofagia. Cinema Novo. Estética da fome. Abstract: The choices of elements in ethical and aesthetic fields unite Brazilian Modernism and Cinema Novo, artistic movements that promoted a recognition of the values of popular culture, reworking aesthetic practices and manifestations of culture at the heart of our evolution, besides supporting the new produced work of art structural bases, constantly seeking in the artistic production of those times a link between the past and the present in every historical and cultural * Mestranda em Literatura e Diversidade Cultural- Universidade Estadual de Feira de Santana/Bolsista FAPESB. E-mail: [email protected] SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 122 a 133 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 123 moments. Thus, this study examines the critical and intellectual position of three major Brazilian thinkers of aesthetic phases: at first, Oswald de Andrade and Glauber Rocha, revolutionary intellectuals who proposed through their works the decolonization of Brazilian art, the first through the metaphor of ritual cannibalism transformed into a theoretical elaboration of national culture that combined technique and barbarism; the second through the violence caused by the theorized “hunger” in the Estética da fome. Finally, we consider how these two proposals that guided Modernism and Cinema Novo in Brazil are presented in Olney São Paulo’s film production. Key words: Brazilian Modernism. Anthropophagy. Cinema Novo. Estética da fome. Breve introdução O Modernismo brasileiro e o Cinema Novo são movimentos culturais que têm muitos pontos de contato, tanto no campo ético quanto no estético. Embora o cinema não estivesse presente na Semana de Arte Moderna realizada em 192221, é visível nas obras de artistas modernistas como Oswald e Mário de Andrade a influência da sétima arte, impulsionando mudanças de ordem sintática e de expressão. Essa relação justifica, em parte, o tênue diálogo estético e ideológico entre alguns artistas e intelectuais modernistas e os cinemanovistas e, consequentemente, o grande número de adaptações de obras desse período pelos cineastas do Cinema Novo. Algumas escolhas de elementos do campo criativo aproximam os dois movimentos, pois, assim como fizeram os modernistas, há no Cinema Novo um reconhecimento dos valores da cultura popular, ressignificando as práticas estéticas e manifestações das culturas que estão no cerne de nossa formação, além de subsidiar as bases estruturais da nova obra de arte produzida, há uma 1- Embora Humberto Mauro tenha produzido considerável parte de sua obra em meados da primeira metade do século XX, sua importância para a arte nacional e seu caráter modernista só seriam reconhecidos entre os cinemanovistas. Sua produção passou despercebida entre os críticos modernistas. Outro cineasta de grande relevância para a época, Mário Peixoto, teve uma maior aproximação com o movimento de 1922 a partir de sua poesia, e não através dos filmes que produziu; esses só seriam aclamados pelos intelectuais do Cinema Novo. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 122 a 133 set. / dez. 2012 124 REVISTA SABERES LETRAS busca constante dentro dessas produções artísticas por uma intertextualidade que pretende dialogar com o passado e o presente do país em cada um desses momentos históricos e artísticos. Outro ponto de contato interessante entre os dois movimentos artísticos diz respeito às posturas intelectuais de dois dos seus principais líderes: Oswald de Andrade e Glauber Rocha. Intelectuais revolucionários, vanguardistas que propuseram em suas obras a descolonização da arte brasileira, o primeiro através da metáfora ritualística da antropofagia transformada numa elaboração teórica da cultura nacional que aliava barbárie e técnica, e o segundo, por meio da violência provocada pela fome. Essas duas posturas estão sistematicamente presentes em dois textos antológicos da arte brasileira, o “Manifesto Antropófago”, publicado por Oswald em 1928 na Revista de Antropofagia, e na “Estética da fome”, apresentado por Glauber Rocha, pela primeira vez, em 1965, no congresso Terceiro Mundo e Comunidade Mundial dentro da Quinta Resenha do Cinema Latino-Americano, em Gênova, na Itália. Um Oswald antropófago No “Manifesto Antropófago” Oswald propõe, numa postura radical estética e política, uma renovação da arte brasileira através do ritual etnográfico da antropofagia elaborando uma filosofia cultural. Segundo Oswald e os demais que seguiam a ideologia do “primitivismo antropofágico”, era necessária a devoração seletiva da arte e dos demais produtos culturais lançados nos grandes centros europeus e mundiais, de forma que pudessem ser assimilados os aspectos interessantes para a arte do Brasil e desprezados os elementos sem valia. Nesse movimento antropofágico seria cogente não somente devorar e deglutir os valores da arte europeia, mas trazer como retorno artístico e cultural, uma originalidade que pudesse oferecer para a cultura brasileira um lugar muito próximo, senão ao lado, da produzida na Europa. A antropofagia de Oswald positivou o hibridismo que caracteriza o povo brasileiro, singularizou a cultura do Brasil devido às suas tradições multiétnicas e multifacetadas, além de possibilitar uma renovação linguística, como pretendia o próprio movimento modernista. Para Veloso e Madeira (1999, p. 107), a antropofagia de Oswald de Andrade deixou para o país “a utopia de uma cultura dinâmica e criativa, com capacidade de apropriar-se, deglutir e promover SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 122 a 133 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 125 novas sínteses, banindo arcaísmos culturais e linguísticos, substituindo-os por uma língua ágil, natural e neológica.” No campo dessa construção proposta pela antropofagia oswaldiana, se instauraram tensões políticas e culturais que permeavam questões como o interesse pela cultura popular interna e um olhar crítico para a cultura estrangeira, originalidade, postura reflexiva e um sólido projeto político-ideológico que possibilitaram a perpetuação do imaginário antropofágico e seus desdobramentos na história intelectual do Brasil em todo o restante do século XX e ainda no século XXI. A metáfora da devoração de Oswald conseguiu, dessa forma, abarcar discussões importantes que estavam em voga no Brasil do início do século XX como o relacionamento com a cultura e a influência estrangeira, notadamente a europeia, e a construção de uma tradição original para o país através de uma revisão radical e crítica do que já havia sido produzido aqui, mas conseguindo dinamizar a criação estética por meio da ampliação do imaginário e da invenção de novos parâmetros e valores culturais. Assim, como afirma Seidel (2011, p.10-13), “A proposição da antropofagia, por Oswald de Andrade, [...] pode ser considerada como uma ruptura em relação ao pensamento da inteligência nacional, com respeito ao tipo de proposição utópica da nação ‒ portanto, olhando para o futuro.” Nesse sentido, Osmar Moreira (2011), em consonância com os estudos do crítico Benedito Nunes, constata que a antropofagia pode ser não somente uma metáfora à cerimônia guerreira da imolação tupi do inimigo valente, mas também é um diagnóstico da sociedade brasileira, por ter sido esta colonizada, e também uma terapêutica contra os organismos sociais e políticos, as manifestações literárias, os hábitos intelectuais que de alguma maneira enxergaram o trauma civilizatório como uma instância censora. Um Glauber com fome O legado do Manifesto de Oswald consta em praticamente todas as manifestações artísticas da segunda metade do século XX. Nas propostas do Cinema Novo, a “Teoria da Antropofagia” ocupa o cerne, além de estar diretamente presente em muitas das produções fílmicas do período. Filmes como Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 122 a 133 set. / dez. 2012 126 REVISTA SABERES LETRAS Como era gostoso o meu francês (1970), de Nelson Pereira dos Santos dialogam diretamente com os postulados antropofágicos do pensador modernista Oswald de Andrade, porém, a transubstanciação teórica deste texto modernista ressoa ética e esteticamente no texto-manifesto produzido pelo expoente maior desse movimento cinematográfico: em “Estética da fome”, de Glauber Rocha. Se nos textos de Oswald e Mário de Andrade é possível localizar uma proximidade entre a linguagem proposta por eles e a cinematográfica, bem como uma sobreposição e montagem de imagens, um ritmo e uma polifonia que possibilitam caracterizar algumas de suas produções como quase-cinema, pôde-se constatar que as aproximações entre modernistas e cinemanovistas não estavam somente no plano estético, mas também no ético, no filosófico e no político. Se Oswald propõe no Modernismo uma descolonização ideológica e estética por meio da metáfora da devoração, ancorando-se, também, nas propostas deste, Glauber Rocha escreve seu manifesto “Estética da fome”, em 1965, propondo uma descolonização da América Latina e do Brasil através das imagens da violência sugeridas na tela do cinema nacional. Para Glauber era preciso desconstruir a ideia do europeu de que a América Latina e consequentemente o Brasil era o locus do primitivismo e da não-civilização, enquanto a Europa representava para o mundo o padrão de civilidade que deveria ser seguido, perpetuando, desta forma, uma mentalidade estritamente colonial. De acordo com o pensador e cineasta baiano, isso se devia não somente à concepção de superioridade dos europeus em relação aos latinos, africanos, etc., mas também pelo complexo de inferioridade presente na mentalidade colonizada dos intelectuais e artistas destas partes do mundo, no foco, em especial, os do Brasil. No artigo “Uma situação colonial?” Paulo Emílio Salles Gomes já havia denunciado que o Brasil não tinha uma tradição cinematográfica pelo fato de ser um país pobre e subdesenvolvido; segundo ele, consequências da colonização cultural ainda presentes no século XX, neste sentido Glauber afirmava que essa questão já tinha sido explicada pelo modernismo, mas cabia ao Cinema Novo ressignificar essa discussão possibilitando novas interpretações e soluções para esse embate cultural que, por sua vez, estaria na base da construção do seu manifesto “Estética da fome”. (GERBER, 1982). A descolonização cultural proposta por Glauber Rocha em seu manifesto caminha SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 122 a 133 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 127 para se realizar através de uma virulência semântica e sintática, utilizando-se da fome não somente em seu sentido primeiro, mas como consequência de uma bifurcação da ideia antropofágica de Oswald de Andrade32, empregando a fome como mola propulsora de uma força violenta, resistente, criadora, que auxiliasse no processo de desalienação artística e cultural da América Latina. Para Kiffer (2011), estão presentes três temas principais na tese que Glauber formula em “Estética da fome”: o primeiro é a fome enquanto força, o segundo, o amor enquanto violência, e o terceiro tema é de uma estética que não seja sistemática, ou seja, “um equilíbrio que não resulte de um sistema orgânico”. Essa fome que reatualiza a metáfora da devoração de Oswald surge em Glauber de forma a atingir os dois mundos, tanto o do colonizador quanto o do colonizado: Nós compreendemos essa fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entendem. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come, mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. [...] Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência (GLAUBER, 2004, p.66). Dessa maneira, Glauber Rocha indica uma saída estrutural para a miséria no país, esta que, por sua vez, “sendo sentida, não é compreendida”. As imagens dos filmes produzidos pelo Cinema Novo colocam ao espectador o comportamento da fome e a violência que, se para o europeu é vista como primitivismo, para o público brasileiro deveria funcionar como agressão à percepção, aos sentidos e ao pensamento, seria “o público não suportando as imagens da própria miséria”. Com uma estética da fome e da violência, esta última sendo gerada pela primeira, Glauber propõe ao Brasil e à América Latina as bases para um pensamento anticolonialista, sob forte influência das propostas e discussões elencadas por Frantz Fanon (1979) acerca da descolonização, “das formas da consciência do oprimido e do sentido histórico maior da revolta” (XAVIER, 2001, p.121-122) que possibilitassem ao povo brasileiro posicionamentos não- 2- Essa proposta é aprofundada por Ana Kiffer em “Meu corpo vossa fome”. Ver Revista Periferia, V.III, número 1. Disponível em: http://www.febf.uerj.br/periferia/V3N1/ ana_kiffer.pdf. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 122 a 133 set. / dez. 2012 128 REVISTA SABERES LETRAS paternalistas, não-humanistas e descolonizados. 43 Baseado em um olhar tradicional sobre o processo de colonização, em que este é visto a partir da divisão entre ocupantes versus ocupados/dominados versus dominadores, o discurso de Glauber foi construído com intuito de marcar a divisão clara que existia no período entre o chamado primeiro mundo e o terceiro mundo. Porém, se havia uma dificuldade em o europeu compreender a realidade da América Latina, interessando a ele apenas “os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido”, somente “na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo”, os próprios latino-americanos perpetuavam em seus discursos um pensamento que coadunava com o sistema colonial, produzindo uma arte de “mentiras elaboradas da verdade” , “onde o autor se castra em exercícios formais que, todavia, não atingem a plena possessão de suas formas”, em que não consegue “despertar do ideal estético adolescente”, frustrando o sonho da universalização. Oswald, Glauber e Olney: Correlações A ideia-síntese do Cinema Novo, “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, significava a liberdade de experimentação e criação que esse novo movimento cinematográfico propunha e trazia para o cenário do cinema nacional, oferecendo a possibilidade de execução das propostas apresentadas por Glauber em seu manifesto, escrito quando o Brasil já tinha mantido contato com algumas das principais obras do Cinema Novo: Aruanda (1958), Deus e o Diabo na terra do Sol (1963), Vidas Secas (1963), entre outras produções. 3- De acordo com Ismail Xavier (2001, p.122), “No Brasil, nos anos 60, adota-se o modelo colonial para pensar os problemas da cultura nacional. A teoria da revolução brasileira privilegia uma dialética histórica que, como em Sartre, é afirmação da liberdade humana, terreno da práxis. No eixo Sartre- Fanon, Glauber pensa a libertação como um processo no qual a Nação-sujeito coletivo se afirma ao negar o Outro (o colonizador)”. As ideias de Glauber sobre a descolonização do Terceiro Mundo alinham-se, até certo ponto, com a teoria da descolonização pensada por Fanon, pois como afirma (1979, p. 25-26) “a descolonização é sempre um fenômeno violento. [...] [Ela] jamais passa despercebida porque atinge o ser, modifica fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de inessencialidade em atores privilegiados, colhidos de modo quase grandioso pela roda-viva da história. [...] A descolonização é, em verdade, criação de homens novos.” São esses novos homens que Glauber procura construir por meio do processo psíquico de descolonização contido nas produções do Cinema Novo e explicitado no Manifesto “Eztetyka da Fome”. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 122 a 133 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 129 Mas para além da liberdade de criação, a proposta de “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” manteve, até certo momento, um diálogo com a cultura no que diz respeito à precariedade material do povo, representado nas produções desse movimento cinematográfico. A pobreza e a miséria necessitavam de uma técnica que se tornasse linguagem, em que referente e meio se identificassem ao espectador, ato político e estético que esteve refletido na obra de um outro importante expoente do cinema baiano nos idos do Cinema Novo, a do cineasta Olney Alberto São Paulo. É durante a década de 1960 que Olney São Paulo surge no cenário nacional como cineasta a partir de seu primeiro filme de maior repercussão e de bases profissionais, o longa-metragem Grito da terra (1964). Embora boa parte de sua obra cinematográfica tenha sido produzida em meio à efervescência das ideias cinemanovistas, Olney se insere de maneira especular nas propostas desse movimento. De formação teórica e documental, esse cineasta baiano inicia sua carreira como crítico de cinema em alguns periódicos da cidade de Feira de Santana, na Bahia, mas apesar de ter sido contemporâneo do surgimento das ideias-base e do próprio movimento do Cinema Novo, as influências do cinema que produziu perpassaram boa parte do cinema mundial da época e sua coadunação (ou não!) com as ideias éticas e estéticas em relação a esse movimento cinematográfico merece ser problematizada. Segundo Novaes (2011, p. 224), “Outras fontes cinematográficas de Olney, como ele mesmo afirma, foram o cinema clássico americano, principalmente western, e o neo-realismo italiano, passando pela teoria russa da montagem e pelos filmes da Atlântida e da Vera Cruz, no Brasil. Ele também passa pelas leituras de outras tradições, como a da União Soviética, da Alemanha e da França”. Interessa, nesse caso, observar como Olney São Paulo, cineasta baiano contemporâneo de Glauber e do surgimento do Cinema Novo, agenciou em sua produção cinematográfica e intelectual as propostas norteadoras do cinema nas décadas de 1950-60, que, por sua vez, estão repercutidas na “Estética da fome” glauberiana e, consequentemente, dialogaram com as ideias modernistas antropofágicas de Oswald de Andrade. Segundo o próprio Olney São Paulo, o neorrealismo italiano estivera desde muito cedo em suas leituras fílmicas que foram intensificadas, por sua vez, quando passou a ser crítico de cinema em jornais locais em Feira de Santana. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 122 a 133 set. / dez. 2012 130 REVISTA SABERES LETRAS Seu contato mais significativo com o cinema baiano se deu quando passou a participar, ao lado inclusive de Glauber Rocha, das reuniões em torno do Clube de Cinema da Bahia. Nessa correlação de contatos e influências que tivera Olney no início da carreira, é possível perceber na primeira realização de maior êxito do autor, Grito da terra (1964), as influências temáticas do Cinema Novo, embora a técnica e a estética do filme ainda mantivessem um contato muito mais visível com o cinema clássico, distante das inovações agenciadas no campo da produção cinemanovista. O neorrealismo italiano que serviu de base estética para os filmes de Nelson Pereira dos Santos, Rio 40 graus e Rio Zona Norte, vistos pela crítica e pelos próprios cineastas do movimento como os precursores das propostas do Cinema Novo, já estava, em parte, superado pelo cinema produzido na década de 1960, no entanto, será esse o principal cinema que dialogará com o primeiro filme de Olney São Paulo, não somente pelo uso de atores não-profissionais, mas pela própria técnica utilizada, confirmando o distanciamento do autor da efervescência estética dos primeiros anos do movimento cinemanovista, principalmente a refletida nas obras do conterrâneo Glauber Rocha. Na esteira da produção de Olney, seu diálogo com o moderno cinema só iria acontecer efetivamente a partir de 1969, com a produção do subversivo, como considerado pelos militares, Manhã Cinzenta. Porém, embora esse filme tenha inserido Olney numa proposta estética visivelmente alinhada com o Cinema Novo, bem como as propostas revolucionárias e nacionalistas de Oswald de Andrade e Glauber Rocha, é importante notar que Manhã Cinzenta e suas consequências éticas e políticas contribuíram decisivamente para a exclusão do seu idealizador das páginas do próprio movimento, passando a ser lembrado somente pela peregrinação de “mártir do Cinema Novo”, como lembra Glauber em Revolução do Cinema Novo. Dessa forma, o vanguardismo e o cunho moderno radical que dominam Manhã Cinzenta (1969), muitas vezes próximos do “cinema verdade”, inversamente distanciou Olney do Cinema Novo, consequência do abalo causado pelo processo que sofreu pela censura militar. Alinhando o filme com as propostas do escritor Oswald e o pensador Glauber, podemos situar Manhã Cinzenta como sendo “uma obra de ambivalência crítica entre as estéticas das vanguardas modernistas, os modelos clássicos de representação realista e as novas gerações SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 122 a 133 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 131 da narrativa nacionalista” (NOVAES, 2011, p.52). Se as propostas de descolonização cultural estavam na base das ideias nacionalistas de Oswald de Andrade e Glauber Rocha, em Olney essa discussão toma proporções menores e volta-se para o interno dentro do projeto político inscrito em seus filmes, de forma que sua obra pode facilmente servir de argumento para a antiga discussão sertão versus litoral, tão cara à cultura brasileira. Ainda assim, é visível na trajetória política e intelectual de Olney São Paulo sua luta contra o imperialismo cultural no Brasil, representada, por exemplo, nas inúmeras denúncias que fizera em relação à dominação do cinema estrangeiro no Brasil. A falta de rede de exibição para a produção nacional esteve presente na fala desse cineasta quase sempre que lhe foi dada a oportunidade de manifestar-se. Em artigos como Olney, um cineasta fora da festa e Diretor de “O forte” denuncia sabotagem, publicados respectivamente no jornal Folha de São Paulo e no Folha de Londrina, fica claro o envolvimento e a energia intelectual do produtor baiano no sentido de destruir as engrenagens colonizadoras que estavam presentes no cinema brasileiro, desde a sua produção até o momento da exibição para o público. Foi possível visualizar a contribuição desses três intelectuais brasileiros para a arte brasileira e, embora inscritos em dois importantes momentos da cultura nacional, talvez os mais representativos do nosso pensamento, colaboraram, cada um a seu modo, mas ainda assim dialogando diretamente em suas propostas para a valoração e formação de um sistema nacionalista autônomo, livre das redes cosmopolitas do imperialismo, pois ainda que seja visível algum tipo de influência estrangeira em suas produções, essa, por sua vez, se deu de maneira antropofágica, como propôs o próprio Oswald de Andrade. Oswald, Glauber e Olney São Paulo se inserem na estirpe da arte nacional que através de suas produções artístico/intelectuais reivindicaram para o Brasil a posição não mais de colônia no âmbito cultural, questionando e reclamando um lugar de destaque nas engrenagens da criação estética, filosófica e artística. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 122 a 133 set. / dez. 2012 132 REVISTA SABERES LETRAS REFERÊNCIAS ANDRADE, Oswald de. Obras completas. A Utopia Antropofágica. São Paulo: Globo, 1995. ________. Obras completas. Pau Brasil. São Paulo: Globo, 2006. ÁVILA, Afonso. O modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2002. BENTES, Ivana. Cartas ao mundo. São Paulo: Cia das Letras, 1997. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Tradução de Eloisa de A. Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005. (Série Cinema 2). FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2. ed Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. GERBER, Raquel. O mito da civilização atlântica: Glauber Rocha, cinema, política e a estética do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1982. JOSÉ, Angela. Olney São Paulo e a peleja do cinema sertanejo. Rio de Janeiro: Quartet, 1999. KIFFER, Ana. Meu corpo vossa fome. Ver Revista Periferia, V.III, número 1. Disponível em: < http://www.febf.uerj.br/periferia/V3N1/ana_kiffer.pdf > Acesso em: 15 Jan. 2012. MOREIRA, Osmar. Um Oswald de Bolso: crítica cultural ao alcance de todos. Salvador: Quarteto, 2010. NOVAES, Claudio Cledson. Aspectos críticos da literatura e do cinema na obra de Olney São Paulo. Salvador: Quarteto, 2011. ______. Jean Rouch, Pierre Perrault, Olney São Paulo: representações e discursos no documentário cinematográfico. Revista Abecan. Rio de Janeiro, n. 12, p. 217-233, 2011. Disponível em: <http://www.revistabecan.com.br/ arquivos/1309741506.pdf>. Acesso em:10 Jan. 2012. ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2003. ______. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. SEIDEL, Roberto. Apresentação. In: MOREIRA, Osmar. Um Oswald de Bolso: crítica cultural ao alcance de todos. Salvador, Quarteto, 2010. SIEGA, Paula Regina. Violência, fome e sonho: as estéticas do subdesenvolvimento SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 122 a 133 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 133 no discurso de Glauber Rocha. Revista A cor das letras, Feira de Santana, p. 83100, 2011. VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. Glauber Pátria Rocha Livre. São Paulo: Ed. SENAC, 2001. VELOSO, Mariza; MADEIRA, Angélica. Leituras brasileiras: itinerários no pensamento social e na literatura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999. VENTURA, Tereza. A poética polytica de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2000. XAVIER, Ismail. Cinema moderno brasileiro. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 122 a 133 set. / dez. 2012 134 REVISTA SABERES LETRAS REALIDADE E FICÇÃO EM O DOENTE MOLIERE Diego do Nascimento Rodrigues Flores1* Resumo: O presente artigo trata da análise da novela O doente Moliere de Rubem Fonseca. Nele, se buscará tecer relações entre a forma como realidade e ficção se misturam nos personagens de forma que, como propõe Wolfgang Iser, o fictício seja nada mais do que uma encenação constituída de elementos do real reconfigurado que, desta forma, aponta para algo além da encenação em si. Palavras-chave: fictício, encenação, romance policial, Rubem Fonseca. Abstract: The present article is an analysis of the novella O doente Moliere by Rubem Fonseca. In this article we will aim at establishing connections between the way reality and fiction intertwine in the characters so that, as proposed by Wolfgang Iser, the fictive be nothing more than an enactment made up of elements of a reconfigured reality which, thus, points to something beyond enactment itself. Keywords: fictive, enactment, detective novel, Rubem Fonseca. Introdução França, 17 de fevereiro de 1673. Em cena, Molière faz sua última apresentação: na encenação de “O doente imaginário”, última peça escrita pelo comediógrafo, o próprio Molière faz o papel principal. Ele é Argan, o hipocondríaco, que passa mal em cena. Ironicamente, o próprio Molière também não está se sentindo bem, e seu péssimo estado serviu para realçar brilhantemente a qualidade da encenação. Desfazem-se as fronteiras entre o real e o fictício. Somente um dos espectadores percebe que algo está errado. Molière vem a falecer naquela mesma noite, sem a presença de nenhum amigo ou parente. Contudo, seria *Mestre em Letras pela Ufes e professor na PMV SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 135 enterrado somente quatro dias depois, e graças à intervenção real, porque os clérigos de então se recusavam a lhe ofertar a extrema unção por ter sido ator e comediógrafo, profissões tão escusas quanto a prostituição ou a feitiçaria. Assim Rubem Fonseca inicia sua narrativa. O Marquês Anônimo, apresetado pelo autor como o único personagem fictício de seu livro, toma a dianteira para narrar uma investigação levada adiante a partir de uma confissão do próprio Molière: “Fui mortalmente envenenado” (FONSECA, 2000, p. 23). Nesse estudo, buscaremos entender como o personagem-narrador criado por Fonseca molda, dentro do universo fictício do livro, a sua narrativa do real de modo que esta sirva para expor as mazelas não só do tempo em que Molière viveu, mas provavelmente de toda história humana, destacando a hipocrisia em que aquela sociedade estava mergulhada. Mas antes de adentrarmos os meandros desta narrativa, vejamos brevemente quem foi o homem Molière e, especialmente, o legado que este nos deixou. O homem Molière Segundo Erich Auerbach, Molière seria aquele comediógrafo que “tipifica muito menos, apanha a realidade muito mais individualmente do que a maioria dos moralistas do século” (AUERBACH, 2002, p. 323). Ainda na esteira do teórico alemão, este afirma que Molière estava preocupado em encontrar “o individualmente real só por causa do seu ridículo, e o ridículo significa para ele o desvio do médio e do habitual” (AUERBACH, 2002, p. 323). Molière tomava seus personagens de todas as classes sociais, mas eram aqueles que pertenciam às classes mais abastadas que mais o interessavam. Nas suas comédias, queria apresentar o ridículo de todos os homens, modelando-os de forma grotesca (AUERBACH, 2002, p. 325), o que nos leva a perceber seus personagens antes como caricaturas de determinadas figuras de importante colocação social à sua época: os médicos, as preciosas, o clero, etc. Por isso, por essa sua audácia em caricaturar elementos importantes de sua sociedade, Molière foi freqüentemente atacado. Tomemos, por exemplo, uma de suas comédias mais polêmicas: Tartuffe (Tartufo). Essa peça foi censurada pelo rei que, mesmo sendo bastante indulgente para com Molière e um apreciador de suas comédias, a manteve longe dos palcos SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 136 REVISTA SABERES LETRAS por cinco anos. Por causa desta peça Molière foi acusado de atacar a religião e de ser ateu: o seu Tartufo era, segundo John Gassner, “a encarnação da devoção egoísta e desonesta”, apresentada num “drama que o mostrava insinuando-se em um honrado lar e virando-o de cabeça para baixo” (GASSNER, 2002, p. 341). No entanto, a peça não atacava diretamente a religião, mas a forma como esta poderia ser usada egoisticamente em benefício próprio. Molière, de acordo com Auerbach, empregava livremente elementos farsescos em suas comédias; evitava, contudo, “a concretização realista da situação política ou econômica do meio em que suas personagens atuam, e muito mais, o aprofundamento crítico” (AUERBACH, 2002, p. 330). Essa estratégia adotada pelo comediógrafo lhe garantia teatros sempre cheios, pois não ofendia diretamente sua platéia ou, o que é mais importante, o rei, uma vez que suas peças não denunciavam as contradições daquela sociedade desigual, mas estavam voltadas para o indivíduo e sua irremediável corrupção. Enfim, Molière parecia estar preocupado, em suas comédias, em fazer uma crítica moralista da sociedade em que vivia, com o intuito de denunciar a hipocrisia presente em todos os estratos sociais, desde as camadas mais baixas até as mais altas: a tartufice do clero, a incompetência e o charlatanismo dos médicos, bem como todo tipo de mentira e impostura que pairava sobre todos. Ficção e realidade: considerações teóricas Adiemos ainda um pouco mais a nossa análise da novela de Rubem Fonseca para tecermos, antes, algumas considerações que irão orientar a nossa leitura. Entenderemos, em nossa análise, o texto ficcional da forma como este é proposto por Wolfgang Iser que, em seu livro The fictive and the imaginary: charting literary anthropology afirma ser o texto literário “a mixture of reality and fictions, and as such it brings about an interaction between what is given and the imagined” (ISER, 1993, p. 1). Essa mistura de que Iser fala, que se apresenta no texto fictício como uma re-configuração de elementos do mundo empírico, serve para fazer com que o leitor passe a perceber a realidade de maneira diferente, já que, como escreve o próprio Iser, “whenever realities are transposed into the text, they turn into signs for something else” (ISER, 1993, p. 3). Essa mesma afirmação é corrobora por Luiz Costa Lima, em Vida e Mímesis, SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 137 segundo o qual a ficção, para Iser, seria o caminho através do qual “o homem explora possibilidades outras que as oferecidas pelo mundo instituído” (LIMA, 1995, p. 236). Para Iser, o texto ficcional é composto por atos de seleção de elementos de diversos sistemas que existem como campos de referência que são exteriores ao texto ficcional e que abrangem tanto as esferas sociais, históricas e culturais quanto sistemas literários. Assim, a realidade ficcionalizada é criada para apontar para algo além de si mesma na medida em que se configura o imaginário no texto ficcional. O mundo empírico, como somos capazes de o perceber, é caótico; nunca somos capazes de apreendê-lo em sua totalidade, e por isso precisamos de ficções. A mesma opinião é compartilhada por Jacques Rancière, para quem “o real precisa ser ficcionado para ser pensado” (RANCIÈRE, 2005, p. 58). Assim, continua Iser, “The reality represented in the text is not meant to represent reality; it is a pointer to something that is not, although its function is to make that something conceivable” (ISER, 1993, p. 13). Desta forma, precisamos notar que a referencialidade característica dos signos que compõem o texto ficcional torna-se esmaecida uma vez que o “como se” do texto ficcional, ou seja, o real ficcionalizado, é empregado com o intuito não de representar o mundo empírico, como Iser já afirmou acima, mas de fazer uso do mundo representado para estimular reações no leitor (ISER, 1993, p. 16). Há, portanto, uma intenção do texto, a qual pode ser descoberta não através do estudo da biografia e crenças do autor, “but in those manifestations of intentionality expressed in the fictional text itself, through its selection of and from extratextual systems” (ISER, 1993, p. 6). Contudo, essa intenção do texto não pressupõe a existência de um critério único de leitura e interpretação de um texto literário já que devemos levar em consideração que é da interação do leitor com o texto que se concretiza, em última instância, o significado de um determinado texto, e que esta interação está de certo modo inserida em um dado contexto histórico-social que de alguma maneira determinará como aquele texto será recebido e, conseqüentemente, interpretado. Logo, os significantes que constituem o texto ficcional interagem de forma que o mundo artificial percebido através do mundo sócio-histórico ou da realidade SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 138 REVISTA SABERES LETRAS empírica e, em troca, essa passa a ser percebida através da ótica do mundo ficcionalizado (ISER, 1993, p. 226). Assim, escreve Iser: Selection opens up one area between the fields of reference and their distortion in the text; combination opens up another between interacting textual segments; and the ‘as-if’ opens up another between an empirical world and its transposition into a metaphor for what remains unsaid (ISER, 1993, p. 229). Esse não-dito citado por Iser é o que garante a emergência de um significado para a metáfora que a realidade ficcionalizada representa. Isso nos é relevante porque, de acordo com Rancière, “fingir não é propor engodos, porém elaborar estruturas inteligíveis” (RANCIÈRE, 2005, p. 53) e que, ainda por cima, nos permitam conceber o mundo empírico de forma antes impensável. O Marquês Anônimo: construtor de realidades Enfim é chegado o momento de nos debruçarmos sobre aquele que é o objeto principal deste nosso estudo: o Marquês Anônimo, apresentado, por Rubem Fonseca, como “amigo e colega de colégio de Molière” (FONSECA, 2000, p. 9) e o único personagem fictício de sua novela em uma lista na qual contatamos haver, de fato, diversos personagens históricos, alguns de grande expressão como o próprio Molière, e outros dramaturgos como Racine e Corneille, além dos também escritores La Fontaine, Boileau e La Rochefoucauld. Não há dúvida de que se trata de uma ironia do autor apresentar o Marquês Anônimo como o único personagem fictício de seu livro. No momento em que essas figuras históricas, dentre as quais aparecem, como já dissemos, personalidades importantes, são transportadas para um mundo ficcional criado por Rubem Fonseca através de seu Marquês Anônimo, que é na verdade quem narra e conseqüentemente cria esse mundo, tornam-se também elas personagens fictícios. O Marquês Anônimo, entretanto, nos é de particular interesse porque, como SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 139 narrador, é ele, único personagem fictício, quem nos apresenta os fatos narrados em seu livro, e segundo uma ótica bastante particular, como ele próprio o comenta na seguinte passagem: “Posso ser às vezes um pouco prolixo, impreciso, e talvez fale excessivamente da minha vida, mas isso me parece normal, em escritos dessa natura” (FONSECA, 2000, p. 16). Conforme afirma Antônio Cândido, “a personagem é mais lógica, embora não mais simples, que o ser vivo” (CANDIDO, 1998, p. 59). Essa lógica interna do Marquês Anônimo aparecerá mais claramente no momento em que estivermos analisando mais de perto os fatos narrados por ele. Por diversas vezes, o Marquês Anônimo mostrar-se-á mais preocupado consigo mesmo do que com o objeto de sua investigação, que é descobrir o assassino de Molière, o que nos leva a concordar mais uma vez com Antônio Cândido quando este afirma que: [...] enquanto na existência quotidiana nós quase nunca sabemos as causas, os motivos profundos da ação dos seres, no romance estes nos são desvendados pelo romancista, cuja função básica é, justamente, estabelecer e ilustrar o jogo das causas, descendo a profundidades reveladoras do espírito (CANDIDO, 1998, p. 66) Da mesma forma, as atitudes dos outros personagens são expostas de forma a trazerem à tona aquilo em que o Marquês Anônimo acredita, ou seja, que o mundo narrado por ele está contaminado por todo tipo de impostura, a começar por ele próprio. Assim, precisamos nos indagar também a respeito do anonimato do Marquês e de sua escolha por narrar sua investigação em forma de novela, pois que isso também nos ajudará a entender a configuração do real efetuada pelo Marquês. Jean Starobinski, quando comenta a pseudonímia de Stendhal, afirma que Lorsqu’un homme se masque ou se revêt d’un pseudonyme, nous nous sentons défiés. Cet homme se refuse à nous. En revanche nous voulons savoir, nous SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 140 REVISTA SABERES LETRAS entreprenons de le démasquer. Devant qui cherche-til à se dissimuler ? Devant quel Pouvoir a-t-il peur ? Quel Regard lui fait donc honte ? Nous demandons derechef : comment était fait son visage, pour qu’il ait eu besoin de le dissimuler ? et une nouvelle question s’enchaîne aux précédents : que veut dire ce nouveau visage dont il s’affuble, quelle signification donne-til à ses conduites masquées, quel personnage vientil maintenant simuler, après avoir dissimulé ce qui voulait disparaître ? (STAROBINSKI , 1999, p. 233, grifos do autor) Ainda que o nosso Marquês Anônimo não seja um personagem histórico como foi Stendhal, veremos que no decorrer de sua narrativa o próprio Marquês nos dará dicas sobre as razões que possivelmente o levaram à adoção do anonimato. As perguntas levantadas por Starobinski, portanto, orientarão a nossa leitura da novela no sentido de encontrarmos possíveis repostas para elas. Quanto à estruturação de sua narrativa em forma de novela, também isso nos pode revelar algo da natureza do que é narrado. Carlos Nelson Coutinho, em Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX, ao comentar as novelas de Kafka, diz o seguinte: Diferentemente do romance, que figura a universalidade de um período histórico na totalidade explicitada de suas mediações, na rica e polimórfica articulação de suas várias determinações objetivas, a novela ilumina a totalidade a partir da representação de um evento singular sintomático (COUTINHO, 2005, p. 152) Coutinho cita ainda Georg Lukács, para quem “A novela deveria assim compendiar a vida da sociedade através de um evento singular extraordinário, tomado como ponto focal” (LUKÁCS, apud COUTINHO, 2005, p. 153). Na narrativa do Marquês, podemos relacionar esse “evento singular sintomático” SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 141 ou “extraordinário” com a busca por um assassino, típico das narrativas policiais, mas que na novela do Marquês o interessante é perceber que a identidade do assassino não é o que importa em última instância, mas sim a configuração de um retrato de uma época que nos revela o cinismo da sociedade. O real e o fictício em O doente Molière A novela do Marquês Anônimo estrutura-se em quinze capítulos, além de um capítulo introdutório, intitulado Registros, no qual o Marquês se apresenta como “um marquês de ilustre estirpe, da melhor nobreza, mas não sou escritor, apenas um leitor constante de bons autores” (FONSECA, 2000, p. 15). É assim que o Marquês se nos apresenta: um dramaturgo frustrado, que queria ser como seu amigo Molière, e que chega até mesmo a escrever uma peça, uma tragédia, a qual leva a Racine para que este lhe dê seu parecer sobre ela. Após ler a peça do Marquês, Racine o desengana afirmando: “[...] escreva cartas ou diários, não existem regras nem é preciso talento para isso. Mas escrever para teatro, além de um dom especial, que você não tem, exige o conhecimento de inúmeros preceitos, que você ignora” (FONSECA, 2000, p. 15). Também Molière lê a peça do Marquês e, embora não seja tão incisivo quanto Racine, da mesma forma não lhe alimenta as esperanças. Logo, o Marquês se vê levado a desistir de ser artista e adota, por isso a frase de Montaigne “Minha arte e minha profissão é viver” (FONSECA, 2000, p. 16). Ao comentar a composição de sua novela, o Marquês diz o seguinte: “Selecionei alguns trechos das minhas anotações, para serem publicados anonimamente, como parte das minhas memórias” (FONSECA, 2000, p. 16); para o Marquês, esses trechos que selecionou estariam mais diretamente ligados ao objetivo de sua narrativa, que é mostrar como descobriu o assassino de Molière. Vemos destarte uma certa configuração subjetiva da trama a ser narrada: o Marquês seleciona os trechos aos quais teremos acesso e que, como veremos, revelarão mais da vida do Marquês do que da investigação por ele perpetrada. Vera Lúcia Follain de Figueiredo, em seu livro Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea, propõe que “os personagens-narradores, ao perceberem a impossibilidade de chegar à palavra original, elegem a interpretação, conferindo ao ato de narrar a tarefa de construção de uma versão SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 142 REVISTA SABERES LETRAS verossímil que substitui a verdade inatingível” (FIGUEIREDO, 2003, p. 45). É essa construção de uma verdade que encontraremos na narrativa do Marquês. Ele está cônscio de que todos do seu meio são como ele, apenas representam papéis, como Molière em suas peças e que por isso têm um outro lado de si a ser descoberto, o que conseqüentemente o levaria ao assassino. Na narrativa do Marquês, ficção e realidade imbricam-se de tal forma que o Marquês vai buscar nos textos de Molière, assim como na forma como estes foram recebidos pela sociedade da época, pistas que possivelmente irão levá-lo a descobrir o assassino. Deste modo, logo na abertura do primeiro capítulo, Uma profissão infame, temos um trecho de O doente imaginário, última peça escrita e encenada por Molière. Aqui também vemos as fronteiras entre realidade e ficção tornarem-se tênues: Molière faz o papel de Argan, o hipocondríaco que finge passar mal em cena; no entanto o próprio Molière não está se sentindo bem, o que somente o Marquês percebe. Molière morre naquela mesma noite, mas não antes de revelar ao Marquês que tinha sido envenenado. Tanto a esposa de Molière, Armande, quanto o Marquês saem em busca de um padre, mas todos os padres se recusam a acompanhá-lo. Como explica o próprio Marquês: “Meu título de marquês e meu nome ilustre de nada serviram” (FONSECA, 2000, p. 24); Molière era um comediante e, por isso, um excomungado, por exercer profissão tão infame, como já dissemos, quanto a prostituição, a usura ou a feitiçaria. O que nos intriga como leitores, e o próprio Marquês comentará isso mais tarde, são as razões que levaram tanto ele quanto Armande a procurarem um padre, e não um médico, uma vez que Molière não estava bem de saúde, mas não morto. Mais intrigante ainda é o Marquês ter guardado segredo daquilo que lhe fora revelado por Molière. Entretanto, no segundo capítulo, Segredos, segredos, o Marquês afirma que guardou segredo para se proteger, pois era amante de Armande (FONSECA, 2000, p. 31), e continua explicando: [...] todos sabem que os amantes matam discretamente os maridos a quem enganam, com veneno, ao contrário dos maridos, que, quando se contrariam ao serem enganados, o que é raro, matam com estardalhaço, pois a honra, para esses fanfarrões, tem que ser SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 143 lavada com sangue diante dos olhos do público, como a expiação do criminoso na praça. (FONSECA, 2000, p. 31) Evidentemente, o Marquês não estava disposto a fazer o papel de suspeito de assassinato, e como a morte de Molière fora atribuída ao rompimento de uma veia, causado, segundo os médicos, por violentos ataques de tosse (FONSECA, 2000, p. 31), seria melhor que essa continuasse exercendo o estatuto de verdade. Sentimos, no entanto, durante a leitura, que o Marquês sente culpa por algo que fez ou deixou de fazer, já que ele insiste em se nos apresentar como um amigo íntimo de Molière, e que exerceu um papel importante na ascensão deste com dramaturgo: Fui o primeiro leitor das petições que fez ao rei solicitando proteção, depois da proibição do Tartufo. Sempre o defendi dos ataques que sofreu, e intercedi para liberar suas peças. Obtive-lhe a proteção do príncipe de Conti, trabalhei para que depois conseguisse o amparo de Monsieur e finalmente o de Sua Majestade. Minha vida estava ligada à de Molière. Eu era seu amigo. (FONSECA, 2000, p. 35) Mas ao mesmo tempo o Marquês também se revela como uma pessoa pouco íntegra, segundo os valores da época, pois afirma não ter sentido remorso por ter sido amante da mulher de seu amigo, e se defende citando mais uma vez Michel de Montaigne, para quem o arrependimento seria “uma negação do nosso desejo e uma oposição às nossas fantasias” (FONSECA, 2000, p. 35). Além do mais, continua afirmando que todos cometiam adultério, “começando pelo nosso próprio bem-amado rei, que levava as amantes para residir no palácio e não podia ver mulher bonita sem cortejá-la” (FONSECA, 2000, p. 35) o que, para ele, certamente, diminuiria sua culpa. Para se retratar decide, então, encontrar o assassino de seu amigo Molière. Contudo, diz não ser possível fazer uso dos meios usuais de investigação porque não poderia se envolver diretamente no caso já que havia outros motivos para se esconder, os quais prefere não comentar e que, além disso, guardava um segredo atormentador cuja revelação poderia custar-lhe a vida (FONSECA, 2000, p.36). Assim, o Marquês narrador SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 144 REVISTA SABERES LETRAS manipula seus leitores: apresenta-se freqüentemente como uma pessoa vaidosa, sem escrúpulos, preocupada, sobretudo, com seus próprios interesses e, evidentemente, com a proteção de sua reputação e posição social. Já o capitulo seguinte, Um assunto do qual eu ainda não queria falar, aparenta não ter nenhuma ligação com o objetivo principal da narrativa do Marquês, que é encontrar o assassino de Molière. O próprio título que o Marquês dá ao capítulo já nos põe em alerta porque, se é de um assunto do qual ele não queria falar, então porque escrever? O capítulo narra a execução de Jean Hamelin, conhecido como La Chaussée, executado por ter envenenado, a mando da marquesa de Brinvilliers, os irmãos de sua senhora. A tal execução é descrita em detalhes pelo marquês: “O carrasco então, com uma barra de ferro, quebrou-lhe os ossos dos braços, dos antebraços, das coxas, das pernas e do peito. A cada golpe a multidão gritava exultante” (FONSECA, 2000, p. 39). Isso era feito por um carrasco experiente, “que tinha ordem de fazer render o suplício, de retardar a morte” (FONSECA, 2000, p. 39). Evidentemente esse capítulo não está aí por acaso: já sabemos que o Marquês narrador é uma pessoa da qual devemos desconfiar já que guarda segredos que colocam em risco sua vida. O risco de vida do qual o Marquês acabara de falar no capítulo anterior poderia se concretizar da forma como ele narra a execução de La Chaussée nesse capítulo. No quarto capítulo, Minha outra amante, misteriosa, capítulo o Marquês fala do seu receio quando à La Forest, cozinheira de Molière, pois tinha a impressão de que esta desconfiava de que ele era amante de Armande. O relacionamento dos dois começa a esfriar, provavelmente porque o Marquês tenha passado a sentir remorso, como ele próprio o admite: “Ir para cama com ela, agora que Molière estava morto, passara a ser uma traição à honra e à memória do meu amigo” (FONSECA, 2000, p. 47). Antes da morte de Molière, diz o Marquês, “sempre fora para a cama com Armande com a consciência tranqüila” (FONSECA, 2000, p. 43); a morte de Molière, contudo, fez com que este se interpusesse entre ele e Armande. Aqui também é introduzido um novo elemento na narrativa: o Marquês tem uma outra amante, por quem se diz “alucinadamente apaixonado” (FONSECA, 2000, p. 44), embora mantenha a identidade desta amante em segredo. Encontramos, SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 145 ainda, mais dados sobre o nosso narrador: em mais uma de suas digressões, freqüentes na sua narrativa, o Marquês escreve que “à medida que envelhecia, [se] tornava mais libidinoso” (FONSECA, 2000, p. 44), para em seguida narrar em detalhes a relação sexual que mantivera com Armande, ainda que estivesse apaixonado por outra. Mais uma vez o Marquês narrador revela-se uma pessoa hipócrita e dissimulada, preocupado, acima de tudo, consigo mesmo. Quando indagado por Armande a respeito do sigilo quanto à relação deles, ele afirma ter “razões para ser prudente” (FONSECA, 2000, p. 46) embora não as nomeie, e acaba por lhe revelar a confissão de Molière, ocultando-lhe, no entanto, a existência de uma outra amante. Para o Marquês, Molière era um “falso doente, como eram falsos todos os seus personagens doentes”, e conclui: “Argan era ele, Alceste era ele, Arnolphe era ele, Harpagon, Tartufo, Ariste, Mascarille, Monsieur Jordan, George Dandin, todos os seus personagens, por mais paradoxal que possa parecer, de certa forma eram ele” (FONSECA, 2000, p. 47). Assim, Molière traria em a semente de cada uma das mazelas a que seus personagens davam vida e deveria ser punido por isso. Evidentemente essa não é a opinião do Marquês narrador, que vê Molière como um grande homem e excelente dramaturgo. A identificação do autor com seus personagens, dentro do mundo da novela, faz com que a vilania de Molière, apontada por várias das classes criticadas por ele, aumente consideravelmente. Em vez de receberem as peças de Molière como obras que faziam saltar aos olhos os males de uma sociedade hipócrita através de caricaturas de indivíduos e não de uma classe, conforme demonstrou Auerbach, parte do público sentia-se diretamente tocada exatamente por verem a si mesmos retratados naqueles personagens. Neste momento, o Marquês começa a enxergar os possíveis assassinos de Molière, e vemos que ele encontra suas pistas nas próprias peças do comediante bem como nos indivíduos que eram mais diretamente tocados por aquelas peças: Pela minha cabeça passava a imagem sem rosto de uma preciosa ridícula, um burguês gentil-homem, um padre, um fanático religioso, um nobre ofendido, um autor consumido pela inveja e mesmo um ator rancoroso, todos segurando um frasco de veneno. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 146 REVISTA SABERES LETRAS (FONSECA, 2000, p. 51). Essa é a razão pela qual no capítulo quinto, Os salões das preciosas ridículas – e das não ridículas, e nos três capítulos seguintes, o Marquês narrador utilizará cenas das peças de Molière para introduzir na sua narrativa aquele que parece ser, de fato, o maior achado da novela: o retrato de uma sociedade que vive de aparências. O capítulo quinto é aberto com uma cena de As preciosas ridículas, comédia que, segundo Gassner, “desfechou o golpe de morte no culto mais em voga na corte” e cujas “defensoras ainda eram suficientemente poderosas para fazerem sentir a sua ira” (GASSNER, 2002, p. 338). Molière, então, se defende, segundo a narrativa do Marquês, afirmando atacar não todas as preciosas, mas somente as ridículas, ou seja, as imitadoras burguesas. Todavia, o marquês admite que Molière atacava diretamente as duas famosas: Madame Rambouillet e Madame Scudéry (FONSECA, 2000, p. 57). Neste capítulo o Marquês faz visitas a alguns dos famosos salões para ver se Molière ainda era suficientemente odiado para que suas suspeitas recaíssem com maior vigor sobre uma das preciosas. Mas, como afirma o próprio Marquês, pouco tempo após a primeira apresentação da pela ninguém mais se escandalizava com a sátira de Molière. Relembrando a pouca indignação das pessoas supostamente ofendidas que entrevistara nos salões, concluí que ninguém daquele mundo envenenaria ou mandaria envenenar o meu amigo. Podia, sem susto, suprimir do meu rol de suspeitos uma preciosa ridícula (FONSECA, 2000, p. 66) O sexto capítulo traz um dos personagens mais marcantes de Molière: Tartufo. A cena escolhida pelo Marquês é aquela em que Orgon descreve como encontrou Tartufo e como se compadeceu dele, já que este parecia um exemplo de pessoa devota. Entretanto, assevera o Marquês, SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 147 [...] ele é um charlatão, um libidinoso, um hipócrita que com suas tiradas santimônias retrata a beatice, o fanatismo e a intolerância que preponderam no meio religioso. Em minha opinião, beatos e padres da Igreja, em sua maioria, são verdadeiros tartufos”(FONSECA, 2000, p. 70). Dentre as peças de Molière, esta foi, certamente, a mais atacada e critica, principalmente pelo clero, que via ali uma ridicularização da vida piedosa. Por isso, conclui o Marquês, “Não seria nenhuma surpresa se o assassino de Molière fosse um religioso fanático” (FONSECA, 2000, p. 73), pois “eles se viram no Tartufo, são os maiores hipócritas, posso afirmar por conhecimento próprio, usam como ninguém o nome de Deus para encobrir suas patifarias” (FONSECA, 2000, p. 74) Na busca por um suspeito, vai até a casa de seu pai, que fora um membro do Santíssimo Sacramento. Aqui, em um parêntese aberto pelo Marquês, este comenta sua vida ímpia com amantes e amigos heréticos e principalmente seu agnosticismo, que tanto incomodava a seu pai, mais até do que o fato do Marquês não estar casado, e conclui, “sim, eu também era uma espécie de tartufo” (FONSECA, 2000, p. 74). A ironia deste capítulo parece residir no fato de que o Marquês acaba percebendo que também não fora nenhum clérigo que mandara envenenar Molière, já que o sr. Couthon, seu suspeito, pois era clérigo e vizinho de Molière, além do que viu os últimos momentos daquele, se não estava sendo sincero nas suas palavras, não deixava isso transparecer: “confesso que não consegui julgar se Couthon estava sendo ardiloso de alguma forma” (FONSECA, 2000, p. 76). Logo, ficamos sabendo não só que o próprio Marquês se considera um tartufo, mais até do que o clérigo por ele entrevistado, como passamos a ter indícios mais fortes da incompetência dele como investigador. Também o capítulo seguinte, Dom Juan, o pecador irresistível, está às voltas com o tema da hipocrisia. É notável, aqui, a sinceridade do Marquês para consigo mesmo, ao comentar suas conclusões sobre a hipocrisia após assistir Dom Juan: SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 148 REVISTA SABERES LETRAS Na verdade somos todos hipócritas, e a falsa devoção é uma das suas formas mais comuns. Levamos uma vida corrupta e egoísta, membros da nobreza, da burguesia, da magistratura, do clero, das profissões, do comércio, até mesmo os camponeses, mas não deixamos de praticar a religião, de confessar, com falsa contrição, as nossas perversidades, as nossas ignomínias, os nossos pecados, para depois poder praticá-los, em segredo, novamente (FONSECA, 2000, p. 84). Todavia, e diferentemente dos outros, neste capítulo o Marquês não está atrás de nenhum suspeito, parecendo servir, ao contrário, para reforçar a dissimulação presente em todos os momentos da novela. Já no oitavo capítulo, Sangria, clister e vomitório, uma longa cena de O amor médico é descrita com o intuito de demonstrar a inaptidão e a charlatanice dos médicos, tema recorrente na produção de Molière. Nesta peça, afirma o Marquês, “cinco médicos charlatães são chamados. Eles representariam, como todo mundo acabou percebendo, os doutores mais conhecidos da França” (FONSECA, 2000, p. 89). De acordo com Gassner, O amor médico “desferia alguns dardos afiados aos pretensiosos médicos profissionais da época”, além de ser a obra na qual Molière “denunciava seu jargão pseudocientífico e sua incompetência cuidadosamente oculta” (GASSNER, 2002, p. 343). Evidentemente, por causa desta peça, e de muitas outras como O doente imaginário, o Marquês foi capaz de encontrar razões para suspeitar da classe médica: “Por que não um médico? Eles são responsáveis por tantas mortes que mais uma não pesaria em suas consciências” (FONSECA, 2000, p. 90); e continua afirmando que “Molière tinha saúde fraca, mas não sofria de nenhuma doença grave – isso é uma mentira que virou verdade, de tanto ser repetida” (FONSECA, 2000, p. 90). Por isso, o Marquês decide conversar o outrora médico de Molière, dr. Mauvillan. Este, contudo, impacienta-se com as argüições insinuadoras do Marquês e retira-se. Este então conclui que “apesar de sabidamente contrário aos médicos antiquados retratados por Molière e de sempre ter demonstrado cuidados com o meu amigo, o dr. Mauvillan era um dos suspeitos de ter envenenado o SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 149 comediante” (FONSECA, 2000, p. 91). O nono capítulo, O labirinto, traz mais um dado interessante a respeito da narrativa do Marquês, pois este admite ter que “confessar que nada fizera de realmente útil para a descoberta do assassino” (FONSECA, 2000, p. 95). É bem verdade que tem uma lista de suspeitos, na qual constam dr. Mauvillan, Armande, La Forest, Baron o ator, abade Roullé e o sr. Couthon. No entanto, descarta La Forest porque a cozinheira era a única pessoa da casa a quem Molière tratava quase sempre bem. (FONSECA, 2000, p. 96). Quanto a Armande, esta “era muito interesseira, e as pessoas interesseiras não cometem desatinos que as prejudiquem” (FONSECA, 2000, p. 96), mas nos alerta dizendo que guarda dúvidas quanto à inocência de Armande. Mostra-se também incerto quanto ao que pensar de Baron, o ator, já que este “tratava Molière com o carinho que um filho devota ao próprio pai. Mas, para um ator, fingir afeto e dissimular ódio é fácil. Baron era rancoroso e vivia brigando, ou fingindo que brigava, com Armande” (FONSECA, 2000, p. 97). O sr. Couthon já havia sido descartado pelo Marquês quando este admite sua inépcia em perceber se o clérigo estava fingindo ou não. O único que figura estranhamente na lista é o abade Roullé, pois Marquês não explica o porquê de sua inclusão; contudo, trata-se de um membro do clero, logo, um suspeito. Em seguida, embora dissimuladamente, o Marquês reafirma o seu caráter inescrupuloso e, em vez de dedicar-se com mais afinco no intuito de descobrir o assassino de Molière, diz pra si mesmo “que a vida é mais importante que a morte, que precisava esquecer as [suas] angústias. E que lugar melhor para isso do que a agitação fútil dos salões?” (FONSECA, 2000, p. 98). Esta é a deixa que o Marquês precisava para narrar mais um de seus casos libertinos, agora com a Madame de Sévigné, a qual lhe revela que outra de suas amantes, a Marquesa de Brinvilliers, estava presa, acusada de ter matado o pai e os dois irmãos. Só então ficamos sabendo o porquê do medo do Marquês em se ver envolvido com casos de envenenamento e de ter guardado segredo sobre a morte de Molière. Esse porquê nos é revelado no capítulo seguinte, Algumas palavras sobre um amor desvairado, que é aberto por uma reflexão do Marquês sobre o pensamento de Montaigne, em que aquele reconhece, mais abertamente, a sua já comentada libertinagem: “Meu mestre Michel de Montaigne aconselha a fugir da volúpia, ainda que nos custe a vida, mas eu sempre me entreguei cegamente SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 150 REVISTA SABERES LETRAS aos prazeres lascivos” (FONSECA, 2000, p. 105). Segue-se então uma descrição de Marie-Madeleine d’Aubray, marquesa de Brinvilliers, e do relacionamento que o Marquês mantivera com ela. Segundo o Marquês, essa seria a mulher que amara loucamente, e por quem seria capaz de qualquer desatino (FONSECA, 2000, p. 106). Só depois de nos informar sobre quem era Marie-Madeleine e sobre seu relacionamento com ela que o Marquês assegura ser possível comentar o porquê de ter deixado Molière morrer sem socorro médico: Posso agora revelar que o medo em que vivia, de ser de alguma maneira envolvido no caso Brinvilliers, foi o principal motivo pelo qual deixei o meu amigo Molière morrer sem socorro médico. Eu não podia levantar suspeitas que ligassem o meu nome a mortes por envenenamento. Se eu fosse considerado cúmplice de Marie-Madeleine não teria como escapar da condenação à morte. (FONSECA, 2000, p. 106). O capítulo seguite, La Reynie, reforça a tese de que o Marquês mantém, durante toda a narrativa, uma preocupação maior consigo mesmo e com sua reputação do que com a identidade do assassino de seu amigo Molière. Aqui vemos uma conversa do Marquês com o magistrado La Reynie a respeito da prisão de Marie-Madeleine, prisão essa que poderia ter resultados funestos para o Marquês, caso ele fosse de alguma forma considerado cúmplice de assassinato. (FONSECA, 2000, p. 109). No entanto, o marquês é inocentado pela marquesa, que o considerava um ingênuo que a tratava como uma deusa. Isso traz uma sensação de alívio para ele, e o que veremos nos capítulos seguintes é a investigação ser relegada a um segundo plano para que o Marquês comente, em Breve nota sobre a execução de Marie-Madeleine, a execução desta, narrada em detalhes, à qual ele fora assistir. Em seguida, percebemos como a execução da marquesa de Brinvilliers serviu pelo menos para fazer com que o Marquês assuma seu remorso quanto a ter abandonado Molière: Vê-la ser purificada de seus pecados por meio do arrependimento e da morte? Que força desumana me emprestava aquela coragem? Até hoje não sei explicar SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 151 e sofro por isso, como sofro ao pensar quão covarde fui ao abandonar Molière enquanto ele agonizava” (FONSECA, 2000, p. 119). O abandono temporário da investigação também servirá, veremos, para que nos aprofundemos melhor na figura do Marquês, o que é mais evidente no capítulo seguinte, Anos de melancolia. Surpreende-nos logo o título: foram anos de melancolia, não dias ou meses. Se até o momento não havíamos tido nenhuma informação a respeito da duração da investigação, logo ficaremos sabendo por quanto tempo esta se arrastou. Neste capítulo, o marquês relata ter-se entregado ao sofrimento após a morte de Marie-Madeleine, e percebe que esse tipo de rendição não é uma “particularidade feminina” e que “nenhum homem está livre de um dia ter, não importa o motivo, a sua alma assolada por uma angústia que torna a sua existência insuportável” (FONSECA, 2000, p. 123). E finalmente vemos um Marquês arrependido e culpando-se do que se sucedera às suas amantes, Armande e Marie-Madeleine, assim como da morte de seu amigo, além de outras vilanias: Era culpado por Armande ter se corrompido, por ter se casado com um ator medíocre; culpado por não ter ajudado Marie-Madeleine a se livrar da maldade que a pervertia; culpado por ter tratado com hipócrita condescendência mulheres que de fato desprezava; culpado por ter deixado Molière morrer abandonado. Pensei em morrer. Lembrei-me de um pensamento de Montaigne que diz ser a morte voluntária a mais bela; a vida depende da vontade de outrem, a morte, da nossa (FONSECA, 2000, p. 124). O Marquês vai então buscar auxílio naquele que considera seu mestre, Michel de Montaigne, mas só então, depois de ter aprendido com sua experiência, é capaz de perceber que também Montaigne nada mais era do que um homem, não melhor do que qualquer outro: SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 152 REVISTA SABERES LETRAS Percebi, enquanto relia o seu livro, que o grande pensador era contraditório, tinha dúvidas, não era imune ao sofrimento, e mais: tinha preconceitos, era injusto nos seus julgamentos, tinha suas fraquezas e imperfeições, mas sabia que isso não o tornava menos humano e digno (FONSECA, 2000, p. 124). Só então o Marquês sente suas forças serem renovadas, quando fora capaz de perceber que mesmo um grande homem como Montaigne também cometia lá suas injustiças e tinha suas fraquezas e imperfeições. Entendemos, com isso, que o Marquês tenha encontrado aí alento para superar suas angústias, pois aquela leitura de Montaigne o fizera perceber que não havia motivos para recriminarse por causa de suas desvirtudes. Por fim, no décimo quarto capítulo, Quem matou Molière, ficamos sabendo não só a identidade daquele que envenenou o dramaturgo, como também vemos o Marquês admitir sua inépcia como investigador, quando este afirma que “jamais poderia desempenhar uma função como a de La Reynie, pois falta-me a capacidade de estabelecer os nexos mais simples entre dados disponíveis para a decifração de um enigma” (FONSECA, 2000, p.129). É exatamente isso que vimos durante a sua narrativa: um investigador incapaz de fazer as perguntas corretas e de relacionar os fatos e evidências que colhe para levá-lo até o assassino. Entretanto, escusado é lembrar que foi justamente essa inépcia do Marquês que nos permitiu, leitores, acesso àquilo que, deveras, acaba se tornado o cerne da narrativa: a descrição da hipocrisia e falsidades da sociedade do século XVIII que não diferem muito daquelas de nossa época. Com o pretexto de tentar resolver sua situação amorosa com Armande, o Marquês faz uma visita à madame Voisin, a quem pergunta se ela havia vendido veneno a alguém interessado na morte de Molière, informação pela qual o Marquês estava disposto a pagar. Como era de se esperar, a resposta foi negativa. Evidentemente, ninguém em sã consciência se incriminaria de tal forma. Quando o Marquês resolve fazer uma nova visita à madame Voisin, fica sabendo que esta fora encarcerada por La Reynie após este ter descoberto o envolvimento dela com diversas mortes por envenenamento. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 153 O Marquês vai novamente então à procura de La Reynie, a quem revela o que se passara no dia da morte de Molière com o intuito de obter do magistrado alguma informação que o levasse ao assassino. Todavia, quando do interrogatório de mandame Voisin efetuado por La Reynie, nada referente à morte de Molière é mencionado, e só então ficamos sabendo que já transcorreram quase seis anos desde que Molière fora morto (FONSECA, 2000, p. 132). Após muita insistência, o Marquês consegue uma entrevista com a madame Voisin e esta lhe conta que quem envenenara Molière fora La Forest, a cozinheira, o que desaponta o Marquês: “A assassina ser uma cozinheira tirava a paixão, a grandeza, até mesmo o horror que aquele crime devia conter. Um homem como Molière merecia ter como assassino o próprio rei” (FONSECA, 2000, p. 134) Contudo, nos é revelado no último capítulo, Os verdadeiros culpados, que se La Forest envenenou Molière, isso se deu graças ao mando da classe médica. Ao ser presa, La Forest revela que fora o dr. d’Aquin, o médico do rei, junto com os mais célebres doutores de Paris, que mandara envenenar Molière. Como não poderiam encarcerar os médicos mais ilustres da capital francesa, “uma lettre de cachet recolheu La Forest a uma masmorra e nunca mais se ouviu falar dela” (FONSECA, 2000, p. 139). Ainda, como as investigações de La Reynie estavam indo fundo demais, atingindo pessoas da alta sociedade, os processos foram arquivados e foram emitidas lettres de cachet, documentos que serviam para encarcerar, a mando do rei, e por tempo indeterminado, as pessoas cujas culpas já haviam sido comprovadas. O que se depreende dessa situação é a incapacidade de uma sociedade de lidar com suas imperfeições, e que por isso precisa de subterfúgios para manter as aparências. Enfim, e bastante irônico, o Marquês revela não freqüentar mais os salões, embora não os tenha trocado por igrejas, pois não quer tornar-se “um desses velhos que, com medo da morte, arrependidos com o que fizeram de sua vida, por covardia ou esperteza indigna, passam a freqüentar as igrejas com um terço na mão” (FONSECA, 2000, p. 139). Forçoso é reconhecer, no entanto, que mesmo que o Marquês tenha admitido ser também um tartufo, não o é tanto quanto outros descritos por ele, já que não faz questão de disfarçar sua tartufice para seus leitores. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 154 REVISTA SABERES LETRAS Algumas palavras finais Nesse breve percurso, pudemos perceber que se a narrativa do Marquês tem vernizes de uma novela policial, não se atém lealmente ao gênero. É bem verdade que encontramos ali as duas histórias que tipificam a narrativa policial que, segundo Tzvetan Todorov, são a história do crime e a história do inquérito, que não mantém nenhum ponto em comum (TODOROV, 2003, p. 96). Além do mais, na investigação efetuada pelo Marquês, não pudemos recolher indícios que nos levassem ao culpado. Este, na verdade, é descoberto como que por acaso, e somente graças à confissão de alguém que estava envolvido no crime. Lembremos também que na novela de Rubem Fonseca, a história do inquérito é que nos chama mais atenção, pois é a partir dela que somos levados a tomar consciência da hipocrisia da sociedade preocupada em manter as aparências, o que é contrário à classificação de Todorov, segundo a qual a história do inquérito “não tem nenhuma importância em si mesma, que serve somente de mediadora entre o leitor e a história do crime” (TODOROV, 2003, p. 97). Assim, fica evidente que a narrativa policial de Fonseca desrespeita as regras de S. S. Van Dine, citadas e condensadas por Todorov (2003, p. 101): La Forest não é a única culpada pela morte de Molière, uma vez que matou a mando de outros, e que todos os ridicularizados por ele, de certa forma, desejavam sua morte; La Forest não mata por razões pessoais, embora não seja uma profissional; La Forest não goza de nenhuma importância, é uma empregada doméstica, e não é uma das personagens principais; a investigação do Marquês não nos conduz racionalmente ao culpado, ainda que no final sejamos obrigados a aceitar o desfecho como verossímil; divagações e análises psicológicas são abundantes na novela; por fim, o acaso da solução acaba por banalizá-la. Todavia, entendemos que é justamente essa não-conformação às regras do gênero que fazem da novela de Rubem Fonseca uma obra de grande interesse, pois está perfeitamente de acordo com o que escreve Vera Lúcia Follain de Figueiredo, em seu livro Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea, a respeito da narrativa policial contemporânea: A melhor ficção policial contemporânea recorre, então, à convenção do gênero com uma dupla finalidade. De um lado aproveita o que, já na narrativa de enigma do século 19, apontava para a verdade como uma SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 155 construção realizada a partir de uma combinatória de dados. De outro, corrói a confiança nas estruturas seqüenciais que, identificadas com a própria linha de raciocínio, com a forma própria da razão, acabavam por ordenar a busca da verdade num discurso fechado, que eliminava as probabilidades e abolia o acaso (FIGUEIREDO, 2003, p. 15). A novela de Rubem Fonseca aponta justamente para esse estatuto relativizado da verdade histórica, assim como para a impossibilidade de apreensão objetiva do real. Ficamos constantemente inseguros quanto à veracidade, dentro do universo da narrativa, do que está sendo narrado, uma vez que o próprio narrador freqüentemente nos adverte e nos dá prova da subjetividade e da parcialidade daquilo que narra. Pudemos confirmar, ainda, no que foi descrito mais acima, aquilo que Vera Lúcia escreve no trecho a seguir: O crime cometido pelos personagens é, ao mesmo tempo, o pretexto (no sentido de que mascara, encobre o verdadeiro motivo) e o ‘pré-texto’ sobre o qual se dobra o texto que o interpreta – por isso, quando bem arquitetado, aproxima-se da obra de arte, como já antevira Thomas Quincey (FIGUEIREDO, 2003, p. 15). Eis a razão pela qual não consideramos que a propósito maior da investigação, no universo da novela, não seja encontrar o culpado, mas utilizar isso como um pretexto para que o leitor tenha acesso a uma visão configurada de uma realidade que se faz perceber mais fortemente. Por fim, quanto ao anonimato do Marquês, acreditamos agora estar em condições de avaliar melhor as razões para que ele se esconda de nós, leitores, ao organizar suas reminiscências. Vera Lúcia explica que “o Marquês também assume várias máscaras e daí explica-se o fato de ele não ter nome próprio” (FIGUEIREDO, 2003, p. 66), ou seja, ele, como Molière, estaria simplesmente representando vários papéis, tornando-se, por isso, nada mais que um hipócrita, SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 156 REVISTA SABERES LETRAS termo que pode ser lido tanto na sua acepção grega quanto na moderna. Embora não discorde desta opinião, acredito que ainda outras razões tenham levado o Marquês ao anonimato: lembremos que, a todo o momento, ele se mostra um homem medroso, que teme pela própria reputação mais do que está interessado em descobrir a identidade do assassino; lembremos, ainda, que ele fora amante de uma marquesa condenada à morte e que, por isso, temia ser ligado, ainda que indiretamente, aos crimes cometidos por ela. Além do mais, o Marquês foi amante de Armande, esposa de Molière, a qual, sendo uma atriz, não era bem vista pela sociedade de então. Desta forma, conclui-se que o Marquês certamente tinha uma reputação pela qual prezar e que não queria deixar que sua vida sórdida e hipócrita, a qual ele assume abertamente porque está sob a máscara do anonimato, a manchasse. Referências AUERBACH, Erich. Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. CÂNDIDO, Antônio. A personagem do romance. In: CÂNDIDO, Antônio. et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1998. COUTINHO, Carlos Nelson. Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005 FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. FONSECA, Rubem. O doente Molière. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. GASSNER, John. Mestres do teatro I. Tradução de Alberto Guzik. São Paulo: Perspectiva, 2002. ISER, Wolfgang. The fictive and the imaginary: charting literary anthropology. Baltimore: John Hopkins University Press, 1993. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2005. STAROBINSKI, Jean. L’oeil vivant: Corneille, Racine, La Bruyère, Rousseau, SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 157 Stendhal. Paris : Éditions Gallimard, 1999. TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: ______. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2003. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 134 a 157 set. / dez. 2012 158 REVISTA SABERES LETRAS Estudos sobre Ensino REVISTA SABERES LETRAS 159 PRODUÇÃO DE TEXTOS em sala de aula: uma reflexão em torno da escrita e reescrita de textos Janayna Bertollo Cozer Casotti1* Resumo: Neste artigo, propõe-se uma reflexão sobre o percurso que compreende a proposta de produção, a escrita e a reescrita de textos em sala de aula. Nesse sentido, parte-se da concepção de produção textual como atividade transitiva, que envolve um dado interlocutor, objetivos determinados e também um gênero. Conforme Rangel (2011, p. 60), “escrevemos em situações de comunicação bastante precisas, capazes de balizar o quê e o como dizer, assim como o para quem o diremos”. Dessa maneira, sob a ótica da Linguística Aplicada, em interface com a Análise do Discurso e a Linguística Textual, serão analisadas produções textuais de alunos, em contexto específico de manifestação da opinião. Entendendo a opinião como um ato de linguagem que se vincula a uma situação concreta e também como uma forma de ação “interindividual finalisticamente orientada” (Koch, 2000, p. 9), considera-se importante verificar o que este percurso que vai da proposta à reescrita de textos pode significar tanto para o professor quanto para o aluno. Palavras-chave: Produção de textos. Situação de comunicação. Reescrita. Abstract: This article aims at reflecting on a route that includes the proposal of production, writing and the rewriting of texts in the classroom. In this sense, writing is assumed as a transitive activity involving a particular party, with determined objectives and also a certain genre. According to Rangel (2011, p 60), “we write in quite accurate communication situations which are able to delimit what and how to say something, as well as to whom we will address it.” Thus, from the point of view of Applied Linguistics, interfaced with Discourse Analysis and Textual Linguistics, students’ textual productions in a specific context where they express their opinion will be analyzed. Understanding the * CASOTTI, Janayna Bertollo Cozer. Departamento de Línguas e Letras, Universidade Federal do Espírito Santo, UFES, Vitória, Espírito Santo, Brasil, [email protected]. br SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 160 REVISTA SABERES LETRAS opinion as an act of language that binds to a specific situation and also as a form of an “interindividual finalistically oriented” action (Koch, 2000, p. 9), not to mention that it is important to verify what the proposed route, which includes the presentation of the activity itself and its rewriting, may mean both to teacher and student. Keywords: Production of texts. Communication situation. Rewriting. Considerações iniciais Este artigo tem como objetivo dar continuidade a uma pesquisa que vem sendo realizada sobre produção de textos em sala de aula, numa proposta de reflexão em torno da escrita e da reescrita de textos. Dessa forma, retomaremos aspectos teóricos necessários à compreensão da situação do ensino de produção textual para, em seguida, procedermos à análise de textos escritos por alunos, em contexto específico de manifestação da opinião. Bem sabemos que as demandas sociais têm exigido do cidadão uma postura que vá além da simples observação dos fatos. Hoje, é realmente necessário que o sujeito se mostre capaz de analisar criticamente a sua realidade social e que, por meio da linguagem, possa intervir nela, exercendo, assim, plenamente a sua cidadania. Dessa forma, é fato que a escola tem um importante papel, uma vez que colabora para a construção dessa postura crítica e atuante. Nesse sentido, os PCN’s (1997, p. 25) defendem que uma “educação verdadeiramente comprometida com o exercício da cidadania precisa criar condições para o desenvolvimento da capacidade de uso eficaz da linguagem que satisfaça necessidades pessoais”. Portanto, entendendo a leitura e a produção de textos como atividades de linguagem que possibilitam essa participação social plena, pretendemos, neste artigo, refletir sobre o percurso que compreende a proposta de produção, a escrita e a reescrita de textos de opinião em sala de aula. Assim, sob a ótica da Linguística Aplicada, em interface com a Análise do Discurso e a Linguística Textual, analisaremos dois textos produzidos por alunos, procurando reconhecer neles o trabalho que se realiza por meio da linguagem. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 161 Ensino de produção de textos na escola Hoje acreditamos que a produção de textos pode funcionar como princípio organizador da prática de leitura e também da atividade de reflexão sobre língua e linguagem. Por essa razão, concordamos com Possenti (2001), quando diz que o ensino de língua materna consiste na produção textual. Para o domínio da norma culta padrão, o caminho é a produção linguística do aluno e não a análise gramatical pura e simples: Na escola, as práticas mais relevantes serão, portanto, escrever e ler. Claro que se falará às pampas na escola, e, portanto, se ouvirá na mesma proporção (um pouco menos, um pouco mais...). Mas, dado o projeto da escola, ler e escrever são as atividades importantes. Como aprendemos a falar? Falando e ouvindo. Como aprenderemos a escrever? Escrevendo e lendo, e sendo corrigidos, e reescrevendo, e tendo nossos textos lidos e comentados muitas vezes, com uma frequência semelhante à frequência da fala e das correções da fala. (POSSENTI, 2001, p. 48) No entanto, no ensino de língua, durante muito tempo, não era isso que acontecia. Do final do século XVIII a meados do século XIX, o enfoque estava no trabalho com regras da gramática normativa e na leitura como decodificação ou memorização de textos literários. Somente indiretamente associava-se o ensino de gramática e literatura à aprendizagem de produção textual. Meserani (2001, p. 15) afirma que não se observavam “vínculos imediatos, relações causais determinadas. Se o aluno não escrevesse bem, mas mostrasse ter decorado os pontos do programa de literatura, seria avaliado por este conhecimento e não por sua redação”. Assim, a produção de texto poderia (ou não) ser resultado de um trabalho com a gramática e com a literatura. O ensino sistemático da produção de textos se iniciará no contexto das disciplinas de retórica, poética e literatura nacional, com a famosa composição, texto escrito por alunos das séries finais do ensino secundário, como imitação dos modelos provenientes das obras-primas nacionais. Como podemos ver, a produção SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 162 REVISTA SABERES LETRAS escrita, naquele momento, era entendida como texto-produto, resultado de muita leitura, do bom desempenho na fala e do pensar logicamente, pressupostos para a boa redação. Essa abordagem, de acordo com Bunzen (2006, p. 143), “voltada essencialmente para a formação literária e propedêutica, nos acompanha até hoje, mesmo depois da eliminação das disciplinas retórica e poética do currículo em 1890!”. Por causa disso precisamos repensar a concepção de ensino de língua e, consequentemente, de ensino de leitura e produção textual. Na década de 60/70, mesmo com a inovação trazida pelo incentivo à criatividade do aluno na escrita e também pelas primeiras modificações relacionadas aos objetivos e à metodologia de ensino, propostas pela Lei de Diretrizes e Bases, em 1971, a concepção de língua como código acaba se mantendo. Assim, o texto é entendido como [...] uma mensagem que contém um significado e que precisa ser decodificada pelo receptor. A língua é vista como um ‘arco-íris imóvel’ (Bakhtin/Volochinov, 1929), isto é, um conjunto de sinais com normas fixas que precisam ser decodificados para que ocorra a compreensão, ou a decodificação. Nessa direção, produzir um texto é submeter uma mensagem a uma codificação, o que é, em certo sentido, uma visão bastante reducionista da própria interação verbal, seja escrita ou oral, pois observa a língua de forma monológica e a-histórica. (BUNZEN, 2006, p. 145) Além disso, na década de 70, a estratégia da política educacional brasileira, para tentar resolver o problema do desempenho dos alunos em produção de textos, foi tornar obrigatória a prova de redação nos exames de ingresso ao ensino superior. No entanto, os resultados obtidos só acentuaram as preocupações em relação à prática de produção textual. De acordo com o último relatório pedagógico do Enem, por exemplo, em 2007, a média geral obtida na produção escrita foi de 55,99. Além disso, metade dos alunos obteve nota igual ou inferior a 57,50 e somente 5% atingiram nota igual SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 163 ou superior a 77,50. Como podemos ver, os números acabam confirmando que a obrigatoriedade de uma avaliação não garante proficiência em produção textual. Avaliações em larga escala não resolvem - é bem verdade - os problemas de leitura e escrita dos alunos. Todavia, elas sinalizam a premência de se refletir sobre isso. É nesse sentido que a Linguística Aplicada, tal como aponta Moita Lopes (1996, p. 22), contribui sobremaneira, uma vez que se volta a questões relacionadas ao uso da linguagem em sala de aula. O objetivo deste trabalho é, portanto, investigar o percurso envolvido na prática de escrita de textos de opinião em sala de aula, considerando a produção textual na perspectiva do gênero. Por isso, trataremos, na próxima seção, da importância da noção gênero textual. A importância dos gêneros textuais Entendendo a linguagem como interação social, que se realiza, muitas vezes, sob a forma de enunciados orais ou escritos, enfatizaremos, aqui, as contribuições de Bakhtin (1999) no que diz respeito à noção de gênero. Segundo o teórico, cada enunciado produzido reflete as condições e as finalidades das esferas de comunicação [...] não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais -, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundemse indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2000, p. 279). SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 164 REVISTA SABERES LETRAS Ao tratar do enunciado como unidade real da comunicação verbal, Bakhtin aponta três elementos responsáveis pela constituição dos gêneros: o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional. O primeiro elemento, o conteúdo temático, designa aquilo de que se fala no enunciado, sendo necessariamente veiculado por certa construção composicional e realizando-se linguisticamente de acordo com o estilo do locutor. Conforme Bakhtin, o tratamento exaustivo desse conteúdo temático varia de acordo com a esfera de comunicação verbal: pode ser quase total em uma esfera e relativo em outra, devendo haver sempre um mínimo de acabamento como forma de provocar, no dizer de Bakhtin, uma atitude responsiva do interlocutor. (Cf. Bakhtin, 2000, p. 299-300). Já o segundo elemento, o estilo, remete a questões de seleção: recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais, os quais auxiliam na identificação do escopo intencional do locutor. Uma ampliação do conceito de escopo intencional é o que Bakhtin chama de intuito discursivo ou o querer-dizer do locutor. É preciso estar, portanto, diretamente implicado numa comunicação, conhecer a situação e os enunciados anteriores para captar tal intuito. Não é difícil entender que o enunciado, em qualquer esfera de comunicação, por ser individual, reflete a individualidade do locutor e, assim, apresenta um estilo individual. Há gêneros – como os literários – de cujo empreendimento enunciativo esse estilo individual faz parte. Mas também há os que são menos propensos a refletir tal individualidade, por possuírem estrutura mais rígida, como, por exemplo, os documentos oficiais. E embora existam gêneros assim, é fato que o estilo linguístico ou funcional, que Bakhtin (2000, p. 283) determina como “o estilo de um gênero peculiar a uma dada esfera da atividade e da comunicação humana”, apresenta um vínculo indissolúvel com o enunciado. Para Bakhtin, esse estilo vincula-se [...] a unidades temáticas determinadas e, o que é particularmente importante, a unidades composicionais: tipo de estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal (relação com o ouvinte, ou com o leitor, com o interlocutor, com o SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 165 discurso do outro, etc.). O estilo entra como elemento na unidade de gênero de um enunciado. (BAKHTIN, 2000, p. 284). Por fim, a construção composicional, terceiro elemento responsável pela constituição de um gênero, designa a maneira como conteúdo e estilo são organizados para dar forma ao texto. As formas típicas de estruturação do gênero são determinadas de acordo com a especificidade de uma dada esfera de comunicação verbal, com a necessidade de uma temática e com o intuito discursivo do locutor que, sem renunciar à sua subjetividade, vai adaptar-se e ajustar-se ao gênero. Partindo, pois, da concepção de produção textual na perspectiva do gênero, compreendida como atividade transitiva, pretendemos analisar, neste trabalho, o percurso envolvido na prática de escrita de textos de opinião, desde a proposta de produção até a de reescrita. Por isso, faz-se necessária a próxima seção. O contexto de produção dos textos Considerando, tal como Rangel (2011, p. 60), que a produção de um texto envolve um dado interlocutor, objetivos determinados e também um gênero, uma vez que “escrevemos em situações de comunicação bastante precisas, capazes de balizar o quê e o como dizer, assim como o para quem o diremos”, faz-se necessário que, num primeiro momento, levemos em conta o contexto de produção dos textos que serão analisados. Portanto, o corpus deste trabalho é constituído por produções de alunos universitários, de 1º período, no contexto da disciplina de Língua Portuguesa. Esses alunos foram convidados, em algumas aulas de Língua Portuguesa, a manifestar a opinião acerca da seguinte questão polêmica: O Brasil é referência em preservação de água? Essa questão surgiu a partir da leitura e discussão de um texto jornalístico, escrito por Débora Spitzcovsky e publicado em Planeta Sustentável, no dia 07 de maio de 2009. O título desse texto coincidia com a questão a que os alunos deveriam responder: Brasil é referência mundial para preservação da água? SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 166 REVISTA SABERES LETRAS Em linhas gerais, o texto aborda a criação do Instituto Hidroex, situado na região do Triângulo Mineiro. Conforme Spitzcovsky (2009), fica fácil compreender por que a sede do Instituto é Minas Gerais: Entender sobre a utilização e preservação do recurso hídrico, portanto, é praticamente obrigatório no país, principalmente, na região que é conhecida por ser a “Caixa d’água do Brasil”, como é o caso de Minas Gerais. O estado é o maior fornecedor de água potável no país e, ainda, é divisor de várias bacias hidrográficas, inclusive internacionais. Nesse cenário, foi praticamente irresistível a criação do Instituto Hidroex, na região do Triângulo Mineiro, em 2001, para atuar como centro produtor e difusor de conhecimento das questões relacionadas à água na América Latina e na África. (Spitzcovsky, 2009) No momento em que o texto foi publicado, havia indícios de que tal Instituto fosse incluído na rede internacional de referência em recursos hídricos da Unesco, o que, de fato, veio a acontecer meses depois. Após a leitura e discussão do texto de Débora Spitzcovsky, foram lidos dois outros textos jornalísticos: Poluição e desperdício reduzem a água disponível no Brasil, escrito por Sérgio Adeodato, em 2009, para o Guia do Estudante; e também A água é um recurso natural esgotável, escrito por Luís Souza para a Revista Nova Escola e publicado em 2010. O objetivo desses dois outros textos era provocar um confronto de pontos de vista, que, assim, pudesse servir para o debate dos alunos sobre o tema: uns, defendendo o fato de o Brasil poder ser referência mundial em preservação da água; outros, mostrando-se contrários a isso. Depois do debate, os alunos passaram à escrita do texto. Eles precisavam se colocar na posição de um articulista decidido a dialogar com os textos lidos e fariam isso por meio de um artigo jornalístico opinativo. Considerando que todo texto se realiza a partir de um determinado gênero, é importante, aqui, tratar do gênero proposto: o artigo de opinião. Nesse sentido, SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 167 vale mencionar o que disse Uber (2008): Os artigos de opinião abordam questões polêmicas que envolvem a coletividade, dessa forma, é imprescindível que a participação no mundo seja menos alienada, mais completa, mais participativa. Através do conhecimento da opinião alheia sobre a nossa, torna-se possível rever valores e aceitá-los, transformá-los ou refutá-los, e escrever artigos de opinião nos possibilita explicitar nossas opiniões a respeito de diferentes temas. Por ser um gênero que tem sua circulação em jornais, revistas e sites na internet, possibilita o acesso a um grande número de indivíduos que podem ter sua participação tanto como leitores, quanto como escritores de seu próprio artigo. (UBER, 2008, p. 7) Assim, é necessário observar o artigo de opinião no escopo de um contrato comunicativo diferente daquele definido para a notícia, a reportagem, o resumo de novela. Daí a importância de reconhecer no gênero artigo de opinião sua função comunicativa, distinta da função de outros gêneros textuais. As produções textuais dos alunos Já dissemos anteriormente que os textos ora analisados integram uma série de produções individuais de alunos universitários, no contexto da disciplina de Língua Portuguesa. Tal disciplina tinha como objetivo precípuo o trabalho com leitura e produção textual. Assim, de, aproximadamente, cinquenta produções de uma turma, selecionamos duas para análise. Optamos pela transcrição integral dos textos escritos pelos alunos, a fim de melhor acompanhar a análise: O nosso território brasileiro possui cerca de 12% da água doce existente na superfície do mundo e é exatamente por esse motivo que até hoje não aceito e SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 168 REVISTA SABERES LETRAS não me conformo na situação de milhares de famílias presentes neste país que ainda sofrem com a falta deste líquido tão precioso no cotidiano de suas vidas. Existem diversos fatores que façam com que haja a escasses de água para inúmeros brasileiros, como por exemplo a falta de investimentos de nossos líderes governamentais em relação a este assunto tão importante. Estão mais preocupados com assuntos fúteis, do que na situação de muitos que choram e sofrem por não ter um copo de água para beber, e na situação agravante em se encontram nossos rios, lagos, mares e entre outros. Outro fator importante é o uso inadequado desta fonte de sustentabilidade ao qual ninguém sobrevive sem. Enquanto milhares de pessoas sofrem com a escasses da água, outras milhares esbanjam sem pensar nas consequências futuras que pode trazer. Por esses motivos e por outros diversos fazem com que o Brasil não seja referência mundial na preservação da água. Muitas vezes esperamos pelos nossos governantes para tomar uma atitude sobre esta situação e nos esquecemos que a atitude tem que ser iniciada em nós mesmos. Se cada um fizesse a sua parte o nosso país poderia sim ser um exemplo mas se continuar-mos assim a situação só irá se agravar e piorar ainda mais a vida das futuras gerações que ainda virão. O aluno-autor inicia seu artigo dialogando com, pelo menos, dois dos textos lidos e discutidos em sala de aula, quando diz: “O nosso território brasileiro possui cerca de 12% da água doce existente na superfície do mundo”. No texto, Poluição e desperdício reduzem a água disponível no Brasil, Sérgio Adeotado (2009) caracteriza o Brasil como país privilegiado: “Sozinho, detém 12% da água doce de superfície do mundo, o rio de maior volume e um dos principais aquíferos subterrâneos, além de invejáveis índices de chuva”. Também no texto A água é um recurso natural esgotável, Luís Souza (2010) diz que, embora o Brasil possua SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 169 “entre 12 e 16% da água doce da superfície do planeta, o país sofre com a distribuição irregular, a poluição e o desperdício”. Nesse sentido, já observamos a importância de um primeiro movimento de interação em sala de aula, a fim de promover a alimentação temática, por meio de textos que explorem a questão. Bem sabemos que, ao fazer isso, o professor estará proporcionando a ampliação do repertório do aluno, o que é necessário, sobretudo, quando se trata do gênero artigo de opinião, em que o autor não vai apenas informar, mas também manifestar seu ponto de vista sobre uma questão polêmica. O aluno-autor se utiliza desta primeira informação - a de que o Brasil possui cerca de 12% da água doce de superfície do mundo - para atribuir a ela o motivo de sua manifestação: “e é exatamente por esse motivo que até hoje não aceito e não me conformo na situação de milhares de famílias presentes neste país que ainda sofrem com a falta deste líquido tão precioso no cotidiano de suas vidas”. Percebemos aí uma reflexão um tanto quanto ingênua de que, se há muita água, não deveria haver escassez. Além disso, há também um discurso muito próximo do sensacionalismo, que extrai do fato – famílias que vivem o drama da falta de água - a sua carga emotiva e a enaltece. Assim, atribui-se à quantidade de água que o Brasil possui a garantia de recurso abundante para todos, o que não é verdade. No segundo parágrafo do texto, de onde poderíamos esperar as razões para a manifestação feita no parágrafo anterior, o aluno-autor sugere a existência de fatores que causam a escassez, no entanto, quando trata disso, o faz de maneira incompleta: ao se referir, por exemplo, à falta de investimentos por parte dos governantes, não diz exatamente de que natureza seria esse investimento. De acordo com o aluno-autor, nossos líderes se preocupam mais com “assuntos fúteis, do que na situação de muitos que choram e sofrem por não ter um copo de água para beber, e na situação agravante em se encontram nossos rios, lagos, mares e entre outros”. Assim, retoma a situação das famílias brasileiras que vivem o drama da falta de água e acrescenta a situação dos nossos rios, lagos e mares, presumindo que o leitor de seu texto já saiba do que está falando. No parágrafo seguinte, percebemos que o aluno procura relacionar o uso inadequado desse recurso como fator responsável pela escassez: “Enquanto SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 170 REVISTA SABERES LETRAS milhares de pessoas sofrem com a escasses da água outras milhares esbanjam sem pensar nas consequências futuras que pode trazer”. Mas faz isso por meio de um discurso redundante, que vai se repetir no último parágrafo. No penúltimo parágrafo, há a informação explícita de que o Brasil não pode ser referência em preservação de água, maneira encontrada para responder à questão polêmica. Já no último parágrafo, o aluno-autor que atribuíra a escassez de água, em primeiro lugar, à falta de investimentos por parte dos nossos governantes, agora, tira deles a responsabilidade, passando-a à população. Parece haver, aqui, contradição. Segundo o aluno-autor, nós “nos esquecemos que a atitude tem que ser iniciada em nós mesmos. Se cada um fizesse a sua parte o nosso país poderia sim ser um exemplo mas se continuar-mos assim a situação só irá se agravar e piorar ainda mais a vida das futuras gerações que ainda virão”. E surgem os clichês e, mais uma vez, ressoa o discurso redundante, sinalizando a baixa informatividade do texto. Após a escrita do texto, propomos aos alunos um momento de discussão em torno dos textos produzidos. Nesse momento de interação, além de terem a oportunidade de contemplar textos de colegas da turma, a partir dos quais conversamos sobre aspectos mais gerais que precisariam ser considerados na reescrita, os alunos também tiveram oportunidade de observar as orientações no próprio texto e conversar sobre elas, dirimindo suas dúvidas. O texto abaixo constitui, portanto, a segunda versão apresentada pelo aluno: O Brasil possui cerca de 12% da água doce existente na superfície do mundo, porém, essa abundância faz a massa da população brasileira se esquecer de que, algum dia, este líquido precioso poderá chegar ao fim, pois é cada vez mais crescente o uso inadequado dessa fonte de sustentabilidade. Devido a esse fator e a outros que relataremos no decorrer deste texto, o Brasil não pode ser referência mundial na preservação desse líquido precioso. Inúmeras pessoas pensam que estão usando a água de acordo com suas necessidades, mas na realidade está havendo um grande desperdício. Por exemplo, quando lavamos louças, não notamos que, na maioria SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 171 das vezes, a torneira fica aberta o tempo todo. O mesmo acontece quando vamos tomar banho, lavar o carro e realizar outras atividades. Isso não é necessidade. É falta de consciência, pois o nosso dever é economizar essa fonte natural, e além disso devemos pensar nas inúmeras pessoas que já sofrem com sua escassez. A falta de investimentos, projetos e ações do governo em relação a este assunto, é outro fator que faz o Brasil não ser referência mundial na preservação da água. Nossos líderes públicos deveriam se preocupar mais com essa questão e realizar obras favoráveis para a preservação desse líquido precioso. Mas, muitas vezes, esperamos, primeiramente, nossos governantes tomarem alguma atitude sobre esta situação e nos esquecemos de que a atitude deve se iniciar em nós mesmos. Devemos nos preocupar mais com a situação da água em nosso Brasil, pois ela é uma fonte natural, sem a qual ninguém sobrevive. Notamos, já no primeiro parágrafo, que o aluno-autor apresenta claramente o ponto de vista que pretende defender: o fato de o Brasil não poder ser referência em preservação de água. Também estão mais claras as relações entre as orações. O Brasil é apontado como país que possui cerca de 12% da água de superfície do mundo, o que deveria ser considerado como algo positivo. Mas, no contexto, não é o que acontece: o emprego da conjunção adversativa porém sinaliza oposição em relação à ideia anterior; e, em seguida, a consequência, também negativa, gerada pela abundância desse recurso natural: as pessoas se esquecem de que a água é um bem finito. A seguir, o aluno-autor explica as afirmações anteriores e indica uma primeira causa de o Brasil não poder ser considerado modelo no que tange à preservação de água: o uso inadequado desse recurso natural. A aproximação anteriormente gerada pelo emprego do pronome nosso, na primeira versão do texto (“O nosso território brasileiro possui cerca de 12% da água doce existente na superfície do mundo”), não acontece mais neste mesmo ponto do texto, mas volta a acontecer no segundo parágrafo, quando são citados os exemplos de desperdício. Desse modo, percebemos que o alunoSABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 172 REVISTA SABERES LETRAS autor se inclui nesse grupo, uma vez que utiliza os verbos - lavamos, notamos, vamos tomar, devemos pensar - na primeira pessoa do plural e também o pronome nosso quando diz: “nosso dever é economizar”. No segundo parágrafo, destaca-se, pois, o desperdício como uso inadequado da água. A responsabilidade, neste caso, seria da população, que não tem consciência do prejuízo causado com a utilização da água em demasia. O alunoautor dá, então, alguns exemplos cotidianos de desperdício de água. Após isso, volta-se aos governantes, passando a eles também a responsabilidade por obras que sejam “favoráveis para a preservação desse líquido precioso”. Apesar de, em relação à primeira versão, ampliar um pouco o que seria responsabilidade do governo, ainda não sabemos que obras seriam essas. Assim, de acordo com o texto, são duas as causas de o Brasil não poder ser considerado modelo em preservação de água: a população que desperdiça água, e o governo que não procura investir em ações de preservação. Então, chega-se a uma conclusão que a segunda versão não sugere contradição, uma vez que o aluno-autor se referia, no parágrafo anterior, ao governo e, para concluir, emprega a conjunção adversativa mas, sugerindo que as ações do governo são importantes sim; no entanto, não podemos ficar esperando apenas isso: é preciso que toda a população se preocupe mais com a água. Como podemos ver, em termos de progressão textual e informatividade, esta versão se distingue da primeira, apresentada pelo aluno. Como o corpus deste trabalho é composto por duas produções textuais, passaremos, agora, à análise do segundo texto, apresentado por outro aluno da turma: No Brasil, de alguns anos atrás até o momento atual, está havendo uma grande mobilização para que as pessoas vivam de maneira sustentável, são ações que tentam fazer com que as pessoas tenham uma relação menos predatória com o meio ambiente. Penso que para se tornar referência em algo precisa primeiramente dar o exemplo, e o Brasil está muito longe de ser um ícone na preservação de água. Num país que a população de um modo geral não consegue SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 173 economizar, que o governo não consegue fazer de forma coerente uma política pública de preservação das matas siliares, ou de conscientização do uso de água potável, creio que será bastante trabalhoso para a pessoa que irá nos representar, se isso acontecer algum dia. Num país em que grande parte dos mananciais de suas grandes cidades são poluídos, com pequenas cidades que “almejam” chegar a 100% do esgoto tratado, com dificuldade para levar água potável, um direito básico de todo cidadão, para lugares mais carentes. E voltando ao primeiro parágrafo, a ideia de sustentável em nosso país ainda é embrionária, há um longo caminho para que sejamos referência na preservação de água, num país com tanta abundância desse recurso, que em algumas regiões é de tão fácil acesso, diminuir o volume de consumo é difícil, mas não impossível. No primeiro parágrafo, percebemos que o aluno-autor apresenta duas ideias que poderiam sugerir seu ponto de vista, quais sejam: a mobilização em favor da sustentabilidade e a existência de ações menos predatórias em relação ao meio ambiente. No entanto, observamos, no segundo parágrafo, que não é bem isso que ele pretende defender. Por isso, se estabelece, entre o primeiro e o segundo parágrafo, uma ruptura. Analisando o texto como um todo, notamos que o aluno-autor quer defender o fato de a sustentabilidade constituir uma ideia ainda embrionária em nosso país, porém, não faz isso no primeiro parágrafo e, sim, no último, onde chega a explicitar, mesmo que equivocadamente, um elemento de continuidade textual: “E voltando ao primeiro parágrafo, a ideia de sustentável em nosso país ainda é embrionária, há um longo caminho para que sejamos referência na preservação de água”. Desse modo, revela-se uma ideia que contradiz a primeira, expressa no parágrafo de introdução: como seria possível haver uma grande mobilização em torno da sustentabilidade e, ao mesmo tempo, a ideia de sustentabilidade no Brasil ser embrionária? SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 174 REVISTA SABERES LETRAS Assim, percebemos ser esta a tese que ele pretende defender (a da sustentabilidade como ideia embrionária em nosso país) e as outras duas (como já mencionamos, a da mobilização em favor da sustentabilidade e a da existência de ações menos predatórias em relação ao meio ambiente), as que pretende refutar. Ora, se o objetivo do aluno-autor era estabelecer essa relação tese x antítese, isso deveria ter sido explicitado no primeiro parágrafo, a partir de um raciocínio adversativo ou concessivo, para garantir, assim, o efeito argumentativo desejado. No segundo parágrafo, notamos que o aluno não dá a informação necessária ao leitor do jornal, onde, provavelmente, seu texto poderia ser publicado: “Penso que para se tornar referência em algo precisa primeiramente dar o exemplo”. O leitor não saberia, por exemplo, por que o autor está tratando do tema “ser referência”, se, anteriormente, ele não fala disso. Essa informação é presumível para quem elaborou a proposta de produção, mas não para o leitor do jornal. Isso evidencia que o aluno-autor tinha em vista o professor que elaborou a proposta e os convidou a escrever o texto. Obviamente, adiante, o leitor acaba encontrando a informação. Todavia, tal lacuna denota a ausência de retomada de referente, o que é inadequado, uma vez que o texto perde em continuidade. Não obstante a lacuna, reconhecemos, no início do segundo parágrafo, um argumento: a importância do exemplo para que se cumpra o desejo de ser referência. Embora o aluno tenha se baseado em um lugar-comum, em seguida, explica muito bem por que o Brasil não é exemplo: a população não economiza, e o governo não consegue realizar política pública para preservação das matas ciliares ou para conscientização em relação ao uso da água potável. E, então, ele conclui que tornar o Brasil referência constitui um empreendimento árduo para quem nos representa, retirando, assim, a responsabilidade da sociedade em geral e, ainda, manifestando dúvida em relação ao fato de o Brasil poder ser referência um dia. Ainda que o aluno, no terceiro parágrafo, não termine a ideia que vem desenvolvendo, ele apresenta aí outras razões pelas quais o Brasil não pode ser referência. Vale mencionar, neste caso, o fato de o aluno-autor estabelecer um diálogo com os textos lidos e discutidos em sala de aula. O texto A água é um recurso natural esgotável, de Luís Souza, por exemplo, traz a seguinte informação: “Há ainda questões como garantir à população das periferias das grandes SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 175 cidades o acesso à água potável e de boa qualidade. Nos grandes centros urbanos, os rios e as represas estão poluídos” (SOUZA, 2010), o que se revela no texto do aluno. No último parágrafo, o aluno-autor confirma a tese que vem defendendo: “há um longo caminho para que sejamos referência na preservação de água”. Todavia, acaba repetindo ideias (“num país com tanta abundância desse recurso, que em algumas regiões é de tão fácil acesso”), para, então, apontar uma solução: “diminuir o volume de consumo é difícil, mas não impossível”. Tal como o primeiro texto aqui apresentado e analisado, também este passou pela reescrita. Assim, após a discussão empreendida em sala de aula sobre os textos produzidos, o aluno apresentou sua segunda versão: No Brasil, de alguns anos atrás até o momento atual, está havendo uma grande mobilização para que as pessoas vivam de maneira sustentável. São ações que tentam fazer com que elas tenham uma relação menos predatória com o meio ambiente. Contudo, essa é ainda uma ideia embrionária que requer mais atenção por parte de nossas autoridades. Para o Brasil se tornar referência mundial em preservação de água, precisa primeiramente dar o exemplo, e o nosso país está longe disso, com a situação que se encontram nossos rios, matas ciliares, saneamento básico e com a pouca instrução da população no que diz respeito ao tratamento que se deve dar a esse recurso. Para um país em que grande parte dos mananciais de suas grandes cidades são poluídos; com poucas cidades que “almejam” chegar a 100% do esgoto tratado; com dificuldade para levar água potável, um direito básico de todo cidadão, para lugares mais carentes, fica realmente complicado falar na possibilidade de ser referência em preservação. No Brasil, precisamente na região do Triângulo Mineiro, existe um centro que atua como reprodutor e difusor das ideias referentes à preservação da água SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 176 REVISTA SABERES LETRAS na África e na América Latina. Tal centro é o Instituo Hidroex, que almeja se tornar referência mundial, assim elevando o status do Brasil como um dos países que realmente preserva sua água. Entretanto, não adianta apenas ter um projeto de grande amplitude como esse para o Brasil se tornar referência nesse assunto. É ineficaz ter a solução somente no papel. Tem que existir a ação na prática para mudar a situação de descaso em que vive o meio ambiente. Nesta segunda versão, observamos, já no primeiro parágrafo, que a relação de adversidade, explicitada pelo conectivo contudo, permite-nos entender a posição que o aluno-autor defende: a sustentabilidade ainda como uma ideia embrionária em nosso país, apesar das várias ações investidas para que as pessoas tenham uma relação menos predatória em relação ao meio ambiente. Ainda assim, notamos algumas lacunas que o aluno-autor, em uma terceira versão de seu texto, poderia preencher como, por exemplo, o fato de se referir apenas às autoridades - e não à população em geral - como responsáveis pela modificação da situação atual; e também o fato de ter aberto novamente o segundo parágrafo apresentando o que é necessário para que o Brasil seja referência em preservação de água. Essa noção de referência ainda não havia sido contemplada no parágrafo anterior. Não obstante isso, o segundo parágrafo traz os problemas que fazem o alunoautor defender a tese de que o Brasil não pode ser referência: “o nosso país está longe disso, com a situação que se encontram nossos rios, matas ciliares, saneamento básico e com a pouca instrução da população no que diz respeito ao tratamento que se deve dar a esse recurso.” Consideramos importante ressaltar também que, após a discussão sobre os textos produzidos, principalmente no que diz respeito ao gênero textual, o aluno-autor, nesta segunda versão, também apresenta as vozes contrárias ao ponto de vista que ele defende, para com elas dialogar e, então, refutá-las. Como já dissemos, no primeiro parágrafo, percebemos essa voz, quando são apontadas as ações existentes em prol da sustentabilidade. E, para refutá-la, o SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 177 aluno afirma que a ideia de sustentabilidade é ainda embrionária. Além disso, no penúltimo parágrafo, o aluno-autor apresenta outra voz contrária a seu ponto de vista, quando fala da existência do Instituto Hidroex como “centro que atua como reprodutor e difusor das ideias referentes à preservação da água na África e na América Latina”. Isso nos permite considerar que esta versão está mais próxima do que se entende por artigo de opinião. De fato, no último parágrafo, o aluno-autor vai refutar essa voz e, para isso, já o inicia com uma conjunção adversativa, marcando oposição em relação à ideia apresentada no parágrafo anterior: “Entretanto, não adianta apenas ter um projeto de grande amplitude como esse para o Brasil se tornar referência nesse assunto. É ineficaz ter a solução somente no papel”. Então, encerra seu texto com o que, para ele, seria uma solução: “Tem que existir a ação na prática para mudar a situação de descaso em que vive o meio ambiente”. Embora tenhamos percebido que ambos os textos, mesmo após a reescrita, ainda carecem de argumentos manifestando uma reflexão em torno da questão polêmica, há uma diferença considerável entre a primeira e a segunda versão: os textos ganham, sobretudo, em progressão temática. Isso nos mostra como o trabalho de reescrita pode constituir importante estratégia didática no sentido de promover a autonomia do aluno na escrita de seu texto. Considerações Finais A análise aqui realizada comprova, pois, que o trabalho de interação realizado em sala de aula, por meio da leitura de textos sobre o tema em questão (preservação ambiental) e também pela discussão acerca desses textos, antes da produção escrita e, até mesmo, no momento da reescrita, pode ajudar o aluno a ampliar significativamente seu universo de conhecimento. De fato, a interação tem papel preponderante na história de amadurecimento do sujeito-leitor e do sujeito-produtor. Por isso, entendemos ser necessário um trabalho que proponha a construção conjunta de conhecimentos e habilidades e que torne possível não só a revelação do universo de experiências, mas também a ampliação de seus conhecimentos prévios, pois, para compreender/escrever um texto, é necessário ter conhecimento sobre o assunto tratado, a fim de poder SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 178 REVISTA SABERES LETRAS estabelecer relações sobre o tema e seu desenvolvimento. Assim, como fica claro nas produções escritas e reescritas pelos alunos, aqui apresentadas e analisadas, o texto não só remete a vozes anteriores, resultado de leituras prévias e de muita discussão, mas também projeta a voz daquele que se mostra sujeito de sua história, pela manifestação de seu ponto de vista em relação à realidade que o cerca. Referências ADEODATO, Sérgio. Poluição e desperdício reduzem a água disponível no Brasil. Guia do estudante, 2009. Disponível em: <http://planetasustentavel. abril.com.br/noticia/ambiente /conteudo_345578.shtml>. Acesso em: 05 abr. 2012. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. ed. São Paulo: HUCITEC, 1999. ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua . Brasília: MEC/SEF, 1997. BUNZEN, Clecio. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de textos no ensino médio. In.: BUNZEN, Clecio; MENDONÇA, Márcia (Org.). Português no ensino médio e formação de professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A inter-ação pela linguagem. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2000. MESERANI, Samir. O intertexto escolar: sobre leitura, aula e redação. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2001. MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Oficina de lingüística aplicada: a natureza social e educacional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. Campinas: Mercado de Letras, 1996. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2001. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 179 RANGEL, Egon de Oliveira. Olimpíada de língua portuguesa escrevendo o futuro: o que nos dizem os textos dos alunos? São Paulo: Cenpec/Fundação Itaú Social, 2011. SOUZA, Luís. A água é um recurso natural esgotável. Revista Nova Escola, 2010. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo. monta&idEstrutura=157>. Acesso em: 05 abr. 2012. Spitzcovsky, Débora. Brasil é referência mundial em preservação da água? Planeta sustentável, 2009. Disponível em: <http://planetasustentavel.abril. com.br/noticia/ desenvolvimento/conteudo_469002.shtml>. Acesso em: 05 abr. 2012. UBER, Terezinha de Jesus Bauer. Artigo de Opinião: estudos sobre um gênero discursivo. 2008. Disponível em: <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/ portals/pde/arquivos/255-4.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2012. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 159 a 179 set. / dez. 2012 180 REVISTA SABERES LETRAS SUBJETIVIDADE E ESTILO EM AQUISIÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA: REFLEXÕES E REFRATURAS Luciano Novaes Vidon Resumo: Neste artigo, retorno a dados analisados em minhas pesquisas desenvolvidas junto ao Projeto de Aquisição da Linguagem Escrita (PALE), do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com o intuito de pensar sobre o papel do sujeito no desenvolvimento de sua escrita. A hipótese trabalhada é a de que o sujeito, ao longo de seu processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem escrita, desempenha um papel fundamental na constituição dos gêneros discursivos que a escola e a sociedade privilegiam, e pode desenvolver, ao longo desse processo, um estilo individual, com base nos estilos dos gêneros que têm contato, e, ainda, um processo de autoria. Isso implica, para a escola, apostar na heterogeneidade dos sujeitos e dos gêneros, ao mesmo tempo em que valorize as suas singularidades. Palavras-chave: Subjetividade; estilo; aquisição e desenvolvimento da escrita. Abstract: This paper returns to the data analyzed in a previous research project developed by the Acquisition of Written Language Project (PALE), at the Institute of Language Studies (IEL), at the State University of Campinas (UNICAMP), in order to ponder over the role of the individual while developing his writing process. The hypothesis proposed is that the individual plays an important role during the process of acquisition and development of the written language, shaping the discursive genres that encompass school and society. And the individual can also develop a unique style along this process, based on styles of the genres previously confronted and at the same time an authorship process. This implies, for the school, to focus on the heterogeneity of individuals and genres, in attempt to value their uniqueness. Keywords: Subjectivity; style; acquisition and development of writing. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 181 Retomando Subjetividade e Estilo O sujeito, na perspectiva bakhtiniana de análise enunciativa, que venho adotando em minhas pesquisas em aquisição da escrita, desde 1997, tendo uma intenção discursiva, escolhe, dentre os recursos expressivos disponíveis, aqueles que ele, dialogicamente, considera relevantes para o seu projeto de texto (i. e. para construir efeitos de sentido almejados). Logicamente, ele precisa levar em conta uma série de fatores que condicionam seu discurso. O gênero discursivo, por exemplo, é um dos aspectos mais relevantes (se não for o principal) do processo de enunciação. Nesse sentido, ainda em conformidade com Bakhtin (2011), há gêneros mais e menos propícios às escolhas individuais dos recursos da língua. Não há, porém, nem fechamento, nem abertura total ao trabalho lingüístico-individual. Ou seja, de um lado, o sujeito da linguagem, o enunciador sempre tem a possibilidade de escolha, ainda que em espaços extremamente fechados (ver também Granger, 1968 e Possenti, 1988). Por outro lado, o sujeito não tem liberdade total, nunca. Se houvesse essa liberdade, o sujeito seria completo, acabado e não precisaria do outro para se constituir. Não há essa possibilidade. O outro está sempre presente na constituição do eu, completando-lhe, dando-lhe acabamento, tornando-o incompleto, inacabado. No âmbito desse processo de escolhas é que pode surgir (e comumente é assim) um conjunto de recursos que se repetem ao longo dos enunciados de um sujeito e os individualiza (tanto os enunciados quanto o sujeito), configurando um estilo pessoal próprio, singular. Para isso, então, é imprescindível: a intencionalidade discursiva do sujeito (locutor/enunciador/ falante/emissário); um projeto de discurso; um processo de escolhas lingüísticas em função do projeto de discurso e do “querer-dizer do locutor” (BAKHTIN, 2011); e a identificação de um conjunto de escolhas recorrentes, repetíveis, que vão configurando um estilo individual. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012 182 REVISTA SABERES LETRAS Conforme Bakhtin (2011), portanto, o enunciado é não-reiterável, mas há nele uma certa estabilidade (ver definição de gênero discursivo). O sentido não se repete, mas o significado sim. É nesse processo de significação e ressignificação que se aloja o trabalho estilístico individual. Para Bakhtin, o sentido está relacionado ao tema, à enunciação, enquanto o significado tem a ver com os recursos da língua. Ora, se os recursos são reiteráveis, repetíveis, eles carregam um significado que pode ser retomado, o que não significa que terá o mesmo sentido. O estilo parece se relacionar com esse trabalho de ressignificação de determinados recursos da língua. Nos textos de LM, por mim analisados em Vidon (1999; 2003), sempre foi muito recorrente a exploração do tema salário-mínimo. Ainda que esse objeto-de-discurso, a cada enunciação, mantivesse praticamente o mesmo significado, o sentido não poderia ser o mesmo. Do ponto de vista estilístico, a cada ressignificação de “salário-mínimo”, LM, enquanto sujeito do discurso, trabalhava o significado da expressão, a sua forma lingüística e o seu conteúdo, provocando um efeito de sentido diferente. O sentido do enunciado é não-reiterável completamente, mas algo se recupera, caso contrário não haveria compreensão. O estilo é, assim, para um sujeito específico, como algo que se recupera a cada enunciação. Tudo isso indica que o sujeito do discurso pode querer (e normalmente quer) se diferenciar de outros sujeitos discursivos. Nesse sentido, o sujeito não está sendo assujeitado às condições de produção discursiva. De alguma forma, ainda que muito sutilmente, ele tenta se impor às “forças discursivas” (lingüísticas, textuais, comunicativas, institucionais) marcando o seu discurso com um traço de singularidade. É o que Possenti (2003, p. 45) denomina de “sacada”. Discutindo a noção de efeito de sentido, ele considera que o sujeito eventualmente tem uma ‘sacada’, criando algo ‘novo’, que se relaciona com algo ‘velho’, já dito, presente discursivamente em nossa memória social. Essas ‘sacadas’ parecem revelar muito sobre o sujeito do discurso. Isso não significa, no entanto, que os recursos agenciados, constituintes de um estilo individual, são de propriedade do indivíduo ou desse sujeito de discurso. Esses recursos pertencem a todos os sujeitos falantes. Os recursos são compartilhados; porém, de alguma forma, naquele momento, o trabalho realizado SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 183 ou a recorrência de certos recursos de expressão constrói discursivamente um estilo individual. Trata-se, portanto, de uma construção discursiva de estilo, muito distinta e distante do que, tradicionalmente, a estilística sempre o concebeu, isto é, como fruto da psicologia do autor. O que o sujeito discursivo parece fazer é se apropriar, ou seja, tornar próprio, discursivamente, o que, em princípio, não é de sua propriedade. O que significa, então, se apropriar discursivamente de recursos da língua para construir um efeito de sentido estilístico? E como o sujeito tenta construir esses efeitos de sentido? Subjetividade e apropriação discursiva O sujeito marca o discurso/enunciado como dele, isto é, ele tem a intenção de que o discurso/enunciado seja percebido como singular, como particular e, para isso, ele lança mão de marcas, até certo ponto, idiossincráticas, individualizadas; o sujeito as toma como próprias do seu trabalho com a língua, ainda que isso lingüística e discursivamente seja impossível, já que a língua, enquanto um conjunto variado de possibilidades (um repertório), e o discurso, enquanto um fio na cadeia infinita/descontínua de enunciados, não pertença a ninguém, não tenha dono. Comumente, a subjetividade é associada a individualismo e, por conseqüência, a psicologismo. Por outro lado, a radical socialização do sujeito o torna “assujeitado” a tudo o que está a seu redor. Definitivamente é preciso encontrar um lugar para a subjetividade na sociologia da língua, isto é, nos estudos, de alguma forma, sociológicos, sobre a linguagem. O desenvolvimento humano representa uma unidade dialética entre desenvolvimento individual e social. (...) Embora haja no desenvolvimento uma apropriação do já dado, o realmente novo a que se deve estar atento é a construção crítica do que não preexistia. (...). (GERALDI, 2008, p. 38) SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012 184 REVISTA SABERES LETRAS Subjetivar-se na linguagem é exercer um trabalho de escolha dentre os recursos disponíveis na língua de modo a constituir um efeito de sentido sobre o outro (ouvinte, destinatário, interlocutor). O outro sente como própria de um eu aquele enunciado, aquela forma de se expressar, aquele modo de usar determinados recursos da língua. Para que isso aconteça, é imprescindível que esse outro tenha tido um contato mais ou menos regular com os enunciados desse eu. É o que pode ser verificado nas pesquisas que desenvolvi com o corpus de LM, junto ao PALE (Projeto Aquisição da Linguagem Escrita) do IEL/ UNICAMP. Ao tomar as produções textuais escritas desse sujeito como corpus de investigação, transformando LM em sujeito de minhas pesquisas, procedi a uma análise longitudinal, o que me permitiu acompanhar o desenvolvimento de seus enunciados, de sua escrita e de seu estilo. Certamente isso só me foi possível devido ao conjunto dos textos, ao todo enunciativo que os mesmos configuravam ver a esse respeito. (DISCINI, 2002). Um bom exemplo desse processo de desenvolvimento estilístico são os enunciados por mim (VIDON, 1999) denominados “comentários sobre livros” (textos opinativos sobre livros de literatura infanto-juvenil, lidos no âmbito das atividades didático-pedagógicas da disciplina de língua portuguesa, e, também, visando o ensino de aspectos da literatura, especialmente os chamados “elementos da narrativa”). Esses enunciados, desde as suas primeiras realizações na segunda série do ensino fundamental, constituíam um todo discursivo no interior do qual era possível vislumbrar um certo sujeito-de-discurso e uma certa forma de enunciação. Esse sujeito (esse autor) e essa forma de enunciar (esse estilo) ficaram singularmente marcados numa série de enunciados realizados ao longo da quarta série, como os exemplificados a seguir: [1] “Eu gostei dese livro ele ceria otimo para cer/ de poezia mais não e O unico problema e/ que ele e muito curto eu acho que ele não e/ para 4a serie e muito imfamtil mas tambem/ e muito bom Os dezenhos destes livros/ tambem tem uma tecnica muito boua e conbina/ com o livro. Outra coiza que não goste e que/ não tem o nome do rei e da rainha e da princeza,/ so fala o nome de umas pesouas que esquesio o/ nome que eles sentem saldade.” (Por uma SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 185 questão de saudade, de Marina Martines.) [2] “Este livro é bem gostozo de ler,/ sóque ele pudia ser maior e o/ final pudia ser mais caprichado,/ em fim eu gostei do livro a/ Cecilia Mereles escreve as estorias e/ poezias muito bem, ela escreve de um/ geito que todo mundo gosta, soque tambem/ tem gente que prefere aventura mais/ eu não eu gosto de poezia e contos de/ fada.” (Ou isto Ou aquilo, de Cecília Meireles) [3] “Este livro e interessante por que/ agente ce involve nele e agente vai lendo/ e se não cansar e bem capaiz de/ terminarem num dia só e ainda sobra/ tempo para ler dinovo. Eu achei que na/ bliblioteca deveria ter mais livros como esse./ Aparte que mais gostei dese livro foi/ a hora que eles matam duas onças marido e/ mulher e na ora do casamento da prima/ do cerelepe que chama miquirinha e tem/ uma briga com os tatus porque eles não/ forão convidados e tambem querrem participar da/ festa.” (O cachorrinho samba na floresta, de Maria José Dupré) Nesses enunciados é possível pensar em um estilo emergindo e sendo desenvolvido, um estilo crítico, direto, potencialmente persuasivo. Dados como você, todo mundo, a gente, podem ser considerados índices de intersubjetividade (sg. Benveniste, é condição do discurso), constituindo e instaurando uma subjetividade – o sujeito diz de um lugar específico; assume uma posição; se coloca em um lugar e fala dele. Para alguns analistas do discurso, ter-se-ia aí mais um dado sobre assujeitamento. Não é, por essa hipótese, o sujeito que fala, mas uma instituição social que fala através/a partir dele. Que instituição falaria através de uma criança com aproximadamente dez anos de idade naquele momento? Refletindo sobre a hipótese acima, e, ao mesmo tempo, a refratando, consideremos, no caso, que essa instituição seja a do conjunto de leitores que tem preferência por uma melhor hora para leitura, por determinados gêneros, SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012 186 REVISTA SABERES LETRAS etc. Esse é um ponto de vista, obviamente, defensável. Desse ponto de vista, essa instituição é constituída de sujeitos sociais e históricos, que não estão estáticos, perdidos no tempo e no espaço, mas que se movimentam nesse mesmo tempo e espaço, adquirem novos valores, atualizam outros, se re-subjetivam, isto é, se subjetivam novamente (de uma forma nova, num tempo e espaço outros). Não se trata, a meu ver, de assujeitamento, mas de subjetivação, de ação subjetiva não de um sujeito (egocêntrico, consciente, endógeno), mas de vários sujeitos que mantêm um diálogo social e histórico. Ao dialogar com um outro leitor (imaginário) através do enunciado e indiciado pelos termos você, todo mundo, a gente, LM dialoga também com todos os leitores que compõem essa rede de memórias de leitura. A meu ver, é muito redutora a hipótese do assujeitamento, é muito destrutiva, na medida em que fala de uma posição do sujeito, de uma função do sujeito, de um efeito-sujeito, mas, ao mesmo tempo, nega a possibilidade de uma ação subjetiva. Parece mesmo contraditório. A meu ver, o sujeito-leitor que é instaurado ali no enunciado de LM não é o sujeito-leitor histórico que se materializa discursivamente no texto como em um “passe de mágica”. Esse sujeito-leitor histórico é atualizado, articulado, ganha forma e conteúdo a partir de um sujeito-leitor que é ao mesmo tempo único, singular, particular e universal, plural, previsível, talvez. Desse meu ponto de vista, há uma construção dos lugares discursivos que é feita pelos sujeitos no momento da enunciação. Essa construção, de forma alguma, é dada a priori. Um discurso pronto não pode prever completamente a sua recepção, o olhar do outro (recriminando, admirando, se surpreendendo, positiva ou negativamente...). Na verdade, não há discurso pronto (acabado). O discurso é um acontecimento, como chega à conclusão o próprio Pêcheux em seus últimos trabalhos. Nesse sentido, por que o sujeito do discurso seria algo já dado, já construído, já pronto (em algum lugar histórico, ideológico, institucionalizado)? Por outro lado, há muitos exemplos, nos dados do mesmo corpus, de casos de dessubjetivação, termo emprestado a Amorim (2001), que, a meu ver, é mais apropriado do que “assujeitamento”. Explico. LM vinha ao longo da 4a série produzindo textos, comentando os livrinhos infanto-juvenis que lia, de uma forma, pode-se dizer, bastante subjetiva. Ela faz comentários bastante pessoais sobre os livros, as leituras, os autores, etc. como nos exemplos já analisados. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 187 No entanto, essa subjetividade discursiva desenvolvida por LM nesses enunciados é desviada de rumo, “desencaminhada” em função dos interesses pedagógicos da escola. Tomando emprestado o termo de Amorim (2001), diria se tratar de um processo de “dessubjetivação”, entendido como o processo discursivo no qual forças exteriores agem no sentido de frustrar um processo de subjetivação discursiva. As marcas desse processo de subjetivação já foram aqui consideradas. A “dessubjetivação” se dá a partir do momento em que os enunciados se tornam homogeneizados, escolarizados, padronizados, como os exemplos a seguir: [4] “Eu gostei muito deste/ livro. Ele tem historias bem interessan/tes uma das que mais gostei/ foi a da Sopa de pedra e a/ historia de um homem que/ engana uma velha muito/ pão dura e ganha uma aposta/ que fes com os amigos.” (Contos populares para crianças da américa latina, de Maria C. Posada). [5] “Eu gosstei muito desste/ livro, a isstoria que/ gosstei mais foi a do/ corevoando e a isstoria/ de um ladrão que tem pés de/ vento e foge de qualquer enrass/ cada. No texto o corevoan/ do foge da cadeia, ele/ foi preso porque ele rou/ bou uma casa.” (Contos de piratas, corsários e bandidos, de autor desconhecido, segundo LM). [6] “Eu achei este livro/ bem legal. Ele fala de um/ grupo de crianças e/ uma dessas crianças/ vira prefeito mirim da/ cidade, e faz muitas/ obras.” (A prefeitura é nossa, de Giselda L. Nicolen). Esses dados mostram que a escola precisa lidar melhor com esses processos de subjetivação (incluída aí a dessubjetivação). É menos urgente se preocupar com o sujeito a se formar (sujeito ideal) e mais com o sujeito que está ali, se formando, se constituindo (sujeito real). SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012 188 REVISTA SABERES LETRAS Voltando à questão do todo, somente ele pode dar um acabamento (no sentido bakhtiniano do termo) ao sujeito-de-discurso, criando, inclusive, um efeito de sentido individualizante (o que faz com que o outro-interlocutor sinta como de propriedade de um eu certos recursos expressivos). No caso de LM, todas aquelas marcas encontradas nos “comentários sobre livros” puderam ser reencontradas em outros momentos de sua produção escrita escolar. É o caso, por exemplo, de “respostas” em avaliações de história, como as que se seguem: “...A inconfidência mineira fora interonpida por portugal porque portugal não queria que o Brasil deixace de ser sua colonia, mas o inconfidentes queriam a inconfidencia. Quando eles foram descobertos logo foram incriminamdo tiradentes por ser mulato pobre e um dos lideres. Quem condenou tiradentes foi a mãe de D. João IV, dona Maria que já tinha um parafuzo a menos.” “Em uma das eleições, a primeira que Getulio Vargas participou ele não ganhou por que tiveram muitas fraudes e o povo comesava a se iritar. Quando João pessoa (o vice de Getulio) fora assacinado o povo terminou de se irritar e partiu pra briga. Eles ião invadir uma cidadezinha do interior, mas quando eles chegaram na tal cidade veio a noticia que o prezidente (atual da epococa) havia cido deposto e o Getulio Vargas assumiu o poder. Essa guerrinha que não houve foi chamada de ‘A guerra que não houve’.” “O governo de D. pedro I era daqueles bem moderados mesmo, e o povo não gostava disso e comessou a fazer uma bagunsa total que D. pedro não conseguia segurar o povo, até seu pai morrer. Com a morte de seu pai uzou como desculpa o trono vazio em portugal e renunsiou a sua pessoa, deixando seu filho...” SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 189 “Os moderados eram os conservadores e os exaltados os liberais, mas no governo eram farinha do mesmo saco por que faziam as mesmas coizas porque vinha do mesmo lugar.” Curiosamente, os enunciados dessas avaliações de história da 7a série revelam um sujeito discursivo que busca no humor (ou num certo tipo de humor) o seu diálogo com o outro. Esse modo de enunciar não aparece nos textos de LM pela primeira vez. Como observou Mayrink-Sabinson (1997), analisando também o mesmo corpus, a veia humorística de LM sempre foi muito comum, marcante, principalmente, dos textos narrativos. Porém, conforme procuramos mostrar em Vidon (2003), essa configuração enunciativa, essa constituição discursiva de um eu sarcástico, irônico, mordaz, foi de fato significativa, constituindo mesmo um trabalho estilístico, nos enunciados dissertativo-argumentativos realizados no ensino médio, principalmente como preparação para provas de redação de vestibular. Assim, um estilo comumente utilizado em enunciados narrativos revelou-se apropriado a um uso argumentativo. Em dissertações, como a que exemplifico a seguir, uma subjetividade é construída discursivamente. LM parece retomar (reencontrar) aquela subjetividade delineada lá atrás, ao longo da 4a série, naqueles comentários sobre livros. Nesses enunciados, temos um sujeito crítico, observador, leitor atento, que se dirige a um outro-interlocutor a fim de persuadí-lo. Há, assim, uma intenção, um querer-dizer, e uma subjetividade sendo construída discursiva e dialogicamente. Ensina-se para todas as crianças em idade escolar que o Brasil foi descoberto em 1500 por Pedro Alvares de Cabral, ao acaso, em seu caminho para as Índias. Novas pesquisas, no entanto, divulgam uma nova data de descoberta. Historiadores afirmam que um navegador português da maior confiança do rei de Portugal, chamado Duarte Pacheco Pereira, gênio da astronomia, navegação e geografia, teria chegado aqui em 1498. O Brasil estaria, portanto, comemorando 502 anos. Descoberta por descoberta, consideremos a de Pedro Alvares de Cabral. A festa está sendo aprontada, uma grande comemoração de cinco séculos de vida, ou melhor, de vida após a “descoberta” portuguesa. Afinal os nativos já viviam nessas terras há muito mais tempo. Claro que poucos deles restam para a comemoração. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012 190 REVISTA SABERES LETRAS Ensina-se, também, que o Brasil foi colonizado por Portugal, tornou-se independente pelo grito de um legítimo português. Entretanto muitas pessoas hoje em dia não sabem mais o que nosso país é. Talvez o problema que impede o país de seguir em frente seja esse. Comemorar o quê? Arruinado por uma economia dependente de países de primeiro mundo, desde 1826 a terra das palmeiras cultiva uma dívida externa por hábito ou necessidade. Porém essa dívida não é mais paga com produtos naturais e sim com dinheiro, preferivelmente com o dólar, moeda norte americana que é o terror do real. O real, a moeda da salvação, implantada por um governo que prometia a melhoria da qualidade de vida do proletariado, a grande massa de população, durante os últimos meses vem dando mais prejuízos do que lucros, principalmente para as classes média e baixa, que além de sofrer com a alta dos preços têm que levantar dinheiro para pagar impostos que teoricamente são usados para cobrir a velha dívida interminável. Brasil, país de muitas riquezas, berço esplêndido de sonhos de imigrantes logo destruídos pela escravidão e salários mais que mínimos. O gigante deitado eternamente, explorado pelo imperialismo, tornou-se uma nação de duas faces. Poucos com muito e muitos sem nada. Em Miami, os ricos e poderosos... do Oiapoque ao Chuí, o Brasil dos muitos sem teto, sem terra, sem emprego, sem escola, sem chuva, sem comida, sem lugar, sem país. Muitos dizem que, apesar dos diversos problemas apresentados, é inegável o fato de que o Brasil tem se desenvolvido e crescido já que existem no país o Código de Defesa do Consumidor, leis que cuidam do racismo, trabalho e exploração infantil, o Código Penal, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e outros diversos direitos e leis que todo ser humano merece. Mas devemos lembrar que nem sempre esses órgãos de defesa do ser humano funcionam, deixando processos estacionados por culpa da burocracia. Que Direitos Humanos são esses que funcionam apenas para os que têm muito? Estes Direitos são aqueles que só o dinheiro pode comprar, o dinheiro do governo e das classes elevadas que acaba saindo, direta ou indiretamente, do bolso do contribuinte trabalhador. Razões para comemorar eu não vejo, talvez os bolsos cheios vejam. Não tendo o pão, as emissoras de televisão preparam o circo para o povo. À guisa de conclusão A partir de um certo momento, os enunciados de LM, em que ela comenta SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 191 livros lidos para a escola, se tornam mais padronizados [como já discutidos em VIDON (2003)], impessoais, repetitivos, gerais, desaparecendo mesmo marcas de intersubjetividades (analisadas em VIDON (id.) como marcas de argumentatividade): se, todo mundo, a gente, você, etc. LM não fala mais de suas preferências enquanto leitora (com a sua história de leitura), mas passa a falar do lugar de aluna que é cobrada pela professora e pela escola a dizer certas coisas e não outras. Desse lugar, portanto, a fala é extremamente controlada, disciplinada, marcada. LM passa a dizer, então, não o que quer, mas o que deve dizer, segundo as orientações didático-pedagógicas de então. Ocorre, assim, um processo de dessubjetivação, de esvaziamento de uma subjetividade anterior. Há dados, ainda, que mostram dois fenômenos discursivos acontecendo praticamente ao mesmo tempo, no mesmo enunciado. Subjetividade e dessubjetivação interagem em enunciados de provas de história sob as formas de paráfrase e paródia. Em termos parafrásticos, tem-se um outro sujeito que enuncia. Já, enquanto paródia, a singularidade de um sujeito é mostrada, revelando as suas preferências pelo humor, pelo sarcasmo, pela ironia, etc. De uma forma (subjetivada) ou de outra (dessubjetivada), LM trabalha a linguagem para tentar obter efeitos de sentido subversivos, trazendo à tona, nesses textos, discursos sobre a história do Brasil que, de modo algum, se encontram ‘em paz’, ‘sem conflitos’. Nesses enunciados de LM, é possível perceber a presença de um espaço interdiscursivo no qual o discurso histórico oficial dialoga com um discurso popular (não-oficial) mas também com um discurso científico (nem oficial nem não-oficial). LM recorre a variados recursos morfossintáticos para articular um querer-dizer que subverte uma ordem discursiva dada: a história foi assim, os fatos históricos são esses, esses são nossos heróis, etc. Trabalhando a linguagem singularmente, LM reconstrói, discursivamente, essa história, esses fatos, esses heróis. Do discurso oficial sobre D. Maria, a Louca, LM produz ‘D. Maria, que já tinha um parafuso a menos’, substituindo um sintagma nominal, com um item lexical mais objetivo (a Louca), por uma oração subordinada contendo uma expressão popular, uma figura de linguagem cujo significado é semelhante ao de Louco, mas que, não há dúvida, o efeito de sentido é completamente diferente. Outras figuras de linguagem também são utilizadas contribuindo para criar o efeito de sentido de subversão de um discurso objetivo, formal, heróico. É o SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012 192 REVISTA SABERES LETRAS caso, por exemplo, de ‘farinha do mesmo saco’ se referindo aos dois principais partidos políticos daquele período histórico. A expressão rebaixa esses objetos do discurso (Partido Liberal e Partido Conservador) ao reduzí-los à farinha, produto considerado não-nobre, que pertencem ao mesmo saco; saco também cria um efeito de sentido jocoso, principalmente se pensado em referência à esfera política. Do discurso oficial tem-se também ‘A guerra que não houve’, referindo-se ao levante histórico ocorrido no século XVIII, que, no enunciado de LM, é transformado em ‘essa guerrinha que não houve’. O diminutivo, nesse caso, também contribui para criar um efeito de rebaixamento do objeto do discurso. Semelhantemente aos dados relativos à 4ª série do ensino fundamental, os dados referentes à 7ª série e ao ensino médio revelam uma leitora crítica, atenta que não quer reproduzir um discurso pronto, engavetado em algum lugar do passado. Trata-se de um sujeito-leitor que não se assujeita a uma leitura histórica, definitiva, imutável. Trata-se, ainda, de um sujeito que recria singularmente a crítica sarcástica, irônica, bem-humorada, descolando e deslocando elementos discursivos de um lugar e transportando-os para outro (s) – a Louca/que já tinha um parafuso a menos; Partido Liberal X Partido Conservador/tudo farinha do mesmo saco; A Guerra que não houve/essa guerrinha que não houve. Em todo esse trabalho, a marca subjetiva de um sujeito social e histórico cujas preferências são reveladas, sintomaticamente, em seus enunciados. Referências Bibliográficas AMORIM, M. O pesquisador e o seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Editora, 2001. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. DISCINI, N. O estilo nos textos. São Paulo: Contexto, 2002. GERALDI, J. W. Transgressões convergentes: Vygotski, Bakhtin, Bateson. Campinas: Mercado de Letras, 2008. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012 REVISTA SABERES LETRAS 193 GRANGER, G. G. Filosofia do estilo. São Paulo: Perspectiva, 1968. MAYRINK-SABINSON, M. L. T. O papel do interlocutor. In: Abaurre et alii. Cenas de aquisição de escrita: o sujeito e trabalho com o texto. Campinas: Associação de Leitura do Brasil (ALB)/Mercado de Letras, 1997. (Coleção Leituras no Brasil) PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1997. POSSENTI, S. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1988. ______.“Indícios de autoria”. PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 20, n. 1, p.105124, jan./ jun. 2002 VIDON, L. N. “Individualidade e escolarização: estilos em conflito (análise de dados singulares)”. Dissertação (Mestrado). Campinas: IEL/UNICAMP, 1999. ______. “Dialogia, estilo e argumentação no trabalho de um sujeito com a linguagem”. Tese (Doutorado). Campinas: IEL/UNICAMP, 2003. SABERES Letras Vitória v. 10 n.1 p. 180 a 193 set. / dez. 2012