faculdade de são bernardo do campo rodrigo tomé hibridismo e
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FACULDADE DE SÃO BERNARDO DO CAMPO RODRIGO TOMÉ HIBRIDISMO E ANTROPOFAGIA EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR, DE OSWALD DE ANDRADE São Bernardo do Campo 2010 RODRIGO TOMÉ HIBRIDISMO E ANTROPOFAGIA EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR, DE OSWALD DE ANDRADE Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de São Bernardo do Campo, no Curso de Letras, como exigência parcial para a obtenção do título de Licenciado em Letras Português e Inglês e Respectivas Literaturas. Orientadora: Professora Doutora Sonia Melchiori Galvão Gatto São Bernardo do Campo 2010 Rodrigo Tomé HIBRIDISMO E ANTROPOFAGIA EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR, DE OSWALD DE ANDRADE Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao Curso de Letras da Faculdade de São Bernardo do Campo, como exigência parcial para obtenção do título de Licenciado em Letras. Aprovado em ______ de __________ de 2010. Profa. Especialista Gessamy Aparecida de Almeida Faculdade de São Bernardo do Campo Profa. Mestra Helba Carvalho Faculdade de São Bernardo do Campo Profa. Doutora Sonia Melchiori Galvão Gatto – Orientadora Faculdade de São Bernardo do Campo A minha orientadora, aos meus professores, aos meus amigos e a minha família pelo afeto e colaboração durante esta caminhada. AGRADECIMENTOS A minha família pelo apoio e carinho. A minha orientadora Profa. Dra. Sonia Melchiori Galvão Gatto que, com diretrizes seguras, deu-me condições de desenvolver e finalizar este trabalho. Aos professores sem os quais não teria sido possível realizar a pesquisa. A todos que participaram direta ou indiretamente na elaboração deste trabalho. RESUMO Esta pesquisa apresenta como tema central o hibridismo presente na obra Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. Esta obra foi escolhida por se tratar de uma obra inovadora estética e linguisticamente, que quebra com a literatura de estilo clássico vigente até então. Para esta pesquisa, o objetivo principal é mostrar como Oswald de Andrade “devora” as idéias das Vanguadas Européias e as reaproveita em sua obra. Este ato antropofágico traduz-se em uma escrita híbrida, lingüística e estruturalmente, anedótica. A pesquisa foi realizada com base nos estudos críticos de Haroldo de Campos, Mário da Silva Brito, Benedito Nunes e Maria Augusta Fonseca. Oswald, seguindo sua idéia antropofágica e nacionalista dos Manifestos Pau-Brasil (1924) e Antropófago (1928) – esses manifestos são posteriores a Memórias Sentimentais de João Miramar -, devorou as Vanguardas Européias e criou a primeira grande obra Moderna e Brasileira. Palavras-chave: Memórias Sentimentais de João Miramar, Oswald de Andrade, Antropofagia, Vanguardas Européias, hibridismo. ABSTRACT This research presents as its central theme the hybridism that is presented in Memórias Sentimentais de João Miramar. This novel was chosen because it is one of the best productions of the first phase of Brazilian Modernism and it is the first production that presents many linguistic and aesthetic innovations that break with the classical literature which was the current literature at the beginning of the twentieth century. For this research, the main scope is to show how Oswald de Andrade "devours" the ideas of the European Vanguards as he traveled to Europe several times, contacted modern artists and discussed frequently with other Brazilian artists who also had the intention to create modern literature, and also how Oswald could transfer these thoughts to his book. The survey was conducted based on the studies of Haroldo de Campos, Mário da Silva Brito, Benedito Nunes. Oswald, following his anthropophagic and nationalist idea from Manifestos Pau-Brasil (1924) and Antropófago (1928) – these manifests were released after Memórias Sentimentais de João Miramar –“devoured” the Vanguards and created the first great Modern Brazilian novel. Key words: Memórias Sentimentais de João Miramar, Oswald de Andrade, Anthropophagy, European Vanguards, hybridism. SUMÁRIO 1 2 2.1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 10 O DEVORADOR DE PALAVRAS: OSWALD E ANTROPOFAGIA ........... 11 ORIGENS E RENOVAÇÃO ESTÉTICA NAS ARTES NO FINAL DO 11 2.1. SÉCULO XIX E AS VANGUARDAS EUROPÉIAS ........................................... Oswald de Andrade e o contato com as Vanguardas Européias......................... 13 1 3 O HIBRIDISMO LINGUÍSTICO E A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM 16 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 3.6 4 OSWALD.................................................................................................................. MSJM E O FUTURISMO ....................................................................................... O ESTILO TELEGRÁFICO..................................................................................... A PROSA CINEMATOGRÁFICA.......................................................................... A ESTÉTICA DO FRAGMENTO............................................................................ MSJM: O LINGUÍSTICO E O ESTÉTICO ............................................................ MSJM: UMA PARÓDIA LINGUÍSTICA E ESTILÍSTICA ................................ ALÉM/AQUÉM O MAR: UMA MIRADA NA LINGUAGEM EM 16 20 21 21 22 23 26 4.1 MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR........................................ DA IRONIA E DA SÁTIRA EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO 26 4.1. MIRAMAR ............................................................................................................. Alegoria e 29 1 4.1. Mímese ................................................................................................... O Discurso e 2 4.1. Pompa.............................................................................................. Os Negócios e a Incompetência............................................................................... 31 3 4.2 a 30 SÓ A ANTROPOFAGIA OS UNE ........................................................................ 32 CONCLUSÃO.......................................................................................................... 33 REFERÊNCIAS....................................................................................................... 36 1 INTRODUÇÃO Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, é uma das obras mais importantes da primeira fase do Modernismo Brasileiro. Nessa obra, a língua portuguesa é misturada a outras línguas para demonstrar a formação da cultura brasileira e a diversidade de etnias, línguas e culturas presentes em São Paulo, no início do século XX, e suas influências na língua portuguesa e na sociedade. Vê-se na obra, então, um rompimento com a norma culta da língua portuguesa lusitana, através da paródia e a defesa de uma língua brasileira, uma atitude nacionalista e antropofágica, uma língua que é, sim, diferente da língua de Portugal, uma língua cheia de neologismos e influências. Observa-se que o objetivo do autor é expressar, criticar e satirizar através da língua. As regras da língua, sua normatividade, são diluídas no falar do povo, que se configura em forma expressão. Esta é o que importa. Oswald usa o clownismo, a sátira, maneja as frases para mostrar e parodiar a alta sociedade de São Paulo do início do século XX, defendendo o nacional, o brasileiro, de forma crítica. Na obra, Oswald usa as principais características da estrutura moderna, tais como a dissonância, a plurissignificação, a falta de pontuação, a influência da fotografia e do cinema, a colagem de imagens, a fusão de contrastes, a complexidade, a fragmentação, a surpresa, o estranhamento, o conteúdo deformado, a dramacidade agressiva, a ruptura com a norma culta da língua e com a sua sintaxe e a ruptura com os cânones clássicos da literatura. Com base em Haroldo de Campos, Antônio Cândido, Mário da Silva Brito, Lucia Helena, Maria Augusta Fonseca e outros também renomados pesquisadores, o objetivo desta pesquisa é mostrar como as Vanguardas Européias influenciaram na linguagem utilizada em Memórias Sentimentais de João Miramar (finalizado em 1924), levando essa ação a uma atitude antropofágica e nacionalista, como o próprio autor Oswald de Andrade defende nos Manifestos Pau-Brasil (1924) e Antropófago (1928), e como Oswald antecipou alguns pensamentos dos manifestos em sua obra. 2 O DEVORADOR DE PALAVRAS: OSWALD E A ANTROPOFAGIA Chama-se de Modernismo o conjunto de movimentos culturais, escolas e estilos que permearam as artes na primeira metade do século XX. Encaixam-se nesta classificação a literatura, a arquitetura, a pintura, a escultura, o teatro e a música. O Movimento Modernista baseou-se na idéia de que as formas tradicionais das artes e da literatura tornaram-se ultrapassadas, não acompanhavam a vida cotidiana e apresentavam uma representação histórica, inclusive das organizações sociais, que não condiziam com a constituíção da cultura, e que se fazia fundamental deixá-las de lado e criar no lugar um novo pensamento mais crítico. Segundo Massaud Moisés, o Modernismo é o “signo das vanguardas, da inconformidade e do futuro” (MOISÉS, 1996, p. 11) e, segundo Baudelaire, “a modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável” (BAUDELAIRE, 1996, p. 24). A constatação de Baudelaire apoiou a atitude modernista de reexaminar cada aspecto da vida e do cotidiano, do comércio à filosofia, com o objetivo de descartar o que seria improdutivo e ultrapassado (segundo os preceitos modernistas), substituí-los por novas formas correspondentes à nova dinâmica do mundo, e aproveitar criticamente o que este passado ofereceu. 2.1 ORIGENS E RENOVAÇÃO ESTÉTICA NAS ARTES NO FINAL DO SÉCULO XIX E AS VANGUARDAS EUROPÉIAS Em princípio, o Movimento pode ser descrito genericamente como uma rejeição da tradição e uma tendência a encarar problemas sob uma nova perspectiva baseada em idéias e técnicas atuais. A aversão à tradição pelos impressionistas faz deste (o Impressionismo) um dos primeiros movimentos artísticos a serem vistos, em retrospectiva, como moderno. Na literatura, o Simbolismo seria uma grande influência no desenvolvimento do Modernismo, devido ao seu foco na sensação. Filosoficamente, a quebra com a tradição por Nietzsche e Freud provê um embasamento chave do movimento que estaria por vir: começar de novo de princípios primários, abandonando as definições e sistemas prévios. Esta tendência do movimento em geral conviveu com as normas de representação do fim do século XIX. Frequentemente seus praticantes consideravam-se mais reformadores do que revolucionários. Começando na década de 1890, uma linha de pensamento passou a defender que era necessário deixar completamente de lado as normas prévias, e ao invés de meramente revisitar o conhecimento passado à luz das técnicas atuais, seria preciso implantar mudanças mais drásticas. Observa-se cada vez mais presente a integração entre a combustão interna e a industrialização e o advento das ciências sociais na política pública. Nos primeiros quinze anos do século XX, uma série de escritores, pensadores e artistas fizeram a ruptura com os meios tradicionais de se organizar a literatura, a pintura, a música - novamente, em paralelo às mudanças nos métodos organizacionais de outros campos. O argumento era o de que se a natureza da realidade mesma estava em questão, e as suas restrições, sentia-se que, já que as atividades humanas até então comuns estavam mudando, então a arte também deveria mudar radicalmente. O modernismo no Brasil modificou a discussão sobre o problema da dependência cultural, levando muitos escritores a reverem, de maneira ainda mais crítica, o presente e o passado e a denunciar a alienação vigente em muitos setores da vida nacional. Segundo Vera Lúcia de Oliveira, “na verdade, é com o Modernismo que se consolidará, definitivamente, a emancipação das letras e das artes brasileiras” (OLIVEIRA, 2001, p. 63). O ponto principal de todas as discussões e polêmicas sobre as tendências de vanguarda foi a Semana da Arte Moderna, que se realizou em São Paulo, de 11 a 18 de fevereiro de 1922, num clima de renovação cultural. Com a Semana da Arte Moderna e com suas conquistas, a literatura brasileira alcançou uma alma nacional e transformou-se em instrumento de expressão da cultura do país. O modernismo brasileiro marcou um período de excelente abertura a todas as vanguardas e também a urgência de reencontrar um Brasil sem contaminação, livre de qualquer influência estrangeira. Havia, então, “um desejo de abrir-se ao mundo, um máximo cosmopolitismo... também uma recusa de passividade e do servilismo com os quais muitos intelectuais haviam assimiliado modelos culturais e estéticos de importação” (OLIVEIRA, 2001, p. 64). 2.1.1 Oswald de Andrade e o contato com as Vanguardas Européias Em 12 de fevereiro de 1912, Oswald de Andrade – que já tinha trabalhado para o Diário Popular e escrito para o semanário O Pirralho - embarca no Porto de Santos a bordo do navio Martha Washington rumo ao continente Europeu. Visita a Itália, a Alemanha, a França, a Bélgica, a Inglaterra e a Espanha. Trabalha como correspondente do matutino Correio da Manhã. Neste mesmo ano, Oswald retorna ao Brasil, trazendo informações sobre o Futurismo, um movimento chefiado pelo poeta italiano Filippo Marinetti, que queria trazer à tona as mudanças provocadas pela nova civilização que surgia com o desenvolvimento urbano e industrial. Fascinado com essas idéias futuristas, Oswald começou a divulgar notas pela imprensa ressaltando a necessidade de renovar o estilo de arte brasileira (Simbolista e Parnasianista), no sentido de acompanhar as mudanças no meio urbano que propiciava também uma mudança de mentalidade. Outro artista que contribuiu para a formação do modernismo brasileiro foi o pintor Lasar Segall. Ele que tinha acabado de chegar da Europa trouxe para São Paulo as idéias do Expressionismo alemão, uma arte que deformava as imagens e privilegiava a representação material e psicológica. Uma exposição realizada por Lasar Segall em 1913 é considerada a primeira exposição modernista no Brasil, caracterizando um momento de ruptura. No ano de 1914, uma jovem pintora realizava sua primeira exposição. Anita Malfatti, depois de quatro anos de estudos, também chegava da Europa e trazia para o Brasil, como Lasar Segall, as novidades do Expressionismo alemão. Essa exposição de Anita foi uma exposição em caráter experimental, mas serviu como um ensaio de como seria a grande exposição em 1917. As duas exposições, de Segall e Anita, não tiveram muita repercussão, mas serviram, mesmo que a passos lentos, para uma renovação artística. Em 1915 um artista italiano, Ernesto Bertarelli, colaborador do Jornal do Estado de São Paulo, publica um artigo chamado "Lições de Futurismo". Esse autor faria uma revelação sobre a influência do futurismo italiano nas artes brasileiras. Neste ano, Oswald de Andrade reaparece e publica na revista O Pirralho, a qual ele mesmo dirigia, vários artigos para chocar os padrões de gosto. Em um deles, ele procurava enfatizar a urgência de uma pintura que superasse o academicismo e se tornasse uma verdadeira pintura nacional. Em 1916, em A Cigarra, em O Pirralho e em A Vida Moderna, Oswald publica trechos do futuro romance Memórias Sentimentais de João Miramar. Durante os anos que antecederam a Semana da Arte Moderna de 1922, Oswald escreveu em jornais e revistas trechos de Memórias Sentimentais de João Miramar, A Estrela do Absinto, Os Condenados e a Trilogia do Exílio. No fim de 1922, viaja para a Europa com Tarsila do Amaral. Trava contatos com artistas de vanguarda da França, Itália e Portugal. Conclui a redação de Memórias Sentimentais de João Miramar. Em 1924, retorna ao Brasil e o lança pela Editora Independência. Entre os anos de 1924 e 1928, Oswald viajou para a Europa várias vezes e também para o Oriente Médio. Nessas viagens, travou contatos com vários artistas novamente. Em 1924, Oswald de Andrade, no Manifesto da Poesia Pau-Brasil (Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18/03/24), defendia uma condição para o poeta: “Sem reminiscências livrescas. Sem comparação de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia” (ANDRADE, 1990, p. 45). No ano seguinte, uma forma reduzida e alterada do Manifesto abria o livro de poesias Pau-Brasil. No Manifesto e no livro PauBrasil - ilustrado por Tarsila do Amaral -, Oswald propõe uma literatura extremamente vinculada à realidade brasileira, a partir de uma redescoberta do Brasil. Ou, como afirma Paulo Prado ao prefaciar o livro: “Oswaldo de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Face Clichê – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia pau-brasil” (ANDRADE, 2003, p. 89). O Manifesto da Poesia Pau-Brasil enfatiza a necessidade de se criar uma arte baseada nas características da cultura brasileira, com absorção crítica da modernidade européia, como por exemplo: O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional... Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época... Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia PauBrasil, de exportação” (ANDRADE, 1990, p. 41, 42). Em 1928, Oswald leva ao extremo essas idéias com o Manifesto Antropófago, que propõe devorar ou deglutir as influências estrangeiras para impor o caráter brasileiro à arte e à literatura. Há várias ideias que estão implícitas neste manifesto. Uma é conhecida da antropofagia e tem a ver com o papel simbólico do canibalismo nas sociedades tribais tradicionais. O antropófago nunca come um ser humano por nutrição, mas sim sempre para assimilar as qualidades do inimigo ou de alguém. Assim, a antropofagia é interpretada como uma forma de valoração do inimigo. Se o inimigo tem valor, então tem interesse para ser devorado, porque assim o antropófago torna-se mais forte. Oswald atualiza este conceito expressando, veladamente, a força da cultura brasileira, é colonizada pelo europeu mas digere o europeu e assim torna-se superior a ele: “Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o.” (ANDRADE, 1990, p. 49). Outra ideia é a de que o Brasil, simbolizado pelo índio, absorve o estrangeiro, o elemento estranho a si, e torna-o carne da sua carne. A antropofagia, segundo Oswald, é uma inversão do mito do bom selvagem de Rousseau, que era puro, inocente, edênico. O índio passa a ser mau e esperto, porque devora o estrangeiro, digere-o, torna-o parte da sua carne. Assim, o Brasil seria um país canibal. O que é um ponto de vista interessante porque subverte a relação colonizador/ (ativo)/colonizado(passivo). O colonizado digere o colonizador. Ou seja, não é a cultura ocidental, portuguesa, européia, branca, que ocupa o Brasil, mas é o índio que digere tudo o que lhe chega. “Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos...”(ANDRADE, 1990, p. 50). E ao digerir e absorver as qualidades dos estrangeiros fica melhor, mais forte e torna-se brasileiro. Assim o Manifesto Antropófago, embora seja nacionalista não é xenófobo, antes pelo contrário, é xenofágico: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” (ANDRADE, 1990, p. 47). O ponto a ser visto é de como as viagens de Oswald à Europa, as Vanguardas Européias e a cidade de São Paulo de 1900 a 1924 influenciaram o autor em Memórias Sentimentais de João Miramar e também como ele antecipou algumas idéias do Manifesto Pau-Brasil e do Manifesto Antropófago na obra. 3 HIBRIDISMO E A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM OSWALD Neste capítulo, será visto como o futurismo e as vanguardas européias influenciaram na obra de Oswald de Andrade e como Oswald soube digerir tudo o que aprendeu/apreendeu em suas viagens à Europa. O contato com os artistas europeus de vanguarda, o cinema, os progressos na psicanálise e o desenvolvimento urbano e industrial tiveram grande influência no trabalho do autor. 3.1 MSJM E O FUTURISMO A alta sociedade de São Paulo do início do século XX se prendeu na tradição de que tudo que vem da Europa é mais chique, mais pomposo, tem mais valor. As primeiras viagens de Oswald à Europa, seu contato com as artes de vanguarda, com os manifestos, as reuniões com artistas europeus no Brasil e na Europa e as reuniões com outros artistas brasileiros que também tinham um anseio de modernização da literatura influenciaram Oswald para a produção de MSJM. O futurismo, o cubismo e outras novas tendências das artes, segundo Haroldo de Campos (CAMPOS, 2006, p. 57 e 58): Como explicar, de outra forma, o cubo-futurismo-plásticoestilístico de tantos trechos do Miramar (por exemplo): Um cão ladrou à porta barbuda em mangas de camisa e uma lanterna bicor mostrou os iluminados na entrada da parede O cachorro deitado tinha duas caras com uma esfinge e cabelos bebês Mas a calçada rodante de Pigalle levou-me sozinho por tapetes de luzes e de vozes ao mata-bicho decotado de um dancing com grogs cetinadas pernas na mistura de corpos e de globos e de gaitas com tambores, Trechos onde cláusulas se encontram e se interceptam como planos, os atributos saltam do engaste e deslizam de uma superfície semântica a outra, as imagens se seccionam como providas de arestas? No trecho de MSJM citado anteriormente é possível ver o movimento de várias colagens de cenas (ANDRADE, 2006, p. 95): • Cena 1: “Um cão ladrou à porta barbuda em mangas de camisa e uma lanterna bicor mostrou os iluminados na entrada da parede”. • Cena 2: “O cachorro deitado tinha duas caras com uma esfinge e cabelos bebês”. • Cena 3 (cena contínua): “Mas a calçada rodante de Pigalle levou-me sozinho por tapetes de luzes e de vozes ao mata-bicho decotado de um dancing com grogs cetinadas pernas na mistura de corpos e de globos e de gaitas com tambores”. Nessas cenas, pode-se ver o “rompimento e a violação da coesão” (MALIÉVITCH in PERLOFF, 1993, p. 272), que são características do cubismo ou cubo-futurismo. Não há um tempo contínuo. A influência futurista se percebe pela rapidez do texto, decorrente da ausência de pontuação e da seleção e organização das palavras, como na cena 3. Oswald tenta chegar ao non sense com as palavras: para se chegar a uma imagem, ele deforma os adjetivos. As palavras em liberdade estão “...em uma espécie de otimismo vital, com o qual os desejos... empossam os aspectos mais vistosos da vida moderna, originando imagens não exatamente líricas, mas sim de uma grande eloquência verbal” (RAVEGNANI & ROSA, 1972, p. 239). Oswald foi original ao sintonizar suas idéias com as vanguardas européias. Fez isto num sentido muito diferente das antigas imitações existentes na literatura brasileira, como ressalta Antonio Cândido (CAMPOS, 2006, p. 59). A obra é dotada de autonomia estética e originalidade. Essa autonomia se dá com o surgimento de uma nova ideia de texto, com a maneira que Oswald internalizou as novas técnicas de vanguarda. E é original por ter sido a primeira obra que quebra totalmente com os cânones do passado. Haroldo de Campos chamou a obra de “o primeiro cadinho de nossa prosa nova” (CAMPOS, 2006, p. 20). Oswald mesmo relata o contato com o futurismo em Um Homem Sem Profissão: “Dos dois manifestos que anunciavam as transformações no mundo, eu conheci em Paris o menos importante, o do futurista Marinetti. Carlos Marx me escapara completamente” (ANDRADE, 2002, p. 117). Oswald também declara que voltou da Europa inocente como fora, porém tinha conhecido a liberdade. Ainda Oswald: Uma aragem de modernismo vinda através da divulgação na Europa do ‘Manifesto Futurista’, de Marinetti, chegara até mim... os valores estáveis da mais atrasada literatura do mundo impediam qualquer renovação. Bilac e Coelho Neto, Coelho Neto e Bilac. Houvera um surto de Simbolismo com Cruz e Souza e Alphonsus de Guimarães mas a literatura oficial abafou tudo (ANDRADE, 2002, p. 125). Oswald realmente começa aos poucos a por em prática seus anseios de mudança na literatura vigente quando começa a fazer reuniões em 1917 em sua garçonnière com Di Cavalcanti, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Pedro Domingues de Almeida, Anita Malfatti, etc. Também tinha a figura de Miss Cyclone, que era a amante de Oswald. Em suas cartas amorosas, Oswald assinava com o pseudônimo “Miramar” e Cyclone também o chamava de “Miramar” em bilhetes ou cartas. Nessa época, Oswald trabalha no Jornal do Commércio. Começam os primeiros escritos de MSJM. Do Manifesto Técnico da Literatura Futurista, de 1912, pode-se citar alguns itens que Oswald seguiu - com base em alguns trechos descritos por Haroldo de Campos. O primeiro indicador no Manifesto Futurista versa sobre a sintaxe e a morfologia: “1. É preciso destruir a sintaxe, dispondo os substantivos ao acaso do seu nascimento” (CAMPOS, 2006, p. 46). Exemplo: “Ia na frente bamboleando maleta preta nas portas lampiões eu menino” (ANDRADE, 2006, p. 75). Quanto à pontuação, o Manifesto aponta: “6. Nada de pontuação...” (CAMPOS, 2006, p. 46). Observa-se a falta de vírgulas no episódio-fragmento “122. VANITY FAIR” (ANDRADE, 2006, p. 134) para dar sequência às colagens ou imagens: “D. Tira-Vira de sabida suspeita esganiçava segredos ingleses para o filho usura calvo antigo organizador de cotillons com declarações néscias de amor e passadas aventuras criardais na Alemanha Kaiseriana.” Também merece destaque o indicador “9. Para envolver e captar tudo o que há de mais fugidio e incaptável na matéria, é preciso formar filetes cerrados de imagens ou analogias...” (CAMPOS, 2006, p. 46). No episódio-fragmento “135. PASSA O AMOR” (ANDRADE, 2006, P. 140, 141), Oswald descreve como é a tarde no desfile de Carnaval, como é o desfile, como se comportava sua amante. Fez essa descrição usando os substantivos ou adjetivos ou verbos por analogia para a formação de imagens: A tarde suicidava-se como Petrônio. Serpentinas explodiam ao nosso lado na extensão toldada de bandeiras e asfalto. Famílias iam por quatro filas de máscaras carruagens, estandarteando longes vultos ornamentados e confusos de caminhões caminhantes. Dominós agitavam-se como bandeiras amarelas. No enroscamento dos bonecos rodantes em roda dos maços fofos com guirlandas elétricas de papel, os carros tinham lentidões de rabos. Rolah ria como um animal espancado e fazíamos regressar as serpentinas vindo voando (ANDRADE, 2006, p. 140,141). No indicador “10. Sendo toda ordem fatalmente um produto da inteligência cautelosa, é preciso orquestrar as imagens, dispondo-as a partir de um máximo de desordem” (CAMPOS, 2006, p. 46). Oswald, num pequeno poema com 8 versos livres, “123. BUNGALOW DAS ROSAS E DOS PONTAPÉS” (ANDRADE, 2006, p. 135), consegue criar a cada verso uma nova imagem, alternando do português, para o inglês, para o português inventado e para o espanhol: Bondes goals Aleguais Noctâmbulos de matchs campeões E poeira Com vesperais Desenvoltas tennis girls No Paulistano Paso Doble (ANDRADE, 2006, p. 135) Em “11. ... Depois do verso livre, eis, enfim, as palavras em liberdade” (CAMPOS, 2006, p. 46), o manifesto aponta para a ruptura com o verso clássico. Podese ver que o uso das “palavras em liberdade” é o que mais Oswald empregou em MSJM. É por isso que a obra acabou tendo 163 fragmentos, com várias imagens e colagens sobrepostas, os quais são escritos em diversos estilos: missivas, poemas, citações, diálogos, fórmulas-padrão (convites, anúncios, etc), impressões, relatos de viagem, cartões-postais etc. 3.2 O ESTILO TELEGRÁFICO Assim como Marinetti falava numa “immaginazione senza fili”, Oswald, de sua parte, insinua no prefácio joco-sério de Machado Penumbra a caracterização do estilo miramarino como “estilo telegráfico”. A linguagem telegráfica pressupõe a comunicação lacônica, truncada, elíptica, em que os excessos são eliminados e apropria-se do estritamente indispensável ao entendimento. Marcada pela supressão, a linguagem de Oswald sofre influência da imprensa, do título telegráfico, do encurtamento, também porque, à época da produção de MSJM, trabalhava no Jornal do Commércio como jornalista. Com a influência talvez do jornalismo e talvez do contato com as idéias de Ardengo Soffici em Os Primeiros Princípios de uma Estética Futurista, Oswald tenha conseguido a chegar na sua ideia própria de composição de estilo telegráfico, porque na base do monólogo interior está o simultaneísmo que Soffici assim define: Posto o artista como centro móvel do universo vivente, todas as sensações e emoções, sem perspectiva de espaço ou de tempo, atraídas e fundidas num ato criativo poético. Simultaneidade de estados de espírito polarizados por vias analógicas de recordações, de pensamentos remotos, de impressões de outros lugares e de outros tempos , como luzes de astros errantes concentrados num espelho (CAMPOS, 2006, p. 51, 52). Um exemplo de como isso se deu na obra é o episódio-fragmento “82. TÁTICA” (ANDRADE, 2006, p. 113), onde Miramar fica sabendo da chegada ao Brasil, em Pernambuco, a bordo do navio Darro, da atriz (e futura amante) Mlle. Rolah. A notícia, vinda do jornal, embaralha-se na sua cabeça com o noticiário de guerra, resultando em flashes mentais: Os jornais noticiaram de repente que acossada pela conflagração achava-se em Pernambuco a bordo do Darro a jovem estrela cinematográfica Mlle. Rolah. Até ontem a ala esquerda dos aliados fazia recuarem quase que desordenadamente as tropas invasoras numa distância de 70 quilômetros enquanto Joffre Rolah e a ala direita formavam ângulo em Verdun com as tropas de leste cobrindo-as assim contra um envolvimento do Darro (ANDRADE, 2006, p. 113). 3.3 A PROSA CINEMATOGRÁFICA Há de ressaltar também que a obra MSJM tende para um tipo de prosa chamada de “prosa cinematográgica”, conforme apontado por Haroldo de Campos (CAMPOS, 2006, p. 53). À época, o tempo requeria uma nova poesia e uma nova prosa, comensuradas à realidade do cinema. Em MSJM, a simultaneidade da narrativa, a montagem de fragmentos, a ruptura do discursivo e o ritmo acelerado formam cenas, uma montagem, não numa sequência linear, não numa maneira cíclica, à qual ligaria Oswald aos padrões clássicos, mas de uma maneira moderna, entendido à maneira eisensteiniana. Como por exemplo, em: 31. PRIMEIRAS LATIDUDES A costa brasileira depois de um pulo de farol sumiu como um peixe. O mar era um oleado azul. O sol afogado queimava arranhacéus de nuvens. Dois pontos sujaram o horizonte faiscando longíquos bons dias sem fio. Os olhos hipócritas dos viajantes andavam longe dos livros – agora, polichinelos sentados nas cadeiras vazias. As antenas ruivas do capitão do Martha sondavam naufrágios nos rochedos de Madame de Sevri. À noite no jardim d’inverno havia festas de Pocinho em torno do dedicado e gordo médico de bordo. Um cônsul do Kaiser em Buenos Aires viajava como uma congregação. E até horas compridas quando as grumetes traziam o mar em baldes para cima da mesa de jogo, as rugas dum inglês tour de monde minuciosamente bebiam” (ANDRADE, 2006, p. 86). Antônio Cândido observou que Oswald fora o lançador da técnica cinematográfica no romance moderno, caracterizada pela “descontinuidade cênica”, pela “tentativa de simultaneidade” (CAMPOS, 2006, p. 53) e o emprego de palavras que indicam a ação, a velocidade, o moderno. 3.4 A ESTÉTICA DO FRAGMENTO Haroldo de Campos também chama a atenção para a “Estética do Fragmentário” presente na obra MSJM e a influência de Mallarmé, pela “destruição da frase em fragmentos”, como por exemplo, no episódio-fragmento “6. MARIA DA GLÓRIA: Preta pequenina do peso das cadeias. Cabelos Brancos e um guarda-chuva” (ANDRADE, 2006, p. 130); pela “descontinuidade em lugar da ligação” como, por exemplo, no episódio-fragmento “114. EXTENSÃO DA FAMÍLIA” (ANDRADE, 2006, p. 130), onde Oswald coloca quatro imagens diferentes numa mesma frase, a casa de Higienópolis iluminada, “passos no jardim”, “idas à rua” e crianças brincando na rua: “Higienópolis fervilhou iluminações passos no jardim idas à rua de crianças com jogos”; pela “justaposição em lugar da sintaxe de construção habitual”, lembrando que Oswald faz uso de aglutinações ou justaposições para também criar verbos, como “tranatlanticarem” ou “beiramarávamos” (ANDRADE, 2006, p. 102); sinais todos esses “de uma descontinuidade interior, de uma linguagem nas fronteiras do impossível” (CAMPOS, 2006, p. 53), o que cria a incoerência, a tensão, a surpresa, que são características da produção moderna à época de Miramar. 3.5 MSJM: O LINGUÍSTICO E O ESTÉTICO A língua portuguesa lusitana é por si própria híbrida, tendo influências do latim, do árabe e também de outras línguas. A língua portuguesa brasileira não é diferente. Uma língua nunca para de receber influências, de receber novas formas lexicais, como hoje temos o verbo deletar, por exemplo, e tantos outros neologismos já incorporados à língua. Segundo os gregos, a miscigenação violava as leis naturais. Já para Oswald, a mescla das línguas, o progresso, a modernidade e o crescimento da cidade de São Paulo eram fatores positivos. São Paulo era o pano de fundo de sua obra porque a cidade estava em processo de desenvolvimento, mas sua intenção linguística era abrangentemente brasileira: “A língua e a cultura são objetos do projeto de redescoberta do Brasil...” que Oswald pretende. “Saem manifestos e discórdias. As idéias maturam. João Miramar...” (FONSECA, 2007, p. 136). A experimentação estilística de MSJM veio como uma rebelião estética contra a literatura vigente. Oswald, um “blagueur”, segundo Mario de Andrade (ANDRADE, 2006, p. 7), em MSJM relatou e satirizou a alta sociedade paulistana do início do século 20, tendo como arma de destruição dessa literatura atrasada e dessa alta sociedade a língua portuguesa. Destruiu para poder criar. Degradou, jogou com as palavras. Estas são algumas características da rebelião moderna que Oswald pretendia. O pseudo-prefaciador de MSJM, Machado Penumbra, afirma que a obra é um “... trabalho de plasma de uma língua modernista, nascida da mistura do português com as contribuições das outras línguas imigradas entre nós...” (ANDRADE, 2006, p. 26). Isso se pode notar, por exemplo, no episódio-fragmento “77. MESES FAZENDEIROS” (ANDRADE, 2006, p. 110) onde Miramar imita a fala dos italianos: “Italianos de pé no chon...”. Esse procedimento também ocorre em “101. O GRANDE INDUSTRIAL” (ANDRADE, 2006, p. 122, 123), onde Oswald transcreve a fala de um latino, em espanhol: “- Vamos a nos quedar unos millionarios, hombre, con la Cubatense!”. Ou em “148. CORRIDA DE GANSO” (ANDRADE, 2006, p. 149). De maneira satírica, Oswald imita a maneira de falar dos imigrantes libaneses ou árabes: “- Aqui non teng agordo! Teng pagamento!” 3.6 MSJM: UMA PARÓDIA ESTILÍSTICA MSJM é uma paródia estilística. Seus personagens representam a São Paulo burguesa dos anos 1910 e 1920. Muitos dos nomes de personagens revelam humor e crítica social como Dr. Limão Bravo (crítico azedo), Dr. Pepe Esborracha (desastrado), Pôncio Pilatos da Glória (grande guia moral). As personagens se agrupam em seis segmentos: a) Familiares (Célia, Celiazinha, Cotita, Nair, Pantico, e outros). Os familiares são colocados na obra como uma paródia das famílias abastadas paulistanas que têm fazendas de produção de café. Apesar de essas famílias ainda terem um pensamento provinciano, elas ocasionalmente mandavam seus filhos ao exterior para poder estudar. Também era comum a aquisição de produtos importados e, na linguagem, a tendência de se usar palavras francesas misturadas ao português, pois àquela época, falar francês era chique, era moda. Eis um trecho muito divertido aonde um primo de Miramar foi estudar no exterior e já mistura as línguas e não chega a língua alguma: 68. RESSUREIÇÃO DO PÂNTICO Querido primo Há tempo que não te vejo e tu nem me escreves! Aqui este ano não entrou muitos bichos comigo. Só dão caxuleta nos pequenos. Mamãe e as manas chegou boas. Vou na corrida de cavalos, é só crilas. Já sei escrever a língua francesa como a Portuguesa e a Inglesa. Os Estados Unidos é cotuba. All right. Knock out! I and my sisters speek french. Moi e ma soer nos savons paletre bien le Français. Eu e minha ermã sabemos falal o francês” (ANDRADE, 2006, p. 104) b) Amigos (Britinho, C. Capua, José Chelinini, Pita, Maneco...). Britinho sempre foi o companheiro de Miramar. José Chelinini foi colega de Miramar no colégio secundário. Casou-se com a tia de Miramar já com título de conde; c) Professores (Carvalho, M. Ivone, D. Matilde, Peixotinho, Philippe, Miss Piss, M. Violet) Gostaria de chamar atenção ao nome Miss Piss (Senhorita Urina), mais um clownismo de Oswald; d) Mundo profissional (Banguirre y Menudo, T.T. Bezerra, Bica-Bam-Buda, Dr. Pepe Esborracha, Machado Penumbra, Dr. Papa-treta...) Através dos nomes, Oswald já dá um tom de sátira. Pepe Esborracha é médico. Machado Penumbra é prefaciador da obra e também personagem, geralmente orador em solenidades. Abre as Memórias Sentimentais de João Miramar com uma impagável paródia dos beletristas brasileiros e seus imponentes prefácios. Penumbra: Se no meu foro interior, um velho sentimentalismo racial vibra ainda nas doces cordas alexandrinas de Bilac e Vicente de Carvalho, não posso deixar de reconhecer o direito sagrado das inovações, mesmo quando elas ameaçam espedaçar nas suas mãos hercúleas o ouro argamassado pela idade parnasiana. VAE VICTIS!” (ANDRADE, 2006, p. 70) e) Mundo social (D. Bambina, Sr. Fíleas, João Jordão, M. Penélope, Rolah...) Rolah era atriz de cinema e teve um romance com Miramar. Fíleas era um poeta Parnasiano; f) Fazenda (Capitão Benedito, Minão da Silva, Candoca, Delina...). Nesses personagens, Oswald mostra a simplicidade do homem do campo, em especial Minão da Silva. Apesar de tentar falar ou ler da maneira que as pessoas da cidade o fazem, esse personagem é mais direto na sua fala e não sofre as deformações ou degradações ou desanventuras financeiras que as personagens da cidade passam. É um personagem mais puro. A paródia se dá, desta forma, não somente no plano da linguagem, mas também no plano das organizações sociais, Essa relação entre o plano da expressão e do conteúdo é o que fundamenta o modo de operação de Oswald de Andrade, na obra Memórias Sentimentais de João Miramar, e que incidirá sobre os procedimentos elencados neste capítulo. Os procedimentos irônicos, a alegoria e a sátira, enquanto procedimentos estéticos serão tratados no próximo capítulo. 4 ALÉM/AQUÉM O MAR: UMA MIRADA EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR João Miramar não é apenas personagem, mas também representa o autor, é seu porta-voz, pois através dele é que se faz a denúncia crítica da realidade de seu tempo, das figuras medíocres que faziam parte do início do século XX: intelectuais da época, fazendeiros e suas esposas madames e grandes comerciantes (alta burguesia), ou seja, “os estratos mais altos da população urbana...” de São Paulo (CAMPOS, 2006, p. 11) que é “... o caso biográfico de Oswald de Andrade” (CAMPOS, 2006, p. 11). Oswald faz o uso da sátira e da ironia, do “joco sério” e da surpresa em Memórias Sentimentais de João Miramar para poder criticar a sociedade, o seu meio e a literatura de sua época, como o próprio Oswald afirma: “Uma das idéias que me seduziram é essa se que a base do ‘humour’ é feita mais de que autocrítica, de autoflagelação” (ANDRADE in OLIVEIRA, 2001, p. 112). 4.1 DA IRONIA E DA SÁTIRA EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR A ironia é resultado do astuto emprego do contraste, com o intuito de perturbar o interlocutor. Segundo Massaud Moisés: A ironia é uma forma de humor, ou desencadeia-o, acompanhada de um sorriso; o sarcasmo induz ao cômico e ao riso, quando não à gargalhada. A ironia parece respeitar o próximo, tem qualquer coisa de construtivo, enquanto o sarcasmo é demolidor, impenitente. Mais ainda: a ironia pode depender do contexto; fora dele, o seu efeito desaparece, tragado pela obscuridade resultante; já o sarcasmo não se condiciona tão estreitamente ao ambiente psicológico e verbal no qual se move (MOISÉS, 2002, p. 247). A sátira é uma técnica literária ou artística que ridiculariza um determinado tema (indivíduos, organizações, estados), geralmente como forma de intervenção política ou outra, com o objetivo de provocar o interlocutor. Em Memórias Sentimentais de João Miramar, Oswald foi radical, irônico, satírico e provocativo. Empregou a sátira para provocar o riso, o espanto, o estranhamento. Segundo Oswald, ninguém “faz sátira rindo sozinho. A eficácia da sátira está em fazer os outros rirem de alguém, de alguma instituição, acontecimento ou coisa. Sue função é, pois, crítica e moralista. E através da ressonância, a deflagração de um estado de espírito oposto. A sátira é sempre oposição” (ANDRADE in OLIVEIRA, 2001, p. 102). No fragmento “88. JABOTICABAS”, o autor ironiza e satiriza o personagem Dr. Pilatos em sua mediocridade e satiriza os falares da elite paulistana, que se gabava por comprar produtos vindos da Europa e “estudar e se profissionalizar no exterior” (MENDES, 2006, p. 93) e também o recheio retórico em suas falas de autogabar-se, além de expor satiricamente as instituições burguesas, Dr. Mandarim e suas titulações ocas: O Dr. Pilatos ficou fulo porque o Dr. Mandarim Pedroso, tesoureiro pé-pé do Banco Nordeste de Engole-Marmanjos e presidente do Recreio Pingue-Pongue, dissera em palestra referidora de um genro seu a frase: - esses incógnitos... - Chamar de incógnitos! É um rapaz direito, tem o seu cobrezinho. E continuou para mim com argumentos de paletó puxado durante a pesquisa de pomar: - Eu já passei com um almoço por semana e cheguei à posição que cheguei. Sou um autodidata! E já fui citado pelo padre Berlangete da Universidade Católica de Beirute. Escrevi a biografia do patriarca Basílio 8 que foi torrado numa igreja por causa de Orígenes. Irei a Ravena estudar de perto o século 5. As academias orientalistas abrirme-ão as portas, oh! ah! (ANDRADE, 2006, p. 116). No fragmento “72. GARAGE E ESCRITÓRIO”, também é possível ver: “Fíleas era um cosmético de sonetos” (ANDRADE, 2006, p. 107). Fragmento “73. GARAGE E ESCRITÓRIO” A casa de Higienópolis sossegava preguiças tropicais por entre a basta erva do jardim aquintilado até outra rua com árvores e sol lembrando a longe Fontainebleau de minha sogra. Célia era um circo. Os amigos respeitabundos transferiam-se para o escritório de caricaturas paredais e poker na bolsenta Rua Quinze em sacada de cimento armado avistadora de Brases fabricantes. As cotações de Santos chegavam pela campainha regular do fone assegurando a gasolina que por desfatio de cinco horas até o jantar eu asfaltava em primeira segunda terceira marcha-ré no aprendimento ajardinado de bungalows Rua Augusta abaixo. O dr. Pepe Esborracha e o sábio Pilatos vinham fiéis e gulosos como estorvos para o jantar dos dias santificados de convite de Célia imprudentíssima. Pelos sábados eu e o poeta Fíleas britanizávamos a semana em sortidas por caminhos pores de sol para lá de Santana. Os domingos eram grávidos de sono. (ANDRADE, 2006, p. 107, 108). No fragmento 73, vê-se a exaltação da boa vida da alta sociedade paulistana de maneira irônica. Miramar compara sua casa em Higienópolis e sua vista com Fontainebleau, na França. Vale ressaltar que para os mais abastados naquela época, tudo que era da Europa, principalmente da França, tinha mais status. A forma como Oswald colocou as palavras nesse trecho tem influências do Futurismo e também a exaltação à velocidade, ao que era moderno na época, a invenção de palavras, a falta de pontuação, por exemplo: “... sossegava preguiças tropicais... Célia era um circo... respeitabundos... As cotações de Santos chegavam pela campainha regular do fone... asfaltava em primeira segunda terceira marcha-ré... britanizávamos... Os domingos eram grávidos de sono” (ANDRADE, 2006, p. 107, 108). Outras figuras da sociedade e da literatura vigente da época também são satirizadas, como o Dr. Pepe Esborracha, Pilatos e o poeta parnasiano Fíleas: ...O dr. Pepe Esborracha e o sábio Pilatos vinham fiéis e gulosos como estorvos para o jantar dos dias santificados de convite de Célia imprudentíssima... Pelos sábados eu e o poeta Fíleas britanizávamos a semana em sortidas por caminhos pores de sol para lá de Santana (ANDRADE, 2006, p. 107, 108). 4.1.1 Alegoria e Mímese Sabe-se que na literatura, a alegoria é o discurso acerca de uma coisa para fazer compreender outra. Designa uma coisa pelas palavras e uma outra coisa – quando não uma coisa inteiramente oposta – pelo sentido. A alegoria é composta de uma metáfora contínua. A alegoria constitui, portanto, num tipo de discurso inicialmente apresentado com um sentido próprio e que apenas serve de comparação para tornar perceptível um outro sentido que não é expresso. Entende-se por mímese a imitação ou representação do real na arte literária, ou seja, a recriação da realidade. Lúcia Helena defende a tese da duplicidade de caminhos da prosa oswaldiana e a distingue pelos procedimentos miméticos. Vê Miramar como mimese de produção, ou seja, produz na linguagem uma realidade literária. A isso nomina concepção alegórica da mimese, ou ainda: “mediação dialética entre o real e o imaginário” (HELENA, 1985, p. 104). Em MSJM, a denúncia do poder estrangeiro e a crítica às convenções são evidenciadas, mas não é só: a síntese e a surpresa desses fragmentos podem ser remetidas ao Manifesto da Poesia Pau-Brasil (embora posterior) que declara a rejeição à mentalidade acadêmica e formal pelo “contrapeso da originalidade nativa”. Kenneth D. Jackson afirma: “pode-se dizer que as Memórias Sentimentais retratam o contexto social brasileiro de um modo caricatural e paródico mais aguçado, porque Oswald estava reagindo contra um estilo e um contexto social do qual participava” (JACKSON, 1978, p. 30). São Paulo, nos anos de 1910, época em que passa se MSJM, ainda era uma província, porém, uma província em grande expansão, por conta da indústria. A alta sociedade de São Paulo era formada pelas famílias abastadas que tinham fazendas de plantação de café. A economia de São Paulo girava em torno das cotações do café. As outras camadas da sociedade eram formadas por pessoas vindas do interior ou imigrantes (árabes, espanhóis, italianos, portugueses, alemães, etc). Alguns imigrantes faziam parte da classe burguesa (comércio), mas a grande maioria fazia parte da classe operária, que trabalhava na indústrias. São Paulo era dividida entre bairros ricos e bairros pobres. Em MSJM, Oswald satiriza a alta sociedade de São Paulo, que é a classe a que ele mesmo pertencia. Essa alta sociedade exaltava tudo o que era moda na Europa. Oswald, em suas viagens à Europa travou contato com os movimentos de vanguarda. Com o que aprendeu/digeriu na Europa, ele quis mostrar através da paródia, da ironia e da sátira em MSJM que o mais importante é a cultura brasileira e não a vida importada e ostentosa. 4.1.2 O Discurso e a Pompa Certamente, as personagens da obra mimeticamente simbolizam figuras do mundo real que são postas em julgamento crítico pelo ridículo das situações em que são retratadas. Tais situações são permeadas pelo discurso que consolida as práticas do “ridículo”. O fragmento “81. NOITE INSTITUTAL” satiriza o discurso pomposo de Machado Penumbra: “‘L’univers c’est une immense poésie, la poésie de Dieu, disse o grande Lamennais!’ Discursos Sul-Americanos. Machado Penumbra” (ANDRADE, 2006, p. 113). Discursos à moda Machado Penumbra são pomposos, cheios de rodeios e pouco práticos. Aqui, como em toda obra Oswald satiriza o uso de palavras em francês, que era um costume da alta sociedade e o discurso pomposo que era utilizado por escritores parnasianos e pela alta classe, que era conservadora. No fragmento “89. LITERATURA”, há a contraposição do discurso soberbo, imponente e vazio de Machado Penumbra ao discurso de Minão da Silva que, apesar de tentar “falar difícil”, é simplório e caboclo, direto e objetivo, “ágil e cândida, como uma criança” (ANDRADE, 2003, p. 42). Como o título já mostra “89. LITERATURA”, talvez essa seja uma tentativa de Oswald de criticar (através da ironia) a literatura parnasianista e os discursos pomposos da alta sociedade. Desta forma, Oswald mostra que o discurso de Minão da Silva, que é um caboclo da fazenda de Miramar, é mais objetivo e direto que o discurso de Machado Penumbra. 4.1.3 Os Negócios e a Incompetência Não só o falar vazio é ironizado, também os negócios e a incompetência, como ocorre nos fragmentos “116. AS FAZENDAS DA CONDESSA”, “119. TRANSAÇÕES” e “120. ÚLTIMO FILM”: “... mas a Companhia Industrial e Segurista de Imóveis Móveis aceitara o negócio depois do vesgo exame do grande advogado Bica-Bam-Buda” (ANDRADE, 2006, p. 131, 132). Esse trecho mostra (e também nos episódio-fragmentos citados) como Miramar era imprudente nos negócios. Através dos nomes non sense citados, Oswald mostra ao leitor que Miramar já não tinha controle dos seus negócios. Miramar dava atenção demasiada à sua amante (a atriz Rolah) e aos negócios de risco que assumiu, como a companhia cinematográfica. Miramar usou e abusou da fortuna de sua mulher Célia, deixou sua família e as cotações do café em segundo plano para viver uma vida boêmia. No fragmento “160. DISCURSO ANÁLOGO AO APAGAMENTO DA LUZ DURANTE O FOX-TROT PELO DR. MANDARIM PEDROSO” (ANDRADE, 2006, p. 157), Dr. Mandarim Pedroso discursa sobre o bom comportamento dos jovens no clube Recreio Pingue-pongue, por ocasião de uma dança de salão em que faltou luz: “... uma traiçoeira panne veio inundar de treva o recinto de fulgurantes ouropéis” (ANDRADE, 2006, p. 158). Seguindo a lição da Grécia, realizam o eterno anexim Mens sana in corpore sano. Aqui não se lê romances de baixa palude literária nem versos futuristas! Só se lê Rui Barbosa. Não! Aqui, formam-se dignos filhos e filhas do grande ser que Bilac chamou na sua frase cinzelada e lapidar ‘Astuta e forte, a grande mãe das raças, Eva!’ (ANDRADE, 2006, p. 158). Esse discurso destaca Rui Barbosa e critica os versos futuristas: “Aqui não se lê romances de baixa palude literária nem versos futuristas!” (ANDRADE, 2006, p. 158). Posto na situação em que foi, sugere exatamente o oposto, o que pode se levar à antecipação das concepções presentes no Manifesto Antropófago (publicado em 1928): a) “Contra todos os importadores de consciência enlatada”(ANDRADE, 2006, p. 48) quando Oswald cita Rui Barbosa, b) “Só se lê Rui Barbosa” (ANDRADE, 2006, p. 158), c) “Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade” (ANDRADE, 2006, p. 51) e d) quando ele cita o Futurismo, “... nem versos futuristas!” (ANDRADE, 2006, p. 158). Essas incursões do autor realmente mostram que Oswald propõe o contrário. Oswald propõe a absorção das vanguardas, a negação do estilo parnasiano e a criação de uma arte realmente brasileira. 4.2 SÓ A ANTROPOFAGIA OS UNE O prefácio de MSJM foi escrito por Machado Penumbra (Oswald de Andrade), que também é personagem na obra. Já neste prefácio, Machado Penumbra fala sobre a “... língua modernista nascida da mistura do português com as contribuições das outras línguas imigradas entre nós...” (ANDRADE, 2006, p. 70, 71) e que a tendência da construção para a simplicidade latina é interessante e original. Também ressalta a violação das regras comuns da pontuação, porém afirma que dessa maneira se faz sentir a grande forma frase. A volta ao primitivismo e a expressão livre são características das vanguardas européias. Oswald, em suas viagens à Europa, devorou as tendências européias e travou com MSJM um comprometimento com o que é simples, nacional, como afirma Mário de Andrade: “Quando estudei as Memórias Sentimentais chamei atenção para algumas coincidências do brasileiro com Expressionismo e Dadá. O que não firmei bem é que o livro continha germinalmente alguns elementos de construção brasileira” (ANDRADE in FONSECA, 2007, p. 153). 4.2.1 A Linguagem Híbrida / Neológica Em MSJM, Oswald busca uma nova linguagem, um ajustamento da expressão, uma linguagem híbrida, fragmentada, com neologismos. Cria palavras que não existem no fundo lexical para chegar ao máximo da expressão, como por exemplo, no episódiofragmento “27. FÉRIAS”: Dezembro deu à luz das salas enceradas de tia Gabriela as três moças primas de óculos bem falados. Pantico norte-americava. E minha mãe entre médicos num leito de crise decidiu meu apressado conhecimento viajeiro do mundo (ANDRADE, 2006, p. 84). É possível ver neste último fragmento que há três cenas: a primeira é a de três primas de Miramar numa sala encerada, a segunda é de seu primo Pantico que vai para os Estados Unidos e a terceira é a da mãe de Miramar doente, entre médicos, numa cama, que consente a viagem do filho à Europa. Em MSJM, Oswald faz esse jogo com as palavras, procura um outro substantivo para dar qualidade a outro substantivo ou até outro adjetivo não relativo à palavra descrita para poder chegar ao máximo da expressão: “... três moças primas... óculos bem falados... Pantico norte-americava...” (ANDRADE, 2006, p. 84). Ou como salienta Mário da Silva Brito: “João Miramar reestrutura o idioma, a linguagem, dócil argila que o artista modela, aos tabefes ou acariciadoramente” (BRITO, 1972, p. 72). Todos os aspectos levantados anteriormente sobre a obra MSJM, apontam para uma estrutura subversiva da linguagem. Oswald fragmenta o discurso, subverte o discurso linear, hierárquico da classe dominante, inverte posições de valores (estéticos, éticos e lógicos), produz uma mistura de eventos. Seguindo a devoração das vanguardas européias, ele não constrói, destrói para construir o novo. Procura uma nova linguagem, critica a literatura e a sociedade pela literatura. Faz “o uso consciente da literatura como instrumento de revolta social, a defesa de um estatuto específico da linguagem...” (NUNES, 1979, p. 23) moderna e brasileira. CONCLUSÃO Observou-se nesta pesquisa a ação das Vanguardas Européias sobre a linguagem utilizada em Memórias Sentimentais de João Miramar que foram suas viagens à Europa, suas visitas às exposições de arte moderna, seu contato com o Manifesto Futurista e com o Manifesto Técnico da Literatura Futurista, suas reuniões com artistas de vanguarda, suas leituras dos novos filósofos, seu interesse pelo que era moderno, suas reuniões com Menotti Del Picchia, Anita Malfatti, Mário de Andrade, entre outros artistas modernistas. Com isso, Oswald antecipou as idéias presentes nos seus manifestos Pau-Brasil (1924) e Antropófago (1928), sendo a obra uma demonstração da língua portuguesa falada em São Paulo, através da paródia e da desconstrução da linguagem. Seguindo a idéia do Manifesto Pau-Brasil, a língua portuguesa na obra aparece com distorções e neologismos, como ela é falada na São Paulo do início do século XX. É uma ruptura com a língua de Portugal, do colonizador, é uma ruptura com os cânones clássicos vigentes até então na literatura: a língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. “A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.” E, seguindo a idéia da antropofagia, Oswald “devora” as Vanguardas Europeias e coloca, em sua obra, o estilo telegráfico da linguagem, a anormalidade, a surpresa, a desconstrução. REFERÊNCIAS ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo Livros, 1990. ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil. São Paulo: Globo Livros, 2003. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. BRITO, Mário da Silva. As metamorfoses de Oswald de Andrade. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1972. CAMPOS, Haroldo de. Miramar na Mira. In: ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo Livros, 2006. P. 19 - 64. CÂNDIDO, Antônio; PIGNATARI, Décio; ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: memórias e confissões, sob as ordens de mamãe, inclui inéditos. São Paulo: Globo Livros, 2002. FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade: biografia. São Paulo: Globo Livros, 2007. HELENA, Lucia. Totens e tabus da modernidade brasileira: símbolo e alegoria na obra de Oswald de Andrade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. JACKSON, Kenneth D. A Prosa Vanguardista na Literatura Brasileira: Oswald de Andrade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978. MENDES, Camila Faccioni. Paisagem Urbana: Uma Mídia Redescoberta. São Paulo: Senac, 2006. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Editora Cultrix, 2002. MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. NUNES, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979. OLIVEIRA, Vera Lúcia de. Poesia, mito e história no modernismo brasileiro. São Paulo: UNESP, 2001. PERLOFF, Marjorie. O momento futurista: avant-garde, avant-guerre, e a linguagem da ruptura. 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