faculdade de são bernardo do campo rodrigo tomé hibridismo e

Transcrição

faculdade de são bernardo do campo rodrigo tomé hibridismo e
FACULDADE DE SÃO BERNARDO DO CAMPO
RODRIGO TOMÉ
HIBRIDISMO E ANTROPOFAGIA EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO
MIRAMAR, DE OSWALD DE ANDRADE
São Bernardo do Campo
2010
RODRIGO TOMÉ
HIBRIDISMO E ANTROPOFAGIA EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE
JOÃO MIRAMAR, DE OSWALD DE ANDRADE
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Faculdade de São Bernardo do Campo, no Curso
de Letras, como exigência parcial para a obtenção
do título de Licenciado em Letras Português e
Inglês e Respectivas Literaturas.
Orientadora: Professora Doutora Sonia Melchiori
Galvão Gatto
São Bernardo do Campo
2010
Rodrigo Tomé
HIBRIDISMO E ANTROPOFAGIA EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE
JOÃO MIRAMAR, DE OSWALD DE ANDRADE
Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao Curso de Letras da Faculdade
de São Bernardo do Campo, como exigência parcial para obtenção do título de
Licenciado em Letras.
Aprovado em ______ de __________ de 2010.
Profa. Especialista Gessamy Aparecida de Almeida
Faculdade de São Bernardo do Campo
Profa. Mestra Helba Carvalho
Faculdade de São Bernardo do Campo
Profa. Doutora Sonia Melchiori Galvão Gatto – Orientadora
Faculdade de São Bernardo do Campo
A minha orientadora, aos meus professores,
aos meus amigos e a minha família pelo afeto e
colaboração durante esta caminhada.
AGRADECIMENTOS
A minha família pelo apoio e carinho.
A minha orientadora Profa. Dra. Sonia Melchiori Galvão Gatto que, com
diretrizes seguras, deu-me condições de desenvolver e finalizar este trabalho.
Aos professores sem os quais não teria sido possível realizar a pesquisa.
A todos que participaram direta ou indiretamente na elaboração deste trabalho.
RESUMO
Esta pesquisa apresenta como tema central o hibridismo presente na obra
Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. Esta obra foi
escolhida por se tratar de uma obra inovadora estética e linguisticamente, que quebra
com a literatura de estilo clássico vigente até então. Para esta pesquisa, o objetivo
principal é mostrar como Oswald de Andrade “devora” as idéias das Vanguadas
Européias e as reaproveita em sua obra. Este ato antropofágico traduz-se em uma escrita
híbrida, lingüística e estruturalmente, anedótica. A pesquisa foi realizada com base nos
estudos críticos de Haroldo de Campos, Mário da Silva Brito, Benedito Nunes e Maria
Augusta Fonseca. Oswald, seguindo sua idéia antropofágica e nacionalista dos
Manifestos Pau-Brasil (1924) e Antropófago (1928) – esses manifestos são posteriores
a Memórias Sentimentais de João Miramar -, devorou as Vanguardas Européias e
criou a primeira grande obra Moderna e Brasileira.
Palavras-chave: Memórias Sentimentais de João Miramar, Oswald de
Andrade, Antropofagia, Vanguardas Européias, hibridismo.
ABSTRACT
This research presents as its central theme the hybridism that is presented in
Memórias Sentimentais de João Miramar. This novel was chosen because it is one of the
best productions of the first phase of Brazilian Modernism and it is the first production
that presents many linguistic and aesthetic innovations that break with the classical
literature which was the current literature at the beginning of the twentieth century. For
this research, the main scope is to show how Oswald de Andrade "devours" the ideas of
the European Vanguards as he traveled to Europe several times, contacted modern
artists and discussed frequently with other Brazilian artists who also had the intention to
create modern literature, and also how Oswald could transfer these thoughts to his book.
The survey was conducted based on the studies of Haroldo de Campos, Mário da Silva
Brito, Benedito Nunes. Oswald, following his anthropophagic and nationalist idea from
Manifestos Pau-Brasil (1924) and Antropófago (1928) – these manifests were released
after Memórias Sentimentais de João Miramar –“devoured” the Vanguards and
created the first great Modern Brazilian novel.
Key words: Memórias Sentimentais de João Miramar, Oswald de Andrade,
Anthropophagy, European Vanguards, hybridism.
SUMÁRIO
1
2
2.1
INTRODUÇÃO...................................................................................................... 10
O DEVORADOR DE PALAVRAS: OSWALD E ANTROPOFAGIA ...........
11
ORIGENS E RENOVAÇÃO ESTÉTICA NAS ARTES NO FINAL DO 11
2.1.
SÉCULO XIX E AS VANGUARDAS EUROPÉIAS ...........................................
Oswald de Andrade e o contato com as Vanguardas Européias.........................
13
1
3
O HIBRIDISMO LINGUÍSTICO E A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM
16
3.1
3.2
3.3
3.4
3.5
3.6
4
OSWALD..................................................................................................................
MSJM E O FUTURISMO .......................................................................................
O ESTILO TELEGRÁFICO.....................................................................................
A PROSA CINEMATOGRÁFICA..........................................................................
A ESTÉTICA DO FRAGMENTO............................................................................
MSJM: O LINGUÍSTICO E O ESTÉTICO ............................................................
MSJM: UMA PARÓDIA LINGUÍSTICA E ESTILÍSTICA ................................
ALÉM/AQUÉM O MAR: UMA MIRADA NA LINGUAGEM EM
16
20
21
21
22
23
26
4.1
MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR........................................
DA IRONIA E DA SÁTIRA EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO 26
4.1.
MIRAMAR .............................................................................................................
Alegoria
e 29
1
4.1.
Mímese ...................................................................................................
O
Discurso
e
2
4.1.
Pompa..............................................................................................
Os Negócios e a Incompetência............................................................................... 31
3
4.2
a 30
SÓ A ANTROPOFAGIA OS UNE ........................................................................
32
CONCLUSÃO.......................................................................................................... 33
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 36
1
INTRODUÇÃO
Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, é uma das
obras mais importantes da primeira fase do Modernismo Brasileiro. Nessa obra, a
língua portuguesa é misturada a outras línguas para demonstrar a formação da cultura
brasileira e a diversidade de etnias, línguas e culturas presentes em São Paulo, no início
do século XX, e suas influências na língua portuguesa e na sociedade. Vê-se na obra,
então, um rompimento com a norma culta da língua portuguesa lusitana, através da
paródia e a defesa de uma língua brasileira, uma atitude nacionalista e antropofágica,
uma língua que é, sim, diferente da língua de Portugal, uma língua cheia de
neologismos e influências.
Observa-se que o objetivo do autor é expressar, criticar e satirizar através da
língua. As regras da língua, sua normatividade, são diluídas no falar do povo, que se
configura em forma expressão. Esta é o que importa. Oswald usa o clownismo, a sátira,
maneja as frases para mostrar e parodiar a alta sociedade de São Paulo do início do
século XX, defendendo o nacional, o brasileiro, de forma crítica.
Na obra, Oswald usa as principais características da estrutura moderna, tais
como a dissonância, a plurissignificação, a falta de pontuação, a influência da fotografia
e do cinema, a colagem de imagens, a fusão de contrastes, a complexidade, a
fragmentação, a surpresa, o estranhamento, o conteúdo deformado, a dramacidade
agressiva, a ruptura com a norma culta da língua e com a sua sintaxe e a ruptura com os
cânones clássicos da literatura.
Com base em Haroldo de Campos, Antônio Cândido, Mário da Silva Brito,
Lucia Helena, Maria Augusta Fonseca e outros também renomados pesquisadores, o
objetivo desta pesquisa é mostrar como as Vanguardas Européias influenciaram na
linguagem utilizada em Memórias Sentimentais de João Miramar (finalizado em
1924), levando essa ação a uma atitude antropofágica e nacionalista, como o próprio
autor Oswald de Andrade defende nos Manifestos Pau-Brasil (1924) e Antropófago
(1928), e como Oswald antecipou alguns pensamentos dos manifestos em sua obra.
2
O DEVORADOR DE PALAVRAS: OSWALD E A ANTROPOFAGIA
Chama-se de Modernismo o conjunto de movimentos culturais, escolas e estilos
que permearam as artes na primeira metade do século XX. Encaixam-se nesta
classificação a literatura, a arquitetura, a pintura, a escultura, o teatro e a música. O
Movimento Modernista baseou-se na idéia de que as formas tradicionais das artes e da
literatura
tornaram-se ultrapassadas, não acompanhavam a vida cotidiana e
apresentavam uma representação histórica, inclusive das organizações sociais, que não
condiziam com a constituíção da cultura, e que se fazia fundamental deixá-las de lado e
criar no lugar um novo pensamento mais crítico.
Segundo Massaud Moisés, o Modernismo é o “signo das vanguardas, da
inconformidade e do futuro” (MOISÉS, 1996, p. 11) e, segundo Baudelaire, “a
modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra
metade o eterno e o imutável” (BAUDELAIRE, 1996, p. 24).
A constatação de Baudelaire apoiou a atitude modernista de reexaminar cada
aspecto da vida e do cotidiano, do comércio à filosofia, com o objetivo de descartar o
que seria improdutivo e ultrapassado (segundo os preceitos modernistas), substituí-los
por novas formas correspondentes à nova dinâmica do mundo, e aproveitar criticamente
o que este passado ofereceu.
2.1
ORIGENS E RENOVAÇÃO ESTÉTICA NAS ARTES NO FINAL DO
SÉCULO XIX E AS VANGUARDAS EUROPÉIAS
Em princípio, o Movimento pode ser descrito genericamente como uma rejeição
da tradição e uma tendência a encarar problemas sob uma nova perspectiva baseada em
idéias e técnicas atuais. A aversão à tradição pelos impressionistas faz deste (o
Impressionismo) um dos primeiros movimentos artísticos a serem vistos, em
retrospectiva, como moderno.
Na literatura, o Simbolismo seria uma grande influência no desenvolvimento do
Modernismo, devido ao seu foco na sensação. Filosoficamente, a quebra com a tradição
por Nietzsche e Freud provê um embasamento chave do movimento que estaria por vir:
começar de novo de princípios primários, abandonando as definições e sistemas prévios.
Esta tendência do movimento em geral conviveu com as normas de representação do
fim do século XIX. Frequentemente seus praticantes consideravam-se mais
reformadores do que revolucionários.
Começando na década de 1890, uma linha de pensamento passou a defender que
era necessário deixar completamente de lado as normas prévias, e ao invés de
meramente revisitar o conhecimento passado à luz das técnicas atuais, seria preciso
implantar mudanças mais drásticas. Observa-se cada vez mais presente a integração
entre a combustão interna e a industrialização e o advento das ciências sociais na
política pública.
Nos primeiros quinze anos do século XX, uma série de escritores, pensadores e
artistas fizeram a ruptura com os meios tradicionais de se organizar a literatura, a
pintura, a música - novamente, em paralelo às mudanças nos métodos organizacionais
de outros campos. O argumento era o de que se a natureza da realidade mesma estava
em questão, e as suas restrições, sentia-se que, já que as atividades humanas até então
comuns estavam mudando, então a arte também deveria mudar radicalmente.
O modernismo no Brasil modificou a discussão sobre o problema da
dependência cultural, levando muitos escritores a reverem, de maneira ainda mais
crítica, o presente e o passado e a denunciar a alienação vigente em muitos setores da
vida nacional. Segundo Vera Lúcia de Oliveira, “na verdade, é com o Modernismo que
se consolidará, definitivamente, a emancipação das letras e das artes brasileiras”
(OLIVEIRA, 2001, p. 63). O ponto principal de todas as discussões e polêmicas sobre
as tendências de vanguarda foi a Semana da Arte Moderna, que se realizou em São
Paulo, de 11 a 18 de fevereiro de 1922, num clima de renovação cultural. Com a
Semana da Arte Moderna e com suas conquistas, a literatura brasileira alcançou uma
alma nacional e transformou-se em instrumento de expressão da cultura do país.
O modernismo brasileiro marcou um período de excelente abertura a todas as
vanguardas e também a urgência de reencontrar um Brasil sem contaminação, livre de
qualquer influência estrangeira. Havia, então, “um desejo de abrir-se ao mundo, um
máximo cosmopolitismo... também uma recusa de passividade e do servilismo com os
quais muitos intelectuais haviam assimiliado modelos culturais e estéticos de
importação” (OLIVEIRA, 2001, p. 64).
2.1.1
Oswald de Andrade e o contato com as Vanguardas Européias
Em 12 de fevereiro de 1912, Oswald de Andrade – que já tinha trabalhado para o
Diário Popular e escrito para o semanário O Pirralho - embarca no Porto de Santos a
bordo do navio Martha Washington rumo ao continente Europeu. Visita a Itália, a
Alemanha, a França, a Bélgica, a Inglaterra e a Espanha. Trabalha como correspondente
do matutino Correio da Manhã. Neste mesmo ano, Oswald retorna ao Brasil, trazendo
informações sobre o Futurismo, um movimento chefiado pelo poeta italiano Filippo
Marinetti, que queria trazer à tona as mudanças provocadas pela nova civilização que
surgia com o desenvolvimento urbano e industrial.
Fascinado com essas idéias futuristas, Oswald começou a divulgar notas pela
imprensa ressaltando a necessidade de renovar o estilo de arte brasileira (Simbolista e
Parnasianista), no sentido de acompanhar as mudanças no meio urbano que propiciava
também uma mudança de mentalidade.
Outro artista que contribuiu para a formação do modernismo brasileiro foi o
pintor Lasar Segall. Ele que tinha acabado de chegar da Europa trouxe para São Paulo
as idéias do Expressionismo alemão, uma arte que deformava as imagens e privilegiava
a representação material e psicológica. Uma exposição realizada por Lasar Segall em
1913 é considerada a primeira exposição modernista no Brasil, caracterizando um
momento de ruptura.
No ano de 1914, uma jovem pintora realizava sua primeira exposição. Anita
Malfatti, depois de quatro anos de estudos, também chegava da Europa e trazia para o
Brasil, como Lasar Segall, as novidades do Expressionismo alemão. Essa exposição de
Anita foi uma exposição em caráter experimental, mas serviu como um ensaio de como
seria a grande exposição em 1917. As duas exposições, de Segall e Anita, não tiveram
muita repercussão, mas serviram, mesmo que a passos lentos, para uma renovação
artística.
Em 1915 um artista italiano, Ernesto Bertarelli, colaborador do Jornal do Estado
de São Paulo, publica um artigo chamado "Lições de Futurismo". Esse autor faria uma
revelação sobre a influência do futurismo italiano nas artes brasileiras. Neste ano,
Oswald de Andrade reaparece e publica na revista O Pirralho, a qual ele mesmo
dirigia, vários artigos para chocar os padrões de gosto. Em um deles, ele procurava
enfatizar a urgência de uma pintura que superasse o academicismo e se tornasse uma
verdadeira pintura nacional.
Em 1916, em A Cigarra, em O Pirralho e em A Vida Moderna, Oswald
publica trechos do futuro romance Memórias Sentimentais de João Miramar.
Durante os anos que antecederam a Semana da Arte Moderna de 1922, Oswald escreveu
em jornais e revistas trechos de Memórias Sentimentais de João Miramar, A Estrela
do Absinto, Os Condenados e a Trilogia do Exílio. No fim de 1922, viaja para a
Europa com Tarsila do Amaral. Trava contatos com artistas de vanguarda da França,
Itália e Portugal. Conclui a redação de Memórias Sentimentais de João Miramar. Em
1924, retorna ao Brasil e o lança pela Editora Independência.
Entre os anos de 1924 e 1928, Oswald viajou para a Europa várias vezes e
também para o Oriente Médio. Nessas viagens, travou contatos com vários artistas
novamente. Em 1924, Oswald de Andrade, no Manifesto da Poesia Pau-Brasil
(Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18/03/24), defendia uma condição para o poeta:
“Sem reminiscências livrescas. Sem comparação de apoio. Sem pesquisa etimológica.
Sem ontologia” (ANDRADE, 1990, p. 45). No ano seguinte, uma forma reduzida e
alterada do Manifesto abria o livro de poesias Pau-Brasil. No Manifesto e no livro PauBrasil - ilustrado por Tarsila do Amaral -, Oswald propõe uma literatura extremamente
vinculada à realidade brasileira, a partir de uma redescoberta do Brasil. Ou, como
afirma Paulo Prado ao prefaciar o livro: “Oswaldo de Andrade, numa viagem a Paris, do
alto de um atelier da Face Clichê – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua
própria terra. A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas,
a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já
desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e
misterioso. Estava criada a poesia pau-brasil” (ANDRADE, 2003, p. 89).
O Manifesto da Poesia Pau-Brasil enfatiza a necessidade de se criar uma arte
baseada nas características da cultura brasileira, com absorção crítica da modernidade
européia, como por exemplo:
O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio
império da literatura nacional... Realizada essa etapa, o problema é
outro. Ser regional e puro em sua época... Uma única luta – a luta
pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia PauBrasil, de exportação” (ANDRADE, 1990, p. 41, 42).
Em 1928, Oswald leva ao extremo essas idéias com o Manifesto Antropófago,
que propõe devorar ou deglutir as influências estrangeiras para impor o caráter
brasileiro à arte e à literatura. Há várias ideias que estão implícitas neste manifesto.
Uma é conhecida da antropofagia e tem a ver com o papel simbólico do canibalismo nas
sociedades tribais tradicionais. O antropófago nunca come um ser humano por nutrição,
mas sim sempre para assimilar as qualidades do inimigo ou de alguém. Assim, a
antropofagia é interpretada como uma forma de valoração do inimigo. Se o inimigo tem
valor, então tem interesse para ser devorado, porque assim o antropófago torna-se mais
forte.
Oswald atualiza este conceito expressando, veladamente, a força da cultura
brasileira, é colonizada pelo europeu mas digere o europeu e assim torna-se superior a
ele: “Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do
exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o.”
(ANDRADE, 1990, p. 49).
Outra ideia é a de que o Brasil, simbolizado pelo índio, absorve o estrangeiro, o
elemento estranho a si, e torna-o carne da sua carne.
A antropofagia, segundo Oswald, é uma inversão do mito do bom selvagem de
Rousseau, que era puro, inocente, edênico. O índio passa a ser mau e esperto, porque
devora o estrangeiro, digere-o, torna-o parte da sua carne. Assim, o Brasil seria um país
canibal. O que é um ponto de vista interessante porque subverte a relação colonizador/
(ativo)/colonizado(passivo). O colonizado digere o colonizador. Ou seja, não é a cultura
ocidental, portuguesa, européia, branca, que ocupa o Brasil, mas é o índio que digere
tudo o que lhe chega. “Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma
civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos...”(ANDRADE,
1990, p. 50). E ao digerir e absorver as qualidades dos estrangeiros fica melhor, mais
forte e torna-se brasileiro.
Assim o Manifesto Antropófago, embora seja nacionalista não é xenófobo,
antes pelo contrário, é xenofágico: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem.
Lei do antropófago” (ANDRADE, 1990, p. 47).
O ponto a ser visto é de como as viagens de Oswald à Europa, as Vanguardas
Européias e a cidade de São Paulo de 1900 a 1924 influenciaram o autor em Memórias
Sentimentais de João Miramar e também como ele antecipou algumas idéias do
Manifesto Pau-Brasil e do Manifesto Antropófago na obra.
3
HIBRIDISMO E A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM OSWALD
Neste capítulo, será visto como o futurismo e as vanguardas européias
influenciaram na obra de Oswald de Andrade e como Oswald soube digerir tudo o que
aprendeu/apreendeu em suas viagens à Europa. O contato com os artistas europeus de
vanguarda, o cinema, os progressos na psicanálise e o desenvolvimento urbano e
industrial tiveram grande influência no trabalho do autor.
3.1
MSJM E O FUTURISMO
A alta sociedade de São Paulo do início do século XX se prendeu na tradição de
que tudo que vem da Europa é mais chique, mais pomposo, tem mais valor. As
primeiras viagens de Oswald à Europa, seu contato com as artes de vanguarda, com os
manifestos, as reuniões com artistas europeus no Brasil e na Europa e as reuniões com
outros artistas brasileiros que também tinham um anseio de modernização da literatura
influenciaram Oswald para a produção de MSJM. O futurismo, o cubismo e outras
novas tendências das artes, segundo Haroldo de Campos (CAMPOS, 2006, p. 57 e 58):
Como explicar, de outra forma, o cubo-futurismo-plásticoestilístico de tantos trechos do Miramar (por exemplo):
Um cão ladrou à porta barbuda em mangas de camisa
e uma lanterna bicor mostrou os iluminados na entrada da
parede
O cachorro deitado tinha duas caras com uma esfinge e
cabelos bebês
Mas a calçada rodante de Pigalle levou-me sozinho por
tapetes de luzes e de vozes ao mata-bicho decotado de um
dancing com grogs cetinadas pernas na mistura de corpos e de
globos e de gaitas com tambores,
Trechos onde cláusulas se encontram e se interceptam como
planos, os atributos saltam do engaste e deslizam de uma superfície
semântica a outra, as imagens se seccionam como providas de arestas?
No trecho de MSJM citado anteriormente é possível ver o movimento de várias
colagens de cenas (ANDRADE, 2006, p. 95):
•
Cena 1: “Um cão ladrou à porta barbuda em mangas de camisa e uma
lanterna bicor mostrou os iluminados na entrada da parede”.
•
Cena 2: “O cachorro deitado tinha duas caras com uma esfinge e cabelos
bebês”.
•
Cena 3 (cena contínua): “Mas a calçada rodante de Pigalle levou-me
sozinho por tapetes de luzes e de vozes ao mata-bicho decotado de um
dancing com grogs cetinadas pernas na mistura de corpos e de globos e
de gaitas com tambores”.
Nessas cenas, pode-se ver o “rompimento e a violação da coesão”
(MALIÉVITCH in PERLOFF, 1993, p. 272), que são características do cubismo ou
cubo-futurismo. Não há um tempo contínuo. A influência futurista se percebe pela
rapidez do texto, decorrente da ausência de pontuação e da seleção e organização das
palavras, como na cena 3.
Oswald tenta chegar ao non sense com as palavras: para se chegar a uma
imagem, ele deforma os adjetivos. As palavras em liberdade estão “...em uma espécie
de otimismo vital, com o qual os desejos... empossam os aspectos mais vistosos da vida
moderna, originando imagens não exatamente líricas, mas sim de uma grande
eloquência verbal” (RAVEGNANI & ROSA, 1972, p. 239).
Oswald foi original ao sintonizar suas idéias com as vanguardas européias. Fez
isto num sentido muito diferente das antigas imitações existentes na literatura brasileira,
como ressalta Antonio Cândido (CAMPOS, 2006, p. 59). A obra é dotada de autonomia
estética e originalidade. Essa autonomia se dá com o surgimento de uma nova ideia de
texto, com a maneira que Oswald internalizou as novas técnicas de vanguarda. E é
original por ter sido a primeira obra que quebra totalmente com os cânones do passado.
Haroldo de Campos chamou a obra de “o primeiro cadinho de nossa prosa nova”
(CAMPOS, 2006, p. 20).
Oswald mesmo relata o contato com o futurismo em Um Homem Sem
Profissão: “Dos dois manifestos que anunciavam as transformações no mundo, eu
conheci em Paris o menos importante, o do futurista Marinetti. Carlos Marx me
escapara completamente” (ANDRADE, 2002, p. 117). Oswald também declara que
voltou da Europa inocente como fora, porém tinha conhecido a liberdade.
Ainda Oswald:
Uma aragem de modernismo vinda através da divulgação na
Europa do ‘Manifesto Futurista’, de Marinetti, chegara até mim... os
valores estáveis da mais atrasada literatura do mundo impediam
qualquer renovação. Bilac e Coelho Neto, Coelho Neto e Bilac.
Houvera um surto de Simbolismo com Cruz e Souza e Alphonsus de
Guimarães mas a literatura oficial abafou tudo (ANDRADE, 2002, p.
125).
Oswald realmente começa aos poucos a por em prática seus anseios de mudança
na literatura vigente quando começa a fazer reuniões em 1917 em sua garçonnière com
Di Cavalcanti, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Menotti del Picchia, Guilherme de
Almeida, Pedro Domingues de Almeida, Anita Malfatti, etc. Também tinha a figura de
Miss Cyclone, que era a amante de Oswald. Em suas cartas amorosas, Oswald assinava
com o pseudônimo “Miramar” e Cyclone também o chamava de “Miramar” em bilhetes
ou cartas. Nessa época, Oswald trabalha no Jornal do Commércio. Começam os
primeiros escritos de MSJM.
Do Manifesto Técnico da Literatura Futurista, de 1912, pode-se citar alguns
itens que Oswald seguiu - com base em alguns trechos descritos por Haroldo de
Campos.
O primeiro indicador no Manifesto Futurista versa sobre a sintaxe e a
morfologia: “1. É preciso destruir a sintaxe, dispondo os substantivos ao acaso do seu
nascimento” (CAMPOS, 2006, p. 46).
Exemplo: “Ia na frente bamboleando maleta preta nas portas lampiões eu
menino” (ANDRADE, 2006, p. 75).
Quanto à pontuação, o Manifesto aponta: “6. Nada de pontuação...” (CAMPOS,
2006, p. 46). Observa-se a falta de vírgulas no episódio-fragmento “122. VANITY
FAIR” (ANDRADE, 2006, p. 134) para dar sequência às colagens ou imagens: “D.
Tira-Vira de sabida suspeita esganiçava segredos ingleses para o filho usura calvo
antigo organizador de cotillons com declarações néscias de amor e passadas aventuras
criardais na Alemanha Kaiseriana.”
Também merece destaque o indicador “9. Para envolver e captar tudo o que há
de mais fugidio e incaptável na matéria, é preciso formar filetes cerrados de imagens ou
analogias...” (CAMPOS, 2006, p. 46). No episódio-fragmento “135. PASSA O AMOR”
(ANDRADE, 2006, P. 140, 141), Oswald descreve como é a tarde no desfile de
Carnaval, como é o desfile, como se comportava sua amante. Fez essa descrição usando
os substantivos ou adjetivos ou verbos por analogia para a formação de imagens:
A tarde suicidava-se como Petrônio.
Serpentinas explodiam ao nosso lado na extensão toldada de
bandeiras e asfalto.
Famílias iam por quatro filas de máscaras carruagens,
estandarteando longes vultos ornamentados e confusos de caminhões
caminhantes.
Dominós agitavam-se como bandeiras amarelas.
No enroscamento dos bonecos rodantes em roda dos maços
fofos com guirlandas elétricas de papel, os carros tinham lentidões de
rabos.
Rolah ria como um animal espancado e fazíamos regressar as
serpentinas vindo voando (ANDRADE, 2006, p. 140,141).
No indicador “10. Sendo toda ordem fatalmente um produto da inteligência
cautelosa, é preciso orquestrar as imagens, dispondo-as a partir de um máximo de
desordem” (CAMPOS, 2006, p. 46).
Oswald, num pequeno poema com 8 versos livres, “123. BUNGALOW DAS
ROSAS E DOS PONTAPÉS” (ANDRADE, 2006, p. 135), consegue criar a cada verso
uma nova imagem, alternando do português, para o inglês, para o português inventado e
para o espanhol:
Bondes goals
Aleguais
Noctâmbulos de matchs campeões
E poeira
Com vesperais
Desenvoltas tennis girls
No Paulistano
Paso Doble (ANDRADE, 2006, p. 135)
Em “11. ... Depois do verso livre, eis, enfim, as palavras em liberdade”
(CAMPOS, 2006, p. 46), o manifesto aponta para a ruptura com o verso clássico. Podese ver que o uso das “palavras em liberdade” é o que mais Oswald empregou em
MSJM. É por isso que a obra acabou tendo 163 fragmentos, com várias imagens e
colagens sobrepostas, os quais são escritos em diversos estilos: missivas, poemas,
citações, diálogos, fórmulas-padrão (convites, anúncios, etc), impressões, relatos de
viagem, cartões-postais etc.
3.2
O ESTILO TELEGRÁFICO
Assim como Marinetti falava numa “immaginazione senza fili”, Oswald, de sua
parte, insinua no prefácio joco-sério de Machado Penumbra a caracterização do estilo
miramarino como “estilo telegráfico”.
A linguagem telegráfica pressupõe a comunicação lacônica, truncada, elíptica,
em que os excessos são eliminados e apropria-se do estritamente indispensável ao
entendimento.
Marcada pela supressão, a linguagem de Oswald sofre influência da imprensa,
do título telegráfico, do encurtamento, também porque, à época da produção de MSJM,
trabalhava no Jornal do Commércio como jornalista. Com a influência talvez do
jornalismo e talvez do contato com as idéias de Ardengo Soffici em Os Primeiros
Princípios de uma Estética Futurista, Oswald tenha conseguido a chegar na sua ideia
própria de composição de estilo telegráfico, porque na base do monólogo interior está o
simultaneísmo que Soffici assim define:
Posto o artista como centro móvel do universo vivente, todas as
sensações e emoções, sem perspectiva de espaço ou de tempo, atraídas
e fundidas num ato criativo poético. Simultaneidade de estados de
espírito polarizados por vias analógicas de recordações, de
pensamentos remotos, de impressões de outros lugares e de outros
tempos , como luzes de astros errantes concentrados num espelho
(CAMPOS, 2006, p. 51, 52).
Um exemplo de como isso se deu na obra é o episódio-fragmento “82. TÁTICA”
(ANDRADE, 2006, p. 113), onde Miramar fica sabendo da chegada ao Brasil, em
Pernambuco, a bordo do navio Darro, da atriz (e futura amante) Mlle. Rolah. A notícia,
vinda do jornal, embaralha-se na sua cabeça com o noticiário de guerra, resultando em
flashes mentais:
Os jornais noticiaram de repente que acossada pela
conflagração achava-se em Pernambuco a bordo do Darro a jovem
estrela cinematográfica Mlle. Rolah.
Até ontem a ala esquerda dos aliados fazia recuarem quase
que desordenadamente as tropas invasoras numa distância de 70
quilômetros enquanto Joffre Rolah e a ala direita formavam ângulo em
Verdun com as tropas de leste cobrindo-as assim contra um
envolvimento do Darro (ANDRADE, 2006, p. 113).
3.3
A PROSA CINEMATOGRÁFICA
Há de ressaltar também que a obra MSJM tende para um tipo de prosa chamada
de “prosa cinematográgica”, conforme apontado por Haroldo de Campos (CAMPOS,
2006, p. 53).
À época, o tempo requeria uma nova poesia e uma nova prosa, comensuradas à
realidade do cinema.
Em MSJM, a simultaneidade da narrativa, a montagem de
fragmentos, a ruptura do discursivo e o ritmo acelerado formam cenas, uma montagem,
não numa sequência linear, não numa maneira cíclica, à qual ligaria Oswald aos padrões
clássicos, mas de uma maneira moderna, entendido à maneira eisensteiniana. Como por
exemplo, em:
31. PRIMEIRAS LATIDUDES
A costa brasileira depois de um pulo de farol sumiu como um
peixe. O mar era um oleado azul. O sol afogado queimava arranhacéus de nuvens.
Dois pontos sujaram o horizonte faiscando longíquos bons
dias sem fio.
Os olhos hipócritas dos viajantes andavam longe dos livros –
agora, polichinelos sentados nas cadeiras vazias.
As antenas ruivas do capitão do Martha sondavam naufrágios
nos rochedos de Madame de Sevri.
À noite no jardim d’inverno havia festas de Pocinho em torno
do dedicado e gordo médico de bordo.
Um cônsul do Kaiser em Buenos Aires viajava como uma
congregação.
E até horas compridas quando as grumetes traziam o mar em
baldes para cima da mesa de jogo, as rugas dum inglês tour de monde
minuciosamente bebiam” (ANDRADE, 2006, p. 86).
Antônio Cândido observou que Oswald fora o lançador da técnica
cinematográfica no romance moderno, caracterizada pela “descontinuidade cênica”,
pela “tentativa de simultaneidade” (CAMPOS, 2006, p. 53) e o emprego de palavras
que indicam a ação, a velocidade, o moderno.
3.4
A ESTÉTICA DO FRAGMENTO
Haroldo de Campos também chama a atenção para a “Estética do Fragmentário”
presente na obra MSJM e a influência de Mallarmé, pela “destruição da frase em
fragmentos”, como por exemplo, no episódio-fragmento “6. MARIA DA GLÓRIA:
Preta pequenina do peso das cadeias. Cabelos Brancos e um guarda-chuva”
(ANDRADE, 2006, p. 130); pela “descontinuidade em lugar da ligação” como, por
exemplo, no episódio-fragmento “114. EXTENSÃO DA FAMÍLIA” (ANDRADE,
2006, p. 130), onde Oswald coloca quatro imagens diferentes numa mesma frase, a casa
de Higienópolis iluminada, “passos no jardim”, “idas à rua” e crianças brincando na rua:
“Higienópolis fervilhou iluminações passos no jardim idas à rua de crianças com
jogos”; pela “justaposição em lugar da sintaxe de construção habitual”, lembrando que
Oswald faz uso de aglutinações ou justaposições para também criar verbos, como
“tranatlanticarem” ou “beiramarávamos” (ANDRADE, 2006, p. 102); sinais todos
esses “de uma descontinuidade interior, de uma linguagem nas fronteiras do impossível”
(CAMPOS, 2006, p. 53), o que cria a incoerência, a tensão, a surpresa, que são
características da produção moderna à época de Miramar.
3.5
MSJM: O LINGUÍSTICO E O ESTÉTICO
A língua portuguesa lusitana é por si própria híbrida, tendo influências do latim,
do árabe e também de outras línguas. A língua portuguesa brasileira não é diferente.
Uma língua nunca para de receber influências, de receber novas formas lexicais, como
hoje temos o verbo deletar, por exemplo, e tantos outros neologismos já incorporados à
língua.
Segundo os gregos, a miscigenação violava as leis naturais. Já para Oswald, a
mescla das línguas, o progresso, a modernidade e o crescimento da cidade de São Paulo
eram fatores positivos. São Paulo era o pano de fundo de sua obra porque a cidade
estava em processo de desenvolvimento, mas sua intenção linguística era
abrangentemente brasileira: “A língua e a cultura são objetos do projeto de redescoberta
do Brasil...” que Oswald pretende. “Saem manifestos e discórdias. As idéias maturam.
João Miramar...” (FONSECA, 2007, p. 136).
A experimentação estilística de MSJM veio como uma rebelião estética contra a
literatura vigente. Oswald, um “blagueur”, segundo Mario de Andrade (ANDRADE,
2006, p. 7), em MSJM relatou e satirizou a alta sociedade paulistana do início do século
20, tendo como arma de destruição dessa literatura atrasada e dessa alta sociedade a
língua portuguesa. Destruiu para poder criar. Degradou, jogou com as palavras. Estas
são algumas características da rebelião moderna que Oswald pretendia.
O pseudo-prefaciador de MSJM, Machado Penumbra, afirma que a obra é um
“... trabalho de plasma de uma língua modernista, nascida da mistura do português com
as contribuições das outras línguas imigradas entre nós...” (ANDRADE, 2006, p. 26).
Isso se pode notar, por exemplo, no episódio-fragmento “77. MESES
FAZENDEIROS” (ANDRADE, 2006, p. 110) onde Miramar imita a fala dos italianos:
“Italianos de pé no chon...”.
Esse procedimento também ocorre em “101. O GRANDE INDUSTRIAL”
(ANDRADE, 2006, p. 122, 123), onde Oswald transcreve a fala de um latino, em
espanhol: “- Vamos a nos quedar unos millionarios, hombre, con la Cubatense!”. Ou em
“148. CORRIDA DE GANSO” (ANDRADE, 2006, p. 149).
De maneira satírica, Oswald imita a maneira de falar dos imigrantes libaneses ou
árabes: “- Aqui non teng agordo! Teng pagamento!”
3.6
MSJM: UMA PARÓDIA ESTILÍSTICA
MSJM é uma paródia estilística. Seus personagens representam a São Paulo
burguesa dos anos 1910 e 1920. Muitos dos nomes de personagens revelam humor e
crítica social como Dr. Limão Bravo (crítico azedo), Dr. Pepe Esborracha (desastrado),
Pôncio Pilatos da Glória (grande guia moral).
As personagens se agrupam em seis segmentos:
a) Familiares (Célia, Celiazinha, Cotita, Nair, Pantico, e outros). Os familiares são
colocados na obra como uma paródia das famílias abastadas paulistanas que têm
fazendas de produção de café. Apesar de essas famílias ainda terem um
pensamento provinciano, elas ocasionalmente mandavam seus filhos ao exterior
para poder estudar. Também era comum a aquisição de produtos importados e,
na linguagem, a tendência de se usar palavras francesas misturadas ao português,
pois àquela época, falar francês era chique, era moda. Eis um trecho muito
divertido aonde um primo de Miramar foi estudar no exterior e já mistura as
línguas e não chega a língua alguma:
68. RESSUREIÇÃO DO PÂNTICO
Querido primo
Há tempo que não te vejo e tu nem me escreves!
Aqui este ano não entrou muitos bichos comigo. Só dão
caxuleta nos pequenos. Mamãe e as manas chegou boas. Vou na
corrida de cavalos, é só crilas. Já sei escrever a língua francesa como a
Portuguesa e a Inglesa. Os Estados Unidos é cotuba. All right. Knock
out! I and my sisters speek french. Moi e ma soer nos savons paletre
bien le Français. Eu e minha ermã sabemos falal o francês”
(ANDRADE, 2006, p. 104)
b) Amigos (Britinho, C. Capua, José Chelinini, Pita, Maneco...). Britinho sempre
foi o companheiro de Miramar. José Chelinini foi colega de Miramar no colégio
secundário. Casou-se com a tia de Miramar já com título de conde;
c) Professores (Carvalho, M. Ivone, D. Matilde, Peixotinho, Philippe, Miss Piss, M.
Violet) Gostaria de chamar atenção ao nome Miss Piss (Senhorita Urina), mais
um clownismo de Oswald;
d) Mundo profissional (Banguirre y Menudo, T.T. Bezerra, Bica-Bam-Buda, Dr.
Pepe Esborracha, Machado Penumbra, Dr. Papa-treta...) Através dos nomes,
Oswald já dá um tom de sátira. Pepe Esborracha é médico. Machado Penumbra
é prefaciador da obra e também personagem, geralmente orador em solenidades.
Abre as Memórias Sentimentais de João Miramar com uma impagável paródia
dos beletristas brasileiros e seus imponentes prefácios. Penumbra:
Se no meu foro interior, um velho sentimentalismo racial
vibra ainda nas doces cordas alexandrinas de Bilac e Vicente de
Carvalho, não posso deixar de reconhecer o direito sagrado das
inovações, mesmo quando elas ameaçam espedaçar nas suas mãos
hercúleas o ouro argamassado pela idade parnasiana. VAE VICTIS!”
(ANDRADE, 2006, p. 70)
e) Mundo social (D. Bambina, Sr. Fíleas, João Jordão, M. Penélope, Rolah...)
Rolah era atriz de cinema e teve um romance com Miramar. Fíleas era um poeta
Parnasiano;
f) Fazenda (Capitão Benedito, Minão da Silva, Candoca, Delina...). Nesses
personagens, Oswald mostra a simplicidade do homem do campo, em especial
Minão da Silva. Apesar de tentar falar ou ler da maneira que as pessoas da
cidade o fazem, esse personagem é mais direto na sua fala e não sofre as
deformações ou degradações ou desanventuras financeiras que as personagens
da cidade passam. É um personagem mais puro.
A paródia se dá, desta forma, não somente no plano da linguagem, mas também
no plano das organizações sociais,
Essa relação entre o plano da expressão e do conteúdo é o que fundamenta o
modo de operação de Oswald de Andrade, na obra Memórias Sentimentais de João
Miramar, e que incidirá sobre os procedimentos elencados neste capítulo.
Os procedimentos irônicos, a alegoria e a sátira, enquanto procedimentos
estéticos serão tratados no próximo capítulo.
4
ALÉM/AQUÉM
O
MAR:
UMA
MIRADA
EM
MEMÓRIAS
SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR
João Miramar não é apenas personagem, mas também representa o autor, é seu
porta-voz, pois através dele é que se faz a denúncia crítica da realidade de seu tempo,
das figuras medíocres que faziam parte do início do século XX: intelectuais da época,
fazendeiros e suas esposas madames e grandes comerciantes (alta burguesia), ou seja,
“os estratos mais altos da população urbana...” de São Paulo (CAMPOS, 2006, p. 11)
que é “... o caso biográfico de Oswald de Andrade” (CAMPOS, 2006, p. 11).
Oswald faz o uso da sátira e da ironia, do “joco sério” e da surpresa em
Memórias Sentimentais de João Miramar para poder criticar a sociedade, o seu meio
e a literatura de sua época, como o próprio Oswald afirma: “Uma das idéias que me
seduziram é essa se que a base do ‘humour’ é feita mais de que autocrítica, de
autoflagelação” (ANDRADE in OLIVEIRA, 2001, p. 112).
4.1
DA IRONIA E DA SÁTIRA EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO
MIRAMAR
A ironia é resultado do astuto emprego do contraste, com o intuito de perturbar o
interlocutor. Segundo Massaud Moisés:
A ironia é uma forma de humor, ou desencadeia-o,
acompanhada de um sorriso; o sarcasmo induz ao cômico e ao riso,
quando não à gargalhada. A ironia parece respeitar o próximo, tem
qualquer coisa de construtivo, enquanto o sarcasmo é demolidor,
impenitente. Mais ainda: a ironia pode depender do contexto; fora
dele, o seu efeito desaparece, tragado pela obscuridade
resultante; já o sarcasmo não se condiciona tão estreitamente ao
ambiente psicológico e verbal no qual se move (MOISÉS, 2002,
p. 247).
A sátira é uma técnica literária ou artística que ridiculariza um determinado tema
(indivíduos, organizações, estados), geralmente como forma de intervenção política ou
outra, com o objetivo de provocar o interlocutor.
Em Memórias Sentimentais de João Miramar, Oswald foi radical, irônico,
satírico e provocativo. Empregou a sátira para provocar o riso, o espanto, o
estranhamento. Segundo Oswald, ninguém “faz sátira rindo sozinho. A eficácia da sátira
está em fazer os outros rirem de alguém, de alguma instituição, acontecimento ou coisa.
Sue função é, pois, crítica e moralista. E através da ressonância, a deflagração de um
estado de espírito oposto. A sátira é sempre oposição” (ANDRADE in OLIVEIRA,
2001, p. 102).
No fragmento “88. JABOTICABAS”, o autor ironiza e satiriza o personagem
Dr. Pilatos em sua mediocridade e satiriza os falares da elite paulistana, que se gabava
por comprar produtos vindos da Europa e “estudar e se profissionalizar no exterior”
(MENDES, 2006, p. 93) e também o recheio retórico em suas falas de autogabar-se,
além de expor satiricamente as instituições burguesas, Dr. Mandarim e suas titulações
ocas:
O Dr. Pilatos ficou fulo porque o Dr. Mandarim Pedroso,
tesoureiro pé-pé do Banco Nordeste de Engole-Marmanjos e
presidente do Recreio Pingue-Pongue, dissera em palestra referidora
de um genro seu a frase: - esses incógnitos...
- Chamar de incógnitos! É um rapaz direito, tem o seu
cobrezinho.
E continuou para mim com argumentos de paletó puxado
durante a pesquisa de pomar:
- Eu já passei com um almoço por semana e cheguei à posição
que cheguei. Sou um autodidata! E já fui citado pelo padre Berlangete
da Universidade Católica de Beirute. Escrevi a biografia do patriarca
Basílio 8 que foi torrado numa igreja por causa de Orígenes. Irei a
Ravena estudar de perto o século 5. As academias orientalistas abrirme-ão as portas, oh! ah! (ANDRADE, 2006, p. 116).
No fragmento “72. GARAGE E ESCRITÓRIO”, também é possível ver: “Fíleas
era um cosmético de sonetos” (ANDRADE, 2006, p. 107).
Fragmento “73. GARAGE E ESCRITÓRIO”
A casa de Higienópolis sossegava preguiças tropicais por entre
a basta erva do jardim aquintilado até outra rua com árvores e sol
lembrando a longe Fontainebleau de minha sogra.
Célia era um circo.
Os amigos respeitabundos transferiam-se para o escritório de
caricaturas paredais e poker na bolsenta Rua Quinze em sacada de
cimento armado avistadora de Brases fabricantes.
As cotações de Santos chegavam pela campainha regular do
fone assegurando a gasolina que por desfatio de cinco horas até o
jantar eu asfaltava em primeira segunda terceira marcha-ré no
aprendimento ajardinado de bungalows Rua Augusta abaixo.
O dr. Pepe Esborracha e o sábio Pilatos vinham fiéis e gulosos
como estorvos para o jantar dos dias santificados de convite de Célia
imprudentíssima.
Pelos sábados eu e o poeta Fíleas britanizávamos a semana em
sortidas por caminhos pores de sol para lá de Santana.
Os domingos eram grávidos de sono. (ANDRADE, 2006, p.
107, 108).
No fragmento 73, vê-se a exaltação da boa vida da alta sociedade paulistana de
maneira irônica. Miramar compara sua casa em Higienópolis e sua vista com
Fontainebleau, na França. Vale ressaltar que para os mais abastados naquela época, tudo
que era da Europa, principalmente da França, tinha mais status.
A forma como Oswald colocou as palavras nesse trecho tem influências do
Futurismo e também a exaltação à velocidade, ao que era moderno na época, a invenção
de palavras, a falta de pontuação, por exemplo: “... sossegava preguiças tropicais...
Célia era um circo... respeitabundos... As cotações de Santos chegavam pela campainha
regular do fone... asfaltava em primeira segunda terceira marcha-ré... britanizávamos...
Os domingos eram grávidos de sono” (ANDRADE, 2006, p. 107, 108).
Outras figuras da sociedade e da literatura vigente da época também são
satirizadas, como o Dr. Pepe Esborracha, Pilatos e o poeta parnasiano Fíleas:
...O dr. Pepe Esborracha e o sábio Pilatos vinham fiéis e gulosos
como estorvos para o jantar dos dias santificados de convite de Célia
imprudentíssima... Pelos sábados eu e o poeta Fíleas britanizávamos a
semana em sortidas por caminhos pores de sol para lá de Santana
(ANDRADE, 2006, p. 107, 108).
4.1.1 Alegoria e Mímese
Sabe-se que na literatura, a alegoria é o discurso acerca de uma coisa para fazer
compreender outra. Designa uma coisa pelas palavras e uma outra coisa – quando não
uma coisa inteiramente oposta – pelo sentido. A alegoria é composta de uma metáfora
contínua. A alegoria constitui, portanto, num tipo de discurso inicialmente apresentado
com um sentido próprio e que apenas serve de comparação para tornar perceptível um
outro sentido que não é expresso.
Entende-se por mímese a imitação ou representação do real na arte literária, ou
seja, a recriação da realidade.
Lúcia Helena defende a tese da duplicidade de caminhos da prosa oswaldiana e a
distingue pelos procedimentos miméticos. Vê Miramar como mimese de produção, ou
seja, produz na linguagem uma realidade literária. A isso nomina concepção alegórica
da mimese, ou ainda: “mediação dialética entre o real e o imaginário” (HELENA, 1985,
p. 104).
Em MSJM, a denúncia do poder estrangeiro e a crítica às convenções são
evidenciadas, mas não é só: a síntese e a surpresa desses fragmentos podem ser
remetidas ao Manifesto da Poesia Pau-Brasil (embora posterior) que declara a rejeição à
mentalidade acadêmica e formal pelo “contrapeso da originalidade nativa”.
Kenneth D. Jackson afirma: “pode-se dizer que as Memórias Sentimentais
retratam o contexto social brasileiro de um modo caricatural e paródico mais aguçado,
porque Oswald estava reagindo contra um estilo e um contexto social do qual
participava” (JACKSON, 1978, p. 30).
São Paulo, nos anos de 1910, época em que passa se MSJM, ainda era uma
província, porém, uma província em grande expansão, por conta da indústria. A alta
sociedade de São Paulo era formada pelas famílias abastadas que tinham fazendas de
plantação de café. A economia de São Paulo girava em torno das cotações do café. As
outras camadas da sociedade eram formadas por pessoas vindas do interior ou
imigrantes (árabes, espanhóis, italianos, portugueses, alemães, etc). Alguns imigrantes
faziam parte da classe burguesa (comércio), mas a grande maioria fazia parte da classe
operária, que trabalhava na indústrias. São Paulo era dividida entre bairros ricos e
bairros pobres.
Em MSJM, Oswald satiriza a alta sociedade de São Paulo, que é a classe a que
ele mesmo pertencia. Essa alta sociedade exaltava tudo o que era moda na Europa.
Oswald, em suas viagens à Europa travou contato com os movimentos de vanguarda.
Com o que aprendeu/digeriu na Europa, ele quis mostrar através da paródia, da ironia e
da sátira em MSJM que o mais importante é a cultura brasileira e não a vida importada
e ostentosa.
4.1.2 O Discurso e a Pompa
Certamente, as personagens da obra mimeticamente simbolizam figuras do
mundo real que são postas em julgamento crítico pelo ridículo das situações em que são
retratadas. Tais situações são permeadas pelo discurso que consolida as práticas do
“ridículo”.
O fragmento “81. NOITE INSTITUTAL” satiriza o discurso pomposo de
Machado Penumbra: “‘L’univers c’est une immense poésie, la poésie de Dieu, disse o
grande Lamennais!’ Discursos Sul-Americanos. Machado Penumbra” (ANDRADE,
2006, p. 113). Discursos à moda Machado Penumbra são pomposos, cheios de rodeios e
pouco práticos. Aqui, como em toda obra Oswald satiriza o uso de palavras em francês,
que era um costume da alta sociedade e o discurso pomposo que era utilizado por
escritores parnasianos e pela alta classe, que era conservadora.
No fragmento “89. LITERATURA”, há a contraposição do discurso soberbo,
imponente e vazio de Machado Penumbra ao discurso de Minão da Silva que, apesar de
tentar “falar difícil”, é simplório e caboclo, direto e objetivo, “ágil e cândida, como uma
criança” (ANDRADE, 2003, p. 42). Como o título já mostra “89. LITERATURA”,
talvez essa seja uma tentativa de Oswald de criticar (através da ironia) a literatura
parnasianista e os discursos pomposos da alta sociedade. Desta forma, Oswald mostra
que o discurso de Minão da Silva, que é um caboclo da fazenda de Miramar, é mais
objetivo e direto que o discurso de Machado Penumbra.
4.1.3 Os Negócios e a Incompetência
Não só o falar vazio é ironizado, também os negócios e a incompetência, como
ocorre
nos
fragmentos
“116.
AS
FAZENDAS
DA
CONDESSA”,
“119.
TRANSAÇÕES” e “120. ÚLTIMO FILM”: “... mas a Companhia Industrial e Segurista
de Imóveis Móveis aceitara o negócio depois do vesgo exame do grande advogado
Bica-Bam-Buda” (ANDRADE, 2006, p. 131, 132).
Esse trecho mostra (e também nos episódio-fragmentos citados) como Miramar
era imprudente nos negócios. Através dos nomes non sense citados, Oswald mostra ao
leitor que Miramar já não tinha controle dos seus negócios. Miramar dava atenção
demasiada à sua amante (a atriz Rolah) e aos negócios de risco que assumiu, como a
companhia cinematográfica. Miramar usou e abusou da fortuna de sua mulher Célia,
deixou sua família e as cotações do café em segundo plano para viver uma vida boêmia.
No fragmento “160. DISCURSO ANÁLOGO AO APAGAMENTO DA LUZ
DURANTE O FOX-TROT PELO DR. MANDARIM PEDROSO” (ANDRADE, 2006,
p. 157), Dr. Mandarim Pedroso discursa sobre o bom comportamento dos jovens no
clube Recreio Pingue-pongue, por ocasião de uma dança de salão em que faltou luz: “...
uma traiçoeira panne veio inundar de treva o recinto de fulgurantes ouropéis”
(ANDRADE, 2006, p. 158).
Seguindo a lição da Grécia, realizam o eterno anexim Mens
sana in corpore sano. Aqui não se lê romances de baixa palude
literária nem versos futuristas! Só se lê Rui Barbosa. Não! Aqui,
formam-se dignos filhos e filhas do grande ser que Bilac chamou na
sua frase cinzelada e lapidar ‘Astuta e forte, a grande mãe das raças,
Eva!’ (ANDRADE, 2006, p. 158).
Esse discurso destaca Rui Barbosa e critica os versos futuristas: “Aqui não se lê
romances de baixa palude literária nem versos futuristas!” (ANDRADE, 2006, p. 158).
Posto na situação em que foi, sugere exatamente o oposto, o que pode se levar à
antecipação das concepções presentes no Manifesto Antropófago (publicado em 1928):
a) “Contra todos os importadores de consciência enlatada”(ANDRADE, 2006,
p. 48) quando Oswald cita Rui Barbosa,
b) “Só se lê Rui Barbosa” (ANDRADE, 2006, p. 158),
c) “Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A
humana aventura. A terrena finalidade” (ANDRADE, 2006, p. 51) e
d) quando ele cita o Futurismo, “... nem versos futuristas!” (ANDRADE, 2006,
p. 158).
Essas incursões do autor realmente mostram que Oswald propõe o contrário.
Oswald propõe a absorção das vanguardas, a negação do estilo parnasiano e a criação de
uma arte realmente brasileira.
4.2
SÓ A ANTROPOFAGIA OS UNE
O prefácio de MSJM foi escrito por Machado Penumbra (Oswald de Andrade),
que também é personagem na obra. Já neste prefácio, Machado Penumbra fala sobre a
“... língua modernista nascida da mistura do português com as contribuições das outras
línguas imigradas entre nós...” (ANDRADE, 2006, p. 70, 71) e que a tendência da
construção para a simplicidade latina é interessante e original. Também ressalta a
violação das regras comuns da pontuação, porém afirma que dessa maneira se faz sentir
a grande forma frase.
A volta ao primitivismo e a expressão livre são características das vanguardas
européias. Oswald, em suas viagens à Europa, devorou as tendências européias e travou
com MSJM um comprometimento com o que é simples, nacional, como afirma Mário
de Andrade: “Quando estudei as Memórias Sentimentais chamei atenção para algumas
coincidências do brasileiro com Expressionismo e Dadá. O que não firmei bem é que o
livro continha germinalmente alguns elementos de construção brasileira” (ANDRADE
in FONSECA, 2007, p. 153).
4.2.1 A Linguagem Híbrida / Neológica
Em MSJM, Oswald busca uma nova linguagem, um ajustamento da expressão,
uma linguagem híbrida, fragmentada, com neologismos. Cria palavras que não existem
no fundo lexical para chegar ao máximo da expressão, como por exemplo, no episódiofragmento “27. FÉRIAS”:
Dezembro deu à luz das salas enceradas de tia Gabriela as três
moças primas de óculos bem falados.
Pantico norte-americava.
E minha mãe entre médicos num leito de crise decidiu meu
apressado conhecimento viajeiro do mundo (ANDRADE, 2006, p.
84).
É possível ver neste último fragmento que há três cenas: a primeira é a de três
primas de Miramar numa sala encerada, a segunda é de seu primo Pantico que vai para
os Estados Unidos e a terceira é a da mãe de Miramar doente, entre médicos, numa
cama, que consente a viagem do filho à Europa.
Em MSJM, Oswald faz esse jogo com as palavras, procura um outro substantivo
para dar qualidade a outro substantivo ou até outro adjetivo não relativo à palavra
descrita para poder chegar ao máximo da expressão: “... três moças primas... óculos bem
falados... Pantico norte-americava...” (ANDRADE, 2006, p. 84).
Ou como salienta Mário da Silva Brito: “João Miramar reestrutura o idioma, a
linguagem, dócil argila que o artista modela, aos tabefes ou acariciadoramente”
(BRITO, 1972, p. 72).
Todos os aspectos levantados anteriormente sobre a obra MSJM, apontam para
uma estrutura subversiva da linguagem. Oswald fragmenta o discurso, subverte o
discurso linear, hierárquico da classe dominante, inverte posições de valores (estéticos,
éticos e lógicos), produz uma mistura de eventos.
Seguindo a devoração das vanguardas européias, ele não constrói, destrói para
construir o novo. Procura uma nova linguagem, critica a literatura e a sociedade pela
literatura. Faz “o uso consciente da literatura como instrumento de revolta social, a
defesa de um estatuto específico da linguagem...” (NUNES, 1979, p. 23) moderna e
brasileira.
CONCLUSÃO
Observou-se nesta pesquisa a ação das Vanguardas Européias sobre a linguagem
utilizada em Memórias Sentimentais de João Miramar que foram suas viagens à Europa,
suas visitas às exposições de arte moderna, seu contato com o Manifesto Futurista e
com o Manifesto Técnico da Literatura Futurista, suas reuniões com artistas de
vanguarda, suas leituras dos novos filósofos, seu interesse pelo que era moderno, suas
reuniões com Menotti Del Picchia, Anita Malfatti, Mário de Andrade, entre outros
artistas modernistas. Com isso, Oswald antecipou as idéias presentes nos seus
manifestos Pau-Brasil (1924) e Antropófago (1928), sendo a obra uma demonstração
da língua portuguesa falada em São Paulo, através da paródia e da desconstrução da
linguagem.
Seguindo a idéia do Manifesto Pau-Brasil, a língua portuguesa na obra aparece
com distorções e neologismos, como ela é falada na São Paulo do início do século XX.
É uma ruptura com a língua de Portugal, do colonizador, é uma ruptura com os cânones
clássicos vigentes até então na literatura: a língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural
e neológica. “A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como
somos.”
E, seguindo a idéia da antropofagia, Oswald “devora” as Vanguardas
Europeias e coloca, em sua obra, o estilo telegráfico da linguagem, a anormalidade, a
surpresa, a desconstrução.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo Livros, 1990.
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BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
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