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Línguas e instrumentos linguísticos 33 / Campinas: CNPq Universidade Estadual de Campinas; Editora RG, 2014:
Unicamp, 1997-2014
Semestral.
ISSN 1519-4906
1. Linguística - Periódicos 2. Análise do discurso - Periódicos
3. Semântica - Periódicos 4. História - Periódicos I. Universidade
Estadual de Campinas
CDD - 410.05
- 412.05
- 900
Copyright © 2014 dos Autores para efeito desta edição e posteriores.
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para o Projeto História das Ideias Linguísticas e Editora RG.
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Edição eletrônica: www.revistalinguas.com
2014
Impresso no Brasil
LÍNGUAS E INSTRUMENTOS LINGÜÍSTICOS
Edição: Projeto História das Idéias Lingüísticas no Brasil
Editora RG
Diretores/Editores: Eduardo Guimarães e Eni P. Orlandi
Comitê Editorial: Bethania Sampaio Mariani (UFF), Carolina Zucolillo
Rodriguez (Unicamp), Claudia Pfeiffer (Unicamp), Carlos Luis (Argentina),
Charlote Galves (Unicamp), Diana Luz Pessoa de Barros (USP), Eduardo
Guimarães (Unicamp) Elvira Narvaja de Arnoux (Argentina) Eni P.
Orlandi (Unicamp), Francine Mazière (França), Francis Henry Aubert
(USP), Freda Indursky (UFRGS), Jean-Claude Zancarini (França), José
Horta Nunes (Unicamp), José Luiz Fiorin (USP), Lauro Baldini (Univás), Luiz
Francisco Dias (UFMG), Maria Filomena Gonçalves (Portugal), Mónica
Zoppi-Fontana (Unicamp), Norman Fairclough (Inglaterra), Rainer Henrique
Ramel (México), Rosa Attié Figueira (Unicamp), Sheila Elias de Oliveira
(Unicamp), Silvana Serrani-Infante (Unicamp), Simone Delesalle (França),
Suzy Lagazzi (Unicamp), Sylvain Auroux (França)
Comitê de Redação: Carolina Zucolillo Rodriguez, Claudia Pfeiffer, José
Horta Nunes, Lauro Baldini, Mónica Zoppi-Fontana, Sheila Elias de Oliveira,
Suzy Lagazzi
Secretaria de Redação: Sheila Elias de Oliveira, Lauro Baldini e Vinícius
Massad Castro
Revisão dos artigos: Todos os artigos são revisados por pares observando-se
os seguintes parâmetros: nível de contribuição para a comunidade científica,
qualidade da escrita do texto, relevância da bibliografia.
Mês e ano dos fascículos: janeiro a junho 2014
Periodicidade de circulação: semestral
ISSN: 1519-4906
Número sequencial de páginas: a numeração inicia sua contagem na página
de olho da revista, figurando – em algarismos arábicos – a partir da página
número cinco até o final.
SUMÁRIO
Apresentação
7
Del renacimiento a la ilustración española: la instrumentalización
de la lengua nacional en los manuales de retórica
María del Pilar Roca
9
A produção de sentidos através da eufemização no acontecimento
enunciativo e seus efeitos na descrição da sociedade brasileira
Carolina de Paula Machado
47
A palavra ‘poesia’ em Bakhtin
Adilson Ventura da Silva
71
Paradigma indiciário, língua-concha, recorte e funcionamento: a
metodologia em AD
Lucília Maria Abrahão e Sousa , Dantielli Assumpção Garcia, Daiana
de Oliveira Faria
93
CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS
O problema do signo linguístico em Saussure e em Benveniste
Cármen Agustini
109
DOSSIÊ: METÁFORA
Percursos da metáfora
Mariângela Peccioli Galli Joanilho
131
O direito de ser esquecido, o direito de ser lembrado: memória,
esquecimento e o funcionamento da metáfora
Andréia da Silva Daltoé
135
Da condensação freudiana ao forçage/chiffonage lacaniano: o
transbordamento da metáfora na teoria psicanalítica
Maurício Eugênio Maliska
163
Intoxicação pela Metáfora segundo Gilles Deleuze e Félix
Guattari: os desenhos do pequeno Richard (1941)
Hélio Rebello Cardoso Jr.
Renata P. Domingues
189
O historiador e a metáfora
André Luiz Joanilho
231
Das relações de sentido na linguagem ou sobre como a metáfora
produz o acontecimento
Mariângela Peccioli Galli Joanilho
249
RESENHA
VIRILIO, P. L’ administration de la peur. Paris: Textuel, 2010, 94 pp.
Anderson Braga do Carmo
269
APRESENTAÇÃO
A revista Línguas e Instrumentos Linguísticos chega a seu 33°
número e a seu 16° ano de funcionamento. Neste período, a revista
publicou artigos na área da história das ideias, dos métodos e conceitos
das ciências da linguagem, ao lado e análises linguísticas nas mais
variadas áreas.
A partir deste número, Línguas e Instrumentos Linguísticos passa a
ter uma nova seção: Dossiê. Com esta seção, a revista passa a publicar
um conjunto de artigos sobre um mesmo tema. Ao mesmo tempo, ficam
mantidas a seção de artigos não temáticos, que passa a se chamar Seção
Aberta; a seção Crônicas e Controvérsias, para publicar apresentações
históricas importantes e debates tanto sobre questões da história das
ideias linguísticas quanto atuais; a seção Resenhas, para refletir sobre a
produção das Ciências da linguagem hoje.
Esperamos que não só este novo formato da revista passe a
contribuir mais para esta área de reflexão, quanto o tema do Dossiê
deste número, a metáfora, contribua para o estudo desta antiga e sempre
atual questão.
Neste número 33, estão publicados na Seção Aberta quatro artigos.
María del Pilar Roca analisa os movimentos realizados pela Coroa
Espanhola para a legitimação da língua castelhana como língua
nacional e como língua de exemplificação e teorização retórica, em um
longo processo que vai do século XV ao XVIII.
Carolina de Paula Machado faz uma análise enunciativa da palavra
‘preconceito’ e de outras que a determinam sob o modo enunciativo da
eufemização em uma das obras fundamentais da História brasileira:
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.
Em um movimento análogo, Adilson Ventura da Silva apresenta
também uma análise enunciativa de uma palavra em obra acadêmica: a
palavra ‘poesia’ em textos de Bakhtin, por meio da qual discute o lugar
do poético na teorização sobre a linguagem realizada por este autor.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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APRESENTAÇÃO
Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia e
Daiana de Oliveira Faria propõem a noção de língua-concha para a
compreensão, na metodologia da Análise do Discurso, da relação entre
língua e discurso.
Na Seção Crônicas e Controvérsias, Cármen Agustini problematiza
a questão da constituição do signo linguístico a partir das perspectivas
de Saussure, no Curso de Linguística Geral, e de Benveniste, nos
Problemas de Linguística Geral. Partindo da hipótese de que a língua,
enquanto sistema, resulta de um vazio radical, a autora sustenta que a
noção de significado, assim como a de significante, apresenta, em
relação ao sistema linguístico, um sentido puramente diferencial.
A Seção Dossiê traz como tema, como anunciamos, a metáfora.
Mariângela Peccioli Galli Joanilho convidou autores de domínios
diversos da reflexão em Ciências Humanas, o que resultou em um
conjunto de textos que nos permitem cotejar diferentes modos de
apreensão e mobilização da metáfora na metodologia dessas ciências.
Ela nos apresenta esses textos em Percursos da Metáfora.
A Seção Resenha também nos permite refletir sobre a metáfora,
pelas lentes do urbanista francês Paul Virilio em L’ administration de
la peur, que nos são apresentadas por Anderson Braga do Carmo.
Segundo o resenhista, ao pensar o medo como metáfora de processos
sociais, Virilio nos leva a refletir sobre o medo não como sentimento,
mas como um processo sócio-histórico de construção de sentidos. E,
enquanto tal, acrescentaríamos, como um processo de intervenção no
real da sociedade.
Esperamos, com este número 33, contribuir mais uma vez para o
enriquecimento dos debates sobre a língua e a linguagem.
Os Editores
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN
ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE
LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES
DE RETÓRICA1
María del Pilar Roca
UFPB
Resumen: El artículo de Pilar Roca se centra en el estudio del proceso
mediante el cual la lengua castellana se va abriendo paso como lengua
nacional con el objetivo de habilitarse en la instrumentalización de los
principios teóricos. A través de un periodo de cuatro siglos mostra el
lento desarrollo de una estrategia preocupada en un primer momento
por la legitimación como teóricos de autores españoles, haciéndolos
convivir con los clásicas greco latinos, para una vez aceptados, ir
introduciendo los ejemplos en lengua castellana de dichos autores
patrimoniales ya previamente legitimados como teóricos de la retórica.
Resumo: O artigo de Pilar Roca centra-se no estudo do processo pelo
qual a língua castelhana está emergindo como língua nacional, a fim
de ser habilitada na instrumentalização de princípios teóricos. Durante
um período de quatro séculos, mostra o lento desenvolvimento de uma
estratégia preocupada em um primeiro momento com a legitimação de
autores espanhois como teóricos, fazendo-os conviver com os clássicos
greco-latinos, para, uma vez aceitos, gradualmente introduzir
exemplos em língua castelhana de tais autores vernaculares já
previamente legitimados como teóricos da retórica.
Abstract: This article by Pilar Roca focuses on the study of the process
by which the Castilian language emerges as a national language in
order to be enabled on the instrumentalization of theoretical principles.
Over a period of four centuries it shows the slow development of a
strategy concerned at first with the theoretical legitimation of Spanish
authors, putting them side by side with the Greek and Latin classic ones
in order to, once they had been accepted, introduce examples in
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA:
LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL
EN LOS MANUALES DE RETÓRICA
Castilian language from such vernacular authors, previously
legitimated as theorists of rhetoric.
Introducción
Durante las próximas páginas nos proponemos hacer un recorrido
por las ideas sobre el lenguaje defendidas por los latinistas y retóricos
hispánicos entre los siglos XV y el XVIII dirigidas a la construcción e
instrumentalización de la lengua nacional, con el objetivo de evaluar su
grado de presencia dentro de las instancias educativas española durante
el siglo ilustrado. Para ello partiendo de una selección de artes de hablar
y escribir, o también llamadas retóricas, analizaremos las estrategias
que viabilizan la instrumentalización del castellano y su paulatina
entrada en los ámbitos instituciones de enseñanza a partir de la segunda
mitad del XVIII.
Siguiendo los principios historiográficos de Koerner, de
contextualización, inmanencia y adecuación (apud VARGAS
NASCIMENTO, 2011, p.7), no pretendemos hacer aquí un estudio
exhaustivo de las obras escogidas sino que, considerándolas como
cristalizaciones sintomáticas del clima de opinión de una época,
indagaremos en ellas los rasgos que revelen la mentalidad en la que sus
autores se encontraban inmersos, centrándonos para ello en las
afirmaciones sobre la lengua, entendidas como decisiones políticas, que
les llevaron a defender o a adoptar el español en detrimento del latín
para la composición del discurso. Al fin y al cabo, como indica
Hobsbawm, “Los conceptos no forman parte del libre discurso
filosófico, sino que están enraizados social, histórica y localmente y
deben explicarse en términos de estas realidades” (1999, p.17).
Nos centraremos en las afirmaciones directas o indirectas sobre la
lengua incluidas en los prólogos o/y ejemplos de una selección de obras
destinadas al arte de escribir y hablar de escritores señeros – ya sea por
su representatividad, su grado de influencia política o de consideración
por parte de los contemporáneos – que comienzan a plasmarse en el
siglo XV, continuando en los siglos XVI y XVII para, ya adentrados en
el siglo XVIII, evaluar el influjo de dichas ideas en el ámbito educativo.
Durante este recorrido pretendemos identificar la función que se le da a
la lengua romance desde el siglo XV así como la estrategia adoptada
para introducir el castellano en la práctica de la argumentación dentro
del ámbito escolar, teniendo presente que “Castilla – y estamos
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
María del Pilar Roca
hablando de la lengua castellana – era uno de los primeros reinos
europeos a los que se le puede colocar la etiqueta de ‘estado-nación’ sin
que ello indique una falta total de realismo” (HOBSBAWM, 1998,
p.24).
Cabe subrayar que en ese largo proceso hay dos aspectos diferentes
aunque relacionados. Por un lado, se aborda la enseñanza y aprendizaje
de la retórica como el conjunto de reglas que rigen la teoría de la
argumentación y los géneros destinados a persuadir, cuyas autoridades
son las clásicas greco latinas; y por otro se discute su práctica, con
divergencias de opinión sobre si debe realizarse en latín o en castellano.
Es en ese punto donde surge el largo debate sobre la lengua, a veces
explícito, a veces implícito, pues si bien es verdad que durante la Edad
Media y el Prerrenacimiento el castellano ocupa cada vez más espacio
político en detrimento del latín, dicha tendencia avanza relativamente
en el XVII, siglo en el que aún se escriben retóricas en latín pese a los
avisos por parte de latinistas y retóricos de prestigio que defienden la
idoneidad de la vernácula para su enseñanza. No obstante, el camino
está definido pues
El prestigio que adquiere le lengua castellana ya desde finales del
siglo XVI se refleja en el incremento de retóricas escritas en
español en la siguiente centuria. Si durante el siglo XVI sólo se
escribieron tres en castellano, lo que supone un 10% de las treinta
que recogimos en la catalogación mencionada, en el XVII, de las
veinticuatro retóricas catalogadas, catorce fueron escritas en
castellano, ocho en latín, y dos presentan la particularidad de
estar escritas tanto en latín y como en castellano (…). Por tanto,
unos dos tercios aproximadamente de las retóricas del siglo XVII
fueron escritas en lengua vernácula (GALBARRO GARCÍA,
2010, p.74).
Durante el análisis del período aquí acotado, observaremos una
carrera en dos fases por la nacionalización de la lengua que alcanza su
apoteosis durante el XVII. En la primera fase – situada entre los siglos
XV y XVI – encontramos un número significativo de autores de origen
judeoconverso que defienden la lengua vernácula como un espacio de
integración política y social. Por su parte, en la segunda etapa – siglos
XVII y XVIII – se desarrollan retóricas cuyo objetivo está dirigido
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DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA:
LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL
EN LOS MANUALES DE RETÓRICA
hacia la instrumentalización de la lengua para su empleo en medios
institucionales altamente formalizados, aunque sus autores emplean sus
energías en una carrera de competencias con el latín, buscando
argumentos para demostrar que la lengua castellana posee por derecho
los mismos valores de la lengua general, antes atribuidos a la lengua del
Lacio.
Para mejor entender y visibilizar los interlineados de ese gran tejido,
enmarco esta reflexión en la perspectiva glotopolítica tal como fue
definida en 1986 por Guespin e Marcellesi, es decir, como ciencia que
se dedica al estudio del conjunto de acciones sociales sobre la lengua,
el habla y el discurso, ya sean conscientes o inconscientes, permitiendo
así considerar las diferentes dimensiones que recorren la ideología
lingüística como
sistema de ideas que articulan nociones del lenguaje, las lenguas,
el habla y/o la comunicación con formaciones culturales,
políticas y/o sociales específicas. Aunque pertenecen al ámbito
de las ideas y se pueden concebir como marcos cognitivos que
ligan coherentemente el lenguaje con un orden extralingüístico,
naturalizándolo y normalizándolo, también hay que señalar que
se producen y reproducen en el ámbito material de las prácticas
lingüísticas y metalingüísticas, de entre las cuales presentan para
nosotros interés especial las que exhiben un alto grado de
institucionalización (ARNOUX & DEL VALLE, 2010, p.6,
subrayado nuestro).
Para comprender la aparente divergencia de tratamiento de la lengua
entre lo político y lo instrumental en el largo periodo de cuatro siglos
adoptaremos, a efectos de organización, una división provisoria de
retóricas, provisoria porque no con poca frecuencia se entremezclan.
Por un lado consideraremos las que tienen una intención más clara de
servir como manual para una disciplina, es decir, aquellas movidas por
el estudio de la teoría retórica que abastecía básicamente a los ámbitos
formales de enseñanza jurídica y eclesiástica; y por otro las dedicadas
a la formación de predicadores. Mientras que las primeras se preocupan
por deprender los elementos formales del discurso, muestran un
carácter universal, encuentran su cauce en el latín y se desarrollan en el
campo del derecho y la teoría del discurso eclesiástico, las segundas se
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María del Pilar Roca
dirigen a la práctica específica del predicador, llevando más en
consideración al público, se preocupan por desarrollar estrategias que
impacten en el ánimo y se abren camino desde el castellano. Por tanto,
las primeras estarían más dedicadas al estudio de la técnica que
estructura el discurso (logos) y las segundas estarían dirigidas a dar
recursos para establecer vínculos eficaces entre el orador (ethos) y el
público (pathos). Serán estas últimas las que trazarán entre los siglos
XVI y XVII un recorrido diferente al de la retórica jurídica y
eclesiástica, viabilizando el despegue de la lengua vernácula.
En el caso de las retóricas en español veremos que se va poco a poco
presentando el problema de que las autoridades están expresadas en
latín, haciéndose necesaria cada vez más su traducción. Sin embargo,
dentro del proceso de construcción de la lengua nacional es necesario
disponer de autoridades, tanto en el campo teórico como práctico, que
demuestren la capacitación de la lengua vernácula para los menesteres
que define la retórica. En esa empresa veremos que se desarrolla una
estrategia para darle prestigio a los autores patrimoniales mediante dos
movimientos: primero se los elevarán a la altura de los teóricos clásicos
para en un segundo movimiento, ya una vez legitimados, valerse de su
producción literaria en castellano para ilustrar los conceptos retóricos.
La serie de obras escogidas para ilustrar el proceso comienza con la
primera traducción al castellano de De inventione Retorica de Cicerón,
realizada por Alfonso de Cartagena hacia 1420-22, continuando en el
siglo XVI con la primera retórica escrita no solo íntegra sino también
originalmente en español, por el fraile jerónimo Miguel de Salinas
publica en 1541, hasta llegar a las dos primeras retóricas destinadas a
su enseñanza a niños y adolescentes que hemos localizado en la segunda
mitad del siglo XVIII, como son los manuales del Bachiller Alonso
Pabon Guerrero (Rhetorica castellana, 1764), elaborada para la Real
casa de caballeros pajes, y el del padre Calixto Hornedo (Elementos de
Retórica, 1777), utilizada en las Escuelas Pías. Antes dedicaremos un
apartado a la Elocuencia Española en arte (1604), de Bartolomé
Jiménez Patón, en el que se observa más claramente la
vernacularización de la retórica a través de ejemplos tomados de una ya
abastada literatura patrimonial. En cada una de ellas, sobre todo en las
de los siglos XV al XVII trataremos aspectos que revelen
consideraciones sobre la lengua más que sobre la estructura retórica en
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LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL
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sí, pues es el tratamiento dado a aquella lo que permitirá la evolución
de la práctica argumentativa.
1. De Inventione Retorica de Cicerón traducida por Alonso de
Cartagena, ca. 1420-22.
Converso e hijo de converso y bien dotado del don de la palabra,
Alonso de Cartagena (ca.1385-1455) se desempeñó como diplomático
eficaz al servicio del rey de Castilla, Juan II, representándolo en
diversas ocasiones frente a Portugal así como en el Concilio de Basilea
(1339) a cuyo regreso “la producción vernácula del ya obispo de Burgos
pasa a ser original y el mundo antiguo es sustituido por las
preocupaciones inmediatas de la sociedad castellana del s. XV, aunque
la ética permanece como centro de su obra” (ALVAR Y LUCIA
MEGÍAS, 2002, p.94). Él es quien probablemente mejor encarna el
contexto lingüístico cultural que da continuidad al proceso
protagonizado por la lengua romance desde inicios del siglo XIII bajo
los reinos de Fernando III, el Santo y Alfonso X, el Sabio, dirigido a
habilitarla en los diversos espacios estatales, como el administrativo, el
literario y jurídico, en medio de una intensa y densa labor de traducción
en la que figuras de la intelectualidad judeoconversa tenían una
presencia relevante, preocupados como estaban por la situación política
turbulenta que provocaban entre las comunidades de Toledo discursos
descalificadores contra los judíos y, sobre todo, los judeoconversos.
Cartagena se revela, pues, como figura significativa en el campo
social y político que da continuidad a las mentalidad del medievo
peninsular en la que se considera la lengua castellana lo bastante
preparada para actuar tan eficazmente como el latín en el foro
sociopolítico para la resolución de problemas y para la integración de
culturas. Estaba convencido de que “el castellano es tan apto como el
latín para su tratamiento retórico y de que existían ya en su tiempo
autores, como el mismo Santillana, que podían servir de modelos”
(MORRÁS apud MORENO HERNÁNDEZ, 2008, p.73). Así, si
durante el siglo XV, como recuerda Marguerita Morreale, en todo
proceso de traducción había un intelectual judeoconverso que “servía
de instrumento y guía”, y el prócer cristiano que “ponía su mecenazgo
y su recién despertada curiosidad de saber” (1959, p.5), Cartagena viene
a representar esa imagen dedicándose en la segunda mitad de su vida a
trabajos intelectuales como asesor y traductor, vertiendo varios libros
al castellano, entre la traducción que nos ocupa.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
María del Pilar Roca
En el prólogo de la obra, aparecen tres aspectos que merecen
especial atención, el primero es que menciona sin ambages el nombre
de quien le solicita tal trabajo para mejor comprensión del texto, el rey
don Duarte de Portugal, y la segunda es que explica, sin necesidad de
justificarse, el porqué de verterla al castellano, aspectos que serán
tratados de muy diferente manera en la segunda retórica que trataremos
más adelante. En tercer lugar, Cartagena señala una divisora de aguas
que no será bien entendida de nuevo hasta la segunda mitad del siglo
XVIII. Nos referimos a la diferencia establecida entre dos instrumentos
lingüísticos diferentes, la gramática y la retórica a partir de la distinción
de sus propósitos y lo que no es menos importante, las consecuencias
que es distinción trae a la práctica de la retórica. Si la primera se dedica
a enseñar el dominio de la parte descriptiva de la lengua, su estructura,
los ejercicios de traducción y sus diferentes géneros, la segunda tiene
como objetivo persuadir para resolver conflictos, es decir, adquirir las
estrategias de la argumentación eficaz:
(…) algunos cuydan que la Rethorica toda consiste en dar
doctrinas espeçiales para escrivjir o fablar o trasmudar o
hordenar las palabras, mas non es asi. Ca commo quier que della
sale la buena hordenança del fablar, pero no es este su total
yntento. Ca grant parte della se ocupa en enseñar commo deven
persuader e atraerá los juezes en los pleitos e otras contiendas e
a las otras personas en otros fechos quando acaecen (…) Por
ende, qujien lo presente leyere no cuyde que fallará escripto
cómmo escriua las cartas njn commo trasporte las palabras, ca
avnque dello otros mas modernos en tiempo e non de tan alta
manera algo escriujeran, pero los prinçipes de la eloquençia
preçipuos escriptores della en los prinçipales libros non se
ocuparon del todo en esto, mas dieron sus generales doctrinas
para arguyr e responder, para culpar e defender e para mouer los
coraçones de los oyentes a saña o a mjsericordia o a las otras
pasiones que en la voluntad humana cahen (1420-22, p.7-9).
Conociendo y adoptado las técnicas de la argumentación en su
lengua materna, que es la sede del conocimiento práctico, le será posible
al orador echar mano de su natural talento o ingenio para elegir los
argumentos a partir de su intención: “E dende cada una saque por su
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DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA:
LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL
EN LOS MANUALES DE RETÓRICA
Yngenio aquello que entendiou para en lo que quiere fablar cumple”
(1420-22:9). No obstante, es sintomático que Cartagena, a diferencia de
Salinas, como veremos enseguida, no hace ninguna defensa explícita de
la lengua vernácula pues el solo hecho de traducir la obra de Cicerón,
así como el clima de la época, que permite circular llanamente por la
lengua romance en los diferentes ámbitos institucionales, inclusive en
el campo jurídico, como demuestran la dos obra de Alfonso X el Sabio,
no le obliga a ello. Como veremos, no será esta la línea que va a imperar
durante los siguientes siglos, en los cuales las retóricas jurídicas y
eclesiásticas se desarrollarán en latín, no permitiéndose otra lengua para
escribir y publicar los sermones y homilías aunque se enunciaran en
vernáculo.
2. Rhetorica en lengua castellana, de Miguel de Salinas, 1541.
Si bien no hemos verificado hasta ahora ningún dato sobre la
procedencia confesional de Miguel de Salinas, los casos de
judeoconversos entre los jerónimos alcanzaban tal peso que llegó a
aplicarse por primera vez el estatuto de sangre, no ya a una persona,
sino a toda una orden (RÁBADE OBRADÓ, 2004, p.283-284).
Elegidos por Felipe III como Moradores del Monasterio del Escorial
mantuvieron desde sus orígenes una estrecha relación con la Corona
que debilitada por recibir poco apoyo de los nobles necesitaba hacerse
fuerte desde un punto de vista político. Un proyecto que desde los RR
CC se había revelado no solo político religioso sino glotopolítico. Su
importancia radica en que por el hecho de ser un fenómeno
exclusivamente peninsular
le confería una peculiaridad que, inicialmente, podía atraer las
simpatías de los monarcas ya que veían las ventajas de carecer de
superiores extranjeros y decisiones capitulares adoptadas en
territorios extraños a sus dominios y por religiosos que no todos
serían súbitos suyos y con distinta formación, humana y
espiritual, que no tenían las otras grandes familias religiosas,
monásticas o mendicantes (CAMPOS Y FERNÁNDEZ DE
SEVILLA, p.6).
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
María del Pilar Roca
El vínculo con la monarquía no era ya estrecho sino casi
endogámico, pues fue de su mismo seno de donde salieron sus
fundadores,
Pedro Fernández Pecha y Fernando Yáñez de Figueroa, fueron
antes que religiosos nobles de la cámara de don Alfonso el
Onceno (1311-1350), y su hijo don Pedro, luego conocido como
el Cruel (1334-1369), estableciéndose una corriente de simpatía,
admiración y respeto, por parte de muchos miembros de la
nobleza, hacía esa nueva familia religiosa establecida en San
Bartolomé de Lupiana, en tierras alcarreñas, y su proyecto de
renovación espiritual (CAMPOS Y FERNÁNDEZ DE
SEVILLA, p.6).
Las ideas de Salinas sobre el lenguaje presentan además, como
veremos, puntos en común con Cartagena por lo que se refiere a la
apreciación sociopolítica del empleo de la lengua vernácula en el
estudio de la teoría retórica, aunque en el transcurso de más de un siglo
desde la traducción de De inventione haya cambiado la actitud hacia
ella. Prueba de ello es que, a diferencia de Cartagena, en la Rhetórica
castellana (1541), primera escrita en vernáculo, el fraile jerónimo
esconde la identidad de quien le solicita la redacción de la obra y tanto
él como su editor, Juan de Brocar, deben justificarse por haber elegido
la lengua vernácula, lo que muestra el tenor polémico que la lengua
escogida puede acarrear y que no estaba presente un siglo y medio
antes.
A pesar de que Salinas siga a Aristóteles, Quintiliano, asuma
afirmaciones de Erasmo y adopte la perspectiva teórica de Nebrija, la
mera defensa de la lengua castellana, no ya como objeto de estudio sino
como simple instrumento pedagógico, es polémica y por ello se debe
argumentar sobre su elección. Solo así el fraile jerónimo se siente más
legitimado para exponer sus ideas sobre el uso de la lengua castellana
en un medio que se considera reservado al latín. Para ello se refiere en
el prólogo a la necesidad no solo de poseer talento para el dominio del
arte sino a la de tener una experiencia previa que les permita valerse
con eficacia de la técnica. A pesar de tratarse de una retórica para la
oralidad sagrada, dicha experiencia previa, curiosamente, no es
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DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA:
LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL
EN LOS MANUALES DE RETÓRICA
religiosa sino lingüística. Para el fraile jerónimo se debe estudiar
retórica en la lengua que le es conocida al estudiante,
Pues faltando la latinidad, como falta y como tengo por cierto
que faltará adelante, a lo menos tal qual conviene para usar de la
rhetórica, no paresce que ay esperança de remedio, si no es darse
a la latinidad lo que baste, lo qual en España tengo yo por
impossible. A algunos grammáticos o latinos les parescería lo
contrario, pero a la experiencia les querría ver. A lo menos no me
negarán que ellos, ni otros más que ellos, no dirán tan
liberalmente en latín lo que sienten y por tan buenas palabras
como en castellano, y no aviendo esto, háse de tener el
pensamiento ocupado en las palabras y no puede estar libre para
en lo demás, que es lo substancial. Y assí, estando coxos, falta el
exercicio sin el qual no se puede alcançar cosa perfecta. Si no,
véase por quántos se señalan en rhetórica entre los que hasta aquí
la han oído y oyen en Castilla. (…). Y pues la rhetórica es arte de
bien hablar y todos tienen dello necessidad y, según veemos, assí
en sermones como en juizios, cartas mensajeras y hablas
familiares, todos hablen en su común lengua y no en latín, sería
bien que uviesse arte de rhetórica en la lengua vulgar (SALINAS
[1541], p.14-15).
A pesar de todo, en su retórica la ejemplificación está tomada de las
retoricas greco-latinas, sobre todo de Quintiliano, tomando muchas
partes de Nebrija, eso sí, adaptadas a la realidad española del momento
(SÁNCHEZ GARCÍA, 1999, p.40). Sintomático es que en ella se
utilicen ejemplos que remiten a una reciente discusión para la época,
como es el caso de Cosas acaecidas en Roma, de Alfonso de Valdés,
haciendo con ello referencia a hechos conocidos por el lector debido a
su actualidad (SÁNCHEZ GARCÍA, 1999, p.32). Es así como esta
retórica, siendo pensada para formar oradores consigue establecer lazos
de proximidad con el lector.
No obstante muestre gusto por los cultismos y aun cuando coincida
con Nebrija en que los principios teóricos de la retórica son un campo
de conocimiento independiente, su defensa de la lengua común o
vernácula le lleva a que no le convenza la Gramática castellana del
nebrijense (1492) ya que siguiendo la línea de los humanistas del
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renacimiento la interpretación que hace de las fuentes goza de una
independencia importante porque
Salinas toma de Nebrija la definición y luego elabora por su
cuenta el tema; en alguna ocasión toma también los ejemplos, en
la mayoría integra con ejemplos propios, o tomados de otros
textos. La Artis es sin duda un punto de referencia pero no el
único, y, sobre todo, no hay pasividad en el uso de la fuente
(SÁNCHEZ GARCÍA, 1999, p.51).
La crítica de fraile jerónimo se refiere a que mediante la cita de
ejemplos extraídos en su mayoría del Laberinto de Fortuna o las
Trescientas, de Juan de Mena, Nebrija transfiere a la lengua castellana
la morfología y la sintaxis de la latina. Su percepción se inscribe dentro
del mismo pensamiento lingüístico expresado por el intelectual también
de origen converso, Juan de Valdés en su Diálogo de la lengua (15351735). En él, el intelectual conquense piensa la lengua desde su carácter
de flujo, tomando como ejemplos el refranero castellano no escrito,
mientras que el latinista sevillano lo había hecho desde su condición de
disciplina y tomaba los ejemplos de la literatura (ROCA, 2011). Ambas
concepciones, la nebrijense y la valdesiana, son dos tipos de
pensamiento comunes en la historiografía lingüística europea desde el
Renacimiento, dando lugar por un lado a las gramáticas de estado, con
un fuerte componente lógico y prescriptivo y, por otro, a las gramáticas
particulares, que parten del caso para realizar reflexiones críticas,
formuladas y reformuladas al compás histórico de las diversas
situaciones por las que va pasando una lengua viva (ARNOUX, 2013).
Este último es el que encontramos de un modo más o menos formulado
en las retóricas que proponen el paso decisivo hacia lo vernáculo y que
se hace palpable en Salinas quien
parece imaginar una estructura formada por círculos
concéntricos; el primero de ellos comprende la retórica aplicada
al campo de lo judicial que, hincando sus raíces en el pasado
clásico, ofrece modelos tomados de éste; el segundo carece de la
especificidad del primero aunque mantiene aún lazos de filiación
con la antigüedad clásica y contiene en su ámbito no solo lo que
se refiere a la órbita de las letras sagradas sino también al
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DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA:
LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL
EN LOS MANUALES DE RETÓRICA
vastísimo espacio del escrever con estilo y orden; el tercero de
esos círculos compensa su desarraigo respecto a la tradición
grecorromana con la extensión infinita del propio territorio que
coincide con el de la oralidad más íntima y cotidiana y su directo
equivalente en el sistema de escritura (SÁNCHEZ GARCÍA,
1995, p.225).
Es con este tercer círculo como el fraile jerónimo abre camino a una
castellanización de las retóricas, en la misma línea de gran parte de los
autores que servirán de ejemplos en el siglo XVIII. A diferencia de
Mena, figuras relevantes del siglo XVI, nuevamente de origen
judeoconverso, como San Juan de Ávila o Fray Luis de León, autores
cuyas obras en castellano abastecen de ejemplos a las dos retóricas del
siglo XVIII que comentaremos más adelante, se valen del uso del
común hablar para fortalecer sus argumentos y caracterizar su fuerza de
integración social. El primero no publicó ninguno de sus sermones en
vida por estar compuestos en lengua castellana, pero se apoya en las
expresiones de la lengua común en su Audi Filia, como analizamos
profusamente en otro lugar (ROCA, 2014), bajo el argumento de que la
considera razonable:
Y si vale tomar licencia para decir que al amor llama fe, tomando
el efecto por nombre de la causa, tomarla hemos nosotros para
decir que en los lugares de la Escritura en que se dice que por la
fe es el hombre justificado, se entiende al amor por nombre de fe,
entendiendo en la causa el efecto; pues tan usado modo es de
hablar y tan razonable llamar al efecto por nombre de causa
como a la causa por nombre de efecto (ÁVILA, 2007, p.630,
subrayado nuestro).
Por su parte Fray Luis de Léon ya había hecho de la lengua vulgar
ese lugar de común o esa razonabilidad de donde surge la comprensión
Notoria cosa es que las Escripturas que llamamos Sagradas las
inspiró Dios a los prophetas que las escrivieron para que nos
fuessen en los trabajos desta vida consuelo, y en las tinieblas y
errores della, clara y fiel luz; y para que las llagas que hacen en
nuestras almas la passión y el peccado, allí, como en officina
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general, tuviéssemos para cada una proprio y saludable remedio.
Y porque las escrivió para este fin, que es universal, también es
manifiesto que pretendió que el uso dellas fuesse común a todos,
y assí, quanto es de su parte, lo hizo, porque las compuso con
palabras llaníssimas y en lengua que era vulgar a aquellos a quien
las dio primero (LEÓN, 1984, p.140).
La ventaja de asumir la lengua vernácula es para Salinas sobre todo
pedagógica, pues exponiendo ejemplos en castellano se hace posible
que el lector extraiga por sí mismo la comprensión mediante la
familiaridad que el uso de la propia lengua madre le trae, llevándole a
entender el concepto. Apelando a esa experiencia es más eficaz explicar
lo que es, por ejemplo, una digresión,
“Estando yo en la plaça, vi a Pedro quitar unas puertas de una
ventana de mi casa, y entró dentro y salió con mi jarro de plata
que me llevava hurtado; fui corriendo a tenerle y ya era ido; llamé
a Juan y, para que me ayudasse a buscarle díxele lo que passava
y él me ayudó porque también a él le avía hurtado pocos días avía
una capa; pero no le podimos tomar”. Que Pedro le uviesse
hurtado el jarro y averle visto entrar por la ventana y salir con él,
es la narración substancial. Ponerle en ruin opinión, dando a
entender que lo tenía en costumbre y contar el otro hurto que avía
hecho, no lo podía incontinentemente poner, aunque
perteneciesse algo a la causa, porque paresciera cosa por sí y
sintiérase aver passión clara; pero lo primero dio ocasión a dezir
que llamó a Juan para que le ayudasse, y esto dio ocasión para
dezir lo postrero que Juan le avía dicho de la capa, de manera que
paresciesse sólo contar lo que a él le acaesció. (SALINAS, 1541,
p.33).
La transposición de la razón, vigente en latinistas como El Brocence,
que la deposita en el centro de la retórica entendida como método, es
para el Maestro de Ávila la lengua romance, porque su experiencia de
uso la capacita para la persuasión y para la mediación en los conflictos
sociales ya que transita, por un camino más dúctil, por el universo de lo
razonable.
A partir de la reforma, la oratoria sagrada necesitaba llegar a un
público amplio, no necesariamente letrado, socialmente heterogéneo y,
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en su mayoría, desconocedor de la lengua latina. De allí que se vea
obligada a evolucionar más rápidamente que la jurídica o civil, dirigida
a un público técnico y vinculada a una institución con fuertes códigos
de conducción y protocolos en su producción. Como bien puntualiza
López-Muñoz:
La Retórica eclesiástica se sitúa en la avanzadilla de la teoría y,
al menos en el Quinientos europeo, se adapta constantemente a
los cambios requeridos para el correcto desempeño de la
predicación. Las Retóricas civiles son útiles para observar la
evolución interna de la teoría retórica, con todo el proceso
ramista de escisión de la Dialéctica y de la circunscripción de la
Retórica a una Estilística taxonómica; pero las eclesiásticas
entran en cuestiones más profundas, como la propia definición
de su tarea, y más práctica, como la formación del predicador
desde los primeros pasos del discurso hasta la pronunciación.
Responden, en suma, a la diferenciación cristiana entre ciencia
secular y ciencia divina que ya había formulado Tertuliano
(2010, p.15).
Por otro lado, los sentimientos nacionalistas proyectados en el
castellano llevan ya en el siglo XVI, según Cea Galán, a que:
El amor por la propia lengua, la convicción de no poder dominar
otra mejor que la materna, el deseo de enriquecer a ésta tratando
en ella los mismo temas elevados que se tratan en el latín eran
razones poderosas que impelían a escribir en vulgar (…) Así
invadió el romance no sólo el terreno de los textos religiosos sino
también el literario y, más aun, el de la ciencia, síntoma este
indiscutible de la derrota del latín a fines del XVI (2009, p.XLVIXLVII).
Es, por tanto, la necesidad de atender a un público lego y
heterogéneo lo que aleja las que aquí llamamos retóricas disciplinares,
es decir, la jurídica y eclesiástica, de la oratoria sagrada, influyendo más
esta última en el desarrollo de la lengua vernácula. A pesar de ello, no
estará exenta de las viejas contradicciones que la obligada
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incorporación de autoridades grecolatinas le infringía a la lengua
castellana. Ese problema se irá poco a poco resolviendo a medida que
gana adeptos el castellano como lengua nacional porque los autores de
las retóricas y de los manuales se ocuparán en extender las autoridades,
estrategia que consiste en ir incorporando en sus ejemplos autores
patrimoniales que escriben ya en castellano, haciéndolos convivir con
los dictados por el canon clásico.
Durante el siglo XVII estos sentimientos llevarán cada vez más a
hacer evidente la práctica de enseñanza mixta que habían defendido
latinistas de la talla de Francisco Sánchez, el Brocense, y de Juan
Lorenzo Palmireno. Pero también a evidenciar la transferencia de
valores desde la lengua latina hacia la vernácula hasta consagrarla, lo
que Sylvain Aroux define como una transferencia cultural masiva
(2009, p.27), llegando a crearse una fuerte reivindicación nacionalista
con la defensa de la elocuencia castellana. Es en ese período en el que
la lengua vernácula deja de competir con el latín para situarse no ya a
la misma altura sino en un lugar desde el cual declararse hegemónica.
Es la época en la que las ideas nacionalistas lideradas por Gregorio
López Madera al amparo gubernamental alientan a que la lengua
castellana avance en nuevos espacios reservados hasta entonces al latín.
3. Elocuencia castellana en arte, de Bartolomé Jiménez Patón, 1604.
Si Alfonso de Cartagena se vale como autoridad lingüística del
Marqués de Santillana capacitando la lengua castellana para recoger el
conocimiento clásico, y Salinas de una mezcla de ejemplos propios y
bíblicos, Jiménez Patón lo hace de la literatura patrimonial del XVI y
sobre todo del XVII. Entre el estudio disciplinar y la práctica literaria,
Jiménez Patón, como hijo de su época, considera a la elocuencia
sinónima de la teoría retórica, referente universal de corrección del bien
hablar, “que es común en todas las lenguas” (JIMÉNEZ PATÓN, 1604,
p.5), cuya función es enseñar la propiedad de la lengua materna.
Profesor de retórica en Villanueva de los Infantes, tuvo una enorme
influencia durante el siglo XVII y su Eloquencia fue consultada por
numerosos alumnos de La Mancha y de Andalucía.
En su prólogo, da argumentos sobre el prestigio naciente de la
lengua española porque se enseña por arte, es decir, por gramática tanto
en las Indias como en el ámbito de la escuela pública en Francia y otros
países europeos, equiparándose al latín en su calidad de lengua general.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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Sin embargo, su marca más clara de pertenencia a una época está en
suscribirse a las ideas defendidas por Gregorio López Madera,
alineándose en sus ideas sobre el origen de la lengua castellana con
otros autores de la época, como el latinista Gonzalo Correas
(ARNOUX, 2013). En su obra Excelencias de la Monarquia y Reyno
de España (VALLADOLID, 1597), López Madera lidera la
nacionalización de la lengua española al hacerla una de las principales
que ya existían en la época de Noé, de manera que tendría no ya una
relación de dependencia con el latín sino de paridad por lo que se refiere
a su génesis y a su historia.
Confieso que dejándome llevar por el parecer de muchos avia
errado en tener nuestra lengua por latín corrompido mas e visto
estos días con más atención al agudo y doctísimo discurso que
sobre esto haze el Doctor Gregorio López Madrea [sic], del
Consejo de su Magestad, (…). Me e sugetado a su verdad y podre
dezir lo que Horacio, que Dios a alumbrado mis sentidos. Dize
pues que qualquier nación y provincia que se poblo en tiempo de
Noe, tubo su lengua distincta. Y los Españoles antiguos tuvieron
la suya propia distincta de la Latina, que nunca la latina fue la
vulgar de España, que como todas las demás naciones procuran
conservar su lengua (JIMÉNEZ PATÓN, 1604, p.9).
Dándole al castellano el estatus de lengua general, Jiménez Patón
avanza dentro de esa lógica y lo presenta como una matriz formada por
un conjunto de dialectos peninsulares o variedades lingüísticas que
cohesiona y aúna la aparente divergencia o diversidad lingüística,
considerándolas como giros idiomáticos que no comprometen la
estructura de la lengua matriz o general, sino que la constituyen. La
lengua general española es pues la suma de todas las variedades,
centralizando las diferencias y contribuyendo con este razonamiento a
la construcción de la lengua nacional
La propiedad de una lengua no solo se conoce en que tiene
vocablos propios sino que tiene Dialecto y phrases propias pues
que la nuestra tenga lo uno y lo otro por su discurso se haze
manifiesto por el de nuestra doctrina y por el que queramos hazer
en algunos modos de hablar. Porque decir juras a Dios macho no
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tiene, es vyzcaino, Yo arregar el lino es Morisco. Yo sirvo a Dios
es Español dialecto y los vocablos todos son españoles
(JIMÉNEZ PATÓN, 1604, p.10).
Equiparándola más adelante con la división de dialectos en la
Antigua Grecia, identifica en España cinco derivados del español, que
es la lengua general o común, generadora de todas ellas menos del
vasco, “Y en España ay otros cinco, que son la valenciana, Asturiana,
gallega Portuguesa. Las quales todas se an derivado de esta nuestra,
quinta o principal y primera, Originaria Española diferente de la
Cantabria” (JIMÉNEZ PATÓN, 1604, p.10). Y aquellas diferencias que
no las puede explicar como siendo derivadas del español ni quiere
recurrir al latín, echa mano Jiménez Patón de los extranjerismo o
helenismo, manteniendo siempre su tesis de que español y latín están
en el mismo nivel de génesis histórica, no habiendo entre ellas relación
de dependencia,
Lo que es pegarie [sic] vocablos estrangeros a todas las lenguas
a sido común por la vecindad y comunicaciones que entre las
tales naciones a avido, y asi lo tuvieron los griegos y los latinos
y aun algunas construcciones y modos de habar se an prestado
unas naciones a otras como se ve en las locuciones que el Latino
del griego toma que llaman Helenismos, que según esta nueva
gramática enseña son muchos mas que hasta ahora. Y el mismo
latín (…) tiene hebraísmos (…) Y no por eso decimos que la una
lengua es otra, luego por la misma raçon no debemos decir que
la Española es Latina corrompida pues tiene vocablos propios y
Dialectos, vocablos que de otras nación son (JIMÉNEZ PATÓN,
1604, p.10).
Es pues Jiménez Patón hijo de si tiempo en el proceso de
construcción nacional de la lengua española, lo que dará la fuerza
necesaria para poder introducirla en el ámbito educativo cuando este
comienza a ser del interés del estado ya en el siglo ilustrado. El primer
paso se da en el ámbito de las iniciativas educativas, tanto en las
derivadas del Seminario de Nobles, en concreto una de sus creaciones
alternativas o subsidiarias a ejemplo de la Casa de Caballeros Pajes,
como de otras iniciativas de relativo éxito en la época, como es el caso
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL
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de las Escuelas Pías de los padres Escolapios, destinadas a la enseñanza
de la gramática y la latinidad a niños humildes o sin recursos.
4. El siglo XVIII: el espacio dado a la lengua castellana en el
instrumento lingüístico retórico
A la hora de analizar el siglo XVIII debemos tener en consideración
dos asuntos diferentes aunque relacionados. El primero es el cambio de
lengua que se instrumentaliza en las retóricas por vía legal (ya que,
como hemos visto, existían antecedentes textuales), y el segundo es la
concepción lingüística que reside en las medidas pedagógicas
adoptadas en el ámbito institucional de la enseñanza.
4.1 Las medidas legales
Con las medidas reformadoras de Carlos III al expulsar a los jesuitas
de España y América, el ámbito institucional se ve fuertemente afectado
porque era en manos de ellos de quienes estaba la mayor parte del
sistema educacional. En la cédula de 23 de junio de 1768 el Rey Carlos
III dispone que se enseñe retórica en castellano en los cursos
preuniversitarios y recomienda su uso en la enseñanza superior,
VII. Finalmente mando, que la enseñanza de primeras letras,
Latinidad, y Retórica se haga en lengua castellana generalmente,
donde quiera que no se practique, cuidando de su cumplimiento
las Audiencias y Justicias respectivas, recomendándose también
por el mi Consejo a los diocesanos, Universidad, y Superiores
para su exacta observancia, y diligencia en extender el idioma
general de la Nación para su mayor armonía, y enlace recíproco.
(Carlos III, [1768], p.4).
Si durante el XVIII, en la universidad, la lengua seguirá siendo el
latín (LÁZARO CARRETER, [1949], (1985), p.164) tanto en el
territorio peninsular como en el americano, centrada, como lo estaba,
en el estudio del derecho y la teología, en el proyecto educativo de los
seminarios de nobles, de la que depende la Casa de Caballeros Pajes, la
realidad se fue haciendo menos purista con el transcurso del siglo, ya
que las necesidades pragmáticas que tocaban a la Corona exigían una
progresiva profesionalización de los funcionarios que la atendían. Si
dichas necesidades ya presidían las decisiones desde la Edad Media, los
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movimientos reformistas del XVIII les hacen apretar el paso llegando
poco a poco a afectar a la universidad tanto en la península como en las
colonias. Benito Moya, siguiendo a Gutiérrez Cuadrado, afirma sobre
la Universidad de Córdoba, Rio de la Plata, que en este periodo de la
segunda mitad del XVIII “la Universidad llega al siglo XVIII con la
pérdida de (…) espacios ganados por el latín” (2000, p.157),
relegándose su uso a la diplomacia y a los manuales de ciencia. Aunque
será precisamente la ciencia el ámbito del saber que irá alejando el latín
poco a poco de los claustros y de las clases universitarias (LÁZARO
CARRETER, 1985, p.164). Lo que también señala Benito Moya al
puntualizar que dentro del aula “las explicaciones de puntos difíciles de
la ciencia debían hacerse en lengua vulgar” (2000, p.159), implicando
que durante este siglo empiezan a imponerse los valores que los nuevos
intereses económicos despiertan en el gobierno del Estado, avalando los
nuevos saberes y la lengua que los vehicula, es decir, al castellano.
La continuidad dada al manual nebrijense para el estudio del latín,
que tantas críticas había levantado en las universidades españolas, ya
admite adaptaciones que pasan por la consideración de tomar en cuenta
la lengua vernácula. Son las reformas llevadas a cabo por los jesuitas
António Velez en Portugal, que en su Emanuelis Aluari (Évora, [1599])
traduce al portugués las autoridades elegidas por Nebrija (SÁNCHEZ,
p.XII), y de Juan Luis de la Cerda, que hace la misma operación, esta
vez al castellano, con las reglas o preceptos de la famosa gramática
latina en su Arte Regia (1601) (DEL REY FAJARDO, 2012, p.33). Esas
prácticas que durante los siglos XVI y XVII habían sido habituales,
aunque no ostentosas, se hacen más visibles durante el XVIII. A pesar
de la defensa jesuítica del latín, fueron ellos los que aceptaron y
divulgaron el apoyo pedagógico del castellano, separando teoría y
práctica, como ya hiciera Nebrija. Dada su enorme expansión en el
sistema educativo tanto en la península como en América sería difícil
explicar la aparición de retóricas en castellano sin ese trabajo previo.
Es sintomático que tres años antes de la expulsión de la Compañía
de Jesús y cuatro antes de la real orden de Carlos III, en el año 1764, se
publique la Rhetórica Castellana, del Bachiller Alonso Pabon
Guerrero, presbítero y maestro de los caballeros pajes. Como otrora en
el siglo XIII, el XVIII viene a sancionar la tendencia que, de praxis, ya
se estaba dando, aunque sin el reconocimiento formal y normativo del
medio institucional. Si bien en 1725 el rey Felipe V crea el Seminario
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LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL
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de Nobles y entrega su administración a la Compañía de Jesús,
disponiendo que la enseñanza sea realizada en latín, en 1768, el rey
Carlos III, como vemos, cede al flujo de los tiempos y ordena que la
retórica sea enseñada en castellano. En un arco de menos de cincuenta
años se ha dado la vuelta a las prácticas educativas y su eje es el cambio
abierto de la lengua del lacio a la vernácula, pero ¿lo es realmente?
4.2 El proyecto piloto de la Real Casa de Caballeros Pajes
Si las Escuelas Pías eran las primeras escuelas gratuitas, destinadas
a niños humildes o sin recursos sin un proyecto político pedagógico
específico, la Real Casa de Caballeros Pajes es un buen ejemplo de
cómo evolucionan las reformas pedagógicas de la centuria. Siendo,
como dicho anteriormente, un subproducto del Real Seminario de
nobles, se diseña como el destino de la educación de los hijos de la
nobleza. Su proyecto reformista llamó la atención de algunos de los
mejores intelectuales de la época, como Gregoria Mayans y Siscar,
Francisco Pérez Bayer, Eugenio Laguno y Amirola o Gaspar Melchor
de Jovellanos, así,
De esta circunstancia se deriva que la Real Casa, objeto de
sucesivos proyectos reformistas y pedagógicos, se convierta en
cierto modo en reflejo de los avatares, éxitos y miserias de una
España Ilustrada que sobre todo a partir de 1789, son frenados
muchos de sus proyectos de cambio por temor al contagio
revolucionario (DOMINGO MALVADI, 2013, p.13).
Dando continuidad a la comprensión de castellano como lengua
general, las retóricas disciplinares del siglo XVIII son una
manifestación del pensamiento casticista que la promueve al lugar hasta
entonces ocupado por el latín, como hemos visto sobre todo en el caso
de Jiménez Patón. Ese aspecto se observa en la evaluación seguida de
pautas dadas al Palacio Real por D. Francisco Pérez Bayer en 1773
sobre el método que debe ser utilizado en la instrucción de los alumnos
y en la aptitud de los maestros de la Real Casa de Caballeros Pajes. En
ella se recomienda la redistribución disciplinar de la retórica entre una
parte práctica y otra teórica, dando por supuesto el carácter general del
español, considerándolo como un conjunto de principios lógicos y
universales presentes en todas las lenguas. En sus indicaciones se puede
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observar cómo se va saliendo de la retórica crítica y deliberativa para
realizar acciones concretas en el campo institucional educativo que se
viene estructurando en torno a la concepción enciclopédica del
conocimiento propia del hombre ilustrado. Pérez Bayer propone que el
estudio del discurso se distribuya, por un lado, en el de las asignaturas
dedicadas a la Primeras Letras, donde se estudiará la gramática, la
prosodia y la ortografía, según las directrices de la reciente gramática
llevada a cabo por la Real Academia de la Lengua, además de la
composición textual basada en la imitación de uno de los géneros
clásicos, como era la redacción de cartas o epístolas, y que se hiciera
vinculada a la doctrina cristiana. Por otro lado, reserva la enseñanza de
“lo restante de la retórica” al maestro de filosofía, que lo enseñará junto
al “resumen de la metafísica del mismo autor [Antonio Genuense], y la
ethica o filosofía Moral”. Vemos aquí concretarse la recomendación de
Mayans y Siscar, ya indicada por los clásicos, de graduar los contenidos
desde lo más fácil a lo más difícil, lo que implicaba una continuación
de la vieja disciplina que buscaba nuevos espacios en el sistema
educativo iluminista
5. Dos retóricas disciplinares del XVIII: la Rhetorica castellana de
Alonso Pabon Guerrero, 1764, y los Elementos de Retórica, de
Calixto Hornedo, 1777.
Dos ejemplos de retoricas disciplinares en lengua castellana que
hacen de la traducción espacio de encuentro de la lengua latina y la
española los tenemos en la Rhetorica castellana (1764) de Alonso
Pabon Guerrero, y en los Elementos de Retórica, de Calixto Hornedo
(1777), manual de enseñanza para niños reimpreso y varias veces
reeditada en la centuria siguiente, como muestra que intelectuales como
Mariano José de Larra en él estudiara cuando cursó asignaturas en las
Escolapios y por él marcará en cierta manera su estilo (ESCOBAR
ARRONIS, 2002, p.24-25)2. En ambas retóricas se observan estrategias
para legitimar autoridades patrimoniales junto a las ya refrendadas y
van incorporando ejemplos en una mezcla de traducción ideológica e
incorporación de elementos prácticos traídos de su producción ya en
lengua castellana. Primero se incluyen como teóricos y más tarde se
toman sus ejemplos ya no traducidos sino originales en castellano.
5.1. Rhetorica castellana (1764) de Alonso Pabon Guerrero
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA:
LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL
EN LOS MANUALES DE RETÓRICA
Según reza en sus prolegómenos, la Rhetórica de Pabon nace
destinado a la utilidad pública y se escribe con la intención de dotar de
un manual para su estudio a la Real Casa de los Caballeros pajes. Solo
hubo una edición (PALAU Y DULCET, 1959, p.137), aunque alcanzó
cierta expansión en el territorio no solo peninsular sino también
americano, como muestra el hecho de haber sido encontrada en el
acervo de la biblioteca de la iglesia de San Francisco en Buenos Aires.
Se publica con cuatro años de antelación a la referida cédula real del 23
de junio de 1768. Con ello el “bachiller, presbítero y maestro de los
caballeros pajes” pretende servir a propósitos educativos de alcance
imperial, como lo hiciera en su día la Gramática castellana de Antonio
de Nebrija, propósitos que habían empezado a considerarse con cierta
anterioridad a la cédula citada. Dedicada al rey, en su primera página
aparece el escudo borbónico, si bien en la forma anterior a la que tendría
tras introducirle Carlos III varios símbolos personales. El texto se
presenta como un manual de preceptos dirigidos a todos aquellos que
deseen aprender a hablar bien y aunque escrita en su totalidad en
castellano, se encaja en los principios teóricos de la argumentación
heredados de la antigüedad clásica a través del neoclasicismo.
A pesar del antecedente de Jiménez Patón, cuyas autoridades están
en su totalidad en castellano, el principal problema que tiene un autor
del XVIII que escribe una retórica en castellano es el de las autoridades,
pues si se eligen las clásicas no se entra en la lengua vernácula y si se
citan los patrimoniales se dejan de lado las legitimadas y puede haber
riesgo de desautorización. El tratamiento que se le dé a la cita y la
manera como sean elegidos los ejemplos van a permitir hacer el tránsito
desde las autoridades clásicas a las patrimoniales de manera no
traumática en las dos retóricas que aquí comentamos.
Las autoridades elegidas por el bachiller son esencialmente Cicerón
y Quintiliano, seguidos de Aristóteles y San Agustín. Estos últimos,
aunque menos evidentes en las citas, están en la base estructural de la
obra. Los ejemplos están traducidos en su mayoría de los clásicos,
incluyendo los literarios, como Ovidio, y frecuentemente los reproduce
en las notas en la lengua original. Pero además de los clásicos, Pabon
introduce autoridades del siglo XVI que escribieron en latín, como Julio
Cesar Sacaligero (1484-1588) y Fray Luis de Granada, para definir
conceptos, si bien seguidos de ejemplos tomados de los evangelios en
castellano:
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María del Pilar Roca
Los oradores humanos la suelen acompañar con otra figura
llamada Elogio; de la qual dice Scaligero, (40) que es una
sentencia, que nace del juicio del orador, alabado, ò vituperando
alguna cosa, ò algún dicho discreto, ò hazaña grande; con
advertencia, que quando usamos de ella para vituperar, se llama
Antiologia; al modo que dixo Christo, hablando de Judas: Ay de
aquel hombres, por el qual será entregado el Hijo del Hombre
¡mejor le huviera sido no haver nacido! (PABON, 1764, p.15).
Cuando Pabon explica el Epifonema cita como teórico a Granada,
pero tomando el cuidado, que también tendrá Hornedo en la retórica
que después analizamos, de hacerlo legitimándolo mediante su
introducción entre las autoridades clásicas, ya sea los padres de la
Iglesia o los rétores grecolatinos, y las Escrituras. Así observamos que
Granada aparece salvaguardado entre una definición de Quintiliano y
un ejemplo sacado de los Evangelios:
Epiphonema: Que Quintiliano llama aclamaciones, es una
sentencia grave y eficaz, que se suele hacer después de probado,
y referido algún discurso, sacando de las mismas razones de él:
ò es, dice Fr. Luis de Granada, una conclusión, que saca de lo
dicho el que ha contado algún sucesso, y con ella amplia, y con
ella amplifica, y eleva su discurso. Tales son las aclamaciones, ò
Epiforas, con que Christo nuestro Seños concluìa (sic) sus
discursos parabólicos: v.g. por San Mathéo: “Muchos son los
llamados, pocos los escogidos (sic); y por San Lucas: “Todo el
que se ensalza, será humillado, y el que se humilla será ensalzado
(sic).
Por tanto, cuando Pabon escoge a los autores patrimoniales, como
es de esperar un texto del XVIII que ya ha pasado por la evolución que
la oratoria sagrada ha imprimido a la teoría argumentativa, convoca al
autor de los Seis Libros de retorica eclesiástica en calidad de teórico,
aunque sea con una mención que no añade nada nuevo a lo ya dicho por
el canon de autores, con el objetivo de ponerlo a la altura de los clásicos:
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DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA:
LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL
EN LOS MANUALES DE RETÓRICA
Sirve la synonimia para amplificar la oración, para tener copia de
palabras, especialmente quando se han de mover afectos; y para
declarar mejor lo que se ha dicho en una palabra, añadiendo otras,
ora sean propias, metaforicas o equivalentes, por lo qual, y para
que se use bien esta figura, conviene advertir lo primero que el
Orador no la ha de usar ufanamente, y sin necesidad, para no ser
tenido por demasiado verboso, lo qual es defecto, dice Fr. Luis
de Granada (PABON, p.51).
Esa legitimación de Granada entre las autoridades permite la entrada
de algún ejemplo propio de su producción en castellano y así lo hace, o
pretende hacerlo, cuando debe ilustrar el políptoton, para el cual extrae
un trecho de su Guia de pecadores, siendo el único ejemplo que se
introduce en el Manual escrito originariamente en castellano:
Traducción (…) es la repetición de una misma palabra en
diferentes casos con la misma significación (…) como se ve en
este exemplo de Fr. Luis de Granada: Los siervos de Dios
guardan en su corazón estas sus palabras: en ellas tienen su
esperanza: con ellas se esfuerzan en sus trabajos: con ellas
confian en sus peligros, con ellas se consuelan en sus angustias:
à ellas recurren en sus necesidades: ellas les encienden en amor
de tal Señor (PABON, p.51).
Por tanto, Pabon trata Granada como un autor moderno que puede
dialogar con los teóricos clásicos de la retórica, convocándolo para
cuestionar que la clasificación de figuras pueda ser definitiva, ya que
estas varían constantemente, una afirmación que ya había hecho el
propio Quintiliano. Pero sobre todo, el pensamiento de Granada le sirve
para cimentar “que son solo dos los géneros de las Figuras, que se debe
usar en la Rhetorica, uno acerca de las sentencias, y sentido de las cosas,
y otro acerca de las palabras solamente” (PABON, p.13) subrayando la
importancia de tener una experiencia previa de orden lingüístico que
permita primero esa reflexión sobre el sentido de las sentencias antes
de llegar a la comprensión del significado de las palabras y, por tanto,
su empleo eficaz. Es este aspecto lo que lo vincula al tercer círculo del
lenguaje íntimo propio del renacimiento español y que Sánchez García
identificara en su estudio de la Retórica de Salinas.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
María del Pilar Roca
A pesar de todo, eso no le impide a Pabon seguir la línea marcada
por la elocuencia del siglo XVII, en la línea de Jiménez Patón (1607),
al dedicar extensas páginas a la enumeración y explicación de las
figuras, de manera que más bien parece un recurso retórico, un captatio
benevolentiae, adelantándose en su pedido de disculpas, caso de que la
clasificación no satisfaga al lector. De hecho, como profesor de una
técnica, el presbítero considera que la experiencia se adquiere con el
ejercicio disciplinado mediante la imitación de las obras de excelencia
recogidas en un canon de autores clásicos. Para Pabon, como no podía
ser menos, el estilo se crea con la aplicación de reglas previamente
memorizadas que permitan aprender a imitar, siempre en una escala que
va de lo más simple a lo más complejo en coherencia con el propósito
pedagógico que preside la obra. Así propone recurrir al parafraseo; a la
reformulación de la idea con otras voces; a seguir las figuras; al
resumen y a la ampliación; a la cita poética y, por fin, a la traducción.
Todas ellas son presentadas como prácticas que llevan al dominio
de la técnica, revelando un objetivo más dirigido al desarrollo de la
escritura que a las habilidades de un orador. Se observa aquí ya el
espíritu que irá a eclosionar en las retóricas del siglo XIX (ARNOUX,
2008, p.330) y también el que animará a un escritor que se irá a regir
más por un anhelo de lenguaje ideal y literario antes que por uno de
amplio uso y de fuerte consenso social, pues la lengua se va a alimentar
de figuras que estructuran un discurso “apartado del común lenguaje y
modo ordinario de hablar” (PABON, p.13). Esta última afirmación
entraña un concepto de lengua sintomático pues indica que aunque la
retórica estuviese en lengua vulgar no significaba que incorporase los
valores propios del uso, que tiene por referente a la comunidad de
hablantes, sino que tiene como referencia una lengua literaria, a la
manera del latín culto y de la gramática nebrijana.
Pabon usa otros recursos además de la cita de autoridades clásicas
(los ya reconocidos) y las extendidas (aquellas que necesita activar
como tales), aunque estas sean las más frecuentes. A veces introduce
un ejemplo de su propia cosecha, como es lo común en las gramáticas
de estado y generales, pero en otros casos aprovecha la coyuntura
pedagógica para introducir conocimientos enciclopédicos, en
consonancia con el objetivo del proyecto ilustrado de la Real Casa. Por
ello cuando explica el tipo de Conocimiento que busca saber y entender
lo aclara en el cuerpo del texto, poniendo en nota de pie de página el
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA:
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EN LOS MANUALES DE RETÓRICA
ejemplo enciclopédico que se conjuga con ejemplos de naturaleza moral
a partir de frases propuestas por el autor, intentando poner en práctica
ese “vasto programa que mezclaba hábilmente la ´formación´ y el
adoctrinamiento” (CHERVEL apud NARVAJA ARNOUX, 1998,
p.32).
Asi mismo la question, sea universal, ó particular, se divide lo
primero en question de conocimiento y en question de acción. La
de conocimiento mira por ultimo fin el saber, y entender: v.g.
Desear actuarse si la tierra es de figura esférica, (a) [nota de pie
de página:] esfera se llama un cuerpo sólido, y rotundo, contenido
en una única superficie, en cuyo centro está el punto, del cual
salen todas las líneas rectas guiadas à la circunferencia. También
se llama Esfera la descripción del movimiento de las estrellas, y
de ellas son varios los géneros; porque una se llama Grecanica,
en la qual se explica el oriente, y ocaso de las estrellas, al modo
en el que son vistas en el Emisferio (sic) de los griegos: otra es
esfera barbárica, que es acomodada al ritmo de los Egypcios: otra
Pérsica, acomodada al de los Persas; y otra índica, acomodada al
de los Indios. [fin de nota] o si es mayor que la luna. La question
de acción atiende, como fin ultimo, à las acciones humanas: v.g.
Si es licito repeler la fuerza con la fuerza, ò si ese han de perdonar
las injurias (PABON, [1764], p.4).
De esta manera, más allá de pretender la enseñanza y aprendizaje de
la composición textual, la obra se convierte en una mezcla de ejemplos,
definiciones y directrices como pretexto para introducir un tipo de
conocimiento y de conceptos sobre el saber que reflejan el anhelo del
hombre ilustrado por alcanzar un dominio universal, como se observa
en la información de tipo enciclopédico que introduce, pero además
busca la legitimación de nuevas autoridades, que junto a las clásicas
permitan el tránsito hacia un saber más específico de la lengua
castellana.
5.2. Elementos de Retórica (1777), del P. Calixto Hornedo
En el otro extremo de la casa de Caballeros pajes nos encontramos
con las Escuelas Pías de Madrid, fundada un año después que el
Seminário de Nobles, 1726 por los padres escolapios que acogía a niños
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cuyas familias no tenían recursos económicos. En el prólogo de
Elementos de Retórica (1777), segunda retórica que aquí traemos, su
autor, el padre Calixto Hornedo, profesor de la asignatura en dichas
escuelas, deja bien claras sus razones para escribir en lengua castellana
que pretenden, además de “cumplir a voluntad del Monarca”, obedecer
a su experiencia como maestro. Estas parecen calcadas de las de
Salinas:
(…) es bien cierto el atraso, que padecen los Niños con estudiar
la Retorica en latín; i esto no porque no se pueda aprender assi,
sino porque ordinariamente los Niños, que comienzan a
aprenderla no están tan adelantados en la Latinidad como se
requería: que si lo estuvieran, seria lo mismo estudiarla en latín,
que en romance Castellano. De donde procede, que acabado su
estudio, no solamente no han conseguido algún razonable
conocimiento de la elocuencia latina, pero ni aun de la
Castellana; puesto caso que si se les manda escrivir una Carta, o
razonamiento en lengua vulgar, no atinan, ni aciertan a ponerlo
por obra: lo cual cuan grande mengua sea, por si mismo se deja
conocer. Pues todo esto se remedia, a mi corto entender, con una
Retorica en romance, i aun dado que después de estudiada, i
aprendidos los egemplos latinos, que en ella seria bien poner,
aprovecharan poco en la elocuencia latina; a lo menos con
egemplos Castellanos puestos al lado de los otros, i con la
explicación de la Retorica en la misma lengua, tengo por cierto
(i aun lo he tocado con la experiencia) que saldrían algún tanto
amaestrados en la elocuencia Castellana (p.11-12).
Sin embargo, estas cuestiones de aprender la composición textual a
partir de los conceptos retóricos son tan importantes como la
preocupación por enlazar la lengua castellana con el mundo clásico, ya
que eso la legitimaría en los ámbitos institucionales, por lo que ya en el
subtítulo de la obra indica que en ella se incluyen “egemplos latinos de
Cicerón i castellanos de Frai Luis de Granada para uso de las escuelas”.
Se trata, por tanto, de un manual en el que se prepara a la retórica para
dar el salto al castellano en ámbito escolar de mano de autores
patrimoniales. Si en Pabon había un apego simétrico a las autoridades
clásicas, traduciendo sus citas al castellano pero dejando el original en
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nota de pie de página, la propuesta de Hornedo es valerse de
traducciones que van dejando de ser literales e incluir los autores
castellanos en sus citas originales porque partiendo de ellos se puede
construir el tránsito que lleve a los alumnos a entender la teoría de la
argumentación. Ilustrando el contenido teórico de los largos ejemplos
tomados en latín de Cicerón mientras mezcla la explicación con los
ejemplos extraídos de los mencionados Fray Luis de Granada, al que
considera el “Tulio español” (HORNEDO, 1777, p.12), y del Maestro
de Ávila, la labor pedagógica se simplifica. En consonancia con esta
estrategia, cuando debe explicar alguna figura o tropos, se sirve tanto
de Quintiliano como de Horacio y Granada, creando esa secuencia de
continuidad y disolviendo la posible impresión de desvío y consiguiente
rechazo que la sola introducción de autoridades en castellano pudiera
crear entre las instituciones de enseñanza. En Hornedo se pasa de
traducir el texto, lo que llevaba al estudio del latín, a traducir el
concepto, lo que lleva al estudio de la teoría argumentativa en sí.
Por todo ello, desde las primeras páginas de su manual se observa
cómo va progresivamente desde las autoridades clásicas, representados
por Cicerón, a las patrimoniales, representado por Granada, mediante
dos gestos. El primero es instituir a este último como nueva autoridad
en una retórica ya plenamente castellana que no contesta la canonizada
sino que la iguala. Al aplicar a Granada el epíteto de Tulio español
porque ha realizado una traducción modélica del latín al romance
(HORNEDO, 1777, p.49-50), lo equipara a Cicerón y lo legitima para
citarlo en adelante tomando sus textos escritos directamente en
castellano, que emplea tanto para ilustrar su dominio de la teoría de la
argumentación como el de la lengua vernácula. A diferencia de Pabon,
por tanto, no lo cita solo como teórico a partir de su obra en latín de Seis
libros de retórica eclesiástica (1576) sino que lo hace también como
autoridad en el dominio de la lengua castellana, valiéndose de ejemplos
extraídos directamente en castellano del Símbolo de la fe (1556) o la
Guía de pecadores (1567), ilustrando géneros, figuras o tropos, tales
como la narración (HORNEDO,1777, p.60-61), la repetición por
sustantivos y adjetivos, (HORNEDO,1777, p.65-66), la amplificación
por metáforas y perífrasis (HORNEDO, 1777, p.66) o el uso correcto
del léxico (HORNEDO, 1777, p.67), movimientos que le permiten
distanciarse del ejercicio de la traducción literal y entrar en el terreno
pleno del castellano, una vez alejado el temor del desvío ya que desde
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el principio ha tomado el debido cuidado de demostrar la continuidad
del fraile con la tradición.
Escrito con estructura de catecismo en el cual se explicitan las
preguntas, Hornedo sigue el género con orden y disciplina razonada,
mostrando cómo sería de diferente si esta figura no existiese, una
diferencia que los alumnos pueden entender mejor en la lengua propia,
12. Es neccessaria la Elipsis para la elegancia del lenguaje?
Es tan necessaria la Elipsis para la elegancia del lenguage, que
sin Elipsis seria este muy desagradable, grossero, e insufrible. En
todos los Idiomas desde su principio se fueron poco a poco
omitiendo algunas palabras que fácilmente se podían entender,
ya por el repetido uso de las locuciones, ya por el mismo sentido
i contexto de la oración. I de esta manera se vino a conseguir lo
que naturalmente deseamos, que es la pronta explicación de
nuestros pensamientos, i que nos entiendan prontamente las
personas con quienes tratamos: este parecer siguió Horacio en
materia de Elipsis, quando dijo (l i b. i.sat.10,) Est brevitate opus,
ut currat sententia, neu se Impediat verbis lassas onerantibus
aures. Del mismo parecer es Quintiliano tratando de las figuras
retoricas, que consisten en la Elipsis (lib. 9. cap. 3. ) i Suetonio
hablando de las proposiciones, i conjunciones, que alguna vez
omitidas hermosean el discurso (in vita Aug.,86.) Dos egemplos
uno latino, i otro Castellano aclararán lo que vamos diciendo:
Digitonim mèdius est toñgior. En, esta oración ay Elipsis, pero
para que no la huviesse se avia de explicar assi: Ex numero
digitorum digitus medius est longior digitus prae ea mensura,
ad quam mensuram caeteri digiti sunt digiti longi. Egemplo
Castellano de Fr. Luis de Granada en el que ay Elipsis; Estos dos
amores de Dios, i del mundo son como dos balanzas de un peso,
las cuales se han de tal manera que necesariamente si la una
sube la otra baja, i al revés. Esta clausula para no tener Elipsis
avia de decir assi: Estos dos amores amor de Dios i amor del
mundo son como son dos balanzas de un peso, las cuales
balanzas se han de tal manera, que necessariamente si la una
balanza sube, la otra balanza baja, i lo mismo sucede al revés,
que si la una balanza baja, la otra balanza sube. Véase aora
quan tosco, i grossero es el lenguage de dichos ejemplos latino, i
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DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA:
LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL
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Castellano por faltar en ambos la Elipsis, para que se entienda
por aqui cuanto conduce su uso para hacer a un discurso elegante,
i agradable (HORNEDO, 1777, p.33-34. Negritas e itálicas
tomadas según el original).
Junto a Granada, el maestro de Ávila, se erige como hábil estilista
para ilustrar la definición que hace de la Interrogación o pregunta
retórica:
es cuando el Orador pregunta, no para que le respondan, sino para
declarar con mas fuerza algun afecto, o passion. Egemplo de
Cicerón: Quousque tándem abutere Catilina patientia nostrai
mas fuego, i alma tiene esta pregunta, que si digera fria, i
secamente: Iam dio. Catilina abtlteris patientia nostra. Egemplo
del V, Juan de Avila: Quien ay que! no aya errado en lo que mas
quisiera acertar ? Quién podra, presumir de saber, pues
inumerables veces ha sido engañado? (Epistolario trat. 4. Carta
2.) (HORNEDO, 1777, p.140).
y de la distribución:
es cuando un todo se divide en sus partes, i a cada una se le dá lo
que le corresponde, o cuando a varias cosas se les van en
particular acomodando sus oficios i propriedades. Egemplo
atablando Cicerón en la Oración, que dijo en defensa da Sexto
Roscio Amerino del castigo, que prescrivian las leyes Romanas
contra los parricidas, que era meterlos vivos en un pellejo, i
cosido éste arrojarlos al Rio, dice, qué dé esta manera quedavan
aquellos infelices privados de todo linaje de consuelo, aun el mas
ordinario, i común , i prosigue diciendo: Etenim quid est tam
commune, quam spiritusvivís, terra mortttis , mare flucluantibus,
litus cic clis i Ita vivunt, dum possuntf, ut ducere animam-de
Coelo non queant, ita moriuntur, ut eorum ossa térra non tangat,
ita iactantur fluítibus , ut numquam abiiciantur , ita postremo
eiiciuntur, ut ne ad saxa quidem mortui conquiescant. Por la
agudeza de está distribución le dio el pueblo muchos aplausos a
Ciceroni, como él mismo lo dice en su oracion. Egemplo
Castellano de el V. Juan de Avila: O peligro de infierno tan para
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temer! quién es aquel, que no mira con cien mil ojos no resvale
en aquel hondo lago donde para siempre llore lo que
temporalmente rio donde están los ojos de quien esto no vé i las
orejas de quien esto no oye í el paladar de quien esto no gusta i
verdaderamente señal es de muerte, no tener obras de vida.
(Epistolario trat. 4, Carta 2.) (HORNEDO, 1777, p.165-167).
En un paso más para legitimar los autores en lengua castellana,
creando espacios en los cuales pueden ser considerados a la misma
altura que los clásicos, Hornedo continúa haciendo puentes entre la
tradición vigente y los pasos dirigidos a incluir lo nuevo. Para ello, a la
muestra de traducción comparada que recorta al principio de su manual
entre Cicerón y Granada, añade ahora la opinión del latinista y traductor
Simón Abril (1530-1595), que si bien insiste en la preeminencia de
Cicerón, el gran número de ejemplos aportados a lo largo de los
Elementos de retórica así como el epíteto utilizado, Tulio español, han
terminado por sensibilizar y construir el nombre de Granada como
homólogo del rétor latino, abriendo camino a otros contemporáneos que
ya se legitiman sin necesidad de recurrir a la traducción como Ávila,
Santa Teresa de Jesús y Fray Luis de León, autores que fueron incluidos
como modelos en los ejemplos de los libros didácticos hasta el siglo
pasado.
En suma solo Ciceron nos puede servir de librería general, segun
dice el dicho Simon Abril i de modelo en todos los estilos. Por lo
que hace a nuestra lengua vulgar, podemos decir lo mismo del
Tulio Español Fr. Luis de Granada es sencillo en las vidas de Fr.
Bartholomé de los Martires i del V. Juan de Avila, es templado,
i florido en el Símbolo de la Frai muy sublime en el Guia de
pecadores, el cual libro es uno de los tesoros mas ricos de
sublimidad, i elocuencia que possee nuestra Lengua Castellana.
Pero hablando también de algunos otros Escritores las Cartas de
Pulgar, i los Diálogos de Pero Mexia son del estilo tenue i
assimismo las Cartas de Santa Theresa pero con mucha mas
ventaja, por ser de lenguage mas puro castizo, natural, i
agraciado. (…) i al sublime Fr. Luis de León en algunos de los
Nombres de Christo, como el de Principe de la paz, el de Rey, i
el de Padre del Siglo futur (HORNEDO, 1777, p.197-198).
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DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA:
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EN LOS MANUALES DE RETÓRICA
Las menciones al nuevo estilo diseñado de manos de Granada,
Ávila, Teresa de Jesús, Fray Luis de León, y otros autores
contemporáneos a ellos, son gestos que hablan del momento en que la
retórica comienza a independizarse de los modelos latinos para ofrecer
un nuevo espacio en el que culminan los largos trabajos de defensa de
la lengua común, pues todos esos autores castellanos, atentos a las
fuentes y buenos lectores tanto de los clásicos como de los textos
bíblicos, no se habían dejado cegar por la preocupación de perpetuar la
estructura formal del latín en la vernácula, prefiriendo adentrarse en un
pensamiento de naturaleza vital en el que se guiaban, más que por la
razón universal y abstracta, por aquellas directrices que su experiencia
de vida les había dictado como razonable y que remitían a una situación
particular y concreta. Recordemos que tanto San Juan de Ávila, como
Fray Luis de León habían defendido la fuerza de la razón que habitaba
en la lengua común (ROCA, 2014). Cerrando el círculo, es sorprendente
que los autores que se van a legitimar de ahora en adelante, como
anuncian ambas retóricas, sean en su mayoría o bien de origen converso
o bien colaboraran con ellos en sus tareas sociales y teológicas,
siguiéndolos como maestros. Esos autores ahora reunidos y
consolidados como las nuevas autoridades patrimoniales venían a
sentar las bases de un estilo que se expresaba por la razonabilidad que
la vida imprimía en el intelecto y no desde el forzamiento que la noción
de estructura lógica latina imprimían a la castellana y que condenaron
tanto Salinas, Hornedo o Juan de Valdés, tendencia que se percibía en
la expresión de quienes “no van acomodando, como dixe se debe hazer,
las palabras a las cosas, sino las cosas a las palabras, y así no dicen lo
que querrían, sino lo que quieren los vocablos que tienen” (VALDÉS,
2003, p.243).
Palabras finales
Como vemos, para dar entrada plena al español en la retórica, hubo
que equiparar las autoridades patrimoniales a las clásicas, lo que se hizo
a través de un proceso lento que se va desarrollando a través de
diferentes grados de extensión por medio de los cuales primero se eleva
a los autores castellanos a la calidad de teóricos de la argumentación,
situándolas así junto a las ya legitimadas y acompañando su reflexión
teórica con ejemplos sacados de los rétores clásicos o de las Escrituras
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para, más tarde, cuando ya hay un consenso sobre su validez, citarlos
en sus ejemplos tomados de sus obras en castellano prescindiendo poco
a poco de la traducción. Es el caso de Granada, que se cita como teórico
en el manual de Pabon Guerrero a partir de sus Seis Libros de Retorica
Eclesiástica, escritos en latín y sin traducción al castellano aun, y que
sin embargo en el de Hornedo ya aparece como modelo de traductor, lo
que muestra un mayor grado de independencia frente a las autoridades
latinas, y se le eleva explícitamente como ejemplo de estilista
castellano, incorporando extractos textuales tomados de sus obras en
vernácula, Guía de pecadores y Símbolo de la fe. Legitimado como
teórico y como traductor, Granada abre paso a otros autores ya en su
producción plenamente vernácula.
El desarrollo de las vernáculas y en concreto del castellano obliga,
entonces por un lado a seleccionar y elegir nuevas autoridades y, por
otro, a definir estrategias que la constituyan como disciplina pedagógica
en lengua vernácula, cuya naturaleza, aun teniendo el origen en la
lengua del Lacio, ya tiene consolidada una personalidad propia. Esa
nueva literatura, tomada sobre todo de la producción espiritual del
Renacimiento, va a servir de base para la estructuración de las retóricas
escolares que aquí hemos tratado y que ponen de manifiesto las
estrategias seguidas para posibilitar el tránsito desde la consideración
de la lengua latina como lengua general hacia la comprensión de las
lenguas vivas, entendidas como esa experiencia lingüística previa de la
que hablaba Salinas y Valdés, que permitía la compresión y empleo de
los principios de la teoría retórica y más tarde ocupar su lugar como
lengua nacional, equiparable a la latina en su fuerza de construcción de
espacios políticos y sociales nacionales. A pesar de las presiones
formales sobre la vernácula, a partir del XVIII, ayudado por los
ejemplos patrimoniales, los caminos entre la latinidad y la lengua
castellana ocupan lugares claramente distintos en el ámbito disciplinar.
Notas
1
El artículo es resultado de la investigación posdoctoral de la autora vinculada
a la línea de investigación dirigida por la Prof. Drª Elvira Narvaja de Arnoux
en la Universidad de Buenos Aires (UBA) titulada: “El derecho a la palabra:
perspectivas gloto-políticas de las desigualdades/diferencias”.
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EN LOS MANUALES DE RETÓRICA
“Considerable importancia en la formación del estilo de Larra atribuye (Pierre
L. Ullman) a la clase de retórica a que asistió en las Escuelas Pías; por ello
reseña con cierto detalle el manual con que en dicha clase se enseñaba la
asignatura, los Elementos de retórica de. P. Calixto Hornedo”
2
Fuentes
CARLOS III, rey. [1768]. Real cédula de S.M. a consulta de los señores
del Consejo reduciendo el arancel de los derechos procesales de los
reales de vellón en toda la Corona de Aragón. Disponible en: <
https://play.google.com/books/reader?id=mbelipZiLggC&printsec
=frontcover&output=reader&authuser=0&hl=pt_BR&pg=GBS.PR
7 > Accedido el 29/05/2014.
CARTAGENA, A. [Mss.1420-22]. De inventione Rethorica de Cicerón
[Ed. VILLACAÑAS BERLANGA, José Luis para la Biblioteca
Saavedra
Fajardo].
Disponible
en
http://www.saavedrafajardo.org/Archivos/LIBROS/Libro0164.pdf
Accedido el 10/08/2014.
HORNEDO, Calixto. [1777]. Elementos de retórica. Valencia: Benito
Monfort.
JIMÉNEZ PATÓN, Bartolomé. [1604]. Eloquencia Española en Arte,
Toledo: Tomás de Guzman.
PABON GUERRERO, Alonso. [1764]. Rhetorica Castellana, Madrid:
Joaquín Ibarra.
PÉREZ BAYER, Francisco. [Mnss 1773]. Antecedentes, informes,
reglamento y otros documentos sobre el estado de la Casa de
Caballeros Pajes con motivo de su incorporación al Real Seminario
de Nobles de Madrid en 17 de julio de 1786: Informe de D.
Francisco Pérez Bayer sobre el estado de la Casa de caballeros pajes
con motivo de su visita para examinar el método que se observa en
ella en la instrucción de los caballeros pajes y la aptitud de sus
maestros. Archivo Histórico Nacional. Ministerios de Educación,
cultura y deporte. Signatura UNIVERSIDADES, 686, Exp.1.
Referencias
AGUILAR PIÑAL, F. (1988). Entre la escuela y la universidad:
La enseñanza secundaria en el siglo XVIII. Instituto de
Estudios madrileños. Madrid: Consejo Superior de
Investigaciones Científicas, pp.225-243.
42
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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Palavras-chave: história das ideias sobre a linguagem; retóricas,
instrumentos lingüísticos
Keywords: history of language ideas; rhetorics; linguistic instruments
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
A PRODUÇÃO DE SENTIDOS
ATRAVÉS DA EUFEMIZAÇÃO
NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO
DA SOCIEDADE BRASILEIRA
Carolina de Paula Machado
UFSCar/UEHPOSOL
Resumo: De uma perspectiva enunciativa, este artigo propõe
investigar os sentidos da palavra ‘preconceito’ em Raízes do Brasil
(1936), de Sérgio Buarque de Holanda, buscando compreender a
eufemização como um dos modos pelos quais as relações sociais
brasileiras são descritas na primeira metade do século XX. Carolina
Machado mostra o preconceito contraditoriamente inscrito na sua
eufemização.
Abstract: From an enunciative perspective, this paper proposes to
investigate the meanings of the word 'prejudice' in Roots of Brazil
(1936), by Sérgio Buarque de Holanda, seeking to understand
euphemization as one of the ways in which Brazilian social relations
are described in the first half of twentieth century. Carolina Machado
shows the prejudice contradictorily included in its euphemization.
Investigar os sentidos de uma palavra de nosso ponto de vista é
também observar, do lugar específico da semântica, a maneira como
uma parte do real é interpretada. Ao analisar a maneira como a palavra
preconceito é significada na famosa obra Raízes do Brasil (1936), de
Sérgio Buarque de Holanda, buscamos compreender uma das maneiras
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA
EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
como as relações sociais brasileiras são descritas na primeira metade do
século XX.
Nesse processo analítico constatamos que poucas vezes a palavra
preconceito aparecia ao longo do texto, algo que nos chamou a atenção
por se tratar de uma obra que analisa a formação social brasileira. A
pouca ocorrência dessa palavra levou-nos a olhar para uma série de
outras palavras e expressões que, num primeiro olhar analítico,
considerando a história de enunciações da palavra preconceito em
outros textos1, estavam relacionadas aos sentidos da palavra, levandonos a questionar se, na textualidade, elas poderiam estar substituindo a
palavra preconceito.
Analisamos a relação semântica da palavra preconceito com estas
outras palavras e expressões no livro de Holanda, considerando que
expressões como “orgulho de raça”, “sentimento de distância”, entre
outras, funcionam no acontecimento enunciativo do texto como formas
de redizer a palavra preconceito suspendendo a sua circulação e
atribuindo-lhe outros sentidos.
Consideramos que os sentidos, assim como os sujeitos, se
constituem no acontecimento enunciativo e que a linguagem é posta em
funcionamento pela história. É assim que chegamos àquilo que a
palavra designa no acontecimento. Nesse caso, buscamos compreender
como ocorre o processo de designação, perguntando-nos se a produção
de sentidos se dá através de um mecanismo textual que eufemiza o
preconceito.
1. Enunciação: acontecimento de linguagem
A análise dos sentidos de uma palavra, a partir da Semântica do
Acontecimento, leva em consideração o fato de que essa palavra integra
um enunciado que por sua vez é enunciado de um texto. O sentido, ou
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Carolina de Paula Machado
seja, o que a palavra designa, se dá na relação entre textualidade e
enunciação.
Definindo o que é enunciação, Guimarães (1995) estabelece a
relação entre sujeito, sentido e história, pensando a história não como
sucessão de fatos no tempo, sem considerar o sujeito como centro do
dizer e considerando que o sentido, juntamente com os sujeitos, se
constitui no acontecimento na relação entre textualidade e
historicidade. Ele define a enunciação como
um acontecimento de linguagem perpassado pelo interdiscurso,
que se dá como espaço de memória no acontecimento. É um
acontecimento que se dá porque a língua funciona ao ser afetada
pelo interdiscurso. É, portanto, quando o indivíduo se encontra
interpelado como sujeito e se vê como identidade que a língua se
põe em funcionamento (1995, p.70).
A relação com a história se dá através do conceito de interdiscurso,
proveniente da Análise de Discurso francesa, fazendo intervir o já dito
para a produção de sentidos na enunciação. É assim que o autor define
“o sentido de um enunciado como os efeitos de sua enunciação” (p. 70).
Quando passa a tratar mais especificamente do acontecimento na
relação com a enunciação, Guimarães considera que a temporalidade é
definida pelo acontecimento enunciativo, que estabelece um presente
que recorta um passado e projeta um futuro. Para o autor,
algo é acontecimento enquanto diferença na sua própria ordem.
E o que caracteriza a diferença é que o acontecimento não é um
fato no tempo. Ou seja, não é um fato novo enquanto distinto de
qualquer outro ocorrido antes no tempo. O que o caracteriza
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA
EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
como diferença é que o acontecimento temporaliza. Ele não está
num presente de um antes e um depois no tempo. O
acontecimento instala sua própria temporalidade: essa a sua
diferença (GUIMARÃES, 2002, p.11-12).
Nesse caso, o presente do acontecimento recorta o passado, como
memorável2, isto é, trata-se de uma “rememoração de enunciações”
recortada pelo presente do acontecimento. Ao mesmo tempo,
estabelece-se um futuro, uma projeção de interpretação e é nessa
relação temporal no acontecimento de linguagem, observada a partir da
textualidade, que os sentidos se constituem.
Considerando a noção de enunciação como acontecimento de
linguagem, passemos agora à textualidade. Os procedimentos de
reescrituração e de articulação entre as palavras são os responsáveis
pela textualidade.
Segundo Guimarães, o procedimento de reescrituração
(...) é o procedimento pelo qual a enunciação de um texto rediz
insistentemente o que já foi dito fazendo interpretar uma forma
como diferente de si. Este procedimento atribui (predica) algo ao
reescriturado (2007, p.84).
Ou seja, a reescrituração é o procedimento de redizer uma palavra
pela sua repetição, por outras palavras que a substituem, expandem,
condensam, a definem, ou pelo apagamento da palavra (elipse),
produzindo-se, assim, sentidos.
50
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Carolina de Paula Machado
Por outro lado, segundo o autor, a articulação “diz respeito às
relações próprias das contigüidades locais. De como o funcionamento
de certas formas afetam outras que elas não redizem” (GUIMARÃES,
2007, p.88). Nesse caso, trata-se da maneira como uma palavra se
articula a outra, seja através de conjunções, de preposições, por
exemplo.
Outra questão que consideramos importante destacar é a relação
integrativa3 dos enunciados no texto (GUIMARÃES, 2002), ou seja, o
sentido de uma palavra e do enunciado depende do texto que integram,
isto é, o sentido de uma palavra depende do sentido do texto do qual ela
faz parte.
A utilização desses conceitos permitiu que percebêssemos que, na
medida em que o autor ia descrevendo as relações sociais entre brancos
e negros, dominadores e escravos, na obra que analisamos – Raízes do
Brasil –, havia uma série de expressões que descreviam como essas
relações aconteciam e que essas expressões estavam relacionadas
semanticamente com o domínio semântico de determinação da palavra
preconceito se consideramos a história de enunciações dessa palavra.
2. Análise
i) Reescrituração por repetição da palavra preconceito
Primeiramente, vejamos as reescrituras da palavra preconceito por
repetição que estão em negrito, que ocorrem nos seguintes recortes
retirados da obra Raízes do Brasil:
1) Outras ocupações reclamam agora igual eminência, ocupações
nitidamente citadinas, como a atividade política, a burocracia, as
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA
EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
profissões liberais. É bem compreensível que semelhantes ocupações
venham a caber, em primeiro lugar, à gente principal do país, toda ela
constituída de lavradores e donos de engenhos. E que, transportada de
súbito para as cidades, essa gente carregue consigo a mentalidade, os
preconceitos e, tanto quanto possível, o teor de vida que tinham sido
atributos específicos de sua primitiva condição (HOLANDA, 1995,
p.82).
2) Dos fidalgos portugueses que andavam então pelas partes do Oriente
sabemos como, apesar de toda a sua prosápia (altivez, orgulho), não
desdenhavam os bens da fortuna, mesmo nos casos em que, para
alcançá-los precisassem desfazer-se até certo ponto de preconceitos
associados à sua classe e condição (Ibidem, p.136).
3) A relativa inconsistência dos preconceitos de raça e de cor (Ibidem,
p.184).
4) A tese das origens especificamente protestantes dos modernos
preconceitos raciais, e, em última análise das teorias racistas, é
atualmente defendida com ênfase pelo historiador inglês Arnold J.
Toynbee (Ibidem, p.198).
No primeiro recorte, o preconceito é atribuído à gente dos engenhos
que o traz para a cidade. Engenho é oposto à cidade, oposição que
remete ao memorável da oposição entre rural/urbano, então vamos
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Carolina de Paula Machado
considerar que cidade está no domínio antonímia com engenho (meio
rural) e que palavra preconceito determina4 o sentido de engenho.
No segundo recorte temos a articulação de preconceito à expressão
associados a sua classe e condição articulação que nos leva a
considerar que se trata de um tipo de preconceito, o preconceito de
classe. Mas é preciso atentar que o Locutor explica que os fidalgos
portugueses desfaziam-se dos preconceitos quando precisavam.
E temos mais dois tipos de preconceito elencados nos dois últimos
recortes, o preconceito de raça/ preconceitos raciais e preconceito de
cor. O que podemos então ver são especificações para a palavra
preconceito que mostram tipos distintos de preconceitos mencionados
pelo autor da obra a partir da sua descrição da formação da sociedade
brasileira. Vejamos o Domínio Semântico de Determinação (DSD) 5 da
palavra até agora:
preconceitos raciais/de raça
┬
fidalguia ├ Preconceito ┤ preconceitos de cor
┴
Engenho (rural)
___________________________________________
Observando esse DSD especificações não dizem muito do sentido
que a palavra preconceito tem na obra analisada.
citadino
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA
EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
Podemos perceber que na descrição do Locutor os preconceitos são
da vida do engenho (meio rural) e quem os tem são os lavradores e os
donos de engenho. Por outro lado, o Locutor afirma que os fidalgos
portugueses desfazem-se deles quando precisam, e afirma uma “relativa
inconsistência” dos preconceitos. Ora o Locutor fala de uma posição
em que afirma a existência do preconceito entre fidalgos, entre
trabalhadores e senhores de engenho, ora fala de uma posição em que
considera relativamente inconsistente os preconceitos ou afirma que os
fidalgos portugueses desfazem-se deles.
ii) O apagamento da palavra ou reescrituração por substituição
Buscando saber mais sobre a significação da palavra preconceito na
obra Raízes do Brasil, observamos que ela era retomada no texto através
de outras expressões que a substituem mesmo não estando diretamente
articuladas a ela no funcionamento sintático.
Essas expressões não foram tomadas aleatoriamente no texto.
Chegamos a elas através de palavras que têm relações de sentidos com
a palavra preconceito por sua história de enunciações, observadas em
outras obras por nós analisadas6. Assim, selecionamos recortes nos
quais encontramos certas expressões que estabelecem, no
acontecimento enunciativo, relações de sentido com a palavra
preconceito por estarem também especificadas por palavras ou
expressões que remetem a de cor e de raça.
Outro critério utilizado foi o do contexto imediato: o Locutor estava
descrevendo
como
se
dava
as
relações
entre
brancos/portugueses/dominadores/donos de engenho/homens de cor/
escravos/trabalhadores, quando justamente a palavra preconceito serve
como categoria explicativa da sociedade, mas que nos recortes não
54
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Carolina de Paula Machado
aparece. Além disso, há uma certa regularidade sintática, pois as
expressões são complementos verbais.
Vejamos, então, as expressões que estão sublinhadas nos recortes
que seguem:
(5a) A vida parece ter sido aqui incomparavelmente mais suave,
mais acolhedora das dissonâncias sociais, raciais e morais.
(5b) (...) Nossos colonizadores eram, antes de tudo, homens que
sabiam repetir o que estava feito ou o que lhes ensinara a rotina. Bem
assentes no solo, não tinham exigências mentais muito grandes e o
Céu parecia-lhes uma realidade excessivamente espiritual, remota,
póstuma, para interferir em seus negócios de cada dia. A isso cumpre
acrescentar outra face bem típica de sua extraordinária plasticidade
social: a ausência completa ou praticamente completa, entre eles, de
qualquer orgulho de raça.
(6a) Compreende-se, assim, que já fosse exíguo o sentimento de
distância entre os dominadores, aqui, e a massa trabalhadora
constituída de homens de cor.
(6b) O escravo das plantações e das minas não era um simples
manancial de energia, um carvão humano à espera de que a época
industrial o substituísse pelo combustível. Com freqüência as suas
relações com os donos oscilavam da situação de dependente para a
de protegido, e até de solidário e afim.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA
EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
Sua influência penetrava sinuosamente o recesso doméstico, agindo
como dissolvente de qualquer idéia de separação de castas ou
raças, de qualquer disciplina fundada em tal separação.
(6c) Era essa a regra geral: não impedia que tenham existido casos
particulares de esforços tendentes a coibir a influência excessiva do
homem de cor na vida da colônia (...).
(6d) Mas resoluções como essa – decorrentes, ao que consta, da
conjuração dos negros e mulatos, anos antes, naquela capitania –
estavam condenadas a ficar no papel e não perturbavam seriamente
a tendência da população para um abandono de todas as barreiras
sociais, políticas e econômicas entre brancos e homens de cor, livres
e escravos.
(7) (...) o exclusivismo racista, como se diria hoje, nunca chegou a
ser, aparentemente, o fator determinante das medidas que visavam
reservar a brancos puros o exercício de determinados empregos.
Muito mais decisivo do que semelhante exclusivismo teria sido o
labéu tradicionalmente associado aos trabalhos vis a que obriga a
escravidão (...).
(8) A essas inestimáveis vantagens acrescente-se ainda, em favor
dos portugueses, a já aludida ausência, neles, de qualquer orgulho
de raça.
56
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Carolina de Paula Machado
Nestes recortes, além das palavras e expressões raciais ou de raça e
de cor, também podemos observar outras expressões e palavras que
geralmente podem aparecer determinando a palavra preconceito pela
relação entre o passado de enunciações e o presente do acontecimento
enunciativo. São elas:
a) locução adjetiva e adjetivos: de castas, morais, sociais.
b) os substantivos e expressões (sintagmas nominais): dissonâncias;
orgulho; sentimento de distância; ideia de separação; esforços tendentes
a coibir; barreiras; exclusivismo.
Os substantivos e as expressões em (b) remetem à palavra
preconceito. Podemos considerar que enunciadas no acontecimento
enunciativo, reescrevem a palavra preconceito por substituição e, nessa
medida, atribuem-lhe certos sentidos, constituindo-se então o que a
palavra designa nos recortes analisados. Elaboramos então o seguinte
DSD com os núcleos dos sitagmas e com dois sintagmas os quais:
Orgulho
┴
dissonâncias ┤
├ sentimento de distância
Preconceito
barreira ┤
├ ideia de separação
O preconceito é uma dissonância social, moral e racial; é o orgulho
de raça; é o sentimento de
┬ distância;
┬ é uma barreira social, política e
econômica; é um exclusivismo racista; é o esforço que tende a coibir.
Exclusivismo coibição
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA
EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
O preconceito que é referido pelo Locutor nos recortes é sempre dos
brancos contra os negros: dominadores (portugueses), brancos,
colonizadores contra a massa trabalhadora; homens de cor, livres e
escravos.
É preciso atentar também para a articulação entre as expressões no
texto. Nos recortes em questão, há negação das expressões destacadas
de forma direta ou a amenização do preconceito. Vejamos as expressões
em negrito que se articulam, através de preposições, de artigos, às
expressões que consideramos serem reescrituras de preconceito:
5a’) a vida parece ter sido aqui incomparavelmente mais suave,
mais acolhedora das dissonâncias sociais, raciais e morais.
5b’) a ausência completa ou praticamente completa, entre eles, de
qualquer orgulho de raça.
6a’) que já fosse exíguo o sentimento de distância entre os
dominadores, aqui, e a massa trabalhadora constituída de homens de
cor.
6b’) agindo como dissolvente de qualquer idéia de separação de
castas ou raças,
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Carolina de Paula Machado
6c’) casos particulares de esforços tendentes a coibir a influência
excessiva do homem de cor na vida da colônia (...).
6d’) para um abandono de todas as barreiras sociais, políticas e
econômicas entre brancos e homens de cor, livres e escravos.
7’) exclusivismo racista, como se diria hoje, nunca chegou a ser,
aparentemente, o fator determinante das medidas que visavam
reservar a brancos puros o exercício de determinados empregos (...)
8’) a já aludida ausência, neles, de qualquer orgulho de raça.
Vejamos o desdobramento de enunciadores no enunciado (5a’), em
que E significa enunciador:
E1: a vida aqui tem dissonâncias sociais, raciais e morais; (pressuposto)
E2: a vida parece ter sido incomparavelmente mais suave, mais
acolhedora das dissonâncias sociais, raciais e morais.
Podemos perceber nesses enunciados que há um enunciador (E1)
que afirma, de forma genérica, a existência das dissonâncias sociais,
raciais e ao mesmo tempo em que há um enunciador individual (E2),
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA
EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
que ameniza, atenua a afirmação da existência das dissonâncias através
de expressões que minimizam a existência delas (incomparavelmente
mais acolhedora; mais suave) por parte dos brancos puros / portugueses
/ colonizadores / dominadores / senhores / donos contra os homens de
cor / trabalhadores / escravos.
Nos demais recortes – 5b’, 6a’, 6b’, 6c’, e 7’ –, esse funcionamento
se repete, sendo que apenas nos enunciados 6d’ e 8’ não há a atenuação,
sendo negada a existência do orgulho de raça e das barreiras sociais. O
locutor enuncia de uma posição de amenizar e de negar a existência
dessas reescriturações de preconceito.
O locutor minimiza, ameniza a existência, por parte dos portugueses
/ dominadores / brancos puros / donos, de dissonâncias sociais, morais,
raciais; do orgulho de raça; do sentimento de distância; ideia de
separação; da coibição da influência; das barreiras sociais, políticas e
econômicas; e do exclusivismo racista contra os homens de cor;
escravos; trabalhadores. Desse modo, consideramos as reescriturações,
nesse acontecimento, como uma forma de eufemismos.
3. Eufemismo e Tabu
A partir da análise acima realizada, em que ocorre um movimento
semântico de amenizar o preconceito, faremos uma breve reflexão
sobre o eufemismo. Benveniste (1974) em um artigo intitulado “La
blasphémie et l’euphémie” discute a blasfêmia associando-a à eufemia7.
O autor analisa especificamente expressões religiosas ao tratar da
blasfêmia e afirma que a eufemia é simetricamente oposta à blasfêmia.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Carolina de Paula Machado
(...) o léxico da imprecação ou, se se preferir, o repertório das
locuções blasfêmicas, tem sua origem e encontra sua unidade
numa característica singular: ele procede da necessidade de
violar a interdição bíblica de pronunciar o nome de Deus. A
blasfemia é de ponta a ponta um processo de fala; ela consiste,
de uma certa maneira, em substituir o nome de Deus por sua
injúria (BENVENISTE,1974, p.259-260).
A blasfêmia, no domínio discursivo da religião, é relacionada ao
tabu, tal como é descrito por Freud e retomado por Benveniste:
O tabu (...) é uma proibição muito antiga, imposta de fora (por
uma autoridade) e dirigida contra os desejos mais intensos do
homem. A tendência a transgredi-la persiste em seu inconsciente,
os homens que obedecem ao tabu são ambivalentes em relação
ao tabu. (FREUD apud BENVENISTE, 1974, p.260).
A blasfêmia então é uma forma de profanar o nome de Deus, nome
este proibido de ser dito fora do culto ou em situações que não sejam
solenes.
Segundo o autor, a expressão blasfêmica consiste em uma
exclamação, como exemplo, ele cita a expressão em francês “Nom de
Dieu!” (nome de Deus!). A censura da exclamação blasfêmica suscita,
segundo ele, uma “eufemia”. Vejamos então aquilo que o autor chama
de eufemia:
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA
EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
A eufemia não refreia a blasfemia, ela a corrige na sua expressão
de fala e a desarma enquanto imprecação. Ela conserva o quadro
locucional da blasfemia, mas introduz três espécies de
modificações:
1. A substituição do nome de “Deus” por qualquer termo
inocente: (“nom d’une pipe!” [nome de um cachimbo!],(“nom
d’un petit bonhomme!”[nome de um homenzinho!] ou (bon sang!
[“bom sangue!”]);
2. A mutilação do vocábulo “Dieu” [Deus] por aférese da final
“par Dieu!”> pardi!” ou a substituição de uma mesma
assonância: “parbleu!”;
3. A criação de uma forma de non-sense no lugar da expressão
blasfêmica: “par le sang de Dieu!” transforma-se em
“palsambleu!”, “je renie Dieu! Torna-se “jarnibleu!”. (p.262).
Desse modo, segundo o autor, a eufemia retira o sentido da
blasfêmia. “Assim anulada, a blasfêmia faz alusão a uma profanação de
linguagem sem realizá-la e preenche sua função psíquica, mas
desviando-a e disfarçando-a” (p.262). A noção de eufemia está
intrinsecamente relacionada à blasfêmia, e, portanto, a uma substiuição
de palavras religiosas, mais especificamente do nome de Deus.
Silveira Bueno (1965) trata da questão do eufemismo relacionandoo, também, com o tabu, mas não especificamente com a blasfêmia. Para
este autor, o tabu significa “uma palavra, um vocábulo que não pode ser
dito em público, numa determinada comunidade social” (p.189). Já o
eufemismo “é o sinônimo, a perífrase que se deve usar em lugar da
palavra direta para amenizar, diminuir, velar o significado rebarbativo
ou cru que a sociedade repele” (SILVEIRA BUENO, 1965, p.189).
62
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Carolina de Paula Machado
Nesta definição, o eufemismo tem como contraparte um tabu
simbolizado por uma palavra a qual é substituida por uma palavra
sinônima com um sentido “ameno”. O tabu, segundo o autor, ocorre por
causa da existência da malícia e do medo na humanidade. Ele dá como
exemplo disso, dentre outros, a folha de parra de Adão que teria sido o
primeiro objeto eufêmico conhecido.
Ainda, segundo ele, os tabus e os eufemismos variam de acordo com
a época e com a cultura de cada povo. A “tabuização” (sic) de uma
palavra acontece porque é atribuida uma força que é intrínseca às
palavras. Estas seriam capazes de produzir concretamente o que elas
significam havendo palavras boas, que carregam a felicidade e palavras
ruins, que carregam o azar e que são maléficas. Como causas das
palavras-tabu ele aponta também o “temor supersticioso”, “o
sentimento de polidez” e a “moralidade”.
Do lado da retórica literária, Lausberg (2004) relaciona o eufemismo
à noção de tropos. Ele explica que esta noção diz respeito à passagem
de um conteúdo primitivo de um corpo de palavra para outro conteúdo
e “a função principal do tropos é o estranhamento”. Ele dá como
exemplo a seguinte frase:
i. Aquiles é um leão.
Nessa frase, o conteúdo frásico é “Aquiles é um guerreiro feroz” e
desse modo, houve uma substituição do conteúdo primitivo do corpo da
palavra leão. “Animal feroz” era o conteúdo primitivo de “leão” e é
substituído por “guerreiro feroz”. A substituição, segundo ele, pode se
tornar uma necessidade, como no caso em que seja necessário banir os
“verba propria”, isto é, os tabus.
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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA
EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
Em nota de rodapé, Lausberg explica que o eufemismo é “a
substituição de uma palavra proibida por tabu” (p.145), ou seja, tratase da substituição da palavra que não pode circular por causa da
interdição provocada pelo tabu. Assim, a passagem de um conteúdo
primitivo de um corpo de palavra para outro conteúdo é o que ele chama
de tropos, e o eufemismo seria a substituição de uma palavra proibida
de ser pronunciada por causa da existência do tabu, havendo assim a
substituição de conteúdo.
A partir do que os autores afirmaram, podemos compreender que o
eufemismo é uma palavra que subistiui outra palavra impedindo a sua
circulação por causa da proibição de uma palavra tabu, que pode ser
moral, religiosa, etc, como uma forma de impedir o(s) sentido(s) da
palavra inicialmente utilizada fazendo circular outro(s) sentido(s) com
a palavra substituta.
Os três autores acima citados colocam o tabu como o que produz a
necessidade de substituir uma palavra tabu por um eufemismo.
Lausberg e Silveira Bueno analisam o eufemismo sem considerar a
circulação da palavra na enunciação, no texto, o que possibilita
inclusive que Silveira Bueno considere haver uma força que é própria
às palavras.
Já Benveniste, para tratar da eufemia, analisa a enunciação de frases
exclamativas, mas não no texto, e considera o locutor como centro,
responsável pela enunciação, e assim pela produção do sentido8.
Por outro lado, em outro artigo, intitulado “Eufemismos antigos e
modernos”, Benveniste também discute a explicação do termo grego do
qual eufemismo é proveniente. Segundo ele, os dicionários definem o
termo grego de duas maneiras: “dizer palavras de bom augúrio” e
“evitar as palavras de mau augúrio”. Benveniste afirma que é a primeira
definição, a “positiva”, a mais adequada para o termo grego. Além
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Carolina de Paula Machado
disso, analisando palavras que afirma serem eufemismos, o autor nos
diz que
É preciso, para apreciar um eufemismo, reconstituir tanto quanto
possível as condições de emprego no discurso falado (...). Só a
situação determina o eufemismo. E essa situação, conforme seja
permanente ou ocasional, modifica o tipo da expressão
eufemística segundo normas próprias de cada língua.
(BENVENISTE, 1966, p. 342).
Ele mostra assim que são as condições de emprego que vão definir
se uma expressão ou palavra é ou não um eufemismo. Como no
enunciado: “se me acontecer algo (=se eu morrer)” (p.342), em que algo
pode ser um eufemismo de morrer se as condições de emprego assim o
permitirem. A questão então é pensar o que faz com que uma palavra
seja um eufemismo de outra, no emprego da língua.
Buscamos então pensar a substituição de uma palavra por outra no
funcionamento enunciativo no texto considerando a história, o social, o
político e o sujeito, não como centro, na produção do sentido.
A análise do funcionamento da palavra preconceito e das palavras e
expressões que a substituem mostrou que a eufemização acontece com
a reescrituração por substituição, com a amenização através de outras
palavras articuladas, e, também, pelo memorável recortado no
acontecimento, isto é, pelos sentidos que circulam no presente do
acontecimento que determinam preconceito atribuindo-lhe sentidos.
4. Algumas considerações
A relação entre as expressões grifadas nos recortes 5b’, 6a’, 6b’, 6c’,
6d’ , 7’, 8’ e a palavra preconceito se dá de forma indireta, ou seja, estão
distantes no texto numa relação transversal que rompe a
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA
EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
segmentalidade, relacionadas, portanto, semanticamente no
acontecimento enunciativo, sendo preciso levar em consideração a
exterioridade, isto é, a história de sentidos da palavra em outras
enunciações para que se compreenda que preconceito e as expressões
grifadas pertencem ao mesmo domínio semântico de determinação.
A análise enunciativa das expressões no funcionamento textual da
obra Raízes do Brasil mostra o que a palavra preconceito designa pela
sua substituição por expressões que expandem o seu sentido
significando-a como dissonância social, moral e racial; como orgulho
de raça; como sentimento de distância; como uma barreira social,
política e econômica; como um exclusivismo racista; como o esforço
que tende a coibir. O locutor-autor-sociólogo-historiador enuncia como
enunciador individual, de uma posição sujeito que minimiza e até
mesmo nega a existência desses sentidos que substituem a palavra
preconceito no texto quando descreve as relações sociais entre brancos
e negros (“homens de cor”).
Com a reescrituração da palavra através de outras expressões de
forma constante ao longo do texto, a circulação da palavra preconceito
é suspensa e as expressões que a substituem são minimizadas e negadas.
Assim, ao invés de considerarmos o eufemismo como a palavra que
substitui a palavra tabu, entendemos que há um processo de
eufemização em que há a substituição da palavra preconceito por outras
palavras e expressões que são articuladas a palavras e/ou expressões
que as minimizam, que as amenizam ou que as negam. O procedimento
de reescrituração através do qual vai se dando a textualidade é feito
através não apenas da substituição mas através das articulações à
adjetivos e advérbios. Assim, a combinação da reescritura por
substituição com a articulação produz a eufemização, configurando-se
como procedimento de reescritura por substituição por eufemização.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Carolina de Paula Machado
Deste modo, ao significar o preconceito como separação,
exclusivismo, distanciamento, orgulho, coibição e, negando a sua
existência e amenizando-a, descreve-se uma sociedade brasileira em
que as relações sociais, trabalhistas, etc, entre negros e brancos se dão
como uma convivência quase que harmônica, com a ausência, ou quase
ausência de preconceito contra os negros ou “homens de cor”. E é
justamente com a eufemização que se dá a contradição: apesar do
impedimento da circulação da palavra preconceito, ainda assim
circulam os sentidos de preconceito através da história de enunciações.
Notas
Refiro-me aqui as análises realizadas em minha dissertação de mestrado intitulada “A
designação da palavra preconceito em dicionários atuais” defendida em 2007, e às
outras análises realizadas em minha tese de doutorado intitulada “Política e Sentidos da
palavra preconceito: uma história no pensamento social brasileiro na primeira metade
do século XX”, defendida em 2011.
2 Schreiber da Silva (2012) trata da especificidade da noção de memorável na relação
com a noção de acontecimento, tal como este é definido por Guimarães (2002). Para a
autora, o memorável “é o passado pensado de maneira enunciativa e de acordo como
tempo no acontecimento” (2012, p.4).
3 Segundo Guimarães (2002), Benveniste propôs a integração considerando-a “como o
movimento integrativo de uma unidade lingüística. Para ele, esta relação (integrativa)
dá o sentido de unidade. Ou seja, o sentido de um elemento lingüístico tem a ver com
o modo como este elemento faz parte de uma unidade maior ou mais ampla”
(GUIMARÃES, 2002, p.7). A questão é que Benveniste considerava como unidade
mais ampla o enunciado, enquanto que Guimarães propõe considerar o texto como
limite.
4 Trata-se da determinação semântica entre palavras que pode se dar no interior de um
sintagma nominal. Por outro lado, a predicação é a relação semântica entre sintagma
verbal e sintagmas nominais, que é também considerada como uma relação de
determinação. Para Guimarães, “uma expressão determina outra na medida em que esta
se apresenta como por ela determinada pela enunciação. Isto, por outro lado, levaria a
se pensar como o processo enunciativo constrói a língua” (2007, p.79). Oliveira (2006),
tratando da determinação e da predicação, faz uma discussão interessante considerando
a predicação como uma “relação enunciativa”.
5 O Domínio Semântico de Determinação (DSD) representa o sentido da palavra. Ele é
construído “pela análise das relações de uma palavra com as outras que a determinam
1
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA
EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
em textos em que funciona” (GUIMARÃES, 2007, p.80). O sinal ˧ significa
“determina”, tal como explicado na nota anterior.
6 Em nossa tese de doutorado intitulada “Política e sentidos da palavra preconceito:
uma história no pensamento social brasileiro na primeira metade do século XX”,
analisamos mais três obras que analisam a formação da sociedade brasileira: Casagrande e Senzala, de Gilberto Freyre; Evolução do povo Brasileiro, de Oliveira Vianna;
Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior, todas da primeira metade do
século XX.. Além disso, em nossa dissertação de mestrado, também analismos os
sentidos da palavra preconceito nas definições lexicográficas de um conjunto de
dicionários do século XX e início do século XXI.
7 A palavra eufemia é a tradução da palavra euphémie na edição em português do artigo,
do original em francês.
8 O autor define enunciação como um “processo de apropriação”, “o locutor se apropria
do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor por meio de índices
específicos (...)” (Benveniste, 1989, p. 84).
Referências bibliográficas
BENVENISTE, E. (1966). Problemas de Linguística Geral I. Campinas:
Pontes, 1988.
______. (1974). Problemas de Linguística Geral II. Campinas: Pontes,
1989.
BUENO, S. (1965). Tratado de Semântica Brasileira. São Paulo: Edição
Saraiva, 4ª ed.
GUIMARÃES, E. (2002). Semântica do Acontecimento. Campinas:
Pontes, 2002.
______. (2007). “Domínio Semântico de Determinação”. In:
GUIMARÃES, E.; MOLLICA, M. (orgs.). A Palavra: Forma e
Sentido. Campinas: RG/Pontes.
______. (1995). Os Limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo
da linguagem. Campinas: Pontes, 2002, 2ª ED.
HOLANDA, S. B. (1936). Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
LAUSBERG, H. Elementos de Retórica Literária. (1967). Lisboa:
Fundação Calouste Gubenkian, 2004.
OLIVEIRA, S. E. (2006). Cidadania: história e política de uma palavra.
Campinas: Pontes, RG Editores.
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Carolina de Paula Machado
PAULA MACHADO, C. de. (2011). Política e sentidos da palavra
preconceito: uma história no pensamento social brasileiro na primeira
metade do século XX. Tese de doutorado. Campinas: IEL/Unicamp.
SCHREIBER DA SILVA, S. (2012). “O memorável na relação entre
línguas”. In: Web Revista discursividade. Edição em homenagem ao
prof. Dr. Eduardo Guimarães. Edição número 9, Janeiro/2012 –
Julho/2012.
Disponível
em:
http://www.discursividade.cepad.net.br/EDICOES/09/09.htm Acesso
em: 01/10/2014.
Palavras-chave: preconceito, eufemização, enunciação
Keywords: prejudice, euphemization, enunciation
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EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN1
Adilson Ventura da Silva
UESB
Resumo: Este artigo traz uma análise enunciativa da palavra poesia
na teorização de Bakhtin sobre a linguagem. Ventura parte da
discussão do lugar que a poesia ocupa na teorização de Bakhtin para
então observar as determinações da palavra ao longo de textos do
autor, o que lhe permite caracterizar o tratamento da poesia como
gênero e refletir sobre os lugares da língua e do autor na sua produção.
Abstract: This article brings an enunciative analysis of the word
‘poetry’ in Bakhtin's theorization on language. Ventura starts with the
discussion of the place poetry occupies in Bakhtin’s theorization to go
on to observe the determinations of the word throughout some texts of
Bakhtin. This movement allows him to characterize the treatment of
poetry as a genre and to reflect on the places of the language and the
author in its production.
Introdução
O nosso interesse ao produzir este artigo é pesquisar e discutir a
relação entre a poesia e as ciências da linguagem. Entendemos que a
poesia é um fato importante de linguagem e, por isso, nos interessamos
em estudá-la a partir de um lugar teórico diferente da literatura. Com
isso pensamos poder contribuir muito para os estudos linguísticos e,
além disso, contribuir também para os estudos literários. Assim, em
nosso doutorado (SILVA, 2012), observamos o modo como alguns
autores consideram a poesia, levando em conta o que discutem ou
silenciam sobre a poesia e também os sentidos que esta palavra assume
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
71
A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN
nos textos, nos colocando no lugar teórico da Semântica do
Acontecimento.
1. A teoria bakhtiniana
Ao entrar em contato com a obra de Bakhtin, temos inicialmente
uma questão: ele era um linguista? Seguramente não, no sentido mais
usual desta expressão. Os interesses de Bakhtin giram muito
especificamente sobre o texto literário e é a partir disso que ele acaba
por se interessar por uma certa teorização sobre a linguagem e sobre o
texto. Assim ele se interessa por aspectos que podemos colocar como
do domínio das ciências da linguagem. E é nesta medida que ele vai nos
interessar aqui neste estudo que procura discutir o lugar da poesia nas
ciências da linguagem. Essa escolha se deu porque Bakhtin produziu
muitas obras importantes relacionadas aos estudos da linguagem de
uma forma geral, passando das relações entre a língua e os estudos
marxistas, os quais podemos conferir na obra Marxismo e Filosofia da
Linguagem (2006)2, em que o autor estabelece problemas e hipóteses
em relação a questões da luta de classes presentes na linguagem, até a
estudos da poética, os quais podemos ver em Estética da Criação Verbal
(2000) e Problemas da Poética de Dostoiévski (1981). Sendo assim,
esse pensador da linguagem é de grande importância para a linguística
quanto para os estudos literários em geral, pois a obra deste autor se
coloca como precursora dos estudos do discurso e do texto que se
desenvolvem atualmente, já que ele coloca “o texto como fulcro, como
lugar central de toda investigação sobre o homem” (BARROS, 2005,
p.28). Ou seja, a partir de seus estudos sobre o texto, muitas linhas de
pesquisa linguística se desenvolveram, retomando e redefinindo alguns
de seus conceitos. Dentre esses linguistas, temos O. Ducrot, que se
apropria livremente do conceito de polifonia para a elaboração de seus
estudos sobre a Argumentação na Língua.
Assim, para termos um pequeno panorama do pensamento deste
autor, não iremos fazer um estudo exaustivo de sua teoria e sim
discutiremos alguns de seus conceitos, para nos situarmos em sua teoria
72
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013
Adilson Ventura da Silva
para levantarmos algumas considerações do que seja a poesia em seu
pensamento. Como lugar de entrada para as nossas reflexões sobre
Bakhtin, temos a sua questão sobre o modo como se dá a criação
ideológica na teoria marxista. Levando em conta essa questão, Bakhtin
coloca a necessidade de se estabelecer um diálogo entre a filosofia da
linguagem e a teoria marxista, já que, para ele, “Tudo que é ideológico
possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em
outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe
ideologia” (BAKHTIN, 2006, p.31). Ou seja, para se estudar a ideologia
é necessário estudar a linguagem, pois é nessa que, devido ao seu
caráter simbólico, se encontra a ideologia, em contraste a qualquer
corpo físico, que vale por si mesmo, a menos que ganhe um simbolismo,
o que só acontece através da linguagem. E, nessa relação, aparece a
questão de valoração do signo (e da ideologia), uma vez que
Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele
também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa
realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista
específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação
ideológica (isto é, se é verdadeiro, falso, correto, justificado,
bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos
signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se
encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é
ideológico possui um valor semiótico (idem, pág.32-33).
Com essa reflexão, Bakhtin procura retirar os estudos sobre a
Ideologia de um aspecto puramente psicológico, atribuindo-lhe um
aspecto material, que é a linguagem. Assim ele, de certo modo, inverte
os estudos da Ideologia de sua época, pois era dada uma explicação
psicologizante, ou seja, ao entrar em certas discussões teóricas, a
consciência individual dos sujeitos ganhava o estatuto explicativo do
que se referia ao meio ideológico e social. E é isso que Bakhtin contesta
pois, para ele, o que ocorre é o contrário, é o meio ideológico e social
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013
73
A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN
que deve explicar a consciência individual, algo que só é possível
afirmar teoricamente ao se instituir um lugar material para a Ideologia.
Porém, dentre os vários tipos de linguagem, Bakhtin elege a palavra
como a principal, pois “a palavra é o modo mais puro e sensível de
relação social.” (BAKHTIN, 2006, p.36). E, além disso, enquanto os
signos e símbolos em geral possuem uma determinada Ideologia
conforme o domínio em que foi criado, “a palavra, ao contrário, é neutra
em relação a qualquer espécie de função ideológica: estética, científica,
moral, religiosa.” (idem, p.37). Sendo assim a palavra possui esta
possibilidade de assumir qualquer ideologia e, além disso, a palavra é o
“material semiótico da vida interior, da consciência (discurso interior)”
(ibidem, p.37). Por isso que podemos dizer que a palavra consegue, ao
mesmo tempo, ser a materialidade da ideologia e também colocar-se
como fundante da consciência e, talvez por essa dupla possibilidade, é
que os marxistas da época desses estudos de Bakhtin não perceberam a
importância teórica que essa perspectiva poderia trazer às suas
reflexões.
A partir dessas reflexões, também temos que os “os signos só podem
aparecer no terreno interindividual” (BAKHTIN, 2006, p.35), ou seja,
temos que os signos, em especial a palavra, possuem esse caráter de se
colocar essencialmente no lugar de contato entre pessoas, sendo assim
temos que ela não pode ser reduzida à consciência individual pois,
como dissemos, ela possui um caráter social intrínseco.
Assim, ao levantar essas questões a respeito da Ideologia e seu
suporte material, que é a linguagem, Bakhtin elabora o conceito de
dialogismo, pois, para ele, "Toda enunciação, mesmo na forma
imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída
como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala.” (idem,
p.101). Ou, dito em outras palavras, por seu caráter interindividual, a
linguagem é construída em forma de um diálogo, em que sempre uma
enunciação está em relação com outros diálogos. Porém, para Bakhtin,
os estudos linguísticos e os estudos da Ideologia não levam essa
característica em conta, o que traz a essas reflexões “uma compreensão
74
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013
Adilson Ventura da Silva
totalmente passiva, que não comporta nem o esboço de uma resposta,
como seria exigido por qualquer espécie autêntica de compreensão”
(ibidem, p.101).
E isso instaura, por sua vez, o discurso da classe dominante em que
não há este aspecto dialógico da língua. Isso porque há uma
modificação desse aspecto, passando de dialógico para monológico, o
que atende a interesses da classe dominante, pois dessa forma disfarça
ou mesmo oculta as diferenças de classe e, juntamente com isso, apaga
as relações de valor que aí se estabelecem. O modo como isso ocorre é
facilitado por esse aspecto dialógico da língua, o que podemos observar
nas próprias palavras de Bakhtin:
Na realidade, todo signo ideológico vivo tem, como Jano, duas
faces. Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva
não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta
dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser
nas épocas de crise social e de comoção revolucionária. Nas
condições habituais da vida social, esta contradição oculta em
todo signo ideológico não se mostra à descoberta porque, na
ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre
um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o
estágio anterior da corrente dialética da evolução social e
valorizar a verdade de ontem como sendo válida hoje em dia.
Donde o caráter refratário e deformador do signo ideológico nos
limites da ideologia dominante (BAKHTIN, 2006, p.48).
Por isso é que Bakhtin percebe a necessidade de se refletir a respeito
da língua dentro de uma perspectiva marxista, para se entender melhor
o processo em que se dá a Ideologia. Então, além de estabelecer o
conceito de dialogismo, ele reflete mais aspectos da língua, em um
diálogo com outras teorias, em que sua especificidade é esse caráter
social da língua:
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013
75
A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN
Vamos tentar formular nosso próprio ponto de vista com as
seguintes proposições:
2.
3.
4.
5.
1. A língua como sistema estável de formas normativamente
idênticas é apenas uma abstração científica que só pode
servir a certos fins teóricos e práticos particulares. Essa
abstração não dá conta de maneira adequada da realidade
concreta da língua.
A língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se
realiza através da interação verbal social dos locutores.
As leis da evolução linguística não são de maneira alguma as leis
da psicologia individual, mas também não podem ser divorciadas
da atividade dos falantes. As leis da evolução linguística são
essencialmente leis sociológicas.
A criatividade da língua não coincide com a criatividade artística
nem com qualquer outra forma de criatividade ideológica
específica. Mas, ao mesmo tempo, a criatividade da língua não
pode ser compreendida independentemente dos conteúdos e
valores ideológicos que a ela se ligam. A evolução da língua,
como toda evolução histórica, pode ser percebida como uma
necessidade cega de tipo mecanicista, mas também pode tornarse “uma necessidade de funcionamento livre”, uma vez que
alcançou a posição de uma necessidade consciente e desejada.
A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A
enunciação como tal só se torna efetiva entre falantes. O ato de
fala individual (no sentido estrito do termo “individual”) é uma
contradictio in adjecto. (BAKHTIN, 2006, p.131 e 132)
Com essas proposições a respeito da língua, podemos perceber uma
grande preocupação de Bakhtin em refutar teorias que constroem o seu
aparato teórico-metodológico abstraindo alguns aspectos da mesma e,
principalmente, que não levam em conta a interação social dos
locutores, ou seja, ele refuta toda a possibilidade de estudos linguísticos
que não se interessam pelo caráter social da língua. Ele também traz
que a língua está em constante evolução, que ocorre também por causa
da interação entre os locutores. E, além disso, ele tece alguns
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013
Adilson Ventura da Silva
comentários a respeito da criatividade da língua não coincidir com
nenhuma outra forma de criatividade, mas que só é possível
compreender essa criatividade levando em conta os valores ideológicos
que ela representa. Assim podemos dizer, em uma tentativa de definição
de conceito, que a língua, para Bakhtin, é um processo social em
constante evolução, sendo que é também a materialidade da Ideologia
e possui um caráter essencialmente dialógico, pois é constituída na
interação verbal dos locutores. A enunciação, por sua vez, também se
constitui pelo social.
Além de sua preocupação com questões relativas à filosofia da
linguagem e o marxismo, Bakhtin desenvolveu vários estudos no
campo da Literatura. Nesses estudos, queremos refletir um pouco a
respeito do conceito de polifonia, já que esse conceito foi
posteriormente retomado por Ducrot, de uma forma bem livre, para
resolver algumas questões em sua teoria da Argumentação na Língua.
Bakhtin, ao entrar em contato com a obra de Dostoiévski, afirma que
ele é o criador de um novo tipo de romance, o romance polifônico. Para
tanto, Bakhtin analisa alguns estudiosos da obra de Dostoiévski,
observando que vários deles apresentam uma certa particularidade
nesses estudos, mas que nenhum consegue apreender totalmente esta
particularidade, conforme Bakhtin comenta:
É por isto que todas as grandes monografias sobre Dostoiévski,
baseadas na monologação filosófica de sua obra, propiciam tão
pouco para a compreensão da peculiaridade estrutural do seu
mundo artístico por nós formulada (BAKHTIN, 1981, p.5).
Dessa forma, na tentativa de apreender a especificidade do romance
de Dostoiévski, Bakhtin elabora o conceito de polifonia. Para tanto, ele
faz um estudo da poética histórica, e observa especialmente um tipo de
literatura, que ele chama de carnavalizada. Essa literatura dá um novo
tratamento à realidade, ao incluir uma atualidade viva, em que aparece
o dia a dia, sem situar a história em um tempo passado ou mítico e, além
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013
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A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN
disso, é baseada na experiência ou na fantasia livre. E a outra
peculiaridade apontada por Bakhtin é:
A terceira peculiaridade são a pluralidade de estilos e a variedade
de vozes de todos esses gêneros. Eles renunciam à unidade
estilística (em termos rigorosos, à unicidade estilística) da
epopeia, da tragédia, da retórica elevada e da lírica.
Caracterizam-se pela politonalidade da narração, pela fusão do
sublime e do vulgar, do sério e do cômico, empregam
amplamente os gêneros intercalados: cartas, manuscritos
encontrados, diálogos relatados, paródias dos gêneros elevados,
citações recriadas em paródia, etc. (idem, p.93).
Assim Bakhtin afirma que a literatura carnavalesca é o começo do
desenvolvimento de uma poética que irá resultar no romance polifônico
de Dostoiévski. Isso se dá pois, nessa literatura, aparece mais de uma
voz em seus textos. Porém, para Bakhtin, a polifonia em Dostoiévski
alcança uma especificidade totalmente nova, pois as diferentes vozes
que aparecem são independentes. Conforme o próprio Bakhtin:
A multiplicidade de vozes e consciências independentes e
miscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes
constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances
de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos
que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do
autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a
multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que
aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a
sua imiscibilidade (BAKHTIN, 1981, p.2).
Ou, dito de outro modo, no romance polifônico há várias vozes ou
consciências que não se misturam e nenhuma delas possui uma
predominância sobre as outras consciências, o que transforma a voz do
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Adilson Ventura da Silva
herói em uma voz plena, em que ele não se coloca no lugar de um
simples porta-voz do autor.
A partir desses dois conceitos centrais na teoria de Bakhtin, o
dialogismo e a polifonia, podemos perceber que o conceito de língua,
para este autor, está diretamente relacionado ao social, na medida em
que na língua sempre há uma interligação entre dizeres diferentes.
Então, dentro desse quadro teórico que apresentamos, a poesia não
recebe uma atenção especial de Bakhtin. Ou seja, apesar de fazer análise
da obra de alguns poetas, tais como Viatcheslav Ivánov, Balmont e
Briússov, Bakhtin, não elaborou nenhuma teoria específica procurando
explicar o que seja a poesia. Assim, para tentarmos compreender como
ele pensa a poesia, vamos nos limitar a observar o modo como esta
palavra (e suas possíveis reescrituras) aparece em sua obra.
2. Análise da palavra Poesia em Bakhtin
Para produzirmos a análise da palavra poesia nos textos de Bakhtin,
iremos nos situar no lugar teórico da Semântica do Acontecimento.
Assim, como todo semanticista, nos interessamos pelo estudo do
sentido, ou seja, o objetivo é observar o sentido, no caso específico que
tratamos aqui, da palavra poesia. Neste lugar teórico, consideramos que
o estudo do sentido localiza-se na enunciação, que é considerada como
“um acontecimento no qual se dá a relação do sujeito com a língua”
(GUIMARÃES, 2002, p.8). A partir do estudo da enunciação,
observamos as operações enunciativas, que são operações nas quais, na
enunciação, constitui-se o sentido de determinada forma. Para observar
as operações enunciativas, consideraremos dois procedimentos: a
reescritura e a articulação. Para Guimarães, a “reescrituração é o
procedimento pelo qual a enunciação de um texto rediz insistentemente
o que já foi dito fazendo interpretar uma forma como diferente de si.
Este procedimento atribui (predica) algo ao reescriturado” (idem, p.17).
E a articulação é o procedimento pelo qual podemos observar as
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A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN
relações de determinada palavra com outras palavras em um enunciado,
enquanto enunciado de um texto.
A partir desses dois procedimentos, poderemos constituir o Domínio
Semântico de Determinação (DSD) da palavra poesia nos textos de
Bakhtin. O DSD, segundo Guimarães (2007, p.81) é
uma análise de uma palavra. Ele representa uma interpretação do
próprio processe de análise e deve ser capaz de explicar o
funcionamento do sentido da palavra no corpus especificado (...)
É preciso observar, no entanto, que embora não se considere de
antemão nenhuma realidade a que as palavras reportam, há um
real que a palavra significa. E as palavras têm sua história de
enunciação. Elas não estão em nenhum texto como um princípio
sem qualquer passado.
Passamos agora à análise e constituição do DSD da palavra poesia
em Bakhtin.
Em diversos textos Bakhtin, ao comentar vários aspectos de seu
pensamento, e ao fazer análises linguísticas e literárias, utiliza a palavra
poesia. Para o nosso estudo, fizemos um recorte em seus textos e
analisamos esta palavra no texto “Conferências sobre História da
Literatura Russa”, presente no livro “Estética da Criação Verbal”, de
2003. Esse recorte deu-se por se tratar de um texto em que Bakhtin
produz uma análise sobre a obra poética de Viatcheslav Ivánov, ou seja,
é um texto em que ele analisa diretamente a obra de um poeta,
comentando vários aspectos relacionados a sua produção. Além disso,
este texto é uma boa amostra do modo como Bakhtin trata a poesia.
Para analisar a obra de Ivánov, Bakhtin comenta a sua relação com
a poesia da Antiguidade, da Idade Média e do Renascimento, em
contrapartida a outros poetas da mesma geração de Ivánov: Balmont e
Briússov. Também faz alguns comentários a respeito de três princípios
estéticos, que são o ascenso, o descenso e o caos. Segundo Bakhtin:
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013
Adilson Ventura da Silva
Ascenso é altives, crueldade, e não só com os outros mas também
consigo mesmo. E se é cruel é sofrido. Esse é o caminho trágico
para as alturas, a ruptura com a terra, a morte. Se o ascenso não
acarreta o descenso ele é estéril porque é supramundo.
Descenso é símbolo do arco-íris, do sorriso, do amor à terra que
conserva a lembrança do céu. Vistcheslav Ivánov aplica sua
teoria do ascenso e do descenso ao processo criador em arte (...).
(...) O terceiro princípio é o caótico ou dionisíaco. É a ruptura do
indivíduo, o desdobramento, a perturbação, o esquartejamento,
etc. Tanto no ascenso quanto no descenso destrói-se a
personalidade, mas esta só sai reforçada dessa destruição. Como
dizia Goethe, destrói tua personalidade se queres reforçá-la. Toda
vivência de ordem estética expele o espírito dos limites do
pessoal. (BAKHTIN, 2003, p.412 e 413)
Observando este recorte, temos que Bakhtin utiliza-se do
pensamento do próprio Vistcheslav Ivánov para comentar estes três
princípios estéticos. Nesse comentário, ele aponta o dionisíaco como o
que constitui o fundamento da arte. Ao colocar dessa forma, ele traz o
papel central dado ao artista no que se refere à arte, em que temos uma
importante relação entre a arte e o sujeito que “cria” esta arte, ou seja,
entre a arte e o artista. Sendo assim, levando em conta que o poeta é o
artista que trabalha com as palavras, temos que ele está nesse lugar de
ruptura e destruição e, além disso, esse lugar acaba por levar o próprio
poeta além dos limites do pessoal, por colocá-lo em contato com o
estético. Apontando esta importância do sujeito na arte, temos que
analisar o modo como o poeta aparece nesse texto é uma importante
entrada para o estudo da palavra poesia na obra de Bakhtin. Assim,
passamos, em um primeiro momento a observar a reescritura da palavra
poetas, conforme os recortes que fizemos para análise:
1. Viatcheslav Ivánov vê dois caminhos no simbolismo: um
idealista e um realista. O primeiro tem início na Antiguidade,
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A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN
quando se procurou imprimir marca individual em todos os
fenômenos da vida. O segundo tem origem na Idade Média,
quando os poetas3 se auto-eximiam, deixando que os próprios
objetos falassem por si mesmos. Briússov e Balmont tomaram o
primeiro caminho. Para eles o símbolo é apenas uma palavra: não
lhes interessa se atrás da palavra se esconde alguma coisa. Para
eles o símbolo não sai do plano da língua. E a novidade dos
objetos do mundo exterior depende apenas do estado do artista
(p.412).
2. (...) O artista descende, e esse descenso é, antes de tudo, para
os seres que não ascenderam e se acham em fases inferiores de
consciência. Quando o poeta procura a palavra, desta necessita
para traduzir suas conquistas em palavras que todos
compreendam. Esse é um descenso às fraquezas humanas dos
outros, um descenso àqueles que nunca ascenderam. Por isso o
descenso sempre é humano e democrático (p.413).
Esses dois recortes apresentam o modo como Bakhtin comenta o
pensamento de Viatcheslav Ivánov a respeito da poesia. Desse modo,
pelo modo como Bakhtin constrói o texto, podemos observar que ele
acaba por trazer uma reflexão sobre a poesia, e isso podemos dizer que
é uma reflexão dele, já que ele escolhe V.Ivánov para basear as suas
reflexões. Assim, nesses dois recortes, observamos que a palavra poeta
é reescrita por eles, se, lhes e artista, além dos nomes próprios Briússov
e Balmont. Esta reescrituração nos indica uma determinação entre
poetas e artistas, o que indica uma determinação entre poesia e arte. Em
contrapartida, também temos uma reescritura por uma relação de
antonímia em “seres que não ascenderam” e poetas. Assim outros é
“seres que não ascenderam” e se opõe a poeta, ou seja, temos uma
relação de antonímia entre poeta e seres que não ascenderam. Além
disso, a palavra humano traz uma condensação, ao reescrever tanto
poeta quanto seres que não ascenderam. Mas, mesmo estando
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013
Adilson Ventura da Silva
condensadas em humano, temos uma diferenciação entre o poeta e seres
que não ascenderam, na medida em que poeta está em uma relação com
ascenso, e com descenso, sendo que descenso está articulada também a
seres que não ascenderam, ou seja, enquanto o poeta se articula com as
duas palavras, seres se relaciona somente com descenso. Isto abre a
possibilidade de que, mesmo sendo ambos humanos, somente o poeta
tem essa capacidade de transitar entre o ascenso e o descenso. Dessa
forma, em um primeiro momento, podemos ver o DSD de poeta da
seguinte forma:
Humano ├ Descenso
┴
Ascenso ┤ Artista
┴
Poeta
Descenso ┤ não poetas (outros) ├ Humano
Obs.: ler ┤como determina e _________ como antônimo
Com esse DSD podemos observar uma especificação muito
particular para poeta, na medida em que poeta é determinado por
artista. Isso traz uma relação de sujeitos em que são colocados em um
mesmo paradigma o poeta e o artista, e, por extensão, excluindo os
outros seres humanos. Além disso, esse paradigma em que poeta é
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A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN
colocado aparece como mais amplo do que os outros seres, por ter um
certo privilégio de transitar pelo ascenso e pelo descenso. Podemos
dizer também que, a partir de nossa análise, esta articulação entre poeta
e artista traz uma relação entre sujeitos que nos auxiliará a pensar na
possibilidade da relação entre a poesia e a arte, no pensamento de
Bakhtin.
Além de comentar as relações de Ivánov com a poesia antiga e os
princípios estéticos, Bakhtin faz alguns comentários analíticos sobre o
som e o uso de metáforas em seus poemas. E, ao fazer estas análises,
ele utiliza por várias vezes a palavra poesia. Apresentamos a seguir
alguns recortes em que aparece esta palavra.
3. (...) As fontes de sua poesia são a Antiguidade, a Idade Média
e o Renascimento, que ele efetivamente dominava e das quais
recebeu uma influência imensa, que lhe determinou as raízes
fundamentais da sua obra. Na poesia de Briússov, a Antiguidade
também ocupa um grande espaço, mas aparece refratada através
da poesia francesa e inglesa (p.411).
4. (...) Neste sentido sua poesia não é musical. Em seus poemas
não há uma única palavra fortuita. Como em todo poeta
importante, há nesses poemas uma extraordinária plenitude de
forças semânticas e lógicas sumamente detalhadas. Ele pondera
cada detalhe do sentido, por isso em seus poemas não há
pinceladas de pensamento grandes e grosseiras como em
Balmont (p. 415).
5. (...) (a alegoria é uma metáfora que perdeu sua seiva poética)
(idem).
6. Uma peculiaridade da poesia de Ivánov é o fato de que todas
as suas coletâneas se decompõem em capítulos e estes estão
distribuídos em ordem sequencial, uns dando continuidade aos
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outros. É claro que alguns poemas não são átomos mas existem
como objetos independentes, no entanto saem ganhando
consideravelmente no conjunto da coletânea. É característico que
Viatcheslav Ivánov sempre editou seus poemas em ciclos
acabados. Esse aspecto sintético o liga a George e Rilke,
particularmente ao último. Também em Rilke as coletâneas de
poemas são narrativas que parecem decompor-se em capítulos.
Neste sentido, a poesia de Ivánov se aproxima também do
Sagesse de Verlaine (p.416).
Observamos que, nas ocorrências da palavra poesia neste texto, ela
está sempre em uma expressão referencial, sendo determinada pelo
artigo a, em alguns casos combinado com o pronome possessivo seu
(sua), em outro pela preposição de (da) e um outro pela preposição em
(na). E, além disso, a palavra poesia sempre recebe uma especificação,
como sendo a poesia de Ivánov, de Briússov, francesa e inglesa, sua (de
Ivánov). Quanto às reescrituras, a palavra poesia é reescrita por poemas
e por poética. A palavra poemas aparece sempre no plural e também,
como a palavra poesia, recebe características específicas, como sendo
poemas de Ivánov. Poderíamos, dessa forma, ter poesia e poemas em
uma simples relação sinonímica, em que ambas podem ter
especificações, tais como poesia inglesa, francesa, etc. e também
poemas de Ivánov.
Dessa forma, o que vimos até agora mostra algumas importantes
relações de especificação para poesia, porém não temos ainda uma
explicação de forma direta do que seja a poesia em Bakhtin. Então,
podemos aqui pensar na possibilidade de que ele não traz nenhuma
formulação específica do que seja a poesia, e sim produz suas análises
considerando a poesia em um sentido bem geral, sendo conhecido por
todos, ou seja, Bakhtin trata a poesia como algo de todos conhecido,
sem a necessidade de uma conceituação mais específica e, desse modo,
sem deixar o que ele próprio entende por poesia de um modo direto.
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A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN
Também podemos observar que, pela diferença que há por conta de
poesia estar sempre no singular e poemas sempre no plural, temos um
funcionamento diferente no uso dessas palavras. Enquanto poesia, por
estar no singular, aparece como única, variando somente conforme o
que a caracteriza, sendo a poesia francesa, inglesa, de Briússov, de
Ivánov, poemas aparece como unidades da poesia, na medida em que
temos tipos variados de poemas dentro de um lugar específico, o que
podemos observar quando Bakhtin traz “Uma peculiaridade da poesia
de Ivánov”, e, logo após, traz “Ivánov sempre editou seus poemas”. E
isso leva na direção de que poesia determina poemas, isso é, todo poema
é poesia, o que, por sua vez, nos traz uma outra relação para poesia, mas
também não traz uma especificação direta do que seja a poesia para
Bakhtin.
Uma outra possibilidade que podemos pensar a partir da não
definição direta bakhtiniana do que é a poesia é que ela ocupa o lugar
de um gênero específico, ao qual cada autor ou região (e podemos
acrescentar a época) possui as suas particularidades. Ou seja, por uma
análise do DSD dessa palavra, podemos dizer que poesia, para Bakhtin,
é determinada por gênero, ou seja, gênero determina poesia e poemas,
enquanto que poesia determina poemas:
Poemas ├ Poesia ├ Gênero
Obs.: ler
┤ como determina
Sendo assim, podemos dizer que a palavra poemas, pelo fato de estar
no plural e associada sempre a um autor, designa os textos escritos por
um poeta, já que o autor possui mais de um texto, ou seja, o autor
caracteriza cada um dos poemas, sendo que um poema pode ser
diferente do outro, enquanto que a poesia é o que faz parte de um gênero
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013
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específico e que caracteriza um texto como poema. Dito de outro modo,
os poemas são textos que possuem uma determinação da poesia. Isso
nos leva a pensar que a poesia é um gênero textual como outros. Por
sua vez, ao ser colocada como um gênero, temos uma caracterização
normativa da questão, pois os estudos passam a ser tratados
genericamente, tal como qualquer outro gênero textual.
Porém ainda temos mais uma reescritura de poesia para analisarmos.
Trata-se da que encontramos no recorte 5, que é poética. Esta palavra,
nesse texto, aparece uma vez dentro de uma expressão referencial, “sua
seiva poética”, em que a palavra poética especifica seiva. No caso,
seiva é o “líquido que contém princípios nutritivos e que circula no
interior do vegetal” e, por metáfora, “energia física ou mental, força,
vigor”. Ou seja, a seiva é uma energia vital para que algo exista. Assim,
ao se particularizar a seiva como poética, um vigor, uma força,
caracteriza algo como sendo poesia. Dessa forma podemos pensar que
é essa “seiva poética” que transforma um texto em poesia. Mas, além
disso, temos que poético também traz uma separação entre alegoria e
metáfora, colocando a primeira fora da poesia, na medida em que ela
perde a seiva poética. Por outro lado, temos que a metáfora é algo que
constitui a poesia, já que ela possui essa seiva poética. Então poética é
o que caracteriza um texto como poesia e, além disso, é o que vamos
encontrar em poemas.
Temos também a palavra poética em um livro de Bakhtin, intitulado
“Problemas da Poética de Dostoiévski”. Nesse título, temos a palavra
poética sendo especificada por Dostoiévski, ou seja, existe uma poética
específica de um autor e que, nesse caso, trata-se de um autor de
romances e não especificamente um autor de poesias, o que traz certa
estranheza. Contudo, em nossa análise, observamos que poético é o que
traz a característica a um texto de ser uma poesia, ou seja, é uma
característica encontrada em alguns textos. Ao se colocar a palavra
poética relacionada a um autor de romances, esta palavra tem a sua
designação estendida, passando à característica específica de um autor.
Em certa medida, esta palavra aparece em um sentido aristotélico do
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A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN
termo, ou seja, há uma relação no uso deste termo por Aristóteles e por
Bakhtin. Sendo assim, podemos dizer que poética determina a
característica de um texto ou do conjunto de textos de um autor, isto é,
podemos dizer que poético está em uma relação de sinonímia com
característica, trazendo dessa forma o DSD da palavra poético da
seguinte forma:
Texto
┬
Poético
característica
┴
Autor
Obs.: ler ┤como determina e
__________
como sinônimo.
De um certo modo, podemos dizer que em Bakhtin, por ele colocar
o poético como uma característica, tanto de autor como de texto, e
também por colocar o poema como um texto e poesia como um gênero
textual, há uma falta de especificação para o conceito de poesia. Com
isso, a partir de sua posição sobre gêneros textuais, a poesia é colocada
simplesmente como se fosse um gênero entre outros. Dessa forma ele
não estaria tomado pela distinção Austiniana entre linguagem ordinária
e não-ordinária4. Porém, temos uma questão sobre o sujeito que faz a
poesia, ou seja, sobre o poeta, que é relacionado com artista, o que traz
uma assimilação de poesia pela arte, isto é, por conta da relação entre
poeta e artista, temos como correlato poesia e arte.
Se projetarmos o DSD de poeta aqui, substituindo poeta por poesia,
temos:
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Humano├ Descenso
┴
Ascenso ┤ Artista
┴
Poesia
Descenso ┤ não poesias (outros) ├ Humano
Obs.: ler ┤como determina e ____________
como antônimo
Nesse caso, temos uma relação muito particular de artista com
poesia, em que poesia aparece como determinada por artista. Além
disso, a poesia, tal qual vimos em poetas, transita entre o ascenso e o
descenso, enquanto que outros textos ficam somente no lugar do
descenso, ou seja, temos que a poesia está relacionada à arte e se
constitui como um texto que, de certo modo, pode ser considerado como
de maior alcance, já que tem essa particularidade de transitar entre os
dois paradigmas de ascenso e de descenso. Com essa projeção, trocando
poeta por poesia, aparece uma especificação para poesia.
Considerações Finais
Dessa forma temos que a poesia, para ele, é um gênero textual,
porém, que difere dos outros tipos de texto por ter esta relação com arte,
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A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN
enquanto que o poema é o texto que pode ser considerado dentro do
gênero textual poesia. E poético trata da característica de um texto ou
de um autor, ou, dito de outro modo, trata de um estilo específico de se
escrever, o que traz para a nossa reflexão que o que faz a poesia para
Bakhtin é o poeta/artista e não a língua. Isso dito dentro de um quadro
teórico em que a língua aparece essencialmente interindividual, em que
várias vozes se cruzam, ou como diz Bakhtin, ela é essencialmente
dialógica.
Temos então, como dissemos na discussão sobre a teoria de Bakhtin,
que a inserção dele em nossos estudos se deu por ele ser um estudioso
da linguagem que é, fundamentalmente, um crítico da literatura. E, por
ocupar este lugar, suas preocupações com a linguagem ficam
relacionadas com a arte, trazendo uma reflexão bem particular sobre a
poesia para os estudos da linguagem.
Notas
1
Este artigo é uma versão modificada de um capítulo de minha tese de doutorado,
intitulada “O Sentido da Palavra Poesia nas Ciências da Linguagem, defendida no
Programa de Pós-graduação em Linguística do IEL/UNICAMP.
2 Lembrando que alguns trabalhos, tais como os de Patrick Sériot, colocam em dúvida
sobre a autoria de Bakhtin para este livro
3 Grifamos certas palavras nos recortes para melhor visualizar as reescrituras.
4 Nas palavras do próprio Austin: “O que quero dizer é o seguinte: um proferimento
performativo será, digamos, sempre vazio ou nulo de uma maneira particular, se dito
por um ator no palco, ou se introduzido em um poema ou falado em um solilóquio, etc.
De modo similar, isto vale para todo e qualquer proferimento, pois trata-se de uma
mudança de rumo em circunstâncias especiais. Compreensivamente a linguagem, em
tais circunstâncias, não é levada ou usada a sério, mas de forma parasitária em relação
a seu uso normal, forma esta que se inclui na doutrina do estiolamento da linguagem.
Tudo isso fica excluído de nossas considerações. Nossos proferimentos performativos,
felizes ou não, devem ser entendidos como ocorrendo em circunstâncias ordinárias.
(Austin, 1990, p. 36)
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Referências bibliográficas
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IEL/Unicamp.
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linguagem. Tese de doutorado. IEL/Unicamp.
Palavras-chave: poesia, teorias de linguagem, enunciação
Key-words: poetry, language theories, enunciation
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PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA,
RECORTE E FUNCIONAMENTO: A
METODOLOGIA EM AD
Lucília Maria Abrahão e Sousa1
USP
Dantielli Assumpção Garcia **
Daiana de Oliveira Faria***
Resumo: Este artigo traz uma reflexão sobre a metodologia da Análise
de Discurso. Mobilizando as noções de paradigma indiciário
(Ginzburg, 1989), escriturística (De Certeau, 1999), e recorte
(Orlandi, 1984), as autoras propõem a noção de língua-concha, a qual
remete aos indícios, aos furos, às contradições, às falhas, às dobras, às
frestas do imenso mar do discurso.
Abstract: This article presents a reflection on the methodology of
Discourse Analysis. Mobilizing the notions of evidential paradigm (as
in Ginzburg, 1989), scripturistics (as in De Certeau, 1999), and cut (as
in Orlandi, 1984), the authors propose the notion of shell-language,
which refers to the evidence, the holes, the contradictions, the failures,
the folds, the cracks in the vast sea of discourse.
“Enxuta, a concha guarda o mar/ No seu estojo”
Chico Buarque
A concha seca, alguns grãos de areias, os restos de um mergulho que
já não há, o mar ausente no de-dentro dela, a concha, a língua: há quem
diga ser possível até mesmo ouvir o gemido de mar dentro de uma
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concha. Emprestamos a metáfora para tomar aqui a língua como concha
que manifesta marcas de rolamentos, de navegação, de rachaduras e de
trincados que o analista do discurso precisa escutar. Estamos no campo
da metodologia de Michel, cujo cerne não é desenhado pela
compreensão de uma mensagem ou conteúdo por meio de “modelos
prontos, definidos anteriormente a seus objetos, que podem nos levar a
uma análise conteudística, onde o que temos a dizer serve apenas para
comprovar uma conclusão pré-estabelecida” (LAGAZZI, 1988, p.51),
mas pela escuta dos modos de inscrição de posições discursivas na
ossatura da língua-concha, nosso alicerce, nosso chão, sempre o mar.
Materialidade linguística – de língua-concha – que o analista do
discurso coloca na orelha, escuta, desdecifra (e devora); entre ruídos e
silêncio se constituem pistas e indícios do discurso. Silêncio que ecoa,
que é efeito e que não pode ser apreendido, se não por seus ecos. A
língua-concha dá corpo a registros e marcas por onde escorrem efeitos
de sentidos, rabiscando regularidades, repetições e desvios, sendo esses
nossos objetos de interesse e estudo. Para pensar à moda de Pêcheux,
faremos um percurso nos seguintes termos: i. definição de paradigma
indiciário; ii. anotações sobre o modo discursivo de pensar a língua
como concha; iii. noção de recorte e funcionamento discursivo.
O paradigma indiciário começou a ser esboçado por Ginzburg
(1989) ao observar os estudos do final do século XIX. A pergunta que
se fazia então era a seguinte: como uma tela poderia ser identificada se
a sua data e autor eram desconhecidos? E no caso de uma incerteza,
como afirmar com precisão quem foi o pintor da obra, como reconhecer
certa dose de pertença/pertencimento nesse caso? As características da
escola artística não se mostravam suficientes para solucionar impasse
desse tipo, tampouco respondiam à questão de situar pintor e obra.
“É necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis” (op.
cit., p.144) adverte Ginzburg, o qual sinaliza também como o
considerado pequeno e desprezível pôde ser anotado nos trabalhos de
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Morelli que, nas obras de arte, atentava para detalhes como o formato
das unhas, o tamanho do lóbulo da orelha e a forma dos dedos das mãos
e dos pés, inaugurando uma interpretação a partir de elementos tidos
como marginais, simulando a postura de um detetive que, diante de uma
obra de arte, precisa atiçar os olhos para perceber a grandiosidade de
detalhes, o minúsculo em movimento, a erva daninha pouco reparada
na imensidão de corpos.
Esse exemplo ilustra uma postura indagadora (e por que não dizer
científica?) que, segundo Ginzburg (op.cit., p.151-152), revisita alguns
outros períodos históricos. Em vários momentos, o homem comportouse dessa forma para resolver questões cotidianas, muito embora esse
saber nunca tenha chegado ao estatuto científico. O homem como
caçador de pistas, como olheiro dos objetos do mundo incógnitos e
tantas vezes hostis, como construtor de um meio para sistematizar seus
desconhecidos diante do enigma de estar no mundo.
Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições,
ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas
invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de
esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados.
Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas
infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações
mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso
bosque ou numa clareira de ciladas (...) Decifrar ou ler as pistas dos
animais são metáforas (GINZBURG, 1989, p.151-152).
Ele ainda o completa apontando como as práticas divinatórias e a
leitura dos astros encerram esse tracejado de invencionices e
interpretações destinadas ao resto, à sobra de algo que não está presente,
mas presentificado na marca deixada para trás, ao sinal que ficou... Uma
pegada que iremos tomar para nós como analistas do discurso... Os
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astros no céu de então, quando lidos nos detalhes de seus arranjos,
apontavam previsões sobre mudanças no clima e no desenvolvimento
da agricultura, por exemplo. A análise de vestígios dos rastros de
animais também implica momentos de defesa humana, sobrevivência
ou indiciava a proximidade com o horror da morte; ler sinais e pistas
deixadas no oco ausente/presentificador para sobreviver... Perceber a
fundura e a umidade da pata no barro, a grossura do pelo deixado na
árvore, o tamanho da plumagem derramada no chão, o tamanho da
mordida no corpo do animal estraçalhado: “por trás desse paradigma
indiciário ou divinatório, entrevê-se o gesto talvez mais antigo da
história intelectual do gênero humano: o do caçador agachado na lama,
que escuta as pistas da presa” (GINZBURG, op.cit., p.154).
Anota o autor italiano que a medicina também bebeu nessa fonte, ao
observar fezes, suores e toda espécie de secreções de pacientes,
passando do sintoma ao diagnóstico da doença e à cura num pulo
indiciário. Ler os indícios no/do(r) corpo exige perscrutar o detalhe, o
sinal, a minúcia que apenas o olhar refinado para o indício, a pista e o
sinal pode perceber. Nesses termos todos nós, que trabalhamos com a
metodologia da teoria discursiva francesa, encontramo-nos debruçados
diante do texto como caçadores de pegadas do sujeito, de secreções de
sentidos e de vestígios da estrutura e do acontecimento, tocando os
suores do enunciado pelo que escorrega às margens. Não nos interessa
a mensagem como bloco fechado, mas as fissuras que ela conserva, o
minúsculo de um pêlo esquecido em um passo de equívoco, em uma
troca de palavra e de som, em um caco de desarranjo que reclama
acuidade de escuta.
No que toca ainda um pouco mais o pensamento de Carlo Ginzburg,
De Certeau (1999, p.247-248) fala do mesmo lugar ao refletir sobre a
escriturística. Ao fazer um passeio pela obra de Daniel Defoe, relaciona
as metáforas da ilha, do cachorro, do Sexta-feira e do protagonista
Robison Crusoé com a escriturística, ou seja, com a prática do texto
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escrito (e poderíamos ampliar aqui com a prática metodológica do
analista do discurso).
Robison Crusoé já indicava como é que uma falha se introduz em
seu império escriturístico. Durante algum tempo, seu
empreendimento é como efeito interrompido, e habitado, por um
ausente que volta ao terreno da ilha. Trata-se da impressão (print)
de um pé descalço de homem na areia da praia. Instabilidade da
demarcação: a fronteira cede ao estrangeiro. Nas margens da
página, o rastro de um invisível fantasma (na apparition) perturba
a ordem construída por um trabalho capitalizador e metódico (...)
Na página escrita aparece então uma mancha – como as garatujas
de uma criança no livro que é a autoridade do lugar. Insinua-se
na linguagem do lapso. O território da apropriação se vê alterado
pelo rastro de alguma coisa que não está lá e não ocupa lugar
(CERTEAU, 1999, p. 247-248).
De Certeau (op. cit.) enuncia poeticamente o que nos parece uma
contribuição ao conceito de indício: anota o que vai além da fronteira e
demarcação das palavras do enunciado, o que é puro discurso, curso de
sentidos em movimentos, o ausente que presentifica um modo de
sustentar o dizer, a pegada que coloca sentidos em possibilidade de
leitura. Investe atenção na linguagem do desvio, da falha e do vacilo,
daquilo que re(in)siste, como coloca Pêcheux:
As resistências: não entender ou entender errado; não “escutar”
as ordens; não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo,
falar quando se exige silêncio; falar sua língua como uma língua
estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido
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das palavras e das frases; tomar os enunciados ao pé da letra;
deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o léxico jogando com
as palavras... (PÊCHEUX, 1990, p.17).
Preocupa-se com o que não está “escrito e visível”, sai em busca do
rastro (da pegada) “do estrangeiro”, melhor dizendo, do sujeito
enquanto posição discursiva. Da mesma forma, Tfouni (1992, p.205224) sublinha esse mapeamento das pistas e indícios na materialidade
linguística, colocando tal enfoque como decisivo para a compreensão
da linguagem.
Para Carlo Ginzburg, as ciências humanas sempre se debateram
(e isso é histórico) entre a adoção de um método galileano,
experimental, que considera o dado como fato objetivo,
quantificável, de um lado, e um paradigma científico segundo o
qual ‘o conhecimento é indireto, indiciário, conjetural’. (...) Para
aqueles que pesquisam a linguagem, seguir o paradigma
galileano significa, ainda segundo Ginzburg efetuar uma
‘progressiva desmaterialização do texto, continuamente
depurado de todas as referências sensíveis’. Em contraparte,
seguir o paradigma indiciário significa restituir ao texto suas
qualidades individuais, restituir-lhe os contextos em que foi
produzido, a(s) história(s) de suas condições de produção
(TFOUNI, 1992, p.205-224).
Anotando que quando falamos em condições de produção, temos
imbricados sujeito e situação, em sentido estrito e em sentido lato,
funcionando conjuntamente: contexto imediato e contexto sócio-
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histórico ideológico mais amplo não podem ser dissociados
(ORLANDI, 2006).
Chartier (2001, p.167-168) também faz referência ao trabalho de
Ginzburg e compreende o ganho científico de “tornar visível uma série
de fatos ocultados no curso das investigações de história social clássica:
vinculações, negociações, conflitos, elementos que geralmente não se
vêem em uma escala mais ampla”. Comprometido com a acuidade do
olhar do pensador italiano, ele faz a seguinte síntese:
Para Ginzburg, o importante é a anomalia, o que se pode ver por
meio de uma situação excepcional (...) utiliza referencialmente
uma nova técnica de classificação, de identificação (...) que
apesar dos traços visíveis das espécies reconstrói as famílias a
partir de uma série de traços que podem ser completamente
invisíveis e que pertencem à anomalia (...) Assim, os animais que
pareciam próximos por suas formas ou sua aparência, são
separados e colocados em outras famílias (...) Ginzburg é um
desafio aos historiadores mais apegados às descontinuidades,
variações, discrepâncias e defasagens, pois propõe uma espécie
de retorno ao antropológico no sentido do universal e reformula
assim uma questão clássica: como pode-se entender-se com o
passado ou o outro, o estranho e o alheio, se não há algo comum
que permita essa compreensão? Se temos alguma possibilidade
de reconstruir estas diferenças é porque há algo compartilhado
(CHARTIER, 2001, p.167-168).
Nesse mapa de pistas e sinais à mostra, a língua-concha indicia. Nos
seus relevos, irrompem rotas seguras e reviravoltas cheias de surpresas.
Os indícios que nos interessam emergem na materialidade linguística,
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em (des)arranjos de língua, em marcas deixadas pelo sujeito após
fal(h)ar e depositar na areia do dizer as pegadas de seus pés andarilhos.
Quando falamos em materialidade linguística, apontamos para o que dá
forma aos indícios e marcas discursivas. Vale ressaltar que não se trata,
apenas, de um suporte ou de algo acabado. Pela via do materialismo
histórico-dialético, de onde emerge essa noção na teoria do discurso, o
mundo não pode ser considerado um complexo de coisas acabadas, mas
um processo onde as coisas e os conceitos estão em incessante
movimento (ORLANDI, 2012, p. 73). É nessa direção que falamos em
materialidade, como processo em que estão imbricados sujeito e
condições de produção, processo que se materializa na língua. Nesse
sentido, a língua é concebida enquanto lugar material em que se
realizam os efeitos de sentidos, dá as condições materiais de base do
processo discursivo (ORLANDI, 2012). Com isso, materialidade
discursiva é o nível de existência sócio-histórica que remete às
condições verbais de existência dos objetos (PÊCHEUX, 2011).
Indursky (1997, p.22-23) desenvolve um pouco mais esse pressuposto
da língua nos seguintes termos:
Examinar o mesmo pronome e seu funcionamento no discurso
coloca o analista diante de um dado lingüístico e a seu
funcionamento discursivo (...) A AD busca, pois, detectar um
conjunto de elementos estruturados para verificar o modo de
organização do discurso (INDURSKY, 1997, p.22-23).
A língua como dado funciona de modo a fechar o cerco do sentido
(a interpretação não pode ser qualquer uma nem toda), de um sentido
marcado por certas condições de produção; assim, a língua é indício,
primeiro e sempre passo de nossa metodologia discursiva. Vale aqui
anotar que as palavras não estão congeladas em estado de dicionário,
mas sempre em jogo tenso e deslocante; sobre isso, Orlandi (1988, p.54)
anota que: “a relação entre as marcas e o que elas significam é (...)
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indireta. No domínio discursivo não se pode, pois, tratar as marcas ao
modo positivista, como na linguística”. Segundo Marx (1988), toda
ciência seria supérflua se as formas de manifestação, as marcas, os
indícios e a essência das coisas coincidissem imediatamente. É, pois,
nessa instância que o método discursivo (ORLANDI, 1991) se pauta,
ou seja, nos movimentos que culminam em marcas, indícios. Essa tensa
contradição da impossibilidade de coincidência e de relação direta entre
as coisas do mundo e suas representações é o lugar teóricometodológico da Análise do Discurso. Num movimento de interpelação
ideológica, o sujeito é fisgado pela ilusão de que pode haver uma
relação direta e efetiva entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de
tal maneira que torna evidente que o que foi dito só podia ser dito com
aquelas palavras e não com outras. Esse processo cria o almejado efeito
de clareza, completude e evidência tamponando as brechas do fal(h)ar,
que se dá de uma maneira possível, apagando outras e, assim, deixando
de dizer de outros modos tantos. Tal movimento é definido por Pêcheux
como esquecimento nº 2
(...) “esquecimento” pelo qual todo sujeito-falante “seleciona” no
interior da formação discursiva que o domina, no sistema de
enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em
relação de paráfrase – um enunciado, forma ou seqüência, e não
um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia
formulá-lo na formação discursiva considerada (PÊCHEUX,
1988, p.173).
As pistas da língua podem passar imperceptíveis à primeira vista,
por isso mesmo cabe-nos olhar e retornar a olhar para elas com
insistência, anotando como os efeitos são produzidos, de que forma
se repetem, cristalizam-se e se rompem sentidos em uma dada
posição-sujeito, e se há repetições ou deslocamentos em curso, e
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como a língua funciona, como vale e como faz jogo disso tudo.
Segundo Lagazzi (1988, p.61):
A partir das marcas lingüísticas que se sobressaem, configurando
as pistas para a análise, é que começarão a delinear o caminho
que levará o analista ao processo discursivo, possibilitando-lhe
explicar o funcionamento do discurso (LAGAZZI, 1988, p.61).
Nessa perspectiva, o processo metodológico da AD, indiciário no
exercício, está às voltas com
essa relação tensa, isto é, de contradição na constituição do
sujeito (...) A partir da consideração social dos interlocutores,
podemos dizer que os conhecimentos podem ser ‘comuns’ mas
não são ‘iguais’. Há desigualdade na distribuição de
conhecimentos, não há partilha. Essa desigualdade é jogada na
interlocução (ORLANDI, 1984, p.13).
Desse modo, ao estudar o discurso, é necessário pensar a contradição
e o sujeito, mantendo os ouvidos sempre colados na língua-concha,
tratando-a não como unidade revestida de informação, como superfície
precisa a ser decodificada, como transparência e completude, mas
considerando que ela funda uma superfície furada e opaca, a qual
chamamos texto, “o todo em que se organizam os recortes” (op. cit.,
p.14). A autora (op. cit, p.14) define que “recorte é um fragmento da
situação discursiva”, “recorte é naco, pedaço, fragmento. Não é
segmento mensurável na linearidade” (op. cit., p.16).
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Com o gesto de recortar, o analista visa analisar o funcionamento
discursivo do texto, buscando compreender o estabelecimento de
relações significativas entre os elementos significantes da línguaconcha. Como a teoria discursiva considera a incompletude e a
opacidade constitutivas da linguagem, não se tem a ilusão de abarcar ou
produzir uma análise de todo o texto, esgotando-o por completo, mas
tomando recortes dele e estabelecendo aí “um começo, um lugar na
incompletude” (op. cit., p.17). Tais recortes representam o
envolvimento do analista que se posiciona diante dos dados,
escolhendo-os (e sendo escolhido por eles...), já implicado pelo seu
objeto, muitas vezes efeito dele, haja visto que “a defesa da análise do
discurso como prática interpretativa não se dá sem que se coloque como
condição indispensável a explicitação do lugar de onde o analista fala”
(TEIXEIRA, 2005, p.196-197).
Ao analisar os discursos, explicita Orlandi (2002, p.77-78), concebese um lugar para a descrição das sistematicidades linguísticas, isto é,
busca-se descrever o modo como o linguístico aparece no discurso.
Além disso, o que analisamos é o estado de um processo discursivo. Há,
assim, a passagem da superfície linguística (o material de linguagem
bruto, o texto) para o objeto discursivo, em que se faz funcionar o
esquecimento número 2 (da instância da enunciação). Nesse momento,
desfaz-se a ilusão de que “aquilo que foi dito só poderia sê-lo daquela
maneira. Desnaturaliza-se a relação palavra-coisa”. Aponta-se, dessa
forma, para um funcionamento da língua-concha, no qual a abertura
para o múltiplo se instaura, o não-dito se faz presente, o confronto entre
diferentes formações discursivas, constitutivamente frequentadas pelo
seu outro, intervém, fazendo as palavras ecoarem sentidos no grande
mar do discurso. A partir do objeto discursivo, o analista vai relacionar
as distintas formações discursivas em confronto – que como ondas
fazem os sentidos se moverem e circularem nas margens, nas marés,
nas areias, nas ressacas da linguagem – com a formação ideológica que
rege essas relações: “Aí é que ele atinge a constituição dos processos
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discursivos responsáveis pelos efeitos de sentidos produzidos naquele
material simbólico, de cuja formulação o analista partiu” (ORLANDI,
2002, p.78). Ainda nos dizeres de Orlandi (2002, p.68):
Fatos vividos reclamam sentidos e os sujeitos se movem entre o
real da língua e o da história, entre o acaso e a necessidade, o
jogo e a regra, produzindo gestos de interpretação. De seu lado,
o analista encontra, no texto, as pistas dos gestos de
interpretação, que se tecem na historicidade. Pelo seu trabalho de
análise, pelo dispositivo que constrói, considerando os processos
discursivos, ele pode explicitar o modo de constituição dos
sujeitos e de produção dos sentidos. Passa da superfície
linguística (corpus bruto, textos) para o objeto discursivo e deste
para o processo discursivo. Isso resulta, para o analista, com seu
dispositivo, em mostrar o trabalho da ideologia. Em outras
palavras, é trabalhando essas etapas de análise que ele observa os
efeitos da língua na ideologia e materialização desta na língua.
Ou, o que, do ponto de vista do analista, é o mesmo: é assim que
ele aprende a historicidade do texto.
O importante é esgotar, tanto quanto possível o recorte, verificando
como “entre os vários sentidos, um (ou mais) se tornou dominante”
(ORLANDI, 1984, p.23). Do texto ao recorte, da polissemia a um
sentido possível, da sequência discursiva ao processo discursivo
sustentado pelas condições de produção, da (e na) língua-concha ao mar
do discurso: nosso trabalho insistente e cheio de dobras e frestas, nossa
peleja por estar (e teimar em continuar) nas margens, no sem-categoria
que nos lança a navegar com uma cartografia que é construída a cada
passo dado (e também a cada aborto de passo). Com um mapa tal como
coloca Deleuze-Guatarri:
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(...) o mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões,
desmontável, reversível, suscetível de receber modificações
constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a
montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo,
um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa
parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma
ação política (...) (DELEUZE-GUATTARI, 1995, p.21).
O que nos cabe escutar de novo (e com a polissemia dessa expressão,
novamente e de novidade) na metodologia discursiva e nos nossos
exercícios de análise(s), é a (nossa) condição da língua-concha, ou seja,
escutar os espaços porosos, vazados, abertos que constituem uma
ausência que é casco e borda, que emblematiza oco e palavra em torno.
E só o fazemos na língua que nos falta, aquela da concha muito vazia e
tão cheia de ar.
O novo, nessa perspectiva, não é exclusividade do foco nem
precisa ter lugar em um segmento de linguagem. É intervalar. É
o resultado de uma situação discursiva, margem de enunciados
efetivamente realizados, essa margem, este intervalo, não é um
vazio, é o espaço ocupado pelo social. Efeito de sentido.
Multiplicidade (ORLANDI, 1984, p.13).
A lida com algo sempre escapante que está dentro, e também fora, e
se manifesta como puro intervalo entre mar e areia, onda e pedra; que
pode receber preenchimentos imprevisíveis de terra e ar permanecendo
vazia; que sempre nos remete a margens de mar, marés, ondas,
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movimentos de ondulações e ressacas em cascalhos, areias e pedras;
que no seu de-dentro reserva espaço consagrado ao vazio, e por isso se
faz busca e pôde ser cuspida do oceano, ressecar até a última gota, virar
canção na voz de Buarque e mote para este texto. Margens que se
estiram no dizer do sujeito – na tentativa, sempre vã – de preencher,
(re)emendar, coser com os objetos de pesquisa e com as metodologias
inventadas, algo que lhe falta, o ausente da (sua) concha. O furo que
gesta e que coloca palavras e métodos em discurso, no concurso do
faltoso que todo oceânico encerra, no que de falha é duração de
continuidade, em nossa condição, também de concha.
Notas
1
Docente com dedicação exclusiva da Universidade de São Paulo. Coordenadora do
Grupo de Pesquisa “Discurso e memória: movimentos do sujeito” (CNPQ) e do “EL@DIS, Laboratório Discursivo - sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimentos”
(FAPESP).
** Pós-Doutoranda na Universidade de São Paulo.
*** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão da Universidade de São Paulo.
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Palavras-chave: língua-concha; Análise de Discurso; metodologia
Keywords: shell-language; Discourse Analysis; methodology
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FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS
O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO
EM SAUSSURE E EM BENVENISTE
Cármen Agustini
ILEEL-UFU/GELS
Mostrando que entre estas duas dimensões [a semiótica e
a semântica] não existe passagem, Benveniste conduziu a
ciência da linguagem diante de sua própria aporia
suprema. […] A dupla articulação em língua e discurso
parece, pois, constituir a estrutura específica da
linguagem humana (AGAMBEN, 2005, p. 14).
Palavras iniciais
O presente artigo surge de minha inquietação, sempre viva e
presente, sobre o Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure.
Leitura tantas vezes (re)visitada e a (re)visitar. Saussure e seus muitos
caminhos. Neste artigo, pretendo trazer do Curso de Linguística Geral,
doravante CLG, aquilo que ele traz sobre a constituição do signo
linguístico, a fim de problematizar, em particular, a noção de
significado/conceito, uma vez que, em muitas ocasiões, ouvi que o
significado/conceito seria um significado amplo, primário e imanente
ao signo, cujo valor se igualaria ao sentido referencial ou denotativo do
signo; nos termos de Benveniste ([1962]1995), sentido referendum.
Assim sendo, o signo ‘árvore’ seria constituído, por exemplo, pela
imagem acústica (representada pela transcrição fonológica do signo
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O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE
árvore) e o conceito (representado pelo sinônimo 'arbusto' ou pela
imagem de uma árvore).
Embora essa explicação, assim posta, também apareça no CLG, não
a considero trabalhada de modo a permitir uma compreensão adequada
sobre a constituição do signo linguístico, se for considerada a definição,
também saussuriana, da língua como um sistema de valores puros.
Surge dessa colocação a ideia deste artigo: trabalhar sobre a condição
paradoxal da língua, a fim de problematizar a constituição do signo
linguístico. Cito abaixo o recorte de uma explicação similar a essa
supracitada, presente em Walmirio Macedo, e que utilizarei, no
decorrer do presente texto, na construção de minha argumentação:
O signo, seja qual for a sua dimensão, tem sempre os mesmos
constituintes: SIGNIFICANTE e SIGNIFICADO. Esses constituintes
são fundamentais. Um significante sem significado, ou viceversa, não é signo linguístico: #napato não é um signo linguístico
porque não tem significado, mas sapato é um signo porque tem
um significante /sapatu/ e um significado que é a ideia ou a
imagem que ele evoca. Ou seja: o seu conteúdo linguístico
(MACEDO, 2012, p.46).
Essa forma de explicação, que supunha algo estranha desde minhas
primeiras incursões nos territórios da Linguística, já que contradiz
afirmações recorrentes e contundentes de Saussure, como “esses signos
atuam, pois, não por seu valor intrínseco, mas por sua posição relativa”
(SAUSSURE, [1916] 1996, p.137), em minhas (re)visitas ao CLG,
revelou-se problemática e contraditória, a ponto de não aceitá-la, sem
desenvolver um trabalho de compreensão mais acurado sobre ela.
Trata-se, a meu ver, de uma explicação que acresce ao signo o sentido
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referendum que a linguagem lhe habilita no e pelo discurso, que
enforma a língua de significação. Trata-se, portanto, de uma explicação
que, além de apregoar a imanência do sentido referendum, também
nega seu caráter relacional, negativo e opositivo, se ela não for
(re)dimensionada em função da dupla significância da linguagem.
Diante dessa problemática contradição, busquei um caminho que
pudesse, de alguma forma, trazer-me um norte que se constituísse, para
mim, em um porto de compreensão. Essa compreensão veio a partir da
definição de Saussure da língua como um sistema de pura diferença
associada à leitura benvenistiana do plano semiótico, cuja tópica é o
conceito saussuriano de língua.
Meu encontro teórico com o pensamento de Émile Benveniste e com
seu trabalho sobre o funcionamento da linguagem, assim como a paixão
que me movimenta a perscrutar a linguagem e a experiência humana,
são caminhos que se convergem nessa busca por compreender o sistema
linguístico e a constituição do signo linguístico. Essa compreensão não
significa ultrapassar Saussure; significa trilhar um caminho possível em
sua teorização, a fim de compreender certas questões e caminhos
abertos por Benveniste. Nesse sentido, então, essa compreensão
significa, em certa medida, desenvolver o pensamento saussuriano a
partir de um caminho por ele mesmo aberto. Desse autor, utilizarei o
tomo I dos Problemas de Linguística Geral, doravante PLG I.
A epígrafe, escolhida não por acaso, traz o cerne da discussão que
pretendo apresentar neste artigo, a saber: a implicação língua-discurso
produz o caráter paradoxal do signo linguístico. Há, no CLG, definições
de língua que, em certo sentido, (d)enunciam uma articulação
constitutiva entre língua e discurso. Em “A língua constitui um sistema
de valores puros que nada determinam fora do estado momentâneo de
seus termos” (SAUSSURE, [1916] 1996, p.95) é retomada, em parte, a
definição “A língua é um sistema de signos que exprimem ideias”
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(SAUSSURE, [1916] 1996, p.24). Essas duas definições, na discussão
aqui apresentada, encontram-se em certa relação sinonímica.
Se assim o for, “valores puros” está recobrindo “signos”, o que não
deixa de ter implicação sobre “na língua só existem diferenças [sem
termos positivos]” (SAUSSURE, [1916] 1996, p.139) e, “que nada
determinam fora do estado momentâneo de seus termos” está
recobrindo “que exprimem ideias”. Se essa interpretação for possível,
“valores puros” e “signos” estão na ordem da língua enquanto “que
nada determinam fora do estado momentâneo de seus termos” e “que
exprimem ideias” estão na ordem do discurso e, portanto, sob a égide
da contingência e da estabilização social dos sentidos, sendo que a
estabilização social da contingência converte esta em necessidade.
Assim considerando, as duas dimensões benvenistianas nessas
definições aparecem, portanto, imbricadas.
A partir da consideração acima tecida, pergunto-me: quais as
consequências dessa articulação constitutiva entre língua e discurso?
Não seria essa articulação a responsável por certa confusão na
explicação da constituição do signo linguístico? Não seria essa
articulação a responsável por outras confusões ou incompreensões
sobre o pensamento saussuriano, principalmente aquelas relativas à
positivação do signo linguístico? Não seria essa articulação a
responsável pela produção de um efeito de que haveria um sentido
referendum sempre-já-lá para o signo? Em que a teorização
benvenistiana pode contribuir para a discussão de tais questões? Nas
páginas seguintes, debruçar-me-ei sobre essas questões a fim de pontuar
caminhos possíveis para lidar com elas e os estranhamentos decorrentes
da implicação língua-discurso.
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1. A constituição do signo linguístico no CLG e nos PLG I.
Pontuando alguns sentidos
Para melhor explicar a posição aqui assumida, irei, de início,
trabalhar a noção de arbitrário. Para tanto, cito Saussure no CLG
([1916] 1996, p.81):
chamamos signo a combinação do conceito [significado] e da
imagem acústica [significante]. (…) O laço que une o
significante ao significado é arbitrário. (…) Assim, a ideia de
“mar” não está ligada por relação alguma interior à sequência de
sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada
igualmente bem por outra sequência, não importa qual.
Se a língua é forma e não substância, porque o signo é uma entidade
psíquica de dupla face, não seria cabível preconizar que uma parte tenha
uma natureza distinta da outra; no processo de discretização das
entidades linguísticas em unidades linguísticas, os signos, o sentido do
significante é da ordem do diferencial, cujo valor é distintivo. Essa
premissa, para não usurpar o valor teórico e explicativo da afirmação
de que na língua só há diferença, precisa valer para o significado
também. Por isso, o sentido do significado também é da ordem do
diferencial, cujo valor é distintivo. Nesse sentido, o significado não
pode subsumir o sentido referendum, que é constituinte do plano
semântico1 e, portanto, do discurso.
Sendo assim, é fundamental conceber que a arbitrariedade aludida
por Saussure refere-se à não-motivação na constituição do signo
linguístico. No entanto, trata-se de um laço necessário para que haja
signo, uma vez que é o distintivo do significado que permite que a
língua, no processo de sua conversão em discurso, signifique. Dito de
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outro modo, é o valor distintivo do significado que permite que a língua
seja enformada de significação, cujo aspecto fundante é a relatividade
à instância de discurso que a produz e à estabilização que a sua
circulação social promove.
É oportuno dizer ainda que, para o falante, nada está na língua antes
de seu aparecimento no discurso, de modo que é necessária a “colagem”
ao signo linguístico de um sentido referendum para que o falante
reconheça uma forma como signo linguístico de uma língua específica.
Por conseguinte, uma forma latente como #napato, embora não deponha
em nada contra o sistema linguístico da Língua Portuguesa, não é
particularmente reconhecida como signo linguístico pelos falantes de
Língua Portuguesa, porque lhe falta a “colagem” de um terceiro
elemento, o referendum.
Benveniste ([1964] 1995, p.137) nos PLG I afirma que o sentido é
correlato à forma e esclarece que
na língua organizada em signos, o sentido de uma unidade é o
fato de que ela tem um sentido, de que é significante. (…) Um
problema totalmente diferente consistiria em perguntar: qual é
esse sentido? Aqui sentido se toma numa acepção completamente
diferente. Quando se diz que determinado elemento da língua tem
um sentido, entende-se uma propriedade que esse elemento
possui, enquanto significante, de constituir uma unidade
distintiva, opositiva, delimitada por outras unidades e
identificável para os locutores (…) Esse “sentido” é implícito,
inerente ao sistema linguístico e às suas partes. Ao mesmo tempo,
porém, a linguagem refere-se ao mundo dos objetos (…) Cada
enunciado, e cada termo do enunciado, terá assim um
referendum, cujo conhecimento está implicado pelo uso.
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Em suma, o signo linguístico é arbitrário em sua constituição. No
entanto, como o signo não é fora do discurso que o produziu, há a
produção de um efeito de que o sentido referendum está desde sempre
já-lá, como parte integrante do signo. Esse é o sentido próprio ao plano
semântico. É nesse ponto, parece-me, que o linguista precisa, a partir
do conceito saussuriano de língua, produzir um corte entre signo e
sentido referendum a fim de compreender que a língua é uma instituição
social única, diferente de todas as outras, porque ela está fundada em
um vazio radical, ou seja, antes dela não há nada; não há um a priori.
Ela é na relação entre os signos e essa relação é marcada por duas
propriedades inalienáveis: a negação e a oposição. A negação refere-se
ao fato de que não há um a priori antes da constituição dos signos
linguísticos e, por conseguinte, do sistema linguístico. Por isso, a língua
se constitui na pura diferença. Ou seja, não há propriedades a partir das
quais se construiria o sistema. O sistema é na relação negativa de seus
constituintes solidários entre si.
A oposição, por sua vez, refere-se ao fato de que um signo é o que
os outros signos não são. Nos dizeres de Saussure ([1916] 1996, p.136),
“sua característica mais exata é ser o que os outros não são”. Saussure
([1916] 1996, p.133) diz ainda que
o conceito [de um lado] nos aparece como a contraparte da
imagem acústica no interior do signo e, de outro, este mesmo
signo, isto é, a relação que une seus dois elementos, é também, e
de igual modo, a contraparte dos outros signos da língua. Visto
ser a língua um sistema em que todos os termos são solidários e
o valor de um resulta tão-somente da presença simultânea de
outros.
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Nesse sentido, o laço que une um significante e um significado, na
constituição do signo linguístico, é contingente e, por isso, arbitrário.
No entanto, esse mesmo laço mostra-se necessário para que haja língua,
uma vez que não há língua fora do discurso. A língua se forma e se
constitui no e pelo discurso. Eis o aspecto paradoxal da língua. Sem
esse laço constituído entre um significante e um significado não há
como a linguagem exercer sua função simbólica, cuja premissa básica
é significar, de modo a organizar o mundo para o locutor via reprodução e para seus interlocutores via re-criação. A função simbólica
da linguagem é o fundamento da possibilidade de o homem viver em
sociedade.
Essa contradição constitutiva do signo linguístico leva, inclusive,
Saussure ([1916] 1996, p.137) a (d)enunciar que
(…) não existe imagem vocal que responda melhor que outra
àquilo que está incumbida de transmitir, é evidente, mesmo a
priori, que jamais um fragmento de língua poderá basear-se, em
última análise, noutra coisa que não seja sua não-coincidência
com o resto. Arbitrário e diferencial são duas qualidades
correlativas.
Assim sendo, arbitrário e diferencial estão em relação de mútua
dependência, o que significa dizer que o princípio do arbitrário mostra
que, ao dividir o signo linguístico em significado e significante, a
combinação entre eles não é motivada, uma vez que não há a priori à
constituição da língua. Por isso, é preciso compreender o que implica
dizer que se trata de um laço necessário, conforme posto por Benveniste
([1939] 1995). É preciso, ainda, questionar a evidência de que esse
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“necessário” corresponderia à condição sistêmica do signo. Não parece
ser o caso. Não é à-toa que Benveniste alocou seu texto “Natureza do
signo linguístico” na seção Comunicação dos PLG I. O ponto de vista
em prevalência é o semântico e não o semiótico. É necessário, então,
compreender que a “linguagem habilita a palavra à significação” para
que ela possa cumprir sua função simbólica e, dessa forma, haver a
possibilidade de uma correferência, na instância de discurso, entre os
(inter)locutores. Essa associação entre significado (conceito) e
significante (imagem acústica), nessa perspectiva, torna-se necessária
para que o locutor reconheça a forma como uma unidade linguística
disponível à conversão da língua em discurso.
Benveniste, por sua vez, compreende essa contradição constitutiva
e a (d)enuncia, a seu modo, em diferentes momentos de sua produção
e, em particular, no artigo de 1939, “Natureza do Signo Linguístico”.
De um outro modo, ele a (d)enuncia no artigo de 1962, “Os níveis da
Análise Linguística”, ao trabalhar com a correlação entre forma e
sentido nos níveis da análise linguística e, assim, demonstrar que,
embora alguns linguistas tentem expurgar o sentido e priorizar a forma,
“essa cabeça de medusa [o sentido] está sempre aí, no centro da língua,
fascinando os que a contemplam” (BENVENISTE, [1962] 1995,
p.135). Isto porque, para Benveniste, esse sentido é o sentido
diferencial, opositivo, distintivo, delimitativo das unidades linguísticas,
que está na base de toda e qualquer análise linguística.
Benveniste ([1962] 1995) é levado, então, a distinguir duas formas
de sentido: um sentido diferencial e distintivo, relativo à língua, e um
sentido referendum, relativo ao discurso. Ao propor essa distinção, esse
autor está colocando em evidência essa contradição constitutiva e
convocando o linguista a questionar a evidência de um sentido sempre
já-lá implicado na constituição do signo linguístico. Além disso,
Benveniste está levando a sério o aspecto relacional da língua e do
discurso. Aspecto esse muito caro a esse autor, uma vez que sua luneta
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teórica, para analisar a língua e, também, a linguagem, é a presença do
homem na linguagem2.
Por conseguinte, embora a demonstração do princípio do arbitrário,
conforme análise de Benveniste em a “Natureza do Signo Linguístico”,
seja falsa, essa falsidade da demonstração não prova que o princípio em
si seja falso. A relação significante e significado, na constituição do
signo linguístico, é arbitrária e, também, é necessária. É arbitrária sob
o ponto de vista da língua e é necessária sob o ponto de vista do
discurso, uma vez que o discurso é produto da enunciação, ato de
conversão da língua em discurso. Mo(vi)mento em que a língua encarna
em linguagem e esse processo de encarne, ou enforme, tem a ver com
o sentido referendum, cuja função é tornar possível o estabelecimento
de certa correferenciação3 entre os (inter)locutores, promovendo, dessa
forma, o acirramento da relação discursiva entre os participantes da
enunciação.
Quando alguém recebe um signo, ele recebe o significado e o
significante juntos. “Juntos foram impressos em meu espírito”, diz
Benveniste ([1939] 1995, p.55). Por isso, para o falante, não há signo
vazio, sem conceito nomeado. O falante recebe o signo via discurso e,
por isso, já enformado de significação, de uma significação relativa ao
semantismo social e ao semantismo subjetivo. Como se trata de uma
significação relativa à instância de discurso que a produziu, esse sentido
referendum não é imanente ao signo e, por isso, pode ser alterado em
outra instância de discurso. Essa implicação entre os planos, semiótico
e semântico da língua, leva Saussure ([1916] 1996, p.90) a afirmar que
“uma língua é radicalmente incapaz de se defender dos fatores que
deslocam, de minuto a minuto, a relação entre o significado e o
significante”.
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3. Exemplificando. A relação constitutiva entre língua e discurso
Segundo Saussure ([1916] 1996, p.142), “num estado de língua,
tudo se baseia em relações”: as relações sintagmáticas e as associativas.
No discurso, diz esse autor, os signos estabelecem entre si relações
baseadas no caráter linear da língua. Assim, as combinações, que se
apoiam na extensão, são, por ele, denominadas sintagmas. Trata-se, em
tais relações, de unidades consecutivas, as quais adquirem seu valor na
oposição em relação ao que a precede e ao que a sucede.
Fora do discurso, os termos que apresentam algo em comum se
associam, na memória, formando grupos. São as relações associativas.
Essas não têm por base a extensão; sua sede é o cérebro. Ambas relações
estão no entremeio da língua e da fala. Portanto, é possível afirmar que
elas se materializam no discurso. O falante faz a associação; a
associação pertence à fala, mas é determinada pela língua. Assim sendo,
as relações associativas são, segundo Saussure ([1916] 1996]), um fator
de deslocamento da relação entre os constituintes sígnicos. Abaixo
apresento algumas frases que servem para exemplificar esse
deslocamento, via relações associativas:
(1)
(a) O gato da minha vizinha é da raça Persa. (= animal de
estimação)4
(b) Mariana está apaixonada por um gato. (= homem bonito; gato
animal)
(c) Cuidado! Há gatos assaltando na praia. (= assaltantes;
bandidos)
(d) Descobriram um gato no prédio. (= animal; ligação
clandestina; ladrão)
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O signo linguístico gato apresenta um significado e um significante,
ambos com sentido diferencial e correlacionados, em relação à língua.
Em relação ao discurso, o sentido referendum apresenta várias
possibilidades já estabilizadas socialmente na Língua Portuguesa, ou
seja, que fazem parte do semantismo social da Língua Portuguesa,
conforme é possível observar a partir do verbete gato, reproduzido
abaixo, do Dicionáro online Priberam5.
ga·to (latim cattus, -i) substantivo masculino
1. [Zoologia] Mamífero digitígrado, da ordem dos carnívoros,
tipo da família dos felídeos, de que há várias espécies, uma das
quais é o gato doméstico.
2. Vergalhão de ferro com espigões (grampo) para manter unidas
as pedras das paredes.
3. Pedacinho de arame com que se conserta louça partida.
4. Peça de ferro em forma de grampo entre a qual e a madeira da
porta joga a tranqueta da aldraba.
5. Utensílio de tanoeiro para arquear as vasilhas.
6. Peça de ferro com que se endireitam as aduelas.
7. [Termo venatório] Ferro com um gancho para caçar.
8. Excesso de carne na parte superior do pescoço das
cavalgaduras. (Também se diz gato carnoso).
9. [Regionalismo] Omissão, lapso, erro, engano.
10. [Portugal: Alentejo] Pele preparada, em forma de odre, para
levar vinho.
11. Pedaço de fazenda que o alfaiate furta ao freguês.
12. [Marinha] Gancho de que se dependura um moutão.
13. [Portugal: Trás-os-Montes] Mentira.
14. [Brasil, Informal] Pessoa fisicamente atraente.
15. [Brasil, Informal] Desvio ou prolongamento ilegal de um
ponto de fornecimento de energia elétrica. (= gambiarra).
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Esse conjunto de acepções não esgotam as possibilidades de
associações. No cotidiano, o locutor faz deslocamentos que
permanecem em estado de latência e/ou possibilidade e que, no entanto,
são passíveis de serem compreendidos pelos (inter) locutores, porque o
signo já é parte da língua. Assim, por exemplo, é possível um falante
dizer para outro: “Nossa! Como você está gatoso hoje.” e essa frase não
constituir um problema de compreensão. O sentido de gatoso (adjetivo
formado a partir do acréscimo do sufixo -oso ao morfema lexical gat-,
cujo sentido é “cheio de gato”), nessa frase, pode, por exemplo, ser
“manhoso”, “bonito”, “elegante”, “atraente” etc. A ancoragem do
sentido dependerá da instância de discurso na qual essa frase aparecer,
assim como das relações que os termos que a constituem podem
assumir. Assim, se a (1d) se relaciona a frase “Alguém ficará sem TV a
cabo.”, delimita-se o sentido referendum a “ligação clandestina”,
descartando-se os sentidos referendum “animal” e “ladrão”.
(2)
ANGELI, 2014. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/cartum/cartunsdiarios/
#29/3/2014> Acesso em 29 março 2014.
Nesse cartum, há um rosto de homem desenhado na prancheta que
se personifica e elucubra sobre seu destino inevitável: ser um desenho
em uma prancheta. Parece haver nesse cartum uma relação metonímica
entre o cartunista e seus desenhos, de modo que ele se torna aquilo que
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desenhou. O homem é na e pela linguagem. De qualquer forma, o que
me interessa é analisar a frase “a maldição da prancheta” – a maldição
pertenceria à prancheta ou a prancheta seria a própria maldição? Essas
indagações só são possíveis tendo sido a língua já enformada de
significação, uma vez que, lançada no discurso, a frase “a maldição da
prancheta” torna-se ambígua por seus elementos deixarem de ter um
valor puramente diferencial e “receberem” o sentido referendum. No
plano semântico, o locutor que a lê apropriasse dela fazendo referência
ao mundo (já significado pela língua) de uma certa maneira. Ao lê-la,
estabeleço uma associação de pertença (a maldição pertence à
prancheta?) e de existência (a prancheta é uma maldição?), o que traz à
tona a ambiguidade. Entretanto, outro locutor-leitor poderia fazer outras
associações, e não ver essa ambiguidade, por exemplo.
Outra coisa é o funcionamento dessa frase no plano semiótico. Para
começar, “a maldição da prancheta”, nesse plano, nem se configura
como frase, uma vez que “com a frase se deixa o domínio da língua
como sistema de signos e se entra num outro universo, o da língua como
instrumento de comunicação, cuja expressão é o discurso”
(BENVENISTE, [1962]1995, p.139). A frase já está para a ordem do
discurso, no plano semântico. No plano semiótico, pois, “a maldição da
prancheta” é apenas uma linha linear de signos, os quais se diferenciam
por seu valor, não pelo referendum.
A esse respeito, Saussure explica que “os significantes acústicos só
dispõem da linha do tempo; seus elementos se apresentam um após o
outro; eles formam uma cadeia” (SAUSSURE, [1916] 1996, p.84). Os
signos se dispõem em uma sucessão linear que obedece simplesmente
ao critério do tempo, não ao da sintaxe, como ocorre no nível da frase.
Os signos acústicos têm que se suceder uns após os outros para não se
interporem, o que geraria complicações simultâneas, como ocorre com
os signos visuais, por exemplo. Portanto, no nível semiótico, os
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elementos “a maldição da prancheta” se diferenciam simplesmente por
um princípio estrutural e não discursivo.
(3)
LAERTE, 2014. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/cartum/cartunsdiarios/
#29/3/2014> Acesso em 29 março 2014.
Nesse cartum, “D. Ruth” toca os personagens envolvidos de maneira
especial, tanto pela aposição “dona”, que, na nossa sociedade,
rememora respeito, quanto pelo nome próprio “Ruth” que designa uma
pessoa reverenciada pelos personagens; ela nem precisaria de ter hora
marcada, o que é inferido a partir do pedido de “Desculpa” do
atendente. Quando ela se apresenta à plateia, seu nome é reverenciado.
Cada um que o repete, o faz de maneira singular. Saussure mesmo
afirma que uma repetição nunca é a mesma. No dizer de Saussure
([1916] 1996, p.125-126),
quando, numa conferência, ouvimos repetir diversas vezes a
palavra Senhores!, temos o sentimento de que se trata, toda vez,
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da mesma expressão, e, no entanto, as variações do volume de
sopro e da entonação a apresentam nas diversas passagens, com
diferenças fônicas assaz apreciáveis – tão apreciáveis quanto as
que servem, aliás, para distinguir palavras diferentes. (…) o
sentimento de identidade persiste, se bem que do ponto de vista
semântico não haja tampouco identidade absoluta entre um
Senhores! e outro, da mesma maneira por que uma palavra pode
exprimir ideias bastante diferentes sem que sua identidade fique
seriamente comprometida (cf. “adotar uma moda” e “adotar uma
criança”, “a flor da macieira” e “a flor da nobreza” etc.)
Constato, pois, a partir da colocação de Saussure supracitada, que a
cada enunciação de “D. Ruth” há um sentido referendum diferente, já
que do ponto de vista semântico não há identidade absoluta entre as
ocorrências de “D. Ruth”. Entretanto, no plano semiótico, “no lugar de
ideias dadas de antemão”, há “valores que emanam do sistema”
(SAUSSURE, [1916]1996, p.136).
Não poderia haver um sentido referendum diferente a cada repetição
de “D. Ruth”, se o sistema tivesse ideias dadas a priori. Ora, as ideias,
ou o sentido referendum, está para o plano semântico porque são
consequência da atividade social entre os homens. No sistema, não há
ideias, há apenas valores. Se existissem ideias, não seria possível que
cada enunciação de “D. Ruth” fosse diferente: sendo elas dadas a priori,
cada “D. Ruth” teria um e apenas um referendum. Com isso, a
linguagem seria transparente e o sentido seria unívoco. Como a
linguagem é opaca e o sentido é equívoco porque é relacional, é possível
que cada “D. Ruth” seja único e irrepetível. Portanto, o fato de a língua
possuir valores puramente diferenciais reflete no fato de a linguagem
poder veicular ideias, volições, sentimentos etc., sempre diferentes a
cada momento em que são enunciados.
124
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Cármen Agustini
Consequentemente, a repetição de “D. Ruth! D. Ruth! D. Ruth!”, no
plano semiótico, apenas leva em consideração a linearidade estrutural
dos signos, que adquirem um valor por simplesmente um ser o que os
outros não são. Já no plano semântico, nessa repetição, estão imbricadas
questões para além de sociais, subjetivas.
(4)
“Neymar e Daniel Alves são alvos de racismo em clássico na
Catalunha”
(Manchete.
Disponível
em:
<http://www.folha.uol.com.br/> Acesso em 29 mar 2014)
Nessa manchete, há uma denúncia: a de racismo contra duas
personalidades importantes do futebol. É por meio do plano semântico
da língua que é possível atribuir um sentido referendum a “Neymar”,
“Daniel Alves” e a “clássico”, por exemplo.
“Clássico” pode ter muitos sentidos diferentes, mas a frase da
manchete poderia delimitá-la para o de “partida de futebol muito
importante”. Com relação a “Neymar” e “Daniel Alves” seria cômico
se a língua já tivesse um referendum preestabelecido para eles: todos os
Neymares do mundo seriam jogadores de futebol, teriam a pele morena
e o cabelo meio aloirado e espetado para cima. Ora, o processo de
substancialização da língua não implica algo tão absurdo.
Substancializando-se, a língua se refere a algo no mundo. Sendo
equívoca, esse algo pode ser significado de modos bem diferentes e
irrestritos. A equivocidade e a opacidade são condições fundamentais
para o funcionamento da língua; não são, portanto, meros pressupostos
de teorias discursivas particulares. Sem isso, a ordem da língua (e do
mundo) seria um absurdo.
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O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE
Portanto, no nível semiótico, “Neymar” se contrapõe a “Daniel
Alves” apenas a fim de se positivar pela negação: “Neymar” se negando
a “Daniel Alves” se torna um um, um signo, e vice-versa. No sistema,
não faz diferença se “Neymar” é uma pessoa desta ou daquela maneira.
A esse respeito, Benveniste ([1963] 1995, p.31) afirma que “não há
relação natural, imediata e direta entre o homem e o mundo, nem entre
o homem e o homem. É preciso haver um intermediário, esse aparato
simbólico, que tornou possíveis o pensamento e a linguagem”. A língua
é o intermediário entre o homem e o mundo e os homens entre si. É
sabível que, na mediação, há aquilo que falta ou aquilo que excede, o
que torna impossível uma transmissibilidade completa e fechada.
Considerações finais
Do exposto, é possível concluir que o sentido referendum se “cola”,
em certo sentido, ao significado (conceito), espaço topológico
diferencial da língua, enquanto constituinte do discurso, de modo a
produzir uma implicação entre o plano da língua, o semiótico, e o plano
do discurso, o semântico. Essa implicação reflete nas definições de
língua presentes no CLG, o que possibilita a emergência de explicações
da constituição do signo linguístico que imiscue os planos, de modo a
atribuir ao significado um sentido positivado. Esse tipo de explicação
está presente no próprio CLG, conforme citação abaixo.
O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um
conceito e uma imagem acústica. Esta não é o som material, coisa
puramente física, mas a impressão psíquica desse som, a
representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos;
tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-la “material”, é
somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da
126
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Cármen Agustini
associação, o conceito, geralmente mais abstrato (SAUSSURE,
[1916] 1996, p.80).
Assumir que o signo linguístico é uma entidade psíquica exige levar
em conta que se trata de uma impressão capaz de firmar valor
linguístico no sistema, tendo em vista as possibilidades previstas pelo
próprio sistema. Por isso, Saussure ([1916] 1996) considerou que as
partes constituintes do signo linguístico são, respectivamente, um
conceito e uma imagem acústica e não uma coisa e uma palavra. Essa
impressão consolida-se no cérebro a partir de uma associação feita pelo
locutor e é parte do próprio funcionamento do sistema.
Nesse sentido, conforme posto em Agustini e Leite (2012, p.117),
o valor linguístico que essa impressão pode firmar teria a ver
exatamente com a consequência imediata que procede do
sistema. Na base dessa associação, está funcionando o princípio
da arbitrariedade do signo linguístico. Isso porque, para
Saussure ([1916] 1996), não há uma relação de motivação entre
conceito e imagem acústica, quando da constituição do signo
linguístico em dado sistema. Como vimos considerando aqui,
trata-se de uma relação gerida pelo próprio sistema, sendo
desconhecida uma causa externa a ele; além disso, do ponto de
vista da contingência, a associação entre conceito e imagem
acústica assume um formato específico, restando, como contra
face, a própria possibilidade de assunção de outro formato para
tal associação. Entretanto, uma vez constituído no sistema, o
formato específico passa a ser da ordem do necessário.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
127
O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE
Intentamos, até aqui, demonstrar que a articulação constitutiva entre
língua e discurso é a responsável por certa confusão na explicação da
constituição do signo linguístico, uma vez que a conceituação do
significado/conceito precisa ser melhor problematizada, a fim de fazer
trabalhar a sua constituição paradoxal, que implica um sentido
diferencial e um sentido referendum, conforme tentei explanar.
A unidade linguística, o signo linguístico, é uma entidade concreta,
haja vista que não é possível valer-se dela a bel-prazer. A unidade
linguística impõe-se ao locutor. O mesmo ocorre com o significado e o
significante que é recebido por herança de outros locutores. Assim, os
locutores falam, em Língua Portuguesa, “casa”, por exemplo, porque
outros, antes e alhures, já falaram “casa”. Embora seja verdade o fato
de que o homem não é senhor da língua, o sistema linguístico lhe
confere uma certa “liberdade” nas relações associativas e na contraparte
subjetiva do sentido referendum. Essa “liberdade”, no entanto, é
delimitada pela língua e pelo semantismo social; em última instância, é
a ordem própria da língua e o semantismo social que põem cabresto no
locutor.
Essa “liberdade” permite ao locutor produzir outros sentidos
referendum para um signo linguístico já constituído, mas não lhe
permite mudar a constituição sígnica. “Uma sequência de sons só é
linguística quando é suporte de uma ideia. […] na língua, um conceito
é uma qualidade da substância fônica, assim como uma sonoridade
determinada é uma qualidade do conceito” (SAUSSURE, [1916] 1996,
p.119).
Nessa citação de Saussure reside uma outra contradição se não for
considerado que o signo é uma impressão psíquica e que a língua é uma
forma e não uma substância. É possível compreender a conversão da
língua em discurso como um processo de substancialização da língua.
Se assim for, o significado/conceito é uma qualidade da substância
fônica e, por isso, somente tem existência a partir do discurso. Parece
128
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Cármen Agustini
circular, mas esse processo de substancialização retoma o axioma: não
há língua sem discurso e não há discurso sem língua. Sem língua não
há nem a possibilidade de existência da sociedade. Portanto, o
significado/conceito é o termo do signo habilitado pela linguagem a
significar, que, nesse processo, é enformado de significação, passando,
por isso, a ter, embora provisoriamente, um sentido referendum. Por
isso, Benveniste afirma que a referência é da ordem do discurso, do
plano semântico; é na e pela enunciação que as instâncias do discurso
são construídas e (re)atualizadas à injunção do semantismo social
(sentidos possíveis e estabilizados que são (re)produzidos no e pelo
discurso), responsável pela possibilidade de se estabelecer ou não uma
certa correferenciação entre os (inter)locutores.
Portanto, para que as formas sejam “plenas 6” é preciso mudar de
domínio; é preciso que a língua (enquanto possibilidade de língua)
esteja em discurso, porque é no discurso que o sentido referendum se
produz, ou seja, é no discurso e por ele que o locutor representa a
realidade imaginária7, a sua realidade. Assim sendo, no plano
semiótico, a língua é forma e, no plano semântico, o discurso é
substância. A conversão da língua em discurso é coextensiva ao
processo de substancialização da língua. A língua não acontece sem o
discurso. Eles formam uma “dupla instância conjugada”. Aí reside o
paradoxo constitutivo e o ponto de muitas problematizações possíveis.
Notas
1
Benveniste teoriza a existência, na linguagem verbal, de dois planos implicados entre
si, ou seja, que funcionam concomitantemente e que são, por isso, inalienáveis. O
plano semiótico é o plano da língua enquanto sistema de signos linguísticos e o plano
semântico é o plano da língua convertida em discurso e, por isso, semantizada.
2
Benveniste, em sua arte de questionar as evidências, inverte a comumente questão
da presença da linguagem na vida do homem, de modo que o homem é quem está na
linguagem, porque é a linguagem que o constitui, que o alça ao estádio hominal. Por
isso, “não atingimos jamais o homem separado da linguagem e não o vemos nunca
inventando-a” (BENVENISTE, [1958] 1995, p.285).
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129
O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE
3
A correferenciação não é completa; há uma hiância constitutiva que é dada pelo
aspecto subjetivo da linguagem.
4
Os enunciados de 1(a) a 1(d) são enunciados forjados pela autora deste artigo, como
parte da explicação em tela.
5
“Gato” In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013,
http://www.priberam.pt/dlpo/gato, consultado em 28-03-2014.
6
“Plenas” aqui está sendo compreendido como forma enformada de significação no
e pelo discurso.
7
A expressão “realidade imaginária” é de Benveniste ([1963] 1995, p.27) e é relativa
à realidade construída na e pela linguagem em oposição ao real, intangível.
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, G. (2005). Infância e história: destruição da experiência e
origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 188p.
AGUSTINI, C. L. H.; LEITE, J. de D. (2012). “Benveniste e a teoria
saussuriana do signo linguístico: o binômio contingêncianecessidade”. In: Revista Línguas e Instrumentos Linguísticos, v. 30,
pp.
113-129.
Disponível
em:
<http://www.revistalinguas.com/edicao30/artigo7.pdf>. Acesso
em: 01 mar. 2014.
BENVENISTE, É. (1963). “Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da
linguística”. In: BENVENISTE, É. Problemas de Linguística Geral
I. Campinas, SP: Pontes, 2005 [1963], pp. 19-33.
_____. (1962). “Os níveis da análise linguística”. In: _____. Problemas de
Linguística Geral I. Campinas, SP: Pontes, 1995, pp. 127-140.
_____. (1958). “Da subjetividade na linguagem”. In: _____. Problemas de
Linguística Geral I. Campinas, SP: Pontes, 1995, pp. 284-293.
_____. (1939). Natureza do signo linguístico. In: _____. Problemas de
Linguística Geral I. Campinas, SP: Pontes, 1995, pp. 53-59.
MACEDO, W. (2012). O livro da semântica: estudo dos signos
linguísticos. Rio de Janeiro: Lexikon, 159p.
SAUSSURE, F. (1916). Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix,
1996.
130
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
DOSSIÊ
PERCURSOS DA METÁFORA
Recebi, há algum tempo, da Comissão Editorial da Revista Línguas
e Instrumentos Linguísticos, um convite que muito me honrou:
organizar uma nova seção da Revista, uma seção temática que teria
como primeiro assunto a metáfora. Assim, os textos que seguem são de
autores que assumiram comigo esta grande responsabilidade.
Assumiram também, cada um de seu lugar específico, a tarefa de pensar
sobre as questões que envolvem o funcionamento da metáfora em
outras áreas do saber, que não só (mas também) as Ciências da
Linguagem. Contribuíram com suas reflexões um historiador – André
Joanilho; um filósofo – Hélio Rebello Cardoso Jr.; uma psicóloga –
Renata P. Domingues; um psicanalista – Maurício Maliska; e, duas
linguistas – Andréia da Silva Daltoé e Mariângela P. G. Joanilho.
Tivemos também como contribuição para a Seção Resenha da Revista
o texto de Anderson Braga do Carmo sobre um livro do filósofo francês
Paul Virillo, que em suas reflexões, parte de uma metáfora
fundamental; segundo ele, o homem habita o tempo e não o espaço.
Esperamos com isso poder contribuir com os estudos sobre esta sedução
da linguagem, que é a metáfora. Para apresentá-los, deixarei que falem
os autores nos resumos de seus textos, a partir de agora:
Em “O direito de ser esquecido, o direito de ser lembrado: memória,
esquecimento e o funcionamento da metáfora”, Andréia da Silva Daltoé
investiga como se dá o funcionamento da metáfora no interior da
relação entre o chamado direito ao esquecimento e os trabalhos da
Comissão Nacional da Verdade (CNV), a fim de observar de que modo
este deslizamento faz trabalhar as noções de memória e esquecimento.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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PERCURSOS DA METÁFORA
Maurício Maliska, em seu “Da condensação freudiana ao
forçage/chiffonage lacaniano: o transbordamento da metáfora na teoria
psicanalítica” busca explorar um percurso da metáfora na psicanálise,
tocando nos seus limites e transbordamentos no ensino de Lacan,
intentando mostrar os limites da metáfora dentro da psicanálise, uma
vez que o psicanalista não busca construir metáforas, nem mesmo
sentidos para o sujeito, mas desconstruí-los, com o objetivo de esvaziar
o excesso de significação que há tanto nos sonhos como no sintoma,
para que o sujeito passe a não mais sofrer com esse excesso de sentido.
Já em “Intoxicação pela Metáfora segundo Gilles Deleuze e Félix
Guattari: os desenhos do pequeno Richard (1941)”, Hélio Rebello
Cardoso Jr. e Renata P. Domingues partem da seguinte questão: quando
um menino de dez anos, que vive em uma cidade sob risco de ser
bombardeada pelo inimigo, desenha um navio de guerra para sua
psicoterapeuta, o que quer ele dizer? Começam com essa questão
simples para dar ensejo à revisão crítica que fazem Deleuze e Guattari
a respeito da utilização de imagens nos escritos e nos desenhos
reproduzidos em Narrativa de uma Análise de Criança de Melaine
Klein, a partir do quê destacam o papel da metáfora para a produção da
alegada intoxicação psicanalítica.
André Luiz Joanilho, em seu “O historiador e a metáfora” trata a
escrita da história como metáfora do passado não reconhecida pelos
historiadores que, ao contrário, buscam o literal nas suas narrativas
formadas por documentos que poderiam ser compreendidos também
como metáforas, mas que são abordados como emulação do real. Do
documento ao texto, a metáfora é esconjurada como ruído não real. No
entanto, conforme o autor, a escrita não é feita de verdades e
literalidade, mas de imaginação e de fatos da linguagem, estando na
origem dos eventos a dispersão e a descontinuidade.
Finalmente, em “Das relações de sentido na linguagem ou sobre
como a metáfora produz o acontecimento” ocupo-me da descrição da
132
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Mariângela P. G. Joanilho
metáfora na Semântica do Acontecimento em sua relação com a Análise
de Discurso de filiação francesa. Escolhi, como pesquisadora em
Ciências da Linguagem, dedicar-me de modo direto à tarefa de estudar
a instanciação do sentido metafórico. Neste estudo, como parte de meu
percurso anterior, procurei discutir o fenômeno da constituição do
sentido metafórico e sua relação com a memória nas discussões que
envolvem a formulação do conceito de língua nacional e,
consequentemente, na configuração do processo identitário. Veremos
que a metáfora é uma memória que se apresenta em diversos textos. E,
como memória, “lembra e esquece e abre caminho para a mudança”,
como define tão finamente Eduardo Guimarães.
Mais uma vez, quero dizer que esperamos contribuir com as
discussões acerca da metáfora, mostrando, mesmo que parcialmente,
que este fato de linguagem movimenta os sentidos e promove
infindáveis deslocamentos para as questões teórico-epistemológicas nas
Ciências da Linguagem e nas Humanidades.
Mariângela P. G. Joanilho
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O DIREITO DE SER ESQUECIDO,
O DIREITO DE SER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O
FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
Andréia da Silva Daltoé
UNISUL
Resumo: Este artigo investiga o funcionamento da metáfora no interior
da relação entre o chamado direito ao esquecimento e os trabalhos da
Comissão Nacional da Verdade (CNV), tomados aqui em seus efeitos
metafóricos como ‘direito de ser esquecido’ e ‘direito de ser lembrado’,
respectivamente. Tendo como base a Análise do Discurso, busca
observar de que modo este deslizamento faz trabalhar as noções de
‘memória’ e ‘esquecimento’.
Abstract: This paper investigates the functioning of metaphor within
the relation between the so-called right to be forgotten and the work of
the National Truth Commission (CNV), taken here in their
metaphorical effects as ‘right to be forgotten’ and ‘right to be
remembered’, respectively. Based on Discourse Analysis, it aims to
observe how this gliding movement puts the notions of 'memory' and
'forgetfulness' to work.
Questões introdutórias
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade. (...).
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
135
O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra. (...)
Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
(Carlos Drummond de Andrade)
Em junho de 2014, o Google comunicou, em São Francisco/CA, que
passaria a aplicar o direito ao esquecimento determinado pela Corte de
Justiça Europeia, a qual, em maio do mesmo ano, já havia exigido que
os sites de buscas da internet possibilitassem a eliminação de
referências desatualizadas ou fatos passados que, retomados no
presente, pudessem ferir a integridade da pessoa humana e/ou sua
privacidade. Depois da decisão, o Google disponibilizou um formulário
online para os usuários que pretendessem a eliminação de suas
informações pessoais da rede. Quatro semanas depois, a empresa havia
recebido 41 mil pedidos.
No Brasil, o debate ganhou calor com a VI Jornada de Direito Civil,
organizada pelo Conselho de Justiça Federal em Brasília, março de
2014, quando juristas de todo o país e do exterior aprovaram o
Enunciado 531, de força doutrinária, que prevê o direito ao
esquecimento, direito este não apenas restrito ao espaço da internet, mas
também estendido a qualquer outro meio de comunicação.
A discussão não é nova, mas tem tomado fôlego diante da
necessidade de abrigo legal para as questões de internet e o modo como
a disseminação de informações ganha o mundo em segundos, o que
também reascende a polêmica entre os direitos individuais e o direito
coletivo de acesso às informações.
Sem entrar nesta contenda, objetivamos relacionar, na presente
pesquisa, este direito ao esquecimento e os trabalhos que estão sendo
desenvolvidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), a fim de
investigar como estas duas instâncias fazem trabalhar a memória, o
sujeito, a história e o próprio esquecimento, a partir do movimento que
preveem, neste deslizamento, entre um dizer e um não dizer, entre um
não dizer e um dizer. Num efeito metafórico, designaremos o primeiro
como o direito de ser esquecido e o segundo como o direito de ser
136
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Andréia da Silva Daltoé
lembrado, entendendo que não estamos colocando as duas questões
como se fossem da mesma natureza jurídica, muito menos em relação
de oposição, em que uma seria o contrário da outra no par
esquecer/lembrar.
Ambas as metáforas serão problematizadas a partir de nossa
inscrição na Análise do Discurso (AD) de linha francesa, campo teórico
que nos orienta como pesquisadora e cuja área nos permite pensar a
língua e o sujeito em sua relação com o político nas condições materiais
em que se inscrevem. Neste caso, são condições que passam por
políticas de memória, aqui compreendidas como toda determinação que
atinge o dizer a partir das formas de individualização do sujeito pelo
Estado.
Com a ajuda da noção de metáfora numa abordagem discursiva,
queremos pensar este processo na relação de nunca acabar entre
memória e esquecimento, movimento este visceral em AD para
compreendermos os processos discursivos em suas diferentes
materialidades. No caso desta pesquisa, as materialidades serão
tomadas como Sequências Discursivas de Referência (SDr)
(COURTINE, 2009), constituídas por recortes de leis, recurso jurídico,
depoimentos de alguns dos já ouvidos pela CNV e falas de ex-presos
políticos em reportagens a respeito dos temas, estes dois últimos
transcritos de vídeos disponibilizados na rede.
Neste percurso, trataremos:
Do direito de ser esquecido: metáfora que se dá a partir do direito
ao esquecimento, que, entre outras formas de a justiça brasileira regular
o uso da rede, prevê, conforme o Enunciado 531, que “A tutela da
dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o
direito ao esquecimento”1, com base no Art. 11 do Código Civil, trazido
aqui como uma SDr:
SDr 1: Os danos provocados pelas novas tecnologias de
informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao
esquecimento tem sua origem histórica no campo das
condenações criminais. Surge como parcela importante do
direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o
direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas
apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com
que são lembrados. (RECURSO ESPECIAL Nº 1.335.153 - RJ
(2011/0057428-0))2.
Do direito de ser lembrado: metáfora que se dá a partir dos trabalhos
da CNV, Comissão esta criada em 18 de novembro de 2011, de acordo
com a Lei nº 12528, e instituída em 16/05/20123 pela Presidenta Dilma
Rouseff, com o propósito de apurar violações aos direitos humanos
ocorridas no período de 1946 e 1988, que inclui a ditadura (19641985)4, buscando, conforme Art. 1º, “efetivar o direito à memória e à
verdade histórica e promover a reconciliação nacional. Dentre seus
objetivos previstos no Art. 3º da presente Lei, destacamos:
SDr 2: II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos
de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de
cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior; (...).
SDr 3: IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e
qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e
identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos
políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro
de 1995; (...).
SDr 4: VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas
para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não
repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e
SDr 5: VII - promover, com base nos informes obtidos, a
reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos
humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência
às vítimas de tais violações.
Nos deslocamentos necessários, importante dizer que, no primeiro
caso, não estamos diante de uma lei, mas de um recurso legal, de caráter
doutrinário, cuja aplicação se dará pela interpretação do operador do
direito.
138
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Andréia da Silva Daltoé
De outra natureza, a CNV não tem poderes punitivos nem
indenizatórios, mas desempenha um importante papel de reafirmação
democrática do País ao procurar voltar aos fatos deste passado e
construir, a partir de uma outra narrativa, a história que vitimizou
famílias tragicamente afetadas por um regime em que os militares,
conforme Indursky (2013), “sob o pretexto de salvarem a pátria da
corrupção, da desordem e do comunismo, empolgaram o poder, nele
perpetuando-se por 21 anos, impondo suas posições e calando vozes
discordantes” (2013, p.323).
Resguardadas as devidas diferenças, a relação que estabelecemos
entre ambos os direitos (não no sentido jurídico do termo) se justifica
pelo modo como, em ambos, podemos investigar processos de
individualização pelo Estado, e também pelo modo como cada um, à
sua maneira, mobiliza um trabalho sobre memória e esquecimento que
muito interessa à AD.
Nosso interesse é, então, relacionar estes dois direitos para
problematizá-los em relação ao modo como são afetados pelas ilusões
que nos constituem: ilusão do sujeito como origem e do sentido como
colado à língua. De qualquer modo, vale ressaltar que esta aproximação
já ocupa outros lugares de debate na mídia, por exemplo, em relação ao
temor de que o direito ao esquecimento seja usado pelos torturadores
da ditadura militar no Brasil a partir dos desdobramentos dos relatórios
da CNV, como apresenta o sujeito enunciador a seguir, que é ex-preso
político, torturado pela ditadura, hoje presidente da Comissão da
Verdade Rubens Paiva de SP:
SDr 6: O que tão querendo é usar um direito ao esquecimento
para ter impunidade, nem se fala sobre o crime cometido, mas
essa gente não foi processada, não foi condenada, não pagou a
pena. Querem ser esquecidos antecipadamente? (Ivan Seixas) 5.
Filiado a uma outra Formação Discursiva (FD), que não a jurídica,
o sujeito enunciador desta SDr representa os defensores dos direitos
humanos que entendem o direito ao esquecimento como um
contraponto ao direito de memória, direito este preconizado pela
própria Lei que institui a CNV. Não entraremos neste debate de
aplicação jurídica, mas, sem dúvida, esta discussão vem reforçar a
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
relação tensa entre o que estamos tratando aqui como direito de ser
esquecido e direito de ser lembrado.
1. O deslizamento dos sentidos entre um dizer e não dizer
Desde a tese (2011)6, quando analisamos as Metáforas de Lula,
temos nos debruçado sobre a noção da metáfora e seu trabalho de
deslizamento de sentidos do ponto de vista discursivo. Daí o interesse
em trazer esta questão a partir do conceito que formulamos na pesquisa
de doutorado para, agora, pensar o direito de ser esquecido e o direito
de ser lembrado.
Considerando que ambas as propostas colocam em relação um dizer
e um não dizer, conforme as SDrs de 1 a 5, observamos o modo como
o texto da lei é afetado por um imaginário que concebe o poder de as
palavras preencherem o espaço do vazio, ao passo que sua ausência
representaria um lugar em branco.
Neste efeito de sentido, em que a palavra pode ser retirada de cenário
para dar lugar ao vazio, a crença à letra da lei se reafirma na SDr 1,
considerando-se possível voltar à história de um indivíduo e reescrevêla, determinando não só o uso que é dado aos fatos pretéritos, mas
também o modo e a finalidade com que são lembrados. Este desejo, em
alguns momentos, se mistura aos domínios semânticos da internet, aos
modos de uma vontade realizada pelo simples toque de um botão, como
aponta a SDr 7, retirada do Recurso relatado pelo Ministro Luiz Felipe
Salomão7:
SDr 7: (...) em recente palestra proferida na Universidade de
Nova York, o alto executivo da Google Eric Schmidt, afirmou
que a internet precisa de um botão de delete. (Recurso Especial
nº 1.335.153-RJ (2011/0057428-0)).
Nesta SDr, vemos, no desejo pela tecla delete, o sentido do jurídico
se misturando aos da internet em nome da mesma vontade ou ilusão de,
com facilidade de um toque, apagar registros da rede.
A proposta da CNV também é atravessada por este imaginário em
relação à palavra que viria agora, a partir das audições dos envolvidos
na ditadura, preencher um vazio; o desejo de que a palavra viria
reconstruir a história (SDr 5) deste período no Brasil, preenchendo a
lacuna deixada pelos dizeres, à época, interditados. Trabalham estes
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Andréia da Silva Daltoé
sentidos os desejos de, conforme nossas materialidades, esclarecimento
dos casos (SDr 2), localização e identificação dos corpos (SDr 3),
reconstruir a história (SDr 5), não repeti-la e se reconciliar com ela
(SDr 4).
Pensando estes efeitos de sentido, que trabalham afetados por um
imaginário de que a palavra preencheria o lugar do vazio e de que,
inversamente, sua ausência seria um não sentido, neste primeiro
momento, poderíamos ler este deslizamento do seguinte modo:
a)
em relação ao direito de ser esquecido:
do pleno/saturado  para o silêncio/interditado
b)
em relação ao direito de ser lembrado:
do silêncio/interditado  para o pleno/saturado
Ou seja, no primeiro caso, parte-se do pressuposto de que o
sentido das palavras já divulgadas na rede em um determinado
momento do passado migrariam para o espaço do vazio, para que as
informações prejudiciais à dignidade da pessoa humana ou à sua
privacidade fossem deletadas dos arquivos da máquina e, assim,
apagadas da memória dos demais usuários. Já, no segundo caso, os
dizeres que sofreram a interdição da ditadura, que foram silenciados
naquele momento, seja pela tortura, pela ameaça, pela força dos atos
institucionais, migrariam, agora, para o espaço do poder dizer,
promovendo o preenchimento necessário das lacunas do passado.
A partir de tais efeitos, a metáfora trabalharia numa relação entre
elementos de oposição comutáveis, intercambiáveis, cujos sentidos
operariam na relação interditado/saturado. Todavia, este entendimento
situa a metáfora no terreno do senso comum: figura de linguagem que
estabelece relações de similitude entre palavras (mesmo que neste caso
sejam de oposição), pela ideia paralela entre os termos. Funciona aí,
portanto, a ilusão de que a presença de palavras trabalha o pleno e sua
ausência, o vazio.
Pêcheux e Fuchs (1997 [1975]), relendo os trabalhos da AAD 69 e
refletindo se as substituições mudam ou não os sentidos, admitiram que,
no início, “estas substituições eram necessariamente índices de
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
equivalência, em outros termos, que as n seqüências de um domínio
constituem n formas semânticas equivalentes de uma mesma
proposição, no sentido lógico do termo” (1997, p.211).
Pensada nesta dualidade, o funcionamento da metáfora não faz
intervir as condições históricas, sociais e ideológicas de um e outro
momento do deslizamento e assim também não considera o modo como
a memória que os atravessa vai além de um caráter temporal.
Courtine (2009) levanta um problema central para esta questão: “o
da definição de critérios permitindo determinar as ‘orientações’ entre
comutáveis (2009, p.191). Conforme o autor, esta concepção inicial de
paráfrase desenvolvida por Pêcheux pressupunha uma noção de
identidade semântica entre as formulações, e a trazemos aqui porque,
neste momento, as substituições simétricas funcionavam, segundo
Pêcheux e Fuchs (1997), no nível da metáfora, designada como uma
metáfora adequada (um termo por outro). Ou seja, a metáfora era
pensada como uma substituição simétrica, atuando num trabalho de
equivalência a partir da seguinte definição: “A é contextualmente
sinônimo de B, ou então, é uma sua metáfora adequada (e
reciprocamente para B em relação a A)” (1997, p.212). Neste caso, a
metáfora adequada da AAD 69 seria o resultado de uma comparação
“perfeita” de elementos com características em comum.
Nesta revisita, Pêcheux e Fuchs (1997) apresentam duas
contribuições importantes: a primeira, em observar que a definição dos
pontos de comparação como algo natural é, antes, bastante arbitrária; e
a segunda se coloca, particularmente, em saber “se a identidade ou a
não-identidade entre dois “conteúdos” deve revestir-se da mesma
significação, quaisquer que sejam estes conteúdos” (1997, p.216). Ou
seja, Pêcheux e Fuchs reconhecem que a questão é mais complexa,
considerando que os fenômenos semânticos de substituição “não se
reduzem, de qualquer maneira, a uma ‘identidade da interpretação
semântica’” (1997, p.218).
Estas questões nos ajudam a pensar que o deslizamento dos pares
saturado/interditado e interditado/saturado trabalham uma noção de
metáfora reduzida a fenômenos semânticos equivalentes, a partir do
jogo opositivo esquecer/lembrar como elementos comutáveis. Todavia,
no funcionamento do discurso, esta possibilidade do dizer saturado (a
não ser enquanto ilusão) e a garantia de que o silêncio é ausência de
sentido precisa ser problematizada. Em AD, nem tudo pode ser dito,
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Andréia da Silva Daltoé
assim também o silêncio não significa a ausência de sentido. Conforme
Orlandi (2007), o silêncio:
(...) não é o nada, não é o vazio sem história. É o silêncio
significante. (...) possibilidade para o sujeito de trabalhar sua
contradição constitutiva, a que o situa na relação do ‘um’ com o
‘múltiplo’, a que aceita a reduplicação e o deslocamento que nos
deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso
que lhe dá realidade significativa. (2007, p.23-24).
Sendo assim, consideramos que os pares esquecer/lembrar,
vazio/palavra, silêncio/palavra, dizer/não dizer, saturado/interditado,
do ponto de vista discursivo, não são termos que se opõem, um não é o
sentido contrário do outro, o que reafirma que os sentidos da metáfora
não se justificam no que cada palavra, a priori, à luz de uma semântica
geral, significa. Por isso, julgamos que é preciso fazer intervir os
pressupostos da AD para explicar porque, para nós, é impossível pensar
que os sentidos trabalham em determinados lugares e não em outros
pela força de políticas de memórias ou mesmo pela vontade soberana
do sujeito.
Para dizer o que, então, observamos no funcionamento da metáfora
a partir de nosso corpus, trazemos antes algumas questões sobre sujeito,
memória e esquecimento.
2. O sujeito de direito(s)
Falar em sujeito na AD é retirá-lo do seu espaço de dono do dizer,
de origem em si, de autonomia diante da língua e do real. É, conforme
Pêcheux (2011, p.156), deixá-lo de pensar como eu-consciência mestre
do sentido para reconhecê-lo como assujeitado ao discurso. A formasujeito pela qual o sujeito se identifica com a FD vai, porém, segundo
Pêcheux (1988), mascarar este assujeitamento, esta determinação, ao
absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso, organizando, desse
modo, “a unidade (imaginária) do sujeito, sua identidade presentepassada-futura” (1988, p.167). Se o sujeito aparece como senhor de seu
discurso é somente enquanto unidade imaginária, o que o autor vai
chamar de efeito ideológico elementar (1988, p.153), expressão trazida
de Althusser para tratar a própria condição de ser sujeito no mundo.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
Esta ilusão do sujeito como origem está ao lado de uma outra: a
ilusão do sentido como reflexo do real. Estas duas questões são tratadas
pelo autor como esquecimento nº 1 e nº 2: o primeiro, da ordem do
inconsciente e afetado pelo ideológico, nos dá a ilusão de estarmos na
origem do dizer. Trata-se do apagamento produzido pela ideologia, que,
ao mesmo tempo em que nos toma, nos esconde sua “captura”; e o
segundo, da ordem da língua, conforme Pêcheux (1988), representa o
processo segundo o qual “todo sujeito-falante ‘seleciona’ no interior da
formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados,
formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase”
(1988, p.173).
Estes dois esquecimentos nos constituem sem que tenhamos pleno
acesso sobre seu funcionamento. É assim que julgamos que somos a
origem do que dizemos (esq. nº 1), esquecendo-nos de que retomamos
o tempo todo sentidos já-lá, bem como julgamos que nossa fala
estabelece relação direta com nossos pensamentos (esq. nº 2).
Com isso, vimos que o acobertamento da causa do sujeito no próprio
interior de seu efeito, tratados pela noção de esquecimento, não tem a
ver com uma falta de memória, com o esquecido, mas sim com sua
constituição enquanto sujeito do/no discurso, causando-lhe a ilusão do
eu sei o que estou dizendo, eu sei do que estou falando (PÊCHEUX,
1988, p.174).
Desse modo, a forma-sujeito de cada FD é, portanto, um efeito e não
a origem e, neste trabalho, interessa-nos pensar sobre o modo como nos
identificamos à forma-sujeito histórica do capitalismo, compreendonos como livres e responsáveis, de direitos e deveres: um sujeito-dedireito conforme Haroche (1992, p.30). É desse modo que somos
individualizados pelo Estado, que, para “garantir” nossos direitos,
antes, conforme a autora, nos faz uniformes, regulares, determinados,
previsíveis e mensuráveis (1992, p.30). É assim que as práticas jurídicas
contribuem silenciosamente com as práticas de individualização do
Estado (ORLANDI, 2005) 8, ao mesmo tempo em que mascaram ao
sujeito os efeitos do jurídico na sua subjetividade, em outras palavras,
simulando ao sujeito que ele não é controlável. Esta determinação,
segundo Orlandi (2005), nos leva a tratar de maneira complexa a
questão do sujeito, da ideologia e da resistência “como algo que não se
dá apenas pela disposição privilegiada de um sujeito que então poderia
ser livre e só não o é por falta de vontade” (2005, p. 4,5).
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Andréia da Silva Daltoé
Guardadas as diferenças, é preciso problematizar o modo como as
políticas de memória, que atravessam ambos os direitos tratados aqui,
trabalham este sujeito responsável e esta memória como um arquivo de
lembranças a ser acessado, pois, conforme Pêcheux (2006), não há
identificação plenamente bem sucedida, o que o leva a dizer que todo
ritual está sujeito à falha, à incompletude, aos apagamentos, à
contradição. Olhar para isso é poder encontrar vestígios do
funcionamento da ideologia no sentido.
Pensando a questão do sujeito em AD, vimos que o esquecimento
do direito ao esquecimento não é da mesma natureza que os
esquecimentos 1 e 2, no sentido de que, neste caso, não seria possível
controlar plenamente aquilo de que se pode lembrar, aquilo de que se
pode esquecer. Aliás, é preciso justamente esquecer para que os
sentidos sejam lembrados e retomados como nossos, intervindo a partir
de um já-lá do interdiscurso. Enfim, esquecer para lembrar, o que aqui
não representa uma relação opositiva, binária, em que as palavras se
equivaleriam. Desse modo, só podemos falar em alguma relação, mas
de funcionamento bem distinto, do seguinte modo: o direito de ser
esquecido é compreendido como uma garantia ao sujeito justamente
porque este, desconhecendo o funcionamento de sua dupla
determinação (esquecimentos 1 e 2), crê-se protegido pelo Estado, que,
ao lhe garantir o direito à privacidade, apaga as contradições do social
e do jurídico, fazendo crer que, pelo toque de um delete, sejam apagadas
suas informações, e não só: que este apagamento deixe de produzir
sentido.
Trabalha aí uma vontade onipotente do sujeito de direito em, a partir
da retirada de seus dados da internet ou de outras formas de mídia,
controlar a memória da sua vida e a memória dos outros sobre sua vida.
Esta “garantia” apaga ao sujeito as contradições de que é causa e
este apagamento não deixa de produzir sentidos, o que nos ajuda a
problematizar as políticas de memória. Ou seja, a crença do abrigo da
lei mascara ao sujeito o modo como o sistema capitalista o impulsiona
à mercantilização de sua imagem. Os dados de qualquer usuário da
internet hoje formam arquivos que são negociados por grandes
empresas e retornam o tempo todo a estes clientes/consumidores no
formato de vendas e ofertas. Estamos expostos ao mundo da internet,
por isso o desafio jurídico em encontrar formas de proteção ao sujeito
que, paradoxalmente, se vende o tempo todo na rede. Nas palavras de
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
Gadet e Pêcheux (2004), é a língua de madeira do direito se enroscando
com a língua de vento da publicidade e da propaganda (2004, p.23).
Outra contradição que se mascara é o próprio de toda atividade
jurídica, que é feita de palavras, de entendimentos dos operadores, o
que aparece ao sujeito como efeito da pura aplicação da lei a cada caso.
Estas contradições são apagadas pelo efeito da ideologia e é assim que
nos identificamos a dizeres como:
SDr 8: Quem pretende ir à Justiça com a intenção de apagar essas
marcas negativas do passado pode invocar o direito ao
esquecimento. 9
SDr 9: Ninguém é obrigado a conviver para sempre com erros do
passado. (Quarta Turma do STJ).10
SDr 10: Essa é a origem da teoria do direito ao esquecimento,
consagradora do right to be let alone, ou seja, do direito a
permanecer sozinho, esquecido, deixado em paz (Rogério Fialho
Moreira, desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª
Região).11
SDr 11: As pessoas têm o direito de ser esquecidas pela opinião
pública e pela imprensa. (Guilherme Magalhães Martins, Autor do
Enunciado 531, o promotor de Justiça do Rio de Janeiro).12
Apesar de nos identificarmos com esta garantia de tutela pelo direito
ao esquecimento, isso não apaga as contradições a que estamos
expostos. Por exemplo, as relações de poder que entram em jogo na
hora de um julgamento sobre a procedência ou não do pedido de
retirada de dados da internet, ou o argumento a favor deste direito,
trazido na SDr 1, como condição de ressocialização de um ex-detento,
o que sabemos que vai muito além do peso de sua memória. Ou seja,
ignoram-se (e não é por descuido), a partir de uma garantia de
igualdade, as desigualdades que nos constituem. Do ponto de vista da
AD, ignoram-se as determinações ideológicas e materiais que atingem
a memória e que, justamente por isso, não se deixa engendrar por
determinações legais.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Andréia da Silva Daltoé
A problematização que fazemos em torno dos trabalhos da CNV é
de outra ordem, mas não deixa de passar pelo modo como somos
afetados aí também por uma ideia de memória que se deixaria
organizar.
Do mesmo modo que o esquecimento do primeiro direito não é da
mesma ordem que os esquecimentos 1 e 2, também o esquecimento que
a CNV busca conter e/ou impedir, ao voltar aos fatos do passado e
contá-los de novo, não o é. Isso não diminui, em absoluto, sua proposta,
que, conforme Indursky (2013), “está produzindo um trabalho
importante que consiste em não deixar os fatos ocorridos durante a
ditadura militar caírem no esquecimento” (2013, p.341). Todavia,
compreendendo que este esquecimento que a CNV procura conter está
determinado pelo funcionamento dos esquecimentos 1 e 2, passamos a
entender esta volta à história fora da ilusão de agora, então, ser possível,
efetivamente, se fazer justiça e se reconciliar com o passado. Eis a
contradição com a qual precisamos lidar.
O sujeito aqui também se identifica à proteção do Estado, que, neste
momento, abre-lhe a possibilidade de dizer, quando antes o negou,
todavia, dadas as condições de produção de todo e qualquer discurso,
que é regulado não somente por força da censura de um regime de
governo, é importante pensar que, mesmo com a condição de dizer de
agora, a interdição se dá de diferentes modos, exigindo, por sua vez,
que o sujeito, ainda assim, resista e diga.
Fazendo intervir a contradição na assunção do sujeito interpelado,
esquecimento ganha, para nós, um caráter poroso e litigioso, pelo modo
como haverá sempre, em torno dele, uma luta por palavras a tentarem
garanti-lo ou impedi-lo.
Julgamos que problematizar este sujeito diante dos dois direitos
tratados aqui pode ajudar a pensar nas formas de individualização pelo
Estado e o modo como, a partir da contradição, da falha, encontram-se
vias de resistência aos meios que regulam o dizer. Com isso, não
conseguimos nos colocar, conforme Pêcheux (2006), fora do jogo ou
fora do Estado, mas nos posicionar diante de uma história que não é o
relato fiel de um tempo, mas sempre uma “disciplina de interpretação”
(2006, p.42).
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
3. A memória que se esburaca
Nas materialidades que trouxemos até aqui, a história significa como
um conjunto de fatos a que se pode voltar/não voltar, uma memória
compreendida como um depósito cognitivo de acumulados do passado,
aonde podemos retornar ou para deletar certos arquivos ou para trazer
de volta novas informações que possam nos ajudar a reconstruí-lo.
Bom, podemos e não podemos fazer isso.
Podemos ser atendidos juridicamente pelo direito ao esquecimento,
mas não podemos acreditar que os “apagados” deixem de produzir
sentidos; do mesmo modo, podemos voltar aos momentos de chumbo
da ditadura e tentar reconstruir a história, desde que compreendamos
que, conforme Pêcheux (2006), a história é interpretação e, portanto, a
verdade nunca deixa passar mais do que sua metade, conforme o poema
que abre estes escritos.
Importante ressaltar, conforme o autor, que isso não elimina em nada
nosso desejo pelas coisas-a-saber (2006, p.43), o desejo pela verdade
dos acontecimentos, pela história a que se pode ter acesso no mundo
dos livros. Sem dúvida, a história da ditadura deve ser recontada longe
da ameaça da captura, da tortura, da asfixia do não dizer, mas
precisamos entender este retorno como um processo de interpretação,
sujeito a recortes, fragmentos, esquecimentos, interdições que
continuam afetando o dizer. São outras as condições de produção hoje,
todavia não estão isentas das dificuldades que se colocam às
investigações da CNV: documentos queimados ou que não aparecem,
restos mortais dispersos e decompostos, traições da memória, traumas
que impedem o tudo dizer, enfim, interesses diversos para os quais o
calar é necessário. Além disso, há mesmo o esquecimento que precisa
acontecer: não podemos de tudo lembrar e muita coisa precisa, de fato,
ficar no passado.
A história que reclama interpretação não nos fornece a felicidade das
coisas-a-saber, como fazem muito bem, conforme Pêcheux (2006), o
Estado e as instituições; “polos privilegiados de resposta a esta
necessidade” (2006, p.34), por isso nos organizam, nos segmentam, nos
massificam. A história que pensamos aqui está subordinada ao fato de
que:
(...) todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas
filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Andréia da Silva Daltoé
constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um
trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou
não, mas de todo modo atravessado pelas determinações
inscientes) de deslocamento no seu espaço (2006, p.56).
Nesta movência, a memória distingue-se de Achard (2010), que a
apresenta a partir do par implícito/explícito, cujas repetições “estão
tomadas por uma regularidade” (2010, p.14). Pêcheux (2010), na
mesma obra Papel da Memória, interroga: “a questão é saber onde
residem esses famosos implícitos, que estão ‘ausentes por sua presença’
na leitura da seqüência: estão eles dispostos na memória discursiva
como em um fundo de gaveta, um registro do oculto?” (2010, p.52).
Do ponto de vista da AD, a resposta à pergunta (que já vem na
própria pergunta) seria não, não há este escondido da memória, onde se
armazenam fatos do passado, trazidos ao presente, ou não, pela vontade
do sujeito. Não estamos falando, conforme Indursky 13 (2011, p.71), de
uma memória cuja regularização lhe comanda, permitindo que os
discursos sejam retomados e repetidos. Repetir em AD, segundo a
autora, “não significa repetir palavra por palavra algum dizer, embora
frequentemente este tipo de repetição também ocorra. Mas a repetição
também pode levar a um deslizamento, a uma ressignificação, a uma
quebra do regime de regularização dos sentidos” (2011, p.71).
Por este motivo, conforme Pêcheux (2010),
[...] uma memória não poderia ser concebida como uma esfera
plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo
conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de
um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de
divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de
conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos,
réplicas, polêmicas e contra-discursos (2010, p.56).
Há um já-lá, um antes no dizer que vem pela memória, que traz as
marcas de um tempo, de uma história, mas isso não é linear, nem
cronológico, aparece, conforme Pêcheux (1988), “como um processo
não-unificado, atravessado por desigualdades e por contradições”
(1988, p.275). São estas contradições que intervêm no político e que
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O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
permitem o espaço do aberto, dos sentidos outros, apesar de que,
conforme Corten (1999), “a narrativa do poder determina,
efetivamente, o fechamento do espaço ‘político’ (1999, p.40).
Os trabalhos da CNV, sem dúvida, podem recuperar informações
que permitirão uma nova possibilidade de leitura do passado, mas não
como o encontro com a verdade inteira, do tudo que agora será dito,
pois, desse modo, segundo Fonseca (2013), a leitura tende “à
ingenuidade ou à obsessão quando não percebe que determinadas faltas
e apagamentos merecem ser vistas não como falhas ou acidentes de
percurso, mas enquanto materializações de um outro ritual que nos
remete à esquivocidade dos sujeitos, à sua prática política” (2013, p.59).
É, então, a partir destas considerações que fizemos sobre sujeito,
esquecimento, memória e história que compreendemos a metáfora. E a
ela voltamos.
4. Quando a metáfora se estilhaça: um ritual que falha
Ao questionarmos anteriormente o deslizamento entre os pares
pleno/silêncio no funcionamento da metáfora, queríamos alertar para o
modo como não víamos ali uma relação que justificasse o simbólico, o
político, o ideológico. Fazendo intervir estas questões, o que observamos no
funcionamento de ambos os direitos é um deslizamento que não trabalha
este nível do relacional, do linear. No caso do direito ao esquecimento,
mesmo marcado pela página em branco da internet, este dizer, ou
melhor, o não dizer, não deixa de produzir sentidos, efeitos de memória,
logo, o vazio é saturado e este silêncio significa.
Assim, a crença no deletar da SDr 7 atua senão enquanto ilusão, uma
vez que o sentido e a memória não se deixam engendrar. Este suposto vazio
dá lugar a outros sentidos, como apresenta a SDr a seguir, retirado do Jornal
espanhol El País14 sobre consequências do direito ao esquecimento:
SDr 12: O denominado efeito Streisand, como se denomina
quando a tentativa de silenciar algo termina por torná-lo ainda
mais conhecido. (18/07/2014).
Com isso, questionamos também a ideia de interditado/saturado das
SDrs a seguir, retiradas de depoimentos à Comissão Estadual da
Verdade (CEV)15 Paulo Stuart Wright de SC, na cerimônia de
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Andréia da Silva Daltoé
Audiência Pública em Florianópolis em Homenagem a P. S. Wright,
que dá nome à Comissão:
SDr 13: Nós queremos a verdade, nós não vamos aceitar nada
menos que a verdade.
SDr 14: Que esta comissão da verdade seja realmente de verdade.
A partir das SDrs 13 e 14, observamos o efeito do saturado da verdade.
Portanto, do mesmo modo que o silêncio no direito de ser esquecido não
significa vazio, também aqui os sentidos não deslizam do silêncio para o
tudo. Se o silêncio está neste deslizamento é tanto no antes quanto no depois,
como fundante (ORLANDI, 2006). Os sentidos podem sempre ser outros
e, conforme Pêcheux (2011), “construir ‘o’ sentido da história arrisca ao
mesmo tempo em fixá-la em uma eternidade administrativa” (2011, p.160161). É preciso, portanto, suportar os sentidos no plural e, no caso dos
levantamentos de informações que a CNV está possibilitando, entender que
este processo sofrerá determinações que afetam sempre o trabalho de um
dizer por outro: o trabalho da metáfora. Portanto, conforme o autor,
precisamos frustrar nosso desejo de uma historicidade homogênea e
“suportar a categoria da contradição” (2011, p.161), tal como se apresenta
na SDr a seguir, que traz o depoimento de um ex-preso político ouvido
pela CEV de SC, ao defender os trabalhos da Comissão Popular da
Verdade:
SDr 15: Senhores da burguesia, nós haveremos não com a
comissão da verdade, que não vai apurar nada, com a comissão
da anistia, que é uma farsa. Enganam-se aqueles que pensam que,
do seio do estado terrorista, vai surgir uma comissão que vai
apurar a verdade.
Diferente de outros muitos depoimentos, bem como do que prevê a
Lei que institui a Comissão, nesta SDr, podemos verificar como a
contradição se marca, fazendo ouvir outros sentidos possíveis que vão
problematizar a própria verdade da CNV.
A partir dessas considerações, vimos que a metáfora ganha um outro
tratamento, que não se limita a observar a relação estabelecida entre
dois termos por relações de similitude, num trabalho linear de um antes
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
e de um depois, até porque a memória que intervém no dizer, para a
AD, não trabalha nesta correspondência.
É porque, segundo Indursky (2007), “certos sentidos que são
constituídos a partir de uma determinada interpelação/identificação, a
partir de um certo momento, podem ser questionados e um sentido pode
tornar-se um outro” (2007, p.170), que se instaura a instabilidade, a
heterogeneidade no interior de uma língua. No caso da representação
que fizemos anteriormente, de um sentido passar do pleno para o vazio
ou do vazio para o pleno, não estávamos ainda lidando com esta
heterogeneidade de que fala Indursky, pois, para que isso seja possível,
precisamos lidar com as condições de produção desse dizer e confrontar
as evidências do discurso com sua opacidade, com os
desentendimentos, com as contradições, com as possibilidades de o
sentido ser sempre outro, construindo-se, como história, não mais do
que um efeito de relato, conforme Corten (1999, p.49), em meio à
concorrência de outras tantas versões narrativas.
Nessa perspectiva, metáfora não é tratada como um sentido
figurado, decorrente de uma base linguística, mas como, segundo
Pêcheux (1988), um “processo sócio-histórico que serve como
fundamento da ‘apresentação’ (donation) de objetos para sujeitos, e não
como uma simples forma de falar que viria secundariamente a se
desenvolver com base em um sentido primeiro, não-metafórico” (1988,
p.132).
Sendo assim, o deslizamento promovido pela metáfora não se
justifica na superfície da língua, a partir da qual um dizer é tomado,
substituído por outro. Conforme Pêcheux (1988) “‘uma palavra por
outra’ é a definição da metáfora, mas é também o ponto em que o ritual
se estilhaça no lapso (e o mínimo que se pode dizer é que os exemplos
são abundantes, seja na cerimônia religiosa, no processo jurídico, na
lição pedagógica ou no discurso político” (1988, p.301).
Concebendo a metáfora como constitutiva do sentido e determinada
pelas condições de produção que promovem o encontro de uma
memória e de uma atualidade, é que consideramos o direito de ser
esquecido e o direito de ser lembrado a partir do tratamento teórico que
demos à noção de Metáfora Discursiva (MD) na tese: “a substituição de
um sentido por outro, justificada no interdiscurso e materializada no
intradiscurso sob a forma de uma estrutura metafórica” (DALTOÉ,
2011, p.138).
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Andréia da Silva Daltoé
No caso do direito de ser esquecido, a MD trabalha sim a relação
entre um antes e um agora, mas não significa que, neste deslizamento,
o sentido passe para o espaço onde nada mais será dito ou significado.
O interdiscurso estará neste depois também perfurando o espaço “em
branco”, atualizando o não dizer no dizer. De aproximada maneira, no
direito de ser lembrado, a MD produz um efeito de novo, um novo que
guarda os vestígios do passado: um já outro da história.
Para nós, é por este motivo que o silêncio também é espaço de
resistência, resistência da língua que também não se deixa engendrar
por determinações de individualização pelo Estado e é, a partir desta
irrupção de sentidos que escapam às determinações do poder, que se
abrem brechas para sentidos e sujeitos outros, que resistem.
A memória convocada por este tratamento da MD representa,
conforme Pêcheux, uma divisão da identidade material do enunciado,
fazendo com que “sob o ‘mesmo’ da materialidade da palavra abre-se
então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação
discursiva...” (2010, p. 53). Diferentemente das relações parafrásticas,
que se dão num plano horizontal, no nível do enunciado, a metáfora
funciona, conforme Pêcheux, como uma “espécie de repetição vertical,
em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrarse em paráfrase” (2010, p.53).
Ou seja, não se trata de retornar ao mesmo dizer e recolocá-lo – é o
não-idêntico que trabalha aí, em que a memória é ressignificada,
sofrendo o efeito dos furos de sua retomada. Segundo Pêcheux, isto
produz um “efeito de opacidade (correspondente ao ponto de divisão do
mesmo e da metáfora), que marca o momento em que os ‘implícitos’
não são mais reconstrutíveis” (2010, p.53). Por isso, entendemos a MD,
aos modos de Pêcheux (2011), como um curto-circuito simbólico, que
“se produz entre dois termos sem que nenhum discurso justificativo o
subentenda: as explicações e as justificações virão após” (2011, p.159),
dado o modo como se justificam no interdiscurso.
No caso dos dois direitos analisados, temos pistas do funcionamento
da MD, em cuja materialidade, conforme Orlandi (2010), “o real
histórico faz pressão, fazendo que algo irrompa nessa objetividade
material contraditória (ideologia)” (2010, p.67), ao trabalhar as relações
de repetição/transformação. Não estamos, com isso, negando, no caso
da CNV, o papel da memória também enquanto lembrança de fatos,
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
cujos depoimentos podem esclarecer e ajudar a montar este outro modo
de contar a “mesma” história. Todavia, sejam todos os dados
levantados, é preciso entender esta repetição de memória, conforme
Courtine (2006), como uma repetição vertical, em que se repete
também:
(...) um não-sabido, um não-reconhecido, deslocado e
deslocando-se no enunciado: uma repetição que é ao mesmo
tempo ausente e presente na série de formulações: ausente porque
ela funciona aí sob o modo do desconhecimento, e presente em
seu efeito, uma repetição na ordem de uma memória lacunar ou
com falhas (2006, p.21).
Entre o mesmo e o diferente, algo se move e o mesmo já é outro, o
que faz com que o deslizamento dos sentidos entre um enunciado X e
um enunciado Y produza um efeito de memória, não porque estaria
recuperando um discurso de outro momento passado, mas porque faz
trabalhar uma memória que atinge uma atualidade e se justifica pela
força das condições materiais em que se dá.
Conforme Indursky (1999), este é o funcionamento da memória
discursiva, que “promove o encontro de práticas passadas com uma
prática presente” (1999, p.174) e que, segundo Pêcheux (2010): “seria
aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem
restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os préconstruídos, elementos citados e relatos, discursos-transversos, etc.) de
que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio
legível” (2010, p.52).
Nesse sentido, a MD promove uma ressignificação/desestabilização,
que, pelo deslizamento de sentido que provoca, guarda algo da
memória, ao mesmo tempo em que a faz aparecer de outro modo, em
outro lugar. Queremos observar esta proposta a seguir, tomando de
empréstimo uma metáfora trazida por Indursky (2013, p. 42) no
Posfácio As outras vozes e as feridas ainda abertas à reedição de seu
livro, quando ela trata dos trabalhos das Clínicas do Testemunho: a
escuta da dor. Voltamos ao Recurso do Ministro Salomão 16 na parte
que trata do tema desta peça jurídica:
154
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Andréia da Silva Daltoé
SDr 16: No caso de familiares de vítimas de crimes passados, que
só querem esquecer a dor pela qual passaram em determinado
momento da vida, há uma infeliz constatação: na medida em que
o tempo passa e vai se adquirindo um “direito ao esquecimento”,
na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o
fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora
possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes (grifo
nosso).
Neste Recurso, o sujeito enunciador da SDr 16 vota contra o pedido
de reparação de danos feito pela família de Ainda Curi, morta em 1958,
contra a TV Globo Ltda, por ter explorado o caso no Programa Linha
Direta-Justiça. A partir desta materialidade, podemos observar que o
direito de ser esquecido, enquanto garantia à dignidade da pessoa
humana, está subordinado ao trabalho de interpretação que não está
isento das relações de força, de poder, que atingem todo dizer. É com
este material, a língua, que se legisla, se decide e se justifica que a dor
de antes não é a dor de agora.
Pensando a metáfora da escuta da dor e o funcionamento da MD,
consideramos que não se trata aqui de pensar o deslizamento de uma
dor maior para uma menor, ou comparar ambas as dores, mas de
relacioná-las às determinações ideológicas que as atingem e as fazem
não ser tratadas como sentidos que se substituem simplesmente.
Em relação à CNV, a escuta da dor, como um sentido que desliza,
pode ser pensada a partir de inúmeros significantes, mas queremos aqui
trazê-la a partir da metáfora do corpo, este corpo que se procura para
ser enterrado e por cujo direito familiares e amigos lutam até hoje. Um
corpo que, para nós, pode representar, como efeito de sentido, também
uma presença que vem preencher uma ausência. Vejamos:
SDr 17: Não é dado o direito de enterrar os mortos. (Anita,
CEV/SC)17.
SDr 18: O desaparecimento é um crime continuado. (Derlei
Catarina de Luca, CEV/SC)18.
Podemos observar nestas SDrs, que a dor de antes e a dor de
agora não significam necessariamente que, mesmo encontrando-se
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
novas pistas e até o próprio corpo (e o livro-relatório Direito à Memória
e à Verdade da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos (2007) vem para confirmar o quanto isso é difícil), que esta
dor se amenizasse e produzisse o fechamento desta história. Em alguma
medida, sem dúvida, encontrar o corpo representaria uma forma de
justiça, mas não se trata de um deslizamento de uma falta a uma
presença que abrandaria as feridas: a dor continua a doer e dificilmente
se pode fazer as pazes com um passado de tortura.
Mesmo que este corpo seja encontrado, sua presentificação não
atingiria o tudo poder dizer, não tamponaria a dor por completo, nem
traria a verdade dos fatos, ao mesmo tempo em que, em não aparecendo,
esta ausência significa, significa a dor que persiste. E vamos sempre
lutar pelo direito de enterrar nossos mortos.
A questão do corpo, em sua presença/ausência, portanto, não
trabalha numa relação de oposição, não há deslizamento que saia do
nada para o tudo, da dor para a alegria. Haverá sempre o sentido da dor.
Esta metáfora do corpo pode ajudar a pensar a própria ilusão pela
verdade da CNV: mesmo que ela aconteça, tal como trabalha nosso
desejo do tudo querer saber, seria sempre uma construção pela palavra,
sujeita às brechas do sentido, sujeito aos dizeres que não se deixam
dizer barrados pelo trauma. Haverá sempre verdade no plural, neste
caso, no mínimo: a dos torturados e a dos torturadores.
Vejamos isso, passando a dizeres de uma FD antagônica a dos
direitos humanos: a FD do regime militar, a partir do depoimento de
Paulo Malhães (P.M), coronel reformado do exército, à CNV,
respondendo a quantas pessoas teria matado:
SDr 19: Tantos quantos foram necessários. (P.M.)19.
E, ao ser perguntado por que não entregavam os corpos, o sujeito
enunciador justifica:
SDr 20: Porque era o senhor deixar um rastro, e isso não foi
técnica nossa, foi técnica aprendida. (P.M.)20.
Ao ver o vídeo deste depoimento, a metáfora da escuta da dor se
transforma, inevitavelmente para nós, em a dor da escuta a partir do
modo como P.M. responde, de forma bastante tranquila, aos
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Andréia da Silva Daltoé
questionamentos da Comissão sobre como torturavam e
descaracterizavam os presos antes de serem jogados no rio.
Do lado deste sujeito enunciador, esta é a sua verdade, daí ele
mesmo dizer que a CNV é apenas “meia comissão da verdade” e,
perguntado sobre arrependimento, ele reafirma:
SDr 21: Eu cumpri meu dever. [CNV: Não tem arrependimento?]
Não, eu não tinha outra solução. (...) isso era feito normalmente,
eu acho que todos os serviços de informações faziam. (P.M.) 21.
A SDr 21 significa o modo como o sujeito enunciador se identifica
à FD do regime militar e se reconhece no papel que desempenha na
posição-sujeito de torturador. Em seu depoimento, em mais de uma vez,
ele se defendia, dizendo que este trabalho era um trabalho como outro
qualquer e ele o fazia do melhor modo porque devia obediência às
forças armadas. Isso reafirma o modo como o sujeito se reconhece no
processo de individualização de um Estado que regia à força, no modo
como se identifica à FD que o determina até hoje e à posição que
ocupava.
Nestas condições, tortura, morte, abuso sexual, ditador, violência
são palavras que assumem um sentido litigioso em relação ao que
significam em uma FD antagônica: a dos direitos humanos, com a qual
se identificam as vítimas e todos que se horrorizam com este passado.
As casas de tortura, por exemplo, no depoimento do coronel, são
designadas como: casa de Petrópolis, sistema de informações, casa de
conveniência, lugar para ganhar os presos 22. Ou seja, conforme Barthes
(2004) “as mensagens ou os significantes têm um único sentido, que é
o certo” (2004, p.111). A próxima SDr aponta para este litígio, quando
o presidente da CNV, advogado Dr. José Carlos Dias, perguntou a P.
M. se o presidente Médici, e Dias acrescenta, o ditador, sabia desses
fatos. A resposta foi:
SDr 22: Não era ditador, era presidente. (P.M.)23.
Estas materialidades reafirmam o entendimento que trouxemos aqui
de memória, que, segundo Orlandi (2010), atua “como um espaço
móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de
conflitos de regularização. Um espaço de desdobramentos, réplicas,
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
polêmicas e contra-discursos” (2010, p.65), marcado a seguir pela
resposta de Dias a P.M.:
SDr 23: O senhor chama de presidente, eu chamo de ditador. (J.
C. Dias)24.
Este litígio em torno da palavra, nos termos de Rancière (1996), não
cessará e segue construindo a história, a nossa história. E é assim
mesmo que precisamos enfrentá-la, como uma disciplina de
interpretação, como um cenário que se mostra sempre pela meia porta
da verdade de Drummond. É nessa perspectiva que a metáfora trabalha,
estabelecendo relações, conforme Rancière, entre “coisas que não têm
relação, é fazer ver junto, como objeto do litígio, a relação e a nãorelação” (1996, p.52).
Considerações finais
No texto Maio de 1968: os silêncios da memória (2010), Orlandi
trabalha a falha como constitutiva da memória e do esquecimento, mas
também trata da falta, uma falta por interdição, daquilo que é tirado do
sentido para não significar, provocando, desse modo, furos, buracos na
memória para que os sentidos censurados não formem um já-dito: “há
faltas – e não falhas” (2010, p.65).
Para nós, a CNV precisará lidar com falhas e também com faltas,
pois a interdição ao dizer se marca de outros modos fora do regime
militar, mas continua. É preciso se dispor a isso e interpretar a história,
caso contrário, segundo Indursky (2013), esta recusa “implica
amordaçar aqueles que desejam e clamam por justiça” (2013, p.340),
bem como impede a explicitação política da tortura de que trata Orlandi
(2010).
Problematizar esta memória é significá-la agora de um outro modo,
trazendo o que está fora dela, conforme Orlandi (2010), “como uma sua
margem que nos aprisiona nos limites dos sentidos. O que está fora da
memória não está nem esquecido nem foi trabalhado, metaforizado,
transferido. Está in-significado, de-significado” (2010, p.66). É preciso
ressignificar este passado.
Serão, pois, sentidos re-inscritos num agora que apontam para o
modo como é preciso esquecer para dizer e é preciso dizer para
lembrar, num trabalho em que memória e esquecimento não deslizam
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Andréia da Silva Daltoé
do vazio para o pleno, do nada para o tudo, mas que funcionam pelo
modo como a língua e o sujeito precisam ser expostos às contradições
que os determinam, fazendo intervir o político, o histórico, o
ideológico.
É preciso enfrentar esta escuta e aceitar que as palavras teimam em
dizer mesmo quando ali não estão. E, como eu já trouxe na tese: como
é importante a possibilidade de dizer de novo, dizer de outro modo.
Acrescento agora: como é importante dizer quando antes não se podia.
E como é necessário esquecer e lembrar.
Notas
1
In: BUCAR, Daniel. Controle temporal de dados: o direito ao esquecimento.
Civilistica.com. A. 2. N. 3. 2013.
2 In: http://s.conjur.com.br/dl/direito-esquecimento-acordao-stj-aida.pdf> Acesso em
25/07/2014.
3
In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm>
Acesso em 10/07/2014.
4 In: http://www.cnv.gov.br/index.php/institucional-acesso-informacao/a-cnv/57-ainstalacao-da-comissao-nacional-da-verdade> Acesso em 10/07/2014.
5 In: http://www.youtube.com/watch?v=TF8bKZa-9Js> Acesso em 25/07/14.
6 As metáforas de Lula: a deriva dos sentidos na língua política, defendida em 2011
pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul – UFRGS.
7 In: http://s.conjur.com.br/dl/direito-esquecimento-acordao-stj-aida.pdf> Acesso em
10/07/2014.
8 Conferência II SEAD: O Sujeito Discursivo Contemporâneo: um exemplo. In:
http://www.ufrgs.br/analisedodiscurso/anaisdosead/2SEAD/CONFERENCIA/EniOrla
ndi.pdf> Acesso em 12/07/2014.
9 In: http://s.conjur.com.br/dl/direito-esquecimento-acordao-stj-aida.pdf> Acesso em
25/07/2014.
10 In: http://atualidadesdodireito.com.br/blog/2013/10/22/o-direito-de-ser-deixado-empaz/
11 Idem.
12 Idem.
13 Artigo A memória na cena do discurso. In: INDURSKY, F.; MITMANN, Solange;
FERREIRA, M. C. (Orgs.). Memória e história na/da Análise do Discurso. Campinas,
SP: Mercado das Letras, 2011.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
159
O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO:
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA
14
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In: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/07/17/tecnologia/1405630090_940193.html.
Acesso em 20/07/2014.
15 Audiência Pública em Florianópolis em Homenagem a Paulo Stuart Wright. In:
http://www.youtube.com/watch?v=3vpqU675x2Y. Acesso em 10/07/2014.
16 In: http://s.conjur.com.br/dl/direito-esquecimento-acordao-stj-aida.pdf> Acesso em
10/07/2014.
17 Trecho extraído da carta que Anita, sobrinha de P. S. Wright, que dá nome à CEV de
SC, fala sobre o tio, deputado de SC, que teve seu mandato cassado com a instauração
do Ato Institucional nº 5. In: http://www.youtube.com/watch?v=qYKU2tOoGLU>
Acesso em 10/07/2014.
18 Derlei C. De Luca é membro da CEV/SC. Idem.
19 In: http://www.youtube.com/watch?v=T7oSIE5pm3Y > Acesso em 20/07/2014.
20 Idem.
21 Idem.
22 Ganhar os presos significava convencê-los a se infiltrar de volta nos movimentos
chamados revolucionários e, então, delatar seus companheiros de luta aos militares. P.
M. diz que esta foi a arma que ganhou a guerra.
23 Idem.
24 Idem.
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Palavras-chave: esquecimento, memória, discurso
Keywords: forgetfulness, memory, discourse
162
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA
AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO:
O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA
NA TEORIA PSICANALÍTICA
Maurício Eugênio Maliska
UNISUL
Resumo: Este texto explora o percurso da metáfora na psicanálise,
tocando nos seus limites e transbordamentos no ensino de Lacan.
Procura mostrar os limites da metáfora dentro da psicanálise, uma vez
que o psicanalista não busca construir metáforas, nem mesmo sentidos
para o sujeito, mas desconstruí-los, com o objetivo de esvaziar o
excesso de significação que há tanto nos sonhos como no sintoma, para
que o sujeito passe a não mais sofrer com esse excesso de sentido.
Abstract: This paper explores the course of metaphor in
psychoanalysis, touching its limits and overflows in the teaching of
Lacan. It seeks to show the limits of metaphor within psychoanalysis,
once the psychoanalyst does not try to build metaphors or senses to the
subject, but to deconstruct them in order to empty the excess of
signification present both in dreams and in symptom, so that the subject
will no longer suffer from this excess of sense.
Iniciaremos com a conceituação da condensação na teoria freudiana,
partindo dos sonhos como um carro chefe para entender o processo de
condensação, para depois introduzir a metáfora como o seu correlato no
pensamento lacaniano. Nesse percurso entre Freud e Lacan despontam
os diálogos entre a Psicanálise e a Linguística como áreas de
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA
AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO:
O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA
NA TEORIA PSICANALÍTICA
interlocução. A metáfora situa-se como um elemento mediano e de
articulação entre essas áreas, aproximando o funcionamento psíquico
do funcionamento linguístico. Na psicanálise, a metáfora encontrará
seus limites naquilo que Lacan nomeou de real da língua, em que a
construção de sentido, via metáfora, transborda em um sem sentido do
real da língua que não cessa de não se inscrever, de acordo com a
concepção de Lacan (1985). Nesse artigo, procuramos (re)fazer um
pouco desse percurso.
1. A condensação freudiana
O objeto central de estudo da Psicanálise é o inconsciente. Freud
(1900), ao tentar investigar os processos inconscientes, tomou os
sonhos como paradigma desses processos. Para ele, o estudo dos sonhos
era a via régia para o inconsciente; em suas palavras: “a interpretação
dos sonhos é na realidade a estrada real para o conhecimento do
inconsciente” (FREUD, 1910[1909], p.46). Dessa forma, Freud
dedicou parte de seus estudos à investigação dos processos oníricos
como forma de acessar o inconsciente. Postulou que o sonho, da forma
como é apresentado, basicamente em forma de imagens e sons ─ um
rébus pictórico-acústico ─ constitui-se de conteúdos manifestos de
representações inconscientes. Dessa forma, dividiu os processos
oníricos em dois eixos: os pensamentos oníricos latentes e os conteúdos
manifestos dos sonhos. Os pensamentos oníricos latentes são
inconscientes, encontram-se recalcados no inconsciente e, dessa forma,
impossibilitados de vir à consciência. Já o conteúdo manifesto dos
sonhos é a configuração que aparece na forma de sonho; é, portanto, o
sonho sonhado. Para Freud (1900), os conteúdos manifestos nada mais
são do que distorções/transformações dos pensamentos oníricos
latentes, ou seja, uma vez que esses pensamentos estão recalcados e
impedidos de advir à consciência, eles sofrem processos de
transformação de modo a serem suportados pela consciência. Esses dois
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Maurício Eugênio Maliska
processos de formação dos sonhos e transformação dos pensamentos
oníricos latentes em conteúdo manifestos do sonho foram nomeados
por Freud de condensação e deslocamento.
Para Freud (1900), esses processos referem-se a transformações do
conteúdo inconsciente necessárias para poder transpor a barreira do
recalque. Não nos deteremos, nesse momento, no processo de
deslocamento. Iremos privilegiar o processo de condensação pela sua
relação com a metáfora. Para introduzir a temática da condensação,
Freud (1900, p.305) expõe que “os sonhos são curtos, insuficientes e
lacônicos em comparação com a gama e riqueza dos pensamentos
oníricos”. Com isso está dizendo que há no sonho uma condensação dos
pensamentos oníricos latentes nos conteúdos manifestos do sonho;
tanto que se for relatado ou escrito talvez ocupe pouco espaço de fala
ou de papel, já as análises correlativas aos pensamentos inconscientes
podem gerar uma produção mais extensa. Freud (1900) argumenta que
não se tem como saber o tamanho de uma condensação, ou seja, na
interpretação de um sonho nunca se sabe exatamente até onde foi à
condensação; sempre pode ter outros elementos condensados. Por isso
mesmo que um sonho não se esgota em uma interpretação ou mesmo
em uma sessão de análise, pois a interpretação de um sonho pode levar
toda a duração de uma análise; em outras palavras, a análise de um
sujeito pode estar condensada num sonho. Nesse sentido, o importante
não é tentar dar conta da interpretação do sonho, como se isso fosse
possível, mas trazer seus elementos em associação de modo a provocar
um efeito analítico de interpretação.
Nesse sentido, a condensação é um elemento de transformação do
sonho, ou seja, respeita o mesmo mecanismo em que uma representação
inconsciente tenta passar, atravessar a barreira da censura e é
interceptada pelo recalque que faz com que essa representação seja
condensada com outras, ou outra, representação. Neste sentido, a
condensação é um elemento de formação dos sonhos visando à
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA
AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO:
O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA
NA TEORIA PSICANALÍTICA
realização do desejo inconsciente, ainda que condensado e/ou
deslocado em seus elementos. Quase todos os exemplos de sonhos
analisados por Freud (1900) podem ser usados como exemplo de
condensação, pois em todos eles o conteúdo relatado do sonho é menor
que sua análise, o que representa que os pensamentos oníricos
inconscientes estão condensados nos conteúdos manifestos do sonho. A
condensação, nesse sentido, atua como uma substituição, pois em lugar
de uma representação inconsciente aparece um conteúdo
representativo, havendo, portanto, a substituição de um elemento por
outro. Por exemplo, quando se sonha com uma pessoa, mas ela parece
ter o aspecto de outra e ainda estar vestida tal como uma terceira pessoa,
isso pode apontar para uma condensação de várias imagens em uma
única, promovendo ao mesmo tempo uma substituição dessas imagens
em uma única.
2. A metáfora em Lacan
É fundamentalmente sob esse aspecto da substituição da
representação inconsciente que Lacan (1998), apoiado na teoria
linguística de Jakobson, toma a condensação como uma metáfora. Na
condensação ocorre uma sobreposição dos significantes, o que equivale
a “(...) uma palavra por outra” (LACAN, 1998, p.510), mostrando que
a metáfora é aquilo que está no lugar de outra coisa. A metáfora “(...)
indica que é na substituição do significante pelo significante que se
produz um efeito de significação que é de poesia ou criação” (LACAN,
1998, p.519). Em outras palavras, a substituição de um significante por
outro provoca uma significação ou um sentido (efeito de). O sinal (+)
presente na fórmula (Fig.1) não deve denotar adição ou somatório, mas
mostra que a barra do recalque que divide o sistema inconsciente do
sistema consciente, ou que divide o significado do significante, é
atravessada. Há um atravessamento da barra que é a própria substituição
de um termo por outro. “O sinal +, colocado entre ( ), manifesta aqui a
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Maurício Eugênio Maliska
transposição da barra ─, bem como o valor constitutivo dessa
transposição para a emergência da significação” (LACAN, 1998,
p.519).
f ( S’) S ≡ S (+) s
S
Figura 1: Estrutura da metáfora
Fonte: LACAN, J. “A instância da letra no inconsciente ou a
razão desde Freud”. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1998, p.519.
Neste ponto, a metáfora atesta uma rede de significantes, em que um
significante vem ocupar o lugar de outro significante e isso produz um
sentido. É nessa substituição que reside a condensação na medida em
que substitui o pensamento onírico latente pelo conteúdo manifesto dos
sonhos.
Nosso propósito, nesse texto, não é o estudo (aprofundado) do
sonho, mas sim mostrar como os mecanismos presentes no sonho
podem conduzir à relação da metáfora com o sentido. Se o sonho é a
via régia para o inconsciente, ele pode esclarecer a relação da metáfora
com a condensação, em que se produz o sentido.
3. O sintoma e o sentido
A introdução do conceito de metáfora remete, como já foi dito, ao
sentido, pois a metáfora implica em produção de sentido. O sonho, na
psicanálise, não é o único que faz metáforas, de certo modo todas as
formações do inconsciente (sonhos, atos falhos, chistes, sintoma) ─ que
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA
AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO:
O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA
NA TEORIA PSICANALÍTICA
são produzidas na transposição de pensamentos latentes no inconsciente
em conteúdos manifestos na consciência ─ são metáforas que produzem
um sentido como efeito. Para melhor explorar esta relação, iremos
tomar o sintoma como metáfora, pois para Lacan (1998, p.532) “o
sintoma é uma metáfora, quer se queira ou não dizê-lo a si mesmo (...)”.
Se o sintoma é uma metáfora, ele também produz sentido; essa
significação que se produz no atravessamento da barra do recalque, que
se produz na substituição paradigmática de um termo por outro, em um
tempo sincrônico, cujo efeito roça a poesia. Nas palavras de Lacan
(1998, p.522):
O mecanismo de duplo gatilho da metáfora é o mesmo em que se
determina o sintoma no sentido analítico. Entre o significante
enigmático do trauma sexual e o termo que ele vem substituir
numa cadeia significante atual passa a centelha que fixa num
sintoma ─ metáfora em que a carne ou a função são tomadas
como elemento significante ─ a significação, inacessível ao
sujeito consciente onde ele pode se resolver.
A origem etimológica de sintoma remete à ideia de sinal, inclusive
o termo sintoma é tomado no campo médico como o sinal de alguma
infecção ou patologia. Para a Psicanálise, o termo sinal remete
classicamente à angústia, pois para Freud (1926 [1925]) a angústia é um
sinal de que algo incomoda, para dizer grosso modo. É interessante
notar que no texto, Inibição, sintoma e angústia, Freud (1926 [1925])
também situa o sintoma como um sinal, porém acrescenta o fato desse
ser um substituto de uma satisfação. “Um sintoma é um sinal e um
substituto de uma satisfação instintual [pulsional] que permaneceu em
estado jacente; é uma consequência do processo de repressão”
(FREUD, 1926 [1925], p.95). Dessa forma, temos tanto a angústia
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Maurício Eugênio Maliska
quanto o sintoma como um sinal, e o sintoma também aparece como
um substituto de uma satisfação pulsional: “(...) o sintoma é uma
satisfação substitutiva; está posto no lugar de outra coisa [substituto]”
(HARARI, 2008, p.166). Isso remete à proposta de Lacan (1998) que é
entender o sintoma como uma metáfora, em que nesta também está em
jogo uma substituição. Dessa forma, pode-se pensar, por um lado, o
sintoma como uma metáfora, por ser uma substituição, e, por outro,
quase análogo, como sinal, e aqui cabe entender sinal como
significante, aquilo “(...) que representa um sujeito para um outro
significante” (LACAN, 1988, p.197). Em termos lacanianos, será
necessário precisar que este sinal não é um signo, como poderia ser
entendido dentro de um escopo semiótico, pois o “(...) signo se prende
ao fato de ele representar algo para alguém” (LACAN, 1988, p.197).
Neste sentido, o signo propõe uma união entre o representante e aquilo
que é representado, união essa que Saussure (1983) representava
através de círculos em torno do signo e das setas paralelas que remetiam
a um enlace entre o conceito e o seu representante (imagem acústica).
Figura 2: O signo em Saussure
Fonte: SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral. São
Paulo: Cultrix, 1983.
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DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA
AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO:
O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA
NA TEORIA PSICANALÍTICA
A noção de significante quebra com isso quando trata de um
deslizamento de um significante para outro, ou seja, a significação,
diferentemente do signo, não está na união entre o conceito e a imagem
acústica, mas no deslizamento de um para outro significante. A
produção de um possível efeito de sentido, no significante, fica atrelada
a esse deslizamento de um representante (significante) para outro
representante.
S
s
Figura 3: A subversão do signo saussuriano.
Fonte: LACAN, J. “A instância da letra no inconsciente ou a
razão desde Freud”. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1998, p.500.
É por este sinal ser um significante que se pode pensar no
sintoma como uma metáfora. O sinal em questão é o próprio sintoma, é
um significante metafórico sinalizando que algo não vai bem. O
significante promove um deslizamento que propicia que o sintoma seja
esse “substituto de uma satisfação pulsional”, como dizia Freud (1926
[1925], p.95), ao mesmo tempo em que a característica central de uma
metáfora é a substituição. Portanto, sintoma e metáfora se conectam
nesse aspecto da substituição processada pelo significante. Para
entender melhor esse processo, partiremos para duas argumentações
correlacionadas, uma que coloca o sintoma como um significante, e
outra que o coloca como uma metáfora.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Maurício Eugênio Maliska
O sintoma como um significante remete à concepção de
inconsciente e de suas formações. Do inconsciente nada sabemos,
somente temos acesso às suas formações. É através das formações do
inconsciente que se pode saber algo a seu respeito. Afinal, como
salienta Freud (1915, p.171), “Como devemos chegar a um
conhecimento do inconsciente? Certamente, só o conhecemos como
algo consciente, depois que ele sofreu transformação ou tradução para
algo consciente”. O inconsciente em seu estado “puro” é inacessível,
mas sabemos de sua existência através das suas formações. Esse
inconsciente “puro” é apenas um conceito, um lugar teórico; algo que
Freud (1915, p.179) conclui após uma ampla e minuciosa exposição:
“(...) será útil lembrar que, no pé em que as coisas estão, nossas
hipóteses [sobre o inconsciente] nada mais exprimem do que ilustrações
gráficas”. Em outras palavras, o inconsciente ─ enquanto mecanismo e
estrutura ─ é uma ilustração gráfica, um lugar teórico, um conceito que
serve de base para sustentar a experiência clínica da realidade
inconsciente posta em ato na análise através das suas formações. Para
Freud (1915), o aparelho psíquico é constituído de dois sistemas: o
sistema Inconsciente (Ics.) e o sistema Consciente (Cs.). O sistema
consciente inclui o Pré-consciente (Pcs.), que se situa entre o
inconsciente e o consciente. Para Freud, uma representação
[Vorstellung] inconsciente somente passaria para o sistema Pcs. se esta
representação fosse suportável para esse sistema. Caso contrário, ela
sofreria um (re)calque para continuar no sistema Ics. No entanto, tudo
o que é recalcado volta sob a forma de disfarces ou com alguma
transformação para passar ao sistema Pcs-Cs. Se uma determinada
representação foi recalcada no Ics., este irá tentar transformá-la,
transfigurá-la, para que ela possa passar pela barreira da censura,
responsável pelo recalque e situada entre o Ics. e o Pcs-Cs.
De modo mais preciso, não é a representação [Vorstellung] que
passa de um sistema a outro, pois a representação inconsciente é
inacessível, fica recalcada, em seu estado “bruto”. Ademais, esta
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA
AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO:
O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA
NA TEORIA PSICANALÍTICA
representação seria insuportável para a consciência. O que passa então
de um sistema a outro é o representante da representação
[Vorstellungsrepräsentanz], ou seja, um derivado da representação
inconsciente. Lacan (1988, p.206) insiste nisto “(...) que o que é
recalcado não é o representado do desejo, a significação, mas o
representante ─ traduzi, literalmente ─ da representação”. E, mais
adiante, esclarece que “o Vorstellungsrepräsentanz [representante da
representação] é o significante binário.” (p.207). O representante da
representação é o derivado da representação reprimida que ultrapassa a
repressão e chega ao sistema consciente. Esse representante da
representação também é uma formação do inconsciente, pois é através
dele que se sabe algo sobre o inconsciente. Em outras palavras, não é o
inconsciente, propriamente dito, do ponto de vista topográfico, que é
trabalhado em análise, mas as suas formações. Entre essas formações
encontra-se, além do sonho que já foi aludido, o sintoma que também é
um representante da representação, ou seja, um significante.
4. O sintoma e a metáfora
Freud (1917[1916-17]) apontava para o fato de o sintoma estar
atrelado ao sentido e que o neurótico sofre de reminiscência, de um
excesso de lembranças, de um excesso de sentido sobre essas
lembranças. Na Carta 105, Freud (1899, p.330) expõe que “(...) o
sentido do sintoma é um par contraditório de realizações de desejos”,
pois ao mesmo tempo em que dá um sentido para o sintoma, percebese que esse sentido não faz nenhum sentido, ou seja, o sentido que
mantém o sintoma é ao mesmo tempo um sem sentido, na medida em
que ele serve tão somente para o gozo do neurótico. Freud (1917[191617]) mostra que o sentido para formar o sintoma é inconsciente, e que
nenhum sentido consciente forma sintoma. “O sentido dos sintomas é
desconhecido para o paciente, e que a análise regularmente demonstra
que esses sintomas constituem derivados de processos inconscientes”
(FREUD, 1917[1916-17], p.286). Logo, do ponto de vista da
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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consciência, o sintoma não faz nenhum sentido, é inclusive o que as
pessoas dizem quando não sabem porque agem de uma determinada
forma ou alimentam determinado sintoma. Já do ponto de vista
inconsciente, há um sentido, que por mais absurdo que possa parecer, é
ele quem opera. O sonho também se processa de igual forma, pois
quando um sonho é lembrado por vezes parece ser sem sentido algum,
no entanto, seu “sentido” é inconsciente. Por isso, para Freud (1901,
p.253), sempre há uma causalidade de ordem psíquica, tal como numa
passagem de Psicopatologia da vida cotidiana em que ele acredita “(...)
no acaso (real) externo, sem dúvida, mas não em casualidades
(psíquicas) internas.”
O sentido contribui para a formação do sintoma, pois como foi dito
anteriormente, o sintoma, como metáfora, produz sentido ao mesmo
tempo em que é produzido por um “sentido” inconsciente, mesmo que
para a consciência isso seja absurdo ou sem nexo. A presença ou a falta,
assim como o excesso e a escassez de sentido remetem igualmente a
algo em torno do sentido. A título de exemplo, pode-se pensar que na
neurose obsessiva os pensamentos (obsessões) são “(...) carentes de
significação, ou simplesmente assunto sem importância para o paciente;
frequentemente são de todo absurdos e, invariavelmente, constituem o
ponto de partida de intensa atividade mental que exaure o paciente e à
qual ele somente se entrega muito contra sua vontade” (FREUD,
1917[1916-17], p.266). Dessa forma, é bizarro como o Homem dos
Ratos (FREUD, 1909b) por várias vezes retira e coloca a pedra da
estrada por onde sua amada irá passar, num ritual em que ele mesmo
duvida e ao mesmo tempo acredita que aquilo possa fazer algum
sentido. O excesso de sentido ─ colocar a pedra na estrada, mas a
carruagem onde estava Gisele [a amada] poderia tombar, e por isso
retirar a pedra ─ transborda em um sem sentido, pois é absurdo ficar
retirando e colocando a pedra na estrada. Tal como um sonho, o sintoma
pode se apresentar como algo desconexo e absurdo, mas pleno de
significações inconscientes.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA
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O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA
NA TEORIA PSICANALÍTICA
Na Conferência XVII ─ O Sentido dos sintomas, Freud (1917[191617]) apresenta como exemplo o caso de uma mulher que corria desde
seu quarto até o quarto contíguo, lá soava a campainha chamando a
empregada; dava algum recado ou dispensava sem maiores explicações
e depois corria de volta para seu quarto. Esta senhora não sabia por que
fazia isso, mas a análise do caso revelou que havia uma conexão com a
sua noite de núpcias em que o marido corria de um quarto ao outro e
fazia tentativas de manter relações sexuais com ela, mas não conseguia
por ser totalmente impotente. Na manhã seguinte, ele derrama uma tinta
vermelha sobre o lençol para que a empregada pudesse perceber o ato
sexual que não aconteceu. Dessa forma, correr de um quarto a outro tem
a ver com a cena do marido na noite de núpcias, assim como chamar a
empregada é uma forma de mostrar a ela o lençol manchado. Nesse
mesmo texto, Freud explora outros exemplos que denotam a íntima
relação do sentido com o sintoma, ainda que seja por um excesso de
sentido que faz parecer o contrário, ou seja, a sua ausência.
Neste ponto, é importante marcar no mínimo duas articulações do
sentido com o sintoma, pois se por um lado ele produz significação, na
sua função de metáfora, por outro, ele é produzido como um
significante oriundo do inconsciente. O sintoma é, tal como os sonhos,
os atos falhos e os chistes, uma formação do inconsciente, ou seja, um
derivado do inconsciente que se constitui como um representante da
representação [Vorstellungsrepräsentanz] inconsciente. Nos termos de
Lacan (1988), é um significante que representa o sujeito para outro
significante. Nesse sentido, o sintoma é um significante que está em
cadeia na associação livre, um significante que constitui o sujeito do
discurso.
Pode-se pensar em outros exemplos em que esse significante assume
essa função de um representante. No Pequeno Hans (FREUD, 1909a),
por exemplo, o cavalo não é efetivamente a causa da fobia de Hans, mas
aquilo que ele representa, funcionando como um representante de uma
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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representação inconsciente. O cavalo é uma metáfora de algo; o que
causa a angústia fóbica não é esse objeto da realidade (o cavalo), mas a
maneira como ele funciona metaforicamente na condição de
significante. Dessa forma, há uma série de outros exemplos em que o
sintoma é o significante e uma formação do inconsciente.
O efeito de sentido sobre a vida de um neurótico não se restringe à
formação dos sintomas, mas sob este aspecto também está presente na
tentativa de entendimento desse sintoma. O neurótico chega à análise
em busca de um sentido para o seu sintoma, ou até mesmo, em busca
de outros sentidos, porque provavelmente já agregou algum ao seu
sintoma. Nesse momento, inclusive, reside o corolário das psicoterapias
em que o terapeuta dá um sentido, uma explicação e até mesmo
conselhos sobre como o sujeito deve fazer em sua vida, levando assim
a que o paciente se identifique com a sua maneira de ser e de fazer. O
ponto central dessa discussão é que o “(...) neurótico tem como
condição de estrutura o fato de que no seu horizonte vá surgir uma
pessoa a quem ele vai atribuir um saber” (HARARI, 2008, p.201).
Desse movimento em busca de sentido ou de um saber sobre si ou sobre
o seu sofrimento, o seu sintoma, o neurótico mobiliza uma atribuição
de saber ao Outro, um Outro que não teria passado pela castração e que
por isso tem um saber completo. Ele supõe que há um Outro que sabe
o porquê ele sofre, sabe o porquê de seu sintoma. Com isso inicia-se a
transferência, motor fundamental da análise.
O psicanalista colocado pelo analisante neste lugar que Lacan
(1988) denominou de Sujeito Suposto Saber (S.s.S.) não irá exercer esse
saber como se o possuísse, permitindo que o saber se desloque para o
próprio sujeito. Não é o analista que detém algum saber sobre o sujeito,
mas ele próprio; e a transferência, mantida nesta suposição, deve
promover um movimento para surgir o saber que está no sujeito. Para
Freud (1905[1904]) este movimento supõe um saber no analisante, ou
seja, o analista vai em busca de um saber, inconsciente evidente, no
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DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA
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O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA
NA TEORIA PSICANALÍTICA
analisante, pois esse saber está nele. Para Harari (2008, p.163), “Aí está
o truque: o analista se colocar como uma pessoa que se oferece para
receber essa atribuição do saber. Mas, qual vai ser o percurso dessa
terapia? Tratar de sair desse lugar, não se aproveitar disso, mas começar
por esse equívoco paradoxal que é o início de nossa psicanálise”.
Dessa forma, Freud (1905[1904], p.247) compara a análise à
escultura, baseado em Leonardo da Vinci, dizendo que esta “(...)
funciona per via di levare, pois retira da pedra tudo o que encobre a
superfície da estátua nela contida”; ao contrário da psicoterapia e dos
métodos sugestivos que funcionam per via di porre, ou seja,
acrescentam sentidos, encarnam o saber e identificações puramente
imaginárias. Para Freud (1905[1904], p.247), “a terapia analítica não
pretende acrescentar nem introduzir nada de novo, mas antes tirar,
trazer algo para fora, e para esse fim preocupa-se com a gênese dos
sintomas patológicos e com a trama psíquica da ideia patogênica, cuja
eliminação é sua meta”. Desta forma, o analista não coloca sentidos,
não infla o sintoma de saber, mas busca a retirada desses sentidos, assim
como a retirada do sintoma, busca uma quebra nessa relação. Acerca do
trabalho do psicanalista, Remor (2008, p.218) pergunta e propõe uma
resposta:
A interpretação tem sentido ou procura a sua quebra? Na
psicanálise quebra-se esse equilíbrio [adaptativo do sintoma
neurótico] mediante recursos linguageiros. O termo “explicar”
que envolve diretamente a questão do sentido, deu lugar à famosa
frase, atribuída a certa maneira de se referir ao mestre vienense:
“Freud explica”. A maneira de oferecer escuta psicanalítica
àqueles que nos procuram como destinatários de certo saber,
certamente, não é explicativa, mas implicativa, à medida que
possamos nos implicar no que nos é demandado. Essa é a
responsabilidade ética, à medida que a ética da psicanálise se
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constitui pelo modo como o psicanalista não cede ao desejo do
analista.
Lacan (1999) irá situar o sentido, no nó borromeo, na intersecção
entre o simbólico e o imaginário, pois para ele, o sentido está entre os
dois registros. Ainda que a experiência analítica possa conduzir o
sujeito ao não sentido, mesmo aí, o sentido pode estar presente, ainda
que seja pela sua ausência. O eu é, nas palavras de Remor (2008, p.221),
uma “máquina de fazer sentido, o eu dá coerência ao fantasma, à
realidade, numa aparência de que tudo está em seu lugar”. Logo, a
psicanálise não trabalha com o eu, mas com o sujeito, com a divisão do
sujeito. O sentido que o eu mantém faz com que se sustente o sintoma.
“O analisante ama a seu sintoma como a si mesmo” (HARARI, 2008,
p.166) e faz esforços “(...) para incorporar o sintoma, e aumenta a
fixação deste último [pois] esses laços conciliatórios entre o ego e o
sintoma atuam do lado das resistências e que não são fáceis de afrouxar”
(FREUD, 1926[1925], p.102).
O eu vê um ganho proveniente do sintoma, por isso o eu “(...)
gostaria de incorporar o sintoma e torná-lo parte dele mesmo” (FREUD,
1926[1925], p.102). Mas o sintoma não apraz plenamente o eu, ele
provoca, no mínimo, um mal-estar e faz exigências de satisfação que o
obriga a corresponder a essas exigências num gozo que mistura
sofrimento e prazer.
O eu produz sentido, infla o sintoma de sentido, buscando alguma
forma de gozo, de modo que o papel da análise é justamente fazer a
quebra do sentido. Não se trata, na análise, de produzir mais sentido,
mas de promover o efeito de quebra. O próprio termo análise remete a
isso se entendemos o sufixo lise como quebra, tal como na química
concebemos a hidrólise, como a quebra da molécula da água em dois
hidrogênios e um oxigênio. Então, a análise é um corte, uma secção e
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NA TEORIA PSICANALÍTICA
não uma (re)significação da vida do sujeito, o que seria uma nova
significação. Não se trata de significar, nem de resignificar, isso o
próprio inconsciente produz nos sonhos e sintomas, como foi visto, de
modo que a análise tenta romper com o sentido, para que o sujeito possa
viver de modo mais livre. Sabemos que ninguém vive sem sentidos, o
eu se encarregará de produzir sentido, mas o sujeito já não será mais o
mesmo, algo se passa com o sujeito em que o sentido que se produz
após a experiência de análise não é mais o mesmo, o sujeito se produz
de forma diferente.
Enfim, na análise não se trata de produzir metáforas, isso o sujeito
já faz por sua própria sujeição à linguagem, mas de desconstruí-las,
desfazer as metáforas, desinflando o eu de sentido, e com isso o sujeito
poder viver de forma a não gozar com o sentido sintomático, mas de
gozar da vida sem excessos de significação.
5. Os limites da metáfora
Pensar a quebra de sentido na metáfora é também, de certo modo,
conceber os seus limites. Se o analista busca o sem sentido, o
rompimento com o sentido, o faz por um efeito que não é o da produção
de sentido, mas o de seu fracasso. A metáfora na psicanálise, enquanto
produtora de sentidos, deve ser exaurida nos seus limites. O que está
em jogo a partir de um determinado momento na teoria lacaniana é
aquilo que Lacan nomeou de o real da língua, como aquilo que encontra
um limite no campo simbólico da representação da linguagem. O real
da língua é tomado por Lacan como aquilo que está para além do campo
simbólico e que toca, ainda que por fragmentos, em um real que não
cessa de não se inscrever no campo da linguagem. Esse real é um
impossível, cujas palavras não dão inteiramente conta, que escapa aos
processos de simbolização.
A metáfora como um processo de substituição de um termo por
outro, ou de um pensamento inconsciente por um conteúdo manifesto,
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mostra a representabilidade do inconsciente, certa metaforicidade que
se traduz numa cadeia significante em que um termo toma o lugar de
outro formando uma cadeia. O que se manifesta é um inconsciente
representacional, equivalente a dizer de um inconsciente metafórico, já
a proposta de Lacan, ao conceber um real da língua, toca nos limites
desse representacional; ou seja, até que ponto o inconsciente
funcionaria como uma representação metafórica? Até que momento o
inconsciente é uma linguagem ou é estruturado como uma linguagem?
Até o momento em que a linguagem encontra seus limites na própria
estrutura, ou seja, até o ponto em que a estrutura do inconsciente
funciona como uma linguagem muito específica. Essa uma linguagem
específica pode ser entendida como a lalangue. Uma linguagem que
não é uma língua, nem mesmo um idioma, mas uma linguagem operada
na clave do real da língua, que constitui o sujeito. A lalangue, para
Lacan, surge de um ato falho, em que ele queria se referir ao dicionário
Lalande e comete um lapso dizendo lalangue. A partir disso, começa a
teorizar formulando o conceito de lalangue. Para Lacan, a lalangue dite
maternelle, não se refere à língua enquanto idioma, mas uma língua
singular de cada sujeito, inscrita a partir dos restos fonemáticos do
cantarolar e da lalação da mãe. Não é uma língua materna, mas a
“língua” da mãe enquanto restos vocálicos, “manhês”, fragmentos de
real, pedaços de sons que constituem um real da língua.
6. O transbordamento da metáfora nos conceitos de forçage e
chiffonage
Ao concebermos a lalangue como o real da língua, estamos tocando
nos limites da metáfora. Isso abre possibilidades para articularmos com
uma noção lacaniana que Harari (2007) intitulou de uma violência da/na
linguagem, que consiste basicamente em fazer a língua soar para além
do sentido, fazer torções no significante para que a língua possa fazer
despertar algo de um real da língua que se situa para além da metáfora,
nos seus transbordamentos.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA
AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO:
O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA
NA TEORIA PSICANALÍTICA
Diante dessa violência com a linguagem, surgem dois conceitos
forjados nos últimos seminários de Lacan, forçage e chiffonage. O
forçage é uma violência na e da linguagem e tenta produzir um
significante desatrelado de sentido. No Seminário 24, Lacan (1977,
19/04/77) acrescenta que “é o forçage por onde um psicanalista pode
fazer soar outra coisa que o sentido”, pois o sentido obstrui e o forçage
abre, rompe, quebra. O termo forçage não possui inscrição no léxico da
língua portuguesa; a sua aproximação com forçamento perde a riqueza
de sua potência. Em francês, forçage significa: “Cultura de plantas
antes da estação” (MORVAN, 1995, p.305, tradução nossa), também
pode ser entendido como fora da estação ou num lugar inapropriado.
Talvez essa intradução do termo soe bem condizente com a proposta
do Seminário 24, em que se aposta na intradução como forma de uma
transliteração, para além da tradução, e de tomar o significante ao pé da
letra. Trata-se de conceber o termo forçage na sua violência da, na e
com a linguagem, roçando o sem sentido de pontas de um real
impossível de ser simbolizado.
Lacan trabalha um além da palavra, marca os limites da
interpretação que são ultrapassados por um saber fazer da ordem de um,
ou como um, forçage que promove uma violência da e na linguagem,
estropiando ali com a metáfora sintomática, com a linguagem fálica do
sintoma. Trata-se de estropiar a palavra, apostando que toda palavra é
valise, em que há diversas palavras/significantes dentro dessa mala. É
necessário violentá-la para enxotar o sentido que serve ao gozo
sintomático ─ a jouissance (jouis-sens), o gozo com o sentido do
sintoma. O forçage é aquilo que tenta quebrar, com a violência da
linguagem, com o real da língua, a metáfora sintomática, e transformar
o gozo fálico do sintoma em um gozo produtivo, um gozo da vida. O
sintoma que foi produzido pela linguagem será quebrado na forja da
linguagem. Lacan (2007, p.39) mostra que “(...) é por estar engajado na
linguagem que o sintoma subsiste, ao menos se julgamos poder
180
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Maurício Eugênio Maliska
modificar alguma coisa no sintoma pela
interpretativa, isto é, jogando com o sentido”.
manipulação dita
Essa violência da linguagem é apontada por Roberto Harari (2007)
em seu livro Palabra, violencia, segregación y otros impromptus
psicoanalíticos, ao mostrar que James Joyce promove uma outra escrita
com a língua a partir dos restos sonoros e não mais o significante
simbólico, carro chefe da metáfora. É isso que Harari tenta enfatizar,
pois para ele, na clínica, trata-se de fazer a língua ecoar outra coisa. A
violência da linguagem promove um ato, um forçage que insiste na
transliteração da letra, na transgressão do significante e no eco da voz
como forma de esvaziar o sentido da interpretação para produção do
sinthome1 e uma quebra da metáfora sintomática. Para além da
interpretação, trata-se de saber fazer ali com aquilo que gerava o
sintoma para que possa gerar algo de um sinthome.
Podemos trazer um pequeno fragmento clínico como forma de tentar
ilustrar a violência com a linguagem através de um jogo homofônico.
Nessa violência com a linguagem aparece algo que não é tão somente
uma interpretação, nem somente uma construção ou uma intervenção
situada unicamente no plano simbólico-imaginário. Trata-se, no
fragmento clínico, de um jovem, filho de “mãe solteira”, que foi criado
pelos avós. O avô muito rígido e exigente sempre lhe cobrava uma
postura ética e moral frente à vida, isso significava que além de
conselhos, colocava uma ênfase especial no sentido de que ele deveria
ser trabalhador, responsável, namorar e casar com uma moça de família,
não ter vícios e conseguir prosperar financeiramente com o seu
trabalho. Em análise, o jovem constantemente se reportava a esse
avô/pai e ao conflito com as exigências desse supereu voraz, que lhe
fazia exigências quase impossíveis para seu ser. Numa determinada
sessão, ele falava de um episódio que havia acontecido em sua vida e
depois de um momento de silêncio diz: “Vou me ferrar!” e isso soou
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
181
DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA
AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO:
O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA
NA TEORIA PSICANALÍTICA
homófono a: “Vô me ferrar!”. O que o analista intervém, ao modo de
um forçage, com: “(O) vô (vai) me ferrar?”.
Isso marca uma intervenção na clave do forçage, ou seja, uma
transliteração da letra, um fazer soar algo para além da palavra. O
fragmento mostra como não se trata de um ato falho, por exemplo; pois,
o analisante não cometeu nenhum lapso, não houve uma brecha
(abertura/lapso) por onde o inconsciente se manifestasse. O analisante,
no plano imaginário da consciência, tão somente expressa uma
preocupação com o ocorrido sobre o qual estava falando (e que não
tinha relação direta com seu avô), mas por um forçage foi possível fazer
soar um significante outro, correspondente àquilo que Lacan (2007,
p.92) marca no Seminário 23: “o significante se reduz (...) a uma torção
de voz”. O fragmento aponta então para uma torção da voz, para soar
uma outra coisa, um significante novo, que corta o fluxo sonífero do
discurso, pois para Lacan (1977[2000], tradução nossa), na classe de
19/04/1977, do Seminário 24, “um discurso é sempre adormecedor,
salvo quando não se o compreende ─ então desperta (...) o despertar é
o real sob seu aspecto do impossível, que não se escreve senão com
força ou pela força”. O despertar então é para o sem sentido, tal como
Freud (1900) advertia que o despertar não era o acordar, uma vez que a
vida de vigília é sonífera, mas que o despertar acontecia diante do real
onírico.
Para Harari (2001, p.285, itálico do autor), essa forçage mostra que
a operação “(...) resulta não negociável, não substituível, não
metaforizável: singular, então, e necessária”. Trata-se de poiésis, não
no sentido do sujeito fazer poemas ou se tornar um poeta, mas ser um
poema, produzir algo de inventivo em sua vida. Essa invenção não se
dá na clave da interpretação da metáfora, pois nessa o sentido impera
produzido na clave da linguagem. O sinthome invoca uma outra
operação, por isso mesmo o que se produz a partir daí não é aquele
significante (no sentido do representante de uma representação), não é
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Maurício Eugênio Maliska
uma metáfora (tal como é o sintoma), não é o plano imagináriosimbólico (tão plástico quanto elástico), nem mesmo uma
(re)significação (tão regozijada nas psicoterapias), mas se produz uma
invenção. A (des)ordem da invenção sinthomática é um real que encerra
o império do sentido, inscrevendo um gozo outro, não significante, não
localizado, não específico, não restrito ao significante, mas dissipado,
fluído, inventivo, que liberta o sujeito do sintoma, que quebra as
amarras simbólico-imaginárias.
No fragmento clínico, a torção da voz rompe com o fluxo de
consciência (no sentido do episódio que estava sendo contado e que não
era o principal) e vem à tona o significante vô (não como representante
da representação inconsciente, mas como um efeito da torção da voz).
Esse significante aponta para a pedra angular da constituição do sujeito,
pois está em jogo uma nominação, muito mais do que a nomeação (dar
um nome), mas uma nominação no sentido de que o nome vô diz algo
muito especial para o sujeito. A intervenção em cena também aponta
para a chiffonnage que é introduzida por Lacan (1977), no Seminário
24, como um amarrotamento, enrugamento da palavra, tentando
estropiá-la. Na classe de 17/05/77, do referido seminário, ele esclarece
que esta operatória “(...) consiste em se servir de uma palavra para fazer
um outro uso que aquele pelo qual ela é feita” (LACAN, 1977, tradução
nossa). A palavra chiffonnage vem de chiffonner, que significa
amarrotar, enrugar, [froisser], também significando comprimir,
submetendo a uma pressão violenta. Para Harari (2003, p.150-151), há
uma referência ao sifão [siphon], que é uma garrafa onde se introduz
água gasosa sob pressão e que contém um dispositivo em seu gargalo
que, se apertado, faz jorrar o líquido de uma maneira forte, repentina.
Sifão também é um tubo enrugado que geralmente serve para fazer a
conexão entre a pia e a saída do esgoto em uma edificação. Contudo,
pode-se também levar em consideração derivativa a palavra chiffon, que
significa trapo velho, farrapo (amarrotado, sem dúvida). Para além das
etimologias e origens da palavra, a utilização que Lacan faz do termo é
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
183
DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA
AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO:
O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA
NA TEORIA PSICANALÍTICA
uma referência ao modo do analista incidir na sessão, em que se trata
de amarrotar a palavra. Numa incisão breve, repentina, o analista faz
jorrar desse amarrotamento um significante novo, “(...) um significante
que não teria, tal como o real, nenhuma espécie de sentido (...) isso seria
fecundo (...) um meio de sideração, em todo caso”. (LACAN,
17/05/77). A chiffonnage tenta expropriar o sentido da palavra ao invés
de dar-lhe outro, por isso essa intervenção em forma de jorro, repentina,
e não as longas “intervenções” (quase sempre explicativas) do
“analista”. Lacan mostra uma chiffonnage “traduzindo”, ou melhor,
transliterando unbewusst [inconsciente] em une-bévue [uma
equivocação]; que não é a mesma coisa, o sentido fica expropriado da
palavra por esta estropiação, em que não se produz um outro sentido,
mas um significante novo através de uma translinguisticidade.
Vocês poderiam, nesse momento, questionar: Afinal, não seria um
outro sentido que tomou o lugar do primeiro? A intervenção não
substituiu o significante vou (me ferrar) por vô (me ferrar), ou seja, não
estaria aí uma substituição (sintomática), uma re-significação ao modo
das psicoterapias que inflam o sujeito de significações e
(re)significações? Ao nosso entender, não. Não há nenhum sentido no
avô querer ferrá-lo, isso é um sentido que o sujeito construiu. O sujeito
construiu, implantou e implementou esse sentido, fazendo das
recomendações/preocupações do avô ─ típicas de pai, diga-se de
passagem ─ um supereu insatisfeito, sempre lhe cobrando e exigindo
mais ainda (encore). Esse é um sentido atribuído pelo sujeito, em que
ele atribui um gozo absoluto a esse pai, que nunca está satisfeito com
as suas conquistas, buscando e exigindo mais e mais. Esse gozo do
Outro, como uma espécie de pai da horda primitiva, que tudo tem e tudo
pode, e que nunca reconhece o empenho e a dedicação do filho é uma
construção imaginária do sujeito. Esse avô não gozava dessa forma,
tampouco o escravizava desse modo. O sujeito implantava a dialética
hegeliana do senhor (o avô) e do escravo (ele próprio), e há nele um
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Maurício Eugênio Maliska
gozo com essa posição, um gozo podre com esse sintoma que o
escraviza.
O que faz a análise com isso? Tenta quebrar esse gozo. A
intervenção colocada na forma interrogativa ─ “(O) vô (vai) me ferrar?”
─ tenta fazer soar um significante outro (vô), não para dar mais um
significante e consequentemente mais uma significação na vida do
sujeito, isso seria contribuir com a solidificação de um sentido
sintomático para o sujeito. A forma interrogativa é justamente para
colocar em xeque o suposto gozo desse avô que tudo pode e que a ele
só resta se ferrar. É uma tentativa de desfazer esse sentido, mostrar a
ele que há um sem sentido nisso que ele tanto alimenta. Cabe questionar
o analisante por que ele precisa tanto sustentar que o avô irá ferrá-lo,
exigir-lhe coisas quase impossíveis, como se ele fosse incapaz de se
ferrar por conta própria, aliás, essa é a forma que ele faz para se ferrar.
É necessário atravessar esse fantasma para que esse sintoma cesse, para
que ele cesse de se ferrar na vida. Em resumo, aqui também
encontramos uma transformação e não uma substituição, ou seja, não
se trata de substituir um significante por outro, naquilo que seria a
(re)significação das psicoterapias, mas da transformação do significante
para que ele possa produzir outra coisa que não o sentido.
O que pretendemos demonstrar com esse testemunho é uma outra
possibilidade da inscrição da linguagem, situada mais no campo da letra
do que no campo do significante. O significante estaria articulado com
a metáfora e a produção de sentido, enquanto que a letra, para a
psicanálise, denuncia o fracasso da metáfora, em que a produção de
sentido não dá conta do real da língua, fazendo com que a metáfora
encontre os seus limites e transborde em um sem sentido. A letra
funciona como uma torção do significante, desatrelada do significado,
tangenciando os limites do sentido para transbordar no sem sentido do
real da língua e da quebra, ainda que parcial, com o campo simbólico.
Esse efeito é capaz de fazer a palavra soar outra coisa e não o sentido.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA
AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO:
O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA
NA TEORIA PSICANALÍTICA
Operar isso na clínica exige fazer torções, quebras e isso não se passa
em intervenções explicativas e ou contemplativas, mas intervenções
que possam gerar uma outra articulação entre a metáfora e o seu
transbordamento.
Notas
1
Conceito formulado por Lacan (2007) no seminário homônimo de 1975/76. Trata-se
da grafia arcaica da palavra sintoma, em francês, mas que Lacan conceitualiza como
um marcador do fim da análise, na medida em que o Sinthome não é mais o sintoma,
mas, grosso modo, aquilo que se pode fazer com o que o gerava.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA
AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO:
O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA
NA TEORIA PSICANALÍTICA
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Palavras-chave: metáfora; forçage/chiffonage; sentido
Keywords: metaphor, forçage/chiffonage; sense
188
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
Hélio Rebello Cardoso Jr.
UNESP
Renata P. Domingues*
Resumo: Partindo de uma revisão crítica que fazem Deleuze e Guattari
a respeito da utilização de imagens nos escritos e nos desenhos
reproduzidos em Narrativa de uma Análise de Criança de Melaine
Klein, os autores refletem sobre o lugar da metáfora no dizer sobre a
vida desejante por esta criança analisada, intoxicada com metáforas
edipianas. Elas destacam o papel da metáfora para a produção da
alegada intoxicação psicanalítica.
Abstract: Starting with a critical review that make Deleuze and
Guattari about the use of images in the writings and drawings
reproduced in Narrative of a Child Analysis, by Melanie Klein, the
authors reflect on the place of metaphor in the speech of this analyzed
child about desiring life, intoxicated with Oedipian metaphors. They
highlight the role of metaphor in the production of the alleged
psychoanalytic intoxication.
Introdução
Na história da filosofia há um subtexto pouco explorado, o qual diz
respeito a diferenças de grande porte entre os pensadores que são
adeptos da metáfora e aqueles que são contra ela. Essa divergência não
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
toca o uso da metáfora como figura de linguagem, se refere, antes, ao
lugar que ela ocupa quanto à operação conceitual característica do
pensar. Para Paul Ricoeur (1913-2005), por exemplo, no oitavo estudo
de seu livro, Metáfora Viva, a linguagem se encontra imanente à própria
estrutura do real na base de uma “metafórica inicial”, de modo que a
“articulação conceitual (...) encontra no funcionamento semântico da
enunciação metafórica sua possibilidade” 1, sendo que esta, então,
realiza uma transposição semântica cujo movimento é o “dar forma”
abrindo novos campos de significado e, portanto, proporcionando que
novas ideias surjam. Já, em uma situação diametralmente oposta, e sem
obviamente negar o recurso da linguagem à metáfora, pensadores como
Deleuze (1925-1995) e Guattari (1930-1992) creem que a centralidade
conferida à metáfora destitui o conceito de sua criação própria e com
isso o pensamento perde o movimento do real. Para Deleuze e Guattari,
os conceitos são criações e por isso eles não podem depender da função
de dar forma, própria à metáfora, pois então os conceitos seriam latentes
à linguagem ou estariam prefigurados como produtos linguísticos. 2
Para Deleuze e Guattari, o conceito é imanente à realidade, porém,
essa realidade não é imanente à linguagem, como o é para Ricoeur, de
forma que o conceito é necessariamente extralinguístico. Apesar da
exterioridade do conceito, obviamente, há uma prática linguística
própria à filosofia, como mostra Zourabichivili 3. Porém, a fim de fazer
jus à imanência em seu caráter extralinguístico, em Deleuze, a prática
linguística da filosofia precisa efetivar-se em uma escrita literal e não
pode recorrer, em princípio, à metáfora, pois tem de dar-se ao pé da
letra4. Quando Deleuze e Guattari, por exemplo, falam em máquinas
desejantes para definir a dinâmica do inconsciente, não se trata de uma
metáfora que faz uma analogia entre a máquina e o modo de operação
do desejo; eles querem dizer que o desejo produz a realidade de seus
objetos maquinando, isto é, cortando e recortando fluxos, códigos e
resíduos da realidade, literalmente, através de sínteses de elementos
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues
concretos que são descritas como “síntese conectiva”, “síntese
disjuntiva” e “síntese conjuntiva”.5
Obviamente, tal cláusula inclui um longo espectro de questões
desde, como vimos, a própria concepção do pensar, o conceito de
conceito, a escrita filosófica, até o lugar da linguagem no pensamento
de Deleuze – sua filosofia da linguagem. Afeta, igualmente, um
possível conceito deleuziano de metáfora, pois se ele critica seu uso
como operação conceitual não quer dizer que a proscreve como
conceito. De fato, a concepção deleuziana de metáfora deve estar
radicada em outra repartição entre o próprio e o figurado, diversa
daquela, por exemplo, estabelecida pela hermenêutica de Ricoeur 6.
Obviamente, se não podemos nos dedicar neste momento a todo este
espectro de questões, por si só já um programa de estudos com várias
etapas, é válido propor um atalho para acompanhar in loco a luta de
Deleuze contra a concepção usual de metáfora. Com efeito, Deleuze
procurou rastrear o mau uso da metáfora em alguns campos de
conhecimento, principalmente naqueles em que a utilização da
linguagem é fundamental, como a psicanálise. O interessante a notar,
neste caso, é que há certa e benéfica inversão pragmática, cara ao
pensamento deleuziano: o inconsciente como objeto e as práticas
terapêuticas relativas ao mesmo requerem um conceito renovado de
inconsciente, e nessa medida a metáfora deve ser surpreendida em seu
uso negativo e, então, a partir dessa base de dados, certos problemas de
teoria linguística são apontados.
Mas, em que sentido pode haver um mau uso da metáfora pelas
teorias linguísticas?
Deleuze e Guattari7 afirmam que Lacan faz uma crítica da linguística
em nome do inconsciente. Trata-se de uma crítica que tem caráter
histórico e age em uma dupla frente. De um lado, a teoria linguística se
engana ao conferir caráter de universalidade a um regime linguístico
que é, na verdade, relativo e datado. Por isso, Deleuze e Guattari
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
191
INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
afirmam que a teoria da linguagem que permeia o inconsciente
freudiano fora produzida em um regime sócio-histórico chamado por
eles de imperial. Este, além de possuir um modo de produção próprio,
gera um modo de representação do pensamento caracterizado por tornar
os significados efeitos, em última instância, de um significante
transcendente, por isso as linguísticas – sejam elas teóricas ou
pragmáticas - produzidas na perspectiva do regime imperial se inserem
em uma espécie chamada de linguística significante. No entanto,
historicamente falando, haveria outros três regimes linguísticos: o présignificante, o pós-significante e o contra-significante8. De outro lado,
no inconsciente freudiano, não por acaso, essa exacerbação linguística
do significante propaga-se através de uma inflação psicanalítica calcada
na metáfora como interpretante de seu regime próprio de signos. A
psicanálise, portanto, perfaria uma prática que se vale, em geral, de uma
linguística de caráter significante para dar conta do desempenho do
inconsciente. Sendo assim, a crítica da linguística desse tipo se estende
ao inconsciente, de forma que é justo afirmar que, para Deleuze e
Guattari, o caráter histórico foi amputado da dinâmica pulsional
elementar.
Da mesma forma que esta linguística significante está atada a uma
formação histórica determinada que ela escamoteia através da
pressuposição de universalidade, o conceito de inconsciente se nutre de
certo caráter universalizante que se fecha para o efeito que o mundo
histórico tem sobre sua dinâmica. A consequência mais evidente dessa
destituição histórica do inconsciente seria a concepção de que ele não
seria produtivo por si mesmo, pois efetuaria uma performance
meramente representativa como teatro e efeito de um significante
central que circunscreve a dinâmica pulsional: Édipo. Sendo assim, os
signos derivados da vida desejante do inconsciente nada mais
expressariam do que metáforas reprodutoras dessa centralidade do
significante central, isolando-a da realidade histórica.
192
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues
Embora – admita-se novamente - não tenhamos espaço para explicar
a vigência de cada um desses regimes de significante e de que modo um
conhecimento e uma prática como a psicanálise o incluem, entendemos
que, lançando mão de um exemplo, um caso de psicanálise infantil,
explicitaremos a crítica que Deleuze e Guattari fazem a respeito da
destituição da dimensão histórica do inconsciente, tanto em seu aspecto
expressivo como linguagem, quanto em sua dinâmica pulsional.
O olhar não metaforizante que lançamos aqui sobre a criança e sua
vida desejante, juntamente com Deleuze e Guattari, visa ampliar a
noção de inconsciente infantil, considerando que além das relações
familiares, a criança já se relaciona com o meio que a cerca com todas
as relações políticas aí implicadas: lugares de gênero, raça e etnia,
sexualidade, concepções religiosas, culturais, posição de classe social,
de modo que seu inconsciente não metaforiza a realidade para conduzir
processos inconscientes; ao contrário, é o inconsciente infantil que
opera a realidade como exigência de investimento de sua vida
desejante:
A criança não espera ser adulta para captar sob pai-mãe os
problemas econômicos, financeiros, sociais, culturais que
atravessam uma família: pertencer ou desejar pertencer a uma
‘raça’ superior ou inferior, o teor reacionário ou revolucionário
de um grupo familiar com o qual já prepara suas rupturas e
conformidades.9
E mais ainda, as próprias definições de pai e mãe, bem como família,
são construídas neste mesmo caldo e atravessadas pelos fluxos
econômicos, políticos e sociais. Assim, “o que a criança investe através
da experiência infantil, o seio maternal e a estrutura familiar, já é um
estado de cortes e fluxos do campo social no seu conjunto, fluxos de
mulheres e de alimentos (...)”.10
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
A discussão que nos toca realizar neste momento é do quanto o
inconsciente infantil fica reduzido às estruturas familiares – o que
Deleuze e Guattari chamam de familialismo – em alguns casos da
psicanálise infantil. Apontam, ainda, capturas importantes como uma
“intoxicação” pelo olhar psicanalítico no momento de afirmação e
legitimação desse saber. É fundamental notar a desconsideração de
elementos da multiplicidade da experiência desejante elencados pela
criança durante a análise em prol de um único foco de relevância para
a compreensão do inconsciente, a família. No presente artigo, nos
ateremos ao caso do pequeno Richard, de Melanie Klein, trazendo
momentos da análise kleiniana, os desenhos da criança e questões
apontadas pela esquizoanálise11.
1. Pequeno Richard: intoxicação psicanalítica, mapas e decalques
do inconsciente
Richard é um garoto de 10 anos analisado por Melanie Klein (18821960) no ano de 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, sendo este
processo de análise de certa forma paradigmático, pois ele fornece a
base empírica para a formulação conceitual kleiniana do complexo de
Édipo. Trata-se deum caso extenso, tema do livro Narrativa da análise
de uma criança12. Para melhor atender o argumento do presente artigo,
trabalharemos com o recorte do caso feito pela própria autora num
artigo intitulado “Complexo de Édipo à luz das ansiedades arcaicas”
(1945)13, na primeira parte em que a autora trata da análise do pequeno
Richard. A autora declara que o objetivo da publicação deste caso de
análise infantil é “mostrar a influência de certas angústias iniciais sobre
o desenvolvimento genital”14.
A queixa trazida a Klein diz respeito ao medo alegado por Richard;
medo de ir à escola e de estar com outras crianças que o leva não mais
querer sair de casa só. Segundo relato da analista, ele demonstrava
194
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues
também grande preocupação com sua saúde e às vezes mostrava-se
deprimido, embora possuísse vocação para a música e atividades
dramáticas, bem como um interesse muito grande pela natureza. Sentiase melhor entre adultos, especialmente mulheres. Klein considera que
ele tentava impressioná-las, seduzi-las. Relata ainda a autora que a mãe
de Richard tinha uma clara preferência pelo irmão mais velho do garoto
e demonstrava muita preocupação com a saúde de Richard, que já havia
se submetido a duas cirurgias, circuncisão e tonsilectomia, enquanto
seu pai se mostrava pouco participativo de sua educação.
O local da análise é o País de Gales, para onde Klein se muda e a
mãe de Richard o leva para lá para dar continuidade à análise que
ocorria anteriormente em Londres. Certa feita, ao deixar Londres,
Richard tem sua casa bombardeada. Tal evento repercute no medo que
Richard manifesta quando Klein decide viajar para Londres. Richard
temia pela vida de Klein, visto que Londres na época corria realmente
sério risco de ser bombardeada e Richard sabe disto, uma vez que está
o tempo todo em interação com o que acontece no campo social, como
ficará patente em vários momentos do caso. No entanto, Klein superpõe
a percepção da realidade da criança, colocando-a em segundo plano
ante o aspecto transferencial em curso na análise:
Sabemos que ao ir a Londres eu tinha me tornado um objeto
ferido em sua mente. Entretanto, eu não tinha sido ferida apenas
pela exposição ao perigo das bombas, mas também porque ao
frustrá-lo (com a interrupção da análise) eu despertara seu ódio;
como consequência, ele acreditava inconscientemente que tinha
me atacado. Numa repetição de situações de frustrações
anteriores, ele se identificara – em seus ataques fantasiados
contra mim – com o perigoso pai Hitler por trás dos bombardeios
e agora temia retaliação. Transformei-me, então, numa figura
hostil e vingativa.15
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
195
INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
É importante lembrar aqui que a transferência na psicanálise se
refere à projeção das relações afetivas mais primordiais do paciente
sobre o analista. Em geral o paciente projeta uma figura feminina por
quem foi cuidado, de forma que a relação terapêutica implica em
repetição dessa relação anterior, e por isso, conclui Grosskurth sobre a
relação de Richard com Klein, “o relacionamento foi tão firmemente
estabelecido porque ela representava sua avó querida, que morrera
recentemente”16.
Além da transferência, há outros conceitos da teoria kleiniana que
aparecerão ao longo do relato do caso. Como visamos refletir sobre a
questão da intoxicação psicanalítica através de metáforas, torna-se
necessário fazer uma breve apresentação de alguns conceitos da teoria
kleiniana. Restringiremos ao que for de maior importância para a
discussão que faremos adiante com Deleuze e Guattari acerca do caso,
presente em Mil Platôs17, bem como no texto “O que as crianças
dizem”18.
Klein parte da distinção entre “seio bom” e “seio mau” que se faz na
relação da criança com a mãe, quando o bebê percebe que o mesmo seio
que gratifica (alimenta), também o frustra, quando sua fome não é
prontamente saciada. Diante da impossibilidade do ego lidar com estes
dois aspectos pertencentes ao mesmo objeto, ocorre o processo de cisão
a partir do qual o bebê considera que sejam seios distintos, objetos
distintos: o seio bom e o seio mau. Esta cisão é característica da primeira
posição chamada esquizo-paranóide, na qual a principal ansiedade é
persecutória. Em seguida, a criança vive a posição depressiva, quando
o seio bom e o seio mau passam a fazer parte do mesmo objeto e há
então uma integração egóica. No estudo do caso do pequeno Richard,
Klein tenta estabelecer uma relação entre a posição depressiva e o
complexo de Édipo, a partir da interação entre amor e ódio, considerada
pela autora como base do funcionamento mental. Assim, é a resolução
do complexo de Édipo que permite estabelecer a integração entre os
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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impulsos sexuais e os agressivos nas relações familiares; acordo este
que, segundo a autora, é a base afetiva de todas as demais relações do
indivíduo. Outra formulação teórica importante para compreendermos
o que pretende Klein com suas interpretações sobre o pequeno Richard
é sua conceituação das fantasias pré-genitais, que consistiriam em
fantasias arcaicas sobre o pênis do pai dentro do corpo da mãe e ainda
sobre o interior da própria criança que conteria bebês. É então, a partir
deste referencial teórico que o pequeno Richard é analisado.
Deleuze e Guattari apontam alguns problemas neste modo de
entender a infância, o qual implica em uma prática clínica subsequente.
Segundo esses autores, o quadro conceitual kleiniano realiza uma
intoxicação psicanalítica, posto que o inconsciente infantil é aí visto
como um teatro de metáforas. Para eles, o antídoto dessa inflação
metafórica se daria através do restabelecimento da dimensão históricosocial do inconsciente, a partir da crítica à edipianização do
inconsciente infantil. Intoxicação psicanalítica ocorre toda vez que
Klein reduz quase todas as expressões, desenhos, falas,
comportamentos ou sentimentos do pequeno Richard a significados que
abarquem suas formulações teóricas acerca do complexo de Édipo. O
que ocorre nestes momentos é que os trajetos e devires dos mapas de
Richard são ajustados à teoria kleiniana do desenvolvimento genital,
não importando muito que tipo de conexões e experiências a criança
faça. Esse ajuste tem uma direção determinada. Isto porque Édipo prevê
que a família seja o marco dos investimentos inconscientes do qual
derivam todos os outros, quando há a resolução do complexo de Édipo.
Este se torna então o significante transcendente que se impõe às
diversas conexões do pequeno Richard, as quais se tornam metáforas
vivas daquele significante central. Como diz Deleuze:
Mais até que os adultos, as crianças resistem à pressão e à
intoxicação psicanalíticas; Hans ou Richard o tomam com todo o
humor de que são capazes. Porém, não conseguem resistir por
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
197
INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
muito tempo. Têm de guardar seus mapas, sob os quais só
restaram fotos amareladas do pai-mãe19.
Dizem Deleuze e Guattari que as crianças em suas experimentações
elaboram mapas de devires. Estes mapas são feitos de qualidades que
uma criança experimenta em seus percursos pelos diversos meios que a
cercam, vivenciando, nestes trajetos, trajetos histórico-sociais. Sendo
assim, o desejo investe diretamente ligado o social, político,
econômico, cultural etc. A vida desejante de uma criança é feito de
maquinações heterogêneas, envolvendo meios e elementos muito
diversos. Por isso seus mapas são desmontáveis, reconectáveis e abertos
para múltiplas relações. Assim, toda e qualquer conexão que Richard
faz com os eventos da guerra está associada à sua produção desejante,
a seus mapas de devires. Para Klein, no entanto,esses eventos são
secundários e passíveis de uma interpretação depurativa para que
servissem como material de análise, sendo o principal objetivo desta,
encontrar as angústias constitucionais do psiquismo que permeiam o
mundo interno infantil. Ao pensar deste modo, Klein interpreta o grande
interesse de Richard pelos eventos da guerra como consequência de sua
agitação interna, cuja causa são conflitos relativos ao processo
integrativo do ego ocorridos quando ele ainda era um bebê. Para
Deleuze e Guattari, não é possível que essa projeção a partir do interior
da criança para o mundo exterior aconteça através de uma operação
semântica regrada pela irradiação metafórica de uma tensão interna. É
que o inconsciente infantil, operando através de maquinações
desejantes, que se fazem de modo caótico e criativo, transborda e não
se limita somente aos territórios familiares. Os mapas das crianças
incluem um verdadeiro passeio pelo mundo real. Isto implica em
pensarmos os mapas do inconsciente como trajetos sem hierarquia ou
eixo central para o movimento dos fluxos desejantes, mas como
processos de singularização.
Com efeito, o tema da infância está intimamente atrelado aos
processos de singularização. O índice linguístico desses processos, na
198
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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linguagem infantil, segundo Deleuze e Guattari, é a recorrência aos
artigos e pronomes indefinidos: “notamos muitas vezes a que ponto as
crianças manejam o indefinido não como um indeterminado, mas, ao
contrário, como um individuante em um coletivo” 20. As singularizações
infantis implicam em pensarmos em “uma criança”, no sentido de um
agenciamento coletivo do qual a criança é ponto de encontro,
comportando devires que não são pessoais, e que, portanto, não podem
estar centrados na dinâmica familialista do Édipo psicanalítico e em sua
lógica de expansão semântica através de operações metafóricas. E ao
mesmo tempo, implica que sejam produzidos ali, com uma criança,
acontecimentos que são resultado de mapas únicos. Segundo Deleuze e
Guattari, ao contrário referir-se às crianças por meio de artigos
definidos – a criança – contém um modelo, um padrão de inconsciente
infantil que procura abarcar as crianças de um modo geral e
homogêneo, pelo que têm em comum e não pelos processos únicos de
singularização. Uma criança expressa algo da multiplicidade-criança
em conexões singulares, feitas a partir de devires coletivos, que
envolvem todo o campo social. Por isso um processo de singularização
infantil é único e ao mesmo tempo coletivo, são traçados pelo mundo,
andanças e trajetos.
O inconsciente, portanto, possui um processo que se caracteriza
mais pela pragmática de seus mapas de trajetos reais pelo campo
histórico-social onde a criança vive, do que pela semântica dos
decalques de metáforas. Decalques, para Deleuze e Guattari, são cópias,
fotos, reprodução, repetição exaustiva dos temas edipianos. Portanto,
os decalques têm a ver com o modelo de inconsciente psicanalítico
preso ao significante central. Embora o inconsciente infantil também
faça decalques, a partir de metáforas, estas não totalizam o
funcionamento do inconsciente de uma criança, já que este se produz
por mapas. O antídoto para a desintoxicação psicanalítica da análise é
muito simples: as metáforas se tornam uma forma de olhar os
decalques, inseridos em um processo caótico e real das conexões
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
199
INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
desejantes, de modo que são os decalques que estão contidos nos
mapas; e não representam através de metáforas a reverberação de um
significante transcendente. Justamente, pensar os mapas a partir dos
decalques é ainda consequência da intoxicação psicanalítica, que
projeta os decalques sobre os mapas e o complexo de Édipo sobre todas
as outras conexões e sentidos que os mapas infantis podem alcançar.
Sobre isso dizem Deleuze e Guattari que:
Ao contrário da psicanálise, da competência psicanalítica, que
achata cada desejo e enunciado sobre um eixo genético ou uma
estrutura sobrecodificante e que produz ao infinito monótonos
decalques dos estágios sobre este eixo ou dos constituintes nesta
estrutura, a esquizoanálise recusa toda ideia de fatalidade
decalcada.21
Segundo Deleuze e Guattari, Klein não compreende bem o problema
de cartografia de uma de suas crianças-pacientes, o pequeno Richard, e
contenta-se em encontrar em seus desenhos e em sua fala decalques
estereotipados – Édipo, o bom e o mau papai, a má e boa mamãe –
enquanto que a criança tenta com desespero prosseguir uma
performance que a psicanálise desconhece absolutamente. O material
de análise de Richard mostra que seus pensamentos e sentimentos
contêm opções políticas para problemas, entradas e saídas, impasses
que a criança vive concretamente em seu dia a dia, com toda a força de
seu desejo.
Após este apanhado acerca dos impasses conceituais que Deleuze e
Guattari apontam na psicanálise, passemos ao trabalho com o material
de análise descrito por Klein, a partir das sessões realizadas com o
pequeno Richard. A partir da inspeção desse material, estaremos aptos
a ratificar e estender a caracterização que fizemos até aqui, a respeito
do mau uso da metáfora e a consequente intoxicação psicanalítica.
200
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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2. Os desenhos do pequeno Richard e análise de M. Klein
Ao longo de toda a análise, Richard faz 74 desenhos, dos quais
somente os 7 primeiros serão tema de nosso estudo, pois são estes os
que Klein utiliza para pensar sobre o complexo de Édipo. Optamos por
apresentar os desenhos em cores neste trabalho para uma melhor
visualização das descrições do garoto 22. Juntamente com estes
desenhos, apresentamos um contraponto entre as falas de Richard e suas
ações, de um lado e as análises kleinianas de outro. Para os desenhos
em que há pouca fala entre analisando e analista, optamos por
reproduzir os trechos no corpo do texto; ao passo para desenhos que se
relacionam com diálogos mais amplos optamos por utilizar tabelas
contendo paráfrases comentadas, tanto das falas de Richard quanto de
Klein, para melhor organização e síntese do material. Algumas questões
levantadas na discussão acima se tornarão evidentes na descrição desses
encontros analíticos. Por exemplo, a distância que aparece entre o que
diz (e faz) Richard e as formulações kleinianas que são atribuídas à
análise do garoto. E ainda na sequência faremos alguns comentários
acerca destes encontros, no que se refere a momentos em que aparece a
intoxicação psicanalítica. Os desenhos e as falas serão tomados em
termos de fazerem mapas ou decalques, conforme a terminologia
apresentada anteriormente.
Para começar, faremos um comentário geral acerca das cores e dos
conteúdos dos desenhos de Richard. Em seguida, passaremos ao
tratamento individualizado das figuras escolhidas.
As cores dos desenhos de Richard são interpretadas como metáforas
que atualizam símbolos familiares. O primeiro grau da intoxicação
psicanalítica é, por assim dizer, sinestésico. Grosskurth afirma que: “As
quatro cores principais usadas foram preto, azul, roxo e vermelho - que
para Klein, simbolizavam o pai, a mãe, o irmão e ele [Richard] mesmo
respectivamente”23. Estas conclusões tiradas do primeiro desenho,
foram consideradas como um padrão de cores representativas dos entes
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
201
INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
queridos que se estendem aos desenhos posteriores que estudaremos.
Klein tenta fazer um decalque sobre os mapas infantis de Richard, como
se as cores tivessem sempre um sentido anterior à formulação dos
mapas e se projetassem a partir de um fundo pré-definido. Tal fato de
interpretação já apresenta certa postura hierática dos símbolos que os
desenhos incorporam, desconsiderando o fato evidente de que os
desenhos-mapas dependem do encontro de Richard com diversos
elementos e que, portanto, é necessário que os desenhos descrevam uma
variedade e uma dinâmica que deve burlar a fixidez projetiva da
metáfora, a começar pelas cores e pelo uso de material para pintá-las.
Esta característica dos mapas, a de serem dinâmicos e desmontáveis,
é notada por Klein24, mas considerada um dado secundário ou
desprezível. Os desenhos do menino, apesar de guardarem uma
semelhança superficial, variavam muito em seus detalhes – na verdade,
não havia dois que fossem exatamente idênticos. A maneira como
Richard fazia esses desenhos – ou, de fato, praticamente qualquer outro
– era bastante significativa. Ele não partia de um plano deliberado e,
muitas vezes, fica surpreso com o resultado final. Empregava vários
tipos de material em sua brincadeira; por exemplo, os lápis de grafite e
os lápis de cera, que usava para fazer os desenhos, também
representavam pessoas, não necessariamente as figuras parentais.
As cores e os materiais utilizados para as pinturas são, então,
incluídos nos decalques de Klein. No entanto, o mais surpreendente se
dá com os conteúdos e motivos das imagens em seu processamento
interpretativo. Por exemplo, ao comentar desenhos em que há várias
figuras que reproduzem os eventos bélicos em curso, afirma Klein:
É importante observar que o interesse do menino nos eventos
relacionados à guerra desempenhava um papel considerável nas
suas associações. Muitas vezes Richard procurava nos mapas os
países que Hitler tinha subjugado e a relação entre esses países e
os seus próprios desenhos era evidente. Os desenhos do império
202
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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representavam a mãe, que estava sendo invadida e atacada. O pai
geralmente aparecia como inimigo; Richard e o irmão assumiam
vários papéis nos desenhos, às vezes como aliados da mãe, outras
como aliados do pai.25
Deleuze é bastante direto a respeito dessa operação de
personificação dos mapas-desenhos: “cada mapa é uma redistribuição
de impasses e aberturas, de limiares e clausuras, que necessariamente
vai de baixo para cima. Não é só uma inversão de sentido, mas uma
diferença de natureza: o inconsciente já não lida com pessoas e objetos,
mas com trajetos e devires (...)”26.
Prossigamos, agora, com o tratamento visual de cada desenho por
nós selecionados, tratando agora de seu conteúdo, significado, em
paralelo com o diálogo entre analista e analisando a respeito desses
desenhos; diálogos estes que são colocados em colunas à guisa de
contraponto.
DESENHO I
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
203
INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
Este desenho foi feito no primeiro encontro com Klein após a
interrupção da análise por conta da viagem de Klein a Londres.
Os primeiros trajetos
Richard na análise
de E a interpretação kleiniana:
I - Ele pergunta se ela tinha
visto Londres “arrasada”, se
ela havia visto algum
bombardeio enquanto estivera
lá e se havia caído alguma
tempestade em Londres. Diz
não gostar da cidade onde se
realiza a análise, chamando-a
de chiqueiro. Sai para o jardim
onde vê alguns cogumelos que
acredita serem venenosos.
Abre então um livro em que
aponta a figura de um
“monstro horrível” lutando
contra um pequeno homem.
No segundo encontro Richard
conta ainda a Klein que tinha
medo de sua mãe ter mais
filhos, que achava que podia
doer e que ao dizer isto a sua
mãe ela lhe explicou como se
dão as relações sexuais, ao que
Richard responde que “não
gostaria de por seu órgão
genital dentro do órgão genital
204
I - “Em minha interpretação,
liguei esse medo à cidade
‘chiqueiro’; na sua mente ela
representava o seu ‘interior’
(inside) e o ‘interior’ de sua
mãe, que tinha se tornado mau
por causa das tempestades e
das bombas de Hitler. Estas
representavam o pênis do pai
‘mau’ entrando no corpo da
mãe e transformando-o num
lugar ameaçado e, ao mesmo
tempo, ameaçador. O pênis
‘mau’ dentro da mãe também
era
simbolizado
pelos
cogumelos venenosos que
tinham crescido no jardim
durante minha ausência, assim
como pelo monstro contra o
qual lutava o pequeno homem
(que representava o próprio
menino). A fantasia de que a
mãe continha o órgão genital
destrutivo do pai explicava em
parte seu medo de ter relações
sexuais. Essa ansiedade fora
incitada e intensificada pela
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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de outra pessoa, pois isso o minha ida a Londres. Seus
deixaria assustado”27.
próprios desejos agressivos
ligados ao coito entre os pais
vieram a aumentar em muito
suas ansiedades e sentimentos
de culpa. O medo que Richard
tinha do pênis do pai ‘mau’
dentro
da
mãe
estava
intimamente ligado à sua fobia
de crianças. Esses dois medos
estavam intimamente ligados
às fantasias em que o ‘interior’
da mãe era um lugar perigoso.
O menino acreditava ter
atacado e ferido os bebês
imaginários dentro do corpo da
mãe, e que estes tinham se
tornado seus inimigos. Boa
parte desta ansiedade foi
transferida para as crianças do
mundo externo”28.
II - Após pintar as partes
vermelhas: “Estes são os
russos”. Dizia também que
não confiava neles embora
fossem aliados de seu país na
guerra,
considerando-os
29
suspeitos.
II - Richard tem medo de sua
própria agressividade, já que
pelo padrão, o vermelho o
representa mesmo, lembrando
que o roxo era seu irmão, o
preto seu pai e o azul-claro sua
mãe. “O Desenho I expressa
suas ansiedades em torno do
corpo da mãe, atacado pelo
pai-Hitler
mau
(bombas,
tempestades,
cogumelos
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
205
INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
venenosos)”30. Neste mesmo
desenho, segundo Klein ainda,
“o corpo da mãe era perfurado
por três órgãos genitais,
representando os três homens
da família; o pai, o irmão e o
próprio Richard. Já sabemos
que durante essa sessão
Richard expressou o horror que
tinha da relação sexual. À
fantasia de que a mãe seria
destruída pelo pai ‘mau’
somou-se
o
perigo da
agressividade do próprio
Richard,
pois
este
se
identificava com o pai ‘mau’.
O irmão também aparecia
como um agressor. Nesse
desenho, a mãe (azul-claro)
contém os homens maus – ou,
em última análise, seus órgãos
genitais maus. Seu corpo,
então, é um lugar ameaçado e,
ao
mesmo tempo,
um
31
perigo” .
Se até os cogumelos venenosos são o pênis do pai...
Fica claro no contraponto I, o modo como o inconsciente é pensado.
O que Klein diz sobre o pequeno Richard é que todos os investimentos
206
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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libidinais que a criança faz são decorrentes de sua relação com seus
familiares. Não se consideram os investimentos afetivos que não digam
respeito a territórios familiares. Richard se refere aos eventos da guerra,
mas este tipo de maquinação desejante que não funciona
exclusivamente a partir de um sujeito efetivamente personalizado não
tem sentido por si mesmo para a autora. Esta atitude diante das
expressões dos trajetos histórico-sociais do desejo, que se tornam
irradiações metafóricas da família, reaparece em vários momentos da
análise de Richard, bem como nas interpretações de seus desenhos.
Podemos perceber na execução deste desenho, no item II, que
Richard faz mapas e estes são reconectáveis, ora o vermelho se liga ao
pequeno Richard, ora aos russos. Assim, as cores não têm para a criança
um sentido anterior que possa se repetir em todos os desenhos. A cada
nova conexão é necessário que se reconsiderem as questões, mudam-se
as perspectivas, os materiais e combinações possíveis. Por isso os
mapas são como obras de arte, em que ao mudar a posição da obra no
espaço, mudam-se os sentidos, os olhares, as intensidades
experimentadas. No entanto, o que notamos é que Klein tenta imprimir
um significado padronizado às conexões de Richard com os materiais,
no caso as cores. A consequência direta de tal atitude é que ficam
empobrecidos os mapas feitos pela criança. É disto que trata, em
primeiro lugar, Deleuze com a expressão intoxicação psicanalítica. Por
conta de haver uma teoria a priori sobre desenvolvimento infantil, o
que o pequeno Richard diz parece ser considerado em segundo plano,
já que sempre há algo por trás de suas falas, como as fantasias infantis
pré-genitais. Assim, em alguns momentos, como no trecho acima,
parece haver uma tentativa de adaptação das falas infantis à teoria do
desenvolvimento genital que Klein tenta confirmar com o caso da
criança em questão.
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INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
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OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
DESENHO II
208
O que diz Richard:
Interpretação kleiniana:
I - Richard diz que a seção
vermelha “atravessa todo o
império da Mamãe” e
depois se corrige, dizendo
que “não é um império da
mamãe, é só um império
onde todos nós temos alguns
países”32.
I - “O império inteiro
representava o corpo da mãe,
perfurado pelo órgão genital
‘mau’ do próprio menino” 33.
Por isto Richard tem medo de
admitir que aquele império era
de sua mãe, porque o vermelho,
que representa ele mesmo, o
estaria perfurando.
II - Após a interpretação I,
diz Richard que a seção
vermelha “parecia um órgão
genital”, sendo uma divisão
II - O lado esquerdo representa
a mãe boa, onde não há quase
nada do pai ou do irmão,
denotando uma relação muito
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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entre oeste, onde estavam os
países de todos e a leste,
estavam o menino, o pai e o
irmão, e nada de sua mãe.
Assim,
se
segue
a
interpretação II:
próxima de Richard com o seio
bom da mãe, enquanto no lado
direito estavam os homens do
perigoso leste lutando entre si
com seus órgãos genitais. A
mãe não aparecia deste lado
pela
impossibilidade
de
suportá-los. “Esse desenho
expressava a divisão entre a
mãe má ameaçada (a mãe
genital) e a mãe amada e segura
(a mãe-seio)”34. E ainda, o
desenho II apresenta métodos
de defesa utilizados por
Richard para lidar com a culpa,
ansiedade e ambivalência.
Estes
sentimentos
eram
perceptíveis, segundo Klein, no
desenho I e agora se apresentam
os mecanismos de defesa
empregados para lidar com
estes sentimentos no desenho
II. Quanto ao órgão sexual visto
por Richard, após várias
menções de Klein a que
estivessem por trás de suas
falas, ela diz que: “É altamente
esclarecedor que no Desenho II
essa divisão seja feita por uma
seção
particularmente
pontiaguda e alongada que
Richard interpretou como um
órgão genital. Desse modo, ele
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
209
INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
expressava a sua crença de que
o órgão genital masculino era
perfurante e perigoso. Essa
seção parecia um longo dente
afiado ou uma adaga e, na
minha opinião, possuía ambos
os significados: o primeiro
simbolizava o perigo dos
impulsos sádico-orais para o
objeto amado; o segundo,
aponta para o perigo que o
menino relacionava à função
genital em si por causa de seu
caráter de penetração”35. Isso
tudo impelia Richard para a
mãe-seio, o que implica em
forte tendência à regressão e
fixações nas etapas do
desenvolvimento infantil do
garoto, para Klein.
Eis que surge o objeto pontiagudo esperado...
Neste momento, quase exclusivo, Richard fala finalmente de um
órgão genital. Klein prontamente tira suas conclusões sobre a culpa de
Richard por desejar furar a mãe com seu órgão genital em seus impulsos
sádicos. A interpretação deste desenho traz de forma clara a questão da
intoxicação psicanalítica. Richard não diz em momento algum o que
Klein afirma estar em seu inconsciente. Este é um momento da prática
clínica em que faz muita diferença a concepção que se tem de
inconsciente infantil. Para a esquizoanálise não se trata de desvendar o
inconsciente enquanto metáfora, mas de produzi-lo e, ainda, não
210
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues
existem imagens no inconsciente que sejam acessíveis somente ao
analista. Este saber a que Klein se refere não parece ter sido produzido
no processo psicoterapêutico. Fica difícil imaginar qual a relação entre
o conhecimento que a autora produz e as falas, ações e sentimentos do
pequeno Richard. Mesmo porque, não importa muito o que ele diz,
todas suas falas são remetidas aos órgãos genitais familiares, às relações
edipianas.
DESENHO III
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211
INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
Os mapas de Richard:
Os decalques kleinianos::
I - “Richard foi para o jardim
e falou de seu desejo de
escalar
montanhas,
principalmente Snowdon, que
já tinha mencionado antes na
análise. Enquanto falava,
percebeu que havia nuvens no
céu e disse que uma
tempestade perigosa estava se
formando. Em dias como esse,
afirmou, tinha pena das
montanhas, que passavam por
maus bocados quando uma
tempestade caía sobre elas”36.
I - O desejo de escalar
montanhas é visto por Klein
como desejo de ter relações
sexuais com a mãe e medo de
ser castrado pelo pai mau ao se
referir à tempestade perigosa,
que também podia punir o pai.
Para a autora, portanto, trata-se
de uma tentativa da criança de
reprimir
seus
desejos
edipianos.
II - Antes ainda de fazer seu
desenho, conta que viu um
cisne com quatro “doces”
filhotinhos e em seguida
brinca com uma frota de
navios, um ele entrega a Klein
e ambos partem para um
cruzeiro marítimo, Richard se
afasta com seu barco, mas
logo se aproxima novamente
chocando-o com o navio de
Klein.
II - Ou seja, novamente
Richard simboliza a relação
sexual dos pais, expressando
seus desejos genitais. “Os
cinco desenhos que prometera
me dar representavam a si
mesmo (o cisne) dando a mim
– ou melhor, à mãe – quatro
bebês (os filhotinhos)”37.
III - Richard pega o lápis de III - “Essa brincadeira
cera azul e o vermelho, os põe expressava o desejo de Richard
de pé, um ao lado do outro e de que a mãe, juntamente com
212
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em seguida o lápis preto
marcha até eles, sendo expulso
pelo vermelho, enquanto que o
azul, expulsa o roxo.
ele próprio, expulsasse o pai e
o irmão perigosos. A mãe
como figura forte, lutando
contra os homens maus e seus
órgãos genitais ameaçadores
(...)”38.
IV - Aparecem no desenho
navios, plantas, estrelas-domar e peixes em várias
combinações, segundo Klein,
série que aparecia várias vezes
na análise. Primeiro desenha
os navios, em seguida o peixe
grande com alguns peixinhos a
sua volta. Diz Klein que neste
momento a criança ficou
ansiosa
e
animada,
desenhando
então,
uma
porção de outros peixesfilhotes. Richard apontou para
um peixinho que estava
coberto pela barbatana do
“peixe-mamãe” e disse: “Este
é o bebê mais novo”. Ao ser
perguntado se ele estava entre
os peixinhos, a criança
responde que não. Diz
também que a estrela-do-mar
entre as plantas era uma
pessoa adulta e que a estrela
IV – As plantas submersas
representavam os órgãos
genitais da mãe, já que havia
um espaço no meio entre as
duas plantas, e ao mesmo
tempo representavam os seios
da mãe e “quando uma estrelado-mar aparecia entre elas, isso
invariavelmente
significava
que a criança tinha posse dos
seios ou estava tendo relações
sexuais com a mãe. As pontas
dentadas na forma de estrelado-mar representavam dentes e
simbolizavam
impulsos
sádico-orais do bebê”39. Diz
ainda que neste momento era a
situação edipiana positiva que
ocupava primeiro plano na
vida do garoto, juntamente
com a posição genital e desse
modo: “A afirmação de que a
estrela-do-mar no meio das
plantas era uma pessoa adulta
implicava que ela representava
o pai, enquanto Richard era
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
menor era meio-adulta, sendo representado pelo ‘Sunfish’,
seu irmão.
que era maior ainda que o
‘Rodney’ (a mãe). Desse
modo, ele expressava uma
inversão da relação entre pai e
filho. Ao mesmo
tempo
indicava seu amor pelo pai e o
desejo de fazer reparação ao
colocar a estrela-do-mar entre
as plantas, oferecendo-lhe a
posição de uma criança
satisfeita”40.
V – Após a interpretação da
situação IV, sobre a inversão
na situação entre pai e filho,
diz Richard que o avião na
parte de cima do desenho era
inglês e que realizava uma
patrulha.41
V – Um submarino encostado
no outro representava o desejo
de ter relações sexuais com a
mãe e Richard imaginava que o
pai suspeitava disto podendo
punir-lhe, já que ele era
observado, patrulhado pelo
pai, que aqui era um ‘pai
interno’, parte do superego da
criança e ainda a patrulha
significava também Richard se
colocando entre os pais de
modo a patrulhar a vida sexual
deles, querendo separá-los.
Peixes, plantas, cisnes, estrelas-do-mar: o que sobrevive à água
intoxicada metaforicamente?
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Note-se que este desenho é figurativo, ao passo que os anteriores (I
e II) e os posteriores (IV, V-VI e VII) são comparativamente mais
abstratos, representando antes campos delimitados por cores, que
Richard chama de “impérios”, conferindo a eles uma referência
geopolítica; já o desenho III representa de fato objetos, animais e
plantas. Richard tenta de todo modo fazer seus mapas de trajetos através
de cenas concretas e referenciadas, com os mais diversos materiais. Até
os lápis de cera que antes serviam somente para colorir os desenhos,
agora se tornam personagens de suas criações singulares, dando assim,
múltiplos sentidos aos materiais, que se colocam aqui como meios para
as conexões infantis. Richard fala ainda de sua relação com a natureza,
de seu desejo de escalar montanhas, de sua potência. Experimenta
sentimentos em relação à natureza que o cerca, se pergunta se as
montanhas sentem a chuva que as toca, faz maquinações com o clima,
experimenta acontecimentos naturais, como se entrasse em uma devir
chuva-sobre-montanha. Richard fala ainda de peixes, plantas, estrelasdo-mar, cisnes e seus devires-animais. Mas a análise produz um
massacre de seus devires, quando todos eles só podem remeter aos
territórios familiares, tirando-lhes sua potência de fuga, capaz de
promover outros tipos de combinações, maquinações desejantes.
Richard ainda tenta produzir linhas de fuga às interpretações kleinianas,
quando diz que os navios eram ingleses estavam fazendo uma patrulha,
novamente numa expressão do desejo histórico-social. No entanto,
Klein só produz decalques metafóricos sobre os mapas de Richard,
como apontam Deleuze e Guattari, embora saiba que estes mapas se
fazem quando diz que o desenho apresenta “uma grande variedade de
detalhes, mas certos elementos sempre representavam os mesmos
objetos e situações”42. É como se os navios não fossem uma realidade
cotidiana para a criança circunscrita temporal e espacialmente por uma
guerra de grandes proporções e que ameaçava sua existência de forma
inquestionável. É como se sua vida desejante não investisse de forma
direta o campo histórico-social que se lhe apresentava, inclusive para
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INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
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OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
procurar saídas para os impasses dessa mesma vida desejante, seja com
relação às relações familiares seja com relação a outras relações sociais.
DESENHO IV
216
As conexões de Richard:
Interpretação kleiniana:
I - Enquanto coloria as partes
azuis, Richard cantava o
Hino Nacional e disse que a
mãe era a rainha e ele o rei,
dizendo em seguida que
havendo muito dele no
desenho e também de sua
mãe, juntos eles podiam
derrotar o papai.43
I - A presença do azul por quase
todo o desenho significa que
Richard tem esperança de que a
mãe recupere o território
perdido, tentando restaurar seu
objeto bom para que este o
protegesse também. Isto implica
que possa lidar melhor com sua
agressividade, voltando-a para
fora e vivenciando a disputa
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entre ele, o pai e o irmão pela
mãe como fantasia. A derrota do
pai se atribui ao fato deste, nas
fantasias de Richard, ter se
tornado um bebê quando
Richard anexa os órgãos genitais
do pai aos seus, tornando-se
potente e deixando-o frágil.
II – Richard ainda canta o
hino da Noruega e da
Bélgica ao colorir as seções
roxas e disse: “Ele é legal”.44
II – O irmão de Richard também
havia se tornado um bebê, dado
o tamanho da seção roxa em
comparação com a vermelha e a
azul e a frase de Richard se
refere ao pai e ao irmão, crianças
inofensivas. Do mesmo modo
que o pai aparecia no desenho,
embora fosse inofensivo, não era
possível eliminá-lo totalmente,
numa identificação com suas
fezes, algo que estava dentro
dele e era perigoso. A culpa e
ansiedade geradas pela situação
edipiana, por amar o pai e querer
destruí-lo, necessitavam de
algum mecanismo de defesa que
as aliviasse. Assim, quando
Richard
acreditava
inconscientemente que seu pai
havia se tornado um bebê que ele
teria com sua mãe, encontrava
uma forma de compensação e
conciliação para lidar com
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OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
sentimentos de ambivalência
pelo pai.
Os hinos cantam: Papai é um bebê?
Obviamente, a crítica de Deleuze e Guattari a respeito do
inconsciente psicanalítico e o significante central em Édipo, não exclui
a possibilidade do inconsciente também se investir sobre os territórios
familiares, uma vez que as maquinações desejantes se fazem por toda
parte. No entanto, percebemos que há na análise em questão, um
excesso de interpretações que se referem aos temas familiares, num
movimento de reterritorialização constante sobre a família. O que
ocorre no transcurso do caso é que o inconsciente de Richard sofre de
“edipianização”, para utilizarmos termo de Deleuze e Guttari que traduz
com precisão a intoxicação metafórica da criança. Na verdade, o caráter
ostensivo desta acaba por produzir reprodução de um movimento, uma
vez que as saídas para os fluxos não-familiares ficam bloqueadas,
tornando-se sufocante para a vida desejante. Impossibilitado que se
encontra de criar linhas de fuga pelos decalques-metáforas edipianos
que se proejetam sobre seus mapas de trajetos reais, Richard acaba por
se ver também a partir destes decalques. Algumas linhas de fuga
persistem, como cantar o hino nacional ou o de outros países enquanto
faz os desenhos, ainda que por fim aceite tratar-se somente de papai e
mamãe tendo relações sexuais enquanto o pequeno Richard se sente
incluído na situação edipiana clássica. Richard, no entanto, reage e
procura potencializar-se, incorporando os decalques kleinianos aos seus
mapas, tentando conectá-los com outros materiais, de modo que possam
também, e apesar das metáforas de referência centralizadora, tornaremse linhas de fuga, disjuntores para circuitos de corrente mais difusa.
Neste caso, a musicalidade e os hinos cantados tornam-se material para
essa rota de fuga, justamente porque a canção surge como uma
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possibilidade de trajeto que a edipianização dos desenhos já não
permite.
DESENHO V e VI
Estes desenhos compõem um díptico – observe-se que há entre eles
certa concordância de linhas e proporcionalidade de formas – e são
feitos na mesma sessão e na mesma folha de papel, quando Richard
tinha dor de garganta e havia tido febre na noite anterior, sintomas que
Klein considera terem origem afetiva e geradores de ansiedade
hipocondríaca no garoto.
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INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
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OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
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O que diz Richard:
Interpretação kleiniana:
I - Diz Richard que sua
garganta está muito quente,
tendo algum veneno atrás do
nariz e ainda que tinha medo
de estar comendo comida
envenenada. Olhou para a
janela e ao ver dois homens
conversando
disse,
desconfiado, que o estariam
espionando. Colocou então, o
dedo na garganta meio
preocupado,
procurando
germes. E diz ainda que os
impérios dos desenhos V e VI
eram os mesmos.
I - Richard apresenta medos
paranoides (despertados pela
gripe) de que seu pai e irmão o
espionem por sua relação
edipiana com a mãe e ainda
que esta tenha se aliado ao pai
contra ele, espionando-o
também, sendo que os dois
homens simbolizavam, deste
modo, os pais. E ainda os
germes estavam relacionados
com o medo de ser
envenenado,
pois
representavam o pai-Hitler
preto, ligados aos homens que
o espionavam, aos pais.
II – No dia seguinte, Richard
havia se recuperado da dor de
garganta e relata seu café da
manhã animado por ter comido
flocos de trigo, já que, no dia
anterior, por conta da dor, não
podia comer direito. Diz que
tinha até ficado com o
estômago pequeno e magro
por causa disto, com ossos
grandes dentro dele que
apareciam até ele poder tomar
café pela manhã. Falou da mãe
com amor e admiração e
II – Os ossos grandes eram o
pai internalizado com seus
órgãos genitais, representados
anteriormente como polvo ou
monstro. Os flocos de trigo
eram a mãe boa (com seu seio
e leite bons), já que Richard já
os havia relacionado com um
ninho de passarinhos. Klein
acredita aqui que este bom
humor e tranquilidade de
Richard eram resultado das
interpretações que fizera na
sessão anterior, em que se
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admirou ainda os vestidos e
sapatos de Klein, disse que
estava linda, bem como os
campos,
demonstrando
tranquilidade e bom humor.
reduziu o medo dos objetos de
perseguição
internos,
aumentando a confiança nos
objetos bons internalizados
embora diga que a depressão e
ansiedade de Richard tenham
voltado
em
sessões
posteriores.
III – Diz Richard que o
desenho V parece um ‘pássaro
muito horrível’. O azul-claro
era uma coroa, sendo o roxo
um olho do pássaro, cujo bico
estava “escancarado”.
III – Diz Klein: “Propus a
interpretação de que a coroa
azul-clara indicava que o
pássaro era a mãe – a rainha, a
mãe ideal do material anterior
– que agora parecia voraz e
destrutiva. O fato de seu bico
ser formado por seções
vermelhas e roxas expressava
a projeção dos impulsos
sádico-orais
do
próprio
Richard (e do irmão) para a
mãe”. Assim, o desenho V
indica ainda integração egóica
entre o seio bom e o seio mau,
característica da posição
depressiva, já que a mãe era ao
mesmo tempo um pássaro
horrível e uma rainha com sua
coroa.
IV - Após a interpretação da IV - O desenho VI é o próprio
fala III, reafirma Richard que o Richard que internaliza o
pássaro era mesmo horrível e pássaro horrível, sendo o bico
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OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
que o desenho VI também era
um pássaro, mas sem cabeça,
do qual saiam “cacas”, tudo
muito horrível.
aberto do pássaro a mãe voraz,
sendo expressão do desejo da
criança de devorar a mãe junto
com o irmão. Se ao
internalizar a mãe boa, se
protegia dos ossos grandes do
pai destruidor, ao internalizar
o pássaro horrível, a mãe havia
se associado ao pai monstro
que agora devoravam Richard
por dentro e o castravam
externamente. É por conta do
sentimento de retaliação de
Richard, segundo Klein, que
ele desenha o pássaro sem
cabeça. A “caca” grande
representava os ataques anais
de Richard contra essas figuras
internas aterrorizantes.
Devorar a mamãe e ficar com os ossos grandes do papai no
estômago?
Os sintomas que Richard apresenta – dor de garganta e febre – se
referem à ansiedade e às dificuldades que vive naquele momento, seu
corpo é expressão disso. A criança vive corporalmente este encontro
com a doença que perpassa a análise. Os devires também produzem
conexões com este corpo infantil e aqui Richard fala novamente de
devires-animais. No entanto, a linha de fuga que estes devires produzem
já não é vivida aqui na forma de potência criativa, como ocorre no
desenho III, mas como força de destruição, produtora de medo, de
terror. Richard aprende com Klein que seus devires não são confiáveis,
222
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que não se deve dar passagem a afectos não-familiares. Richard vive
sim uma castração, uma retaliação, a de seus devires-animais, por conta
da análise. Restringe-se demasiadamente as conexões desejantes
quando o inconsciente é edipianizado. Isso significa tomar o complexo
de Édipo como estrutura central do inconsciente, o desejo de dormir
com a mãe e matar o pai como os desejos que sofrem ação da repressão
e, posteriormente, dão origem aos investimentos desejantes no campo
social. Além disso, a própria edipianização é por si só produtora de
repetição, uma vez que as saídas para os fluxos não-familiares ficam
bloqueadas.
DESENHO VII
O que diz Richard:
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Diz que as seções azuis-claras aumentaram e que queria que o irmão
se tornasse seu aliado. As seções pretas estavam cercadas (tidas até o
presente momento por Klein como o inimigo perigoso).
Interpretação kleiniana:
Representa o interior de Richard, pintado de vermelho, onde
estavam o pai, a mãe e irmão, seus objetos internalizados. O pai
perigoso estava cercado por Richard que se aliara à mãe e ao irmão.
Proteger a mãe interna para Richard era fundamental para que ele se
mostrasse confiante diante das situações da vida e que pudesse enfrentar
suas angústias depressivas, era o que Richard havia feito neste desenho,
em que a mãe conseguia enfrentar com ele o perseguidor e derrotá-lo.
Klein45 conclui, neste ponto, a análise do caso dizendo que o medo
de Richard de estar com outras crianças na verdade era um ódio
reprimido que ele tinha por elas, consequência do ódio que sentia por
seu pai: “pênis = criança”. Assim, o pênis mau só poderia lhe trazer
crianças más. Diz ainda a autora:
Outro fator determinante na sua fobia de crianças era o ciúme que
sentia do irmão e de qualquer outro filho que a mãe pudesse ter
no futuro. Seus ataques sádicos inconscientes contra os bebês
dentro do corpo da mãe ligavam-se ao ódio pelo pênis do pai, que
também se encontrava dentro dela.46
Klein, em sua conclusão, ainda alega que o mérito da análise foi a
integração do seio bom com o seio mau, o que permitiu a Richard viver
de forma mais tranquila, seus desejos edipianos, sem tanta culpa e
ansiedade, sendo estes conflitos responsáveis em parte por sua fobia.
Assim, com a proteção da mãe boa internalizada que impedia os ataques
da mãe genital, ele podia defender-se dos medos persecutórios em
relação ao pai, fortalecendo assim a posição genital e suas defesas
egóicas.
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Enfim, a intoxicação metafórica dos mapas do inconsciente de
Richard teria sido bem sucedida.
Considerações finais: então era tudo medo dos pipis?
Klein conclui que tudo que Richard viveu nos encontros analíticos e
ainda toda a sua angústia e depressão se deviam ao modo como ele se
relacionava com suas fantasias edipianas, com os objetos internalizados
e genitalizados: pai, mãe e irmão.
Em contrapartida, dizem Deleuze e Guattari sobre tal movimento da
análise kleiniana:
E vejam o que faz Klein com os mapas geopolíticos do pequeno
Richard: ela tira fotos, ela faz decalques, tirem fotos ou sigam o
eixo, estágio genético ou destino estrutural, seu rizoma será
quebrado. Deixarão que vocês vivam e falem, com a condição de
impedir qualquer saída. Quando um rizoma é fechado,
arborificado, acabou, do desejo nada mais passa; porque é
sempre por rizoma que o desejo se move e produz. Toda vez que
o desejo segue uma árvore acontecem as quedas internas que o
fazem declinar e o conduzem à morte; mas o rizoma opera sobre
o desejo por impulsões exteriores e produtivas.47
O eixo arborescente no presente caso é a família, que se reproduz
em todos os seus ramos; ao passo que Richard com seus mapas tenta
expressar suas maquinações desejantes rizomáticas, pois o rizoma 48 é a
imagem que melhor caracteriza a vida desejante do inconsciente:
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O rizoma não se reproduz através de um eixo central; mas se produz
de forma acentrada. Para Deleuze e Guattari, temos um conceito de
inconsciente caracterizado por uma linguística significante; e outro,
onde a linguagem é entendida na perspectiva de uma linguística de
fluxo. Obviamente, em cada caso, aquilo que se pode chamar de
metáfora cumpre funções diversas. Naquele, a metáfora está atrelada à
operação de centralidade de um significante; neste, a metáfora é
obrigada a seguir circuitos descentrados, que se fazem sem uma ordem
transcendente, pois quando Richard desenha navios, é pelos navios
reais da guerra que passa seu desejo. O inconsciente é literal em seu
investimento sócio-histórico. Uma linguística de fluxo melhor se
adequaria ao inconsciente rizomático, pois os trajetos de uma criança
como Richard se produzem diretamente na história, na cultura e na
sociedade, ao invés de serem a irradiação de um significado de base que
se dissemina metaforicamente através de um significante transcendente,
como dissemos inicialmente. É destes funcionamentos coletivos que
Richard trata em seus desenhos, nos quais o território familiar aparece,
necessariamente, porém, este, ao contrário do que pretende a metáfora
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arborescente do inconsciente, não totaliza os mapas infantis.
Inversamente, são os mapas que produzem territórios familiares e não
o contrário; são os rizomas do inconsciente com suas metáforas
instáveis e circunstanciais que produzem a árvore do inconsciente.
O problema, do ponto de vista prático, é que conceber a metáfora
como de concentração do inconsciente no ambiente familiar,
desmobiliza a capacidade de conexão dispersiva própria da vida
desejante. Como Deleuze e Guattari dizem, o rizoma se faz por
impulsões exteriores. Neste caso, apesar da intoxicação metafórica,
talvez se torne possível a Richard reconectar os decalques-metáforas
que a análise produz aos mapas, abrindo o esquema arborescente de
eixo estruturante (Édipo) aos mapas de trajetos histórico-sociais do
inconsciente e, assim, neles novamente potencializar o corpo infantil
em seus recortes criativos. Trata-se de perguntarmos o que pretendemos
com as psicoterapias infantis? Que infância produzimos, de que
inconsciente falamos, com que ferramentas nos aproximamos das
intensidades infantis? Quais os efeitos éticos, estéticos e políticos das
nossas intervenções? Quais os riscos de naturalizarmos a metáfora
como procedimento interior à operação do conceito de inconsciente,
sem conhecermos as condições de produção da vida desejante e o seu
impacto sobre as condições de existência infantil? O estudo de caso do
pequeno Richard, à luz das problematizações de Deleuze e Guattari,
gera desconfortos, inquietações e estranhamentos que nos fazem
pensar...
Notas
*
Psicóloga, Arteterapeuta e Mestre em Educação pela UFRGS. Psicóloga Capsi,
atuando com criancas e adolescentes em Sao Leopoldo- RS
1
RICOEUR, Paul. Metáfora Viva. São Paulo : Loyola, 2000, p.455.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?.Rio de Janeiro: Ed.
34, 1992, p.13.
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INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941)
3
ZOURABICHIVILI, François. Deleuze e a questão da literalidade. In: Edu. Soc.,
Campinas, vol. 26, nº 93, pp. 1309-1321, set./dez., 2005, p.1313.
4 DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998, p. 26.
5 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Capitalisme et Schizophrénie: L’AntiOedipe. Paris: Minuit, 1973 [1972], pp.44-48.
6 ZOURABICHIVILI, Deleuze e a questão da literalidade, op. cit, p.1314; segundo
BLAKE, Terence P. Deleuze and Metaphor, Laruelleandsuperposition: thinking nonreductionwithinteraction, postado em 25/05/2013 no blog do autor, disponível em
http://terenceblake.wordpress.com/2013/05/25/deleuze-and-metaphor-laruelle-andsuperposition-thinking-non-reduction-with-interaction/,acessado em 24/03/2014. Este
autor acredita que Deleuze utiliza a “metáfora maquínica” ao invés de “metáfora
significante”, sendo a consequência desse novo conceito de metáfora que sua área de
estudo deixa de ser a semântica e passa a pragmatática; a esse respeito ver também
CARDOSO JUNIOR, Hélio Rebello.Pragmática menor: Deleuze, imanência e
empirismo, 2 v.: il. (571 f.), Tese de Livre-Docência – Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – Universidade Estadual Paulista, 2005, pp.319-375.
7 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Capitalisme et Schizophrénie: L’AntiOedipe, op. cit.,pp. 247-248.
8 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Capitalisme et Schizophrénie: Mille
Plateaux. Paris: Minuit, 1980, pp.168-169, 177-178.
9 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Lisboa: Ed. Assírio e Alvim, 1995,
p. 353 (a partir de agora AOE).
10AOE, p. 349.
11 O objetivo geral da esquizoanálise é o de propor um novo conceito de inconsciente,
também chamada de “psiquiatria materialista”; a esquizoanálise se baseia nos combates
a uma psicanálise baseada em uma linguística significante, ver HOLLAND, Eugene.
Schizoanalysis. PARR, Adrian (ed.). The Deleuze Dictionary, revised edition.
Edinburgh: Edinburgh University Press, 2011, pp.239-240.
11 MP v.4, p.22.
12 KLEIN, M. Narrativa da análise de uma criança. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
13 KLEIN, M. “Complexo de Édipo à luz das ansiedades arcaicas (1945)”.In: Amor,
culpa e reparação e outros trabalhos, Obras Completasv. 1. Rio de Janeiro: Ed.
Imago, 1996, pp.413-442. (a partir de agora ACR).
14 GROSSKURTH, P. O mundo e a obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago,
1992, p.282 (a partir de agora MOMK)
15
ACR, p.423.
16 MOMK, P. 284.
17DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs, vols. 1 a 4. São Paulo: Ed. 34, 2000 a
2002 (a partir de agora MP v. 1 a 4).
18DELEUZE, G. “O que as crianças dizem” In Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34,
1997(a partir de agora OQCÇASD)
19OQCÇASD, p. 74.
20MPv. 4, p. 52.
21MP v.4, p. 22.
22 Os trabalhos da criança foram feitos utilizando estas cores. Na edição do livro de
Klein, os desenhos aparecem em preto e branco, com legendas referentes às cores.
228
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues
Respeitamos os desenhos originais, acrescentando somente as cores correspondentes
nas figuras aqui apresentadas, a fim de conferir maior realismo aos desenhos.
23 MOMK, p.282.
24 ACR, p. 422-423
25 ACR, p. 419.
26 OQCÇASD, p. 75.
27 ACR, p. 419.
28 ACR, p. 420-421.
29 ACR, p. 422.
30 ACR, p.422.
31 ACR, p. 422.
32 ACR, p. 424.
33 ACR, p. 422.
34 ACR, p. 424.
35 ACR, p. 425.
36 ACR, p.426.
37 ACR, p. 426.
38 ACR, p. 427.
39 ACR, p. 428.
40 ACR, p. 429.
41 ACR, p. 430.
42 ACR, p. 427.
43 ACR, p.430.
44 ACR, p. 430.
45 ACR, p.438.
46 ACR, p. 438-439.
47 MP v. 1, p. 23.
48 Imagem do rizoma disponível em
http://thinkingenterprise.blogspot.com.br/2011/04/rhizome-on-dilemmas-inenterprise.html, acessada em 31/03/2013.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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Palavras-chave:
metáfora;
psicanálise;
Keywords: metaphor, psychoanalysis, linguistics
230
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
linguística
O HISTORIADOR E A METÁFORA*
André Luiz Joanilho
UEL
Resumo: Este texto sustenta que escrita da história é uma metáfora do
passado não reconhecida pelos historiadores, os quais, ao contrário,
buscam o literal nas suas narrativas formadas por documentos que
poderiam ser compreendidos também como metáforas, mas que são
abordados como emulação do real. Do documento ao texto, a metáfora
é esconjurada como ruído não real. No entanto, a escrita não é feita de
verdades e literalidade, mas de imaginação e de fatos da linguagem,
estando na origem dos eventos a dispersão e a descontinuidade.
Abstract: This paper argues that the writing of history is a metaphor of
the past unrecognized by historians, who, in contrast, seek the literal in
their narratives made by documents which could also be understood as
metaphors, but which are treated as the emulation of the real. From the
document to the text, metaphor is banished as unreal noise. However,
writing is not made up of truth and literalness, but of imagination and
facts of language, dispersion and discontinuity being at the source of
events.
Para o historiador a metáfora não existe, ou melhor, não deveria
existir. O discurso histórico é literal, busca o sentido exato dos
acontecimentos, fugindo de quaisquer outras possíveis formas
explicativas. Afinal, o historiador deve explicar e a sua clareza não pode
se confundir com fatos de linguagem, mesmo quando se trata de estilo
de escrita.
Sabemos das figuras de linguagem que as narrativas históricas
lançam mão para se fazer compreendidas. A discussão de Hayden
White (1995) não nos é estranha. Porém, não estamos propondo discutir
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
231
O HISTORIADOR E A METÁFORA
as estruturas narrativas em história e, em seguida, fazer um estudo
tropológico, mas apresentar a relação do historiador com a metáfora. E,
de início, o historiador deve fazer a sua narrativa “transparente” com
relação ao seu objeto, ou pelo menos esse é o aprendizado da disciplina.
Da chamada escola metódica às teorias interpretativas do “linguistic
turn” dos anos oitenta, a marca é a exatidão. Enquanto que os metódicos
sonhavam com uma história cientificista, na qual o documento era uma
expressão do real, os intérpretes contemporâneos pretendem desvendar
os significados dos documentos para se chegar à trama dos eventos do
passado. Porém, tanto uns quanto outros buscam descrever o que
aconteceu e tornar a narrativa uma emulação do que realmente
aconteceu.
Portanto, a exatidão, se podemos dizer que há alguma na escrita da
história, deve ser o norte da narrativa e, no limite, a metáfora deve
acrescentar mais clareza e remeter diretamente ao objetivo desejado se
for utilizada como recurso estilístico. Não deve haver nada além do
literal na narrativa histórica ou não deveria.
Esse mundo fechado do historiador se confronta com a metáfora que
está fora da sua objetividade, justamente no seu material mais precioso:
os documentos. Estes sim, repletos de fatos de linguagem. O documento
nunca é a expressão do que aconteceu mas o material que permite ao
historiador compor quadros narrativos. Pode-se até mesmo dizer que o
documento é uma metáfora do evento.
De um, lado o historiador e a objetividade, de outro o documento
enquanto metáfora do real. O trabalho historiográfico consiste em
transitar entre esses polos opostos do fazer história. Evidentemente que
não se compreende o documento como expressão do que aconteceu,
pois, como iremos considerar adiante, ele não traz consigo tudo o que
aconteceu. Mesmo a reunião de todos os documentos sobre um
determinado evento, não é suficiente, pois, para usar uma metáfora, a
narrativa histórica “não é um geometral”, ou citando Paul Veyne (1982,
p.31): “Os acontecimentos não existem com a consistência de um objeto
concreto. É necessário acrescentar, não importa o que se diga, não
existem também como um ‘geometral’; prefere-se afirmar que eles têm
232
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
André Luiz Joanilho
existência em si mesmos como um cubo ou uma pirâmide: nunca
percebemos todas as faces de um cubo ao mesmo tempo, só temos um
ponto de vista parcial”. Há uma impossibilidade em apreender tudo do
passado.
Mas, além de ser metáfora do real, o documento ele próprio, muitas
vezes é metafórico, ou seja, traz consigo fatos de linguagem. Uma
pintura, por exemplo, remete a algo para além da figuração. Poder-seia dizer que ela é de fato uma representação. Mas o que é uma
representação senão uma metáfora? Uma fotografia é uma
representação, mas também uma metáfora, pois alude a algo que não é
ela própria. Mesmo um documento escrito pode ser compreendido
como postulando metáforas. Podemos tomar como exemplo um artigo
num jornal operário do início do século XX no Brasil:
Anarquia e Revolução
Não devemos abandonar nunca a ideia da revolução. Só ela é
fecunda, só ela produzirá todos os frutos que a anarquia vem
cultivando num imenso labor de mais de meio século. A
revolução é também o único, o exclusivo elemento de conquista
da igualdade e da justiça social (...).
Os nossos esforços devem convergir para a organização do
levante geral das vítimas, pouco nos importando qual seja o ideal
que se batem os revoltados. A anarquia é uma perpétua revolução
e deve sair da revolução; ao passo que a revolução nem sempre
sai e pode mesmo não sair da anarquia.
É pouco provável que os povos só se revoltem definitivamente
quando hajam compreendido a anarquia; eles se revoltarão de
preferência por motivos alheios a tão nobre ideal. A nós,
anarquistas, faltando o impulso e a decisão revolucionária, falta
o senso e a razão de ser na sociedade. Há, entretanto, inúmeros
revolucionários que ignoram completamente a anarquia. Ora, a
sociedade futura deverá sua existência à devastação da atual
esterqueira. Portanto, é preciso que nós nos revoltemos;
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
233
O HISTORIADOR E A METÁFORA
naturalmente com a maior urgência possível. (D.R.F. A Plebe, nº
4 ano II, 15/09/1919, p. 4).
Se o historiador está formando um quadro a respeito da luta de
classes na sociedade brasileira no início do século XX, encontrará farto
material em documentos deste tipo. Haveria clareza e transparência,
afinal o autor do artigo mostra a necessidade de organizar o movimento
revolucionário a partir do ideal anarquista e de que forma a revolução
pode e deve ocorrer. Mas, há uma pletora de metáforas no texto.
“Vítimas”, “frutos”, “nobre ideal”, “a atual esterqueira”, etc., que nos
remete justamente aos fatos de linguagem e ao discurso. Como
dissemos, o documento possui uma duplicidade: composto de
metáforas e ele próprio sendo uma metáfora dos eventos passados.
Assim, de uma história da luta de classes, pode-se passar a uma
história das práticas discursivas. Há discurso e práticas no texto do
militante. Por mais que não se dispusesse a ter posição, ele tem de se
remeter às imagens ou representações sociais correntes, ou melhor, ele
as usa porque tem de usá-las. Não está à sua disposição como numa
prateleira de supermercado na qual faria escolhas. As escolhas, de certo
modo, estão dadas e é a partir disso que podemos compreender as
práticas discursivas.
Comecemos por “nobre ideal”. Se a anarquia luta para exterminar
qualquer diferença social, não deixa de ser sintomático que o termo
“nobre” seja utilizado, palavra que remete à diferenciação, mesmo se
tratando de ideias. A anarquia é nobre, superior, logo os anarquistas
também são superiores e podem conduzir a revolução, portanto o povo.
Ao lado de “nobre” temos o termo “ideal”, também sintomático, pois
sendo a anarquia uma prática, nada teria de idealização, ou melhor, as
suas ideias sairiam da prática revolucionária, como o militante afirma:
“A anarquia é uma perpétua revolução e deve sair da revolução”. É
possível identificar uma prática discursiva a respeito de como os
sujeitos devem proceder ou se conduzir: as ideias anarquistas são
superiores, portanto se impõem “naturalmente”, ou seja, a revolução,
no fim das contas, é uma ação de homens superiores.
234
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
André Luiz Joanilho
Ora, para a história tradicional, ou ainda, para os historiadores que
acreditam na transparência de suas narrativas e o evento, o primeiro
trabalho é justamente “limpar” o documento das metáforas, isto é,
“traduzi-las” para uma linguagem “científica” (as aspas são para marcar
os termos, afinal é o trabalho do historiador explicar o que aconteceu e,
como foi dito acima, a metáfora não deveria existir). Porém, de modo
contraditório, não é possível ao historiador escapar da metáfora. Logo,
o discurso histórico é metafórico, ou ainda, o discurso científico é
metafórico. Vejamos um exemplo atual: como explicar o Bóson de
Higgins?
O bóson de Higgs é um elemento-chave da estrutura fundamental
da matéria conhecida como a "Partícula de Deus". No "modelo
padrão", a teoria da estrutura fundamental da matéria elaborada
nos anos 60 para descrever todas as partículas e forças do
universo, o bóson de Higgs é considerado a partícula que
proporciona sua massa a todas as demais. Ao tentar isolar os
menores componentes da matéria, os físicos descobriram várias
séries de partículas elementais.
Em 1964, por dedução, o físico britânico Peter Higgs postulou que
existia o bóson que hoje leva seu nome e que devia dar sua massa a
outras partículas. "A ideia é que existem partículas que se chocam
permanentemente com bósons de Higgs. Estes choques freiam seu
movimento, que se torna mais lento, e dão a eles a aparência de uma
massa", explica o físico e filósofo Etienne Klein.
Klein compara este fenômeno com um homem que tenta passar
correndo em meio a uma multidão, que freia sua corrida e faz com
que diminua sua velocidade. Também compara o campo de Higgs
com uma espécie de cola em meio à qual se encontrariam
relativamente aderidas as partículas, o que seria percebido como
uma
massa.
(AFP,
08/10/2013,
http://br.noticias.yahoo.com/b%C3%B3son-higgspart%C3%ADcula-chave-f%C3%ADsica-fundamental142036455.html)
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O HISTORIADOR E A METÁFORA
Este simples exemplo nos mostra que nenhum discurso escapa do
metafórico, muito menos a história. Afinal, um homem “correndo no
meio a uma multidão, que freia a sua corrida” é uma boa explicação
para os bósons.
Porém, toda a história da ciência, se podemos dizer que há uma
ciência, é, além do mais, a história da separação entre o metafórico e o
literal. O ponto de inflexão, nas narrativas que buscam a origem do
pensamento científico, teria sido Aristóteles. Nele nasceu a definição
do discurso verdadeiro ou literal e o metafórico, sempre colocado como
inferior em relação ao literal já que este explicaria o real e “junto à
Aristóteles, o julgamento negativo (...) do que ele chama de metáfora
em importantes campos, na sua lógica e na sua filosofia da natureza, é
bem mais marcado. Ele sustenta, por exemplo, que é preciso evitar a
metáfora e as expressões metafóricas numa definição” (LLOYD, 1993,
p.42)1.
Essa separação não cessou de fazer caso no discurso científico. A
metáfora é boa para se fazer poesia, mas negativa para a explicação
científica (ibidem, p.44). E não somente para Aristóteles, mas também
para os historiadores da ciência. Seguindo ainda a análise sobre este
assunto, Geoffrey Lloyd afirma que o seu “argumento é então que a
distinção entre o literal e o metafórico – como a distinção entre mito
(como ficção) e a narrativa racional – não seria somente, na origem, um
elemento neutro e inocente de análise lógica, mas uma arma forjada
para defender um território, expulsar o inimigo, humilhar os rivais”
(ibidem, p.46)2. Aristóteles utiliza a distinção para fazer a sua lógica
superior aquela dos seus rivais. Nenhuma inocência ou superioridade
do científico sobre o mito, apenas um jogo de forças que impõe o literal
como superior, devendo o metafórico se ater ao literário, pois, “na sua
exigência de clareza, ele (Aristóteles) exclui a metáfora porque tudo
que se diz através de metáfora é obscuro” (ibidem, p.42) 3.
Porém, sabe-se que o discurso científico recorre às metáforas e aos
seus próprios mitos (o que seria o Big Bang senão uma ótima metáfora)
e o discurso histórico é pleno delas. A sua pretensa objetividade se
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
André Luiz Joanilho
perde ao emaranhado de práticas discursivas, quer dizer, não há uma
segunda natureza nos discursos. Há fatos de linguagem que remetem a
uma espécie de positividade. O que está dito quer dizer exatamente o
que está dito. A metáfora, neste aspecto, não é um fato de linguagem
que remete a um sentido que estaria aquém ou além do próprio discurso,
mas o informa. Porém, na sua maior parte, os historiadores reconhecem
nas metáforas um sentido além do que está dito. Há algo na superfície
que torna opaco o seu verdadeiro sentido. O historiador deve trazer à
luz o que não está aparente e deve encontrar o que realmente se quis
dizer. O pensamento de Aristóteles ainda frequenta as práticas dos
historiadores. Vejamos:
Empédocles tinha dito que o mar é salgado porque ele seria o
suor da terra (...) Mas Aristóteles fez o seguinte comentário:
‘Dizer tal coisa pode ser apropriada por razões poéticas – pois a
metáfora é poética – mas isso não serve para compreender a
natureza [da coisa].
Outras imagens utilizadas por Empédocles e determinados
filósofos pré-socráticos foram condenadas porque elas seriam ou
obscuras, ou grosseiras, ou ainda que elas precisam ser
nuançadas, ou então porque as similitudes sobre as quais são
fundadas eram superficiais, ou até mesmo porque os exemplos
comparados não tem algum ponto em comum (ibidem, p.43)4.
É perceptível o quanto este pensamento ainda persiste no discurso
científico e, sendo a narrativa histórica uma tentativa de emular este
tipo de discurso, nas formas de narrar que se tornaram inerentes à
ciência. A lógica da explicação deve ser feita com base na prova,
estando o documento disponível para que se efetive esse discurso. Não
deve haver obscuridade ou conflito, apenas clareza e comprovação.
Então, podemos compreender que há um espaço entre o documento
e a narrativa histórica, sendo preenchido por explicação e não qualquer
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
237
O HISTORIADOR E A METÁFORA
uma. Deve ser uma explicação “densa” que produza uma narrativa que
não deixe nenhum vão entre o literal e a metáfora.
Mas o que fabrica o historiador com a densidade da sua narrativa?
Efeito de real, para citar a expressão de Roland Barthes (1968), porém
de modo diferente. Enquanto na literatura este efeito produz o
verossímil, o historiador acredita que, pelo fato de utilizar documento,
de qualquer tipo, para a sua narrativa, trata do real. Tanto que a narrativa
é algo que quase não frequenta as preocupações de quem escreve
história, pois é dado como incontornável o fato de se escrever o real. É
notável que nas graduações de história, ou na formação de historiadores
em outros países, não se vê uma disciplina “Narrativa em História”.
Discute-se teoria, às vezes ainda, filosofia da história, historiografia,
mas quase nada sobre documentos e nada sobre argumentação.
Essa naturalização da escrita é herança da história cientificista do
século XIX. O discurso científico é expressão do real, porém, como
estamos apontando, ele deixa escapar metáforas e, no caso do
historiador, a sua duplicação no documento é como um quarto de
espelhos: a imagem refletida pela narrativa não deixa de ser outra
imagem. Logo, não é possível apreender o real por essa duplicação em
escala.
Haveria alguma possibilidade de se apreender o que realmente
aconteceu? Somente se o passado se tornasse fixo, imóvel. Porém, o
que podemos apreender é a polissemia dos acontecimentos da mesma
maneira que a memória individual é polissêmica. Nunca damos a
mesma explicação para o que nos aconteceu e nem o mesmo sentido.
Mudamos e o nosso passado muda. No caso da história há as relações
sociais que se constituem e desfazem ao longo do tempo. Portanto, há
um agravante. Nunca o historiador estará em condições de fixar o que
realmente aconteceu pela mobilidade do presente e pela
impossibilidade temporal, ou melhor, pelo paradoxo geográfico do
conto de Borges: um rei queria o mapa perfeito e os geógrafos se
esforçaram tanto que o mapa ficou do tamanho do próprio reino. Uma
narrativa que apreenda o real levará tanto tempo para ser feita quanto o
próprio acontecimento e se isso for possível, a sua leitura levará o
mesmo tanto.
238
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
André Luiz Joanilho
Podemos, como outro exemplo, reproduzir parte da narrativa da vida
de Danton:
Danton, como Robespierre e Marat, foi uma criação da
Revolução (Francesa). Emergiu do enorme acontecimento sem
qualquer aviso prévio. Apesar dos esforços de seus biógrafos em
buscar na sua juventude traços que lhe anunciassem a carreira, é
difícil discernir no jovem Danton de seus retratos um
personagem já destinado à futura Revolução (...) Nas vésperas da
Revolução era um advogado modesto, menos desprovido de
recursos do que o disseram os seus adversários (para melhor
salientar o caráter súbito e inconveniente de sua fortuna), menos
próspero do que o garantem seus partidários. Sem dúvida possuía
a Encyclopédie em sua biblioteca, entre os volumes de Plutarco
e Beccaria, mas tratava-se de uma propriedade então quase
obrigatória, o que não faz concluir que ele se alimentava de
Diderot. Como primeira causa, tivera de defender um pastor
contra um senhor, mas a que advogado não coubera naqueles
tempos tratar de tal assunto de eleição? Nada disso basta para
explicar um engajamento revolucionário (FURET e OZOUF,
1989, p.240).
O efeito produzido é a sensação de que se trata da vida de Danton,
porém, os documentos – obras biográficas, biblioteca pessoal, palavras
de detratores, palavras de partidários – que emulariam um real são
metáforas do que foi Danton e neles próprios vamos encontrar as
metáforas que os constituem. Nesta duplicidade, o historiador produz o
efeito de real que não deixa de ser também uma metáfora, pois não é
efetivamente o narrado, mas resultante de um jogo metafórico que deixa
de ser duplo para ser tríplice, ou seja, entre o que está representado no
documento, ele próprio e a escrita do historiador.
Danton revolucionário não está exatamente onde se poderia pensar,
na linearidade temporal da sua vida, mas numa teia de relações que é
impossível de reconstituir inteiramente. Por isso, deve o historiador
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
239
O HISTORIADOR E A METÁFORA
praticar esse jogo tríplice para produzir o efeito de real. Porém, quase
não há consciência do jogo e muitos o tomam como o próprio quadro
retratado na narrativa, não se afastando o suficiente do que seria o
objeto da escrita.
Não encontramos Danton antes de 1789, mas na Revolução. Nela
emerge o personagem. O historiador percorre essa trajetória por elipses
que são preenchidas pela explicação, logo o personagem só se torna
pleno quando eclode a Revolução e não antes. Danton, enquanto
revolucionário, só o pode ser após 1789, portanto há uma
“metaforização” da narrativa, mesmo porque “trata-se de ordenar o
heterogêneo e, mais efetivamente, encontrar o Outro apenas no plano
da imaginação – portanto, sem sair do território do Mesmo” (OHARA,
2013, p.117-212). A imaginação, que podemos substituir por
explicação, é o jogo estabelecido entre acontecimento, documento e
narrativa.
Este jogo dá a sensação de que se trata da verdade, pois abordaria o
que realmente aconteceu, por isso, recorre aos documentos de qualquer
espécie e “a verdade em história deriva, em última instância, das
referências aos discursos das testemunhas” (HULAK, 2012, p.26) 5.
Sem este recurso a história não poderia se estabelecer. O documento é
o zero do discurso histórico e nos passa a sensação de que ele é total,
pode dar conta do acontecimento, por isso o historiador chama a
testemunha para estabelecer a veracidade da sua narrativa. No início
temos o documento e todo o resto decorre deste epifenômeno da
memória que, no seu estado bruto, será o campo de atuação do
historiador. Há um claro sentimento que a história está estabelecida nos
próprios acontecimentos e a memória é a testemunha chamada para
comprovar a narrativa do historiador.
Porém, convém lembrar que o primeiro gesto do historiador
“começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em
‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira”
(CERTEAU, 1982, p.81). Por isso mesmo que não se toma o passado
pelo o que ele é. Podemos retomar o artigo escrito pelo militante
anarquista, citado acima. Primeira questão, qual foi o lugar de sua
produção? Segunda, quais as intenções do articulista? Terceira, em que
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
André Luiz Joanilho
série de produção se inseria o artigo? Ao respondê-las é perceptível a
distância que nos separa do artigo, não apenas temporal, também pela
própria produção. Afinal, estamos tomando-o por documento, enquanto
o articulista o tomava por uma peça de conscientização e de
compreensão da prática anarquista.
Apartamos o documento de seu local de produção, de suas intenções
iniciais, de sua série e o inserimos em outra produção, outra intenção e
outra série, aquelas do historiador. Este, pela explicação, torna o
documento pleno de sentido, mas qual? O da explicação histórica,
assim, recortando o documento, o historiador lhe dá um sentido
específico e o torna “pleno” de certezas. Não há dúvida, ambiguidade,
imprecisão na narrativa, somente a certeza de um vetor temporal que
evoca o passado para estabelecer o presente. Afastada a metáfora do
literal, a explicação histórica somente pode se ver como identitária. A
metáfora é a dispersão e movimento, enquanto o literal é a unidade e
imobilidade.
Podemos dizer, utilizando o conceito de heterotopia de Michel
Foucault (1994), que a metáfora é outro espaço no qual o historiador
tradicional não se reconhece, aliás não o deseja. A metáfora é uma
heterotopia, espaço asilar – dos loucos, dos mortos, dos leprosos, dos
velhos, dos marginais –, por isso deve ser afastada, pois é a não
identidade, o lugar dos desvios que os discursos identitários tratam de
normatizar e normalizar.
Daí é possível compreender porque a escrita do historiador é tão
normatizada; porque deve conter determinados padrões explicativos
para se fazer entender, aceita e compreendida. Ela remete à identidade
que escapa todo o tempo por desvãos metafóricos. Assim, para conjurar
o caráter errático da metáfora, o historiador faz apelo para as ideologias
ou para as representações, dependendo da ótica adotada, pois tanto as
primeiras quanto as segundas são dotadas de sentidos únicos se são bem
“trabalhadas” pela escrita.
Mas é interessante perceber que esses padrões tão arraigados são
também dispersos no tempo. A escrita historiográfica com suas certezas
de hoje se tornará erro amanhã, do mesmo modo que as de ontem se
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
241
O HISTORIADOR E A METÁFORA
tornaram obsoletas, pueris, inocentes ou mal intencionadas e erradas. A
conjuração da metáfora só é possível no instante que se produz escrita
literal, mas ela permanece enquanto heterotopia do próprio discurso.
Mas é possível outra escrita da história? Não totalmente. Se
pensarmos junto com Michel de Certeau a produção historiográfica,
deveremos reconhecer, de início, o lugar de produção. Há uma forma
de produzir história e ela está determinada pela “instituição histórica”,
isto é, o fazer deve ser feito de acordo com padrões e normas
“científicos” ou, no melhor dos casos, acadêmicos. Não é qualquer um
que pode escrever história, mas aqueles dotados de determinados
conhecimentos e práticas, pois a escrita será validada pelos pares e “este
discurso – e o grupo que o produz – faz o historiador, mesmo que a
ideologia atomista de uma profissão ‘liberal’ mantenha a ficção do
sujeito autor e deixe de acreditar que a pesquisa individual constrói a
história” (CERTEAU, 1982, p.72). A crença num sujeito independente
e produtor de saber é correlata à noção de que a sua escrita é sempre
literal e os documentos se rementem ao real.
A instituição História é o lugar no qual permite ou interdita a escrita,
afinal a instituição “torna possíveis certas pesquisas em função de
conjunturas e problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis;
exclui do discurso aquilo que é sua condição num momento dado;
representa o papel de uma censura com relação aos postulados presentes
na análise” (ibidem, p.77). A possibilidade ou a interdição se
apresentam como “naturais”, pois é assim que tem de ser ou isto é
realmente importante, aquilo nem tanto e aquilo outro nem se deve
falar. Há assuntos completamente tabus na nossa sociedade, mas disso
não queremos saber.
Além do interdito há o normatizado e, seguindo ainda Michel de
Certeau, o historiador:
trabalha sobre um material para transformá-lo em história.
Empreende uma manipulação que, como as outras, obedece a
regras. Manipulação semelhante é aquela feita com o mineral já
refinado. Transformando inicialmente matérias-primas (uma
242
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
André Luiz Joanilho
informação primária) em produtos standard (informações
secundárias), ele os transporta de uma região da cultura (as
‘curiosidades’, os arquivos, as coleções, etc.) para outra (a
história) (ibidem, p.79).
Não esquecendo de que os próprios arquivos já são “refinados”,
quer dizer, já passaram por uma seleção, uma separação. Portanto, o
historiador, ao obedecer a regras de produção, deve enquadrar a sua
escrita numa espécie de “gosto médio” de seus pares. Este
procedimento permite a aceitação do produto. Separar e reunir: a
operação do historiador implica numa produção num sentido mais
integral, isto é, ele produz história. Para ajudar no raciocínio: “longe de
aceitar os ‘dados’, ele os constitui. O material é criado por ações
combinadas, que o recortam no universo do uso, que vão procurá-lo
também fora das fronteiras do uso, e que o destinam a um reemprego
coerente” (ibidem, p.81).
Isso nos leva a questão, o objeto histórico se encontra à espera do
historiador para ser desvendado? Se o material é criado pelo historiador,
logo ele não está dado, não se encontra disponível para ser garimpado
como ouro de aluvião. Ele deve ser produzido plenamente, logo, o
objeto não é natural. Não é encontrado naturalmente. Mais ceticamente
pode-se dizer que o fato “Segunda Guerra Mundial” está dado. Sim num
sentido, não em outro. O que se escolhe para narrar da Segunda Guerra?
Qual é a abordagem? Qual o material que será observado? Se ficarmos
no nível das estratégias de aliados e eixo, será um recorte, uma criação,
pois a guerra não se desenrola unicamente nos bunkers dos ministérios
da defesa. A possibilidade de criar um objeto cresce exponencialmente
quando multiplicamos o efeito da escrita para “uma visão de baixo”,
aquela dos soldados. Podemos ainda estender para as famílias, para as
economias das pequenas cidades, para o sistema de saúde e assim por
diante. Todos esses “objetos” não estão prontos à espera da narrativa
que os traga a lume. São produções historiográficas.
A escrita é a mise em scène de uma representação histórica, pois
busca a identidade, mas, se compreendermos que o relato histórico
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
243
O HISTORIADOR E A METÁFORA
como metáfora, então nos afastamos da hipótese identitária e passamos
à diversidade, ou ainda, a metáfora é a dispersão do sujeito constituinte.
Porém, a história praticada marca a identidade, pelo menos enquanto
fundamento de sua própria formulação e “não existe relato histórico no
qual não esteja explicitada a relação com o corpo social e com uma
instituição de saber” (ibidem, p.93).
Este pertencimento impede, até certo ponto, encontrar na origem de
uma série de eventos a dispersão, a heterotopia. Por isso, o recurso à
citação é exaustiva nos discursos científicos, pois:
a linguagem citada tem por função comprovar o discurso: como
referencial, introduz nele um efeito de real; e por seu
esgotamento remete, discretamente, a um lugar de autoridade.
Sob este aspecto, a estrutura desdobrada do discurso funciona à
maneira de uma maquinaria que extrai da citação uma
verossimilhança do relato e uma validade do saber. Ela produz
credibilidade (ibidem, p.101).
A escrita ganha validade e atesta “o que aconteceu”, produzindo o
efeito de real desejado e tornando o discurso histórico verdadeiro. Por
isso, a metáfora deve passar ao largo. Ela instaura o quiproquó e a
dispersão. Ela pode ser aceita se domesticada, se o seu uso for para dar
mais estilo ao efeito de real, mas no estado bruto, tomando o discurso
como metáfora do passado, o documento como metáfora do real e as
metáforas no interior do próprio documento, isso produz um intenso
ruído e não instaura a identidade.
Por isso que “citando, o discurso transforma o citado em fonte de
credibilidade e léxico de um saber. Mas, por isso mesmo, coloca o leitor
na posição do que é citado; ele o introduz na relação entre um saber e
um não-saber. Dito de outra maneira, o discurso produz um contrato
enunciativo entre o remetente e o destinatário” (ibidem, p.102).
Incluindo o leitor na relação de saber, o discurso histórico provoca a
sensação de que o que ele produz é a identidade do sujeito apartado dela
244
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
André Luiz Joanilho
pelo tempo que passa, daí também o exercício da cronologia nos relatos.
A temporalidade passado-presente produz o efeito de que o sujeito
destinatário está no topo de uma cadeia evolutiva, portanto, mais
consciente e mais “sabedor” do que aqueles que viveram em outros
tempos.
O continuum na escrita é o corolário da identidade, a certeza de que
não haverá distância ou corte na constituição do sujeito:
A história contínua é o correlato indispensável à função
fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou
poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada dispersará
sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de
que o sujeito poderá um dia – sob a forma da consciência
histórica –, se apropriar, novamente, de todas essas coisas
mantidas à distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre
elas e encontrar o que se pode chamar sua morada (FOUCAULT,
1986, p.14-15).
Finalmente poderíamos perguntar se é possível uma história da
dispersão. Sim, ela teria de lançar mão de outros procedimentos para se
constituir. Temos um ótimo exemplo com a História da Loucura, de
Michel Foucault. Ele não persegue ao longo da sua escrita a evolução
do conceito de loucura e nem de como, infantilmente, outras eras
tratavam os loucos, mas trata da própria constituição da ideia de
loucura, ou seja, trata dos discursos que conformaram a prática em torno
da loucura em cada época, portanto, não é uma curva evolutiva, mas
quadros que se formaram num determinado momento e depois
desapareceram nos levando a pensar que o nosso próprio quadro sobre
a loucura irá desaparecer para dar lugar a novas práticas sociais.
Nesse tipo de história, não temos a busca pela constituição da
identidade, entendida ela própria como fruto de práticas. Dessa forma,
temos no início a metáfora, a remissão a algo que essencialmente não é
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O HISTORIADOR E A METÁFORA
a verdade, mas formas de dizer que existem práticas que constituem a
verdade e de imaginá-las.
A metáfora, se o historiador adotá-la, o lembrará de que o discurso
é um jogo de remissões e de imaginação. Talvez, assim, poder-se-ia
descobrir o papel do historiador na sociedade: contar história.
Notas
*
Este texto foi possível graças à bolsa-produtividade da Fundação Araucária.
“Mais chez Aristote, le jugement négatif (...) de ce qu’il appelle metaphora dans des
domaines improtants, à la fois dans sa logique et dans sa philosophie de la nature, est
bien plus marqué. Il soutient par exemple qu’il faut éviter la métaphore et les
expressions métaphoriques dans la définition.”
2 “Mon argument est donc que la distinction entre le littéral et me métaphorique –
comme la distinction entre me lythe (en tant que fiction) et le récit rationnel – n’était
pas seulement, à l’origine, un élément neutre et innocent d’analyse logique, mais une
arme forgée pour défendre un territoire, repousser l’ennemi, humilier les rivaux.”
3 “Dans son exigence de clarté, il exclut la métaphore parce que ‘tout ce qui se dit par
métaphore est obscur.”
4 “Dire cela est peut-être approprié pour des raisons poétiques – car la métaphore est
poétique – mais ça ne l’est pas pour compreendre la nature [de la chose]. D’autres
images utilisées par Empedocle et certains philosophes présocratiques sont condamnées
parce que qu’elles sont soit obscures, soit grossières, ou qu’elles ont besoin d’être
nuancées, ou parce que les similitudes sur lesquelles elles sont fondées sont
superficielles, ou même parce que les exemples comparées n’ont aucun point
commun”.
5 “La vérité en histoire dérive, en dernière instance, de la visée référentielle des discours
des témoins.”
1
Referências bibliográficas
CERTEAU, M. (1982). A escrita da História. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1982.
FOUCAULT, M. (1986). A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária.
FOUCAULT, M. (1994). Dits et écrits, T IV, “Des espaces autres”, n°
360, pp. 752 - 762, Gallimard, Nrf, Paris.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
André Luiz Joanilho
FURET, F. e OZOUF, M. (1989). Dicionário Crítico da Revolução
Francesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
HULAK, F. (2012). Sociétés et Mentalités: La science historique de
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LLOYD, G. E. R. (1993). Pour en finir avec les mentalités. Paris:
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considerações sobre ‘História e Estrutura’ de Michel de Certeau”.
In : História da historiografia, nº 12, agosto 2013. Ouro Preto.
UFOP, pp. 197-212.
BARTHES, R. (1968). “L’Effet de reel”. In: Communications, no 11.
VEYNE, P. (1982). Como se escreve a história. Brasília: Editora UnB.
WHITE, H. (1995). Meta-história. São Paulo: Edusp.
Palavras-chave: História; escrita; literalidade
Keywords: History; writing; literalness
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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O HISTORIADOR E A METÁFORA
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DAS RELAÇÕES DE SENTIDO
NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A
METÁFORA PRODUZ O ACONTECIMENTO
Mariângela Peccioli Galli Joanilho
UEL
Resumo: Este artigo traz uma análise da designação da palavra
‘língua’ em jornais da Primeira República (1889-1930). O objetivo é
compreender como sua designação é estabelecida nas metáforas que
produzem os sentidos sobre a palavra língua, as quais mostram que a
enunciação sobre a língua, na relação entre o nome língua e outras
formas empregadas, assegura a construção da identidade e do sujeito
nacional.
Abstract: This paper presents an analysis of the designation of the word
‘language’ in newspapers published during the First Republic in Brazil
(1889-1930). The aim is to understand how the designation of the word
is established in the metaphors engaged in producing its senses,
metaphors which show that what is said about language, in the relation
between the name ‘language’ and other names employed, ensures the
construction of identity and of the national subject.
1. Linguagem, metáfora e subjetivação
Toda a experiência em que se manifesta uma subjetividade e em que
se coloca a produção de sentidos envolve modos historicamente
peculiares de se compreender a própria experiência de si. E estas
experiências não se fazem sem se passar pela linguagem.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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DAS RELAÇÕES DE SENTIDO
NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA
PRODUZ O ACONTECIMENTO
Escolhi, como pesquisadora em Ciências da Linguagem, dedicar-me
de modo direto à tarefa de estudar a instanciação do sentido metafórico.
Neste estudo, como parte de meu percurso anterior, procurei discutir o
fenômeno da constituição do sentido metafórico e sua relação com a
memória nas discussões que envolvem a formulação do conceito de
língua nacional e, consequentemente, na configuração do processo
identitário.
Veremos que a metáfora é uma memória que se apresenta em
diversos textos. E, como memória, “lembra e esquece e abre caminho
para a mudança” (Guimarães, 1998, p.88). Veremos, também, no caso
dos textos que apresentaremos que o sentido é uma relação do corpo
com as palavras da e na língua. O que permite o deslocamento das
designações entre o corpo e a língua é, como mostraremos a seguir, o
efeito sobre os enunciados de construções metafóricas que aparecem no
texto em um movimento constante de retomadas e reconfigurações
construindo, para a língua, uma modalidade de existência
particularizante, que opera a sua institucionalização.
2. Tempo, língua e sentido
Na tentativa de oferecer uma compreensão adequada do processo
metafórico e também da forma como este processo introduz uma
temporalidade na atividade linguageira, passo a enumerar, apresentar e
comentar rapidamente algumas teses do gramático francês do século
XVIII, César Chesneau Dumarsais (1988), produzidas em seu Des
tropes ou des différents sens, publicado, pela primeira vez, em 1730,
em Paris.
As figuras de significação ou tropos estão no centro de sua reflexão
teórica. O tropo é para ele um fato de discurso, mas que não tem outra
existência que não seja fora da gramática ou, mais especificamente, fora
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Mariângela Peccioli Galli Joanilho
das relações entre os elementos da língua. Passemos então a enunciar
suas teses.
2.1 Primeira tese: Há uma pulsão/vontade individual que legitima
os sentidos da língua
Dumarsais propõe a seguinte definição para a metáfora:
La métaphore est une figure par laquelle on transporte, pour
ainsi dire, la signification propre d’un mot à une autre
signification qui ne lui convient qu’en vertu d’une comparaison
qui est dans l’esprit. Un mot pris dans un sens métaphorique
perd sa signification propre, et prend une nouvelle qui ne se
présente à l’esprit que par la comparaison que l’on fait entre le
sens propre de ce mot, et ce qu’on lui compare (DUMARSAIS,
1988, p.135).
De certa maneira, para o autor, o sentido próprio recobre o literal e
o sentido espiritual estaria ligado ao literal, na medida em que todo o
transporte (de um sentido a outro) se faz por meio de uma comparação
que está no espírito, numa “pulsão/vontade” individual. Há um
engendramento que existe entre sentidos que estão garantidos na
língua e um desejo do locutor. Isso faz com que Catherine Détrie
(2001) afirme que a contribuição fundamental de Dumarsais seja esta
de colocar precisamente o papel do sujeito falante na emergência do
fato metafórico. Assim, a autora explica:
(…) la métaphore n’a d’existence que par la volonté d’un sujet
parlant de travailler la signification d’un mot et de la modifier
en fonction “d’une comparaison qui est dans l’esprit” de celui
qui sollicite une expression métaphorique. Il enrichit ensuite sa
réflexion en mettant en relief le rôle de la syntaxe dans le fait
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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DAS RELAÇÕES DE SENTIDO
NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA
PRODUZ O ACONTECIMENTO
métaphorique. Ce deux points n’avaient pas été précisément
envisagés avant lui (DÉTRIE, 2001, p.48).
Mas resta ainda, na perspectiva de Dumarsais, um caráter de
transporte de sentido para a metáfora, isto é, para ele, a metáfora é
descrita em termos de uma transferência de significação, que se faz no
“espírito” do locutor.
A distinção entre sentido literal e sentido próprio se faz na medida
em que o primeiro se define, ainda para Dumarsais, como a significação
que a palavra apresenta imediatamente ao espírito daquele que conhece
a língua. Haveria então uma relação constitutiva entre os dois sentidos,
algo que se definiria como se o sentido literal fosse uma significação
que passasse necessariamente pelo locutor e o sentido próprio dissesse
respeito ao sentido lexicalizado, na medida em que a anterioridade (a
literalidade) se faria no “espírito” do falante, sujeito legitimador dos
sentidos da língua. O “constitutivo”, nesse caso, designaria, então, não
uma constituição dada, mas um processo de instauração.
Isso acontece porque, para Dumarsais, o sentido figurado funciona
de forma que faz parte da “vontade” do locutor na expressão de suas
ideias, de seus enunciados. Détrie (idem, p.45) chama a atenção para
isso, quando comenta que, para Dumarsais, “(…) le choix du trope
correspond de la part du locuteur à une volonté d’adéquation maximale
entre la volonté de dire et de la façon dont il le dit”. Isto é, ainda como
propõe a autora, o efeito do tropo em Dumarsais é o de revelar uma
ideia principal, por meio de qualquer outra ideia acessória, de dar mais
energia às nossas expressões, de ornamentar o discurso e de torná-lo
mais nobre, enfim o tropo permite enriquecer a língua, multiplicando o
uso de uma mesma palavra. Ou seja: O sentido, para ele, é algo que se
faz na relação entre a vontade do sujeito (o desejo individual de
significar) e a sintaxe da língua.
252
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Mariângela Peccioli Galli Joanilho
2.2 Segunda tese: Todos os fenômenos semânticos podem ser
explicados relativamente à teoria das figuras
O quadro estabelecido por Dumarsais sobre a relação entre as figuras
e a realidade apresenta a formulação de uma teoria da significação, pois
suas hipóteses se voltam para conceber em toda língua a existência de
um conjunto de ligações entre sons-ideias, a partir do qual todos os
fenômenos semânticos podem ser explicados relativamente à teoria das
figuras; assim, a teoria dos Tropos estaria construída de tal maneira, que
só valeria se pudesse ser explicada a partir desses princípios. Vemos
então Dumarsais fazer avançar questões da ordem e do funcionamento
da linguagem e das línguas. Sabemos que estas questões são trazidas
por outras teorias, não pelas mesmas vias, mas por vias que se resvalam
e se tocam, por pontos de sentido (o efeito metafórico de Pêcheux, os
eixos metafórico e metonímico de Jakobson e de Milner) e, por que não,
de não-sentido (o nonsense de Lacan), por pontos instauradores das
questões da significação, que trazem consigo múltiplos usos e múltiplas
potencialidades passíveis de inúmeros enriquecimentos para o que
envolve a conhecida fórmula qualquer coisa colocada no lugar de uma
outra.
Esta segunda tese está estreitamente relacionada a uma terceira e
última, que formularemos da seguinte maneira:
2.3 Terceira tese: Existe um arbitrário semântico fundador das
relações de sentido na linguagem
Para falar deste arbitrário semântico, tomaremos as considerações
de Auroux (1979), em La sémiotique des encyclopedistes. Nesta obra,
o linguista discute amplamente as formulações do gramático sobre a
teoria das figuras relacionada ao estudo genético da língua – ou seja, ao
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DAS RELAÇÕES DE SENTIDO
NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA
PRODUZ O ACONTECIMENTO
seu funcionamento na gramática, e nas redes parafrásticas estabelecidas
pela tradução.
Assim, para Auroux, ao arbitrário da teoria da significação, a teoria
dos Tropos inclui algo como se fosse um contraditório fundador das
relações de significação, isto é, um arbitrário semântico, de forma que,
pela via dos Iluministas, dizer que uma palavra ou uma expressão muda
de sentido, significa dizer que ela designa uma ideia que não é a sua
significação, seu sentido próprio. Enfim, qualquer que seja a situação,
a teoria das figuras limita os efeitos do arbitrário semântico que ela
permite descrever, a partir do que o autor chama de efeito de sentido da
figura, produzido com base nas relações entre designação, tradução e
paráfrase, operações que preservariam esse arbitrário semântico. Nas
palavras do autor:
Du moment qu’on admet l’universalité des idées, comme
représentations du monde et comme significations du langage,
cette équivalence est préservée lors de la traduction. Soit qu’une
expression manque et qu’on la rende par une paraphrase, soit
qu’on traduise le sens propre d’un terme par l’emploi figuré d’un
terme qui n’a pas le même sens propre, le Trope préserve en
chaque cas l’identité de ce dont on parle. (...) La traduction est
doublement concernée par cet effet de sens; d’un côté elle doit
l’assigner tel qu’en lui-même, de l’autre elle doit le traduire
(AUROUX, 1979, p.286-287).
Por um lado, deve-se, então, garantir o termo e, por outro, deve-se
traduzi-lo. Ainda, segundo Auroux:
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Mariângela Peccioli Galli Joanilho
Une conclusion s’impose immédiatement: la traduction met en
evidence une scission
fondamentale entre figuration et
signification. Nous nommons signification d’une expression une
idée qui comme b est designée par cette expression à la suite d’un
processus de figuration. (…) Dans une langue donnée, les figures
sont différentes façons de présenter une même pensée qui lui
confèrent des qualités adjacentes (ao qual conferimos qualidades
adjacentes). Dans des langues différentes, les différences de
figuration, c’est-à-dire l’arbitraire sémantique, sont également
différentes façons de présenter le savoir vrai du monde, qui
donnent a ces langues leur visage particulier et leurs qualités
propres. Ou seja : l’arbitraire demeure l’accidentel et
l’accessoire, contingence irréductible qui, constituant l’esprit ou
le génie de chaque peuple, exprime pourtant une même raison
universelle sous de teintes différentes. (...) Les figures ne sont
pourtant pas sans effet sur la connaissance (AUROUX, 1979,
p.288-289).
É um belo enunciado produzido por Auroux este que propõe a razão
universal pintada por tintas diferentes, que traz toda a força das questões
que envolvem a significação do processo metafórico, notadamente
quando se afirma que são as figuras que garantem as diferenças entre as
línguas. Questões anunciadas e desenvolvidas por Dumarsais, pelos
enciclopedistas franceses, das quais estamos aqui, tentando tocar alguns
pontos sensíveis, para, mais uma vez, tentar mostrar como o processo
metafórico ultrapassa a questão do desvio, do afastamento e das
divisões, nos caminhos constitutivos das relações de sentido na
linguagem.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
255
DAS RELAÇÕES DE SENTIDO
NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA
PRODUZ O ACONTECIMENTO
3. Língua, metáfora e memória
Como ficariam então todas estas reflexões sobre o sentido
metafórico trazidas agora para a produção das singularidades, quando
se pensa a discussão da língua nacional no Brasil do início do século
XX?
Na perspectiva teórica da Semântica do Acontecimento ou dos
estudos históricos da enunciação, perspectiva na qual me coloco para
refletir sobre a questão da significação na linguagem, não há como falar
de sentido sem falar de memória, ou falar de memória, sem falar de
sentido.
Pretendemos tomar esse assunto em sua dimensão histórica, ou seja,
tentar compreender que práticas fizeram com que o sujeito, que não
deixava sua identidade (de brasileiro) transparecer pela língua, passasse
a se marcar no interior dos enunciados, através de inovações
linguísticas, como o aumento do uso de certas estruturas, que eram
aceitas pela comunidade. Para isso, a compreensão do funcionamento
do sentido metafórico é fundamental. É interessante compreender nos
textos, por exemplo, como a metáfora–local modulada, organizada
argumentativamente pela expressão referencial “no Brasil”,
relativizando os efeitos de retórica na memória, aparece sustentando o
dizer nas formulações dos autores, construindo os sentidos da
identidade nacional.
Passaremos então a destacar algumas metáforas que apareceram nos
textos jornalísticos para verificar a construção da textualidade. De certo
modo, poderemos perceber que, para os autores dos artigos jornalísticos
do início do século XX, pertencer à mesma língua seria, nesse
momento, a marca da extensão de uma mesma civilidade, significando
que uma só língua seria compartilhada em terras diferentes. Efeitos dos
jogos de identidade e representação numa política de línguas. Então,
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Mariângela Peccioli Galli Joanilho
estudar a língua inclui o estudo da forma como se produz conhecimento
sobre a língua: foi o que busquei quando trabalhei os textos do jornal.
4. Língua, naturalização e individuação
O jornal O Estado de São Paulo era, inicialmente, um periódico
produzido pela elite letrada brasileira. Foi fundado em 1875, por um
grupo de republicanos, liderados por Francisco Rangel Pestana e
Américo de Campos. Nessa época, chamava-se A Província de São
Paulo e, só passou a ter a outra nomeação a partir de 1889, com a
Proclamação da República.
Entre o final do século XIX e início do XX, o periódico era
apresentado na forma de um caderno de seis a oito páginas, dividido
em várias seções em que circulavam desde anúncios sobre temas
variados, até traduções de romances franceses e artigos científicos.
Ainda naquele momento, principalmente em fins do século XIX, havia
toda uma ordem positivista que orientava as discussões dos articulistas
e colaboradores menos frequentes. Os enunciados que aparecem em
seguida foram extraídos de artigos escritos por Oliveira Lima (um dos
fundadores da Academia Brasileira de Letras, diplomata e, por vários
anos, professor em Washington) e Silvio de Almeida (professor de
língua portuguesa na Escola Normal, em São Paulo, e colaborador no
jornal O Estado de São Paulo, por mais de uma década e meia).
A análise dos artigos nos permitiu verificar que a discussão sobre a
língua nacional está posta, em um primeiro momento, pela ordem de
uma naturalização, isto é, há um conjunto de metáforas que predicam a
língua portuguesa no Brasil como um corpo que sustenta a
nacionalidade daquele que aqui nasceu.
Apresentaremos, em seguida, a análise de algumas sequências 1
extraídas de um artigo escrito por Oliveira Lima e de dois artigos
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
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DAS RELAÇÕES DE SENTIDO
NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA
PRODUZ O ACONTECIMENTO
assinados por Silvio de Almeida. O texto produzido pelo primeiro autor
foi publicado em uma seção do jornal intitulada “Coisas Nacionais”, na
qual ele escrevia regularmente; já Silvio de Almeida publicou seus
textos na coluna “Divagações” por mais de uma década. Um estudo da
designação dos nomes nas colunas diárias do jornal mostraria uma
compreensão bastante interessante da linguagem e da significação,
que, como bem sabem aqueles que trabalham as discursividades da
língua, não é nem neutra, nem transparente...
Voltemos então às sequências que nos interessam. Como afirmamos
anteriormente, trataremos, em primeiro lugar, dos enunciados
produzidos por Oliveira Lima, transcritos como no original:
(1) O periodo de transição que atravessa no Brasil o portuguez
transplantado, é certamente o que mais influe na geral
imperfeição grammatical do momento actual: porquanto é
curioso observar que as questões da lingua assumem
proporções nacionaes e um caracter grave, numa terra em que
de ordinario se não escreve bem. (...) Por isto mesmo, para
que taes imperfeições externas á não convertam numa
deformação essencial, é que mais necessario se torna ter
sempre presente o que Gonçalves Dias denominava o respeito
devido ao genio da lingua (...).
(2) As alterações, assim, operarão superficialmente, mesmo
sensivelmente, mas sem tocar nas fontes vivas e na estructura
intima do idioma. A transformação inevitavel tem aliás de ser
regrada para se não tornar anarchica, de ser paulatina para não
se desmanchar na precipitação. Ao cabo poderá bem
acontecer que affecte o fundo, naquelle genio da lingua.
Traduzindo este como traduz o caracter do povo, há de
modificar-se afinal se o caracter, apresentar differenciação
notavel.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
Mariângela Peccioli Galli Joanilho
(3) A relação entre a lingua e o caracter nacional é uma coisa
innegavel, tanto que se conhece logo o escriptor que,
escolhendo outro idioma para meio de transmissão dos seus
pensamentos, deixa de lado o instrumento proprio e adequado
á communicação intellectual com o seu publico. A’s linguas
correspondem pois certos predicados de raça ou de povo, ou
por outra, estas qualidades refletem-se na expressão
idiomatica (Oliveira Lima, A LINGUA PORTUGUEZA NO
BRASIL - COISAS NACIONAES, O ESTADO DE SÃO
PAULO, Quinta-feira, 23/05/1907).
As considerações de Oliveira Lima sobre a mudança imposta pelo
Acordo ortográfico traziam a questão da modificação do corpo da
língua como a não-aceitação da diferença, sob pena de condenarmos a
sua estrutura. Da sequência (1), podemos extrair as seguintes
expressões, todas relativas às transformações no “corpo” da língua:
“imperfeição grammatical”, “imperfeições externas á não convertam
numa deformação essencial”, ou ainda, “(...) produziremos uma
deformação essencial se tocarmos as fontes vivas e a estrutura íntima
do idioma”. Para o autor, a mudança deve ser “regrada para se não
tornar anarchica, de ser paulatina para não se desmanchar na
precipitação”. Ele ainda formula a previsão do que, para ele, parece
inevitável, como aparece no trecho final da sequência (2): “Ao cabo
poderá bem acontecer que affecte o fundo, naquelle genio da lingua.
Traduzindo este como traduz o caracter do povo, há de modificar-se
afinal se o caracter, apresentar differenciação notavel”.
Ao contrário de Oliveira Lima, que em suas considerações sobre a
língua nacional apresentava um tom mais brando, Silvio de Almeida era
mais ácido. Para ele, as simplificações, produto do Acordo ortográfico,
eram: “aleijões” (sequência 5) ou “ fruto pêco” (sequência 5); e, a
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própria Reforma era uma “cacografia” (sequência 4) ou um “parto
perdido” (sequência 6) da Academia Brasileira de Letras (sequência 6).
Vemos, então, como Silvio de Almeida, afetado pelos sentidos
impostos pela reforma, se coloca em uma posição em que observa que
a língua, nessa sua nova ordem, torna-se “fruto pêco”, que não vingou.
Para o autor, uma língua define-se pelo uso, pela “força assimiladora
dos povos que a falam”, e não por imposições, “por movimentos
intempestivos” feitos pelos “imortais”.
Estas questões, embora se inscrevam a partir da epígrafe de
“Divagações”, servem para situar o trabalho de S. de Almeida na sua
época e apresentar o problema de linguagem a que ele responde: a
constituição de uma forma de pensar sobre a língua nacional em que a
questão da unidade se mantém: pois ao mesmo tempo em que põe um
modo de pensar sobre a língua que está constituído pela sua
historicização em um outro território, em um novo espaço e em um
novo tempo, está fortemente significado pelo desejo de manutenção de
uma unidade com Portugal, pelo desejo de pertencer à mesma língua.
De certo modo, pertencer à mesma língua seria, nesse momento, a
marca da extensão de uma mesma civilidade, significando que uma só
língua seria compartilhada em terras diferentes. Mas há uma
contradição fundamental em Silvio de Almeida: ao mesmo tempo em
que não aceita a mudança, inclui a diferença pelo uso, quando incorpora
em seu texto termos de línguas indígenas, como “pajés” e “tanga”
(sequência 4):
(4) Ninguem nega que – de parte uma ou outra assignalada
excepção – na Academia Brasileira de Letras se reune a fina
flor da nossa mentalidade. Alli, como em solenne floresta,
vivem, longe de profanos olhares, os insignes pagés da brava
gente que a sabida Europa já considera – homens de frak e de
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chapéu de cocó, que não mais selvagens de tanga, de arco e
flecha, e comedores de carne humana...(...).
Mas, seja qual for – e já reconheci que é muita – a autoridade
de Academia de Letras, certamente que essa autoridade não
acoberta, nem póde acobertar, a sua recente reforma
orthographica, que do sempre caustico sr. Carlos de Laet
mereceu o carregado nome de cacographia.(...).
(5) As simplificações se confundem com aleijões, que feramente
maltratam os nossos habitos visuaes; e não só reformam, mas
tambem deformam a graphia do portuguez. Fruto pêco de
tantas locubrações doutoraes foi a substituição de umas por
outras incongruencias. Mas então é natural que a estas, novas
e anomalas, prefiramos aquellas que o uso tolera e até
consagra.
Exemplo dá-nos, eloquente, a propria natureza da
conservação de certos orgams que perderam a sua primitiva
função: elles não desapparecem de chofre; e o mesmo se
pudera dizer de algumas letras, que ficam attestando na
palavra o seu anterior esqueleto, mais complicado e possante.
(6) Á refórma intempestiva que em má hora recebeu a
consagração dos brahmanes academicos (pouco menos
repulsiva, porém, mais illogica, do que a dos positivistas ou
do barbeiro Nunes) mal póde servir para augmentar a nossa
désordem graphica, sob o especioso pretexto só agóra
lembrado, de se pôr a escripta ao alcance dos ignorantes...
Fundada, há tantos annos, a nossa academia, como certos
animaes, perdeu o seu primeiro parto serodio, pois que se
metteu a ensinar o povo como é que elle deve escrever
errado... (Silvio de Almeida, DIVAGAÇÕES, O ESTADO
DE SÃO PAULO, Segunda-feira, 15/07/1907).
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DAS RELAÇÕES DE SENTIDO
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Em um artigo que foi publicado em 23 de Setembro de 1907,
Almeida produz uma divisão entre poder político e poder/saber
filológico, a partir de elementos que fazem a particularização de seus
sentidos num movimento que traz a inversão da metáfora do “corpo
deformado”, trata-se então de metáforas que fazem uma passagem do
corpo à língua, da língua ao corpo: a designação formula para a língua
um sentido mais espiritual do que orgânico, como podemos verificar
pelas considerações que o autor tece no penúltimo parágrafo de seu
texto, transcrito pela seguinte sequência:
(7) Foi, em grande parte, a conservação da estructura vocabular,
com as suas “superfluidades”, que permitiu achar no thesouro
da linguagem, como em um sacrario, a alma das velhas
gerações, essa alma que não morreu porque a escripta,
principalmente, a perpetuou!
Esta questão da divisão do corpo, ora mutilado, ora sacralizado
retorna em seus textos, às vezes de maneira velada, às vezes de forma
veemente, oferecendo-nos interessantes metáforas sobre a língua
nacional, como se vê, por exemplo, nos segmentos que finalizam o
artigo:
(8) Eu espero (alegrem-se os leitores!) não ter mais necessidade
de ativar outra pá da terra sobre esse Monstro philologico que,
já morto, saiu das entranhas primiparas da Academica.
Do necroterio scientifico, foi elle, em pedaços, para o
cemiterio do passado, donde sairá talvez em alguma revista de
anno ou nas allegorias do carnaval... (Silvio de Almeida,
DIVAGAÇÕES, O ESTADO DE SÃO PAULO, Segundafeira, 23/07/1907) .
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De tão adulterado, modificado, deformado, o corpo torna-se
“monstro”! Essa não aceitação da mudança imposta e a insistência, por
um lado pela unidade e, por outro, pela evolução natural da língua,
marcam as discussões que perpassaram o ano de 1907. O que elas nos
mostram é que, no movimento dos sentidos, a metáfora local traz a
possibilidade de compreender as oscilações entre o mesmo e o
diferente, na discussão sobre os sentidos da língua nacional. A escola,
o solo, a terra funcionam na construção da referência no acontecimento
(GUIMARÃES, 2002) para os sentidos da língua nacional. O povo, em
todas as suas articulações com outros nomes (“almas”, “selvagem”,
“estrangeiro”), reescreve o sujeito nacional. Portanto, é através de um
jogo entre metáforas locais (a língua é esteio, é corpo que sustenta e/ou
deforma a nacionalidade), no processo metafórico, que se funda um
espaço próprio para significação na/da língua. É através do duplo jogo
– entre metáfora local e processo metafórico – que encontramos um
sujeito efeito da linguagem, um sujeito que significa pela divisão, pela
desestabilidade na ordem do acontecimento.
5. Considerações
Na última década, vários estudos sobre a gramatização brasileira do
português mostraram como as questões que envolvem a língua colocam
fortemente o problema da unidade nacional e o da diversidade regional.
A retomada das metáforas construídas nos textos dos escritores no
jornal republicano produz um efeito de memória que consiste em
reescrever o discurso da unidade nacional (e transnacional) em um
momento histórico no qual a identidade é colocada pelo mesmo
movimento que suspende a diversidade. E isso é o jogo da língua que
opera; um jogo político e não etimológico.
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DAS RELAÇÕES DE SENTIDO
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PRODUZ O ACONTECIMENTO
Trata-se de uma guerra velada entre “estar no mesmo” e “significar
o diferente”, cujo horizonte é a política: uma política de línguas que
suspende a diversidade para significar na unidade. Trata-se de um corte
fundamental que inaugura a nacionalidade, cujos sentidos não escapam
aos contemporâneos, os jornalistas republicanos, em um momento e em
um lugar particulares: um jornal paulista do início do século XX.
Assim, a análise dos textos publicados no jornal põe em evidência o
gesto de escrita desses autores que ultrapassa as reflexões dos discursos
legitimados sobre a língua. O gesto de escrita no jornal marca a forma
de inaugurar um pensamento sobre a língua que a relaciona não só com
seus movimentos internos, mas com a exterioridade: a língua no jornal
vem “carregada de exterioridade”.
É interessante notar como a constituição das metáforas de referência
nos textos produzidos/publicados no jornal produz uma forma
compreensão para esse período da gramatização brasileira do
português, pois mostra a inauguração de um gesto de escrita que
ultrapassa as evidências das reflexões nas falas estabilizadas sobre a
língua: um gesto que marca a história cotidiana desses atores ordinários
e a sua relação com a língua em uma lógica do texto que produz um
pensamento sobre esse conceito em um momento e em um espaço em
que a ideia de nação se estabelece. Nesse sentido, o Acordo ortográfico
de 1907 apresenta certo número de pontos significativos com relação à
língua em sua unidade: mostra como a elaboração de um movimento de
reforma coincide com um momento de engajamento teórico e de crise
de legitimidade, pois sublinha como as decisões teóricas fundamentais
sobre a língua tomadas por uma comissão marcam a elaboração de uma
metalinguagem concebida como instrumento decisivo na história da
constituição do sujeito nacional.
Neste estudo, propusemos duas questões norteadoras: uma que
perguntava sobre o modo de funcionamento da metáfora e outra sobre
os movimentos que produz na constituição dos sentidos da língua
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nacional. De certa forma, com a primeira questão, estávamos tentando
estabelecer uma maneira de nos aproximar desse fato de linguagem,
pois buscávamos compreender o que faz, afinal, com que algo, com que
um fato de linguagem seja considerado uma metáfora?
No decorrer do trabalho, buscamos oferecer certos pontos sensíveis,
alguns caminhos para responder a esta questão. A tentativa era a de
construir um dispositivo teórico-analítico, no qual a compreensão da
metáfora se fizesse a partir de deslocamentos conceituais, para produzir
uma análise dos processos de designação que possibilitaram a
construção da referência, isto é, “da particularização no acontecimento
enunciativo”, como propõe Guimarães em seus estudos, para a
nomeação “língua nacional”. Observamos então que os sentidos da
língua nacional se fizeram no contraponto com os da escola e os do
sujeito nacional, em certo momento, mas também a partir de uma
divisão política fundamental, em que a ordem da língua era estabelecida
pela ordem do corpo, como se a corporificação da diferença estivesse
marcada na língua.
Sobre os deslocamentos, podemos dizer que dois procedimentos
foram importantes para esta compreensão das relações do sentido
metafórico. São eles, a transferência (no processo) e a singularidade (na
significação local). Com relação ao primeiro, a transferência – na
relação metafórica em que o sentido se faz pelo deslizamento do
significante – ou um significante pelo outro, podemos dizer que há a
inscrição de uma diferença, pois ao deslizar, o significante retorna
trazendo, nesse movimento, a inscrição da diferença, da ordem do
distinto: a suspensão do sentido e o efeito de retórica na memória.
Chegamos aqui à seguinte formulação: a metáfora local aparece na
forma de uma significação, como um rompimento no eixo do sentido,
que faz com que o deslize não seja indefinido, pois promove uma
suspensão do tempo, não do tempo lógico, cronológico, mas da
temporalidade do acontecimento, do tempo da significação. A
singularidade, como marca do fenômeno local no acontecimento,
funciona no processo de linguagem de forma que indica o que é
estabilizado e o que não é.
Com efeito, a questão que se colocou foi a de trabalhar essa
singularidade histórica – o sempre-novo da forma-sentido –, quando
pensamos no processo de constituição dos sentidos da língua nacional.
Em outros termos, havia uma questão teórica nodal que “reclamava os
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seus sentidos”. Ao longo do estudo, afirmávamos sobre a questão da
historicidade como constitutiva da singularidade no processo
metafórico. O que me interessava era considerar que, no processo
metafórico, o imaginário que irrompe na estrutura vem não como
atitude (pragmática) do sujeito, mas como efeito do sempre-novo no
acontecimento. É a história trabalhando a forma-sentido, de modo que
não haja recobrimento entre a singularidade e o processo de
subjetivação. Desse modo, enquanto a primeira funcionaria como ponto
de materialização da significação na língua, como momento em que se
mostra que é estabilizado o que não é estabilizado, cuja produção vem
como efeito de memória no acontecimento; o segundo é relativo à
instanciação da subjetividade no processo metafórico. A meu ver, esta
prática se constitui em um processo discursivo que possibilita a
construção de um espaço dizível para o sujeito e para a língua no Brasil.
Isso pôde ser compreendido, nas sequências analisadas, a partir do
jogo constitutivo das metáforas sobre a língua nacional, produzidas em
uma ordem de corporificação dos sentidos, através de uma
redistribuição dos sentidos da metáfora local “a língua é esteio da
nação”, trazida pelo efeito de retórica na memória, ao indicar o
pertencimento do sujeito a terra, na constituição da identidade nacional.
Assim, podemos afirmar que, por meio do jogo entre metáforas locais
(a língua é esteio, é corpo que sustenta e/ou deforma a nacionalidade),
no processo metafórico, se funda um espaço próprio para significação
na/da língua. É através do duplo jogo – entre metáfora local e processo
metafórico – que encontramos um sujeito efeito da linguagem, um
sujeito que significa pela divisão, pela desestabilidade na ordem do
acontecimento.
Notas
1
Uma análise mais detalhada destas e de outras seqüências encontra-se em:
JOANILHO, M.P.G. (2005) As metáforas da língua nacional. Tese de Doutorado.
Campinas: Unicamp. (inédita)
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Mariângela Peccioli Galli Joanilho
Referências bibliográficas
AUROUX, S. (1979). La sémiotique des encyclopedistes. Paris: PUF.
______. (1992). A Revolução Tecnológica da Gramatização.
(Tradução de Eni Puccinelli Orlandi). Campinas: Editora da
UNICAMP.
DÉTRIE, C. (2001). Du sens dans le processus métaphorique. Paris:
Honoré Champion.
DUMARSAIS, C. (1988). Des tropes ou des différents sens. Paris:
Flammarion. (Présentation, notes et traduction: Françoise Douay –
Soublin).
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Flammarion. (Présentation, notes et traduction: Françoise Douay –
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GUIMARÃES, E. (1995). Os Limites do Sentido: um estudo histórico
e enunciativo da linguagem. Campinas: Pontes.
______. (1996) “Sinopse dos Estudos do Português no Brasil. A
Gramatização Brasileira”. In: GUIMARÃES, E.; ORLANDI, E.
Língua e cidadania. Campinas: Pontes.
JOANILHO, M.P.G. (2005). As metáforas da língua nacional. Instituto
de Estudos da Linguagem. UNICAMP: Campinas. Tese de
Doutorado (inédita).
Palavras-chave: língua; identidade nacional; designação
Keywords: language; national identity; designation
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RESENHA
VIRILIO, Paul. L’ administration de la peur. Paris: Textuel,
2010, 94pp.
Filósofo, urbanista, professor emérito da École Spéciale
d’Architecture de Paris, detentor de uma linha de pensamento
heteróclita e fundada em saberes que vão do urbanismo à filosofia,
passando pela economia e a política, Paul Virilio é um dos nomes mais
eminentes, mundialmente, no cenário intelectual. Além disso, é autor
de trabalhos visionários sobre tecnologia e velocidade, e sobre a
realidade proveniente deste encontro, o que ele nomeia de
dromosphère. Dos títulos que compõem e representam seu quadro de
ensaios, temos a oportunidade de dizer sobre um dos seus mais recentes
empreendimentos teóricos: L’administration de la peur (2010), ainda
sem tradução para o português.
A administração do medo é mais uma entrevista concedida pelo
filósofo francês à editora Textuel (Paris), e que compõe a série
“Conversations pour demain”. A primeira entrevista concedida por
Virilio à Textuel foi realizada por Philippe Petit, e publicada em 1996,
sobre o título Cybermonde: la politique du pire. Agora, a presente
entrevista, conduzida por Bertrand Richard, tem o objetivo de verificar
o que mudou ou permaneceu no pensamento do urbanista durante estes
catorze anos.
Logo no prefácio do livro, Richard relata que nos dias de hoje há um
jogo de cunho sociológico e moral que inverteu o campo dos valores
para fazer do medo não apenas um sentimento legitimado, mas mais
ainda: uma espessura temperamental suplementar, um signo de
sabedoria, um instrumento do pensamento, uma propedêutica (p.8).
Nessa linha, o caos climático, pânicos na bolsa, fobias alimentares,
ameaças pandêmicas, colapsos econômicos, ansiedades congênitas,
crises existenciais e diversos outros medos, individuais e coletivos,
apresentam uma dinâmica própria, na qual a desculpabilização possui
razões históricas, filosóficas e políticas, além de uma série de
motivações, das quais podemos destacar o questionamento dos valores
tradicionais, a desconstrução dos grandes relatos, o progresso das ideias
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RESENHA
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individualistas e o desabamento das instituições que protegem
tradicionalmente o indivíduo contra os riscos da existência: a Igreja, a
família, os sindicatos, ou até mesmo um Estado providente e poderoso.
O que explica a propagação contemporânea do medo, segundo
Richard, é um duplo fenômeno. De um lado, o questionamento da
capacidade da ciência e do progresso em prover a segurança e a
felicidade da humanidade após as violências do século XX e a
nuclearização do mundo, e por outro, a difusão do pensamento do
filósofo alemão Hans Jonas, que toma nota destas atrocidades e faz do
medo um verdadeiro “princípio heurístico”, ou seja, para pensar
adequadamente o mundo é preciso começar pelo medo.
Nesse sentido, vemos que Richard contextualiza a dinâmica do
medo, para pensá-lo como princípio fundador e central na articulação
do histórico, do filosófico e do político. Assim, a entrevista de Virilio,
apresentada em três capítulos, presta um esclarecimento indispensável
para se compreender este contexto recordado pelo entrevistador neste
prefácio, ao mostrar que a interpretação do mundo contemporâneo se
funda em uma visão do real extremamente original, e, por vezes,
enraizada e descentrada, visto que o que se resta a fazer é administrar
o medo. Dessa forma, de um lugar específico de reflexão, o das ciências
da linguagem, o que nos interessa desta conversa entre Richard e Virilio
são os deslocamentos efetuados pelo filósofo em sua linha de
pensamento e uma compreensão sobre o funcionamento dos sentidos
em torno do medo que nos possibilita vê-lo como um verdadeiro
acontecimento de linguagem1, e também de forma metaforizada para se
pensar o mundo de hoje e a sua relação com a velocidade e a tecnologia.
O primeiro capítulo intitula-se “O terror é o cumprimento da lei do
movimento, Hannah Arendt”, e como ponto de partida o filósofo
francês é questionado sobre o que ele entende por “administração do
medo” (p.15). Como resposta, Virilio responde que utiliza o termo para
significá-lo de duas formas. Primeiramente, o medo é um ambiente, um
meio, um mundo, o medo não apenas preocupa, ele também ocupa um
lugar. Por outro lado, o medo é também um fenômeno ligado aos
acontecimentos localizados, identificados e circunscritos no tempo:
guerras, fome, epidemias etc. Desse modo, vemos que para o autor o
medo significa enquanto algo que é espacificado, ele habita um lugar, e
enquanto um fato no tempo, o que permite que o desloquemos da
categoria de sentimento, para pensá-lo como metáfora: “o medo é
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Anderson Braga do Carmo
mundo, pânico, no sentido de ‘totalidade’” (p.16). Além desse sentido,
a administração do medo significa também que os Estados são tentados
a fazer do medo, de sua orquestração, de sua gestão, uma política: os
Estados buscam assegurar aos cidadãos, convencê-los de uma
segurança corporal. Assim, uma dupla ideologia, sanitária e de
segurança, realiza-se ao fazer pesar as reais ameaças sobre a
democracia.
Dessa forma, vemos funcionar por um lado uma espessura física, de
sustentação do medo, que é espacial e temporal, e por outro o aspecto
ideológico, que o administra, e é assim que o medo se materializa e
passa a significar no pensamento de Virilio: uma ocupação física e
mental.
Na formulação desse pensamento, a velocidade (la vitesse) e a
tecnologia, categorias fundamentais para o filósofo, são outros aspectos
que serão colocados em questionamento pelo entrevistador. Ao que o
urbanista articula em resposta: o medo e sua administração são hoje
sustentados pela incrível difusão, e propaganda, das tecnologias do
tempo real, essencialmente as novas tecnologias da informação e da
comunicação (p.17). Nesse sentido, a dominação técnico-científica
reproduz todas as características da ocupação, física e mental, do medo.
Duas referências são fundamentais para Virilio, e as quais não
poderíamos desconsiderar. A primeira é o livro de Graham Greene, o
“Ministère de la peur”, visto que este título faz eco direto com o título
da entrevista em tela. E a outra, a qual o urbanista se deterá mais, é a
pensadora alemã Hannah Arendt, de quem o autor retirou a frase que
nomeia o capítulo: “o terror é o cumprimento da lei do movimento”.
Da mesma forma que a filósofa, Virilio compreende o terror não
apenas como um fenômeno emocional e psicológico, mas como um
fenômeno físico, no sentido da ciência física, e da cinética, o que faz
dele um fenômeno ligado ao que ele nomeia “aceleração do real”. Por
“lei do movimento”, Arendt entende o fato de que se deve relacionar o
terror à vida e à velocidade” (p.22), o que o autor diz ser autorizado pela
tecnologia. Assim, a “lei do movimento”, teorizada por Arendt é a lei
da velocidade.
O autor reforça o fato de haver também o “equilíbrio” do terror, o
que para ele é o coração, o princípio gerador da administração do medo.
O filósofo diz que o equilíbrio do terror está sobre tudo e,
concretamente, é um equilíbrio militar que repousa sobre a indústria de
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RESENHA
VIRILIO, Paul. L’ administration de la peur. Paris: Textuel, 2010, 94pp.
armamento e sobre o complexo da ciência. Para Virilio, quando a
ciência começa a se militarizar após a guerra de 1914 com os gazes de
combate, e, literalmente, com as bombas jogadas em Hiroshima e
Nagasaki, têm-se aberto o espaço do medo cósmico. Logo, vivenciamos
nos dias de hoje a era do equilíbrio do terror.
É por conta deste estado de equilíbrio do terror, esta operação de
alternância que articula o desenvolvimento da ciência com a
velocidade, a instantaneidade causada pelos avanços da tecnologia,
principalmente da comunicação e transmissão de informação, que se
coloca em primeiro plano o tempo real, o viver, em detrimento do
espaço real, ou seja, o espaço real da geografia está ligado ao tempo real
da ação humana e assume caráter secundário perante este (p.31).
Virilio, para finalizar este primeiro capítulo, chama atenção para
uma última distinção, entre progresso e a propaganda deste. Para o
urbanista o progresso foi contaminado pela propaganda, e é a esta que
o filósofo é contra. O que acontece hoje é que a propaganda substituiu
o progresso, e ela propaga uma realidade aumentada, uma realidade
acelerada, o que favorece a ocupação do medo.
O segundo capítulo intitula-se “Administrar o medo: para uma
dissuasão civil”, no qual o urbanista inaugura dizendo que a questão do
medo é polissêmica. Segundo Virilio, o medo surge em um momento
histórico em que os três grandes medos (o equilíbrio do terror com a
bomba atômica, o equilíbrio do terrorismo com a bomba informática e
o grande medo ecológico com a explosão da bomba genética)
manifestaram um extraordinário poder de condicionamento. No
entanto, por trás desta influência, temos apagado o poder de uma
ideologia. O que se apaga neste caso é a propaganda do progresso, ou
seja, a questão da velocidade e de sua violência. É esta ideologia da
velocidade, apagada, que é portadora do medo e do terror, é esta que
causa o condicionamento. Assim, diz o filósofo, se tempo é dinheiro, a
velocidade é o poder, a essência do poder (p.44), e, portanto, como não
ter medo do poder, da ubiquidade, da instantaneidade, que são na
origem, significativamente, os atributos do divino?
Desse modo, diante da aceleração da vida cotidiana, o medo tornase, em tempos de paz, um ambiente (environnement). Assim, habitamos
o acidente do globo, o acidente de sua instantaneidade, de sua
simultaneidade e da interatividade o que implica sobre a sua atividade
ordinária (p.46). É nesse sentido, inclusive, que se pode pensar que para
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Anderson Braga do Carmo
Virilio habitamos o tempo. Ao tornar-se um ambiente, no sentido em
foi realizado a fusão do securitário e do sanitário, o medo, ou a
propaganda do progresso nos preocupa permanentemente, e nos ocupa
perpetuamente. Desse modo, o sujeito está em uma situação de
ocupação nos dois sentidos do termo, temporal e marcial. Esta
ocupação que monitora, telesupervisiona, sonda, testa e avalia sem
cessar está cada vez mais presente, e é cada vez mais aceita como uma
fatalidade, um destino.
Se no primeiro capítulo Virilio falou de uma primeira dissuasão,
militar (o equilíbrio do terror), neste segundo capítulo ele centra em
uma segunda dissuasão, civil. Para o urbanista, hoje, face ao
desequilíbrio do terror, a tentação é grande para os diversos poderes
militares ou civis de instaurar uma dissuasão civil, ou seja, um estado
de medo que permita congelar as situações sociais conflituosas. Assim,
a insegurança social contemporânea se liga à insegurança do território
da contração temporal. Este estado de dissuasão civil, por sua vez, está
próximo de por em questão a democracia.
Para o filósofo, estamos vivendo a era da substituição e da repulsão.
Nesse sentido, o medo gerou não apenas seu ambiente, com os guetos,
as comunidades fechadas, o comunitarismo, mas também gerou sua
cultura, uma cultura da repulsão, o que vai junto com o racismo e a
rejeição ao outro.
Para finalizar o capítulo, o autor diz que há uma detenção que vive
diante de nós. A claustrofobia de massa que invoca povos é uma das
razões do grande medo ecológico, que se caracteriza notadamente pelo
receio de um planeta incapaz de assegurar nosso desenvolvimento
(p.67). É por isso que o movimento, o escape, o êxodo, tornam-se
fenômenos permanentes. A única solução diante disso é mover
constantemente ou ainda fugir definitivamente.
O terceiro capítulo recebe o nome de “Novos medos, novos
combates”. O filósofo inaugura o capítulo dizendo sobre a velocidade,
umas das palavras-chave do seu pensamento como notamos pelo
decorrer da entrevista. Para Virilio, o drama da nossa sociedade atual,
esta ocupação do medo, está fundado sobre a velocidade. Para ele o
próprio da velocidade é que o seu sucesso é o seu dano, é o sucesso em
ser veloz que leva ao catastrófico.
Para o urbanista, a ciência está no início de um verdadeiro craque
sistêmico, de um coma filosófico. Perante isso, o autor propõe uma
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RESENHA
VIRILIO, Paul. L’ administration de la peur. Paris: Textuel, 2010, 94pp.
universidade do desastre. Trata-se de um convite a fazer conhecimento
na era da velocidade. Visto que o grande medo ecológico combina três
poluições: poluição de substâncias, de distâncias e de conhecimentos,
considera o autor sobre este ponto: “O mundo do futuro será uma luta
cada vez mais cerrada contra os limites de nossa inteligência” (Norbert
Wiener). Segundo Virilio, a aceleração do real é tal, que os pensadores
de um passado longínquo não poderiam nos ser muito úteis, mesmo
com a extraordinária riqueza de seus pensamentos, pois a filosofia
antiga não ajudaria a abordar a questão do fim do globo, da grande
detenção da consciência, o que para o autor impõe a constituição da
universidade do desastre. A questão da velocidade é uma questão
eminentemente moderna e até mesmo pós-moderna se considerarmos a
velocidade limite, que é majoritariamente nossa realidade com o
numérico e os calculadores de altas frequências.
Por conta desta velocidade limite, Virilio receia qualificar o tempo
atual de contemporâneo, ele qualificaria mais facilmente a sequência na
qual somos calcados de in-temporânia, no sentido em que o nosso
regime de velocidade não se situa no quadro da tripartição habitual
passado-presente-futuro: a instantaneidade é outro mundo e outro
tempo (p.80). Se o século XX foi o século das revoluções técnicocientíficas, há agora a necessidade de uma revelação filocientífica, ou
seja, a convergência de futuros Berson e de futuros Einstein, e que desta
vez eles se entendam.
Neste questionamento, Virilio é levado pelo entrevistador a
esclarecer um outro ponto que nos interessa bastante: o divórcio entre
as ciências exatas e as ciências humanas. Para o filósofo, a causa deste
divórcio é o fato, segundo ele, de que a ciência é militarizada, ou seja,
seu objetivo não é ser simplesmente conhecimento, mas conhecimento
de potência final. Por conhecimento final compreende-se o fim do
mundo e o fim da vida. Tudo objetiva substituir a filociência à
tecnociência, e redescobrir o Outro da filosofia e da ciência, que eram
unidos em sua origem. É por isso, inclusive, que o autor fala em
revelação e não em revolução. No que esta questão toca a do medo,
Virilio crê que o medo contemporâneo está igualmente ligado, para o
homem de ciência, à questão das ciências experimentais. O problema
gigantesco está no fato de que o homem não pode experimentar a
natureza do progresso. Há um limite experimental, uma privação da
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Anderson Braga do Carmo
experiência, que abre caminho para a magia, para a figura do louco
sábio e o desenvolvimento da philofolie.
Outro ponto destacado pelo entrevistador é o fato das pesquisas
atuais se voltarem sobre o vivente. Virilio chama de bomba genética o
fato da ciência, por meio de tecnologias, decodificar o genoma humano
e impulsionar um fenômeno de industrialização da vida, após a
industrialização da morte. A questão que se coloca é a de uma
verdadeira diferença entre humanos. Não diferença de raças, mas
ontológica, entre aqueles que serão de sangue e esperma e aqueles que
nascerão do cálculo e da bioengenharia. Esta ruptura entre estes dois
tipos de humanidade será infinitamente grave, pois será irremediável e
incontestável, ao contrário da antiga oposição entre selvagens e
civilizados. Visto isso, podemos esperar que a discriminação seja em
proporções desastrosas.
Para finalizar a entrevista, Virilio chama a atenção do leitor para um
dito popular: “O medo é o pior dos assassinos, ele não mata, ele impede
de viver”. Esta é a definição da dissuasão civil que o filósofo evoca no
decorrer da entrevista. Assim, as manifestações da administração do
medo são incalculáveis, e estão, como percebemos pela entrevista, no
nosso cotidiano.
Então, ressaltamos que a questão do medo, como propõe Virilio,
configura-se para nós como um acontecimento, pois vemos na
caracterização do medo, no deslocamento da categoria de sentimento
para um modo de ocupação, física e mental, no espaço e no tempo,
primeiramente, que ele é afetado e experienciado por meio do
simbólico: trata-se de uma materialidade histórica do real (Guimarães,
2002). Segundo, o medo temporaliza. Virilio nos mostra que o sujeito
é tomado na temporalidade (ibidem) do medo, do acontecimento. Por
haver um regime de velocidade que impede a tripartição habitual
passado-presente-futuro, vemos que a questão do medo atual abre em
si uma latência de futuro, que é administrável, ocupa e significa, pois
recorta como memorável outras enunciações, outros acontecimentos.
Podemos concluir também que, nesta entrevista, Virilio abre um
espaço interessante para pensarmos o medo como algo que é próprio da
produção de sentidos na linguagem, como uma metáfora. O medo, no
sentido que é pensado pelo urbanista, como ocupação física e mental,
produz pontos de visibilidade no acontecimento discursivo de uma
subjetividade histórica. Ao explicitar uma certa dinâmica do
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RESENHA
VIRILIO, Paul. L’ administration de la peur. Paris: Textuel, 2010, 94pp.
funcionamento do medo, de sua administração, desde o momento de
instauração e estado de equilíbrio do terror, com a bomba atômica sobre
Hiroshima, passando pelo desequilíbrio do terrorismo com a bomba
informática e finalizando com o grande medo ecológico com a angústia
de uma explosão da bomba genética, Virilio nos leva a refletir sobre o
medo como um processo sócio-histórico de construção de sentidos. A
partir dessa dinâmica, afetada por uma singularidade histórica, nota-se
que o medo constitui-se em um sentido metafórico, de ocupação, no
qual o filósofo, ao trabalhar com o equívoco, atravessa as evidências do
imaginário e as barreiras do já estabelecido.
Anderson Braga do Carmo
Doutorando em Linguística
Universidade Estadual de Campinas
Notas
1
Pensamos o conceito de acontecimento tal como propõe Guimarães em Semântica do
Acontecimento: um estudo enunciativo da designação. Campinas: Pontes, 2002.
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