CARTAGENA,aingrata

Transcrição

CARTAGENA,aingrata
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“Doméstica leva carro em sorteio de supermercado,
mas patrões dizem ser verdadeiros donos e brigam na Justiça.”
(O Dia, 17/9/99)
A Cartagena, aqui em casa, era como uma pessoa da família. Inclusive, nós só a
tratávamos por “Gena”, que é bem mais emergente que esse seu nome suburbano, e até
lembra o de uma estrela de Hollywood.
Aqui em casa, ela sempre teve todo o conforto: dois uniformes, tênis Bamba, meia
soquete, avental, televisão no quarto (preto e branco, mas tinha), radinho de pilha, máquina
de lavar, aspirador, ferro elétrico, fogão de seis bocas e microondas. Só não sentava à mesa
conosco porque eu não acho certo: cada um deve ter o seu espaço e reconhecer seus limites.
O fato de Gena ser escurinha nunca foi problema para nós. Ela sabia usar direitinho
o elevador de serviço e o seu banheiro, não gostava de pagode, não saía em escola de
samba, não bebia nem fumava, não andava em más companhias, era católica... e, a verdade
se diga, era muito asseada.
Inclusive essa coisa de discriminar gente escura eu acho uma tremenda bobagem.
Minha bisavó, mesmo, também tinha lá um pezinho na cozinha. E a avó dela – ela contava
– era daquelas caboclas fechadas, e tinha sido pega a laço pelo avô, herói bandeirante,
daqueles fundadores de São Paulo. Isso, há mais de 400 anos.
Mas, como eu ia dizendo, o vício da Gena era só loto, supersena, sorteios, essas
coisas. E aí foi que surgiu o problema.
Há uns cinco anos ela chegou aqui no condomínio, vinda de Minas, mandada pela
agência. Tinha vinte e poucos anos e nos pareceu uma pessoa de bem. Mas como seguro
morreu de velho, fomos testando ela aos pouquinhos. Um dia, eu deixava, assim como
quem não quer nada, um dinheiro em cima da mesa. No outro, eu deixava um anel, um
cordão. E ela, verdade se diga, não mexia em nada.
Até que ela conquistou nossa total confiança. Então, demos a ela, primeiro, a
responsabilidade das compras de casa. Depois, mandamos fazer, para ela, um cartão de
crédito adicional no Au Bon Miché.
Pelo menos uma vez por semana ela ia a esse hipermercado. E comprava coisas para
ela, também. Mas não gastava muito porque eu não sou nenhuma Irmã Dulce e abatia tudo
do salário dela.
Cada vez que ia ao híper, Gena entrava num concurso. E tinha até sorte, a
crioulinha. Tanto que um dia ganhou um vale-compras de 120 reais – e eu disse que podia
ficar pra ela. E, depois, foi sorteada com um almoço no Bad Beef.
Essa do almoço foi hilária! Eu disse a ela “Vai, Gena, vai lá! A comida do Bad Beef
é muito boa!”. E ela: - Eu,he
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Mês passado tinha lá um sorteio de uma Mercedes. Quando ela falou – a gente não
entende direito o que ela diz – eu achei que a Mercedes era uma colega dela. E deixei pra
lá. Até que noutro dia ela chegou aqui que nem uma doida, chorando, gritando, pulando,
querendo abraçar todo mundo...
Crioula filha da puta! Ganhou uma Mercedes Benz no sorteio do Au Bom Miché.
Com o nosso dinheiro!
Agora, o senhor vê: tem cabimento uma neguinha dessas de Mercedes e a gente aqui
só com esse Vectra, esse Logus e essa Cherokee?! E essa crioula não sabe nem dirigir,
Doutor! Por isso eu vim aqui reivindicar meus direitos.
- E fez muito bem, Madame. Como dizia Nina Rodrigues, “a Raça Negra no
Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestes serviços à nossa
civilização; por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o
revoltante abuso da escravidão; por maiores que se revelem os generosos
exageros dos seus turiferários1, há de constituir sempre um dos fatores da nossa
inferioridade como povo”. E, no seu caso específico, recorro a uma constatação
dos exploradores portugueses Capelo e Ivens: “A ingratidão e a perfídia, essas
torpes faculdades tão comuns nas inteligências rudimentares, formam o traço
característico do Negro”.
- E então, doutor?
- Manda essa crioula à merda, Madame! E a Justiça, deixa comigo!
Ne
iLope
si
nBUNDASnº18
1
Adulador, bajulador.

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